tese-_1_ bruxaria inquisição pará
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PEDRO MARCELO PASCHE DE CAMPOS
INQUISIO, MAGIA E SOCIEDADE
Belm, 1763-1769
Dissertao apresentada ao Curso de Ps-Graduao em Histria da UniversidadeFederal Fluminense, como requisito parcialpara obteno do Grau de Mestre. rea deConcentrao: Histria Social das Idias.
Orientador: Prof. Dr Lana Lage da Gama Lima
NITERI
1995
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-ABREVIATURAS
ANTT -Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa
BNRJ-SM -Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro -Seo de Manuscritos
HGCB -Histria Geral da Civilizao Brasileira
IHGB -Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro
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- NDICE -
PEDRO MARCELO PASCHE DE CAMPOS1
NITERI1
19951
CAPTULO 115
-INQUISIO, CRISTOS-NOVOS E REFORMAS - 15
I -A IMPLANTAO DO TRIBUNAL: QUESTES RELIGIOSAS E DE
ESTADO15
- Muito Alm de Questo de F, um Assunto de Estado. 21
II -INQUISIO NO CONTEXTO DAS REFORMAS25
-A Normatizao dos Cristos Velhos26
CAPTULO 354
-POLTICA POMBALINA E INQUISIO - 54
I -PANORAMA DO PORTUGAL PR-POMBALINO54
-Breve Histrico da Governao Pombalina54
-Ao de Pombal: fortalecer o poder real...57
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-...E Subjugar as Oposies.61
II -POMBAL, OS JESUTAS E A INQUISIO68
-Contra os Jesutas69
-Inquisio e Estado80
CAPTULO 492
-A VISITAO EM SEU CONTEXTO - 92
I -GRO-PAR: OCUPAO E COLONIZAO92
-A Poltica Pombalina no Par95
II APORTA O VISITADOR102
-Explicando a Visitao105
-Os Pecados de Belm do Par ante o Visitador109
CAPTULO 5116
-AS ARTES MGICAS PARAENSES- 116
I -ALGUMAS QUESTES PRELIMINARES116
II -CONJUROS E FEITIARIAS120
-Magia Divinatria120
-De Amores Danados e Artes Encantatrias125
-Bichos e Sevandijas132
-Mandingas e Patus141
III PACTOS DEMONACOS144
IX -BIBLIOGRAFIA153
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E assim vieram os governadores, preocupados com a
ordem, os padres, preocupados com as almas, e os
inquisidores, preocupados em conciliar as almas com a
o r d e m .
Emanuel Arajo, O Teatro dos Vcios.
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INTRODUO
Esta pesquisa tem como tema a anlise das relaes entre magia e sociedade no
Par setecentista, atravs do Livro da Visitao inquisitorial, ocorrida naquela regio no
sculo XVIII. Interessa, aqui, a investigao das bases do funcionamento de tal relao, isto ,a aplicabilidade e funo desempenhada pela magia dentro do universo maior da mentalidade
religiosa paraense, e como esta se inseria na vida social.
Dentre as visitas inquisitoriais ao Brasil, a paraense permanece sendo a menos
estudada. Suas denncias e confisses, episodicamente, so mencionadas em outros estudos
que utilizam fontes inquisitoriais. Contudo, a visita setecentista continua sendo pouco
freqentada por nossa historiografia, no possuindo escritos que lhe sejam totalmente
dedicados - excetuando-se os textos do Prof. Jos Roberto do Amaral Lapa, responsvel pela
localizao em Portugal, na dcadade 1960, do Livro da Visitao1.
Ocorrida na segunda metade do sculo XVIII, quando a Inquisio h muito j
havia deixado de fazer uso deste expediente, a visita paraense chama a ateno, devido s suas
peculiaridades. Uma delas sua realizao tardia, num momento em que institucionalmente o
1 Responsvel tambm pela publicao do manuscrito inquisitorial, J. R. A. Lapa escreveuA In quisi o no Par in Boletim Internacional de Bibliografia Luso-Brasileira ,
vol. X, n 1, Lisbo a, Fun dao Caloust e-G ulben kian, jan-m ar 1969; a com un icao ODiabo , um bom companh eiro? apersen tada ao I Congress o In ter nacional e Luso-Brasileiro sobre a Inquisio, So Paulo, 1987 (mimeo) - publicada, com alteraes, sobo tt ulo D a nece ssidad e do Diabo (imaginrio social e cot idiano no Brasil do sculoXVIII) in Resgate : Revista interdisciplinar de cultura do Centro de Memria daUNICAMP, Campinas, 1990, vol.1, pp.39-55. Do mesmo autor encontra-se, ainda, oestudo introdutrio presente na publicao do Livro da Visitao .
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Tribunal perdia foras e autonomia, at se transformar em Tribunal Rgio, totalmente
submisso Coroa lusitana.
Some-se a isso um outro fator: a demorada permanncia do visitador em terras
paraenses. Os registros do Livro da Visitao abrangem o perodo entre 1763 e 1769, muitomais longo do que os costumeiros dezoito meses que, em mdia, costumava durar uma visita
inquisitorial2.
Tanto tempo de durao, porm, gerou um pequeno nmero de apresentaes
Mesa inquisitorial. Apenas 46 pessoas procuraram o visitador, quer seja para confessar ou
para denunciar: uma soma incrivelmente pequena, para aquela que foi a mais longa visita
inquisitorial em terras braslicas. Este nmero realmente reduzido, se comparado com o
volume de confisses e denncias gerado pelas duas visitas anteriores.
Os delitos confessados e denunciados constituem um elemento de interesse
parte. A visita paraense muito pouco tratou de judasmo, contrariando as tendncias
repressivas da Inquisio portuguesa, em vigor desde sua instalao no sculo XVI. O foco
das evidncias recaiu sobre as prticas mgicas, como o curandeirismo, as adivinhaes, as
oraes amorosas e os pactos com o Diabo. A magia aflorou na visitao paraense, com uma
fora e pujana at ento jamais vistas em visitas anteriores.
