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TEMAS SOBRE A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: UM DEBATE CRÍTICO Organizadores: Jucélia Fátima Seidler Jeremias Renata Squizato Izique Riva Sobrado de Freitas Thiago Zelim AUTORES: Alexandre Arnalde Salim Andressa de Freitas Damolin Andrey Luiz Paterno Claudiomar Luiz Machado Edson Antônio Baptista Nunes Fernanda Tofolo Julivan Augusto Negrini Renato de Carvalho Ayres Renata Squizato Izique Thiago Zelin Renato de Rezende Gomes Pedro José de Alcântara Mendonça Jucélia Fátima Seidler Jeremias

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  • TEMAS SOBRE A CONSTITUCIONALIZAÇÃO

    DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS:

    UM DEBATE CRÍTICO

    Organizadores:Jucélia Fátima Seidler Jeremias

    Renata Squizato IziqueRiva Sobrado de Freitas

    Thiago Zelim

    AUTORES:Alexandre Arnalde Salim

    Andressa de Freitas DamolinAndrey Luiz Paterno

    Claudiomar Luiz MachadoEdson Antônio Baptista Nunes

    Fernanda TofoloJulivan Augusto Negrini

    Renato de Carvalho AyresRenata Squizato Izique

    Thiago ZelinRenato de Rezende Gomes

    Pedro José de Alcântara MendonçaJucélia Fátima Seidler Jeremias

  • TEMAS SOBRE A CONSTITUCIONALIZAÇÃO

    DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS:

    UM DEBATE CRÍTICO

    Organizadores:Jucélia Fátima Seidler Jeremias

    Renata Squizato IziqueRiva Sobrado de Freitas

    Thiago Zelim

    AUTORES:Alexandre Arnalde Salim

    Andressa de Freitas DamolinAndrey Luiz Paterno

    Claudiomar Luiz MachadoEdson Antônio Baptista Nunes

    Fernanda TofoloJulivan Augusto Negrini

    Renato de Carvalho AyresRenata Squizato Izique

    Thiago ZelinRenato de Rezende Gomes

    Pedro José de Alcântara MendonçaJucélia Fátima Seidler Jeremias

  • Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

    T278 Temas sobre a constitucionalização dos direitosfundamentais: um debate crítico / organizadores:Jucélia Fátima Seidler Jeremias ... [et al.]. – Joaçaba:Editora Unoesc, 2017. 206 p. ; il. ; 30 cm.

    ISBN 978-85-8422-152-3

    1. Direitos fundamentais. 2. Constitucionalidade I.Jeremais, Jucélia Fátima Seidler, (org.)

    Doris 341.27

    A revisão linguística é de responsabilidade dos autores.

    Universidade do Oeste de Santa Catarina – Unoesc

    ReitorAristides Cimadon

    Vice-reitores de CampiCampus de Chapecó

    Ricardo Antonio De MarcoCampus de São Miguel do Oeste

    Vitor Carlos D’AgostiniCampus de Videira

    Ildo FabrisCampus de Xanxerê

    Genesio Téo

    Diretora Executiva da ReitoriaCleunice Frozza

    Pró-reitora de GraduaçãoLindamir Secchi Gadler

    Pró-reitor de Pesquisa, Pós-graduação e ExtensãoFábio Lazzarotti

    Conselho Editorial

    Fabio LazzarottiTiago de Matia

    Andréa Jaqueline Prates RibeiroJovani Antônio Steffani

    Lisandra Antunes de OliveiraMarilda Pasqual Schneider

    Claudio Luiz OrçoIeda Margarete OroSilvio Santos Junior

    Carlos Luiz StrapazzonWilson Antônio Steinmetz

    Maria Rita Chaves NogueiraMarconi JanuárioMarcieli Maccari

    Daniele Cristine Beuron

    Comissão Científica

    Riva Sobrado de Freitas (Unoesc, Brasil)Guido Smorto (Palermo, Italia)Simone Pajno (Palermo, Italia)

    Miguel Ángel Aparicio Pérez (Barcelona, UAB) Rosalice Fidalgo Pinheiro (Unibrasil, Brasil)

    Daury Cezar Fabriz (FDV, Brasil)Ingo Wolfgang Sarlet (PUC-RS)

    Pedro Grandez (PUC-Lima, Peru)

    Revisão metodológica: Bianca Regina PaganiniProjeto Gráfico: Simone Dal Moro

    Capa: Daniely A. Terao Guedes

    Editora UnoescCoordenação

    Tiago de Matia

    © 2018 Editora UnoescDireitos desta edição reservados à Editora Unoesc

    É proibida a reprodução desta obra, de toda ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios, sem a permissão expressa da editora.Fone: (49) 3551-2000 - Fax: (49) 3551-2004 - www.unoesc.edu.br - [email protected]

  • SUMÁRIO

    APRESENTAÇÃO ...................................................................................... 5

    DO JUSNATURALISMO AO JUSCONSTITUCIONALISMO: REFLEXÕES SOBRE OS PERCURSOS DA MODERNIDADE JURÍDICA NA TEORIA GARANTISTA DE FERRAJOLI ...... 7Alexandre Arnalde Salim

    A CONSTITUIÇÃO E RESSIGNIFICAÇÃO DA IDENTIDADE NO MUNDO CONTEMPORÂNEO .................................................................................17Andressa de Freitas Damolin

    AS INFLUÊNCIAS HISTÓRICAS ECONÔMICAS E INTERNACIONAIS NA ADMINSTRAÇÃO TRIBUTÁRIA BRASILEIRA ......................................................31Andrey Luiz Paterno

    CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE: A NECESSIDADE DE EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL FRENTE AO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO .............................................................39Claudiomar Luiz Machado

    A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DAS TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS POR INDIGENAS NO BRASIL FRENTE À NECESSIDADE PÚBLICA DE GERAÇÃO DE ENERGIA ..............................................................................................49Edson Antônio Baptista Nunes

    AS INTERFERÊNCIAS E INFLUÊNCIAS DAS MANIPULAÇÕES GENÉTICAS NO DIREITO FUNDAMENTAL A INTIMIDADE ....................................................................69Fernanda Tofolo

    A VIGILÂNCIA NA CONTEMPORANEIDADE E SEUS REFLEXOS EM RELAÇÃO AO DIREITO À INTIMIDADE .............................................................................87Julivan Augusto Negrini

    A IGUALDADE NA PERSPECTIVA DO ESTADO SOCIAL : DA INSUFICIÊNCIA DO PRINCÍPIO FORMAL DA IGUALDADE PERANTE A LEI ..........................................97Renato de Carvalho Ayres

    LIBERDADE DE EXPRESSÃO E SEUS LIMITES: ASPECTOS DA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEA NO CASO SIEGFRIED ELLWANGER ............... 109Renata Squizato Izique

    INTERPRETAÇÃO DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE: CRÍTICA ÀS AÇÕES AFIRMATIVAS PARA ACESSO ÀS UNIVERSIDADES EXCLUSIVAMENTE POR CRITÉRIOS RACIAIS NO BRASIL ................................................................. 135Thiago Zelin

    DIREITOS INDÍGENAS E A CONCEPÇÃO MULTICULTURAL DOS DIREITOS HUMANOS ... 147Renato de Rezende Gomes

    REFLEXÕES SOBRE A CRISE FINANCEIRA DE 2008 E O ENFRAQUECIMENTO DA FIGURA DO ESTADO .............................................................................. 165Pedro José de Alcântara Mendonça

  • A LUTA DAS MULHERES PELO DIREITO À CONSTRUÇÃO DA SUA IDENTIDADE E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A FORMAÇÃO DAS NÃO TRADICIONAIS COMPOSIÇÕES FAMILIARES ........................................................................................ 177Jucélia Fátima Seidler Jeremias

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    APRESENTAÇÃO

    O Programa de Pós-Graduação strictu sensu em Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina vem publicar nesse E-book os resultados das investigações desenvolvidas no ano de 2016 pelos alunos de Mestrado, do Curso de Direito, na disciplina: Constitucionalização dos Direitos Fundamentais Civis, sob a orientação da professora Doutora Riva Sobrado de Freitas.

    Estão presentes nesse E-book, os resultados das pesquisas efetuadas pelos alunos, duran-te o segundo semestre de 2016, período em que essa disciplina foi ministrada, abordando temá-ticas distintas, sob a ótica do fenômeno da Constitucionalização dos Direitos Fundamentais Civis, refletindo sobre as transformações promovidas pela irradiação dos valores constitucionais a todo o ordenamento jurídico, procurando pontuar os impactos dessas teses, na eficácia material dos respectivos Direitos Fundamentais Civis abordados, verificando as contribuições positivas, no apri-moramento do seu conteúdo, levando em consideração as demandas sociais contemporâneas , mas também identificando algumas dificuldades a serem enfrentadas, tais como: segurança jurídica, decisões particularistas e o desafio, quase insuperável, na construção de teses de validade moral universal, numa sociedade pluralista.

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    Temas sobre a constitucionalização dos direitos fundamentais: um debate crítico

    DO JUSNATURALISMO AO JUSCONSTITUCIONALISMO: REFLEXÕES SOBRE OS PERCURSOS DA MODERNIDADE JURÍDICA NA TEORIA GARANTISTA DE

    FERRAJOLI

    Alexandre Arnalde Salim1

    O garantismo é a outra face do constitucionalismo(Luigi Ferrajoli)

    1 INTRODUÇÃO

    Muitos autores iluministas foram fortemente influenciados pelo jusnaturalismo do sécu-lo XVII, o qual propunha que a sociedade humana deveria ser constituída sobre bases naturais e racionais. Essa doutrina jusnaturalista dos direitos serviu de referencial à Revolução Francesa e permanece como fundamental à compreensão do que se entende hoje por Estado moderno. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão defende a liberdade, a igualdade e a proprieda-de como direitos para todos, afirmando, no seu preâmbulo, que “a ignorância, o esquecimento ou desprezo pelos direitos do homem são as únicas das desgraças públicas e das corrupções dos Governos”, e decretando “os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, constantemente presente a todos os membros do corpo social, lhes recorde sem cessar seus direitos e seus deveres.”

