tecnologia: revolução ou escravidão

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 Sergio Luiz Gomes Júnior Dez/2011 – Art. 245 /11 Tecnológica: Revolução ou Escravidão Na década de 80, eu já era maravilhado com tudo que era tecnologia, até porque, meu pai, que na época trabalhava para a Light S.A., demonstrava grande curiosidade em tudo que o mercado apresentava ao público e brevemente adquiria o produto. Lembro-me quando ele chegou com uma caixa enorme e retirou de dentro dela 2 peças, que de primeira vista lembrava um aparelho de som. Não esses aparelhos de hoje em dia que fica tudo junto, mas um aparelho modular, que era um receiver, responsável por prover a saída do som com uma determinada amplificação, um toca-fitas, um rádio e uma pick-up para os discos de vinil. Essas duas peças, que ele tirara da caixa, eram parte de um único aparelho chamado de VHS ( Video Home System), que significa “sistema de vídeo doméstico”. Não havia em toda cercania alguém que possuísse tal aparelho. Lembro-me, ainda, dos olhos estupefatos dos meus vizinhos olhando a televisão de lá de casa, ao ver a mesma bicicleta voando para o céu que dias antes haviam visto nas telas dos cinemas, e com o mesmo ET em sua cesta. E isso segue até os dias de hoje. Constantemente eu observava que havia sentimentos diferentes quanto a tecnologia doméstica e a tecnologia empregada em seu serviço. Era como se houvesse uma barreira invisível entre ele e essas tecnologias. Mas como poderia uma agradar e outra causar repulsa? Estando eu um pouco mais velho, já me habilitava a desenvolver jogos utilizando de cassete, um bloco de folhas pautadas, gravador, criatividade e um MSX da Gradiente. Adorava aquilo e era como se um mundo novo abrisse as portas para mim. Então como eu poderia adorar aquele aparelho e meu pai não? Havia algo que eu não compreendia e que levaria anos para perceber. Quando entrei no mercado de trabalho, computador já havia se tornado uma ferramenta tão necessária qua nto uma cadeir a num escrit ório. Minha paixão por esta tecnologia foi tão forte que tornei o uso dela, minha profissão. A partir de então eu passei a ser “o cara” que chegava com novas propostas de implementação daquela ferramenta, e que meu pai tanto detestava. Assim como ele, a maioria das pessoas criava uma barreira, tentando provar e mostrar que da forma como vinham fazendo suas tarefas era bem melhor. Claro que de nada adiantaria todo aquele esforço contra a tecnologia a ser empregada. Claro que muitos ficavam com medo de perder seus empregos. Claro que eram obrigados a engolir aquela tecnologia goela abaixo. Não havia dúvidas que aquilo chegára para ficar e que não terminaria ali, mas que possuía uma nova tendência. Primeiro foi a invasão dos editores de texto que substituíam as antigas e desajeitadas maquinas de escrever, depois planilhas eletrônicas que poupavam grande tempo desperdiçado antes com réguas, lápis e pranchetas. Mesmo economizando tempo a trabalho, ainda detestavam a mudança que se ampliava a cada dia. Como era possível alguém reclamar de ganhar tempo e ter menos trabalho? O tempo passava e meu Curriculum Vitae ia se alimentando de informações, amadurecendo. Já formado, me especializei no atendimento ao usuár io daquela tecnol ogia que tanto me cativava. O conflito dos funcionários com futuras mudanças continuava. Foi então que analisei melhor sobre aquela mudança das planilhas de papel para as planilhas eletrônicas. Lembrei de meu pai, sentado em frente a prancheta, com uma folha branca de tamanho A2, lápis B2 e borracha, olhando para um bloco onde haviam diversos cálculos. Olhando esses números, ele parava para pensar um minuto, desenhava algumas linhas e colunas e inseria dentro de quadrados, aquele determinado valor. Esta tarefa se repetia durante o dia todo, e eu, aguardando a hora do dentista, observava-o. Dois dias após minha visita ao dentista, me pai chegava em casa e, numa conversa sobre o dia, com minha mãe, ele contava que havia terminado a tal planilha. Hoje, muito mais informado e com uma visão analítica apurada, comecei a perceber o porquê de tanta repulsa a tecnologia. Eu estava na mesma Light S.A., trabalhando no mesmo setor que me pai trabalhava, elaborando e finalizando a mesma planilha, que ele antes leva va

