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Território e estudos de matriz descolonial: caminhos e possibilidades de pesquisa
sobre comunidades quilombolas
“A colonialidade do Saber nos revela, ainda, que, para além do legado
de desigualdade e injustiça sociais profundos do colonialismo e do
imperialismo, já assinalados pela teoria da dependência e outras, há um
legado epistemológico do eurocentrismo que nos impede de
compreender o mundo a partir do próprio mundo que vivemos e das
epistemes que lhe são próprias” (PORTO-GOÇALVES, pág.10, 2005)
Nessa passagem Porto-Gonçalves chama atenção para como o eurocentrismo tem
influenciado e/ou limitado nossa forma de fazer pesquisa, contaminando não só a teoria,
mas também metodologias de investigação, o que dificulta a compreensão a partir do
contexto espacial que vivemos e das teorias que emergem desse lugar. É pensando nisso
que o presente artigo tem como objetivo, a partir do campo conceitual, refletir sobre
caminhos possíveis para estruturação de um campo investigativo dos estudos sobre
território em Geografia e a corrente decolonial, levando em conta o contexto de lutas na
América Latina em que se observa uma a pluralidade de geo-grafia das lutas sociais que
tem sido invisibilizadas e subalternizadas por leituras da colonialidade. A pauta dessas
lutas sociais tem transformado o território numa categoria política das lutas, em que passa
a ser mobilizado em uma perspectiva integradora. Um exemplo aqui apresentado é o das
comunidades remanescentes de quilombo.
Em busca de associações
Há no campo da Geografia, um crescente uso do conceito de território em
pesquisas, principalmente com a aumento dos estudos sobre as mais variadas formas de
conflito envolvendo disputa por terra. Traço importante que constitui esse processo é que
essa emergência não se restringe ao campo analítico. O uso do território vira instrumento
das práxis política de movimentos sociais, compondo sua linguagem em vários países da
2
América Latina. A (re)emergência desses grupos1 coloca em cheque o modelo
civilizatório e monocultor (não só de produção, mas também das narrativas e dos sentidos
da vida) que esteve presente desde o período colonial. As lutas não se restringem mais a
ocupação do território, mas também por memória e identidade. Grupos que mesmo com
diferentes agendas e estratégia, tem na luta por território um mote unificador de
mobilizações (SVAMPA, 2010)2. Nesse sentido ” (...) conceito tem funcionado como um
dispositivo de agenciamento político, em especial, no contexto latino americano, em que
essa categoria é uma espécie de catalisador das energias emancipatórias. ” (CRUZ, 87,
2011).
Há nesse processo de uso epistêmico-analítico e político-prático do conceito que em
muitos casos não estão dissociados, um questionamento (nem sempre explicito)3 sobre
determinados aspectos de exercício do poder historicamente utilizadas na América
Latina. Formas que aparecem na tentativa de impor um modelo de ordenamento territorial
eurocêntrico e uma interpretação de território, visto apenas como em uma dimensão
política-jurídica de escala macro. Nessa leitura, território é substrato físico, continuo,
unitário, bem delimitado, exercido por um poder soberano, com temporalidade de longa
duração. Tem na população características culturais e históricas semelhante, que condiz
a uma “nacionalidade”, ou nos termos de Benedict Anderson, uma “comunidade
imaginada”, uma experiência única de territorialidade.
1 Falamos aqui de diversos grupos, dentro os quais: quilombolas, faxinalenses, seringueiros, ribeirinhos,
atingidos por barragens, caiçaras, camponeses extrativistas, indígenas, pescadores. 2 A autora indica que o território vira uma chave privilegiada para a interpretação de realidades de lutas de
diversos movimentos sociais, inclusive os de recorte étnico. Para a autora: “(...) desde fines de los ochenta,
el territorio se fue erigiendo en el lugar privilegiado de disputa, a partir de la implementación de las nuevas
políticas sociales, de carácter focalizado, diseñadas desde el poder con vistas al control y la contención de
la pobreza. Esta dimensión material y simbólica, muchas veces comprendida como autoorganización
comunitaria, aparece como uno de los rasgos constitutivos de los movimientos sociales en América Latina,
tanto de los movimientos campesinos, muchos de ellos de corte étnico, como de los movimientos urbanos,
que asocian su lucha a la defensa de la tierra y/o a la satisfacción de las necesidades básicas.” (pág 6 – 7,
2010) 3 Não é sempre explicito, pois em diferentes casos, mesmo a luta desses grupos sendo formas de
questionamento do modelo territorial do Estado, isso não é um objetivo reconhecido dos mesmos.
3
A forma política que assume é a figura moderna do Estado-Nação4, que privilegia
a dinâmica de acumulação capitalista frente as apropriações simbólicas de grupos que
vivem no seu interior, não permitindo sobreposição de territórios, pois em si mesmo já
representa um único território possível5. Esta forma de território no contexto pós colonial
nasce enraizado ao sistema mundo moderno-colonial (QUIJANO, 2005) e todas as
heterarquias nele fomentada (GROSFOGUEL, 2010) no países latino americanos.
Porém, mesmo este modelo de gestão e controle territorial, como unidade política
unificadora e instituinte de uma série de processos desterritorializadores, vem passando
por mudanças, principalmente a partir das políticas públicas construídas nos anos 90, que
no campo jurídico dão direito ao território a uma série de sujeitos coletivos, como
indígenas, quilombolas, ribeirinhos, seringueiros entre outros.
Há na reflexão conceitual da Geografia sobre território nas últimas décadas, uma
série de leituras que ajudam a compreender este processo, como forma de ler e
problematizar os padrões de ordenamento territorial estabelecidos, na dinâmica de des-
reterritorialização contemporânea, ou até mesmo no novo papel reterritorializador do
Estado (Haesbaert, 2014). Essa forma de leitura vem sendo realizada nas últimas décadas,
em autores como, Bonemaison(2002), Sack(2011), Haesbaert(2006), Raffestin(1993) e
Souza(1995). Neles encontramos elementos que permitem uma visão mais plural de
território, junto a chaves metodológicas interpretativas de um amplo campo de situações.
Chaves como territorialidade, territorialização e desterritorialização, território-rede,
passam a fazer parte do campo derivativo do conceito.
Entre estes debates, as relações de poder estão no centro do núcleo epistêmico de
território e mobilizam formas de pensar a relação colonial/descolonial. Em
Raffestin(1993), as interpretações de poder são influenciadas pela leitura de Foucault,
4Importante ressaltar, que a criação do Estado-Nação de caráter não colonial/imperial se assentou no Brasil
a partir da reprodução das relações sociais vigentes através do pacto entre as elites regionais. Todo aparelho
Estatal construído na transição entre o período colonial e republicano misturava interesses públicos e
privados, o que limitou a superação de laços coloniais. Logo a passagem o fim do colonialismo aqui, não
significou fim das relações de expropriação, mas sim sua continuidade com a estrutura de poder vigente.
(MORAES, pág. 82, 2008). 5 Aqui há uma relação nítida entre a forma de compreensão clássica da geografia a partir da ideia de boden
em Ratzel.
4
tensionando uma concepção de poder único, vigente em interpretações anteriores. O
território passa a ser visto como “definido e delimitado por relações de poder” (SOUZA,
pág.78)6, ou “como um olhar sobre o espaço geográfico que coloca seu foco nas relações
de poder, isto é, enfatiza as relações espaço/poder” ( HAESBAERTm pág. 55, 2014).
Porém, o poder não visto apenas em uma concepção política estatal, mas
vinculado a aspectos de dominação e apropriação, tanto no que diz respeito a processos
econômicos quanto simbólicos (HAESBAERT, 2014). Outras formas de atuação do
poder, induzem a olhar outras dimensões do território. Haesbaert (2006), propõe a partir
de um extenso levantamento, três dimensões principais, com forte difusão no campo
acadêmico, são elas:
-- política: (referida às relações espaço-poder em geral) ou jurídico-
politica (relativa também a todas as relações espaço-poder
institucionalizadas): a mais difundida, onde o território é visto como um
espaço delimitado e controlado, através do qual se exerce um
determinado poder, na maioria das vezes – mas não exclusivamente –
relacionado ao poder político do Estado.
-- cultural (muitas vezes culturalista) ou simbólico-cultural: prioriza a
dimensão simbólica e mais subjetiva, em que o território é visto,
sobretudo como o produto da apropriação/valorização simbólica de um
grupo em relação ao seu espaço vivido.
