teoria do projeto-01
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Para estudantes de arquitetura-Estudo do Projeto ArquitetônicoTRANSCRIPT
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TEORIAS DO PROJETO E REPRESENTAO: Investigao sobre uma lacuna epistemolgica
Fernando Duro da Silva
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL - UFRGS
DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA
PROGRAMA DE PESQUISA E PS-GRADUAO EM ARQUITETURA PROPAR
Porto Alegre
2011
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL - UFRGS
DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA
PROGRAMA DE PESQUISA E PS-GRADUAO EM ARQUITETURA PROPAR
Fernando Duro da Silva
TEORIAS DO PROJETO E REPRESENTAO:
Investigao sobre uma lacuna epistemolgica
Tese apresentada ao PROPAR como requisito
parcial para a obteno do grau de Doutor em
Arquitetura.
Orientador: Prof. Dr. Rogrio de Castro
Oliveira
Porto Alegre
2011
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CIP - Catalogao na Publicao
Elaborada pelo Sistema de Gerao Automtica de Ficha Catalogrfica da UFRGS com osdados fornecidos pelo(a) autor(a).
Duro, Fernando Teorias do projeto e representao: investigaosobre uma lacuna epistemolgica / Fernando Duro. --2011. 152 f.
Orientador: Rogrio de Castro Oliveira.
Tese (Doutorado) -- Universidade Federal do RioGrande do Sul, Faculdade de Arquitetura, Programa dePs-Graduao em Arquitetura, Porto Alegre, BR-RS,2011.
1. Teoria da Arquitetura. 2. Teoria do projeto.3. Epistemologia. 4. Representao. 5. Jogos delinguagem. I. Oliveira, Rogrio de Castro, orient.II. Ttulo.
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Fernando Duro da Silva
TEORIAS DO PROJETO E REPRESENTAO:
Investigao sobre uma lacuna epistemolgica
Tese apresentada como requisito parcial para a
obteno do grau de Doutor em Arquitetura
pelo Programa de Pesquisa e Ps Graduao
em Arquitetura da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul - PROPAR.
Aprovada em
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________ Prof. Dr. Celso Carnos Scaletsky UNISINOS _______________________________________________ Prof. Dr. Ronaldo de Azambuja Strher UNISINOS _______________________________________________ Prfa. Dra. Cludia Piant Costa Cabral - UFRGS
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Este trabalho dedicado minha famlia Tatiana, Pedro e Ana Lcia. A meus pais Pedro Maral da Silva e Wanda Duro da Silva (in memoriam).
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AGRADECIMENTOS
Agradeo UNISINOS pelo apoio recebido. Agradeo tambm aos meus colegas de universidade pelo incentivo. Ao meu orientador Dr. Rogrio de Castro Oliveira pela compreenso e direcionamento seguro na superao das dificuldades encontradas (e discusses bastante produtivas).
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Por qu me impones
lo que sabes
si quiero yo aprender
lo desconocido
y ser fuente
en mi propio descubrimiento?
El ruido de tu verdad
es mi tragedia;
tu sabidura,
mi negacin;
tu conquista,
mi ausencia;
tu hacer,
mi destruccin.
No es la bomba lo que me mata;
el fusil hiere,
mutila y acaba,
el gas envenena,
aniquila y suprime,
pero la verdad
seca mi boca,
apaga mi pensamiento
y niega mi poesa,
me hace antes de ser.
No quiero la verdad,
dame lo desconocido.
Djame negarte
al hacer mi mundo
para que yo pueda tambin
ser mi propia negacin
y a mi vez ser negado.
Humberto Maturana
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RESUMO
O tema central da tese o projeto arquitetnico e a constatao de que h uma lacuna epistemolgica entre a ao projetual e sua atualizao como objeto arquitetnico. A tese delineia um quadro terico de cunho explicativo que visa estabelecer a base para a compreenso do estatuto epistmico do processo projetual, do ponto de vista do pensamento arquitetnico. Para tal recorre interpretao de textos de fontes da teoria e histria da arquitetura, da epistemologia e da filosofia que so cotejados, revelando relaes que lanam luz sobre o problema. A investigao identifica no surgimento da tradio projetual herdada do Renascimento a origem do distanciamento entre as bordas daquela lacuna, que de resto inerente separao entre concepo (terica) e execuo (prtica) da arquitetura, portanto prpria atividade projetual. O desenvolvimento dos sistemas de representao em favor do ideal arquitetnico como cosa mentale propiciou a relativa autonomia do projeto em relao ao objeto arquitetnico, que, guiado no primeiro momento pelo balano entre a inveno moderada e a conveno garantida pelos tratados como o de Vignola, paulatinamente orientou-se na direo do esgotamento das possibilidades da representao, ao ponto de tornar a viabilidade de execuo do projeto dependente do desenvolvimento de programas de computador voltados modelagem e representao digitais. A tese identifica a insuficincia das teorias do projeto como resoluo de problemas para dar conta do aspecto epistemolgico projetual de forma compreensiva, recorrendo como alternativa epistemologia da prtica de Schn e filosofia da linguagem de Wittgenstein, em especial ao conceito de jogo de linguagem desse ltimo. Este modelo explicativo e operativo que permite avanar na construo de pontes entre as duas margens da lacuna, com a ressalva de que a lacuna inevitvel em funo da natureza da atividade projetual. Esta tese se encerra no com a pretenso da resposta definitiva, mas com a problematizao que qualifica e ilumina a questo.
Palavras chave: Teoria da Arquitetura. Teoria do projeto. Epistemologia. Representao. Jogos de linguagem.
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ABSTRACT
The main topic of this thesis is architectural design and the observation that there is an epistemological gap between the act of designing and its concrete realization as an architectural object. The thesis presents a theoretical framework that aims at setting the grounds for understanding the epistemology of the design process from the standpoint of architectural thinking. In order to do so, explores, by interpreting, texts on theory and history of architecture, comparing them with others on epistemology and philosophy; by doing this, tries to uncover connections among such sources, especially connections that may shed light on that issue. The investigation identifies the origin of that gap in the emergence of western tradition, in the Renaissance, of an architectural design in which there is an inherent separation between the concept (theory) and the execution (praxis); thus, this gap is inherent to the activity of designing. The development of representation systems in favor of the ideal of architectural practice as "cosa mentale" produced a relative autonomy of the architectural design in relation to the architectural object. Initially guided by the balance between moderate invention and convention, assured by treaties like Vignola's, the act of designing has gradually oriented itself towards the exhaustion of possibilities of representation. It has reached the point where feasibility of execution of a design relies greatly on the development of computer softwares designed both for modeling and producing digital representation. The thesis claims that design theories are insufficient to account for the epistemological aspect of designing, and alternatively proposes a model based on Donald Schn's epistemology as well as on Ludwig Wittgenstein's philosophy of language, in particular on his concept of language games. This explanatory and operative model allows us to move forward in the construction of bridges" over the gaps, though some gap is inevitable given the nature of the act of designing. This thesis does not claim to have answered the issue definitely, but it has the intention of having contributed in shedding light on it.
Keywords: Architectural theory. Design theory. Epistemology. Representation. Language games.
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Lista de ilustraes
Figura 1 Mies van der Rohe - Landhaus in brick, 1924. Prancha mostrando
perspectiva e diagrama. Observe-se que da planta apresentada no se constri a
perspectiva. (Fonte: Stadt Kunsthalle, Mannheim) .......................................................... 24
Figura 2 Desenho de Le Corbusier para um museu de crescimento infinito, no incio
sem lugar definido, mas em 1939 h uma proposta no executada para Philippeville
(atual Skikda na Arglia). Consta ainda, relacionados com esta proposta, um projeto
para Bruxelas e texto intitulado "Cration d'un muse de la connaissance de l'Art
Contemporain" (1943). Fonte: Fondation Le Corbusier, F1-9 .......................................... 24
Figura 3 Le Corbusier, Kunio Maekawa, Junzo Sakakura e Takamasa Yoshizaka, 1959
(ampliao - Kunio Maekawa 1979): Museu Nacional de Arte Ocidental, Tquio. .... 25
Figura 4. Ilustrao antiga do Livro II, captulo 1, dos Dez Livros de Arquitetura de
Vitruvio, em que aparecem os homens ao redor do fogo, e a arquitetura representada
pela cidade ao fundo e a maquete. Fonte: Fac Smile de M.Vitruvius per Iocundum
solito castig atior factus cum figuris et tabula ut iam legi et intellegi possit, Veneza,
1511, C.N.R.S., Touluse, Frana. .......................................................................................... 35
Figura 5. A cabana primitiva segundo Laugier. Fonte: Frontispcio da obra "Ensaio
sobre Arquitetura", Laugier (1753) ...................................................................................... 36
Figura 6. Axonometria da Villa Savoye - Le Corbusier, 1929.Fonte: FRAMPTON,
2001, p.78 ................................................................................................................................. 43
Figura 7. Villa Savoye em foto de satlite- Le Corbusier, 1929- Fonte: Google Earth . 43
Figura 8. Casa Farnsworth, Plano Vicinity, Kendall County, Illinois, EUA. Fachadas
norte e oeste. Projeto de Mies van der Rohe, 1946. Fonte: Library of Congress -
Historic American Buildings Survey- HABS ILL, 47-PLAN.V, 1- .................................. 44
Figura 9. A traio das imagens, Ren Margritte, 1928-29 - Los Angeles County
Museum of Art. Fonte: Le muse de l'art, 1998. ............................................................... 45
Figura 10. Ledoux (1804) - Projeto para a casa do guarda fluvial, exemplo de
architettura parlante.Fonte : Bibliothque nationale de France, dpartement Estampes
et photographie, EST Ha-71b Fol. ....................................................................................... 48
Figura 11. Ledoux (1804) - Projeto para a "casa de prazer" (Oikma) em forma de
falo, exemplo de architettura parlante. Fonte: Bibliothque nationale de France,
dpartement Estampes et photographie, EST Ha-71b Fol. .............................................. 49
Figura 12. Robert Venturi - o "pato" e o "pavilho decorado". O "pato" o edifcio que
um smbolo e o "pavilho decorado" o convencional ao qual se aplica um smbolo.