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Sergio Luiz Gomes JúniorTecnológica: Revolução ou EscravidãoNa década de 80, eu já era maravilhado com tudo que era tecnologia, até porque, meu pai, que na época trabalhava para a Light S.A., demonstrava grande curiosidade em tudo que o mercado apresentava ao público e brevemente adquiria o produto. Lembro-me quando ele chegou com uma caixa enorme e retirou de dentro dela 2 peças, que de primeira vista lembrava um aparelho de som. Não esses aparelhos de hoje em dia que fica tudo junto, mas um

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Sergio Luiz Gomes Júnior

Dez/2011 – Art. 245/11

Tecnológica: Revolução ou Escravidão

Na década de 80, eu já era maravilhado com tudo que era tecnologia, até porque, meupai, que na época trabalhava para a Light S.A., demonstrava grande curiosidade em tudo que omercado apresentava ao público e brevemente adquiria o produto. Lembro-me quando elechegou com uma caixa enorme e retirou de dentro dela 2 peças, que de primeira vista

lembrava um aparelho de som. Não esses aparelhos de hoje em dia que fica tudo junto, masum aparelho modular, que era um receiver, responsável por prover a saída do som com umadeterminada amplificação, um toca-fitas, um rádio e uma pick-up para os discos de vinil. Essasduas peças, que ele tirara da caixa, eram parte de um único aparelho chamado de VHS ( Video

Home System), que significa “sistema de vídeo doméstico”. Não havia em toda cercaniaalguém que possuísse tal aparelho. Lembro-me, ainda, dos olhos estupefatos dos meusvizinhos olhando a televisão de lá de casa, ao ver a mesma bicicleta voando para o céu quedias antes haviam visto nas telas dos cinemas, e com o mesmo ET em sua cesta. E isso segueaté os dias de hoje.

Constantemente eu observava que havia sentimentos diferentes quanto a tecnologiadoméstica e a tecnologia empregada em seu serviço. Era como se houvesse uma barreirainvisível entre ele e essas tecnologias. Mas como poderia uma agradar e outra causar repulsa?

Estando eu um pouco mais velho, já me habilitava a desenvolver jogos utilizando de cassete,um bloco de folhas pautadas, gravador, criatividade e um MSX da Gradiente.Adorava aquilo e era como se um mundo novo abrisse as portas para mim. Então como eupoderia adorar aquele aparelho e meu pai não? Havia algo que eu não compreendia e quelevaria anos para perceber.

Quando entrei no mercado de trabalho, computador já havia se tornado umaferramenta tão necessária quanto uma cadeira num escritório. Minha paixão por estatecnologia foi tão forte que tornei o uso dela, minha profissão. A partir de então eu passei aser “o cara” que chegava com novas propostas de implementação daquela ferramenta, e quemeu pai tanto detestava. Assim como ele, a maioria das pessoas criava uma barreira, tentandoprovar e mostrar que da forma como vinham fazendo suas tarefas era bem melhor. Claro quede nada adiantaria todo aquele esforço contra a tecnologia a ser empregada. Claro que muitos

ficavam com medo de perder seus empregos. Claro que eram obrigados a engolir aquelatecnologia goela abaixo. Não havia dúvidas que aquilo chegára para ficar e que não terminariaali, mas que possuía uma nova tendência. Primeiro foi a invasão dos editores de texto quesubstituíam as antigas e desajeitadas maquinas de escrever, depois planilhas eletrônicas quepoupavam grande tempo desperdiçado antes com réguas, lápis e pranchetas. Mesmoeconomizando tempo a trabalho, ainda detestavam a mudança que se ampliava a cada dia.Como era possível alguém reclamar de ganhar tempo e ter menos trabalho?