-- econômica (muitas vezes economicista): menos difundida, enfatiza a
dimensão espacial das relações econômicas, o território como fonte de
recursos e/ou incorporado no embate entre classes sociais e na relação
capital-trabalho, como produto da divisão “territorial” do trabalho, por
exemplo, (HAESBAERT, pag. 40. 2006)
Essa leitura multidimensional pode ser interpretada tanto em uma visão
integradora, em que cada dimensão está presente nos territórios de forma mais ou menos
nítida, variando de acordo com a situação ou com o conflito que se estabelece, ou mais
focalizada em apenas um aspecto, ao observar os paradigmas territoriais predominantes.
Junto a essa mudança na interpretação do conceito de território, ganha força nas
ciências sociais a corrente denominada decolonial, vista em trabalhos de Ramon
Grosfoguel, Santiago Castro Gomez, Maldonado Torres, Anibal Quijano e Walter
6 Para Souza, ao falar de território a questão primordial deve ser “quem domina ou influência e como
domina ou influência esse espaço” (Souza, pág. 79, 1995)
5
Mignolo, cujo diálogo com a Geografia se constrói partir de trabalhos de Porto-Gonçalves
(2005, 2012). Estes trabalhos ajudam a entender, no que diz respeito ao contexto latino
americano, sistemas de poder e modelos classificatórios produzidos na experiência
colonial, que permanecem ainda hoje na forma de colonialidade do poder, ser e saber. A
importância dessa leitura se dá pela interpretação que a colonialidade é constitutivas dos
territórios e territorialidades contemporâneos (PEREIRA, 2012).
Porém, por grande parte dessas leituras terem um caráter macroescalar,
envolvendo narrativas globalizadoras e de longa duração, existem poucos trabalhos que
conseguem fazer a mediação, e efetivamente, entender como essas relações são
construídas em situações concretas, e podem também ser por elas mudadas. A proposta
de giros descoloniais nas correntes de pensamento, pouco tem acompanhado giros
descoloniais particulares7. sob forma de mudança analítica nos estudos que envolvem
grupos subalternos, em processos de disputa material e subjetiva, que incluem, na
dimensão analítica, um modelo não universalista, que represente distintos modos de
resistência.
Um caminho seria estudar determinados contextos espaciais específicos,
marcados por laços da colonialidade a partir de uma leitura heterarquica do poder
(CASTRO-GOMEZ, 2007) na teoria da colonialidade. O estudo sobre comunidades
tradicionais, , usando o corpo conceitual de território/territorialidade como mediação na
compreensão de conflito-poder-resistência, ajudaria tanto a revelar os regimes de poder
impressos pela colonialidade, como também a revelar práticas descolonizadoras desses
grupos, a partir de suas territorialidades e resistências.
Para tanto, é preciso destrinchar primeiro a lógica que associa colonialidade a
território, mediadas pela questão do poder e da resistência. Afinal, o poder é núcleo
7 A leitura de particular aqui não tem conotação hierárquica escalar. Entendemos que todo processo ocorre
em um espaço particular, com saberes próprios e práticas singulares, dizer isso não desqualifica estes
grupos. O que devemos questionar não é a noção de particularidade, mas sim a noção de universalidade
que tenta tornar universal o que é particular para determinado grupo. (MIGNOLO, 2005)
6
interpretativo tanto da teoria do giro descolonial e sua dimensão de colonialidade do
poder, quanto do conceito de território.
Poder e resistência: chaves para o conceito de território.
Como dito anteriormente, o poder possui uma centralidade em nossa análise sobre
território, muito influenciado pelos estudos de Michael Foucault. Porém, ainda que muitas
pesquisas incorporem uma dimensão do poder quando usam o território, poucos tentam
realmente compreende-lo dentro de uma perspectiva relacional.
Há um risco em que o uso de território, sob a perspectiva do poder, caia em
reducionismos8, ao ser, por exemplo, transformado em uma formula operacionalizada
e/ou simplificada, sem explicar os sentidos e elementos que o constituem. Isso não só
reduz a sua complexidade, como limita o potencial do conceito, tornando-o mais um
obstáculo ou enfeite, que efetivamente uma maneira de ajudar a responder/construir as
questões.
Dessa forma, é importante destacar alguns cuidados e questões levantadas na obra
de Foucault quando toca no tema do poder. Ainda que as concepções e formas de olhar o
poder estejam presentes em grande parte da sua produção, em alguns textos9 ela aparece
de forma mais objetiva. Nestes textos, o autor apresenta alguns cuidados e questões para
se trabalhar com o conceito de poder, que, a partir de uma ótica geográfica, são
fundamentais para qualquer análise em que se queira discutir território. Elas ajudam a
8 Refletindo a partir do debater de Edgar Morin, sobre os perigos no uso de teorias, métodos e conceitos
Cruz indica que: “Segundo Edgar Morin (2005: 336), toda teoria, método e, acrescentaríamos, conceito
correm o risco da degradação, isto é, o risco de simplificação e, desse modo, perder sua complexidade e
vitalidade como um instrumento analítico. Edgar Morin fala de três diferentes vias pelas quais ocorre a
degradação: a degradação tecnicista; a degradação doutrinária e a pop-degradação. Na degradação
tecnicista conserva-se da teoria aquilo que é operacional, manipulador, aquilo que pode ser aplicado; a
teoria deixa de ser logos e torna-se techné. Na degradação doutrinária, a teoria torna-se doutrina, ou seja,
torna-se cada vez menos capaz de abrir-se à contestação da experiência, à prova do mundo exterior, e resta-
lhe, então, abafar e fazer calar no mundo aquilo que a contradiz. Por fim, a chamada pop-degradação, na
qual se eliminam todas as obscuridades, as dificuldades, reduz a teoria a uma ou duas fórmulas de choque;
assim, a teoria vulgariza-se e difunde-se à custa dessa simplificação de consumo. Esse parece ser o caso do
que vem ocorrendo, nos últimos anos, com o conceito de território. “ (CRUZ, 85, 2011) 9 Em O método, presente no livro “História da Sexualidade I: A vontade de saber”, e no texto o sujeito e
o poder, presente na coletânea “Michel Foucault. Uma trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e
da hermenêutica”.
7
responder o que significa estudar relações de poder na ótica territorial, sem cair em
labirintos tentando descobrir quem tem o poder, ou qual a origem do mesmo.
Uma primeira lição oferecida pela leitura de Foucault10 é que o poder não pode
ser classificado como uma instituição, ou pertencente a uma estrutura pré-existente. Ele
não pertence a uma pessoa em detrimento da outra, ele se coloca sim em um processo
relacional. O poder “(...) designa relações entre "parceiros" (entendendo-se por isto não
um sistema de jogo, mas apenas -e permanecendo, por enquanto, na maior generalidade
- um conjunto de ações que se induzem e se respondem umas às outras). (Foucault, pág.
240, 1995)”. Não existe um sujeito ou grupo que tem um poder enquanto outros não tem,
logo não existe alguém que aplica o poder no outro, sem uma contrapartida. O poder se
exerce de maneira relacional, o que não anula o fato de que os sujeitos dispõem e utilizam
ferramentas e práticas com distinta intensidade para exercê-lo.
Mais do que uma coisa, o poder deve ser visto na sua relação, e principalmente
em ato. Devemos criar mecanismos e metodologias que possibilitam analisar como o
poder é praticado em situações sociais concretas. Um deslocamento nas questões
centradas em “o que é o poder” e “de onde vem o poder”. Perguntar como ele é exercido,
traz um caráter mais direto e empírico, que pode ser revelador de muitas situações. Em
termos geográficos, quais são as formas de analisar e identificar as práticas que
influenciam o controle, acesso, e uso que os sujeitos fazem de seus territórios e entre
outros territórios.
Se o “como” ganha centralidade na análise, e a “relação” é uma condição a priori
do exercício de poder, é preciso saber qual a finalidade que institui essa relação.
De fato, aquilo que define uma relação de poder é um modo de ação
que não age direta e imediatamente sobre os outros, mas que age sobre
sua própria ação. Uma ação sobre a ação, sobre ações eventuais, ou
atuais, futuras ou presentes. (...). Uma relação de poder(...) se articula
sobre dois elementos que lhe são indispensáveis por ser exatamente
uma relação de poder: que' 'o outro" (aquele sobre o qual ela se exerce)
seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim como o sujeito de
10“ “(...) o poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência que de que alguns
sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada. ”
(FOUCAULT, PÁG. 89, 1988)
8
ação; e que se abra, diante da relação de poder, todo um campo de
respostas, reações, efeitos, invenções possíveis.(Foucault, 243, 1995)
Colocar a relação de poder como “ação sobre ação”, nos faz pensar na criação
de um campo estratégico em que atores utilizam dispositivos e ferramentas para controlar
ou influenciar a ação de outros sujeitos, em um processo de continua disputa. Assim o
poder:
(..) é um conjunto de ações sobre ações possíveis; ele opera sobre o
campo de possibilidade onde se inscreve o comportamento dos sujeitos
ativos; ele incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, amplia ou
limita, torna mais ou menos provável; no limite, ele coage ou impede
absolutamente, mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou vários
sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são suscetíveis de agir. Uma
ação sobre ações. (FOUCAULT, pág. 243. 1995)
Estas ações não são a-espaciais, elas precisam de um espaço para acontecer, de
práticas para se reproduzir. Elas partem de uma conduta que ordena probabilidades, por
isso “O poder, no fundo, é menos da ordem do afrontamento entre dois adversários, ou do vínculo
de um com relação ao outro, do que da ordem do •'governo". (FOUCAULT, pág.244, 1995)”. O
exercício do poder, expressa governança, num sentido amplo, não preso ao governo do
Estado. Em nossa leitura, expressa estratégias para melhor controlar as possibilidades e
movimentos dentro do espaço, bem como seus mecanismos de funcionamento, que não
se restringem ao campo disciplinar de instituições fechadas.