Fonte: Venturi, 1978. .............................................................................................................. 49
Figura 13. Chiat/Day em Main Street, Venice, Califrnia. Frank Gehry, 1975-1991. O
binculo colocado na entrada uma concepo de Claes Oldenburg. Fonte:
http://learningfromtv.files.wordpress.com/2010/01/gehry_chiatday.jpg ................ 50
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Figura 14. Croquis de lvaro Siza para o projeto do Jardim Infantil Joo de Deus,
Penafiel, Portugal (1986). Fonte: Robbins, 1997, p. 62. ..................................................... 52
Figura 15. Alvro Siza, escola em Penafiel, Portugal - Projeto executivo. Fonte:
Robbins, 1997, p. 74. .............................................................................................................. 53
Figura 16: Vignola - Intercolnio da ordem jnica. Fonte: Universidade de
Heidelberg, Alemanha, Heidelberger historische Bestnde - digital : Bcher zur
Architektur und Gartenkunst. Disponvel em http://digi.ub.uni-
heidelberg.de/diglit/vignola1787 ...................................................................................... 59
Figura 17: Arquitrave da ordem jnica segundo Paldio. Fonte: Los Cuatro libros de
arquitectura (Palladio, 1988), ilustrao da pgina 100. .................................................. 60
Figura 18: Projeto para o bloco central do Castello de Rivoli. Detalhe de fachada
(acima) e de corte (abaixo). Projeto de Filipo Juvarra (1678-1736), projeto ca. 1720.
Fonte Collection of the Canadian Centre for Architecture, publicado em Blau e
Kaufman (1989) p. 326. .......................................................................................................... 61
Figura 19: Antonio Sant'Elia - projeto para a Citt Nuova , estao ferroviria central
e aeroporto. Fonte: Musei Civici de Como, publicado em Curtis (2008), p. 107. ......... 63
Figura 20: Erich Mendelsohn, projeto para observatrio conhecido como Torre
Einstein. Fonte: UAB Digital Collections, disponvel em
http://contentdm.mhsl.uab.edu/u?/arthistory,14679 ................................................... 65
Figura 21: Mercedes Benz Museum, UNStudio. Desenvolvimento da forma: Esboos,
diagrama e modelos virtual e fsico. Fonte Hemmerling e Tiggemann (2010) pgina
208. ........................................................................................................................................... 67
Figura 22: Mercedes Benz Museum, UNStudio; 3D paramtrico - geometria de
componente. Fonte Hemmerling e Tiggemann (2010), pgina 211. ............................... 68
Figura 23: Museu Guggenheim Bilbao, Frank Gehry, 1997. Estrutura de ao, malha
triangulada da forma externa do edifcio. Fonte Andrea Deplazes (2005), pgina 118.
.................................................................................................................................................. 69
Figura 24. A Origem da Pintura, por David Allan, 1773. Fonte:
http://projectionsystems.wordpress.com/2009/09/06/the-origin-of-painting/ ...... 73
Figura 25. A origem da Pintura - Karl Friedrich Schinkel, 1830. Boutades desenha na
rocha, sob a luz do sol, o perfil de seu amado. Quadro baseado na narrativa de Plnio,
o Velho, sobre o mito do surgimento da pintura. Fonte:
http://projectionsystems.wordpress.com/2009/09/06/the-origin-of-painting/ ...... 73
Figura 26. Esttua acfala de Gudea, prncipe de Lagash, Mesopotmia, Ca. 2100 A.C.
Esta esttua personifica o prncipe como o arquiteto do templo do panteo do Estado
de Lagash. A planta que se encontra na tabuinha est representada em projeo
ortogonal e mostra provavelmente o recinto do santurio de Ningirsu. Fonte: Museu
do Louvre, Paris. .................................................................................................................... 82
Figura 27. Reproduo das linhas desenhadas no Templo de Apolo em Didyma.
Fonte Encyclopaedia Romana Fonte :
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http://penelope.uchicago.edu/~grout/encyclopaedia_romana/greece/paganism/i
onicbase.jpg, adaptado de Haselberger, 1985. ................................................................... 82
Figura 28. Registros do fronto do Panteo de Roma (datados do ano 100 D.C.
aproximadamente). esquerda o desenho encontrado no piso do Mausolu de
Augusto e direita o fronto. Fonte: Haselberger, 1995. ................................................. 83
Figura 29. Planta do Mosteiro Beneditino de St. Gall, Sua, 816-830 d.C. Este desenho
no corresponde ao stio do mosteiro, de onde se deduz que poderia ter sido criado
como um mosteiro ideal a ser implantado em qualquer lugar da Europa, de acordo
com os preceitos dos beneditinos. Fonte: Codices Electronici Sangallenses (Digital
Abbey Library of St. Gallen) ................................................................................................ 83
Figura 30. Fachada de Notre Dame de Reims por Villard de Honnecourt (c. 1230).
Fonte: Bibliothque Nationale de France. Dpartment des Manuscrits, Division
occidentale, folio 31v. ............................................................................................................ 84
Figura 31. Desenho da fachada do Palcio Sansedoni (1340) em Siena, Itlia, que
acompanha o contrato para a execuo da obra. Fonte: Toker, 1985 ............................. 84
Figura 32. Desenho de Giotto para o Campanile do Duomo de Florena (esq.) e como
se encontra hoje (dir.) Fonte: Evans, 1986, p. 168 e o autor, respectivamente. ............. 85
Figura 33. Elevao em perspectiva do Cenotfio de Newton, 1784. Fonte
Bibliothque Nationale de France, disponvel em http://gallica.bnf.fr........................ 93
Figura 34. Modelo de Popper para explicar a maneira como os cientistas abordam os
problemas. P1 o problema inicial identificado; H a hiptese e EE a eliminao dos
erros; que levam a novos problemas P2; P3;... ................................................................... 98
Figura 35 - Ludwig Wittgenstein. Foto Moritz Nhr, 1930. Fonte:sterreichische
Nationalbibliothek (NB), disp. em
http://www.bildarchivaustria.at/Bildarchiv//BA/933/B1557521T12849461.jpg .. 113
Figura 36 - Casa Wittgenstein, Viena, 1928. Fonte: foto do autor ................................. 114
Figura 37 - Adolf Loos, Casa Mller, Praga, Repblica Tcheca, 1930. Fonte: Home
page da Villa Mller http://www.mullerovavila.cz/english/vila-e.html ................ 115
Figura 38 - Casa Wittgenstein - radiador de calefao da sala de desjejum projetado
por Ludwig Wittgenstein. Fonte: Leitner (2000), pgina 169. ....................................... 115
Figura 39. Ilustrao da figurao de Wittgenstein. As proposies so formadas pela
combinao de nomes que afiguram um estado de coisas no mundo, chamados de
fatos; dependendo da correspondncia entre a figurao e o fato figurado, a
proposio pode ser verdadeira (como no caso ilustrado simbolicamente) ou falsa.
Fonte: o Autor. ..................................................................................................................... 121
Figura 40 - A representao pode propor fatos que no tm possibilidade de
existncia no mundo, como por exemplo na litografia Subindo e Descendo, de M C
Escher (1960). Escher consegue esta iluso de tica pelo posicionamento do
observador em relao ao objeto da perspectiva que faz coincidir o ponto de partida e
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o ponto de chegada da escada. Fonte: http://www.mcescher.com/Gallery/recogn-
bmp/LW435.jpg ................................................................................................................... 131
Figura 41: Piranesi:Carceri, Prancha XI, 1761. Os Carceri de Piranesi so um exemplo
de representao de fatos possveis, ainda que imaginrios. Fonte: British Museum -
PD 1910-12-14-26 (Hind 11, Wilton-Ely 36). Trustees of the British Museum. ....... 132
Figura 42 Casa Wittgenstein, Viena, 1928. Implantao. Reproduo do projeto
original, fonte KAPFINGER, 1991, p. 15. ......................................................................... 149
Figura 43 -Casa Wittgenstein, Viena, 1928. Plantas baixas. Reproduo do projeto
original, fonte KAPFINGER, 1991, pp. 16-17. .................................................................. 150
Figura 44 - Casa Wittgenstein, Viena, 1928. Fachadas. Reproduo do projeto
original, fonte KAPFINGER, 1991. .................................................................................... 151
Figura 45 - Casa Wittgenstein, Viena, 1928. Cortes. Reproduo do projeto original,
fonte KAPFINGER, 1991 . ................................................................................................... 152
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SUMRIO
1 INTRODUO 12
2 O DISCURSO DA TESE 17
3 TEORIA 28
4 REPRESENTAR 33
5 PROJETAR 70
6 PROJETO E EPISTEMOLOGIA 95
6.1. O PROJETO COMO SOLUO DE PROBLEMAS E SUA CRTICA. 101
6.2. EPISTEMOLOGIA DA PRTICA: DONALD SCHN E A REFLEXO-NA-
AO 109
7 WITTGENSTEIN FILSOFO-ARQUITETO: O PROJETO COMO PROPOSIO E
COMO JOGO DE LINGUAGEM 113
8 CONCLUSES 130
REFERNCIAS 139
ANEXO 1 - PROJETO DE LUDWIG WITTGENSTEIN (CONHECIDO COMO CASA
WITTGENSTEIN) 149
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1 INTRODUO
A presente tese busca uma abordagem pragmtica1 da produo do projeto de
arquitetura, em especial uma abordagem baseada no conceito de reflexo-na-ao2 de
Donald Schn e no simplesmente numa instrumentalidade que tem se mostrado
eficiente para a soluo de problemas, porm ineficiente quando a questo
compreender e generalizar o conhecimento construdo no fazer projetual. A tese
aventura-se sobre um territrio que entre ns s recentemente vem sendo explorado
com o necessrio rigor, em particular pelo Programa de Pesquisa e Ps-Graduao
em Arquitetura da UFRGS. Inserida na linha de pesquisa Princpios e Paradigmas do
projeto em Arquitetura, a presente tese adicionalmente aprofunda um aspecto
particular da tese do Prof. Rogrio de Castro Oliveira: aquele que se prope a
explicar o ato projetual como um dos tantos jogos de linguagem (OLIVEIRA, 2000a,
p. 78-83). Os jogos de linguagem aqui referidos so as interaes comunicativas,
conforme enunciadas na obra de Ludwig Wittgenstein (ver abaixo, pgina 124), cuja
experincia pessoal com o fazer arquitetnico3 sugere plausveis e significativas
aproximaes entre a construo de seu pensamento filosfico e a prtica da
arquitetura, jogos fundados, um e outro, em figuraes de mundos possveis. .
Nossa tese de que o projeto tambm uma proposio, formada por outras
proposies as decises de projeto que se encadeiam em lgicas internas e
externas, as quais no dependem somente de uma correspondncia com uma
arquitetura ideal que se copia; nem encerram em si, de forma autnoma, todas as
suas razes. Ao contrrio, estas decises s tm sentido quando consideradas no
contexto que as originou, no que denominamos o jogo do projeto. Este contexto
1 Pragmtica aqui empregada para se referir ao, prtica projetual. No confundir com a pragmtica filosfica que se ocupa da aplicao das ideias e das consequncias prticas de conceitos e conhecimentos; nem com o conceito da prxis marxista.