    Os “direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem”, consagrados no preâmbulo da Declaração de 1789, vêm identificados em Locke no individualismo e na propriedade privada, em Rosseau no contratualismo e nos direitos civis como extensão dos direitos naturais e em Hobbes na sociedade civil como prevenção ao extermínio de todos contra todos.

    É justamente com Hobbes2 que o modelo de estado de direito tem a sua inspiração inicial. No debate metateórico entre um filósofo e um jurista, o autor traz a frase emblemática que acaba sendo o reconhecimento inicial do garantismo jurídico: “uma lei é a ordem daqueles que têm o poder soberano.” (HOBBES, 2001, p. 36). A condição hobbesiana refere, portanto, que é a autori-dade, e não a verdade, a detentora do poder de fazer as leis (auctoritas, non veritas facit legem), apresentando-se como uma espécie de garantia legal positiva (FERRAJOLI, 2001, p. 21; FERRA-JOLI, 2008, p. 2012), em oposição à ideia de um direito anterior e independente do estado. Isso porque em Hobbes a lei civil não difere da lei natural (aquela tem por finalidade conferir eficácia a esta), restringindo-se, quando necessário, à manutenção da paz (HOBBES, 2017, p. 1839-1845; MARRAMAO; 2000, p. 12; BOBBIO, 1987).

    Essa “garantia legal positiva” pode ser considerada o nascimento do sistema garantista, a partir da compreensão da dupla função legitimadora do direito e do estado (BOBBIO, 2007, p. 20), representada pela separação entre direito e moral. Como refere Gianformaggio (2008, p. 17), um dos princípios fundamentais sustentado e tenazmente defendido pelos representantes do

    1 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Direitos Fundamentais na Universidade do Oeste de Santa Catarina; [email protected] Na sua célebre obra Leviatã, Thomas Hobbes discorre sobre a nefasta natureza humana e a necessidade de líderes e sociedades. Não obstante alguns homens sejam mais fortes e inteligentes que outros, o estado de natureza vem carac-terizado por um ambiente onde não há um governante, e sim pelo egoísmo que torna o homem lobo de outro homem (homo homini lupus), culminando com uma constante guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes). Aqui nasce a ideia de contrato social (HOBBES, 1911).

    mailto:[email protected]

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    Organizadores: Jucélia Fátima Seidler Jeremias, Renata Squizato Izique, Riva Sobrado de Freitas, Thiago Zelim

    juspositivismo analítico italiano dos anos 60 e 70 é o princípio da divisão entre ser e dever ser, considerado de relevância tanto lógica como ética e, junto a este, como uma sucessão coerente, o da separação entre direito e moral. Este é também o princípio a que Ferrajoli talvez recorra com maior frequência em toda a sua obra Direito e Razão, para conferir fundamento à sua base e às suas teses em particular, e que declara considerar um pilar fundamental de seu trabalho.

    Em Ferrajoli (2008, p. 478), o positivismo jurídico funda-se na separação entre direito e moral e entre direito e natureza. Segundo o autor, o direito positivo “descrito” em suas teorias unicamente como direito existente não deriva da moral e nem pode ser encontrado na natureza, mas, ao contrário, é “posto” por uma autoridade e, portanto, está caracterizado por sua índole artificial e convencional. Dizer que o direito moderno é “positivo” significa não somente que é “feito” ou “posto” pelos homens, mas também que é como os homens o querem e, antes, o pen-sam; e que, assim, o objeto da sua teoria – diversamente do objeto de outras teses empíricas – não é natural, mas artificial, produzido, por sua vez, por (outras) teorias.

    Mas é o constitucionalismo que traz a fundamental mudança de paradigma da democra-cia, introduzindo uma dimensão substancial com limites e vínculos de conteúdo impostos aos po-deres políticos pelos princípios e direitos constitucionalmente estabelecidos.

    2 DO JUSNATURALISMO AO JUSPOSITIVISMO: PRIMEIRO MODELO JURÍDICO DO PARADIGMA GARANTISTA

    Hans Kelsen, filósofo do direito e reconhecidamente um dos maiores representantes do positivismo jurídico, situa Hobbes na condição de partidário do jusnaturalismo (KELSEN, 2001, p. 137-175), posição doutrinária considerada antagônica à sua. No entanto, ao tratar do Estado, Kelsen vale-se de vários argumentos expostos no Leviatã,3 o que leva à indagação: seria Hobbes realmente um jusnaturalista?

    A inclusão de Hobbes entre os jusnaturalistas ou entre os juspositivistas é algo recente na filosofia do direito. Para Murphy (1995, p. 849), “a posição de Hobbes está muito mais alinhada com uma compreensão jusnaturalista de lei civil do que com uma concepção do positivismo jurídi-co.” Bobbio (1991, p. 4), na introdução ao seu livro Thomas Hobbes, refere:

    entre jusnaturalismo e positivismo jurídico, meu Hobbes situa-se mais do lado do segundo do que do primeiro [...] A multiplicidade das interpretações – nas quais decerto não pretendemos desconhecer a contribuição dada a um melhor conhe-cimento do pensamento hobbesiano – terminou frequentemente por obscurecer o núcleo forte desse pensamento, fazendo esquecer que, se há um autor que perse-guiu por toda a vida uma ideia, esse autor foi Hobbes, e que, se há uma obra na qual o tema dominante é exposto com insistência, quase obstinação, essa é a obra política do autor do Leviatã, livro que conclui a trilogia dos escritos políticos. Essa ideia é a seguinte: o único caminho que tem o homem para sair da anarquia na-tural, que depende de sua natureza, e para estabelecer a paz, prescrita pela pri-meira lei natural, é a instituição artificial de um poder comum, ou seja, do Estado.

    3 “Se o Estado é uma comunidade, é uma comunidade jurídica. Na condição de comunidade, ele é a ordem jurídica da qual dizemos, de maneira não perfeitamente correta, que constitui a comunidade. Quem poderia negar que o Estado é uma ordem social? E, se essa afirmação for aceita, que outra ordem, além da ordem jurídica, poderia ser o Estado se – expresso na linguagem usual – é essencial ao Estado ter, estabelecer ou aplicar uma ordem jurídica?” (KELSEN, 2001, p. 290).

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    Temas sobre a constitucionalização dos direitos fundamentais: um debate crítico

    A celeuma entre as duas correntes – direito natural e direito positivo – não se limita a Hobbes, sendo também frequente no campo da filosofia política quanto à origem e ao fundamento das leis e do Estado. Enquanto o jusnaturalismo considera a natureza como a fonte transcendente de um Estado ideal ou, mais especificamente, de um direito ideal e necessariamente justo,4 o juspositivismo considera que os homens, independentemente da sua natureza, criam as normas para reger uma determinada sociedade, numa determinada época, sempre visando a um também determinado objetivo; assim, uma situação desejada apenas seria alcançada a posteriori e, jus-tamente, com a criação dessas regras. O jusnaturalismo era a teoria do direito pré-moderno; o juspositivismo, por sua vez, fez nascer o estado legislativo de direito.

    No direito pré-moderno, de formação jurisprudencial e doutrinária, e não legislativa, não havia uma sistema unitário e formalizado de fontes positivas, mas uma pluralidade de fontes e orde-namentos vinculados a instituições diversas e concorrentes – como o Império, a Igreja, os principados e as corporações –, nenhuma delas possuindo o monopólio da produção jurídica (FERRAJOLI, 2007, p. 30). O direito, na verdade, vinha fundamentado em um conjunto de leis universais e necessárias deduzidas diretamente de uma entidade divina ou da razão natural humana.5 Por sua vez, o estado de direito moderno nasce na forma do estado legislativo de direito, com a afirmação do princípio da legalidade como critério exclusivo de identificação do direito válido e, antes ainda, do direito existente, independentemente da sua valoração como justo. Graças a este princípio e às codifica-ções que o concretizaram, uma norma jurídica é válida não porque considerada justa, mas somente porque “posta” por uma autoridade dotada de competência normativa (FERRAJOLI, 2007, p. 30).

    Como típica expressão da modernidade, o juspositivismo vem compreendido, em Bobbio (1999, p. 131-134), nas seguintes dimensões complementares: como um certo modo de aborda-gem do direito; como uma certa teoria do direito; e como uma certa ideologia do direito. Para a primeira hipótese (modo de abordagem do direito), o direito é fato e não valor (teoria formalista da validade do direito), ou seja, o jurista deve estudar o direito do mesmo modo que o cientista estuda a realidade natural, abstendo-se de juízos axiológicos. A segunda abordagem (positivismo jurídico enquanto teoria) dá ensejo a seis concepções fundamentais: teoria coativa do direito (a norma vale por meio da força); teoria legislativa do direito (a lei figura como fonte primacial do direito); teoria imperativa do direito (a norma é considerada um comando); teoria da coerência do ordenamento jurídico (impossibilidade de coexistência simultânea de duas normas antinômicas); teoria da completude do ordenamento jurídico (o juiz pode sempre extrair das normas explícitas ou implícitas uma regra para resolver qualquer caso concreto, excluindo a existência de lacunas no direito); e teoria da interpretação mecanicista do direito (a atividade do jurista faz prevalecer o elemento declarativo sobre o produtivo ou criativo do direito). Na terceira dimensão, o positi-

    4 “A lei apareceu, primeiro, aos olhos da espécie humana recém-abertos para o problema, como um ditame divino, uma decisão dos deuses, e, como vontade divina, foi crida e obedecida, sem maiores indagações [...] Foi bem mais tarde que essa maneira de ver adquiriu foros de doutrina, desenvolvendo-se no sentido de ser a razão ou a vontade de Deus a fonte originária do Direito, entendida como direito natural, ao qual devem se conformar os preceitos da lei positiva.” (REALE, 2005, p. 371-372).5 Segundo Miguel Reale, a concepção sobre o Direito Natural “ora se mantém na sua feição originária – ligada à filosofia aristotélica e estóica, aos jurisconsultos romanos e aos mestres da Igreja, desde Santo Agostinho a Santo Tomás –, ora se converte em Direito Racional, expressão imediata da razão humana, ora se apresenta, como em tempos mais recentes, sob um enfoque crítico transcendental.” (REALE, 2005, p. 373).

