temporalidade das formas - altamir

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Temporalidade das formas na pintura mural religiosa: uma problemática para a contemporaneidade Altamir Moreira 1 Resumo Este texto apresenta uma crítica ao modelo de história da arte baseado na concepção do ciclo vital de progressão técnica. A partir da revisão pontual de alguns dos desenvolvimentos ocorridos desde a Renascença, busca destacar os pontos problemáticos deste paradigma historiográfico. Entre estes, as limitações evidenciadas na abordagem de correntes estilísticas com dinâmica mais lenta. Para tanto, desenvolve uma análise apoiada em exemplos da pintura mural religiosa desenvolvida na região central do Rio Grande do Sul ao longo do século XX. Palavras-chave: teorias da arte, história da arte, história da arte brasileira, história da arte no Rio Grande do Sul, pintura mural religiosa, arte contemporânea. Abstract This work introduces one critical view to the model of Art history based on the conception of the vital cycle of technical progression. Starting from the punctual revision of some developments happened since the Renaissance, it search to detach some problematic points of this historiographic pattern. Among these, the limitations evidenced in the approach of stylistic currents with slower dynamics. Therefore, it develops an analysis based in examples of the religious mural paintings 1 Altamir Moreira (1972): Pesquisador de iconologia da pintura mural religiosa. Graduado em Desenho e Plástica pela UFSM, e Doutor em Artes Visuais pela UFRGS. 1

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Contemporary art in Brazil

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Page 1: Temporalidade Das Formas - Altamir

Temporalidade das formas na pintura mural religiosa: uma problemática para a contemporaneidade

Altamir Moreira1

Resumo

Este texto apresenta uma crítica ao modelo de história da arte baseado na concepção do ciclo vital de progressão técnica. A partir da revisão pontual de alguns dos desenvolvimentos ocorridos desde a Renascença, busca destacar os pontos problemáticos deste paradigma historiográfico. Entre estes, as limitações evidenciadas na abordagem de correntes estilísticas com dinâmica mais lenta. Para tanto, desenvolve uma análise apoiada em exemplos da pintura mural religiosa desenvolvida na região central do Rio Grande do Sul ao longo do século XX.

Palavras-chave: teorias da arte, história da arte, história da arte brasileira, história da arte no Rio Grande do Sul, pintura mural religiosa, arte contemporânea.

Abstract

This work introduces one critical view to the model of Art history based on the conception of the vital cycle of technical progression. Starting from the punctual revision of some developments happened since the Renaissance, it search to detach some problematic points of this historiographic pattern. Among these, the limitations evidenced in the approach of stylistic currents with slower dynamics. Therefore, it develops an analysis based in examples of the religious mural paintings that had been developed in the central area of Rio Grande do Sul, South of Brazil, along the twentieth century. Key-words: art theory, art history, art history in the Brazil, art history in Rio Grande do Sul, religious mural paintings, contemporary Art.

1 Altamir Moreira (1972): Pesquisador de iconologia da pintura mural religiosa. Graduado em Desenho e Plástica pela UFSM, e Doutor em Artes Visuais pela UFRGS.

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Introdução

A partir do Renascimento, a pintura mural religiosa passou a ser um elemento

fundamental no conjunto das obras consideradas pela história da arte. Nessa fase, tanto o

gênero de temática religiosa quanto a técnica mural eram representativos dos feitos de maior

criatividade ocorridos na pintura. Isso, devido a uma rara conjunção de fatores sociais,

culturais e econômicos, paralelo ao surgimento de artistas de grande habilidade. Artistas que

se tornaram célebres, tanto pela força expressiva das suas criações, quanto pela habilidade

teórica demonstrada na elaboração de complexos sistemas de representação do espaço e da

figura humana.

Mas, conforme se constata na contemporaneidade, em algum momento dessa trajetória

a pintura mural religiosa deixou de ser um campo de maior evidência e passou a figurar no

espaço das criações de menor destaque. Esse afastamento faz com que, muitas vezes, não seja

possível estabelecer uma correspondência imediata entre as características do muralismo

religioso e as classificações temporais predominantes nas artes laicas. Descompasso

cronológico que, invariavelmente, evidencia a problemática atual sobre como situar a arte

mural religiosa frente às classificações predominantes na historiografia da arte. E sobre o

modo pelo qual podem ser compreendidas as divergentes temporalidades estilísticas

correspondentes a esse campo das artes.