2 Para este conceito ver pgina 88 abaixo.
3 Wittgenstein, como veremos mais adiante (pgina 107), projetou e construiu a casa de sua irm Margarethe Stonborough, conhecida hoje como casa Wittgenstein, em Viena (1928).
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inclui tanto as relaes intrnsecas entre as proposies parciais (decises de projeto)
quanto s relaes entre o projeto como um todo (tomado como uma proposio) e os
fatos.
Dito assim poder-se-ia pensar que todo o jogo, ao no ter um padro externo
absoluto de validao, constitui um universo particular, ou, de outra forma, que um
jogo de projeto no se relaciona tambm com outros jogos de projeto. Pergunto: o que
faz com que reconheamos as regras de um jogo desta natureza? Ou ainda o que
faz com que reconheamos em diferentes projetos a mesma qualidade que torna
possvel identific-los como pertencentes ao mesmo universo da arquitetura?
Wittgenstein nos fala de uma semelhana de famlia4 entre os jogos de linguagem:
Em vez de indicar algo que comum a tudo aquilo que chamamos de linguagem,
digo que no h uma coisa comum a esses fenmenos, em virtude da qual
empregamos para todos a mesma palavra, - mas sim que esto aparentados uns com
os outros de muitos modos diferentes. (WITTGENSTEIN, 1999, p. 52). Mais adiante
diz: No posso caracterizar melhor essas semelhanas do que com a expresso
semelhanas de famlia; pois assim se envolvem e se cruzam as diferentes
semelhanas que existem entre membros de uma famlia: - E digo: os jogos
formam uma famlia (Idem). Esta posio deixa de lado qualquer tentativa de
chegar-se a uma essncia comum a todos os jogos e, em nosso caso, a todos os jogos
possveis de projeto, pois a semelhana que funda o pertencimento a uma
determinada famlia so certas coincidncias, mas no necessariamente as mesmas5.
Mas por que substituir uma viso terica por outra? Parece-nos que o
deslocamento da questo da caracterizao do projeto como soluo (instrumental)
de problemas, para a concepo do projeto como construo de proposies com
4 O termo semelhana de famlia pode tambm ser denominado, como nos parece mais apropriado de ar de famlia, no original, em ingls family resemblance.
5 Por exemplo: alguns membros de uma famlia podem ter a mesma cor de cabelos, outros a mesma cor dos olhos, outros ainda a mesma cor de cabelos e de olhos, mas nenhuma destas caractersticas por si s definitiva. Parece que esta superposio de alguns caracteres que so compartilhados de forma difusa configura este ar de famlia.
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significado, ou seja, retornando a Wittgenstein, inseridas como jogos de linguagem em
uma forma de vida6, corresponde a um giro importante e necessrio na questo,
especialmente quando a preocupao volta-se para os processos atravs dos quais
so estabelecidos nveis de organizao do conhecimento e desenvolvidas as
habilidades e competncias necessrias ao projetar. Em suma, quando intervm o
problema terico de delimitar uma epistemologia do projeto arquitetnico. Em
paralelo com a concepo da linguagem das Investigaes filosficas, o projeto
mantm-se como uma forma de descrio de um mundo possvel. A natureza de sua
relao com o real, no entanto modifica-se profundamente, pois se insere como parte
de uma forma de vida (lebensform) e torna-se dependente do contexto de sua
produo.
Como aproximar estas concepes ao ato projetual? Parece que aqui se encerra
a questo fundamental do projeto: visto como representao que guarda relao
referencial com o seu objeto final a obra de arquitetura o projeto depara-se com a
impossibilidade de uma representao perfeita, que contenha todos os aspectos, de
forma a estabelecer uma relao. Neste sentido o projeto aproximado da proposio
lgica, uma afirmao que guarda correspondncia aos fatos que figura7. Essa
concepo reafirma a autonomia do projeto em face de uma causa necessria e
determinante (como seria, caso houvesse a possibilidade de um funcionalismo
estrito), ao mesmo tempo em que nega uma completa arbitrariedade, pois o torna
dependente do contexto das aes projetuais e do fato que prenuncia, isto ,
permanece contingente8. Como proposio, deve ser verificvel, se no
6 Forma de vida tambm um conceito de Wittgenstein (ver abaixo a pgina 109). Para Wittgenstein a forma de vida um entrelaamento de cultura, viso de mundo e linguagem. O autor usa este termo para delinear os variados contextos (os conjuntos das atividades comunitrias) em que esto imersos os jogos de linguagem (GLOCK, 1998, pp. 173-178), portanto os jogos de linguagem so indissociveis das prticas sociais e culturais.
7 O conceito de figurao outro que tem origem na obra de Wittgenstein (2001, 2.1, p. 143). Para a figurao ver abaixo a pgina 97 e seguintes, ver tambm Giannotti (1995), em especial pgina 27 e ss.
8 Entenda-se contingente o evento natural ou humano que se caracteriza por sua indeterminao e imprevisibilidade. Neste sentido no se trata do aleatrio, mas de uma
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empiricamente, ao menos em sua forma lgica, sendo a forma lgica de uma
proposio o universo de suas possibilidades de atualizao. De pronto se descarta a
experincia emprica como nico termo capaz de afianar a validade do projeto, pois
a forma lgica da proposio independe da experincia concreta e pode
perfeitamente apoiar-se em construes formais que incluam um sistema de relaes
forma contedo.
O caminho percorrido na construo desta tese passa pela anlise crtica de
textos, ou seja, de uma hermenutica que, cotejada com a experincia prtica do
ofcio e com os fundamentos tericos e disciplinares da arquitetura, leve
formulao de uma possvel teoria do projetar arquitetnico. Os textos fundamentais
para o estudo da pertinncia e da aplicabilidade dos conceitos de figurao e jogo de
linguagem ao projeto arquitetnico so o Tractatus e as Investigaes Filosficas de
Wittgenstein e, secundariamente outras obras do mesmo autor como Da Certeza
(WITTGENSTEIN, 2000b) e Gramtica Filosfica (WITTGENSTEIN, 2003). No outro
polo da investigao fundamental que compaream os textos de Alexander (1976a;
b; 1980) e de Simon (1973; 1981), bem como os artigos publicados pelo peridico
Design Studies, cuja linha editorial aproxima-se dos estudos sobre mtodos de projeto.
A relao entre o Wittgenstein filsofo e o Wittgenstein arquiteto encontra-se na obra
de Nana Last (LAST, 1999). De especial interesse so tambm as obras
epistemolgicas de Piaget; Kuhn; Popper; Foucault. Uma aproximao entre a
epistemologia construtivista e a arquitetura encontramos em Rogrio de Castro
Oliveira (2000a), que por sua vez faz referncia a um possvel construtivismo em
Wittgenstein. A obra de Donald Schn (1983; 1993; 2000), por sua vez, fornece
algumas chaves para se compreender os aspectos cognitivos envolvidos no atelier de
projetos, que por certo tem especial interesse para a tese.
Este conjunto de referncias so instauradoras da argumentao que sustenta
as proposies aqui defendidas e trazidas como fundamento de um ponto de vista
situao que, opondo-se ao necessrio ou ao impossvel, deixa em aberto sua atualizao (transformao de possibilidade em ato) em acontecimento futuro (LALANDE, 1999, p. 204).
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cuja pretendida coerncia , nesta tese, sua prpria justificativa. Nesse sentido, as
referncias no foram reunidas ao acaso, mas configuram uma judiciosa seleo de
diferentes contextos discursivos que constituem, na sua heterogeneidade, uma
formao discursiva, no sentido atribudo a esta expresso por Foucault: uma
disperso de enunciados que compartilham um mesmo sentido, o qual se manifesta
no uso que se faz deles no mbito da argumentao. As relaes textuais que armam
o arcabouo desta investigao so, portanto, elas mesmas parte integrante da tese,
pois no existem a priori, mas so fruto da prpria trajetria da investigao aqui
exposta. Tomadas em conjunto, desenham o territrio a partir do qual, e sobre o qual,
se estrutura a reflexo sobre o projeto que anima a reflexo, aqui proposta, sobre a
configurao epistmica do conhecimento projetual.
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2 O DISCURSO DA TESE
O trabalho em filosofia - tal como muitas vezes o trabalho em arquitetura , na realidade, mais um trabalho sobre si prprio. Sobre a nossa prpria interpretao. Sobre a nossa maneira de ver as coisas (E sobre o que delas se espera). Ludwig Wittgenstein (2000a, p. 33)
Entendo que, nas artes que no so puramente mecnicas, no basta saber trabalhar, importante acima de tudo saber pensar9. Marc Antoine Laugier (1753, p III)
Esta tese tem como objeto de estudo o projeto de arquitetura. Enuncia-se um
ponto de vista cujos fundamentos remetem concepo da prtica projetual como
jogo de linguagem, na acepo proposta por Ludwig Wittgenstein em Investigaes
Filosficas (1999). Esta escolha no surge a priori no contexto da tese, mas constitui
recurso terico capaz de esclarecer aspectos operativos do projeto frequentemente
negligenciados ou pouco estudados. As razes para adoo desse panorama terico
como pano de fundo da argumentao sero progressivamente desveladas ao longo
do texto.
O projeto tem papel central na produo arquitetnica, em especial quando se
considera sua funo constitutiva e fundadora da tradio Albertiana (considere-se
aqui como dada a persistncia desta tradio at os dias atuais10). Seria desnecessrio,
por redundante, recorrer a uma justificativa extensa quanto pertinncia deste objeto
de estudo para a tese. Porm, se a arquitetura est certa e intimamente relacionada ao
ato projetual, alguns dos preceitos da maneira como entendemos esta relao, dados
como evidentes, merecem um questionamento mais cuidadoso.
9 Il me semble que dans les arts qui ne sont pas purement mchaniques, il ne suffit pas que lon sache travailler, il importe sur-tout que lon apprenne penser. - No original. H tambm uma traduo desta obra para o Espanhol (LAUGIER, 1999).