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    Organizadores: Jucélia Fátima Seidler Jeremias, Renata Squizato Izique, Riva Sobrado de Freitas, Thiago Zelim

    vismo apresenta-se como uma ideologia do direito que impõe a obediência à lei, nos moldes de um positivismo ético.

    Com a passagem do estado pré-moderno para o estado legislativo de direito, o sistema jurídico passou a ser compreendido como fechado, axiomatizado e hierarquizado de normas, que exigia unidade, completude e coerência do direito e negava a existência de lacunas e antinomias jurídicas.

    Essa passagem, que com o princípio da legalidade consolida o paradigma protogarantista, manifesta-se em quatro mudanças, todas conexas à fundação puramente juspositivista do direito: na natureza e na estrutura do direito; na natureza e no papel da jurisdição; na natureza e no esta-tuto epistemológico da ciência jurídica; e na natureza e no papel da filosofia política (FERRAJOLI, 2007, p. 30-32). A primeira diz respeito às condições de existência e validade das normas jurídicas e vem caracterizada pelo princípio convencionalista do positivismo jurídico expresso por Hobbes: auctoritas, non veritas facit legem (HOBBES, 2017, p. 448) (é direito não aquilo que é justo ou razoável, segundo a velha concepção jusnaturalista, mas o que vem estabelecido como tal por lei). A segunda mudança refere-se à jurisdição, que deixa de ser mera produção jurisprudencial do direito, ficando sujeita à lei e ao princípio da legalidade como únicas fontes de legitimação (o vo-luntarismo legislativo vem substituído pelo cognitivismo jurisdicional representado pelo brocardo veritas, non auctoritas facit iudicium) (FERRAJOLI, 2007, p. 9-149). A terceira mudança vincula-se à ciência jurídica, que deixa de ser uma ciência imediatamente normativa, para tornar-se uma dis-ciplina tendencialmente cognitiva, explicativa de um objeto – o direito positivo –, dela autônomo e separado.6 A quarta mudança vem caracterizada pela separação entre ciência jurídica e filosofia política, colocando fim a qualquer reflexão filosófica sobre fundamentos axiológicos e racionais do direito e promovendo, em nome da autonomia e da cientificidade das disciplinas jurídicas, o seu isolamento e a sua autorreferencialidade epistemológica (FERRAJOLI, 2007, p. 32).

    O duplo critério de fundamentação do direito, tanto de validade interna quanto de justiça externa, destacado sob o plano lógico, mas vinculado sob o plano histórico, significa reconhecer o avanço da tradição do positivismo jurídico (BOBBIO, 1995, p. 38 e ss.), que emerge em decorrência de lutas políticas que culminaram em um lento processo de secularização pelo qual passaram as instituições de poder desde o século XVII até a metade do século XVIII (FERRAJOLI, 2007, p. 199).

    A separação entre direito e moral assume, de um lado, uma justificação interna, dando ensejo à concepção juspositivista do direito e estabelecendo a tese garantista teórica de que os juízos jurídicos possuem plena autonomia em relação a qualquer outro critério que não aquele estabelecido exclusivamente pela lei; de outro, a dicotomia entre validade e justiça assume uma fundamentação externa, colocando em evidência a reivindicação política do princípio da legalida-de e estabelecendo a tese garantista axiológica voltada à igualdade e à liberdade dos cidadãos, na qual tanto o direito quanto o estado têm finalidades e limites determinados. Isso significa que a legitimação interna e a justificação externa refletiram o processo de laicização do direito e da cultura jurídica, criando os requisitos teórico e axiológico do modelo garantista de legalidade e

    6 Para Ferraz Júnior, “a Ciência do Direito, nos quadros do jusnaturalismo, se de um lado quebra o elo entre jurispru-dência e procedimento dogmático fundado na autoridade dos textos romanos, não rompe, de outro, com o caráter dog-mático, que tentou aperfeiçoar, ao dar-lhe a qualidade de sistema, que se constrói a partir de premissas cuja validade repousa na sua generalidade racional.” (FERRAZ JÚNIOR, 1980, p. 26).

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    Temas sobre a constitucionalização dos direitos fundamentais: um debate crítico

    afastando tanto a possibilidade futura de uma autolegitimação ético-política quanto um retorno a uma heterolegitimação jurídica do direito (FERRAJOLI, 2007, p. 204-210).

    Esta primeira ruptura vem identificada como paradigma “protogarantista”, ou seja, a passagem do estado pré-moderno (direito pré-moderno) ao estado legislativo de direito (princípio da legalidade), embora determinante do primeiro modelo garantista de direito, representa um “garantismo ainda fraco”. Não há dúvida de que o positivismo jurídico denota enorme avanço: com base nele o princípio da legalidade é apresentado como direito humano fundamental, seja em sentido amplo (norma dirigida aos juízes, aos quais prescreve a aplicação da lei tal qual for-mulada), seja em sentido estrito (norma dirigida ao legislador, a quem prescreve a taxatividade e a precisão empírica das formulações legais). Mas é igualmente verdade que o estado legislativo de direito, por outro lado, permite a introdução de modelos penais absolutistas, em que o sobe-rano, baseado nesse mesmo preceito, legisla com total ausência de limites ao poder normativo, despreocupando-se com toda e qualquer garantia penal e processual.

    É exatamente por isso que o “paradigma garantista forte” complementará o primeiro mo-delo e virá representado pela segunda grande passagem: do estado legislativo de direito ao estado constitucional de direito.

    3 JUSCONSTITUCIONALISMO: SEGUNDO MODELO JURÍDICO DO PARADIGMA GARANTISTA

    O descrédito das teorias do contrato social e da própria doutrina do direito natural come-çou a ocorrer com a Revolução Francesa, atingindo o seu ápice com a introdução do positivismo jurídico. Até então, o pensamento jusnaturalista, embasado especialmente em dois pilares fun-damentais – Deus e natureza7 –, reinava quase absoluto. O argumento divino, dominante durante toda a Idade Média, em especial em Santo Tomás de Aquino,8 começou a perder força com as doutrinas iluministas: os que sustentavam que “fora da Igreja não havia salvação” deveriam, para Rousseau (2008, p. 19), “ser expelidos do Estado”. Aqui surge a primeira grande garantia, já que o Estado laico se apresenta como uma inegável conquista histórica. Argumentos no sentido de que “a lei fundamental da natureza é a preservação dos homens, não havendo lei humana em contrário que seja válida ou aceitável” (LOCKE, 2006, p. 100), ou seja, de que as pessoas, em padrões de normalidade, buscam a autoconservação, ou de que “a sociedade, instituída por meio da primeira apropriação do solo, foi a semente da discórdia entre os homens” (ROUSSEAU, 2017), vêm recha-çados em pensadores contemporâneos como Freud9 e Sartre.10

    7 Kelsen afirma que “A vontade de Deus é – na doutrina do Direito natural – idêntica à natureza, na medida em que a natureza é concebida como tendo sido criada por Deus. Consequentemente, as leis que regulam a natureza têm, de acordo com essa doutrina, o mesmo caráter das regras jurídicas emitidas por um legislador: elas são comandos dirigidos à natureza; e a natureza obedece a esses comandos assim como o homem obedece às leis emitidas por um legislador.” (KELSEN, 1998, p. 13).8 “Que o direito divino se chama deste modo porque é promulgado pela divindade. E, efetivamente, este, em parte, é das coisas que são naturalmente justas, mas, no entanto, sua justiça não é manifesta aos homens; e, em parte, é das coisas que se fazem justas por intuição divina. De onde se deduz que também o direito divino pode dividir-se em dois, do mesmo modo que o direito humano; pois, na lei divina, existem algumas coisas mandadas por serem boas e outras proibidas por serem más; ao contrário, existem certas coisas boas por serem mandadas e outras más por serem proibi-das.” (AQUINO, 1995, p. 472).9 Para Freud (1978, p. 168), “a agressividade não foi criada pela propriedade.”10 Sartre afirma que “não há natureza humana, visto que não há Deus para concebê-la; [...] o homem não é mais que o que ele faz; [...] a existência precede a essência.” (SARTRE, 1978, p. 5-6).

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    Organizadores: Jucélia Fátima Seidler Jeremias, Renata Squizato Izique, Riva Sobrado de Freitas, Thiago Zelim

    A passagem da Idade Moderna para a Idade Contemporânea veio marcada, como referido acima, pelo processo geral de codificação. O direito, com o juspositivismo, ganhou a sua plena autonomia: era o homem, e não mais as doutrinas morais e teológicas, que fazia as suas próprias leis. Ocorre que a lei passou a ser considerada o direito em si, em total desatenção ao seu funda-mento, deixando de ser questionada para ser apenas aplicada. Grau refere que “o positivismo não tem como tratar da questão da legitimidade do direito. Por isso que, no seu quadro, a legalidade ocupa o lugar da legitimidade.” (GRAU, 2008, p. 31). Como se vê é o legislador – e não mais Deus, ou a natureza, ou a justiça, ou a razão – o ser onipotente do qual emanam todas as leis. É válida a crítica proposta por Lyra Filho (2006, p. 30):

    Quando o positivista fala em Direito, refere-se a este último – e único – sistema de normas, para ele, válidas, como se ao pensamento e prática jurídicos interessasse apenas o que certos órgãos do poder social (a classe de grupos dominantes ou, por elas, o Estado) impõem e rotulam como Direito. É claro que vai nisto uma confu-são, pois tal posicionamento equivale a deduzir todo o Direito de certas normas, que supostamente o exprimem, como quem dissesse que açúcar “é” aquilo que achamos numa lata com a etiqueta açúcar, ainda que um gaiato lá tenha colocado pó-de-arroz ou um perverso tenha enchido o recipiente com arsênico.