Diante do problema, que não se esgota ao longo do texto, serão evidenciadas algumas

das características que fizeram com que esse gênero artístico fosse deslocado para uma região

periférica da história da arte. Análise que, em contrapartida, também discute alguns dos

valores que contribuíram para o distanciamento dos modelos historiográficos em relação a

esse tipo de produção visual. Essa discussão, que será desenvolvida a partir de questões

pontuais da historiografia européia, pretende contemplar, sobretudo, o caso da pintura mural

religiosa de igrejas da região central do Rio Grande do Sul. Para este objetivo serão utilizados

exemplos baseados em obras realizadas ao longo do século XX, fase histórica cujas principais

peculiaridades se estendem até as realizações mais recentes, efetuadas no início do século

XXI.

A sincronia inicial

A pintura mural religiosa esteve no centro das primeiras sistematizações históricas da

arte. E nesta posição permaneceu, pelo menos enquanto as características mais pronunciadas

desse gênero eram adequadas para justificar o discurso sobre progressão técnica da

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representação figurativa. Desse modo, considera-se que, enquanto houve sincronia entre os

desenvolvimentos do muralismo religioso e as exigências de virtuosismo valorizadas pela

historiografia da arte, esse tipo de pintura esteve entre as criações mais estudadas. Mas, no

momento em que fatores como: motivos formais de longa permanência, estilos

extemporâneos, abordagens arcaizantes e de baixa qualidade técnica começaram a se

evidenciar, o problema que tais obras poderiam representar para o campo histórico foi

habilmente evitado pelo recurso de afastamento do foco de interesse, em direção às áreas de

maior dinâmica estilística, nas quais essa abordagem metodológica ainda se revelava eficiente.

A concepção de história enquanto sucessão de eventos com dinâmica similar às fases

da vida humana, se fez presente desde os primeiros tratados que ajudaram a estruturar o

campo da história da arte. E, por meio dessa abordagem, as criações de diferentes artistas

puderam ser situadas como etapas necessárias para a construção coletiva destinada a culminar

na obra dos grandes mestres. Os períodos marcados pela longa permanência das formas eram

considerados como fases de estagnação. Pontos sem vida, dos quais, por vezes, emergem

gerações de artistas notáveis que por meio de progressos técnicos cumulativos, conduzem a

arte até os prováveis limites da engenhosidade. Fase de excelência, instável e curta, que, de

modo inevitável, é sucedida por gerações de artistas incapazes de igualar os feitos dos grandes

mestres. Situação que configura a etapa final, em que a perda progressiva do conhecimento

acumulado resulta em decadência artística.

Uma concepção histórica desse gênero foi utilizada por Giorgio Vasari (1511-1574) ao

narrar a Vida dos mais ilustres pintores, escultores e arquitetos, em uma abordagem

biográfica destinada a perpetuar a memória dos artistas considerados mais célebres. Nesta

obra, publicada em 1550, e reeditada com acréscimos em 1568, o historiador toscano busca

compreender as origens da excelência técnica alcançada naquela época, modo pelo qual

identifica, nas criações de antigos pintores como Cimabue e Giotto, os primeiros passos

criativos que evidenciam um afastamento em relação às convenções da arte bizantina. A partir

disso, o acúmulo de conquistas técnicas individuais deu origem à fase de máxima qualidade

artística. Nessa concepção de uma progressiva reconquista dos meios técnicos de

representação naturalista, a pintura de Giotto (1266-1337), com os ciclos de murais religiosos,

pôde ser considerada entre os primeiros exemplos do tratado histórico, na base do ciclo

ascendente de florescimento artístico, destinado a culminar nos grandiosos afrescos de

Michelangelo.