10 Sobre a atualidade de Alberti ver a tese de Ronaldo Strher (2006).
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18
Ao projetar seguimos uma tradio que h mais de 500 anos, no mnimo,
propugna pela separao fundamental para a arquitetura entre o fazer mecnico e o
pensar. J afirmava Leon Battista Alberti em seu tratado De Re Aedificatoria,
apresentado ao papa Nicolau V em 1452 e publicado pela primeira vez em 1485:
creio que h de explicar que caractersticas deve reunir, em
minha opinio, o arquiteto. De fato, no vou considerar como tal a um carpinteiro, a quem poderias colocar no nvel dos homens mais qualificados das demais disciplinas: pois a mo de um obreiro serve de ferramenta ao arquiteto. Eu, de minha parte, vou considerar que o arquiteto ser aquele que com um mtodo e um procedimento determinados e dignos de admirao haja estudado o modo de projetar em teoria e tambm de levar a cabo na prtica qualquer obra que, a partir do deslocamento dos pesos e a unio e encaixe dos corpos, se adeque, de uma forma belssima, s necessidades humanas. Para torn-lo possvel, necessita da inteleco e do conhecimento dos temas mais excelsos e adequados.11 (ALBERTI, 1991, p. 57)
Esta obra, que Franoise Choay classifica como texto instaurador12,
considerada marco histrico para a criao de uma disciplina autnoma da
Arquitetura. Reveste-se de importncia o estabelecimento da distino entre o fazer
com a mo e o conceber e que no era to clara assim na cultura medieval europeia.
Alberti define o Arquiteto como Artista e a Arquitetura como arte que se destaca da
11 creo que he de explicar qu caractersticas debe reunir, en mi opinin, el arquitecto. En efecto no voy a considerar como tal a un carpintero, a quien t podras poner a la altura de los hombres ms cualificados de las restantes disciplinas: pues la mano de un obrero le sirve herramienta al arquitecto. Yo, por mi parte voy a convenir que el arquitecto ser aquel con un mtodo y procedimiento determinados y dignos de admiracin haya estudiado el modo de proyectar en teora y tambin de llevar a cabo en la prctica cualquier obra que, a partir del desplazamiento de los pesos y la unin y el ensamblaje de los cuerpos, se adecue, de una forma hermossima, a las necesidades de los seres humanos. Para hacerlo posible, necesita de la inteleccin y el conocimiento de los temas ms excelsos y adecuados.. No original (Idem)
12 Quanto ao significado deste termo, Choay bastante precisa ao explicitar o objetivo destes textos que a constituio de um aparelho conceptual autnomo que permita conceber e
realizar espaos novos e no aproveitados. (CHOAY, 1985, p 6). A autora faz ainda a ressalva de que o termo instaurador no se refere fundao de um campo cientfico, mas, em nossa opinio, no caso de Alberti parece ter havido o nascimento de um novo campo do conhecimento, seno cientfico ao menos no sentido de uma epistemologia.
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19
simples prtica, transcendendo o fazer mecnico13 (RIVERA, 1991, p. 29). Podemos
ento afirmar que desde este momento inaugural o projeto tambm pensamento14,
coisa mental.
Para ns, a concepo atual deste tema est longe da viso romntica do gnio
criador pela qual este pensamento surge do nada, como uma ideia preconcebida. O
pensamento mediado por uma disciplina que estabelece os seus limites de
pertinncia (um corpus) e suas regras; elaborado por um processo que pressupe
um aprendizado desta disciplina (formal ou informalmente) e uma organizao
muito particular do conhecimento, que alguns autores denominam de pensamento
projetual.
Qual a natureza do conhecimento transmissvel implicado no projetar? Ao
analisar as virtudes (ou excelncias) humanas Aristteles divide-as em virtudes
ticas, que nascem do hbito, e virtudes dianoticas (ou tericas), que tem sua origem
na razo e podem ser ensinadas (ARISTTELES, 2009, Livro II, 1103a14, p. 40).
Destas ltimas (dianoticas) diz que existem cinco : o conhecimento cientfico
(episteme) que leva ao conhecimento do universal a partir dos fatos; a tcnica15
(techne), que leva ao conhecimento sobre o como fazer, cujo objetivo a produo; a
sensatez ou prudncia16 (phronsis), conhecimento que, baseado no bom senso e na
razo, leva ao visando o bem comum; a inteligncia (nos), que a portadora do
13 A propsito, veja-se a afirmao de Laugier, citada na epgrafe deste captulo.
14 Esta afirmao deve ser matizada devidamente, pois toda a ao humana que tem uma finalidade, mesmo sendo executada com as mos, tambm fruto de um pensamento, ou ao menos pressupe uma reflexo.
15 Na referncia utilizada a traduo percia sendo que algumas vezes ainda este termo substitudo pela palavra arte, mas no contexto da discusso as tese parece-nos que tcnica, pelas conotaes que tem no campo da arquitetura, mais adequado.
16 Alguns autores consideram esta traduo pouco precisa (ADORNO, 1988), pois a phronsis um conhecimento prtico, oposto o contemplativo, mas que no se confunde com a astcia, pois visa o bem comum e no meramente uma forma de ao sem maiores consequncias. Curioso notar que este termo parece estar pouco presente nas discusses atuais, sendo privilegiada a dicotomia arte / cincia.
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20
conhecimento; e a sabedoria ou Sophia, que rene cincia e inteligncia, sendo
necessria para as mais elevadas aes e reflexes. Entre estas cinco, as trs primeiras
virtudes envolvem o desenvolvimento de formas de conhecimento que se relacionam
particularmente ao projetar17, considerada a pertinncia desta distino, pois ainda se
fazem presentes nos debates sobre o fazer da arquitetura. Seria a arquitetura cincia?
Seria arte-tcnica? Ou a ao prudente?
A cincia pressupe a observao de fatos e a formulao de universais,
vlidos em qualquer tempo ou lugar, envolve o saber por que; a tcnica j envolve
uma situao especfica, mas atm-se ao saber como; a prudncia, envolvendo
tambm uma situao especfica e no universal, articula tanto a cincia quanto a
tcnica e dirige sua ao para o bem. O projeto e o conhecimento mobilizado para a
soluo dos problemas de arquitetura no podem ser considerados como uma busca
de universais, visto serem sempre resultado de uma situao especfica que se coloca
de incio (programa, lugar, etc.), por outro lado o projeto no lida com um fato
observado, mas, ao contrrio, prope fatos possveis, portanto no se reduz ao
conhecimento cientfico18, muito embora este conhecimento seja necessrio para a
compreenso dos fenmenos fsicos - a cincia est tambm presente no projetar. O
conhecimento projetual compartilha com a tcnica o fato de ser particular e no
universal; ao mesmo tempo o saber como tambm necessrio para que se
viabilize o possvel do projeto, porm neste caso falta-lhe o critrio de julgamento
para guiar a tomada de deciso e chegar a uma boa "soluo" em uma situao
especfica. Resta dos trs a prudncia que combina o conhecimento tcnico-cientfico
com o propsito que visa ao bem comum e que parece ser o aspecto mais importante
quando se pensa no ato de projetar. Concluindo: o projeto no s cincia, nem s
tcnica, tambm phronsis (KIRKEBY, 2009), utilizando-se este termo grego para
despi-lo de conotaes que deformem sua acepo original, embora muitas vezes nos
17 Obviamente a inteligncia e a sabedoria so essenciais produo da boa Arquitetura, mas destacamos estas por suas particularidades em relao ao tema da tese.
18 Considerando-se, de forma muito simplificada, o conhecimento cientfico como puramente factual.
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21
deparemos com a discusso redutora que coloca a Arquitetura somente entre arte e
tcnica.
Por vezes a posio tecnicista parece ser dominante, mas o tema bem mais
complexo e tem consequncias bastante profundas. Nesta mesma direo vemos
Donald Schn, em seu livro The reflective practitioner (1983), combater a proeminncia
do pensamento puramente tcnico-cientfico como panaceia para os problemas da
sociedade (que denomina racionalidade tcnica, conceito de origem em Max
Weber19). Schn baseou-se, entre outros, em estudos feitos em atelis de escolas de
arquitetura para formular seu conceito de Reflexo-na-ao, uma epistemologia da
prtica construtivista que se revelou em sua pesquisa, e que dava conta de explicar
como as atividades profissionais lidam com a complexidade dos novos problemas e
de suas consequncias. Este pensamento encontra-se muito mais prximo de uma
ideia de phronsis do que de uma tcnica ou de uma cincia.
Em oposio s judiciosas objees de Schn, a f na capacidade da tcnica
parece ter tomado novo flego na prtica contempornea da arquitetura com a
introduo de novas tecnologias da informao e comunicao, na promessa de um
mundo ordenado e controlado. Nesta perspectiva, o projeto visto como um esforo
para ordenar e controlar tecnicamente a produo da arquitetura (mas no
necessariamente um instrumento de controle social). Decorre da a tentao de
identificar as possibilidades de potencializar este controle tcnico, atravs da
incorporao de ferramentas computacionais ao prprio processo projetual: pareceria
ento possvel reduzir a prtica do projeto aplicao de um mtodo impessoal e
eficiente (racionalizado). Contra esta posio, contudo, alinham-se os argumentos
desta tese, embora nem tanto pelas questes operativas suscitadas pelo uso da
computao em si, cuja natureza no difere muito de outros instrumentos tcnicos
19 Ver A tica Protestante e o Esprito do Capitalismo. (WEBER, 2004)
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22
que acompanham a consolidao da atividade projetual como a geometria descritiva
e a perspectiva20.
Em outras palavras: esta tese ope-se a uma noo de projeto tomado
simplesmente como meio; neste caso, o projeto reduz-se ao mtodo e a metodologia
passa a se confundir com a disciplina projetual. Na concepo estritamente
metodolgica, o projeto apenas caminho, sequncia de procedimentos que, uma
vez aplicada de forma conveniente, conduz ao resultado esperado. A eficcia do
projeto-mtodo, ideia contra a qual nos posicionamos, s pode ser medida por
comparao com o resultado obtido, portanto quando no se concretiza na
representao de um novo objeto arquitetnico (concebido em qualquer escala, em
um contexto que lhe prprio e que atribui a ele um carter local) um caminho
interrompido. Ao contrrio, o projeto pensamento que formula uma possibilidade
de ao sobre o mundo e como tal contm em si tambm o germe das possveis
consequncias desta ao, reduzido ao mtodo perde-se a perspectiva de seu
entendimento de uma tica construtivista em que o papel do sujeito cognitivo
preponderante para o estabelecimento dos parmetros que norteiam as escolhas dos
possveis.
Apesar de seu objetivo implcito21 o projeto, como vimos, pode ser
considerado como atividade relativamente autnoma e esta condio paralela, de
totalidade independente de outras atividades que lhe advenham, fundamental para
que tenha um sentido quando no se concretize em obra construda. Constata-se esta
autonomia, que coloca em cheque a viso simplista do projeto como subsidiria do
construir, atravs da anlise de certos projetos significativos que tm uma influncia
notvel sobre a produo arquitetnica, tanto terica quanto prtico-projetual.