    Mais: “Quais personagens históricos podem ser considerados legisladores? Como devemos agir para descobrir suas intenções? Quando essas intenções de algum modo diferem umas das ou-tras, como devem ser combinadas na intenção institucional compósita?”11

    Não há dúvida de que o princípio da onipotência do legislador tem uma vertente liberal, já que garante o cidadão contra as arbitrariedades do Estado. No entanto, por outro lado, “eli-minando os poderes intermediários” (BOBBIO, 1995, p. 38), o positivismo jurídico assume a sua vertente absolutista, atribuindo um poder pleno, exclusivo e ilimitado ao legislador. Aqui surge a segunda grande garantia, pois é justamente com a introdução das constituições rígidas na segunda metade do século passado que o paradigma do direito muda novamente, ocasião em que o juspo-sitivismo dá lugar ao jusconstitucionalismo.

    Nesta segunda mudança, o estado legislativo de direito, que era caracterizado pelo prin-cípio da legalidade, vem substituído pelo estado constitucional de direito, caracterizado pela rígida subordinação da própria lei a uma lei superior: a constituição, hierarquicamente supraorde-nada à legislação ordinária. O jusconstitucionalismo traz, conforme a doutrina de Ferrajoli, quatro novas alterações do modelo anterior (direito positivo), sob os mesmos planos vistos quando da primeira passagem (alteração do direito jurisprudencial pré-moderno) (FERRAJOLI, 2007, p. 33).

    A primeira mudança diz respeito à teoria da validade. No estado constitucional de direito, dotado de uma constituição rígida, as leis são submetidas não apenas a normas formais sobre a sua produção, mas também a normas substanciais sobre o seu significado. Assim, para Ferrajoli, são inválidas as leis cujos significados estejam em contraste com as normas constitucionais (FERRAJO-LI, 2007, p. 33-34). Em segundo lugar, muda a própria forma de exercício da jurisdição, não mais uma sujeição acrítica e incondicionada à lei, qualquer que fosse o seu conteúdo, mas uma sujeição à própria constituição e, portanto, à lei somente se válida constitucionalmente. O rompimento com o antigo paradigma determina, ademais, a própria expansão da jurisdição constitucional, com a criação de tribunais constitucionais. Altera-se, em terceiro lugar, o paradigma epistemológico

    11 Dworking (1999, p. 380) tenta buscar a exata intenção do legislador, concluindo pela sua total impossibilidade.

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    da ciência jurídica, que deixa de ser meramente explicativa e avalorativa, passando a ser crítica e projetual. A lei e o “princípio de legalidade” deslocam-se para a periferia do sistema jurídico, enquanto que o “princípio de constitucionalidade” vem para o centro desse sistema. Pela quarta alteração, o constitucionalismo rígido, positivando o dever ser do direito em normas constitucio-nais substanciais, muda o estatuto da doutrina dos limites aos poderes do Estado, formulando-a não mais como filosofia política, mas sim como teoria jurídica do estado de direito da democracia (FERRAJOLI, 2007, p. 35). As novas constituições, como se vê, passam a ser consideradas verdadei-ras normas jurídicas, dotadas de supremacia, com força vinculante e de observação obrigatória.

    No momento em que princípios de indubitável carga axiológica – como dignidade da pes-soa humana, igualdade, solidariedade social, estado democrático de direito e humanidade – têm reconhecida a sua força normativa, o jusconstitucionalismo12 retoma o debate moral. Autores não positivistas, como Alexy (1993), Dworkin (2006) e Atienza (2008, p. 144-164), sustentam a reapro-ximação entre direito e moral, aderindo à tese de Radbruch (1979, p. 414-418) de que normas terrivelmente injustas não têm validade jurídica, independentemente do que digam as fontes autorizadas do ordenamento. Por outro lado, doutrinadores positivistas, como Ferrajoli (2000), Guastini (2003) e Sanchís (2003), reafirmam, mesmo em face do jusconstitucionalismo, a separa-ção entre direito e moral, embora reconheçam que haverá inegável aproximação sempre que o poder constituinte positivar valores morais, conferindo-lhes força normativa.

    Sobre a celeuma, Ferrajoli (2017a) defende a divisão do constitucionalismo jurídico em constitucionalismo jusnaturalista e constitucionalismo juspositivista.

    Do primeiro surge um constitucionalismo argumentativo ou principialista (SANCHÍS, 1997), identificado pela configuração dos direitos fundamentais como valores ou princípios morais estruturalmente diversos das regras, porque dotados de uma normatividade mais fraca, confiada não mais à subsunção, mas à ponderação legislativa e judicial. São características do constitucio-nalismo argumentativo ou principialista: o ataque ao positivismo jurídico e à tese da separação entre direito e moral; o papel central associado à argumentação a partir da tese de que os direitos constitucionalmente estabelecidos não são regras, mas princípios, entre eles em virtual conflito, que são objeto de ponderação, e não de subsunção; e a consequente concepção do direito como uma prática jurídica, confiada, sobretudo, à atividade dos juízes.

    Do constitucionalismo juspositivista, ao contrário, surge um constitucionalismo normativo ou garantista, caracterizado por uma normatividade forte, de tipo regulativo, isto é, pela tese de que a maior parte (ainda que não de todos) dos princípios constitucionais, em especial os direitos fundamentais, comporta-se como regras, uma vez que implica a existência ou impõe a introdução de regras consistentes em proibições de lesão ou obrigações de prestação que são as suas respec-tivas garantias. Pode-se distinguir o constitucionalismo normativo ou garantista em três significa-dos: como modelo ou tipo de sistema jurídico, como teoria do direito e como filosofia política.13 Como modelo de direito, o constitucionalismo garantista se caracteriza, em relação ao modelo paleo-juspositivista, pela positivação também dos princípios que devem subjazer toda a produção

    12 Fala-se atualmente em um “neoconstitucionalismo”, termo cunhado, entre outros, por: POZZOLO, Suzana. Neocons-titucionalismo y especificidad de la interpretación constitucional. (DOXA, 1998, p. 355-370; COMANDUCCI, 1999, p. 123-124; CARBONELL, 2007).13 Os três significados de “constitucionalismo” correspondem aos três significados de “garantismo” apresentados por Ferrajoli (2008, p. 891).

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    normativa. Como teoria do direito, apresenta-se como uma teoria que tematiza a divergência entre o dever ser (constitucional) e o ser (legislativo) do direito, caracterizando-se pela distinção e virtual divergência entre validade e vigência, uma vez que admite a existência de normas vigen-tes porque em conformidade com as normas procedimentais sobre a sua formação, mas, todavia, inválidas, porque incompatíveis com as normas substanciais sobre a sua produção. Por fim, como filosofia e como teoria política, o constitucionalismo positivista ou garantista consiste em uma teoria da democracia, elaborada não apenas como uma genérica e abstrata teoria do bom gover-no democrático, mas sim como uma teoria da democracia substancial, além de formal, ancorada empiricamente no paradigma de direito ora referido (FERRAJOLI, 2017a).

    Em nenhum desses três significados Ferrajoli admite a conexão entre direito e moral, já que a sua separação – em sentido assertivo ou teórico – é consequência do princípio da legalidade, que exclui, para a garantia da submissão dos juízes somente à lei, a derivação do direito válido do direito justo e, também, para a garantia da autonomia crítica do ponto de vista moral externo ao direito, a derivação do direito justo do direito válido, mesmo se conforme a constituição. O seu modelo de constitucionalismo, na verdade, equivale a um projeto normativo que exige ser realiza-do através da construção, mediante políticas e leis de atuação, de idôneas garantias e instituições de garantia.

    4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Se a ruptura produzida pelo juspositivismo consistiu na dissociação entre justiça e vali-dade, a instituição do jusconstitucionalismo consistiu na dissociação entre validade e vigência, ou seja, entre o “dever ser constitucional” e o “ser legislativo” do direito. Isso significa que, para o constitucionalismo positivista, uma lei é válida não simplesmente porque vigente, ou seja, ema-nada nas formas que permitem reconhecer que pertence a determinado ordenamento, mas apenas se, além disso, for coerente, quanto aos seus conteúdos, com as normas constitucionais que lhes são superiores.

    É justamente nessa diferenciação interna ao direito entre níveis normativos que reside o traço distintivo do paradigma constitucional, caracterizado pela sujeição da lei à própria lei, não apenas quanto às formas dos atos que a produzem, mas também em relação aos conteúdos normativos por eles produzidos (FERRAJOLI, 2010, p. 182 e ss.). Isso se deu com a incorporação, nas constituições rígidas, de princípios ético-políticos – como a igualdade, por exemplo –, trans-formados de fonte de legitimação política ou externa em fonte de legitimação jurídica ou interna.

    A natureza rígida das constituições contemporâneas, fundadas na igual titularidade de todos em relação aos direitos fundamentais, estabelece a fonte de legitimação substancial da de-mocracia constitucional, determinando “o que não pode” (limites em função da sua legitimação substancial negativa) e “o que não pode não” (vínculos em função da sua legitimação substancial positiva) de toda a produção jurídica (FERRAJOLI, 2010, p. 25).