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A fase ascensional do crescente domínio da representação naturalista é entendida como

decorrente de um longo aprendizado que se volta tanto para a observação do mundo material

quanto para o conhecimento obtido por artistas precursores. Desse modo, as artes deixam de

ser apenas um conjunto de criações independentes e passam ser vistas como elos interligados

de um processo. Essa relação de dependência é evidenciada por Vasari ao afirmar que: “os

pintores têm em relação a Giotto, o pintor florentino, exatamente o mesmo débito que para

com a natureza” (VASARI, 1985, p. 57. Tradução nossa). Uma vez que a obra mais admirável

de um pintor contemporâneo pode ser vista como devedora dos esforços somados pelas

criações que a antecedem. Tal obra já não é considerada como o simples resultado da

engenhosidade individual, ela se torna, antes de tudo, um símbolo do gênio criativo de uma

região e, também, a parte culminante do longo processo histórico de conquistas cumulativas.

A perspectiva histórica baseada na progressão técnica exige uma coerência interna de

discurso. Para que essa coerência seja mantida, é necessário que o historiador lance um olhar

seletivo capaz de localizar uma ordem de sucessão desejável no conjunto de obras produzidas

em um período. Entre os diversos direcionamentos estilísticos e variados níveis de habilidade

artística, o historiador tende a selecionar apenas aquelas obras que se enquadram na

demonstração pretendida. Esse condicionamento se demonstrou funcional na descrição dos

recursos criativos da arte mural renascentista, embora não fosse, igualmente, adequado a

outras áreas da produção de imagens. Tais limitações, só eventualmente percebidas pelos

historiadores, foram destacadas a partir do estudo de obras consideradas mais sob o ponto de

vista antropológico do que artístico.

Aby Warburg (1866 -1929) foi um destes historiadores cuja visão não se limitou ao

modelo de progressão coerente. Em 1902, ao estudar A arte do Retrato e a Burguesia

Florentina, ele chama atenção para o caso dos ex-votos em cera, que eram deixados na Igreja

de Santíssima Anunziata, em Florença:

Na era de Lorenzo de Médici, a produção dessas efígies (voti) era altamente desenvolvida e um ramo da arte de alta consideração, dominada pelos Benintendi, discípulos de Andréa Verrochio, que por gerações manteve um amplo negócio de manufatura por meio da igreja e que apropriadamente receberam o nome de Fallimagini (fazedores de imagens) (WARBURG, 1999, p. 190. Tradução nossa).

Mas, apesar do destaque teórico concedido a essas imagens, elas não foram

consideradas pelos historiadores da arte subseqüentes. As causas dessa exclusão, para Georges

Didi-Huberman, residem no fato de que estas efígies já apresentavam a qualidade figurativa

de obras renascentistas, em pleno século XIV, enquanto que o modelo dominante de

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historiografia esperava que as imagens desse período tivessem aspecto medieval e, além disso,

careciam de um aspecto decisivo: “não desejavam ser obras de arte” (1990, p. 263).

O problema das simultaneidades

No decorrer do século XVII, o exercício de aplicar a visão histórica de progressão

totalizadora tornava-se uma tarefa árdua. Diante da diversidade de desenvolvimentos técnicos

e de direcionamentos expressivos, a solução encontrada foi a divisão dos grupos mais

homogêneos em escolas estilísticas. Tendência que foi seguida por algumas das obras teóricas

do período. Na Itália, por Giovanni Bellori, e na França, por André Felibién e Roger de Piles

(ALTET, 1994, p. 14).

Embora o desenvolvimento técnico ainda fosse um valor estimado, as distintas ênfases,

surgidas na abordagem da figuração, levaram a pintura a desenvolvimentos cada vez mais

divergentes. Percebeu-se que o destaque concedido às técnicas de cor conduzia a um

direcionamento estético diferente daquele obtido pelo aperfeiçoamento dos valores do

desenho. No campo teórico, discute-se qual das duas ênfases deveria ser considerada superior.