Esse caráter estratégico das práticas de poder, que de nenhuma forma é
irracional11 em seu funcionamento, tende a criar dispositivos que variam de maneira
relacional no que diz respeito a temporalidade (podem ser mais ou menos permanente, ou
agir somente em determinados momentos) e espacialidades (variam conforme os espaços,
e os sujeitos que o constituem). Foucault, aciona a ideia de estratégia como um conjunto
11 Foucault destaca que o poder não se exerce de forma dispersa, sobre nada, ou sem objetividade. Ele tem
um grau de racionalidade tática que atua de maneira conjunto a outras. Segundo ele “(...) não há poder que
se exerça sem uma série de miras e objetivos(...) a racionalidade do poder é a das táticas muitas vezes bem
explícitas no nível limitado em que se inscrevem – cinismo local do poder – que, encadeando-se entre si,
invocando-se e se propagando, encontrando em outra parte apoio e condição, esboçam finalmente
dispositivos de conjunto: lá, a lógica ainda é perfeitamente clara, as miras decifráveis e, contudo, acontece
não haver mais ninguém para tê-las concebido e poucos para formulá-las: caráter implícito das grandes
estratégias anônimas, quase mudas, que se coordenam táticas loquazes, cujos “inventores” ou responsáveis
quase nunca são hipócritas;” (Foucault, pág. 90-91, 1988)
9
de procedimentos para conseguir a vitória, de melhor se colocar sobre as ações de outro
adversário. “A estratégia se define então pela escolha de soluções ‘vencedoras’”
(Foucault, pág.248, 1995). Quando estas estratégias ganham contorno de conjunto de
práticas ele a chama de ‘estratégia de poder’:
(...) podemos chamar 'estratégia de poder" ao conjunto dos meios
operados para fazer funcionar ou para manter um dispositivo de
poder. Podemos também falar de estratégia própria às relações de
poder na medida em que estas constituem modos de ação sobre a
ação possível, eventual, suposta dos outros. Podemos então
decifrar em termos de 'estratégias" os mecanismos utilizados nas
relações de poder. Porém, o ponto mais importante é
evidentemente a relação entre relações de poder e estratégias de
confronto. Pois, se é verdade que no centro das relações de poder
e como condição permanente de sua existência, há uma
"ínsubmissào" e liberdades essencialmente renitentes, não há
relação de poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem
inversão eventual; toda relação de poder implica. então, pelo
menos de modo virtual, uma estratégia de luta, sem que para tanto
venham a se superpor, a perder sua especificidade e finalmente a
se confundir.(Foucault, pág.248, 1995)
Se as estratégias induzem a pensar dispositivos de poder(e em nossas análises
devemos procurar identificar quais são eles), há também o processo de resistência, que
podem se constituir enquanto estratégias contrárias ou alternativas as colocadas no
processo de disputa. Como falamos toda pratica de poder é relacional. Sendo uma ação
sobre outra ação, ela produz impactos, reações, nem sempre na forma desejada pelas
estratégias empreendidas. Na verdade, as estratégias de poder e seus dispositivos, atuam
no sentido de minimizar o máximo possível essas reações não programadas que podem
constituir resistências.
Porém, ainda que distribuídas no tempo e no espaço, as resistências não deixam
de existir. Nem sempre sob a forma de uma revolução, ou polarizadas sob uma bandeira
específica, ou ainda de forma organizada. As resistências se fazem presentes dentro de
uma rede de poder. Aqui resistência não é vista como sinônimo de revolução, ou limitada
a apenas pelas formas que podem vir a desdobrá-la. As resistências não necessitam nem
10
emergem apenas de um lugar específico ao contrário do que teorias hegemônicas
apontavam. O que existem são pluralidades de resistência, segundo Foucault:
Mas sim resistências, no plural, que são casos únicos: possíveis,
necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias,
planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao
compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício; por definição, não
podem existir a não ser no campo estratégia das relações de poder. (pág
Foucault, pág. 92, 1988)
E mais a frente complementa:
“Também são, portanto, distribuídas de modo irregular: os pontos, os
nós, os focos de resistência disseminam-se com mais ou menos
densidade no tempo e no espaço, ás vezes provocando o levante de
grupos ou indivíduos de maneira definitiva, inflamando certos pontos
do corpo, certos momentos da vida, certos tipos de comportamento.
Grandes rupturas radicais, divisões binárias e maciças? As vezes.
(Foucault, pág. 93, 1988)
Diante de uma concepção mais aberta de resistência, como inerente as práticas de
poder, é possível fazer a crítica a leituras que olham resistência apenas a partir de
processos de grande revolução, ou ligados a contestações abertas, organizadas com um
caráter consciente de mudanças sistêmicas ou de tomada de poder (expresso como coisa
que se tem ou não). Ao contrário desses trabalhos, é preciso sim olhar outras formas de
resistência que tendem a mudar o aqui e o agora, que se dão em práticas espaciais e
temporais demarcadas, com diferentes forças e alcance. Definir território como campo de
relações de poder, é também identificar que existem resistências a práticas que tentam
impor uma dada territorialização. Muitas vezes essas resistências estão ligadas a
sobrevivência imediata, sob formas cotidianas de luta.
Uma crítica astuta, que ilumina essa concepção, e expressa uma outra escala de
formas de resistência, pode ser vista nos trabalhos de James Scott. Ao estudar “as armas
dos fracos” ele se propõe a trabalhar com uma concepção de resistência normalmente
ignorada na história, que ao focarem grandes eventos, deixam de lado inúmeros sujeitos
e formas de luta, onde normalmente se vê apenas aceitação.
Para o autor, nem sempre os confrontos abertos são possíveis, até pelo grau de
incerteza sobre os ganhos frente as práticas de repressão e violência comandada por outros
agentes. Ele fala sobre grupos, que nas relações de poder, estão situados em uma posição
11
de pouca possibilidade de reação, “grupos relativamente sem poder” mas que nem por
isso deixam de reagir:
“Aqui tenho em mente as armas comuns dos grupos relativamente sem
poder: fazer “corpo mole”, a dissimulação, a submissão falsa, os saques,
os incêndios premeditados, a ignorância fingida, a fofoca, a sabotagem
e outras armas dessa natureza. (...) requerem pouca ou nenhuma
coordenação ou planejamento; sempre representam uma forma de auto-
ajuda individual; evitam, geralmente, qualquer confrontação simbólica
com a autoridade ou com as normas de uma elite. Entender essas formas
comuns de luta é entender o que muitos dos camponeses fazem nos
períodos entre as revoltas para melhor defender seus interesses.”
(SCOTT, pág. 12, 2002)
São resistências cotidianas, muitas vezes informais, preocupadas com os ganhos
momentâneos, possíveis. São ajustes a circunstancias enfrentadas no dia-a-dia, realizadas
por sujeitos que em meio a uma inserção precária nos seus territórios, encontram formas
de resistência, não necessariamente contra as formas diretas de repressão e práticas ao
qual estão submetidos, mas por meios alternativos que garantam a sua sobrevivência12.
Resistência nesse sentido não é caracterizada como uma entidade absoluta, que
polariza toda ação em uma resposta. Resistência é plural, corresponde a diferentes formas
de reagir a determinada situação ou estratégia. Em muitas situações, protestos e uma
diversidade de lutas são ignoradas sob a ótica que não combatem uma bandeira de
exploração. Tanto os estudos de Foucault, quanto os estudos descolonias se opõe a esta
leitura. Há nesse processo um desperdício de experiências, ao não olhar práticas
cotidianas de resistência (e as estratégias de resistência empreendidas por grupos
subalternos) sob esta ótica.