Em instigante estudo, Carlo Ginzburg atenta para o fato de que a descoberta
dos arquivos da Inquisio como importante documentao histrica (...) um fenmeno
tardio 3. A preocupao dos primeiros pesquisadores era, em meados do sculo XIX, com o
funcionamento da mquina inquisitorial, bem como com a histria cronolgica do Tribunal.
Tal tipo de estudos, em sua maior parte, tinha por objetivo deplorar a barbrie e o
obscurantismo inquisitoriais. Como o caso, por exemplo, de dois clssicos que so, ainda
hoje, de suma importncia para o estudo da Inquisio portuguesa: as obras de Alexandre
Herculano e Jos Loureno D. de Mendona & Antonio Joaquim Moreira 4.
2 Francisco Bethencourt, Inquisio e Controle Social , ex. mimeo, 1986, pag. 8.3 Carlo Ginzbur g, O inquisidor como antro plo go: uma analogia e as suas implicaes
in A Micro-Histria, Lisbo a/ Difel; Rio de Janeiro/ Bertran d Brasil, 1991, pag. 203.4 Alexandre Herculano, Histria da Origem e do Estabelecimento da Inquisio em
Portugal (1852), Lisboa, Europa-Amrica, s.d., 3 vols. Jos Loureno D. de Mendona
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Contudo, foi somente no presente sculo, graas influncia do grupo dos
An na les , que as fontes inquisitoriais foram, por assim dizer, definitivamente descobertas .
Com a valorizao das camadas sociais menos favorecidas, dos grupos sociais e do homem
comum como objeto de pesquisa histrica, cada vez mais historiadores passaram a utilizar as
fontes inquisitoriais. Isto porque elas fornecem janelas que permitem o estudo de vises de
mundo, rituais, atitudes e crenas que, no fosse o fato de terem passado pelo crivo repressor
do Santo Tribunal, estariam definitivamente fora de nosso conhecimento5.
No que tange aos estudos utilizando fontes inquisitoriais em Portugal e no
Brasil, nota-se uma predominncia do tema judaico nos debates. O delito mais perseguido pela
Inquisio portuguesa foi tambm o que mais estudos gerou. A historiadora Anita Novinsky
assinala o fato de que no Brasil, aps os estudos pioneiros de eruditos desbravadores como
Rodolfo Garcia e Capistrano de Abreu, publicados no incio do sculo XX - e que foram os
primeiros a utilizar fontes inquisitoriais manuscritas -, nada mais foi feito por longo espao de
tempo6.
Assim permaneceu o estado das investigaes em fontes inquisitoriais, dentro
da historiografia brasileira, at a virada entre as dcadas de 1960-70. Nessa poca, quando
foram realizados e publicados estudos importantes como o da prpria Anita Novinsky sobre
cristos-novos e Inquisio na Bahia -inspirado no estudo de cunho marxista de Antonio Jos
Saraiva, que inaugurou uma nova era na historiografia inquisitorial portuguesa7
-, alm doestudo de Sonia Aparecida Siqueira. Este ltimo, apesar de apresentar avaliaes criticveis no
e Antnio Joaquim Moreira, Histria dos Principais Actos e Procedimentos daInquisio em Portugal , Lisboa, Impr ensa Nacional/ Casa da Moeda, 1980. Curioso
caso de um livro-den ncia mode rno a obr a de Frd ric Max, Prisioneiros daInquisio , Porto Alegre, L&PM, 1991 (a data do copyright 1989). No outro plo dadiscusso (embora no menos curioso) est um livro que sob o pretexto dacontextualizao isenta, faz discreta defesa e apologia do Tribunal: ver Joo BernardinoGarcia Gonzaga, A Inquisio em seu Mundo , So Paulo, Saraiva, 1993.
5 Sobre a valorizao das classes menos abastadas enquanto objeto de pesquisa histrica,e a ut ilidade das fon tes inq uisito riais, ver Jim Sharp e, A H ist ria vista de baixo inPeter Burke (org.), A Escrita da Histria , So Paulo, UNESP, 1992, pp. 39-62, eBartolom Bennassar, Inquisit ion Espag nole Comme Source pour l H istoire desMentalits, mimeo, 12p.
6 Anita N ovinsky, Cristos Novos na Bahia , So Paulo, Perspectiva, 1972, pag. 14.7 Antonio Jos Saraiva, Inquisio e Cristos-N ovos , Lisboa, Estampa, 1985.
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que tange religiosidade colonial e suas relaes com o Santo Ofcio, traz abundantes e
precisas informaes sobre a organizao, funcionamento e estrutura do Tribunal no Brasil8.
durante a dcada de 1980 que a influncia da Nou ve lle Hist oi re , filha direta dos
Annales, traduz-se em pesquisas que utilizam fontes documentais da Inquisio portuguesa.Os trabalhos seminais de Lana Lage, Laura de Mello e Souza, Luiz Mott e Ronaldo Vainfas9,
por exemplo, trazem em si a renovao metodolgica preconizada pelo movimento francs,
no trato com as fontes inquisitoriais. A comear pelos temas de pesquisas e pelo tratamento
qualitativo das fontes, estes trabalhos vm influenciando, atualmente, diversas investigaes
que fazem uso de documentao inquisitorial, entre as quais se insere esta pesquisa.
Em importante artigo, Bartolom Bennassar chama a ateno para o uso das
fontes inquisitoriais no mbito da Histria das Mentalidades. Marca o fato de que este tipo de
histria enfatiza as fontes judicirias, justamente porque elas permitem atingir, ainda que
indiretamente, as classes populares - os mudos da Histria -, dando-lhes voz10. Os
interrogatrios inquisitoriais trazem luz, efetivamente, a palavra das pessoas comuns que,
no fosse esta ocasio de exceo, estaria perdida. Estas fontes, segundo Jim Sharpe,
permitem que o historiador consiga chegar to prximo s palavras das pessoas, quanto
consegue o gravador do historiador oral 11
Isto se explica pela razo de ser e funcionamento do Tribunal. Para extirpar as
heresias e comportamentos desviantes, o Santo Ofcio possua uma maneira prpria de
proceder - o chamado es ti lo inquisitorial que, sumariamente, consistia em trs etapas: o
conhecimento do delito, a partir da denncia ou confisso, onde eram levantados todos os
dados possveis sobre o delito, o praticante (inclusive a vida pessoal sua e de sua famlia) e
cmplices; a exposiodo delito, onde as faltas eram apregoadas ao pblico nos Autos-de-F;