Constatava-se, de modo ainda pouco consciente e a contragosto, que a história da arte podia

apresentar desenvolvimentos simultâneos, e que isso representava um problema para o modelo

unificado de progressão das artes. A fase marcante desse tipo de discussão inicia-se em 1676,

quando Roger de Piles (1635-1709) escreve a Apologia a Rubens, obra que acirra o embate

entre duas das principais correntes de ênfase técnica. Esta acentua divergências entre os que,

com base na arte de Poussin, defendiam a superioridade do desenho e aqueles que, ao

contrário, acreditavam na supremacia da cor, tendo como modelo exemplar a obra de Rubens,

pintor flamenco considerado na Apologia como o que soube dar continuidade aos

desenvolvimentos da escola veneziana, de Ticiano a Veronese. (CHALUMEAU, 1997, p. 45).

Com isso, a resolução buscada para o impasse evitou o caminho da conciliação ou aceitação

de valores antagônicos para centrar-se nos meios teóricos de se definir qual abordagem

plástica teria o mérito de representar os verdadeiros avanços da pintura. Os valores

destacados, mesmo que em campos opostos, não deixavam de ser tentativas de se preservar o

antigo modelo cronológico ao se definir qual técnica deveria ter prioridade na avaliação dos

indícios históricos de evolução.

Algumas obras de artistas europeus, que a crítica do século XVII classificou como

pertencentes à tendência colorista, vieram a exercer uma tardia influência sobre a pintura

mural religiosa sul-riograndense, desenvolvida ao longo do século XX. E foi provavelmente

pela difusão em gravuras populares que tanto as formas criadas pelo artista flamenco quanto

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aquelas concebidas pelos antecessores venezianos, tornaram-se modelares para o

desenvolvimento da iconografia religiosa regional, sobretudo em obras concebidas a partir do

final da década de 40.

Algumas das formas do quadro de Rubens conhecido como Golpe de Lança (1620,

Museu de Antuérpia) influenciaram, em primeiro momento, as imagens dos vitrais religiosos

produzidos, provavelmente, nas décadas de 40 e 50, pelo atelier Casa Genta, de Porto Alegre,

conforme se deduz pelos exemplares observados em igrejas paroquiais dos municípios de

Feliz e Guaporé. Por aparente coincidência, Emílio Zanon, pintor oriundo dessa última cidade,

utiliza formas similares nas cenas da Crucificação de Cristo, pintadas para as igrejas

paroquiais de Monte Belo (1963), Nova Bréscia (1996) e Anta Gorda (2001).

Aldo Locatelli, por sua vez, destaca a tradição veneziana em vários detalhes dos

murais que realiza. Em 1949, ao pintar o mural da Coroação de Nossa Senhora, na Catedral de

São Francisco de Paula, em Pelotas, reproduz as formas de um anjo presente na Glória de

Santa Tereza de Ávila, pintada por Giambattista Tiepolo (1696-1770), em 1725, para a Igreja

dos Scalzi, em Veneza. Essa forma angélica, já com algumas alterações, é retomada por

Locatelli na cena da Coroação de Nossa Senhora, pintada em 1954 na Catedral do município

de Santa Maria e, mais tarde, no mural da Imaculada Conceição, pintado em 1958 na Igreja

do Santíssimo Sacramento, em Itajaí, Santa Catarina. O legado de outro pintor veneziano é

destacado por Locatelli no anjo reproduzido em escorço, na cena da Imaculada Conceição

executada em 1954 na Catedral de Santa Maria. Personagem cuja forma é derivada do mural

da Glória de São Domingos, que Giambattista Piazzetta (1683-1754), mestre de Tiepolo,

pintou em 1739 na Igreja de Santa Maria do Rosário, em Veneza.

Voltando-se ao caso da estruturação do campo da história da arte européia, constata-se

que, no século XVIII, o modelo teórico, baseado na equiparação das artes a um ciclo vital,

alcança pleno desenvolvimento. Embora a idéia de progressão já fosse destacada por Vasari

no século XVI, a possível fase descendente de tal processo, apesar de intuída, não havia sido

salientada. O que move a narração do historiador italiano é, antes de tudo, a percepção de que

os períodos de excelência artística estão fadados ao esquecimento, processo já ocorrido em

outras eras do passado. A constatação é de que “o artista vive e adquire fama por seus

trabalhos”, mas que, lamentavelmente, devido ao tempo que tudo consome, não só o artista,

mas também as obras e a fama tendem a desaparecer (VASARI, 1985, p. 31). A melancólica

missão do historiador consiste em salvar a memória dos grandes feitos, evitando essa espécie

de segunda morte (DIDI-HUBERMAN, 1990, p. 78). Vasari, portanto, embora ciente dessa