Ou seja, mesmo nos ambientes mais repressores e desiguais, grupos produzem
resistências. Isso nos alerta a olhar práticas normalmente despretensiosas, como formas
12 Frente ao contexto camponês que estudou Scott fala de micro-resistências “Micro-resistência entre
camponeses é qualquer ato de membros da classe que tem como intenção mitigar ou negar obrigações
(renda, impostos, deferência) cobradas à essa classe por classes superiores (proprietários de terra, o estado,
proprietários de máquinas, agiotas ou empresas de empréstimo de dinheiro) ou avançar suas próprias
reivindicações (terra, assistência, respeito) em relação às classes superiores. ” (Pág. 24, 2002).
12
de resistência. Foucault, inclusive propõe que os estudos de resistência tenham uma
centralidade na análise do poder:
Gostaria de sugerir uma outra forma de prosseguir em direção a uma
nova economia das relações de poder, que é mais empírica, mais
diretamente relacionada à nossa situação presente, e que implica
relações mais estreitas entre a teoria e a prática. Ela consiste em usar as
formas de resistência contra as diferentes formas de poder como um
ponto de partida. Para usar uma outra metáfora, ela consiste em usar
esta resistência como um catalisador químico de modo a esclarecer as
relações de poder, localizar sua posição, descobrir seu ponto de
aplicação e os métodos utilizados. Mais do que analisar o poder do
ponto de vista de sua racionalidade interna, ela consiste em analisar as
relações de poder através do antagonismo das estratégias. (Foucault,
pág. 234, 1995)
Estudar as resistências, se configura então, como método para identificar as
estratégias e dispositivos que diferentes sujeitos empregam/constroem no exercício do
poder. No território, é expresso por meio das práticas, usos e ferramentas mobilizadas,
que visam uma apropriação e controle material e simbólico dos espaços, seja do seu fluxo
ou das suas fronteiras.
A perspectiva de poder proposta nos estudos de Foucault, apresentam um campo
rico e promissor que influencia todo um processo de leitura do conceito de território.
Porém, para efetivamente entender e estender seus usos, é importante observar as
perspectivas dos estudos latino americanos, que em algumas linhas de interpretação, dão
um conteúdo distinto aos usos dados por Foucault de poder.
Sendo assim, concordamos com Castro Gomez(2007), quando diz que a teoria de
poder em Foucault possibilita estudos metodológicos ricos, porém, são construídos para
pensar a realidade europeia. Dessa forma, torna-se importante o estudo de autores que
buscam pensar a realidade latina-americana a partir de formas próprias de leitura de
mundo.
Das dimensões constituintes da colonialidade: da crítica as possibilidades
“Nenhum “foco local”, nenhum “esquema de transformação” poderia
funcionar se, através de uma série de encadeamentos sucessivos, não se
13
inserisse, no final das contas, em uma estratégia global. E, inversamente,
nenhuma estratégia poderia proporcionar efeitos globais a não ser apoiada em
relações precisas e tênues que lhe servissem, não de aplicação ou
consequência, mas de suporte e ponto de fixação. Entre elas, nenhuma
descontinuidade, como seria o caso de dois níveis diferentes (um microscópico
e o outro macroscópico);mas, também, nenhuma homogeneidade (como se um
nada mais fosse do que a projeção ampliada ou a miniaturização do outro); ao
contrário, deve-se pensar em duplo condicionamento, de uma estratégia,
através da especificidade das táticas possíveis e, das táticas, pelo invólucro
estratégico que as faz funcionar.”(FOUCAULT, pág. 95, 1988)
Este trecho retirado do capítulo “O método” da História da Sexualidade, se refere
a regra do duplo condicionamento. É indicado em tom de prudência por Foucault, para
os estudos sobre o poder. Neste trecho o autor não propõe uma abordagem tipicamente
escalar, entre local e global, macro e micro. Ele entende que no estudo sobre o poder e
das estratégias de poder, ambas as esferas, tanto da estratégia global quanto dos focos
locais, possuem relação, mas não de hierarquia ou de projeção. Uma não é mais
importante que a outra, não possui os mesmos mecanismos ou ainda é projeção sob uma
forma escalar diferente. Ele as trata como formas que se constituem, interligam-se, se
complementam, mesmo sendo projetadas por mecanismos que existam em diferentes
planos de realidade (espacial e temporal) e sendo classificadas muitas vezes em leitura
escalar (macro e micro).
Ambas, são produto e produtoras, fazem parte de uma correlação, não são
descontinuas dentro de um campo estratégico, ainda que nem sempre precisem estar
interligadas.
É com essa prudência que desejamos falar do contexto latino americano e da
modernidade/colonialidade, principalmente na dimensão da colonialidade do poder para
entender tanto sistemas classificatórios, e para falar de processos de des-
reterritorialização.
Primeiro, cabe entender que quando se fala de modernidade e seu outro lado a
colonialidade13 deseja-se expor um projeto que instituiu uma forma universalista de ler e
13 A configuração da modernidade na Europa e da colonialidade no resto do mundo [...] foi a imagem
hegemônica sustentada na colonialidade do poder que torna difícil pensar que não pode haver modernidade
sem colonialidade; que a colonialidade é constitutiva da modernidade, e não derivativa.(MIGNOLO, 2005,
pag. 78)
14
entender o mundo, a partir de uma matriz eurocêntrica14, que organiza de um lado uma
classificação populacional, e de outro uma organização cronológica de mundo:
“Da-se inicio ao longo processo que culminará nos séculos XVIII e XIX e no
qual, pela primeira vez, se organiza a totalidade do espaço e do tempo – todas
as culturas, povos e territórios do planeta presentes e passados – numa grande
narrativa universal. Nessa narrativa, a Europa é – ou sempre foi –
simultaneamente o centro geográfico e a culminação do movimento temporal.
Nesse período moderno, primitivo/colonial dão-se os primeiros passos na
“articulação das diferenças culturais em hierarquias cronológicas [...]”
(LANDER, 2005, pag. 26)
A implicação dessa forma de conceber o mundo e a totalidade inscrita nele,
influencia o campo cientifico, político e epistêmico. Ela se constrói no processo de
colonialismo, em que a América foi fundamental na construção do sistema-mundo
moderno/colonial. Os processos de saques, e exploração, as veias abertas da América
Latina, para usar a famosa expressão de Eduardo Galeano, por onde escoaram riquezas,
foi uma característica basilar, para que alguns centros de poder no continente Europeu, se
colocassem hierarquicamente num campo comparativo a outros lugares do mundo. O ato
de hierarquizar os espaços, foi também um ato de hierarquizar as populações.
Essa leitura (que atravessa em muitas dimensões o campo da Geografia), organiza
uma forma de pensar o espaço que exclui sujeitos que não se adequem ao grau de
modernidade projetado como norma. De certa forma, tem como resultado “a repressão da
possibilidade de outras trajetórias (outras, isto é, diferentes do imponente progresso em direção
a modernidade/modernização/desenvolvimento no modelo ocidental europeu).” (MASSEY ,
2008, pág. 106).
O autor Anibal Quijano, um dos principais percussores dessa leitura de sistema-
mundo moderno/colonial, indica a centralidade da teoria na relação controle do trabalho
e classificação racial. Para ele a colonialidade é um dos elementos que constituem o
padrão de poder mundial capitalista, baseado em uma classificação racial hierárquica da
14 “O eurocentrismo não é exclusivamente, (...) a perspectiva cognitiva dos europeus, ou apenas dos
dominantes do capitalismo mundial, mas também do conjunto dos educados sob a sua hegemonia [...] Trata-
se da perspectiva cognitiva durante o longo tempo do conjunto do mundo eurocentrado do capitalismo
colonial/moderno e que naturaliza a experiência dos indivíduos neste padrão de poder. Ou sejam fá-las
entender como naturais, consequentemente como dadas, não suscetíveis de ser questionadas (QUIJANO,
2010, pag. 86)”
15
população mundial15, que atua de forma material e subjetiva nas dinâmicas cotidianas e
societais.(2010). Isso se dá em um processo, segundo o autor, de “racialização” das
relações de poder, junto a criação de identidades sociais:
A “racialização” das relações de poder entre as novas identidades sociais e
geoculturais foi o sustento e a referência legitimadora fundamental do caráter
eurocentrado do padrão de poder, material e intersubjetivo. Ou seja, da sua
colonialiade. Converteu-se, assim, no mais específico dos elementos do padrão
mundial do poder capitalista eurocentrado e colonial/moderno e atravessou –
invadindo – cada uma das áreas da existência social do padrão de poder mundi,
eurocentrado, colonial/moderno. (QUIJANO, pág 119-120, 2010).