8 Sonia Aparecida Siqueira, A Inquisio Portuguesa e a Sociedade Colonial , SoPaulo, tica, 1978.
9 Como, por exemplo, os trabalhos de Lana Lage da Gama Lima, A Confisso PeloAvesso , Tese de Doutoramento apresentada USP, 1991; Laura de Mello e Souza, ODiabo e a Terra de Santa Cruz , So Paulo, Companhia das Letras, 1987; RonaldoVainfas, Trpico dos Pecados , Rio de Janeiro, Campus, 1990. Destaque especial deveser dado obra de Luiz R. B. Mott, profundo conhecedor das fontes inquisitoriaislusitanas.
10 Bennassar, op. cit., pag. 1.11 Sharpe, op. cit., pag. 48.
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finalmente, a expiao da culpa, atravs do cumprimento da pena imposta, o que acarretava a
reconciliao com o grmio da Igreja.
Para o estudo aqui proposto, a primeira etapa a que possui maior interesse,
na medida em que consiste na pesquisa biogrfica dos acusados e envolvidos, bem como nabusca pelas descries mais minuciosas possveis dos delitos - que constam dos processos e,
tambm, dos livros de visitao. Graas ao detalhismo inquisitorial, presente nos depoimentos,
o estudioso da feitiaria no Brasil colonial (entre outros temas) consegue relatos com razovel
exatido dos rituais e prticas mgicas. As descries de danas, cnticos, preces e objetos de
culto constituem-se em minuciosas etnografias das prticas oriundas da religiosidade popular,
possibilitando ao historiador um conhecimento detalhado desses atos.
O trabalho com documentao inquisitorial, contudo, requer alguns cuidados.O pesquisador que adentra o universo de tais fontes deve estar sempre acautelado e
prevenido, pois no so poucas as armadilhas que lhe so prprias.
Ao traar o panorama de uma nova histria , que fruto dos Annales, Peter
Burke menciona o fato de que os maiores problemas para os novos historiadores (...) so
certamente aqueles das fontes e mtodos . Um dos problemas mencionados por Burke assalta
a todos aqueles que trabalham com fontes inquisitoriais: o de tentar reconstruir as
suposies cotidianas, comuns, tendo como base os registros do que foram acontecimentos
extraordinrios nas vidas do acusado (sic): interrogatrios e julgamentos 12.
Isto porque um depoimento frente Mesa inquisitorial era, no poucas vezes,
fruto de uma situao de opresso e terror - propositalmente provocado pelo Tribunal. Por
este fato, deve-se ter em mente, sempre, o contexto singular no qual estas fontes foram
produzidas. H um jogo desigual de poder, onde o inquisidor leva uma ntida vantagem sobre
o depoente, e no qual o esforo do primeiro em extrair deste ltimo uma verdade , no
poucas vezes, bem sucedido. Em funo da situao opressora, e at mesmo em virtude de
algumas passagens pelos aparelhos de tortura, o ru falsearia a verdade e entregar-se-ia,cumprindo assim o papel que, esperava-se, ele representasse. Segundo Ginzburg, neste caso os
processos inquisitoriais apresentam uma estrutura textual mondica, onde as respostas dos
12 Peter Burke, Abert ura: A No va Hist ria, seu passado e seu futu ro in Burke (org.),pag. 25.
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rus so meros ecos s questes e mentalidade dos inquisidores13. Para Ginzburg, cabe ao
historiador a sensibilidade de captar, para l da superfcie aveludada do texto, a interao sutil
de ameaas e medos, de ataques e recuos 14. H, ento, que ser feita uma crtica interna a este
tipo de documentao para que, introjetando-se no contexto desigual da produo desta fonte,
o historiador possa melhor entender a estrutura textual que ela apresenta - podendo, assim,
compreend-la.
Esta dissertao se divide em cinco captulos. No primeiro deles, so
abordadas as relaes entre Inquisio, Estado, cristos-novos e reformas em Portugal. A
anlise se volta para o contexto de instalao do Santo Ofcio lusitano, bem como suas
relaes com a Coroa. Tambm analisada a represso aos cristos-novos, pedra de toque dainquisio portuguesa, e a ampliao s atividades do Tribunal, ocorrida com o advento da
Reforma catlica, que levou a uma maior represso aos delitos dos cristos velhos, como
crimes morais e feitiaria.
O captulo 2 estuda a represso magia, dando destaque atuao inquisitorial.
Analisa tambm a represso bruxaria ocorrida na Idade Moderna, bem como os elementos
do conceito de bruxaria. Por fim, o captulo se volta para a represso bruxaria e a difuso das
teorias demonolgicas na Pennsula Ibrica, principalmente em Portugal - onde, conforme
teremos oportunidade de ver, tais idias no grassaram com a mesma fora que no resto do
continente.
O terceiro captulo focaliza o impacto do governo pombalino sobre Portugal,
de um modo geral, e a Inquisio em particular. A anlise recai sobre a campanha movida pelo
Marqus sobre o Tribunal, queculminou com a elevao deste ltimo, em 1763, categoria de
majestade, sendo transformado em tribunal rgio. O captulo ainda analisa a campanha de
expulso e eliminao da Companhia de Jesus, que de fundamental importncia para que
entendamos o contexto paraense, objeto das atenes do quarto captulo.
O penltimo captulo traa um histrico da ocupao paraense, e dimensiona
sua importncia nos planos pombalinos. rea de muitos investimentos e alvo de preocupaes
13 Ginzburg., op. cit., pag. 208.14 Idem, pag. 209.
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da Coroa lusa, o Gro-Par acolheu o ltimo visitador inquisitorial a pisar o solo brasileiro.
Uma anlise dos motivos que impulsionaram esta visitao e dos delitos nela recolhidos, bem
como dos denunciantes e confitentes, fecha o captulo.