Tratam-se de projetos que, apesar de pouco desenvolvidos (muitas vezes desenhos
20 A bem da verdade a aplicao de invenes tcnicas como estas (e outras) no se deram sem consequncias para a arquitetura, assim como seus surgimentos encontram-se em consonncia com o pensamento de determinada poca. A propsito, ver Alberto Prez-Gomes e Louise Peletier (1997)
21 Todo projeto, pressupe-se, quer em menor ou maior grau ser outra coisa que no projeto.
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23
de ilustrao de uma ideia22), foram interpretados como se fossem projetos
plenamente desenvolvidos e discutidos como tais, ou mesmo tiveram o potencial de
gerar efetivamente projetos que chegaram ao seu termo. Sonit Bafna (2008) analisa o
interessante caso das casas de campo em alvenaria de tijolos de Mies van der Rohe
(um dos cinco projetos que Mies desenvolveu e publicou aps a Primeira Guerra
Mundial quando abandonou o ecletismo mimtico e aderiu abstrao
construtivista23), observa que os nicos registros remanescentes deste projeto so os
dois microfilmes dos desenhos abaixo (Figura 1) e que, apesar da incongruncia entre
perspectiva e planta apresentada e da pouca informao que fornece, o projeto foi
muito debatido pela crtica. A este, pode-se acrescentar, exemplificando, o Museu
de crescimento ilimitado de Le Corbusier (Figura 2) que explora a questo do
percurso, tomando como referncia a geometria da espiral equiangular e o
crescimento natural do molusco do gnero Nautilus24. O prprio Le Corbusier
desenvolveu projetos de museus partindo desta concepo, deixando ainda um
legado de projetos nela baseados por outros conhecidos arquitetos como Josep Lluis
Sert e Junzo Sakakura25 (MONTANER, 2003). Antony Moulis (2002), em
levantamento efetuado na obra Corbusiana, enumera um total de 23 projetos entre
22 O potencial destes desenhos talvez se deva ao seu carter de diagrama.
23 Em Berlim, Mies conheceu o cineasta dadasta Hans Richter, juntando-se ao seu crculo intelectual. Richter, El Lissitzky e Werner Graff criaram a revista G:material zum elementaren Gestaltung, na qual Mies publicou os cinco projetos citados: dois arranha-cus de vidro (1921 e 1922), um edifcio de escritrios de oito pavimentos de concreto armado (1922), uma casa
de campo em concreto trrea (1922) e a casa de campo de tijolos (1924). Ademais os
projetos exploram as possibilidades tcnicas, construtivas e expressivas dos materiais. (COLQUHOUN, 2005, p. 173-74)
24 Le Corbusier estava provavelmente influenciado pelas teorias de DArcy Thompson sobre os modelos matemticos que explicam o crescimento dos seres vivos (CURTIS, 1999; MOOS, 2009 , p.265). Encontram-se no captulo XI da sua obra On growth and form (THOMPSON, 1992, pp. 749 e 754), publicada pela primeira vez em 1916, uma radiografia de um Nautilus e desenho de espiral bastante semelhante aos de Le Corbusier aqui apresentados na figura 2.
25 Respectivamente: Fundao Maeght (Saint-Paul-de-Vance, Frana, 1964) e Fundao Joan Mir (Barcelona, Espanha, 1975) de Sert, e museu de Arte Moderna (Kamakura, Japo, 1951) de Sakakura. Curioso notar que Afonso Eduardo Reidy convidou Le Corbusier para implantar o museu de crescimento ilimitado no Museu da Cidade, previsto em seu projeto do centro administrativo do Rio de Janeiro.
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24
museus e outros que, segundo o autor, apresentam um parentesco com o referido
projeto (sua relao vai da Villa La Roche de 1923 at o Muse de loitissiment, de 1965).
Entre estes esto trs museus efetivamente construdos: Chandigarh, Ahmedabad e
Tquio (Figura 3).
Figura 1 Mies van der Rohe - Landhaus in brick, 1924. Prancha mostrando perspectiva e diagrama.
Observe-se que da planta apresentada no se constri a perspectiva. (Fonte: Stadt Kunsthalle,
Mannheim)
Figura 2 Desenho de Le Corbusier para um museu de crescimento infinito, no incio sem lugar
definido, mas em 1939 h uma proposta no executada para Philippeville (atual Skikda na Arglia).
Consta ainda, relacionados com esta proposta, um projeto para Bruxelas e texto intitulado "Cration
d'un muse de la connaissance de l'Art Contemporain" (1943). Fonte: Fondation Le Corbusier, F1-9
-
25
Figura 3 Le Corbusier, Kunio Maekawa, Junzo Sakakura e Takamasa Yoshizaka, 1959 (ampliao -
Kunio Maekawa 1979): Museu Nacional de Arte Ocidental, Tquio.
Esta relativa autonomia tem consequncias. O projetar, o ensino da arquitetura
e a formao do arquiteto esto intimamente relacionados, ocorrem quase que
inteiramente pela sua prtica nos atelis das escolas e escritrios de arquitetura e
muito raramente pela prtica direta no canteiro de obras. Mesmo os estgios
(curriculares ou no) so atividades de observao e no de prtica efetiva.
Os meios de comunicao, por sua vez, tratam das questes arquitetnicas
tambm se valendo de representaes, em especial figurativas. bvio que os textos
tm seu papel26 como transformadores da maneira que so recepcionadas estas
representaes e dos seus sentidos. Aqui parece haver um caminho inexplorado nos
estudos sobre as relaes interdisciplinares da arquitetura e da comunicao, qual
seja: o da anlise do discurso das publicaes e seus efeitos sobre a recepo e
produo da arquitetura e que forosamente passa por processos de representao,
26 A intertextualidade, se considerarmos elementos figurativos inseridos em texto escrito como sendo tambm elementos textuais, notvel nos meios de comunicao quando apresentam temas de arquitetura, em particular na literatura no especializada. Para estudo sobre estas relaes no caso particular de um caderno de jornal dirio, ver nossa dissertao de mestrado O habitar na mdia(DURO, 2002)
-
26
mas um caminho que necessitaria de outro enfoque distante da questo projetual,
como aqui se pretende tratar.
A problemtica da tese centra-se tambm nas relaes entre o projeto e a
questo da representao, da qual se serve para a sua efetivao. Para o senso
comum a representao um espelho perfeito que estabelece relaes isomrficas
entre o que representado e o que o representa. Visto desta maneira simplista, a
representao , por substituio, fonte de conhecimento emprico, de sinais emitidos
pelo objeto e captados de forma passiva pelo sujeito. Nesta simetria indiferenciada
no h lugar para uma distino significativa entre o projetar, entendido como uma
forma de representar, e o construir, entendido como produo do objeto
representado; e o projeto assume uma posio subsidiria frente ao ato construtivo
para a produo da arquitetura. Consequentemente o projetar parece ser uma etapa
intermediria e descartvel do processo de produo arquitetnica, uma vez que se
cumpra o seu papel de substitutivo, ou, por outro lado, uma vez que no se cumpra
este papel torna-se intil e sem sentido.
Esta tese prope como soluo problemtica levantada a tica da
epistemologia da prtica proposta por Donald Schn (SCHN, 1983; 2000); esta, no
entanto, carece de formulao terica mais consistente sobre o ato projetual, lacuna
que preenchemos partindo de uma aproximao com os jogos de linguagem, tal
como proposta pelo filsofo Ludwig Wittgenstein.
De antemo coloca-se a questo sobre a pertinncia da aproximao da
Filosofia com a Arquitetura e da consequente relao entre estas disciplinas. Esta
relao evidente se tomarmos em conta o olhar filosfico sobre a arte em geral a
Esttica. Os filsofos que se ocuparam da definio do belo27 e, mais recentemente,
das questes estticas28 no deixaram de tratar da arquitetura, como se pode
27 Especialmente posteriores ao dilogo Platnico Hpias Maior (PLATO, 2000)
28 Esta distino deve-se ao fato de que o termo Esttica s surge como conhecemos hoje depois de Baumgarten (1993) que foi o primeiro a formular a cincia do Belo por volta de 1750, como uma parte da Filosofia (BAYER, 1979, p. 180)
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27
constatar, entre outros, em Kant (1993b; a) e Schopenhauer (2003, p. 127-148; 2005,
p.288-292). Mais recentemente muitos filsofos e pensadores modernos e ps-
modernos tambm abordaram as questes da arquitetura, ou estreitamente ligadas
ao campo da arquitetura, como podemos encontrar na compilao de textos da obra
Rethinking Architecture: A reader in cultural Theory (LEACH, 1997)29 que, embora no
seja exaustiva, d-nos uma ideia das aproximaes possveis entre Filosofia e
Arquitetura. Em lngua portuguesa cabe notar a obra Arquitetura e Filosofia
recentemente publicada (PULS, 2006).
Esta tese parte da constatao que as teorias sobre a atividade projetual hoje
aceitas, largamente assentadas na ideia do projeto como metodologia para resoluo
de problemas, no so capazes de dar conta do complexo panorama em que se
desdobra esta atividade. Por certo o projetar envolve a resoluo de problemas, mas
sua aplicabilidade limitada a problemas parciais que, somados, no garantem o
sucesso da atividade projetual como um todo. Torna-se necessria uma teoria que,
sem ignorar a importncia de uma heurstica, permita a explorao de outras
possibilidades capazes de qualificar a atividade projetual, tanto na prtica
profissional quanto no ensino da arquitetura.
29 Entre os autores compilados encontram-se Theodor Adorno; Georges Bataille; Walter Benjamin; Ernst Bloch; Siegfried Kracauer; Georg Simmel; Gaston Bachelard; Martin Heiddeger; Hans-Georg Gadamer; Henri Lefebvre; Gianni Vattimo; Roland Barthes; Umberto Eco; Jean Baudrillard; Jrgen Habermas; Fredric Jameson; Jean-Franois Lyotard; Gilles Deleuze; Jacques Derrida; Michel Foucault e Paul Virilio.
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28
3 TEORIA
Na sua origem, a palavra grega teoria (Qewra) significa viso de um
espetculo, viso intelectual, especulao (LALANDE, 1999, p. 1127). Na antiga
Grcia, a theoria30 era uma prtica cultural em que um indivduo (o theoros) fazia uma
peregrinao por outras cidades para assistir a certos espetculos e eventos (sendo
em muitos casos enviados na condio de representantes diplomticos); na volta
trazia um relatrio oficial do que testemunhou. (NIGHTINGALE, 2004,p. 40). Por
analogia, Plato em seu mito da caverna faz com que um theoros saia das trevas e
contemple a verdade numa jornada-teoria, aludindo questo de que o
conhecimento de fato das coisas s poderia se dar pela contemplao do filsofo que
tem uma viso privilegiada, diferente do senso comum31 (PLATO, 2006, Livro VII,
p. 263).
