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36 | OPINIÃOsetembro/outubro | 2018 | VIDA JUDICIÁRIA
Em Maio deste ano os portugue-ses assistiram, incrédulos, às ima-gens televisivas de um grupo de
indivíduos encapuçados a correrem no centro de estágios de um clube de futebol, seguidas de imagens do inte-rior vandalizado de um dos edifícios do complexo. À medida que a infor-mação foi chegando, soube-se que um grupo de algumas dezenas de adeptos do clube, pertencentes a uma das suas claques, haviam invadido a academia do clube, destruído parte do balneá-rio, ameaçado e agredido jogadores e membros da equipa técnica. Fervor clubístico à parte, a generalidade das pessoas teve uma reacção de repúdio, quando não de consternação, pelo su-cedido, para mais, objecto de ampla divulgação mediática, até mesmo in-ternacional.
Sucederam-se as notícias da deten-ção de parte do grupo e a sua apresen-tação para primeiro interrogatório ju-dicial, a aplicação de medidas de coac-ção gravosas (prisão preventiva para todos os arguidos) e ainda o elenco de crimes que se entendeu indiciados pela conduta entre os quais o crime de ter-rorismo previsto e punido pelo artigo 4.º, n.º 1, por referência ao artigo 2.º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 52/2003.
Esta indiciação assentou numa in-terpretação da norma incriminadora segunda a qual, existindo um grupo de mais de duas pessoas conluiadas que praticaram actos abstractamente enquadráveis nas previsões no n.º 1 do artigo 2.º e visando a conduta dos agentes a intimidação de um grupo específico de pessoas (equipa técnica e jogadores do SCP), tal conduta poderá recair na tipificação da norma citada.
Embora, de um ponto de vista hi-potético, seja comportada pelo tipo
incriminador, esta interpretação é de alguma forma surpreendente já que o comum das pessoas e mesmo os juris-tas associam o conceito de terrorismo a um fenómeno diferente, de índole política e não a actos com uma evi-dente conexão à actividade desportista
Na verdade, o conceito clássico de terrorismo acolhido pacificamente pela generalidade das pessoas e por isso já sedimentado na sociedade, até
mesmo etimologicamente, assenta na ideia que o acto terrorista tem por fim a subversão da ordem pública.
A esta ideia não é estranho o ressur-gimento, já neste século, do fenóme-no terrorista por via do extremismo religioso em crescendo desde o 11 de Setembro de 2001, depois do inter-regno de uma década – de 90 – que se sucedeu aos “anos de chumbo” (70 e 80) em que se notabilizaram grupos como as Brigate Rosse (rapto do pri-meiro ministro italiano, Aldo Moro), RAF/Baader-Meinhoff (rapto do “patrão” da industria alemã, Hanns--Martin Schleyer), e que ajudou à cristalização do conceito de terroris-mo como a tentativa de subverter a ordem pública instituída por meio de violência exercida sobre pessoas, bens ou instituições.
No fundo trata-se da agressão do es-tado de direito por meio do ataque às instituições democráticas e aos prin-
cípios basilares em que aquele assen-ta e protege (note-se que na Republi-ca Federal da Alemanha a agência de segurança interna com responsabili-dades na perseguição do terrorismo denomina-se Gabinete Federal para a Protecção da Constituição – Bundesa-mt für Verfassungsschutz).
É esta a noção essencialmente su-posta pelos tipos incriminadores pri-mários que punem o terrorismo: pri-meiro nos artigos 300.º (Organizações Terroristas) e 301.º (Terrorismo), e também pelos tipos extravagantes que os substituíram introduzidos pela Lei n.º 52/2003, de 22 de Agosto (Lei de Combate ao Terrorismo), nomeada-mente os consagrados nos seus artigos 2.º e 3.º (Organizações Terroristas),
4º (Terrorismo), 5.º (Terrorismo In-ternacional) e 5.º-A (Financiamento do Terrorismo).
A alteração, introduzida em cum-primento da Decisão-Quadro (CE) do Conselho n.º 2002/475/JAI, de 13 de Junho de 2002, relativa à luta con-tra o terrorismo, claramente reactiva e não programada, teve como causa e finalidade a adaptação do sistema ju-diciário-penal à realidade do mundo pós 11 de Setembro.
O “velho” terrorismo de raiz ideo-lógica, deu lugar a outro bem mais sofisticado que ao invés de se margi-nalizar integra-se nas sociedades que quer atacar, usando em seu benefício a liberdade assegurada pela democra-cia e salvaguardada pelo Estado de di-reito, valendo-se da globalização para endoutrinar e disseminar a sua pro-paganda por via dos meios de comu-nicação electrónica que lhe são dispo-nibilizados.
Terrorismo: um novo conceito?
Manuel Nobre CorreiaAdvogadoRSA Advogados
Não surpreende, pois, que a Lei n.º 52/2003 venha tornar os tipos incri minadores mais abrangentes do que os anteriores crimes do catálogo, pese embora os bens jurídicos tutelados sejam essencialmente os mesmos (...)
Miguel MatiasAdvogadoRSA Advogados
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OPINIÃO | 37
VIDA JUDICIÁRIA | setembro/outubro | 2018
A modernização do terrorismo, ini-ciado com operações de grande enver-gadura com uma logística complexa e com especialidade de execução eleva-da (ataque ao WTC), deu lugar, nos dias de hoje, a um terrorismo menos elaborado e assente em microcélulas espontâneas autossuficientes, estan-ques e autofanatizadas ou fanatizadas à distância, perfeitamente integradas no seio das sociedades que tomam por al-vos, obrigando à correlativa adaptação dos meios de repressão penal.