No quinto e ltimo captulo, adentramos o misterioso e intrigante terreno damagia paraense. Amores proibidos e malditos, feitios tenebrosos, evocaes de espritos e
adivinhaes. Por fim, a magia surge nossa frente, e o captulo se dedica a analis-la,
traando suas caractersticas e peculiaridades. Aqui, chegamos aos depoimentos ouvidos pelo
visitador: as decepes, temores, traies e desejos lascivos dos paraenses de duzentos e trinta
anos atrs pulsam aos nossos olhos, de uma maneira perturbadora. Atravs dos depoimentos,
podemos visualizar cerimnias de cura e tenebrosos pactos com o Diabo, dando-lhes, por
fugazes instantes, vida e movimento.
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O percurso desta dissertao no foi trilhado de forma solitria. Diversas
pessoas possuem sua cota nos mritos que esta dissertao venha a conseguir, graas
amizade, conhecimento, pacincia e interesse manifestados durante este percurso.
CAPES agradeo o financiamento que tornou possvel a esta pesquisa
materializar-se e deixar de ser apenas uma idia.
Gostaria de patentear aqui meu mais profundo agradecimento ao grupo N. C.
N. de estudos histricos, formado por colegas de profisso e ideal, cuja presena constante foi
de fundamental importncia para a execuo deste trabalho: Maria Bernardete O. Carvalho,
Alvaro Senra, Wagner C. Menezes, Alexandre C. Costa e Ktia A. Chagas.
Gostaria de agradecer Profa. Vnia Leite Fres, que tambm acompanhou
esta pesquisa desde seus primrdios, pelas crticas atentas e importantes sugestes
bibliogrficas. Os amigos e colegas Clia Borges e Renato P. Brando, foram responsveis por
momentos de grandes descobertas historiogrficas e divertidas manhs de prosa; a Clia
agradeo, ainda, importantes livros e textos enviados de Alm-mar. A Mrio Jorge Bastos e
Guilherme Pereira das Neves agradeo pela franquia a textos preciosos, que muito
contriburam para o desenrolar desta dissertao, bem como a elucidantes conversas. Ao
amigo fe b ia n o Lus Felipe da Silva Neves, o reconhecimento pelo companheirismo e a pacincia
com que, diversas vezes, aturou meus dilemas de pesquisa.
A Luiz Mott agradeo pela amizade e solicitude manifestadas desde o incio
desta pesquisa, e pela pacincia em responder aos meus interminveis apelos. Referncia
obrigatria para aqueles que estudam a Inquisio portuguesa, a ele agradeo indicaes e
emprstimos de fontes e bibliografia.
A Francisco Jos Silva Gomes agradeo a amizade, a constante disponibilidade
e a disposio em, como avaliador, assistir de perto os resultados finais deste trabalho, que
um pouco fruto de suas reflexes.
Gostaria de patentear minha especial gratido ao Prof. Carlos Roberto
Figueiredo Nogueira, inspirador confesso de muitos momentos deste estudo, pela presena na
banca examinadora.
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A Lana Lage, grande amiga que tenho a sorte de ter como orientadora,
agradeo o afeto, a ateno e as discusses - que no foram poucas - ao longo destes anos
todos. Esta dissertao um pequeno fruto de seu trabalho, e espero que esteja altura dele.
minha famlia, e em especial a meus pais, agradeo os sacrifcios, a pacinciae a compreenso pelos longos perodos de ausncia, nos quais eu estava longe de seu convvio,
debruado sobre histrias de pessoas que morreram h tanto tempo.
A Maristela Chicharo de Campos agradeo o fato de ser mais que esposa.
Amiga, colega de profisso, cmplice, revisora e crtica implacvel, a ela dedico este trabalho,
com a promessa de pagar com juros os momentos de ausncia, frutos das agruras da pesquisa.
Finalmente, agradeo a todos aqueles que no atrapalharam - assim fazendo,
ajudaram muito.
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CAPTULO 1
- I N Q U I S I O , C R I ST O S - N O V O S E RE F O R M A S -
I - A IMPLANTAO DO TRIBUNAL: QUESTES RELIGIOSAS E DEESTADO
Na Pennsula Ibrica, a Inquisio dita m o d e r n a (em
contraposio Inquisio medieval) surgiu em primeiro lugar na Espanha,
em 1438, e posteriormente em Portugal (1536). Segundo Antnio Jos
Saraiva, as duas mais importantes peculiaridades do Santo Ofcio ibrico
residiam nos seus rus - judeus convertidos ao cristianismo, em sua
esmagadora maioria - e em sua relao com o Estado absolutista, em prol do
qual agia e a quem tambm estava subordinado, visto que os Inquisidores
Gerais eram nomeados pelos reis 15.
Na gnese de ambos Tribunais est a questo dos judeus
conversos (denominados marranos em Espanha, e cristos-novos em Portugal).
Reprimidos e expulsos de Castela em 1492, num processo que no cabe aqui
remontar, os judeus encontraram acolhida no Portugal dos ltimos anos do
reinado de D. Joo II, onde tiveram as maiores facilidades de
15Antonio Jos Saraiva, Inquisio e Cristos-N ovos , Lisboa, Estampa, 1985, pag. 19.
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estabelecimento . Agindo deste modo, El -Rei conquis tou , sabiamente,
importante cabedal cul tural e econmico. Vultosas quantias foram gastas,
pelas mais ricas famlias judaicas castelhanas, para assegurar ingresso em
Por tuga l16. Isto, sem falar no poderio financeiro hebraico, que ajudava a
Coroa com emprstimos e financiamentos de viagens e expedies
martimas17. Alm de tamanho poderio monetrio, os judeus expulsos de
Castela ainda representavam um aumento significativo na mo-de-obra
qualificada do reino portugus: afinal, eram armeiros, mdicos, artesos,
enfermeiros, astrlogos e outros profissionais que ingressavam no pas.
Apesar de uma j existente posio anti-judaica por parte da populao em
geral a Coroa portuguesa recebeu os judeus expulsos de Espanha, o que
obviamente agravou antigos preconceitos. Alm disso, o rei Fernando no via
com bons olhos o deslocamento dos judeus castelhanos para Portugal, e
pressionou a Coroa lusa no sentido de expuls-los.