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fase descendente, evita dedicar maior atenção a este aspecto do modelo que utiliza. Porém, no

século XVII, com os estudos de Johann Joachim Winckelmann (1717-1768) a fase regressiva

do ciclo é plenamente incorporada ao esquema. Na obra de 1764, dedicada à História da Arte

Antiga, ele busca assimilar os ciclos estilísticos das obras com a dinâmica vital da história da

civilização. Desse modo, sob classes temporais e estéticas, ele demarca quatro períodos na

Arte Grega: o Antigo, pelas obras anteriores a Fídias; o Sublime, nas obras da geração de

Fídias; o Belo, de Praxíteles a Lisipo e Apeles, e o estilo de Imitação que se segue até a morte

da arte. Classificação para a qual encontra correspondência na arte de séculos mais recentes,

no momento em que associa o estilo Antigo aos antecessores de Rafael, o Sublime a Rafael e

Michelangelo, o Belo a Corregio e Guido Reni, e o de Imitação às obras dos irmãos Caracci a

Carlos Marata. (CHALUMEAU, 1997, p. 50).

Na pintura mural religiosa sul-rio-grandense, constata-se a influência das formas

legadas por alguns desses pintores renascentistas destacados nos escritos iniciais da história da

arte. Sobretudo, daqueles que a crítica do século XVII identificava como precursores da

tendência acadêmica de valorização do desenho, tais como Michelangelo e Rafael. Pintores

cujas obras Winckelmann, no século XVIII, considerou dignas do epíteto de sublimes. Entre

os modelos usados pelos pintores regionais destacam-se: o Profeta Isaías, de Michelangelo

(1475-1564), cujo modelo Angelo Lazzarini retoma ao pintar um dos medalhões da nave da

Igreja de Nossa Senhora das Dores em Santa Maria, em 1959, e a Disputa do Santíssimo

Sacramento de Rafael (1483 -1520), que foi utilizada por Ângelo Fontanive no mural em

Memória ao Congresso V Eucarístico Nacional de 1948, pintado na Igreja de Nossa Senhora

da Purificação, em Putinga.

O problema da multiplicidade

Entre o final do século XVIII e o terceiro quartel do XIX, diferentes orientações estéticas contrapõem partidários do romantismo e defensores da tendência tradicional. A ascensão do poder político burguês e a consolidação dos estados nacionalistas laicos coincidem com o deslocamento do foco de interesse historiográfico, outrora voltado para a pintura religiosa. Os temas bíblicos já não exercem o mesmo interesse no momento em que os temas históricos e os eventos políticos heróicos ganham maior evidência na pintura tradicional, mas os valores que levam esta arte acadêmica, neoclássica, a ser situada no topo da escala evolutiva passam a ser questionados. O romantismo cria o primeiro grande problema para a história baseada na progressão técnica, pois no centro dessa tendência surgem alguns artistas que pretendem reabilitar a importância da arte religiosa e que, deliberadamente,

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buscam imitar as formas mais elementares dos estilos antigos, por meio de abordagens que, perante o modelo histórico vigente, só poderiam ser entendidas como involuções.

Em 1810, um grupo de jovens artistas germânicos estabelece um ateliê no monastério abandonado de Santo Isidoro, em Roma. Decididos a dedicar-se à pintura e à vida devota inspiram-se nos modelos anteriores a Rafael, tais como Giotto e Fra Angélico. Logo passam a ser conhecidos como os Nazarenos, devido ao costume de cultivarem longos cabelos divididos ao meio, de modo a imitar a concepção tradicional da fisionomia de Cristo (BLANC, 1883). No campo artístico, buscam contrapor-se às idéias de Winckelmann e ao academismo que consideram contrários à religião. Conseguem alcançar notoriedade nas primeiras décadas de trabalho, mas a linha ideológica que defendem custa-lhes a crítica de personalidades eminentes, como Goethe, que considera que “é a primeira vez na arte que vemos talentos notáveis como Overbeck e Cornelius se comprazerem em caminhar para trás” (Goethe apud BESANÇON, 1997, p. 462). O historiador Jacob Burckhardt (1818 - 1897), a partir de 1840, também critica a ideologia de colocar a arte a serviço da religião, a afinidade pelos “primitivos” e o fato de rejeitarem os direcionamentos da pintura acadêmica posterior a Rafael (GOSSMAN, 2006, p. 01).