Atualmente o termo teoria empregado num espectro que vai do
conhecimento cientfico at uma opinio sem comprovao alguma. O significado do
termo aplica-se em oposio ao de prtica (teoria versus prtica) por constituir um
conhecimento que no visa necessariamente aplicao, constituindo-se em
conhecimento desinteressado; no campo da cincia um conhecimento, fruto de
concepo metdica, organizada, formalmente dependente de convenes cientficas,
que no pertence ao senso comum. Mais genericamente o seu significado de uma
construo hipottica, opinio de um cientista ou filsofo sobre uma questo
controversa, que se ope ao conhecimento tido como certo; ou uma sntese
abrangente que visa explicar uma gama considervel de fatos, independentemente
da especificidade de cada um. Em sentido pejorativo, uma concepo
excessivamente simplificada sobre os fatos e que se fundamenta mais no preconceito
e na imaginao que na razo, da qual no se tiram concluses plausveis que
possam ser aplicadas realidade. Apesar da pluralidade de significados atribudos
30 Forma como poderia ser transliterada a palavra para nosso alfabeto latino
31 Este seria o rei-filsofo da sua Repblica.
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29
ao termo poderamos dizer que a teoria Construo especulativa do esprito, que
liga consequncias a princpios (LALANDE, 1999, p. 1127 -28), o que no exclui o
engano do sentido depreciativo explicitado acima. Uma teoria uma tentativa de
descrever, explicar e prever determinado fato.
As teorias em geral podem ser classificadas em duas categorias: teorias
positivas e teorias normativas. Uma teoria positiva aquela que estabelece nexos de
causa e efeito do fenmeno observado e por isto capaz de prever comportamentos
futuros em situaes semelhantes, tais como as teorias das cincias naturais que
tentam ser uma descrio objetiva do mundo como . As teorias normativas no
lidam com fenmenos observveis, mas com as possibilidades de criao de um
objeto, neste sentido elas tratam de estabelecer os parmetros a serem seguidos para
a soluo do problema de dar forma a este objeto, de concretiz-lo (JOHNSON, 1994).
O termo teoria est vinculado disciplina da arquitetura desde seu texto
inaugural o tratado de Vitrvio onde est definido que a arquitetura teoria e
prtica: A Arquitetura prtica e terica(VITRUVIO, 1992, Cap. I, p. 2). Mas o
que seria exatamente uma teoria da arquitetura, ou mais precisamente uma teoria do
projeto arquitetnico?
Antes de se discutir o que seria uma teoria do projeto arquitetnico temos que
estabelecer os fundamentos do que seria uma teoria da arquitetura. Hanno-Walter
Kruft (1990, p. 13 e ss.) chama a ateno para a profunda interdependncia das
teorias da arquitetura com o seu contexto histrico. Kruft descarta uma teoria que
pudesse ser aplicada ao fenmeno arquitetnico independente da considerao do
momento em que surge e de forma abstrata. Como critrio compreensivo define
teoria da arquitetura como a reflexo sobre a arquitetura, formulada em texto32. Sabe-
se que nem todo o texto terico sobre arquitetura sobreviveu ao tempo e que nem
32 Texto deve se entendido aqui em sentido amplo, no excluindo a figura. A caracterstica fundamental a inscrio.
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30
toda formulao terica sobre a arquitetura foi e registrada sob a forma textual33. A
natureza indissocivel do fazer projetual arquitetnico, ao mesmo tempo reflexivo e
prtico34, faz supor que entranhado em toda obra de arquitetura digna deste nome
haja um tanto de elaborao terica, de tal maneira que se poderia (re)construir a
teoria partindo da anlise das obras, mais ou menos como reescrever a teoria
perdida. No entanto, as empreitadas neste sentido tm se mostrado muito
problemticas por refletir mais as ideias de quem as formula do que o pensamento
daquela poca, como demonstram as tentativas de resgatar a teoria da arquitetura
gtica e mesmo pr vitruviana. Por fim Kruft chega a formular uma definio da
teoria da arquitetura como todo o sistema geral ou parcial sobre arquitetura
formulado por escrito e que se baseia em categorias estticas (Idem, p.16).
Hlio Pin, em recente publicao, equipara a sua Teoria do Projeto
exposio dos fundamentos estticos da modernidade. Diz o autor: Esboar uma
teoria da modernidade equivale a propor uma teoria do projeto: no se pode abordar
a primeira sem entrar necessariamente na segunda (2006, p. 12). A seguir apresenta
sua definio da teoria: Uma teoria do projeto ser, portanto, um conjunto coerente
de critrios para abordar os problemas apresentados pela concepo e configurao
de arquiteturas concretas, isto , um sistema de atitudes e critrios para abordar o
projeto35 desde uma perspectiva esttica concreta (Ibidem, p. 218). Suas concepes
em muitos pontos coincidem com as posies aqui adotadas, porm, apesar da
ressalva de que sua teoria no uma srie de prescries cuja aplicao
minuciosa possa conduzir a projetos satisfatrios , o texto tem um carter
doutrinrio que o distancia daquelas pretendidas por esta tese.
33 Textual um enunciado que se abre refutao.
34 Como veremos mais abaixo (pgina 89) Donald Schn desenvolve uma epistemologia em que a prtica est indissocivel da reflexo, seja na simultaneidade temporal reflexo-na-ao seja em momentos diferentes reflexo-sobre-a-ao.
35 Grifo nosso
-
31
Como vemos, admitida a possibilidade de existncia, a prpria definio do
que seja uma Teoria do Projeto em si mesma problemtica.
Outra questo problemtica a da prpria existncia de uma nica Teoria do
projeto. Parece-nos mais pertinente falar de teorias sobre o projetar. Sem entrar
em maiores discusses sobre o tema, adotaremos aqui o termo teoria do projeto
arquitetnico como uma concepo fundamentada sobre o ato projetual, baseada em
raciocnio especulativo e investigao hermenutica, e que tem caracteres descritivo,
explicativo e interpretativo.
O prprio alcance de uma teoria do projeto deve ser questionado. Como disse
Quatrmre de Quincy, chega certo ponto em que a teoria nos abandona, restando a
nossa imaginao para seguirmos adiante (1837, p. 233). Se tomarmos o termo
imaginao como as decises operativas, significa dizer que o projetar no pode
ser fruto de pura especulao terica, se essa pode ser um ponto de partida, h um
momento em que a teoria imbrica-se de tal forma com o ato projetual que se tornam
indissociveis e no necessariamente explcitas36. Vemos tambm Julien Guadet,
influente professor de teoria da Arquitetura na cole de beaux-arts ao final do sculo
XIX, na aula de abertura de seu curso, em 28 de novembro de 1894, a afirmao de
que todos os cursos [de teoria] poderiam desaparecer e a cole de beaux-arts seria
ainda cole de beaux-arts, enquanto que sem os atelis no se concebe esta escola. 37
(Guadet, 1895 apud LUCAN, 2009, p. 156). Aqui tambm se confirma a importncia
da prtica projetual na cole, configurada pela prtica da composio nos atelis,
ficando os cursos de teoria encarregados de desenvolver o repertrio de elementos
de arquitetura e elementos de composio (bem como das questes instrumentais
36 Aqui, mais uma vez, vem tona o conceito de reflexo-na-ao de Donald Schn.
37 Nossa Traduo, no original: tous les cours pourraient disparatre, et lcole des Beaux-arts serait encore lcole des Beaux-arts ; tandis que sans les ateliers on ne saurait concevoir cette cole
-
32
mais bsicas) 38; neste caso a questo no parece dizer que suprfluo o estudo
terico (e no caso a sua teoria da composio), mas de reafirmar, retoricamente, a
centralidade da prtica do projeto para o ensino e a formao do arquiteto.
Portanto uma teoria no campo do projetar no deve se propor a tarefa de
estabelecer critrios de excelncia para o resultado projetual, deve acima de tudo
buscar uma interpretao e desta maneira formular uma elucidao do ato projetual.
Esta elucidao por sua vez, tem um efeito teraputico na discusso da questo, no
sentido que retira da discusso os falsos problemas.
38 Guadet, anteriormente, quando ainda no era professor do curso de teoria (e ento patron de um atelier), que assumiu em 1894, j havia feito a mesma afirmao em L'enseignement de l'architecture : confrence faite la Socit centrale des architectes, le 24 mars 1882 (1882, pp. 8-9)
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4 REPRESENTAR
A representao est estreitamente ligada s teorias do projeto, pois a prtica
projetual fundamenta-se na sua essncia em atividades que envolvem formas de
representao. Por outro lado o projetar em arquitetura como se entende hoje s
pode ser entendido como um processo de reflexo na prtica e sobre a prtica (ver
pgina 111). Aqui, no campo da representao, a teoria faz-se prtica e se confunde
do ponto de vista epistemolgico com o projetar.
No possvel falar-se sobre a representao sem remeter teoria da mimese,
no antigo conceito grego. Para Plato, a mimese sempre se refere ao real, seja na
reproduo da sua aparncia enganosa (phantastik), como faz pela arte o artista, seja
da prpria realidade (eikastik) (MARQUES, 2001), privilgio que s seria dado aos
Deuses. No dilogo Crtilo (1994) Plato discute a questo dos nomes como
representao de objetos e seres, contrapondo as posies naturalista e
convencionalista39, pela primeira o nome (ou poderamos dizer tambm outras
formas da representao) guarda uma relao com a essncia daquilo que representa,
portanto h uma relao intrnseca entre eles; pela concepo convencionalista, o
nome arbitrrio e no guarda relao necessria com o que representa40. No
dilogo, duas personagens - Crtilo e Hermgenes - assumem respectivamente estas
posies extremas, mas Plato admite que a representao parte natural e parte
convencional. Aristteles (2003) em sua obra Arte Potica coloca a questo da
mimese em outros termos, no mais relativa a uma realidade, mas na produo de
efeitos a Potica no duplicadora de uma realidade, mas produtora de possveis
mimese dos caracteres, emoes, aes humanos41. Preferimos o termo mimese
39 Para uma interessante discusso sobre o tema ver Arte e Iluso de Ernst Gombrich (2007, p. 305 e ss.)
40 Esta questo, posta em outros termos, est longe de se esgotar ainda hoje.
41 Esclarea-se que as artes da imitao tratadas na obra de Aristteles so aquelas que pem em movimento os afetos como a msica, o teatro a dana.
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ao termo imitao 42 para relacion-lo com a representao por incorporar um
elemento produtivo, ou seja, mesmo sem uma referncia (seja a realidade, no sentido
da mimese platnica, sejam as aes humanas) as representaes tm um valor
prprio. Do ponto de vista esttico estamos falando da apparition a que se refere
Theodor Adorno: Em toda obra de arte genuna, aparece algo que no existe
(ADORNO, 1988, p. 101), seguindo este pensamento poderamos dizer que em toda a
representao tambm surge algo que no existe, ou ao menos no existia at ento.