A presso anti-judaica sobre Portugal, encetada por Castela,
tomou novo impulso aps a morte de D. Joo II. D. Manuel, seu sucessor,
relutou at o momento em que viu includa em seu contrato de casamento
com D. Isabel - filha dos reis catlicos -, assinado em 1496, uma clara e
rgida clusula. Segundo o texto do documento, o rei comprometer-se-ia a
expulsar todos os elementos hebraicos do reino. D. Manuel, diante da
perspectiva de casamento com a herdeira dos Reis Catlicos - fato de suma
importncia para os planos de unificao das monarquias ibricas - acedeu a
16 Alexandre Herculano, Histria da Origem e Estabelecimento da Inquisio emPortugal , Lisboa, Europa-Amrica, s.d., vol. I, pp. 67-68.
17 Maria Jos Pimenta Ferro Tavares, Judasmo e Inquisio , Lisboa, Presena, 1987,pag. 27.
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tal condio sine qua non. . Contudo, D. Manuel real izou uma expulso de
fachada: em dezembro de 1496, o rei lana uma proviso na qual ordena a
sada dos judeus no convertidos - com prazo de dez meses para que estes se
retirassem. A ttica de D. Manuel foi segurar os judeus o mximo possvel ,
l imitando por tos de embarque, seqestrando bens e real izando converses
foradas 18. Uma outra forma de integrao forada encontrada pelo monarca
foi, em 1497, o batismo forado de todas as crianas judias menores de 14
anos, que foram por sua vez retiradas de suas famlias originais e entregues a
famlias crists19. A reao popular tambm, por seu lado, possuiu momentos
de adversidade, como no motim contra os cristos-novos em Lisboa, em
1504, ou as desordens em vora no ano seguinte, quando foi demolida a
sinagoga.
Esta situao de converses e integraes foradas fez, deste
modo, com que fosse inserida em Portugal, para alm da diviso social
baseada na trifuncionalidade de ordens (dividida em guerreiros, clrigos e
trabalhadores), uma estratificao social baseada em castas, regida pelo
critrio de pureza religiosa - quem era ou no cristo-novo20: quem possua ou
no sangue converso nas veias.
A campanha pela instalao de um tribunal da Inquisio em
Portugal veio a tomar impulso no reinado de D. Joo III (1521-1557). Por
volta de 1530, o rei enviava instrues a seu embaixador em Roma, para que
fosse pedida uma bula que estabelecesse o Tribunal em terras lusas. D. Joo
18 Saraiva, op. cit., pp. 32-34.19 Idem, pag. 34.
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queria uma Inquisio rgia: ao rei caberia a indicao do Inquisidor Geral -
ao papado caberia apenas a confirmao desta nomeao - bem como dos
inquisidores e demais oficiais; o Inquisidor Geral ter ia amplos poderes, e
total independncia face s autoridades diocesanas, f icando os bispos
proibidos de atuar em causas relativas heresia. Os Inquisidores Gerais
tambm poderiam processar e condenar eclesisticos sem consultas aos
respectivos prelados, alm de - enquanto delegados do papa - terem poderes
para impor excomunhes reservadas Santa S, e suspender as impostas
pelos prelados diocesanos. Segundo Maria J . P. F. Tavares, "era a Inquisio
rgia, moderna, que D. Joo III sol icitava ao papa", e que tinha inspirao
direta na Inquisio castelhana21. O papa Clemente VII, por outro lado,
impulsionado por grandes doaes dos conversos, recusou, e expediu em
1531 a bula Cum ad Nihil Magis . Neste documento, que era uma alternativa
aos pedidos de D. Joo III o inquisidor era nomeado pelo Papa. Tal
inquisidor tinha, por ordem papal, autoridade limitada, no estando acima da
dos bispos, os quais estariam, por sua vez, habilitados a investigar as
heresias. Esta bula no satisfez o rei, e Fr. Diogo da Silva - confessor real e
indicado para o cargo de Inquisidor Geral - no aceitou o cargo,
"verossimilmente por presso do rei", na opinio de Saraiva22.
Com a morte de Clemente VII e a ascenso de Paulo III as
negociaes - e as presses - continuaram. De um lado, a Coroa no media
esforos em atingir seus objetivos; de outro, o ouro judaico comprava
20 Francisco Bethencourt , O Imaginrio da Magia , Lisboa, Projecto UniversidadeAberta, 1987, pag 67.
21 Tavares, op. cit., pp. 126-127. Ver tambm Saraiva, op. cit., pag. 47.22 Saraiva, op. cit., pag. 48.
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seguidas bulas, indultos e perdes papais. Contudo, a Coroa portuguesa - que
tinha um forte al iado na pessoa de Carlos V - vence a querela. Desta forma,
uma outra bula Cum ad N ihi l Mag is foi expedida em 1536 - estabelecendo
definitivamente a Inquisio em Portugal , embora ainda no sendo do total
agrado da Coroa. Mas desta vez, Fr. Diogo da Silva aceitou o cargo. O marco
do efetivo incio da Inquisio moderna em Portugal , porm, foi a bula
Meditat io Cordis , de 1547. Precedida de um perdo geral do papa,
acompanhada da suspenso do confisco de bens por dez anos, a mencionada
bula conferia Inquisio portuguesa poderes semelhantes ao Tribunal
castelhano, como o processo sigiloso e a jurisprudncia particular . Tal
medida foi acompanhada de um endurecimento nas posies reais: foi
emitido, pela Inquisio, o primeiro rol de l ivros proibidos, e o monarca
impede os cristos-novos de deixarem o reino sem a sua permisso por um
perodo de trs anos.
A instalao do Santo Ofcio em Portugal representou um
obstculo l ivre ao do papado. O Tribunal constitua uma barreira, na
medida em que o Inquisidor Geral , nomeado pelo rei, exercia um poder
superior ao dos bispos - refreando intromisses indesejveis da Santa S,
atravs do episcopado. E a Coroa conseguiu, tambm, um instrumento para a
central izao do poder real , bem como para um controle mais efetivo do pas.