Jules Schnorr von Karosfeld (1794-1872), um dos artistas pertencentes ao grupo dos Nazarenos, baseado em propósitos humanitários de base cristã, realizou as 240 gravuras que ilustram A Bíblia em imagens (Die Bibel in Bildern), publicada entre 1852 e 1860 . Obra cuja divulgação o tornou popular não só na Alemanha, mas também na França e Inglaterra (BLANC, 1883, p. 04). Reproduções tardias dessas imagens foram divulgadas por outros livros religiosos e, por esse meio, vieram a se tornar modelos para as pinturas murais realizadas nas igrejas do Rio Grande do Sul. Na pintura de Lazzarini, os modelos de Schnorr fornecem a base dos temas da Volta do filho Pródigo (1955) e do Paraíso Terrestre (1956), respectivamente pintados nos tetos das igrejas paroquiais de Nova Palma e Faxinal do Soturno.

A recusa romântica em adotar as fórmulas dos grandes mestres e em manter a progressão técnica acadêmica difunde-se entre novos grupos modernos que emergem na segunda metade do século XIX, e isso se torna problemático para a historiografia da arte. O abandono dos modelos tradicionais também implica na rejeição dos parâmetros sobre os quais se dimensionavam as evoluções artísticas. O mérito de uma obra já não pode ser avaliado pelo êxito alcançado na assimilação da técnica dos antepassados e no progressivo acréscimo de novas qualidades, uma vez que já não há o interesse expresso de se alcançar similitudes e nem modelos de excelência a partir dos quais se possam avaliar as conquistas. O valor restante, sobre o qual ainda era possível emitir juízo valorativo, passa a ser o grau de diferença. Embora o potencial do pintor em acrescentar variedade aos motivos já fosse um critério prezado no

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academismo, esse tipo de diferenciação ainda não era uma qualidade definitiva. Ou, pelo menos, não no mesmo grau que alcança após a sucessão de movimentos modernistas, quando se torna um valor hipertrofiado.

Diante da multiplicidade de direcionamentos estéticos e da falta de modelos de excelência sobre os quais fosse possível evidenciar direcionamentos de progressão, era de se esperar que a história da arte abandonasse o modelo baseado em linhas evolutivas, mas isso não chegou a ocorrer. O modelo, embora questionado, demonstra inesperada capacidade de adaptação. Se já não é possível avaliar a qualidade de uma obra frente aos antecedentes da mesma tendência, passa-se a considerá-la contra as tendências concorrentes. Deste modo, o maior mérito passa a pertencer à obra do artista que alcançar maior índice de diferenciação e novidade. A contínua dinâmica de superação parecia comprovar que o ciclo evolutivo da arte ainda se encontrava em fase ascendente. Não mais pela adaptação e especialização internas ao mesmo gênero, mas por rápidas mutações destinadas a originar novas espécies.

A discordância com a absorção acrítica dos valores modernos pela história da arte surge, em primeiro momento, através de pesquisadores que buscaram compreender as imagens produzidas por culturas distantes. Aloïs Riegl (1858-1905) estuda a arte decorativa dos povos mediterrâneos e orientais, normalmente desconsiderados pelos estudiosos europeus. A partir desta experiência, propõe o conceito de kunstwollen (vontade artística), pelo qual a força que origina o devir histórico configura-se na dinâmica determinada pelas possibilidades formais suscitadas pelos próprios motivos artísticos (CHALUMEAU, 1997, p. 89). Aby Warburg, que por algum tempo observou os costumes dos povos tradicionais do Novo México, sugere uma interpretação histórica baseada num desenvolvimento não progressivo, e sim oscilatório, no qual as imagens são interpretadas como objetos que consolidam tendências psicológicas básicas de razão e irracionalidade. Forças que, em alguns períodos, estabelecem uma tensa concorrência e que, em outros, se alternam com diferentes intensidades (FERRETTI, 1989).