    O certo é que a constitucionalização dos direitos fundamentais consistiu na ampliação da-quela que Ferrajoli chama de “esfera do indecidível”, a qual, no velho estado liberal, era traçada essencialmente por direitos de liberdade e, consequentemente, por limites e proibições impostos aos poderes públicos, no sentido de que nenhuma maioria poderia validamente decidir. Com a constitucionalização dos direitos sociais, formou-se a “esfera do indecidível que” e a “esfera do

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    indecidível que não”, assentando limites e vínculos de conteúdo impostos por direitos de liberdade e por direitos sociais.

    O desafio que hoje se apresenta está relacionado a um terceiro modelo jurídico do para-digma garantista, representado pela passagem do estado constitucional de direito para o estado internacional de direito, já que a implantação de um constitucionalismo mundial, muito mais do que a necessária digressão teórica, esbarra em dificuldades de caráter político, onde a principal preocupação dos Estados tem sido a proteção dos próprios interesses, ao invés de uma verdadeira tutela global dos direitos fundamentais.

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    A CONSTITUIÇÃO E RESSIGNIFICAÇÃO DA IDENTIDADE NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

    Andressa de Freitas Damolin

    1 INTRODUÇÃO

    A questão da identidade está sendo extensamente discutida na teoria social. Em essência, o argumento é o seguinte: as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assim chamada “crise de identidade” é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das so-ciedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social. (HALL, 2006, p. 5).

    Assim como Hall e Bauman (2005) também afirma que pensar identidade pressupõe sua crise. Dentro das ciências humanas não existia até finais do século XX pensadores que destinavam seu tempo para esse tema. Porque? Simplesmente porque as organizações sociais se davam no âmbito da comunidade. Comunidade, para Tönnies (1946) é toda organização social que parte da ideia do “todo” sobre as “partes”, essa mesma ideia se enquadra dentro do pensamento durkhei-miano de solidariedade mecânica. Durkheim classifica em dois os tipos de organizações humanas: As que se enquadram dentro da ideia de Solidariedade Orgânica, onde o todo é maior que as par-tes, típica dos modelos de vida comunitários, onde não há crise de identidade, e as de Solidarie-dade Mecânica, onde as partes dissociam-se de um todo, típico modelo social onde as liberdades individuais são incentivadas comparando-se aos modelos liberais capitalistas, onde a chamada crise de identidade nasce e se desenvolve.

    Nesse sentido, tanto para Durkheim (2002), Tönnies (1946) e Bauman (2005), a compo-sição social holística (comunitária) se dava de modo a abranger toda a composição social.

    O ponto de ancoragem dessa composição social “holística” se dava por meio de meta-narrativas. Metanarrativas são, segundo Lyotard (2011), histórias generalizantes, grandes relatos, que serviam ou servem de amparo existencial, de modelo de vida a ser seguido pelas gerações mais novas. Algumas metanarrativas exemplificadas por Lyotard são: Religião (monoteísta), família (tradicional), grandes relatos (comunismo, socialismo, fascismo), para citar alguns e importantes exemplos.

    Ao longo dos séculos XIX, XX e início do século XXI, essas metanarrativas foram postas uma a uma em xeque. O grande exemplo é “a morte de Deus” decretada por Nietzsche em fins do século XVIII, ou seja, o desenvolvimento científico, tecnológico e econômico em diálogo com as mudanças sociais deles provenientes ao longo dos séculos, descontroem ou questionam paulatina-mente as chamadas metanarrativas e as composições comunitárias por elas alicerçada.

    Nesse sentido, as comunidades de modo geral em todo ocidente, seja colonizador ou colo-nizado passa por um processo profundo de ressignificação dos valores tidos “sólidos” pela história e pelo tempo. Seja branca, indígena ou negra, as reconfigurações identitárias dançam a dança da chamada globalização. É evidente que o oriente se enquadra dentro da lógica globalizante, entretanto, é observável a grande presença das tradições seculares presente nos modos de vida do oriente.

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    Entretanto, longe de querer mensurar quantativamente quanto as identidades se ressigni-ficam no mundo contemporâneo, é importante destacar que as identidades são significativamente atingidas (para o bem ou para o mal) pelas novas configurações sociais oriundas da nova ordem econômica global, ou mais comumente chamada globalização.

    A “globalização está na ordem do dia; uma palavra da moda que se transforma rapidamente em um lema, uma encantação mágica, uma senha capaz de abrir as portas de todos os mistérios presentes e futuros. Para alguns, “globalização” é o que devemos fazer se quisermos ser felizes; para outros, é causa da nossa infeli-cidade. Para todos, porém, “globalização” é também um processo que nos afeta a todos na mesma medida e da mesma maneira. Estamos todos sendo globalizados – e isso significa basicamente o mesmo para todos. (BAUMAN, 2005, p. 76).

    A globalização aqui é entendida em seu sentido amplo: seja ela econômica, midiática, cultural ou de consumo de massa. Entendemos que a globalização e a ruptura metafísica é o grande (re)organizador das identidades contemporâneas. “O que, então, está tão poderosamente deslocando as identidades, agora? A resposta é: um complexo de processos e forças de mudança, que por conveniências, pode ser sintetizado sob o termo “globalização.” (HALL, 2003, p. 45).

    Para Schumpeter (1991, p. 122): “O processo de globalização capitalista racionaliza o comportamento e as ideias e, ao fazê-lo, expulsa de nossas mentes, juntamente com a crença metafisica, as ideias mística e romântica de todos os tipos. E assim reformula não só os métodos de atingir nossos fins como também os próprios fins.”

    Nesse sentido, com as reconfigurações comunitárias abre-se à possibilidade de um novo tipo de relacionamento inter-humano. A globalização possibilita aquilo que Touraine chama de diálogo intercultural:

    Não se trata, com efeito, de precisar simplesmente o que permite que duas cultu-ras comuniquem. Trata-se de descobrir se a consciência das diferenças entre cul-turas se pode transformar numa avaliação, pelo ator, das suas próprias condutas. Mudança radical de ponto de vista; já não se trata de saber se duas ou várias cultu-ras são compatíveis, mas de observar como os atores se formam ou se decompõem durante a passagem de uma cultura e de uma sociedade à outra, e sobretudo o papel que desempenham, neste caso, as crenças, as atitudes e os interditos. Será que eles facilitam, ou pelo contrário, tornam mais difícil a passagem de uma cul-tura a outra, evitando definir as culturas como fortalezas que dificultam a entrada todos os estrangeiros? (TOURAINE, 2005, p. 110).

    Tradicionalmente, a história do ocidente foi descrita e escrita sob o prisma europeu. O eurocentrismo ao longo de toda história ocidental, principalmente a partir do contato dos euro-peus com povos de outros continentes, escreveu sua história e a dos outros povos a partir e sob a tutela da presumida superioridade europeia sobre as demais. Indígenas, negros, asiáticos foram inferiorizados e inclusive escravizados por uma cultura que punha a razão, principalmente a razão científica como princípio moral e valorativo em relação às demais.

    Evidente está que um diálogo inter e multicultural era e continua sendo grandemente comprometido quando a igualdade e o respeito à diferença são negados e postos como algo a ser comparado e classificado.

    Nesse sentido, a identidade torna-se um conceito implícito dentro dos debates em torno da questão inter, pluri ou multicultural. Identidade é aspecto fundamental na constituição do ser humano, seja ele no aspecto social, cultural ou individual. Dentro do aspecto social, para o

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    indivíduo ser aceito dentro de determinado grupo deve assimilar e reproduzir padrões de com-portamento para ser recebido, compreendido e assimilado dentro de uma lógica estabelecida. É nesse sentido que Bauman, destaca a ideia de “Outro”, do “diferente” e do “estranho”. O outro, o diferente e ou o estranho, é tido como aquele ou aquela que não obedecendo ou não reconhe-cendo determinados padrões de comportamento, não faz parte do “nós”. Esse por sua vez ao não se “identificar” com o contexto social estabelecido, é um pária, excluído, deve ser evitado para evitar a contaminação do todo orgânico comunitário.

    Como em todas as “comunidades cercadas”, a probabilidade de encontrar um es-trangeiro genuíno e de enfrentar um genuíno desafio cultural é reduzida ao mínimo inevitável; os estranhos que não podem ser fisicamente removidos por causa do teor indispensável dos serviços que prestam ao isolamento e autocontenção ilusó-ria das ilhas cosmopolitas são culturalmente eliminados — jogados para o fundo do “invisível” e “tido como certo”. (BAUMAN, 2003, p. 54).

    Entretanto, para que esse “outro” possa se tornar “nós” é preciso um processo de ressig-nificação e aculturamento e assimilação dos princípios estabelecidos pela maioria, logo o processo de assimilação identitária é um processo da maioria, ou seja, homogeneizante.

    Isso é o que se observa em grande medida, quando indígenas, quilombolas ou imigrantes por exemplo, adentram individual ou em menor número, dentro do todo “nós” estabelecido.

    A identidade cultural, pressupondo de modo tipo ideal, uma comunidade tradicional, é vinculada a princípios e modelos historicamente dado. O nós aqui é muito mais ontológico, mais enraizado e baseado em costumes e numa moral, muitas vezes alicerçada em valores tradicionais de família e religião.

    Por mais que os aspectos sociais sejam homogeneizantes dentro de modelos culturais de formação identitária moralizantes, cria-se uma lógica verticalmente estabelecida historicamen-te. O outro, o diferente, o estranho, só não é a aceito, como excluído. A identidade fortemente constituída dentro desses valores morais culturais, busca preservar um sonho de pureza. O outro é negado justamente por ameaçar essa pureza.

    Em sentido “tipo ideal” tanto, a identidade estabelecida na sociedade seja a durkhie-miana, ou tonnisiana, estabelece-se a aceitação via assimilação e homogeneização dos de fora, dos que vieram depois. Logo, sob esse aspecto, o diálogo seja multicultural, seja intercultural é negado pela força da maioria.