A colonialidade do poder, expressa uma classificação em que não é apenas o
controle das relações de produção que funda uma experiência desigual de poder. A
experiência histórica da América Latina, indica formas heterogêneas em que no
capitalismo mundial moderno/colonial, tem na raça um padrão estruturante, ainda que
relacionado a ideia de trabalho e género.
Sendo assim, algumas das teorias de maior abrangência, como a marxista, não
respondem a heterogeneidade estruturante das formas de exploração na América Latina,
muito menos aos seus legados coloniais. Quijano (2010) propõe o deslocamento da teoria
das “Classes Sociais” para a teoria de Classificação Social, pautada na heterogeneidade,
como conceito constituído por processos de longo prazo de disputa pelo controle dos
meios de existência social, resultando em um padrão desigual de distribuição de poder
15“Na América, a ideia de raça foi uma maneira de outorgar legitimidade às relações de dominação
impostas pela conquista. A posterior constituição da Europa como nova id-entidade depois da América
e a expansão do colonialismo europeu ao resto do mundo conduziram à elaboração da perspectiva
eurocêntrica do conhecimento e com ela à elaboração teórica da ideia de raça como naturalização dessas
relações coloniais de dominação entre europeus e não-europeus. Historicamente, isso significou uma
nova maneira de legitimar as já antigas ideias e práticas de relações de superioridade/inferioridade entre
dominantes e dominados. Desde então demonstrou ser o mais eficaz e durável instrumento de dominação
social universal, pois dele passou a depender outro igualmente universal, no entanto mais antigo, o
intersexual ou de gênero: os povos conquistados e dominados foram postos numa situação natural de
inferioridade, e conseqüentemente também seus traços fenotípicos, bem como suas descobertas mentais
e culturais. Desse modo, raça converteu-se no primeiro critério fundamental para a distribuição da
população mundial nos níveis, lugares e papéis na estrutura de poder da nova sociedade. Em outras
palavras, no modo básico de classificação social universal da população mundial. (QUIJANO, 2005, pag.
229-230)”
16
fundado na relação de exploração, conflito e dominação (QUIJANO, pág. 112-113,
2010): Segundo o autor esta teoria16 exige:
(...) indagar na história sobre as condições e as determinações de uma
dada distribuição de relações de poder numa dada sociedade. Porque é
essa distribuição de poder entre as pessoas de uma sociedade o que as
classifica socialmente, determinando as suas recíprocas relações e suas
diferenças sociais, já que as suas características empiricamente
observáveis e diferenciáveis são resultados dessas relações de poder,
dos seus sinais e das suas marcas.(QUIJANO, pág.113, 2010)
Porém, a concepção de poder expressa nas interpretações de Quijano,
principalmente em relação a centralidade da colonialidade do poder em suas análises,
sofre críticas por parte de Castro-Gomez(2007, 2012). As críticas centram-se
principalmente nas dificuldades metodológicas em operar os estudos de matriz
descolonial sob essa perspectiva de poder. Segundo Castro-Gomez o objetivo da sua
crítica é:
(...) cuestionar la influencia metodológica que en estas propuestas ha
tenido lo que llamamos una representación jerárquica del poder. Me
refiero con ello a la idea según la cual el poder colonial es una
«estructura de larga duración» que se encuentra alojada en el corazón
mismo de la economía-mundo capitalista desde hace 500 años, y cuya
lógica macro se reproduce em otros ámbitos de la vida social. Como
pueden ver, hablamos de la influencia del marxismo y del
estructuralismo en su forma de concebir el funcionamiento del poder.
Argumentaremos que la dificultad de esa representación jerárquica
recae en su incapacidad de pensar la independencia relativa de lo local
frente a los imperativos del sistema (sobre todo en aquellos ámbitos que
tienen que ver com la producción autónoma de la
subjetividad)(CASTRO-GÓMEZ, pág.55, 2007)
16Importante destacar que essa colocação de diferenciações sociais construídas historicamente, se associam
a algumas importantes pistas oferecidas por Foucault quando fala de estudos sobre o poder. Ele afirma que
determinadas formas de pensar as relações de poder, se constituem por um sistema de diferenciações:” O
sistema das diferenciações que permitem agir sobre a ação dos outros: diferenças jurídicas ou tradicionais
de estatuto e de privilégio; diferenças econômicas na apropriação das riquezas e dos bens; diferenças de
lugar nos processos de produção; diferenças linguísticas ou culturais; diferenças na habilidade e nas
competências etc. Toda relação de poder opera diferenciações que são, pata ela, ao mesmo tempo, condições
e efeitos.”(Foucault, pág. 89, 1995)
17
Ao longo do trabalho de Castro-Gómez, podemos perceber que a crítica feita pelo
autor não se baseia necessariamente em invalidar o debate proposto por Quijano (2010).
Ela representa a dificuldade em operar com estudos de matriz descolonial, principalmente
entre os debates que figuram na relação macro e micro da teoria, que leva a uma tentativa
de aplicar uma lógica explicativa global diretamente em dinâmicas locais.
Essa crítica fica mais explicita em entrevista concedida ao grupo de estudos sobre
colonialidade(GESCO), em que Castro-Gómez aponta limitações as teorias vigentes
sobre colonialidade. A primeira é a centralidade da colonialidade do poder como única
racionalidade, dominante nas relações de expropriação, que relega a um papel secundário
a colonialidade do ser e do saber, invisibilizando heranças epistêmicas e ontológicas17. A
segunda se expressa no uso dado a análise do sistema-mundo, caracterizado como uma
ferramenta “telescópica” que mesmo enxergando as relações macro, invisibiliza o aspecto
rizomático expresso nas escalas locais (CASTRO-GOMÉZ, 2012).
Entendemos esse conjunto de críticas e questões colocadas, como críticas ao
método de operar os estudos descoloniais, simbolizando a dificuldade realizar estudos
sem ficar restritos a imperativos, a máximas sobre sistemas de dominação globais, que
reinam sobre condições locais.
Como alternativa ele faz uma leitura atenta da obra de Foucault, principalmente
nos escritos em que aparecem temas associados a colonialidade, como o racismo e a
17 Ao responder sobre a diferente concepção e apropriação no debate da colonialidade, Castro-Gomez
responde: “Sí. Soy bien consciente de que el uso que doy a la categoría “colonialidad” es algo diferente al
que le han dado la mayoría de mis colegas de la red. Prefiero no hablar de “la” colonialidad en general, sino
distinguir tres ejes de la colonialidad que son irreductibles entre sí: la colonialidad del poder, que hace
referencia a la dimensión económico-política de las herencias coloniales, la colonialidad del saber, que hace
referencia a la dimensión epistémica de las mismas, y la colonialidad del ser, que hace referencia a su
dimensión ontológica. No son, insisto, tres variaciones del mismo fenómeno, si bien genéticamente puede
trazarse su emergencia común hacia la experiencia del colonialismo europeo en el siglo XVI. Pero a partir
de ahí, esas tres “dimensiones” han seguido caminos diferentes. No comparten la misma racionalidad, ni
las mismas técnicas y estrategias. Lo cual no significa que no existan articulaciones entre ellas, que no
trabajen juntas, que no “hagan máquina”, tal como se mostró en La hybris del punto cero. Pero me parece
que reducir estos tres ejes a un solo “patrón mundial de poder”, como sugiere Quijano, impide comprender
el modus operandi de las herencias coloniales en América Latina. Desde una perspectiva macro-sociológica
como la de Quijano, la colonialidad del saber y la colonialidad del ser no son más que “derivaciones” de
una “última instancia” de carácter económico-político que sería la colonialidad del poder. Pero desde una
perspectiva genealógica, como la que yo asumo, tendríamos que hablar de tres instancias distintas de la
colonialidad que no son reducibles la una a la otra y que operan no sólo a nivel molar sino también a nivel
molecular.”(CASTRO-GOMÉZ, pág. 8-9,2012)
18
criação da ideia de Europa. Na análise, ele destaca uma articulação em três níveis de
poder, que contribuem para essa leitura não hierárquica de poder. O nível microfísico
operado por tecnologias disciplinares e de produção da subjetividade, um nível
mesofísico que envolve o processo de governamentabilidade expresso na biopolítica, e
um macrofísico composto por dispositivos supraestatais que possibilitam aos países
hegemônicos o uso dos recursos econômicos e ambientais em escala global, remetendo a