Como veremos, a questo transcende em muito o conceito de simples cpia.
A ideia da arquitetura como arte mimtica, seguindo a tradio greco-romana,
encontrada no tratado de Vitrvio (1992, Livro II, cap. 1). Na passagem em que
discorre sobre o surgimento da arquitetura, Vitrvio narra o seu mito de origem,
comeando pela condio primordial do homem que vivia solitrio na floresta
(segundo ele, como os animais). Certo dia, durante uma forte tempestade, os ramos
das rvores incendiaram-se pela frico provocada pelo vento; o fogo na floresta
primeiro provocou o medo e os homens afastaram-se, mas depois, vendo que o fogo
aquecia, os primitivos aproximaram-se dele e assim tambm ficaram prximos uns
dos outros; a proximidade incitou-os a desenvolverem a linguagem verbal como
forma de comunicao; de posse da linguagem e observando como os pssaros
construam suas casas, o homem comeou a produzir as suas prprias e,
comunicando-se entre si, propagaram as suas descobertas43 (Figura 4). Da surge o
mito da to discutida cabana primitiva, essa cabana teria sido a primordial, de onde
se desenvolveu a arquitetura, cuja forma primeira e original deve-se mimese da
natureza, de certa forma esta ideia aproximava a arquitetura das demais artes e foi
explorada pelos tratadistas da renascena para justificar a autoridade da arquitetura
42 Do latim imitatio, a cpia por sua vez remete ao avesso da originalidade como valor superior da produo artstica.
43 Franoise Choay (1985, p. 127 e ss.) traa um paralelo entre a obra de Vitrvio e de Alberti, chamando a ateno para as diferenas entre as duas, e, apesar da aparente identidade, das crticas que Alberti faz Vitrvio entre elas do tratamento mtico e superficial dado s questes tericas da arquitetura.
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antiga como modelo. Esta ideia de uma origem mimtica, prxima da natureza, ou
de algo que lhe d legitimidade, est na base de muitas revises refundacionalistas
da histria da arquitetura, como por exemplo, a prpria cabana primitiva (Figura 5)
de Marc-Antoine Laugier (1999).
Figura 4. Ilustrao antiga do Livro II, captulo 1, dos Dez Livros de Arquitetura de Vitruvio, em que
aparecem os homens ao redor do fogo, e a arquitetura representada pela cidade ao fundo e a maquete.
Fonte: Fac Smile de M.Vitruvius per Iocundum solito castig atior factus cum figuris et tabula ut iam
legi et intellegi possit, Veneza, 1511, C.N.R.S., Touluse, Frana.
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Figura 5. A cabana primitiva segundo Laugier. Fonte: Frontispcio da obra "Ensaio sobre Arquitetura",
Laugier (1753)
A viso clssica da mimese em arquitetura foi posta em cheque por
Quatremre de Quincy. Para Quatremre de Quincy a mimese mais que a busca da
semelhana figurativa na representao. Quatremre estabelece importante distino
entre tipo e modelo como elementos para a representao para ele O modelo um
objeto que se deve repetir tal como ; o tipo , ao contrrio, um objeto segundo o qual
cada um pode conceber obras que no se paream entre si. Tudo preciso e dado no
modelo; tudo mais ou menos vago no tipo44(QUATRMERE DE QUINCY, 1825,
pp. 543-545). Esta distino estabelece tambm modalidades diferentes de
representao correspondentes ao tipo e ao modelo: o tipo representado pela
mimese (denominado por Quatremre de imitao), o modelo pela cpia. A diferena
significativa, pois para Quatremre o tipo uma entidade abstrata, ao contrrio do
modelo que concreto, portanto, ao copiar o modelo h a repetio do mesmo sob
outra forma, j ao imitar o tipo surgem inmeras possibilidades de configurao, este
aspecto produtivo pode-se denominar a potica da representao. Segundo Oliveira
44No original : Le modele,cest um objet quon doit rptertel quel est. Le type est, au contraire, um objet daprs chacun peut concevoir des ouvrages que ne se ressembleroient pas entre eux. Tout est pecise et donn dans le modele, tout est plus ou moins vague dans le type.
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(2000b) Quatremre redefine a mimese em termos abstratos, aproximando da
metfora, tal como desenvolvida por Paul Ricoeur.
No campo da histria, Michel Foucault (1995) traa um amplo painel histrico
da transformao pela qual passou a ideia da representao desde o Renascimento
at a poca Clssica. Durante o Renascimento (at o fim do sculo XVI) a semelhana,
enquanto fonte da representao, teve um papel estruturador do conhecimento na
cultura ocidental, mas esta semelhana45 no era um instrumento do conhecimento
da maneira como entendemos atualmente: ela revelava uma verdade anterior que se
escondia sob a aparncia das coisas, uma verdade preestabelecida que foi colocada
na ordem do mundo por Deus e que cabia ao homem desvelar46. J na poca Clssica,
em especial aps Descartes, a semelhana permanece como representao do mundo,
porm ela no mais o que determina o seu sentido, mas uma espcie de pano de
fundo que estabelece o contato primeiro entre representante e representado; o seu
significado, no entanto, no algo a se descobrir, algo que deve ser racionalmente
45 Foucault analisa-a sob a forma das quatro similitudes: convenientia, aemulatio, analogia e simpatia. A convenincia a relao que se estabelece por vizinhana e proximidade, sendo, portanto, de natureza espacial - So convenientes as coisas que, aproximando-se umas das outras, vm a se emparelhar; tocam-se nas bordas, suas franjas se misturam, a extremidade de uma designa o comeo da outra (FOUCAULT, 1995, p. 34). A emulao uma espcie de convenincia que atuasse distncia, sem a necessidade da proximidade espacial H na emulao algo do reflexo e do espelho: por ela, as coisas dispersas atravs mundo se correspondem. De longe, o rosto o mulo do cu e, assim como o intelecto do homem reflete, a sabedoria de Deus, assim os dois olhos refletem a grande iluminao que
expandem o sol e a lua; . A analogia caracterizada pela superposio da convenincia e emulao Como esta [emulao], assegura o maravilhoso afrontamento das semelhanas atravs do espao; mas fala, como aquela [a convenincia], de ajustamentos, liames, de junturas. as similitudes que executa no so aquelas visveis, das prprias coisas; basta
serem as semelhanas mais sutis das relaes . A simpatia a similitude que se estabelece independente das relaes de espao e semelhana figurativa Nela [simpatia] nenhum caminho de antemo determinado, nenhuma distncia suposta, nenhum encadeamento prescrito. A simpatia atua em estado livre nas profundezas do mundo. . O autor coloca-as como categorias importantes de similitude, mas adverte que havia outras no perodo histrico referido.
46 Muito mais uma arte divinatria como a quiromancia de hoje.
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conhecido atravs da anlise das diferenas, da identidade, da medida e da ordem
surge uma episteme47 da razo a substituir a episteme da divinao.
Como consequncia desta nova episteme transposta ao campo da arquitetura,
vemos em Claude Perrault o ceticismo quanto capacidade e o papel das propores
para expressar no microcosmo a ordem divina do macrocosmo (PERRAULT, 1683;
PEREZ-GOMEZ, 1999). Perrault, um homem das cincias (apresentado na sua obra
como da Academia Real de Cincias, Doutor em Medicina da Faculdade de Paris)
escrevendo sobre arquitetura no concebia que a habilidade do arquiteto consistisse
em adequar as propores ao programa e ao lugar, na certeza que estas propores
herdadas da tradio representassem uma perfeio absoluta e imutvel (fosse ela
mtica ou divina); para Perrault deveria ser empregado o imperfeito mtodo de
observao, anlise e induo do mais provvel e matematicamente preciso possvel,
sempre sujeito a uma evoluo e descoberta48 (PEREZ-GOMEZ, 1999, p.74).
Herdeiros que somos deste ltimo pensamento (o projeto no sentido moderno
coloca-se nesta perspectiva clssica) desenvolvemos instrumentos e mtodos de
projetar que so a um s tempo representaes e instrumento de anlise das
diferenas, da identidade, da medida e da ordem de um mundo a construir
instrumentos simultaneamente de construo e prospeco desta construo. A
referncia a Descartes relevante, visto que sua maior contribuio ao pensamento
moderno foi sem dvida o seu mtodo.
Ao abordarmos teoricamente a questo da representao torna-se necessria
uma distino entre duas possveis concepes do termo: como imagem mental e
como expresso perceptvel.
47 Este termo aqui empregado no sentido definido por Foucault, ou seja, o paradigma pelo qual se estruturam os diferentes saberes em determinado perodo histrico. Neste sentido muito prximo da noo mesma de paradigma de Thomas Kuhn (ver abaixo pgina 89).
48 Para o aprofundamento sobre o pensamento arquitetnico de Claude Perrault, ver a introduo da traduo edio inglesa do seu livro Ordonnance des cinq espces de colonnes selon la mthode des anciens por Alberto Prez-Gmez
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A primeira delas, representao como imagem mental, tal como utilizado na
psicologia e na filosofia, tem como princpio a ideia de que nosso acesso realidade
exterior s possvel atravs dos sentidos. Estes, por sua vez, transmitem-nos
impresses que so reelaboradas mentalmente sob a forma de representaes. Neste
sentido seria melhor empregar o termo na forma reflexiva o sujeito representa-se a
realidade atravs destas imagens.
A segunda diz respeito representao como expresso perceptvel de um
objeto, seja ele real, imaginrio, ou possvel. Neste caso a representao concebe-se
como um elemento substitutivo que ocupa o lugar de outro. Quando falamos da
representao de uma paisagem em um quadro que figura uma cena real temos de
um lado o objeto representado a cena e de outro sua representao registrada na
superfcie da tela.
Esta distino faz-se necessria, pois os dois conceitos de representao tm
naturezas completamente distintas, o primeiro diz respeito a fenmenos psicolgicos
e subjetivos, enquanto que o segundo material e tem existncia no mundo fora da
subjetividade. Poder-se-ia cair na tentao de introduzir um elemento que
correlacionasse s duas instncias representacionais, imaginando que as
representaes materiais so exteriorizaes da representao imagem mental,
como espelhos que refletissem estas concepes da realidade elaboradas no intelecto.