    Num segundo aspecto, dentro de um princípio de identidade cultural propriamente dita, a preservação da identidade cultural se torna comunal e o outro, é negado em prol da continuidade “pura” da identidade.

    Outro aspecto da identidade, a individual, está no meio dessas duas, em diálogo constan-te, seja com a identidade social constituída na vida em sociedade estabelecida grandemente pelos modelos econômicos e de consumo da sociedade capitalista, e a outra, instituída por modelos e padrões culturalmente e historicamente dado pela família, pela educação, pelas tradições de todo tipo.

    Nesse sentido podemos esquematizar a identidade individual como sendo uma identidade dialógica entre os dois universos; o da cultura e o da sociedade.

    A identidade se constitui num processo relacional do indivíduo consigo mesmo e com o meio que o cerca:

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    O indivíduo integrado na comunidade tradicional, experimentando-se concreta-mente como indivíduo particular, não se colocava problemas identitários tal como entendemos hoje. A ascensão das identidades provém justamente da desestrutu-ração das comunidades, provocadas pela individualização da sociedade. (KAUF-MANN, 2004, p. 17).

    Quanto maior é o meio que cerca o indivíduo maior é o stock de possibilidades identitá-rias. Logo, quanto mais aberta é uma sociedade maior serão as chances de insumos cognitivos para a formação da identidade de um indivíduo.

    Quanto maior as experiências de um indivíduo com o mundo que o cerca maior serão con-sequentemente as possibilidades desse indivíduo se constituir como ser intercultural.

    Nesse sentido:

    Enquanto na sociedade holista, os indivíduos eram produzidos e reproduzidos pela “fórmula geradora” do sistema de habitus, eles são, na modernidade, quotidiana-mente construídos pela sua própria história, tendo especificamente interiorizado o social, num diálogo contínuo entre presente e passado secretamente memorizado. (KAUFMANN, 2004, p. 71).

    A identidade passa primeiro pelo aspecto familiar, o indivíduo em seus primeiros anos identificar-se-á com aquilo que lhe está mais próximo, com seus familiares e/ou com seus tutores. É nessa relação inicial que a criança começará a compreender e abstrair o mundo que o cerca. Aqui as pesquisas e teorias pedagógicas como a de Piaget e Vigostski, por exemplo, mesmo com suas semelhanças e similitudes preocuparam-se em explicar como se dá esse processo inicial de formação identitária do indivíduo.

    Mas distanciando um pouco das teorias pedagógicas e nos avizinhando do pensamento sociológico, compreendemos com Giddens que são nos primeiros anos que, em proximidade com os seus, as crianças desenvolvem com variados graus, de acordo com o tipo de convivência, a se-gurança ontológica:

    Há certos aspectos da confiança e processos de desenvolvimento da personalidade que parecem se aplicar a todas as culturas, pré-modernas e modernas. Não vou tentar cobri-los exaustivamente, mas me concentrarei sobre as conexões entre confiança e segurança ontológica. A segurança ontológica é uma forma, mas uma forma muito importante, de sentimentos de segurança. A expressão refere-se à crença que a maioria dos seres humanos têm na continuidade de sua auto-identi-dade e na constância dos ambientes de ação social e material circundantes. Uma sensação de fidedignidade de pessoas e coisas, tão central à noção de confiança, é básica nos sentimentos de segurança ontológica; daí os dois serem relacionados psicologicamente de forma íntima.

    A segurança ontológica tem a ver com “ser”, ou, nos termos da fenomenologia, “ser-no--mundo”. Mas trata-se de um fenômeno emocional em vez de cognitivo e está enraizado incons-ciente. (GIDDENS, 1991, p. 95).

    Essa segurança ontológica é o que dará ao indivíduo as condições básicas para a vida em sociedade. É com ela ou sem ela que o indivíduo se posicionará perante o mundo ora mais seguro de si, ora menos seguro de si. Podemos, desse modo, afirmar que a falta de segurança ontológica caracterizará a chamada crise de identidade da pós-modernidade. Ou seja, não é a pós-moderni-dade em si que gera a crise de identidade, a pós-modernidade eleva em grau jamais visto as pos-sibilidades de identificações. Nesse sentido, o indivíduo com baixo grau de segurança ontológica,

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    estará muito mais propenso em buscar essa segurança que não teve na infância, depois de jovem ou adulto, causando assim a ansiedade identificatória típica da chamada pós-modernidade.

    Podemos, para exemplificar o conceito de segurança ontológica, observarmos como jo-vens e crianças que ficaram por longo período na convivência com seu grupo originário terem mui-to mais marcante a presença grupal do que jovens e crianças que desde muito cedo tiveram sua educação terceirizada. Esse exemplo abrange tanto organizações tidas como sociais, mais aberta, ou tradicionais como grupos indígenas, quilombolas e de outras composições étnicas. Estamos di-zendo que quanto mais tempo um indivíduo passa com os membros do seu grupo mais difícil é de se desvincular da sua identidade ontológica.

    Nesse sentido, compreendemos que educação familiar tem num primeiro momento, cará-ter fundamental na constituição da identidade subjetiva de longa duração no indivíduo, e que as experiências ao longo da vida, vão segundo Lahire, constituindo o stock identitário.

    O stock identitário nesse contexto, constituem em repertórios de organização compor-tamental e de relações sub e intersubjetivas que possibilitam aos indivíduos maior compreensão, diálogo e uma postura de abertura em relação às miríades de possibilidades de existência. Um bom stock, está na base do dialogo intercultural. Nesse sentido: “A pertença não é suprimida na so-ciedade moderna; é transformada, idealmente, numa pertença escolhida.” (SINGLY, 2003, p. 53).

    É esse diálogo subjetivo do indivíduo com esses três elementos que culminará num diá-logo intersubjetivo mais ou menos intercultural, de acordo com o modelo educacional, familiar, religioso, social e econômico no qual estiver inserido, em relação com seus desejos internos de reconhecer a si e o outro como sujeitos diferentes e iguais em suas diferenças. “Repensar o elo social pressupõe a ruptura com tal visão do mundo, que separa grandes e pequenos, sério e frívo-lo, “verdadeiro” e ilusório, a fim de que os indivíduos individualizados sejam reconhecidos, sem desprezo, na sua totalidade.” (SINGLY, 2003, p. 195).

    É na relação com os conceitos que apresentaremos abaixo (multiculturalismo liberal e multiculturalismo conservador) que estamos abordando a dimensão da constituição identitária. Segundo Kaufmann (2001, p. 53):

    Antes da crise, não havia propriamente falando identidades. Para que haja identi-ficação, é preciso que haja situações em que faz sentido identificar-se. A questão identitária resultou, historicamente, da desagregação das comunidades libertando um indivíduo constrangido a autodefinir-se.

    Ou seja, as dimensões do social e do cultural que anteriormente dava matrizes para a formação da identidade dos indivíduos, gradativamente se afrouxam dando azo a possibilidades dos indivíduos identificarem-se ou buscarem formas de comportamento não presentes em seus grupos de origem.

    É nesse processo de redefinição dos papéis e das condutas sociais e/ou culturais individu-ais que os debates sobre multiculturalismo e interculturalismo se sobrepõe à ideia de reafirmação de identidades originárias. “O indivíduo individualizado não deixa de ter uma pertença. É preciso não confundir a necessária não pertença em relação aos grupos de origem e a ausência de com-promisso coletivo.” (KAUFMANN, 2001, p. 175).

    Num sentido, o sentimento de pertencimento se constituía com base naquilo que Tön-nies definira como comunidade. Na comunidade prevalece o “nós” sobre “eles”, inclusive sobre o “eu”. Os modelos de organização das condutas eram dados verticalmente por seus líderes e chefes

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    mais velhos e repassados de geração em geração. Assim, comportamentos das mulheres, jovens e adultos eram definidos historicamente pelo conjunto dos habitus.

    Noutro sentido, o pertencimento comunitário cede espaço com o avanço da econômica de mercado e com o advento dos meios de comunicação de massa às constituições identitárias de tipo social (Durkheim, Tönnies, Bauman). Nesse modelo de organização, prevalece o individual sobre o coletivo, mas esse individual não necessariamente atrelado sobretudo sobre a ótica do sistema capitalista e de consumo em massa, mas também relacionado com o direito de individuação e autoafirmação.

    É nesse segundo processo de identificação social que nasce a possibilidade multicultural/intercultural, devido, sobretudo ao desejo de igualdade de direitos e justiça social daqueles grupos ou pessoas marginalizadas pelas verticalizações dos modelos tradicionais de constituição identitária.

    Em outras palavras, a globalização e as transformações oriundas dela, aceleraram as dis-cussões em torno da ideia de igualdade das culturas manifestarem-se de par a par com as culturas e sociedades historicamente dominantes.

    É nesse contexto, da globalização, flexibilização identitária, lutas pelos direitos culturais equitativos que surgem as discussões em torno dos conceitos de multiculturalismo e interculturalismo.

    O indivíduo pode pertencer a seu grupo de origem, mas também distanciar-se dele quando práticas culturalmente aceitas pelo grupo já não é mais vista pelo indivíduo como algo produtivo.

    Lembrando que grande parte dos costumes grupais parte dos sujeitos homens, heterosse-xuais e patriarcais, não é difícil imaginar que práticas tradicionais entram em choque com novos desejos de autoafirmação e liberdade de escolha.

    É nesse sentido, que a questão da identidade e da ressignificação identitária pode ser facilmente encontrada em meio a grupos fortemente marcados pelo comunitárismo e pela metanarrativa da tradição e do costume.

    É de se imaginar também que mulheres que historicamente recebiam suas funções sociais dentro dessas estruturas tradicionais queiram assumir suas condições de atoras de suas próprias vidas.