uma geopolítica. Em cada um desses três níveis vão aparecer questões que envolvem a
colonialidade (CASTRO-GOMEZ, 200718) A essa cadeia que vincula diferentes redes de
tecnologias de poder, Castro-Gomez interpreta como teoria heterárquica do poder
(...) en una teoría heterárquica del poder (como la que nos ofrece
Foucault), la vida social es vista como compuesta de diferentes cadenas
de poder, que funcionan con lógicas distintas y que se hallan tan sólo
parcialmente interconectadas. Entre los diferentes regímenes de poder
existen disyunciones, inconmensurabilidades y asimetrías, de modo que
no es posible hablar aquí de una determinación «en última instancia»
por parte de los regímenes más globales. Tampoco es posible privilegiar
analíticamente las estructuras molares. Por el contrario, la genealogía
parte de los núcleos moleculares, allí donde se configura la percepción,
los afectos, la corporalidad, en una palabra: la subjetividad de los
actores que son en últimas, quienes incorporan las segmentaciones
globales. De hecho, en una teoría heterárquica del poder no es posible
hablar de estructuras que actúan con independencia de la acción de los
sujetos, como si tuvieran vida propia, sino que es necesario considerar
en primer lugar las prácticas de subjetivación, ya que como bien lo dice
Foucault, el poder pasa siempre por el cuerpo. En lugar de reflexiones
abstractas sobre el funcionamiento de la economía-mundo, sus ciclos
de «larga duración» y las hegemonías geopolíticas que esta economía-
mundo produce, una teoría heterárquica del poder como la de Foucault
18“Tenemos entonces que Foucault distingue tres niveles de generalidad en el ejercicio del poder: un nivel
microfísico en el que operarían las tecnologías disciplinarias y de producción de sujetos, así como las
«tecnologías del yo» que buscan una producción autónoma de la subjetividad; un nivel mesofísico en el
que se inscribe la gubernamentalidad del Estado moderno y su control sobre las poblaciones a través de la
biopolítica; y un nivel macrofísico en el que se ubican los dispositivos supraestatales de seguridad que
favorecen la «libre competencia» entre los Estados hegemónicos por los recursos naturales y humanos del
planeta. En cada uno de estos tres niveles el capitalismo y la colonialidad del poder se manifiestan de forma
diferente. Es precisamente este vínculo en red entre diferentes tecnologías de poder que operan a distintos
niveles de generalidad y con distintos instrumentos, lo que ignora la crítica poscolonial de Said, Bhabha y
Spivak (CASTRO-GÓMEZ, pág.162, 2007)”
19
privilegia el análisis etnográfico tanto del capitalismo como de la
colonialidad (pág. 166-167, 2007)
A teoria heterárquica do poder também seria uma possibilidade para compreender
a colonialidade operando em diferentes âmbitos sociais e escalares, das políticas do
Estado, até as políticas mais locais, não necessariamente usando os mesmos mecanismos,
mas se relacionando. Da mesma forma, os estudos genealógicos, podem ser uma
ferramenta para visibilizar o que não é visto nos estudos e perspectivas que se colocam
unicamente centradas na dimensão da colonialidade do poder em escala macro.
De maneira geral, Castro-Goméz indica que o sistema-mundo moderno/colonial,
deve ser pensado não como hierarquia ou rede de hierarquias, mas como heterarquia,
entendendo a colonialidade como múltipla, e não reduzida a uma relação de capital e
trabalho, orientada por uma reflexão hierárquica em relação as escalas. Não que com isso
ele negue a importância dos regimes globais, mas destaque a importância das teorias que
tornem visível as relações próprias de colonialidade existente nos regimes locais
(CASTRO-GÓMEZ pág. 171, 2007)
Uma leitura de heterarquia19 ou interseccional também é proposta
GROSFOGUEL (2010, pág. 463-464). Mas não necessariamente dentro de um debate
metodológico tal qual apresenta Castro-Gomez. Para Grosfoguel (2010) existe uma série
de hierarquias que se correlacionam, entra elas: a hierarquia racial; a hierarquia sexual, a
hierarquia entre centro e periferia; hierarquia espiritual; hierarquia epistêmica, e
hierarquia lingüística.
“Na esteira do sociólogo peruano Aníbal Quijano (1991;1998;2000),
poderíamos conceptualizar o atual sistema-mundo como um todo
histórico-estrutural heterogéneo dotado de uma matriz de poder
específica a que chama ‘ matriz de poder colonial’. Esta afeta todas as
19 Grosfoguel, admite que sua concepção de heterarquia é semelhante a concepção de heterogeneidade
estrutural construída por Quijano. Segundo ele: “A semelhança da análise do sistema-mundo, a noção de
‘colonialidade’ conceitualiza o processo de colonização das Américas e a constituição de uma economia-
mundo capitalista como fazendo parte do mesmo enredado processo. Contudo, ao contrário da abordagem
do sistema-mundo, a ‘heterogeneidade estrutural’ de Quijano implica a construção de uma hierarquia
étnico-racial global que é, temporal e espacialmente, coeva da constituição de uma divisão internacional do
trabalho com relações centro-periferia á escala mundial. Desde o início da formação do sistema-mundo
capitalista, a acumulação incessante de capital esteve sempre enredada com ideologias racistas,
homofóbicas e sexistas. (Grosfoguel, pág.476, 2010).
20
dimensões da existência social, tais como a sexualidade, a autoridade,
a subjetividade e o trabalho (...) Indo um passo além de Quijano,
conceptualizo a colonialidade do poder como um enredamento ou, para
usar o conceito das feministas norte-americanas de Terceiro Mundo,
como uma interseccionalidade (...) de múltiplas e heterogéneas
hierarquias globais (‘heterarquias’) de formas de dominação e
exploração sexual, política, epistémica, económica, espiritual,
linguística e racial, em que a hierarquia étnico-racial do fosso cavado
entre o europeu e o não-europeu reconfigura transversalmente todas as
restantes estruturas globais de poder. O que a ideia de raça tem de novo
é o modo como a ideia de raça e racismo se torna o princípio
organizador que estrutura todas as múltiplas hierarquias do sistema-
mundo"(GROSFOGUEL, pág. 466, 2010)
Nessa direção, Grosfoguel20 amplia consideravelmente os planos de expropriação
que devem ser vistos na leitura descolonial, mas não deixa de entender a raça como um
dos principais eixos organizadores das relações de capital e trabalho.
O conjunto de leituras sobre concepções e conceituações da colonialidade, bem
como das reflexões metodológicas sobre ela, nos leva a refletir sobre os seguintes pontos:
i) A colonialidade opera em diferentes escalas e sob diferentes formas e
aspectos, e em cada escala ela dispõe de ferramentas e de tecnologias
próprias de poder, que representam um conjunto de características, e
podem estar interligadas ou não.
ii) Se a colonialidade se constitui de variadas formas conforme a escala, isso
também é valido para os espaços e instituições. Cada espaço mobiliza
fatores diferentes da colonialidade, ainda que elas possam se repetir em
outros.
iii) Da relação entre heterarquia e heterogeneidade da classificação social
presente, em que mais de um dos fatores hierárquicos podem agir, ou seja,
a sobreposição de hierarquias, ou efetivamente as heterarquias. Ser mulher
e indígena é diferente de ser homem e indígena nas relações de poder
estruturadas na sociedade.
20 Ao buscar uma aproximação, observamos que Grosfoguel opera com abordagens macro dando
centralidade a colonialidade quando aborda aspectos relacionados a colonialidade do poder, o que o
aproxima de Quijano. Isso pode ser visto em uma d
21
iv) A colonialidade também é multidimensional, no sentido de que não tem
apenas uma dimensão: da política, da economia ou da cultura, ou do saber,
ela se entrecruza e nunca está associada apenas a uma delas, ainda que o
combate a uma das dimensões não significa o combate a todas. O combate
a formas de colonialidade relacionadas ao eurocentrismo nas ciências
sociais, não significa combater também a colonialidade do poder, ainda
que possam ser questionadas de forma associadas.
v) A colonialidade não deixa de possuir um balizamento histórico no que diz
respeito ao poder, a blocos de poder historicamente construídos e que
envolvem o controle do trabalho e do capital, sendo assim, a historicidade
e a geograficidade são elementos importantes para entender a permanência
de determinadas práticas.
vi) A colonialidade opera em âmbitos concretos da vida. Se ela se manifesta
em uma amplitude de situações, é preciso que essas sejam estudas a partir
de um arcabouço e metodologia que tornem visível os seus mecanismos
de funcionamento, os seus dispositivos de poder.
Das possibilidades investigativas: as dinâmicas de reterritorialização das comunidades
remanescentes de quilombo.