O Tribunal era um novo mecanismo de integrao e controle social -
ef icientssimo, pois agia tanto no topo quanto na base da sociedade - como
tantos outros que surgiram neste momento de reorganizao da Igreja e de
const i tu io do moderno Estado absolut is ta .
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Uma vez assentado e em funcionamento, o Santo Ofcio passou a
vasculhar, atravs de seus visitadores, o terr itrio portugus, atingindo
local idades principais e perifricas, controlando sistematicamente o interior
do pas atravs de sua rede de funcionrios. Aps 1590, assiste-se a uma
virada na ao inquisitorial : os visitadores passam a esquadrinhar as ilhas e
colnias de ul tramar 23. Atravs das visitas e da ampliao constante da rede
de comissrios e familiares do Santo Ofcio, a Inquisio se espalhou por
todo o vasto imprio portugus, atingindo regies to distantes quanto Brasil,
Japo e Ormuz24.
A vasta abrangncia de ao e a eficincia do sistema de
informaes/ comunicaes de que o Santo Ofcio dispunha tornavam sua presena uma
realidade cotidiana na sociedade portuguesa (includas as colnias). Quando no ocupadas
diretamente pelo inquisidor em visitao, as cidades conviviam no seu dia a dia com outros
elementos da rede inquisitorial - os comissrios e familiares do Santo Ofcio, entranhados no
seio das comunidades, vigiando e recebendo denncias. Isto fazia com que, efetivamente, no
houvesse lugar onde o longo brao do Santo Ofcio no chegasse. Uma vez consolidado em
termos funcionais, o organismo inquisitorial estava, efetivamente, disseminado pelo corpo
social, constituindo assim eficaz instrumento de vigilncia e controle. Ao incentivar a delao -
atravs da garantia de anonimato para os denunciantes -, o Santo Ofcio acionava um
mecanismo de auto-policiamento do prprio corpo social, gerando um clima de insegurana e
desconfiana generalizadas. A rigor, todos estavam passveis de denncias -e processos -, bem
como todos os indivduos constituam-se em potenciais denunciantes. O temor causado pela
onipresena do aparelho inquisitorial era garantia de sujeio - complementado por outros
elementos da pr x is inquisitorial, tais como o sigilo processual, os sermes e os autos da f.
23 Francisco Bethencourt, Inquisio e Controle Social , Lisboa, 1986, ex. mimeo., pp.3ss.
24 Ver BNRJ-SM, cod. 25, 2,1-2, onde se encontram, na correspondncia entre o Tribunalde Goa e o de Lisboa, documentos relativos a visitas inquisitoriais nos dois ltimoslocais mencionados, bem como China.
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- Muito Alm de Questo de F, um Assunto de Estado.
Nos pr imrdios do es tabelecimento da Inquis io por tuguesa
estava, como observamos, a questo das relaes entre Igreja e Estado. Isto
fica muito claro ao anal isarmos o complicado jogo diplomtico entre D Joo
III e o papado. Era, de um lado, o rei a querer uma Inquisio submissa sua
pessoa, com autonomia face a Roma e ao clero lusitano - e poderes
suficientes para ignor-lo e, se fosse o caso, puni- lo. De outro lado, estava o
papa a negar, o quanto podia, concesso de tal Inquisio, por saber das
dif iculdades que esta traria ao do papado em Portugal . Permeando este
embate, havia ainda os sucessivos indultos e perdes rgiamente comprados
pelos judeus e conversos junto ao papado - o que dava novo alento s
negativas da Santa S, tornando a batalha diplomtica ainda mais dilatada. Ao
rei, principalmente, interessava tal instrumento de controle da sociedade
como um todo - inclusive da prpria nobreza, uma vez que no havia
distines sociais para a ao do Tribunal25.
Uma vez em funcionamento efetivo, Inquisio e Coroa - e
tambm, em muitos momentos, o papado - agiram segundo diretrizes comuns,
quer na represso aos cristos-novos, quer na implantao das diretrizes do
processo de reformas tridentino ou, ainda, na vigilncia e controle social.
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No h como negar uma forte imbricao entre Inquisio e Estado: uma
sumria anl ise curricular dos Inquisidores Gerais lusitanos, inspirada em
proposta feita por Bartolom Bennassar para o estudo da Inquisio
espanhola, assim o mostra26. Durante os trs sculos de existncia da
Inquisio portuguesa, seu posto mximo foi ocupado sucessivamente por
membros do Conselho de Estado, ministros, e - durante a Unio Ibrica -
vice-reis como Alberto, Arquiduque de ustria, inquisidor entre 1586 e 1593.
Passaram pelo cargo membros variados da nobreza, e at mesmo um rei - D.
Henrique, filho de D. Manuel, nomeado Inquisidor Geral por seu irmo D.
Joo III em 1539, permanecendo no cargo at mesmo enquanto regente (
1562-1568) e, posteriormente, rei de Portugal (1578-1580)27. Tamanha
permeabilidade ocorria tambm no que tange s relaes entre a carreira no
aparelho de Estado e a carreira eclesistica, e serve como indcio irrefutvel
do alto grau de clericalizao da sociedade portuguesa - principalmente de
suas elites -, que ser to acirradamente combatido pela poltica pombalina,
posteriormente.
Contudo, apesar de tamanha intimidade entre Inquisio e
Estado, a primeira nunca esteve, pelo menos at a metade do sculo XVIII,
diretamente a servio dos objetivos polticos da Coroa portuguesa, de modo
diverso do que ocorreu em Espanha. Bennassar, ao investigar as relaes
entre Inquisio e Estado espanhis, demonstra como este ltimo direcionava
25 Bethencourt, op. cit., pag. 9.26 Bartolom Bennassar, In quisition espagno le au service de l Et at in Revue
Historique , n. 15, pags. 38 e 40.27 Ver a relao e um breve curriculum dos Inquisidores Gerais em Jos Loureno D. de
Mendona e Antnio Joaquim Moreira, Histria dos Principais Actos e
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as aes do Tribunal . Segundo Bennassar , a Inquisio em Espanha no se
l imitou a ser apenas uma "expresso do catol icismo mil itante", um tr ibunal
puramente rel igioso. O Santo Ofcio atuou como um instrumento pol tico da
Coroa, agindo segundo suas demandas e necessidades, perseguindo os
segmentos sociais que conviessem conjuntura pol tica, sujeito que estava s
d iretr izes emanadas do t rono 28.