Não surpreende, pois, que a Lei n.º 52/2003 venha tornar os tipos incri-minadores mais abrangentes do que os anteriores crimes do catálogo, pese em-bora os bens jurídicos tutelados sejam essencialmente os mesmos: a integrida-de ou a independência nacionais, o fun-cionamento das instituições do Estado previstas na Constituição, a liberdade de actuação e autonomia da autoridade pública e a prevenção da intimidação de certas pessoas, grupo de pessoas ou da população em geral, numa palavra, o Estado de direito garante da paz pública (vg. artigo 300.º, n.º 2, [revogado] do Código Penal e o equivalente artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 52/2003).
Com a vigência da Lei de Comba-te ao Terrorismo, o elenco tradicional das actividades qualificáveis como ter-roristas previstas no artigo 2.º, n.º 1, sensivelmente correspondente ao ca-tálogo do artigo 300.º do Código Pe-nal, é, por força do artigo 4.º da Lei 52/2003, foi acrescentado por uma nova tipologia de actos considerados, para efeitos da incriminação, como terroristas: furto qualificado, roubo, extorsão, burla informática e nas co-municações, falsidade informática, ou falsificação de documento, a di-fusão ou incitação à prática de actos terroristas, e também, por meio de comunicação electrónica ou internet, o mero acesso a tais conteúdos, o re-crutamento de pessoas para a prática desses actos, o treino ou instrução de outrem sobre o fabrico ou a utiliza-ção de explosivos, armas de fogo ou outras armas e substâncias nocivas ou perigosas, ou sobre métodos e técni-cas específicos para a prática daqueles actos, recompensar ou louvar pessoas
ou organizações que tenham praticado actos terroristas em reunião pública ou por meios electrónicos, viajar para ou-tro país ou território quer para treino ou actos preparatórios de actos terro-ristas, quer para aderir a organizações ou grupos terroristas, bem como fi-nanciar tais viagens.
Outras novidades introduzidas pela Lei 52/2003 são a equiparação das or-ganizações terroristas e terrorismo in-ternacionais às nacionais (artigo 5.º) e a possibilidade de perseguição pe-nal de empresas pela prática de actos terroristas ou pertença a organizações terroristas (artigo 6.º), bem como a autonomização do financiamento de toda a esta constelação de actos em qualquer uma das suas dimensões.
Contudo, a própria lei subentende que todos estes crimes se qualificam como terroristas “sempre que, pela sua natureza ou pelo contexto em que são cometidos, estes crimes sejam suscep-tíveis de afectar gravemente o Estado ou a população que se visa intimidar” (artigo 2.º, n.º 1). Ou seja, a tutela pe-nal supõe um conceito de terrorismo como o ataque a instituições e grupos para pôr em causa o estado de direito.
Face à ratio e noção do bem jurídico tutelado pelos tipos em causa, é ques-tionável se interpretá-los num sentido que permite a sua aplicação a um caso de banditismo não será extravasar as fi-nalidades punitivas daqueles que, esta-mos em crer, não visam tais condutas.
É que o âmbito de aplicação da nor-ma é de tal forma amplificado que qualquer actuação de 2 pessoas que se conluiam para intimidar ou agredir outras pertencentes a um grupo iden-tificável é, em abstracto, passível de se qualificar como crime de terrorismo.
Vejamos um exemplo do que dize-mos: 2 alunos do ensino secundário ameaçam, agridem, manietam os de-mais colegas da sua turma. De acordo com aquela interpretação, a conduta
destes alunos seria subsumível ao cri-me de terrorismo!
Este exemplo legítima toda uma sé-rie de questões a primeira das quais é se o legislador com a publicação da lei quis punir condutas desta natureza? Ou se esta interpretação não fomen-ta a confusão entre o crime de orga-nização terrorista e o de associação criminosa? Ou, com maior acuidade, se não se estará a criar uma noção de terrorismo ambígua?
A intenção de intimidar certas pes-soas ou grupo de pessoas seguramente não se materializa num grupo de jo-gadores de futebol porque, pese em-bora a enorme visibilidade mediática, mercê da popularidade do desporto, não nos parece que as agressões inti-midações ou grupo de jogadores sejam passiveis de subverter a paz pública no sentido gerar uma alteração da ordem constitucional. As pessoas ou grupo de pessoas supostas pela norma são aque-las que cujo ataque põe em causa o es-tado de direito: magistrados, deputa-dos, militares, polícias, defensores dos direitos de imigrantes, membros de um partido político, pessoas de uma dada etnia, etc.
Num momento em que a salva-guarda dos direitos humanos assenta numa vasta tipologia de normas in-criminadoras, prevendo praticamen-te todas as condutas anti-sociais, não parece necessário interpretar um tipo incriminador tão sensível como sendo aplicável a uma conduta que melhor se subsume a outro.
É por isso que urge interpretar de forma mais restritiva os tipos incri-minadores em causa recentrando-os na ideia de terrorismo original, so-cialmente aceite e consentânea com as regras da experiência comum, evi-tando estender o âmbito de punição dos tipos a tal ponto que necessaria-mente supõem um novo conceito de terrorismo.
(...) não nos parece que as agressões inti midações ou grupo de jogadores sejam passiveis de subverter a paz pública no sentido gerar uma alteração da ordem constitucional