Diante dessas questões, um caminho possível para estudar os aspectos da
colonialidade, é através dos sujeitos que constroem uma r-existência territorial. Por r-
existência territorial entendemos os processos de resistência vinculados ao modo de vida
e de gestão do território que grupos sociais tem expresso nas suas territorialidades. Sobre
a relação entre colonialidade e r-existência Porto-Gonçalves aponta que:
Mas dizer colonialidade é dizer, também, que há outras matrizes de
racionalidade subalternizadas resistindo, r-existindo, desde de que a
dominação colonial se estabeleceu e que, hoje, vêm ganhando
visibilidade. Aqui, mais do que resistência, que significa reagir a uma
ação anterior e, assim, sempre uma ação reflexa, temos r-existência, é
dizer, uma forma de existir, uma determinada matriz de racionalidade
22
que age nas circunstâncias, inclusive reage, a partir de um topoi, enfim,
de um lugar próprio, tanto geográfico como epistêmico. Na verdade,
age entre duas lógicas. Assim, nessas resistências, r-existência, as
epistemes e o território (onde a questão da terra tem um lugar central)
ganham uma enorme importância (...) (PORTO-GONÇALVES, 2006,
p. 165)
Um caminho então, é estudar as territorialidades de distintos grupos, e como eles
empregam formas de r-existência frente aos conflitos ao qual estão submetidos21.
Nesse caminho, empregamos o sentido de territorialidade de forma semelhante ao
atribuído por PEREIRA, que mais que indicar uma definição, indica um princípio
metodológico para o trabalho com territorialidades:
A territorialidade pode ser definida a partir de uma teoria heterárquica
do poder, da colonialidade do poder, tanto em termos de domínio
econômico e político, dispositivo de regulação e normatização, quanto
forma/meio de resistência e descolonização. Portanto, é o entendimento
das especificidades das relações de poder, a partir de como se exerce
espacialmente o poder em nossa sociedade moderno-colonial, que nos
permite uma formulação geográfica descolonial do conceito de
territorialidade, diferenciado e articulado ao conceito de território.
(PEREIRA, pág. 7 e 8, 2012) ”
Dentro do campo empírico, citamos as comunidades negras, denominadas de
remanescentes de quilombo, em constante processo de reterritorialização. Os quilombos
sofreram de forma intensa com processos de precarização e subalternização, em casos de
desterritorailização. Principalmente pelas práticas de branqueamento do território22. Mas
21PEREIRA(2012) traz uma importante contribuição que fortalece a nossa proposta nesse artigo. Segundo
ele “As resistências/r-existências moldam territorialidades assim como as territorialidades produzem,
definem e expressam formas de resistências. A resistência/r-existência não é acessória, mas como o poder,
do qual é inseparável, é nuclear na definição de territorialidade.
Assim, definir territorialidade a partir da resistência não é atentar apenas para os conflitos recentes que
envolvem os agentes sociais diversos, resultados das reações ou respostas de determinados sujeitos a
mudanças externas, mas destacar processos históricos nos quais estes constituem suas territorialidades às
“margens” e no “enfretamento” da lógica dominante de territorialização moderno-colonial. Esse
“enfrentamento” (termo que Mignolo [2010] toma de empréstimo de Quijano para falar da gramática da
descolonialidade) não é só resistência, mas também r-existência. Mesmo integradas e relativamente
dependentes, por exemplo, ao mercado capitalista, as territorialidades de grupos subalternizados resistiram
e r-existem, porque seus nexos territoriais não são totalmente submissos às conexões territoriais que
estabelecem.” (PEREIRA, pág. 17, 2012) 22Um dos dispositivos de poder da colonialidade mais eficientes, em nossa leitura é o que chamamos de
branqueamento do território22(SANTOS, 2009, CORRÊA 2013). Caracterizamos de dispositivos da
23
criaram estratégias, e na cena contemporânea se veem novamente em um processo de
disputa.
A história das comunidades remanescente de quilombo23 é marcada pelo
processo de colonialismo, racismo e apagamento durante e após o período da escravidão.
Quilombo antes de 1889 expressou uma diversidade de territorialidades e criação
de redes de solidariedade, informação, comércio e conflito. É em diferentes casos:
refúgio, protesto, revolta, resistência. No final do período escravocrata, grupos que antes
colonialidade por condensar um conjunto de políticas e prática que envolvem a desterritorialização da
população não branca. Esse dispositivo atua em diferentes dimensões, tempos, escalas e espaços. No Brasil
e na América Latina (principalmente no Uruguai e Argentina) possuiu papel significativo dentro de uma
série de políticas públicas e na própria narrativa construída sobre os países. Podemos sistematizar de forma
genérica seis formas de desterritorialização presentes nas práticas de branqueamento: i) Remoção de
símbolos, materializados no território ou inscritos no plano das práticas, mas que necessitam do
território para serem reproduzidos. Colocamos símbolos aqui em um caráter genérico, que pode
significar efetivamente o plano da religiosidade ou da cultura de cada grupo, e as práticas que as reproduzem
no plano social. A remoção pode ser acompanhada também de imposições de outros modelos de
pensamento, tanto no plano da espiritualidade como no plano da cultura. O que gera de certa forma, não só
uma perda da apropriação na dimensão simbólica dos território, como uma imposição na forma de ler e
pensar o território. ii) Apagamento de trajetórias e narrativas territoriais. Aqui tem-se um caráter
simbólico e epistêmico, em que a trajetória de diversos grupos é apagada, bem como e seus marcos
territoriais. Este apagamento implica tanto na destituição do lugar histórico ocupado por diferentes sujeitos,
como na reconstrução de metanarrativas, em que esses grupos são realocados em posições subalternas, ou
até mesmo são colocados como não existentes. Iii) Da proibição (de natureza jurídica ou não) e/ou
criminalização (muitas vezes discriminatória) de determinados usos do território ligados a aspectos
simbólicos, econômicos ou políticos. A proibição nem sempre tem um caráter abertamente jurídico, ela
pode estar no plano das práticas e repressões. Já a criminalização de certos usos, vem acompanhada de
práticas discriminatórias, que perpassam as heterarquias expostas por Grosfoguel(2010). Iv) Da destituição
de modelos de gestão coletiva dos territórios. Podendo ter como consequência a perda do próprio modo
de reprodução econômica, política e cultural dos grupos com gestões distintas do plano jurídico normativo
e hierárquico do Estado-Nação. Exemplo marcante desta prática encontram-se nos grupos indígenas, que
sofreram e ainda sofrem com a imposição de modelos de gestão distintos do que historicamente
construíram.v) Remoção e deslocamento de grupos de um determinado território, ou seja, efetiva perda
do território para diversos grupos. Em alguns casos, como com as populações negras, estes grupos foram
deslocados para territórios mais afastados dos centros, ou para áreas de menor assistência do Estado, de
caráter segregacionista. vi)Do efetivo genocídio, que visa o fim do outro, para tomada do seu território. De
forma geral são práticas de poder historicamente construidas Não são espontâneas, são planejadas dentro
do ordenamento territorial, e dentro de uma lógica moderno-colonial e racista, até porque a emancipação
nacional não transformou a ideia de raça, e nem os legados coloniais. O fim do colonialismo não mudou
“as múltiplas e heterogêneas estruturas globais implantadas durante um período de 450 anos(...)
continuamos a viver sob a mesma ‘matriz de poder colonial”(GROSFOGUEL, 2010, pág 467), passamos
de um colonialismo global para um colonialidade global (GROSFOGUEL, 2010). Dessa forma ainda que
as práticas que levam a desterritorialização detenham um caráter de generalidade, elas se configuram em
grupos concretos. O branqueamento do território, aparece no ordenamento do Estado Nacional e se
manifesta em situações coloniais(GROSFOGUEL, 2010), ou seja, territórios em que as práticas de poder
reproduzem lógicas de dominação construídas durante a administração colonial
24
eram chamados de quilombolas, e tantos outros grupos negros que poderiam ser assim
também chamados pela sua gestão territorial, viviam incorporados ao campesinato –
principalmente os localizados distantes do centro, onde a opressão era menor. Mas nem
assim, escaparam de processos de violência, de apagamento e desterritorialização, ainda
que nem sempre acompanhado de remoção do território.
Grupos que passaram por uma intensa dinâmica de des-reterritorialização24. Sua
reterritorialização já nasce como uma forma de resistências, de descolonização e
tensionamento, uma experiência de giro descolonial. Grupos, que em muitos casos, dentro
de uma leitura de des-reterritorialização podem sem ser vistos como “desterritorializados
em busca de uma outra reterritorialização, de resistência e, portanto, distinta daquela
imposta pelos seus desterritorializadores. (HAESBAERT, pág.259, 2006). Ou seja,
grupos que mesmo diante de práticas de violência e remoção, de precarização, buscam
alternativas, ou criam estratégias de permanência em seus territórios.
No final do século XX elas voltam a figurar enquanto categoria jurídica,
ganhando visibilidade em esfera nacional diante do número de comunidades lutando pelo
processo de titulação de suas terras junto ao INCRA após a promulgação do artigo 68 do
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias25 que reconhece direitos as
comunidades que estejam ocupando as suas terras.