Entre aqueles estudiosos que se limitaram às imagens européias, também se destacam algumas resistências ao padrão histórico evolutivo. Heinrich Wölfflin (1864-1945) buscou encontrar critérios menos subjetivos para a arte ao estabelecer conceitos bipolares de diferenciação formal que possibilitavam classificações neutras, pelas quais tanto as obras do barroco quanto as do renascimento poderiam ser estudadas sem a necessidade de considerar as novas tendências como resultantes do progresso ou degradação dos estilos anteriores. Erwin Panofsky (1892-1968), por sua vez, distancia-se da análise da evolução das obras em si para dedicar-se à dinâmica interna dos motivos abordados pela arte figurativa em diversos períodos históricos. Todos estes pesquisadores, apesar dos divergentes valores adotados, evitaram utilizar na história da arte critérios estéticos que associam superioridade artística como grau de oposição aos elementos tradicionais. E - talvez, não apenas pela falta de distanciamento

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apropriado - evitaram abordar a problemática progressão das tendências artísticas que lhe eram contemporâneas.

Porém, no decorrer do século XX, a multiplicidade das tendências modernistas foi destacada por historiadores que se dedicaram a divisar, no universo das orientações estéticas divergentes, aqueles grupos mais hábeis em representar o caráter evolutivo da história da arte. Embora essa tarefa fosse imprescindível, a limitação do foco de interesse nas vanguardas excluiu grande parte dos desenvolvimentos artísticos de menor dinâmica, e mesmo parte dos representantes tardios de um academismo que, contrariando a história, se recusava a morrer. Os direcionamentos passadistas e regressivos, como aqueles representados pelas formas mais rudes ou “primitivas” de povos periféricos, raramente chamaram a atenção dessa história da arte e, quando isto ocorreu, foi por mérito dos próprios artistas modernos que vislumbraram naquelas formas étnicas um meio de aplacar, temporariamente, o insaciável desejo de novidade.

Pelo menos, nas primeiras quatro décadas do século XX, a pintura mural religiosa produzida no interior dos templos católicos não despertou o interesse da história da arte. Pois as tendências estéticas vigentes nestes espaços já não acompanhavam os desenvolvimentos ocorridos nos espaços laicos. Mesmo na França, país em que se originam muitos dos movimentos modernistas, a renovação da arte mural religiosa só ocorre após a Segunda Guerra Mundial, quando, já no início da década de 50, acontecem sucessivas inaugurações de igrejas que apresentam murais com tendências estilísticas modernas. Essa renovação se dá através de obras ousadas para o contexto religioso, mas que retomam linhas de desenvolvimento expressionista ou de simplificação fovista, em grande parte já ocorridos no início do século, tanto nas artes laicas quanto na pintura religiosa produzida fora das igrejas.

No Brasil, as experiências de Portinari realizadas na metade da década de 40 na Igreja da Pampulha (MG), apesar de inspiradas em experiências cubistas do início do século, só foram aceitas pelas autoridades eclesiásticas no final da década de 50. A historiadora Anna Paola Baptista acrescenta, ainda, outras igrejas ao número de experiências modernistas brasileiras. Entre as mais antigas, destaca: a Igreja de Nossa Senhora da Paz, pintada em 1944, por Fulvio Pennacchi (1905-1992), artista que se considerava um “futurista”, mas que devido à afinidade pela pintura religiosa e à gramática estilística em que denotava a admiração por artistas do Quatroccento italiano, por vezes, foi marginalizado pela crítica; a Igreja de Cristo Rei, pintada por Emeric Marcier (1916-1990), em 1946, com linhas figurativas despojadas, mas que não foi bem recebida em um período de crescente valoração das tendências abstratas, do mesmo modo que as telas religiosas enviadas por ele para a II Bienal de São Paulo (BAPTISTA, 2002, p. 206); e a Igreja de Cristo Operário, com pinturas murais realizadas por Volpi (1896-1988), em 1951, obras desconsiderados pelo próprio pintor, que por longo tempo

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se recusou a assiná-los porque os considerava como um trabalho menor, feito com o único objetivo de ganhar o seu sustento (BAPTISTA, 2002, p. 275). Estas experiências demonstram as várias faces do preconceito estético frente ao descompasso que havia entre a modernidade que vigorava nas artes laicas e a modernidade incipiente da pintura mural religiosa.