    Consequentemente, a citação inicial de Hall faz muito sentido ao dizer que velhas iden-tidades dão lugar gradativo e constante a novas formas de identificação, cabendo ao pesquisador compreender, analisar e explicar esse fenômeno que engloba todos indistintamente.

    Entretanto, algo importante a se destacar é que as novas possibilidades de constituição identitária, não fragmenta o indivíduo, pelo contrário, os possibilita a tornarem sujeitos de suas vidas e lutar por melhores condições de existência, sejam eles homens ou mulheres.

    2 OS LIMITES DO MULTICULTURALISMO NO DIÁLOGO INTERCULTURAL

    A “identidade” do mundo ocidental é eurocêntrica. O eurocentrismo dominou a forma e o conteúdo do pensamento de todo o mundo ocidental e boa parte do mundo oriental por muitos séculos. A cultura europeia foi vista por muito tempo como ponto de ancoragem para a valorização e comparação de qualquer outra forma cultural. Nesse sentido, quanto mais próxima do modo de vida europeu, mais evoluída seria tal cultura.

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    As guerras de conquista, os imperialismos e toda colonização afro-asiática e americana ti-veram como princípio o processo civilizatório europeu. Tudo que fosse diverso ou incompreensível sob o prisma da razão científica era tido como inferior e primitivo.

    Assim, milhões de pessoas foram mortas e/ou submetidas ao modelo de pensamento judaico-cristão científico ocidental, e do mesmo modo centenas de línguas foram extintas em de-trimento das línguas latinas e/ou anglo-saxônicas. Do mesmo modo, centenas de deuses e deusas foram “mortos” em prol do Deus cristão, bem como lugares sagrados foram destruídos em prol da ciência e do capitalismo emergente.

    Com a diplomacia da canhoneira e em nome de um único Deus, o ocidente e o oriente se viram às justas com o pensamento europeu. Se dissemos acima que a identidade só emerge quando ela está ameaçada, é correto dizer que a identidade de povos autóctones “nasceram” em defesa da aculturação europeia.

    Sim, as regiões conquistadas e colonizadas pelos europeus constituíram-se ao longo dos séculos em países multiculturais. Multiculturas compõe o Brasil por exemplo, mas essa miríade de culturas que compõe nosso país efetiva-se no âmbito do diálogo e do respeito entre elas? Está aí uma diferença básica quando procuramos relacionar nosso trabalho com a ideia de interculturas em detrimento de multiculturas.

    Multiculturalismo é um termo descritivo. Afirma que o processo de globalização e os en-trecruzamentos culturais fizeram nascer países, cidades e regiões multiculturais. Nova Iorque é multicultural, bem como São Paulo ou Rio de Janeiro, mas multiculturalismo pressupõe diálogo e respeito pela diferença?

    É nesse sentido que procuraremos diferenciar, para analisar a questão da mulher indígena em nosso trabalho, multiculturalismo de interculturalismo. Compreendemos que para que o respeito à diferença seja praticado, seja dentro de uma mesma cultura ou dessa cultura em relações às outras, não basta a assunção da multiculturalidade, mas sim a pratica dialógica entre um e outro.

    Consequentemente procuremos compreender a dimensão da mulher indígena e seu empo-deramento em termos de interculturalidade, interculturalidade essa numa relação da identidade indígena que se reconfigura e dialoga com o mundo global.

    Imaginamos que se está gradativamente se descortinando o que pretendemos analisar e do modo como isso está sendo feito: A identidade indígena se enquadra dentro do pensamento tonnisiano de identidade comunitária. Ao longo dos séculos toda a identidade indígena se deu de modo comunitário, até chegar ao ponto que as próprias estruturas indígenas no que se refere à formação identitária é posta em xeque pelo processo de globalização.

    Pretendemos compreender essas ressignificações no que se concerne à questão da mulher e do empoderamento feminino. Para que isso pudesse surgir, a mulher indígena teve que buscar “fora” da sua estrutura comunitária subsídios para afirmarem os seus desejos individuais de serem mulheres de direitos igualitários. Esses subsídios emergem de duas coisas: primeiro de uma res-significação identitária, segundo, pela abertura intercultural dessas mulheres para o mundo fora tribo que as cerca.

    O Brasil é um país multicultural, mas ainda não é um país intercultural. A diferença no Brasil ainda não é amplamente respeitada em sua diferença. Seja tanto para homens, quanto para mulheres de origens raciais e étnicas discriminadas ao longo da história.

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    Entretanto, as mudanças globais suscitam novas formas de pensar e agir não somente entre a cultura dominante e a cultura dominada, mas também no interior da própria cultura domi-nada e/ou dominante, quando grupos específicos ou pessoas individualmente também requerem mudanças de comportamento dentro desses grupos originários, como por exemplo, de mulheres indígenas que, empoderando-se dentro dessa lógica intercultural, exigem maior respeito sobre sua condição de mulher.

    O tema do multiculturalismo surge em finais do século XX, como possibilidade de intera-ção inter étnica em países com grande diversidade cultural. Canadá foi o primeiro país a adotar o tema do multiculturalismo com vistas a assumir posturas anti-discriminatórias em suas relações sociais.

    Noutro sentido, o tema multiculturalismo caminha junto com o conceito de globalização, tendo em vista que com o processo de globalização aumentam-se os intercâmbios culturais e a ideia de eurocentrismo cultural é grandemente questionada:

    Multicultural é um termo qualificativo. Descreve as características sociais e os problemas de governabilidade apresentados por qualquer sociedade na qual dife-rentes comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum, ao mesmo tempo em que retêm algo de sua identidade “original”. Em contraparti-da, o termo “multiculturalismo” é substantivo. Refere-se às estratégias e políticas adotadas para governar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade gerados pelas sociedades multiculturais. (HALL, 2003, p. 52).

    Logo, na gênese do debate sobre tanto o multiculturalismo quanto interculturalismo está presente a questão da diferença e da compreensão da diferença num espaço dialógico sem verti-calidades.

    Soriano (2004, p. 91 apud DAMÁZIO, 2017, p. 14) considera que o interculturalismo re-mete a uma coexistência das culturas em um plano de igualdade. Muitos autores empregam o mesmo significado para denominar o multiculturalismo. O autor acredita, contudo, que o mais apropriado é utilizar o termo multiculturalismo para a constatação empírica da coexistência das culturas, enquanto que o interculturalismo tem uma pretensão normativa ou prescritiva e diz res-peito à exigência de um tratamento igualitário dispensável às culturas. O interculturalismo atua em conformidade com os conceitos garantistas dos direitos das culturas, criticando o imperialismo jurídico e propondo uma alternativa entre o liberalismo e o comunitarismo.

    A diferença é ponto chave quando o assunto é a identidade e as dinâmicas sociais que envolvem os sujeitos no convívio social. Entretanto, identidade pressupõe identificar-se com algo que lhe é similar, parecido, igual, e grande parte dos estudos sobre identidade presta-se a analisar primeiramente a dimensão cultural da formação identitária.

    Nesse sentido, quando se presa pelas análises da identidade sob o aspecto das dimensões culturais, econômicas e de classe, por exemplo, explicita-se a questão da diferença.

    Essas diferenças se explicitam, pois, devido as mais diversas nuances sociais existem cul-turas, classes sociais, econômicas e de gênero diversas num mesmo arranjo social.

    Tendo em vista que grande parcela do mundo vive hoje sob a tutela de regimes democrá-ticos, tende-se buscar formas para que essas diferenças não promovam ou diminuam grupos sociais específicos, mas sim busque alternativas para os tornarem iguais em suas diferenças.

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    Logo, políticas públicas e educacionais são criadas com fito de amenizar tais diferenças. Os termos que se destacam para reforçar o caráter plural das relações humanas em sociedades são o multiculturalismo e o interculturalismo.

    Seguindo ainda na diferenciação entre um e outro Fornet-Betancourt (2008) também alerta:

    que o termo interculturalidade não deve ser confundido com multiculturalismo. O multiculturalismo descreve a realidade fática da presença de várias culturas no seio de uma mesma sociedade, designa uma estratégia política liberal que visa a manter a assimetria do poder entre as culturas, posto que defende o respeito às diferenças culturais, mas não coloca em questão o marco estabelecido pela ordem cultural hegemônica. Sendo assim, o respeito e a tolerância, tão difundidos pela retórica do multiculturalismo, estão fortemente limitados por uma ideologia se-micolonialista que consagra a cultura ocidental dominante como uma espécie de metacultura que benevolamente concede alguns espaços a outras. A intercultura-lidade, pelo contrário, aponta para a comunicação e a interação entre as culturas, buscando uma qualidade interativa das relações das culturas entre si e não uma mera coexistência fática entre distintas culturas em um mesmo espaço.

    Logo, tanto o primeiro quanto o segundo possuem diversas ramificações epistêmicas, mas nosso intuito é, para o interesse desse capítulo, abordar, mesmo que suscintamente principalmen-te dois; o multiculturalismo liberal e o multiculturalismo conservador e a ideia de interculturali-dade.

    O mundo globalizado no qual estamos inseridos nos abre possibilidades de comunicação e interação jamais vistos pela humanidade desde seus primórdios. Mas a pergunta que se faz é: até que ponto essas interações e comunicações são feitas no plano do diálogo com a diferença? Ou me-lhor, em que medida a globalização contribui e de que forma para minimizar as diferenças no que se diz a verticalizações e princípios de melhor ou pior, mais desenvolvido e menos desenvolvido?

    A globalização que se deu inicialmente no âmbito da economia, hoje muito mais ampla, abrange sobretudo as relações entre as culturas. É nesse princípio relacional entre as culturas, se-jam elas multinacionais oriundas das trocas entre os diversos países, seja em sentido local, entre as culturas já existentes antes da globalização que se processam as mudanças e ressignificações da identidade.