Quando, porm, examinamos as aes da inquisio portuguesa,
notamos que aqui tal submisso e uso do Tribunal por parte do Estado no
ocorreu plenamente. No obstante o Inquisidor Geral ser nomeado pelo rei,seus atos eram totalmente independentes - e ele no podia ser destitudo,
possuindo assim uma considervel autonomia de ao. Inquisio e Estado
agiam, isto sim, afinados por objetivos semelhantes - afinal, no devemos
olvidar aqui o fato de tratarmos com um Estado confessional -, tais como a
implantao do modelo tridentino de pensamento e comportamento, por
exemplo29
. Choques e conflitos, evidentemente, ocorreram. Em Portugal, o
Santo Ofcio - longe de ser um aparelho de Estado ou de Igreja - era, na
verdade, uma terceira potncia, interagindo com as outras duas, possuindo
inegvel peso no sistema poltico de ento.
Procedimentos da Inquisio em Portugal , Lisboa, Imp rens a Nacion al/ Casa da
Moeda, 1980, pp. 124-128.28 Bennassar, op. cit., pag. 36.29 Podemos enquadrar o Estado confessional no que Francisco Jos Silva Gomes
denomina de modalidade constantiniana de cristandade, por remeterem ao modelocons tant iniano de imbricao entre Igreja e Est ado. Nest e sistema, os dois elemento sest avam em regime de un io: o Es tad o assegu rava Igr eja pr esen a pr ivilegiada nasociedade (...) cons tituind o-a (.. .) em aparelho de hegemonia do sistema , enquan to aIgreja assegurava ao Es tado e aos grup os/ classes dominan tes a legitimao da suahegemon ia e domin ao . Ver Fran cisco J. S. Go mes, Cristandade Medieval - A Igrejae o Poder: representaes e discursos, conferncia proferida na I Semana de EstudosMedievais (20-24 de setembro de 1993) na Universidade de Braslia, ex. mimeo, pag. 2.Agradeo penhoradamente ao autor o acesso facultado ao texto desta conferncia.
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I I - INQUISIO NO CONTEXTO DAS REFORMAS
Desde o momento de sua instalao, conforme observamos, a quase totalidade
dos rus do Santo Ofcio ibrico consistia de judeus convertidos ao cristianismo. Com efeito,
os delitos dos cristos-novos constituam maioria nas listas de condenaes30. Contudo, aps a
segunda metade do sculo XVI, com o advento das diretrizes emanadas do conclio de Trento
(1545-1563), foi ampliada a jurisdio do Santo Ofcio. Graas aos esforos do conclio
tridentino em reformar e normatizar atitudes, idias e crenas dos fiis e clero catlico, aatuao inquisitorial acaba voltando-se tambm para os cristos velhos - isto , o conjunto de
pessoas que no tinham parentesco judaico conhecido. Deste modo, passaram a ser mais
intensamente reprimidos pelo Santo Ofcio os crimes de blasfmia, bigamia, defesa da
fornicao, sodomia e feitiaria: prticas que, com o esforo de implantao das medidas de
Trento, chocavam-se com as diretrizes normatizadoras que a Igreja procurava implantar.
30 Tais delitos esto minuciosamente listados no Monitrio de 1536, que leva a assinaturade D. Diogo da Silva. Ver Collectorios das Bullas e Breves Apostolicos, CartasAlvars e Provises Reaes , e outros papeis, em que se contm a instituio e primeiroprogresso do Sancto Officio em Portugal, Lisboa, nas Casas da Sancta Inquisio, 1596.Maria J. P. F. Tavares apresenta, em obra j citada, uma transcrio da verso
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- A Normatizao dos Cristos Velhos
Os processos de reformas rel igiosas do sculo XVI tiveram uma
amplitude muito maior do que a simples demarcao de fronteiras entre
catol icismo e protestantismo. Frutos de um processo de longa durao, cujas
razes se encontram na Baixa Idade Mdia, as reformas catl ica e protestante
tiveram objetivos comuns - no obstante atuarem por vias diversas 31.
Simultaneamente s reformas religiosas propriamente ditas, ocorreu um
esforo no sentido de reformar idias, costumes, valores morais - enfim, a
cultura da populao - esforo este efetivado por ambos plos da Reforma.
Este movimento, segundo Peter Burke, consistiu "na tentativa de suprimir, ou
pelo menos purificar muitos itens da cultura popular tradicional" - arcaica e
profundamente arraigada no cotidiano do povo -, vista pelos reformadores
como o espao do paganismo, das licenciosidades, dos vcios32.
Os reformadores catlicos e protestantes, eclesisticos ou leigos
pertencentes s elites cultas, trabalharam por suprimir a cultura e
religiosidade tradicionais - de carter oral e sincrtico, caractersticas da
sociedade medieval. Atacavam o magismo das prticas devocionais crists,
manuscrita deste Monitrio, s pginas 194-199 - com uma srie de discrepncias emrelao ao texto impresso mencionado.
31Para esta discusso das profundas razes das Reformas catlica e protestante (e tambmpara o significado de tais termos), ver Jean Delumeau, El Catolicismo de Lutero aVoltaire , Barcelona, Labor, 1973 (principalmente o captulo 2); N.S. Davidson, AContra-reforma , So Paulo, Martins Fontes, 1991 e Brenda Bolton, A Reforma naIdade Mdia , Lisboa, Edies 70, 1986.