Na região central do Rio Grande do Sul, os primeiros índices de modernidade podem ser divisados na experiência isolada de Locatelli na série de quadros da Via-Sacra, pintados entre 1958 e 1960, e que foram afixados nas paredes da Igreja de São Pelegrino, de Caxias do Sul. Ao longo dessa obra distinguem-se alguns objetos figurativos extemporâneos e inusitados nas cenas religiosas, numa tendência que revela a conjunção de elementos surrealistas e expressionistas.

Com grande proximidade temporal, Lazzarini realiza, em 1959, pinturas relativas aos temas da Morte do Justo e da Morte do Pecador (figura 1), na Igreja de Nossa Senhora das Dores, em Santa Maria. Composições que preservam, em grande parte, elementos da iconografia divulgada em gravuras do final do século XIX, mas cuja estrutura iconográfica remonta aos manuais renascentistas da Boa Morte (Ars Moriendis) e à temática medieval da disputa pela alma dos mortos. Portanto, pode-se dizer que nessa região diferentes tendências e padrões estilísticos se desenvolviam com grande proximidade cronológica e geográfica. Diferenças que não podem ser reduzidas aos tradicionais esquemas históricos europeus de progressão técnica.

A partir dos exemplos destacados, pode-se perceber que a pintura mural religiosa da região centro-rio-grandense, concebida ao longo do século 20, se estrutura como um verdadeiro mosaico de tendências estilísticas. Um conjunto imagético heterogêneo elaborado por pintores com diferentes níveis de habilidades artísticas que, apesar de trabalharem em regiões próximas, não chegaram a estabelecer processos evidentes de troca de influências ou de progressão técnica. Caso em que as afinidades formais mais evidentes decorrem, sobretudo, do uso predominante de uma figuração baseada em modelos tradicionais da pintura renascentista e barroca, além de derivações concebidas sobre gravuras religiosas de inspiração romântica. Concepção de visualidade que não pode ser compreendida como um fenômeno ultrapassado. Pois, o conjunto das imagens influenciadas por essa concepção continua a ser ampliado, no alvorecer do século XXI, com raros índices de modernidade, paralelos a sobrevivências de temáticas populares de longa duração que remontam à arte medieval européia.

O antigo tema da Morte do Pecador (figura 2), que chegou a ser absorvido em uma das obras do artista mineiro Farnese de Andrade (1926 -1996), demonstra que, de maneira crítica, a arte contemporânea já problematizou este tipo de permanência de longa duração (figura 3). Questão que já foi enfrentada pela história cultural na análise das imagens produzidas pelas

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culturas periféricas, mas que ainda precisa ser aprofundada pela historiografia da arte para que seja possível o desenvolvimento de abordagens metodológicas mais adequadas. Abordagens que possam dar conta de imagens “não contemporâneas”, ainda que produzidas na contemporaneidade. Enfim, um aparato teórico que possa competir com o modelo de historiografia ancestral que tende a privilegiar apenas os valores de progressão técnica e inovação. Isto, em detrimento das imagens com dinâmica de mudanças mais lentas, mas que nem sempre possuem menor importância cultural.

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Figura 2O Destino do Pecador. Cromolitografia, s.d. (Datação provável: final do século XIX, inícios do século XX). Cópia conservada pela família de Valdir Bataglin, Linha 11, Nova Palma, RS.

Figura 1Angelo Lazzarini: O Destino do Pecador, 1959.Igreja de Nossa Senhora das Dores.Santa Maria, RS. (Pintura mural destruída em 2007)

Figura 3Farnese de Andrade. A morte do Justo e a do Pecador, 1987. Objeto. Museu de Arte Moderna de São Paulo. Acervo Online.

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Referências Bibliográficas

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