Mais de um século depois26 de figurar nas legislações como instrumento
criminal, a criação do artigo transforma as comunidades quilombolas em coletivos com
24Aqui fala-se em um processo simultâneo e indissociável entre desterritorialização e reterritorialização,
uma vez que, a desterritorialização requer impreterivelmente uma reterritorialização. Isso acontece, pois a
sociedade prescinde de uma base geográfica para se territorializar, necessária aos grupos para sua
reprodução, física, simbólica, política e cultural. Nenhum grupo vive em um território no vácuo, por mais
que esteja em um território extremamente precário (HAESBAERT, 2006). 25Tem-se ainda na mesma constituição, dois decretos que serão utilizados para fortalecimento do debate
jurídico a favor das comunidades quilombolas, que são os decretos 215 e 216, que versam sobre a
valorização e preservação das manifestações culturais dos afro-brasileiros, e tombamento – entre outros –
dos “sítios detentores de reminiscência histórica dos antigos quilombos” bem como o decreto 4887 de 2003,
que indica a auto atribuição como critério para certificação. 26Existe uma descontinuidade/silenciamento entre essas duas formas de olhar os quilombos na legislação,
que dura um século, localizada entre os anos de 1889 e 1989. Um silêncio, enquanto categoria jurídica, que
passou a ser refém daquilo que presumia, um Brasil branco, pautado pela miscigenação, e de população
homogênea, onde não deveriam existir territorialidades negras tal qual aquelas do imaginário pautadas no
modelo Palmarino de negros fugidos e isolados, fora de áreas urbanas ou no caminho de produções do
agronegócio.
25
direito ao território, e muda o cenário e os regimes de visibilidade destes grupos. A partir
disso as comunidades negras, espalhadas pelo Brasil com outras denominações, como
terras de preto, terras de santo e comunidades de senzalas, começaram a se apropriar da
legislação e disputar junto a acadêmicos e juristas, a ressemantização do termo e
efetivamente o direito ao território. Com isso elas passam também a recuperar memórias,
criar estratégias e novas práticas, e assumir um papel diferente na relação com outros
sujeitos nas regiões onde se localizam.
Nesse sentido comunidades remanescentes de quilombo, aqui é entendido como
grupos que através de suas territorialidades engendraram formas de r-existência (passada
e presente) com o objetivo de manutenção e reprodução de seus territórios coletivos (no
uso ou na relação entre uns e outros), e se constituem a partir de laços de parentesco. Eles
não são necessariamente homogêneos, havendo distinções entre comunidades, e nas
próprias comunidades. Eles tensionam as heranças coloniais, a partir de práticas e
estratégias que desafiam o que foi estabelecida para elas.
São grupos que passaram a ocupar seus atuais territórios a partir de doações de
terras dos antigos fazendeiros, ocupação de fazendas abandonadas, compra de fazendas
realizadas por escravos libertos, ocupações de terra devolutas entre outras. Estão em
espaços rurais marcados por laços coloniais de expropriação, a face perversa da
modernidade. Também ocupam zonas urbanas, ou mesmo áreas antes rurais, mas que
passaram por processos de urbanização. Pertencem a áreas que geraram unidades de
conversação, e são ameaçados por elas, a medida que a legislação de algumas de suas
modalidades não permitem grupos vivendo em suas terras. São também ameaçados pelo
turismo, por situarem-se em paisagens valorizadas, principalmente aquelas que mantém
elementos que remetem a lagos, praias, florestas.
Desde a criação deste artigo, um número superior a duas mil comunidades (cf.
dados da Fundação Cultural Palmares) passou a requerer o direito à terra, e entraram no
processo burocrático e político para conseguir os respectivos títulos. Porém, deparam-se
no caminho com uma série de obstáculos e antagonistas, que num campo de correlação
de força disputam o direito e os sentidos do território.
26
Nesse processo marcado por conflitos de diversas naturezas, sofrem com a
burocracia e discursos27 de origem colonial, produzidos para criminalizar e retirar a
legitimidade das comunidades que requerem direito ao território a partir da sua
pluralidade28. Entretanto, no próprio ato de busca pelo direito, criam-se processos de
resistência, e são produzidos/mobilizados repertórios de luta, durante as disputas pela
permanência no território.
São estas estratégias e embates que demonstram as lutas e visibilizam as práticas
de poder exercidas, lutas por reconhecimento e redistribuição. São estratégias plurais, em
que cada uma das comunidades mobiliza um repertório de lutas próprio dentro dos
processos de resistência, pois os conflitos em cada comunidade nem sempre possuem a
mesma natureza. Elas enfrentam diferentes agentes, que variam em suas práticas segundo
seus interesses, e se situam dentro de um contexto espacial com narrativas e história
própria.
Propor estudos em comunidades quilombolas, ajuda a revelar alguns dos meios
de ação da colonialidade a partir das resistências mobilizadas por estes coletivos. Nesse
caminho algumas questões são importantes de serem destacadas:
a) Em relação ao campo normativo: quais são as etapas balizadoras para que os
coletivos negros tenham seus territórios certificados e posteriormente titulados como
quilombolas no campo jurídico normativo, e como isso afeta o processo de
territorialização das comunidades? Em qual etapa a maioria das comunidades se
encontram hoje? Quais são os imaginários e narrativas que constituem a produção dessas
normas por parte da burocracia do Estado? Como os agentes influenciam e disputam esse
campo?
27Nesses discursos procura-se rejeitar a pluralidade de formas e características da territorialidade as
comunidades remanescentes de quilombo assumem atualmente, que variam de acordo com os contextos
geohistóricos em que se reterritorializam, e pela trajetória marcada não só pela subalternização econômica,
mas também pelo processo de escravidão baseado na ideia de raça, um dos traços constituintes da
colonialidade do poder no mundo moderno-colonial. 28Essa pluralidade emerge principalmente no processo de luta para o efetivo direito ao território, que passa
por etapas normativas por parte do Estado, analíticas presentes nos laudos e processo de reconhecimento e
de construção de práticas desses grupos.
27
b) em relação ao campo dos antagonistas: Quem são os agentes que se colocam contra
estes grupos, e quais suas estratégias de desterritorialização? Quais os meios e
ferramentas que eles mobilizam nesse processo? Quais são as escalas de atuação?
c) em relação as comunidades: Como as comunidades quilombolas se mobilizam e
criam estratégias e práticas no curto e longo prazo para obter legitimidade na disputa pelo
título da terra? Quais são seus repertórios de luta? Em quais escalas essas resistências
operam? Quais são os agentes parceiros? Qual a relação com o poder político local? Qual
a relação com as escolas que estão próximas ou dentro dos quilombos?
d) Em relação ao campo de conflitos: Quais são os conflitos internos e externos que a
comunidade se depara? Qual a natureza desses conflitos? Como esses conflitos afetam o
uso e o controle do território por parte da comunidade?
Essas questões funcionam como caminho exploratório para pensar o contexto de
cada comunidade. Os conflitos e as características não se limitam a este grupo de
perguntas, mas expressam questões fundamentais de serem trabalhadas em pesquisas a
partir do campo geográfico.
Considerações finais.
Percorremos um caminho com a intenção de problematizar certos aspectos de uso
do território e sua contribuição como mediação entre os estudos de matriz descolonial e
as lutas que emergem na América Latina. Para isso era preciso entender os usos e a
importância analítica de pensar o conceito de território, bem como seus cuidados. Após
discutirmos as relações de poder-resistência e como elas se articulam ao conceito de
território, buscamos entender o contexto espacial, político e epistêmico que recobre os
processos e as relações de poder estruturadoras e que dão lastro interpretativo para o
estudo das sociedades latino americanas, principalmente a partir da leitura da
colonialidade. Ali questionamos alguns aspectos referentes metodologia e identificamos
algumas características importantes para os estudos sobre colonialidade.
28
Percorrer esse caminho, gera uma amplitude de possíveis leituras sobre lutas
sociais, e, principalmente, a entender as dinâmicas de des-reterritorialização pela qual
muitos desses grupos passaram. Assim, a partir do caso das comunidades remanescentes
de quilombo no Brasil, foi pensado possíveis caminhos investigativos para o
entendimento desses territórios de r-existências. Esse caminho se deu através da
exploração de perguntas comuns a grande parte das comunidades, e que atravessam a
relação poder-resistência para pensar a experiência desses grupos, como experiências
territoriais descoloniais.
O entendimento do campo complexo de lutas que essas comunidades atravessam,
nos apresenta a importância dos estudos de caso. Procurar identificar as respostas as
questões colocadas, torna-se um meio, para observar como as resistências se colocam
dentro de um campo de experiência descolonial.
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