O tempo passava e meu Curriculum Vitae ia se alimentando de informações,amadurecendo. Já formado, me especializei no atendimento ao usuário daquela tecnologiaque tanto me cativava. O conflito dos funcionários com futuras mudanças continuava. Foientão que analisei melhor sobre aquela mudança das planilhas de papel para as planilhaseletrônicas. Lembrei de meu pai, sentado em frente a prancheta, com uma folha branca de

tamanho A2, lápis B2 e borracha, olhando para um bloco onde haviam diversos cálculos.Olhando esses números, ele parava para pensar um minuto, desenhava algumas linhas ecolunas e inseria dentro de quadrados, aquele determinado valor. Esta tarefa se repetiadurante o dia todo, e eu, aguardando a hora do dentista, observava-o. Dois dias após minhavisita ao dentista, me pai chegava em casa e, numa conversa sobre o dia, com minha mãe, elecontava que havia terminado a tal planilha.

Hoje, muito mais informado e com uma visão analítica apurada, comecei a perceber oporquê de tanta repulsa a tecnologia. Eu estava na mesma Light S.A., trabalhando no mesmosetor que me pai trabalhava, elaborando e finalizando a mesma planilha, que ele antes levava

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Sergio Luiz Gomes Júnior

Dez/2011 – Art. 245/11

três dias para completar, em meros dez minutos. Lembrei-me, naquele exato momento, dediversos textos no começo daquela mudança que diziam “a tecnologia a serviço do homem”.Outras frases bem elaboradas se seguiam. “A tecnologia em prol da humanidade”, “tenhamenos trabalho usando um computador” e “ganhe velocidade no seu trabalho usando atecnologia”. Uma coisa começou a me incomodar. O meu pai levava três dias para fazer amesma coisa que agora eu fazia em dez, no máximo quinze, minutos. Aquilo começou a

incomodar ainda mais quando analisei o valor que ele recebia de salário e o valor que eu agorarecebia. Alguma coisa estava errada. Não batia. Ora, se ele fazia em três dias e eu em dezminutos, logo, eu deveria ter três dias menos dez minutos de folga. Analisando ainda melhor,se eu fizesse a cada dez minutos o que ele levava três dias, logo, eu deveria receber cento equarenta e quatro vezes mais que ele. Nenhuma das duas razões ocorriam. Sendo assim surge,então, uma terceira razão, que resulta em, logo, eu trabalho mais e ganho menos.

Encontrei, em minhas análises, o motivo do medo que corria nas veias “daqueles”funcionários que eu tanto questionara. Ou sabiam que trabalhariam mais por conta daquelatecnologia, ou sabiam que ganhariam um salário inferior, até porque não precisavam fazertanto esforço mental com cálculos, espaçamentos e margens. Hoje me vejo produzindo, nomínimo, quinhentas vezes mais que meu pai, porém recebendo cinco vezes menos. Olhandode forma figurativa, me comparei a um foie gras. Para quem não conhece, foie gras é o

resultado de uma prática desumana, que mostra a que ponto a crueldade do homem podechegar, submetendo um ganso a um processo que pode ser melhor classificado como tortura,com o objetivo de tornar se fígado anormalmente engrandecido e doente, para que entãoalguns poucos possam saborear o resultado desta arte grotesca. Foie gras. A diferença é que,ao invés de me enfiarem comida goela abaixo, me entope de trabalho. Sugiro uma leiturasobre a prática da produção de foie gras, que possui grande similaridade com o trabalhadorem seu ambiente de trabalho. É certo que você irá reparar diversas similaridades.

Será que fomos tão estúpidos, a ponto de deixar sermos iludidos com as propagandasda revolução tecnológica e nos fizemos de escravos? Acreditamos, de verdade, que um dia atecnologia será usada em prol da humanidade? Será que em algum dia trabalharemos menos eteremos uma qualidade de vida e de lazer maior e melhor? Porque, no momento, as únicascoisa que ganhamos foram, stress, depressão, ansiedade, diversas síndromes e mais contaspara pagar. E nem vou entrar no assunto de que a mulher teve que entrar no mercado detrabalho, não por igualdade de sexo, mas pela necessidade da casa, já que apenas o homem,sozinho, hoje não consegue sustentar uma família. Sem contar que nossos filhos não terãoessa visão, já que acordaram neste mundo como escravos tecnológicos.

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