J Vitrvio faz referncia a esta dicotomia quando, no captulo II dos seus Dez Livros
da Arquitetura, dedicado a enumerar De que coisas consiste a Arquitetura
(VITRUVIO, 1992, p. 8). Define ele as espcies de Disposio (segundo o autor que
em grego se chamam ideias) enumerando: a Icnografia, Ortografia e Scenografia49. Diz
49 Icnografia aproximadamente o que hoje chamamos de planta-baixa ( desenho do qual se tomam as dimenses para demarcar no terreno o vestgio ou planta do edifcio);
Ortografia corresponde s fachadas ( uma representao da frente do edifcio futuro, e de sua figura por elevao, com todas as suas dimenses) e Scaenografia foi interpretado pelos renascentistas de forma a acordar com a perspectiva ento nascente ( o desenho
sombreado da frente e lados do edifcio, que se afastam, concorrendo todas as linhas para um ponto.), apesar da objeo de Daniele Barbaro de que o termo mais apropriado Sciografia, (ACKERMAN, 2002, pp. 224-225) que significa o traado das sombras, ou ainda da representao em corte do edifcio, ou at que o termo teria sido mal transcrito. A troca de
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o texto: Nascem estas trs espcies de ideias da meditao e da inveno. A meditao
uma atenta, industriosa e vigilante reflexo, com desejo de encontrar a coisa
proposta. E a inveno a soluo de questes intricadas, e a razo da coisa
novamente achada com agudeza e engenho .
A meditao seria denominada por Frederico Zuccari Disegno Interno e a
inveno, Disegno Esterno (ZUCCARI, 1607a). Zuccari, seguindo o mtodo
Aristotlico-Escolstico, afirma que a obra de arte (tema central de sua obra citada)
possvel porque manifesta aquilo que primeiramente teve lugar no esprito do artista
(o desenho interior) e que pela sua ao prtica assume a forma de um desenho
exterior (PANOFSKY, 1994). Suas ideias esto impregnadas de contedo teolgico,
pois a fonte do desenho interno para Zuccari s pode ser obra de Deus - a Centelha
da divindade 50-, a ponto de elaborar uma etimologia da palavra como segue:
Que seja sinal do nome de Deus este nome Di-segn-o bastante claro por si mesmo, como se pode ver das suas prprias letras sem outra declarao. Porque as duas primeiras e a ltima letra demonstram abertamente o nome de Dio [Deus]: argumento da dignidade e grandeza sua, e querendo ainda mais entender as outras quatro letras, que no meio deste nome Di-segn-o sobram, no nos surpreenderemos da singular propriedade sua, e sua significao, que denota ser verdadeiro sinal de Deus em ns51. (ZUCCARI, 1607a, p. 83)
Sciografia por Scenografia (o desenho do cenrio para o teatro na tentativa de simular a profundidade) seria uma alterao que visava dar autoridade nova representao, pois a perspectiva com linhas que convergem para um ponto nico (chamada Perspectiva artificialis ) , ao que tudo indica, uma inveno Renascentista que no tem registro em pocas anteriores (PREZ-GMEZ e PELLETIER, 1997, p. 46). (todas as citaes entre parnteses extradas de Vitrvio, op. Cit., pp. 9 e 10)
50 Scintilla della Divinit (ZUCCARI, 1607b, p. 14)
51 Nossa Traduo. No original: Che sia segno del Nome di Dio questo nome DI, SEGN, O, assai chiaro per se stesso, come si pu vedere dall' istesse sue lettere senz' altra dichiarazione. Perocch le due prime, e l' ultima lettera dimostrano apertamente il nome di Dio, argomento della dignit, e grandezza sua; e volendo di pi intendere le altre quattro lettere, che nel mezzo di questo nome Di, segn, o, restano, non ci maraviglieremo della singolar facolt sua, e sua significazione, che ci dinota essere vero segno di Dio in noi.
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Metafsica parte, este duplo conceito articula e conecta as partes terica e
prtica do projetar, pois o disegno compreende tanto a representao mental quanto o
objeto material que a representa (ou seja, o desenho no papel, por exemplo).
Interessa tese discutir a representao como um todo, mais prxima deste
duplo conceito de Disegno. Obviamente no se trata de um trabalho de psicologia
nem de filosofia ou teologia, portanto para o caso presente o projeto no s uma
imagem mental52. O projeto tambm um documento que se constitui em objeto de
suporte das inscries e registros que traduzem e sintetizam uma ideia, mais at que
isto a forma visvel de um processo de construo de conhecimento sobre o objeto
projetado. Por tratar da questo projetual do ponto de vista da arquitetura e da
epistemologia, h o complicador de que os registros de desenhos (tradicionalmente
utilizados no projeto), so desenhos externos (representaes como expresso
perceptvel) de desenhos internos (como representaes mentais), substituem no um
objeto, mas outras representaes. Dito de outra maneira, o referente no se encontra
entre os objetos concretos do mundo.
Poder-se-ia pensar que a representao figurativa, de especial interesse para o
estudo do projeto arquitetnico, ativada unicamente pela semelhana entre o
representante e o representado. Esta pressuposio, no entanto, no resiste anlise
mais profunda. Se tomarmos a semelhana figurativa perfeita como a mxima
correspondncia formal, portanto neste sentido o grau mximo de representao,
veremos que isto s ocorre de fato especularmente no prprio objeto representado
s o objeto da representao absolutamente coincidente consigo mesmo, mas
raramente uma representao de si mesmo, ou seja, a semelhana reflexiva, mas a
representao no a ; a semelhana tambm simtrica, no sentido que se A se
parece com B, B tambm se parece com A, mas da representao nem sempre
podemos dizer o mesmo se uma fotografia representa uma paisagem, a paisagem
52 Muitas vezes se ouve a expresso de alunos em sala de aula, quando questionados sobre o trabalho de atelier: est tudo na minha cabea, que reflete este conceito que projeto pura
concepo mental e que a passagem da ideia para a sua representao uma simples transposio.
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no representa uma fotografia. H casos em que mesmo cpias relativamente fiis
no se representam mutuamente, como objetos que so produzidos em srie e que
no constituem representaes, mas novos objetos, ainda que praticamente iguais
(GOODMAN, 1976, p. 4). Nelson Goodman atribui denotao o papel central do
processo de representao, salientando que a denotao independente da condio
de semelhana .
Podemos fazer um pequeno exerccio de anlise em relao aos objetos da
arquitetura e suas funes representacionais: seria incoerente dizer-se que a Villa
Savoye53 representa a Villa Savoye54, mas a expresso Villa Savoye, a axonometria
(Figura 6), a fotografia (Figura 7) e tantas outras formas de diz-la representam aquela
casa; por outro lado, esta condio de alteridade no suficiente, pois para que se
possa estabelecer a funo representacional deve haver uma relao que a torne
possvel, assim a fotografia da Casa Farnsworth, de Mies van der Rohe abaixo (Figura
8) no representa a Villa Savoye, ainda que seja uma fotografia como a da Figura 6,
represente uma casa suburbana e guarde com aquela algumas semelhanas
geomtricas. Esta relao, ou nos termos de Goodman, denotao, pode ter maior ou
menor grau de correspondncia formal entre o representado e o representante. No
exemplo acima as fotografias e os desenhos guardam uma analogia direta com as
formas geomtricas da casa, mas o nome Villa Savoye tem uma relao indireta,
ou, como diriam os linguistas, imotivada.55.
53 A famosa casa projetada por Le Corbusier em Poissy, na Frana, de 1929.
54 No sentido de que alguma coisa no pode estar no lugar de si mesma, ela e no representa. Podemos dizer que a Villa Savoye representa os valores da arquitetura moderna, ou mesmo que representa a modernidade.
55 Para a semiologia Saussuriana, o primeiro princpio o da arbitrariedade do signo, ou seja, ele dito imotivado; visto que vrias palavras podem significar o mesmo objeto, dependendo da lngua que se emprega. Ex. chair, chaise, silla, sedia, cadeira, Stuhl, todas significam (denotam, representam) em diferentes lnguas o mesmo objeto que serve para sentar. No caso das onomatopeias e exclamaes poder-se-ia dizer que so motivadas, ou seja, no arbitrrias pela sua relao direta entre a forma do som natural e a forma do som articulado (como em tiquetaque e atchim), mas nosso sistema lingustico
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43
Figura 6. Axonometria da Villa Savoye - Le Corbusier, 1929.Fonte: FRAMPTON, 2001, p.78
Figura 7. Villa Savoye em foto de satlite- Le Corbusier, 1929- Fonte: Google Earth
est muito longe de ser constitudo somente de palavras onomatopaicas. (SAUSSURE, 1969, p. 85)
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44
Figura 8. Casa Farnsworth, Plano Vicinity, Kendall County, Illinois, EUA. Fachadas norte e oeste.
Projeto de Mies van der Rohe, 1946. Fonte: Library of Congress - Historic American Buildings Survey-
HABS ILL, 47-PLAN.V, 1-
No campo das artes visuais bastante conhecido o quadro de Magritte A
traio das imagens (Figura 9) em que o pintor representa um cachimbo na tela e ao
mesmo tempo enuncia a negao da imagem como representativa de um cachimbo
com a frase Isto no um cachimbo (Le muse de l'art, 1998). A obra desmascara a
funo representativa da figura como substitutivo perfeito de um cachimbo: por
evidente no se pode fumar o quadro e atear-lhe fogo seria destrutivo! O prprio
ttulo do quadro encerra uma denncia de que as imagens pecam por representarem,
mas no tornarem presente o objeto retratado - uma falsa promessa que trai o seu
propsito.
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45
Figura 9. A traio das imagens, Ren Margritte, 1928-29 - Los Angeles County Museum of Art. Fonte:
Le muse de l'art, 1998.
Seja como for, a representao pressupe tomar de emprstimo algo do
representado - uma qualidade - que no est presente no representante e express-la
(da re-[a]presentar, apresentar novamente), o que implica uma dupla condio,
aparentemente contraditria: a de diferena entre o representante, presente, e o
representado, ausente; e a condio de semelhana ou de relao entre o
representante e o representado.
A condio de diferena estabelece ainda que a representao uma funo
possvel do objeto e no est ligada sua materialidade ou sua forma. As figuras da
Villa Savoye esto aqui colocadas como representantes da casa, mas a Villa Savoye
tambm representante da arquitetura de Le Corbusier, dos cinco pontos propostos
pelo Mestre Suo56 e at mesmo da arquitetura de Palladio (ROWE, 1978, pp. 9-11).
Esta independncia em relao forma permite-nos pensar numa no fixidez da
funo representacional: o mesmo objeto pode assumir funes de representante e
representado alternadamente, ora representante, ora representado; tambm o mesmo
objeto pode representar coisas distintas, seja por conotao, seja por denotao.
56 A saber: os pilotis, o teto-terrao, a fentre en longueur, a planta livre e a fachada livre.