    Um dos aspectos positivos que devemos destacar em relação à globalização é justamente a possibilidade do intercâmbio cultural. Mas esse intercâmbio é visto de que modo pelos grupos envolvidos? É visto de modo horizontal, onde todas as culturas têm suas idiossincrasias e devem ser respeitadas em suas diferenças? Ou é feito de modo “distanciado” onde as culturas são vistas como curiosidades turísticas e exóticas?

    Outra característica amplamente debatida no meio acadêmico é a dimensão do impacto da globalização sobre a ideia de identidade. Adversa à ideia de turismo cultural, a globalização impacta contundentemente na ressignificação identitária, seja em grupos socialmente mais di-nâmicos dentro da lógica do modelo econômico vigente, seja em grupos que se encontram mais afastados desse sistema, como o caso de indígenas, quilombolas e comunidades ribeirinhas, por exemplo.

    Essas ressignificações identitárias causam àquilo que alguns chamam de crise de identida-de como Lipovetiski (2002), por exemplo. No entanto, acreditamos que é justamente essas ressig-

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    nificações identitárias que possibilitam o avanço do debate do multicultural para o intercultural como veremos adiante.

    Existem diversas expressões de multiculturalismo (DAMÁZIO, 2017) dentro das pesquisas em ciências sociais e humanas. Entretanto, as concepções de multiculturalismo liberal e conser-vador são as norteadoras dos debates em torno desse conceito. Não pretendemos aqui aprofundar sobre o debate em torno do multiculturalismo. Nossa preocupação é demostrar que o multicultura-lismo possui fraquezas conceituais que o impedem de compreender a dinâmica da constituição das identidades individuais, por não consagrar a ideia de diálogo profundo entre as culturas e entre a própria cultura internamente de modo horizontal. Nesse sentido, procuramos destacar a impor-tância de se compreender que para além da aceitação de que vivemos um momento multicultural é contribuir para que essa multiculturalidade também possa se tornar interculturalidade.

    Dentro da discussão em torno do multiculturalismo liberal encontramos a defesa de que a cultura não tem valor em si, a cultura tem nesse ponto de vista, apenas valor simbólico, no qual o indivíduo coleta sensações como apresenta Bauman. (DAMÁZIO, 2017).

    O multiculturalismo liberal atende nesse sentido aos interesses do capitalismo. Quan-do a cultura se torna um objeto de consumo, sem debate e sem diálogo. A cultura e as culturas “simplesmente existem” e os problemas existentes entre elas não fazem parte de uma agenda educacional, por exemplo.

    Singly (2003) apresenta o conceito do recolher e levantar âncoras para indivíduos carac-terizado por esse viés multiculturalista. O indivíduo alheio a si mesmo quanto sujeito de cultura, e alheio às culturas quanto processos históricos de construção simbólica, apenas joga e recolhe suas âncoras identitárias e “colhe as sensações” delas provenientes sem nenhum tipo de critici-dade. Nesse sentido, o multiculturalismo liberal vai ao encontro da cultura de consumo do mundo globalizado, onde as culturas são experimentadas quanto “produtos” à venda para consumo em qualquer loja de departamento.

    O multiculturalismo liberal não defende a ideia de uma identidade cultural, mas sim a ideia de que vivemos num mundo com muitas culturas (DAMÁZIO, 2017). Não pensa o debate para o cerceamento das lutas culturais, acredita que as diferenças culturais estão em outra parte que não na cultura e em sua exploração histórica. Por fim o multiculturalismo liberal é um multicultu-ralismo sem debate e diálogo identitário.

    Por sua vez o multiculturalismo conservador é o oposto do multiculturalismo liberal e é mais perigoso.

    O multiculturalismo conservador defende a ideia de que existe uma cultura e que essa deve ser preservada por ter valor simbólico de extrema importância para a formação das identi-dades. Enquanto o multiculturismo liberal é chamado de individualista por não dar ênfase à ideia de preservação identitária com base cultural, o multiculturalismo conservador reforça justamente o caráter coletivo da identidade, não individual, mas coletiva.

    Nesse sentido, o multiculturalismo conservador transita numa linha tênue entre comuni-tarismo e xenofobia.

    O comunitarismo é um fenômeno teoricamente novo nas sociedades modernas. Surge como resposta à chamada crise de identidade causada pela globalização e pela pós-modernidade. Para reforçar a identidade “ameaçada” grupos criam modelos comunitários de vida para preservar sua identidade. O multiculturalismo conservador aceita a ideia de que existem muitas culturas

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    Temas sobre a constitucionalização dos direitos fundamentais: um debate crítico

    presentes em determinado arranjo social, mas aceitar o diálogo entre essas culturas é outra coisa, por trás desse multiculturalismo está presente o “sonho de pureza”.

    Ser multicultural não implica necessariamente interculturalidade. Uma sociedade pode ser multicultural como é o caso do Brasil, mas isso não quer dizer que há um diálogo de respeito e reciprocidade entre as diversas culturas no país.

    O multiculturalismo conservador ao defender a ideia ontológica da cultura sobre os in-divíduos pode ser apresentado com verticalizações comparativas entre “melhor” e “pior”, mais desenvolvido e menos desenvolvido, tipos de comparações presente no pensamento eurocêntrico.

    Desse modo, para debater identidade dentro de um espaço horizontal de respeito, reci-procidade, abertura e diálogo é preciso pensar a identidade e identidades em torno da ideia de um multiculturalismo intercultural pautado na comunicação:

    A relação dos homens e das mulheres ilustra, portanto, melhor do que qualquer ou-tra, que o multiculturalismo deve ser, em primeiro lugar, procura de comunicação. Esse pressupõe linguagens comuns, mas também mensagens diferentes (pelo con-teúdo e pela forma), expectativas diferentes e interpretações igualmente diferen-tes da mesma mensagem. A comunicação entre homens e mulheres é o elemento central desta recomposição do mundo onde vejo a forma principal do multicultu-ralismo. Esse deve evocar mais a comunicação que a distância, mais a interação do que a separação e a desconfiança. (TOURAINE, 1997, p. 251).

    Assim, a interculturalidade não só permite o diálogo entre as culturas, mas também o debate dentro da própria cultura, entre os gêneros, permitindo ressignificar práticas e valores que já não mais condiz com o modelo de vida contemporâneo.

    3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Para Damázio, 2017, p. 5), “a proposta intercultural surge, principalmente, a partir do vazio deixado pelo multiculturalismo. Visa à superação do horizonte da tolerância e das diferenças culturais e a transformação das culturas por processos de interação.”

    O “Outro” é característica fundamental quando a questão é o debate intercultural. A constituição da identidade contemporânea está cada vez mais sendo construída de modo plural.

    O indivíduo contemporâneo cada vez mais globalizado pelos meios de comunicação de massa e pela sociedade de consumo encontra dificuldades em se afirmar possuidor de uma identi-dade constituída de um único centro irradiador de conduta e comportamento. O “nós” identitário paulatinamente ocupa o lugar do “eu” no sentido do “eu” comunitário, ao mesmo que o “eu” in-dividual, se sobrepõe gradativamente ao “nós” comunitário. É nessa dialética entre cultura e cul-turas que a identidade dos sujeitos modernos se forma. Graças às aberturas culturais provenientes da globalização e graças à democratização das ideias, as pessoas podem com maior ou menor ris-co, dependendo da sua origem comunitária, afirmarem-se possuidores de desejos e constituírem--se como sujeitos individuais.

    É nesse aspecto que a interculturalidade, a identidade e a globalização impactam na formação do “eu”. Esse diálogo complexo entre diversos mundos ressignificam demasiadamente o comportamento humano.

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    Destacamos o empoderamento das mulheres, que em tempos idos, pelas verticalizações comunitárias de todo tipo, tinham seus desejos e suas vontades sufocadas pelos tradicionalismos culturais.

    A interculturalidade é o diálogo consigo mesmo e com o “outro”. Não mais falamos de indivíduo quando pensamos a interculturalidade, pensamos a interculturalidade em termos de sujeito.

    Sujeito é todo aquele ou aquela que lutam contra as forças centrifugas e centrípetas de fragmentação do “eu” que numa relação com seu projeto de vida individual dialoga com o univer-so da técnica e com o universo da cultura.

    Quando falamos de ressignificação identitária da mulher indígena e do seu empoderamen-to falamos da mulher sujeito, que quer seu pertencimento, mas quer sua liberdade e decidir por si mesma o que lhe é melhor para si.

    A interculturalidade não visa somente o debate entre as culturas, visa também e muito profundamente o debate entre “a” cultura. Sujeitos homens e mulheres nesse debate intercul-tural descobrem-se possuidores de uma identidade própria, e gradativamente buscam encontrar meios de serem o que são.

    É nesse sentido que a terceira parte desse trabalho visa compreender a emergência do Sujeito mulher. É nesse diálogo intercultural das indígenas entre si e das indígenas com o mundo globalizado, não tradicional que as cerca, que procuraremos compreender a emergência do sujeito mulher com vistas ao seu empoderamento.

    Interculturalidade pressupõe a convivência das diversas culturas que compõe um todo multicultural, mas com a premissa da igualdade. Noutro aspecto a interculturalidade permite o diálogo intergrupal para que esta igualdade também seja alcançada:

    A noção de interculturalidade, por diferentes razões, foi identificada com multi-culturalidade, entretanto as posições teóricas atuais na América Latina permitem uma distinção entre ambas. A interculturalidade, diferentemente da multicultura-lidade, não é simplesmente duas culturas que se mesclam ou que se integram. A interculturalidade alude a um tipo de sociedade em que as comunidades étnicas, os grupos sociais se reconhecem em suas diferenças e buscam uma mútua com-preensão e valorização. O prefixo “inter” expressaria uma interação positiva que concretamente se expressa na busca da supressão das barreiras entre os povos, as comunidades étnicas e os gr