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bem como o teatro rel igioso popular , festas - t idas como ocasies de pecado -
, cantos e danas. Burke conclui que este processo foi, por f im, o embate
entre duas ticas (ou modos de vida) rivais. Segundo ele, "a tica dos
reformadores estava em confl ito com uma tica tradicional mais dif cil de se
definir , pois tinha menos clareza de expresso" - porque no estava
rigidamente codif icada, sendo algo informe e varivel ao sabor de
conjunturas sociais e geogrficas33. Tais ticas, deve-se acrescentar, no
estavam isoladas entre si. Conforme demonstram Carlo Ginzburg, Mikhail
Bakhtin e Roger Chartier, existia um movimento intenso de trocas entre os
diferentes estratos culturais, permeveis a influncias recprocas34. O que
existia era uma intensa comunicao entre tais estratos, sendo que os
costumes e idias perpassavam-lhes, sendo retrabalhados e modificados
segundo as necessidades e o contexto dos diferentes estratos culturais - que
variavam, tambm, de regio para regio. Nas palavras de Carlo Ginzburg,
temos, por um lado, dicotomia cultural, mas, por outro, circularidade,
influxo recproco entre cultura subalterna e cultura hegemnica,
particularmente intenso na primeira metade do sculo XVI 35
O resultado destes processos de reformas, segundo Burke, foi o
contrrio do que inicialmente esperavam os reformadores: ao invs de
eliminar a cultura tradicional e de espalhar um modelo de comportamento e
32 Peter Burke, Cultura Popular na Idade Moderna , So Paulo, Companhia das Letras,1989, pp. 232-233.
33 Idem, pag. 237.34 Ver Carlo Ginzburg, O Queijo e os Vermes , So Paulo, Companhia das Letras, 1987,
pp. 20-25; Mikhail Bakhtin, A Cultura Popular na Idade Mdia e no Renascimento ,So Paulo/ Hu citec; Braslia/ Ed UnB, 1993; Roger Chart ier, A Histria Cultural ,Lisboa/ DI FE L; Rio de Janeiro/ Bertran d Brasil, 1990.
35 Ginzburg, op. cit., pag. 21.
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idias, uniformizando cul turalmente povo e el ites, tal campanha normativa
levou a uma separao ainda maior entre a cultura do povo e a cultura das
el ites, que foram mais rpida e abrangentemente atingidas pelas reformas,
tendo incorporado seus precei tos com maior profundidade 36.
Este no foi um processo de curta durao e de aceitao passiva
por parte dos fiis a serem reformados. Houve resistncias, no que diz
respeito cultura tradicional - inclusive, aqui, no campo das prticas
religiosas. O esforo aculturador, na Europa, se estendeu ao longo dos
sculos XVII e XVIII. No campo da reforma catlica, o conclio de Trentoinaugurou uma era que s foi terminar com o conclio do Vaticano II, em
196237.
O Tribunal do Santo Ofcio da Inquisio foi, no campo da
reforma catlica, um dos mais importantes instrumentos desta grande
empreitada remodeladora. Moldando crenas e comportamentos por meio da
intimidao e da violncia - elementos fundamentais daquilo que Bennassar
chamou de "pedagogia do medo" 38 -, o Santo Ofcio exibia nos autos-de-f os
elementos de conduta desviante, mostrando massa dos fiis quo terrvel
36 Idem, pag. 265.37 Delumeau, op. cit., pag. 6.38 Ver Bennassar , Modelos de la ment alidad inquisitor ial: mto dos de su pedagoga del
miedo in ngel Alcal (or g.), Inquisicin Espaola y Mentalidad Inquisitorial ,Barcelona, Ariel, 1984, pp. 174-182.
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era o castigo para quem afrontasse os padres da norma. Atravs da exibio
do erro, difundia o modelo de conduta reta, educando a populao 39.
Durante o Sculo XVII, afinada com as diretrizes de Trento, aInquisio ibrica avana na represso aos delitos dos cristos velhos, que
iam contra o que pregava o conclio. Deste modo novos delitos, morais e
doutrinrios, entraram em pauta. Apesar de no haver, para a Inquisio
portuguesa, a abundncia de estudos quantitativos que existe para a
espanhola, podemos inferir, atravs das pesquisas recentemente feitas, um
redirecionamento da atuao inquisitorial, evidenciada pelo acrscimo, aosprocessos dos cristos-novos (que se mantiveram em ritmo constante), dos
processos de bigamia, feitiaria, proposies errneas - como a defesa da
afirmao de que fornicar no era pecado - e blasfmias, alm do prprio
luteranismo (que no tomou vulto expressivo na pennsula Ibrica)40. Isto,
sem falar que a Inquisio voltou seus severos olhos para a disciplinarizao
do prprio clero - como tambm desejava o conclio tridentino -, o que se
refletiu nas condenaes de eclesisticos por sodomia, feitiaria e
solicitao41. O conclio de Trento definiu as novas normas para o fiel
catlico. O Santo Ofcio, atravs da represso e da difuso de idias a ferro e
fogo foi um dos principais responsveis pelo processo de modelagem de um
novo tipo de crente, normatizado de acordo com o que pensara o conclio.
39 Cf. Luiz Nazr io, O julgamento das chamas: auto s-de-f como espetcu los de massain Anita Novinsky e Maria Luza Tucci Carneiro (orgs.), Inquisio , Rio deJaneiro/ Exp resso e Cultura; So Paulo/ E DUSP, 1992, pp. 525-546.
40 Esta virada na atividade inquisitorial demonstrada, para o caso de Espanha, atravs deestudos que fazem proveitosa utilizao de tcnicas quantitativas, como o de JeanPierre Dedieu, Les quatre temps de l Inquisi t ion , in Bennassar (org.), L Inquis i tionEspagnole, Paris, Marabout, 1982, pp. 13-39.
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- Contra o Crist ianismo Tradicional
No campo da vivncia rel igiosa, o concl io de Trento encetou
amplo e massivo combate ao que John Bossy e Keith Thomas chamam de
"cr is t ian ismo trad icional" 42, no qual a sociedade se achava imersa. O campo
religioso permeava e envolvia todos os aspectos da vida. Da uma grande
intimidade entre os fiis e a esfera do sagrado - inclusos aqui os elementos a
ela referentes. Donde se entende uma atitude intimista na relao entre
crentes e santos - refletida na iconografia e estaturia poca, que era
planejada no sentido de propiciar to prximo contato. Segundo Bossy, tais
relaes se baseavam no trinmio violncia-conflito-negociao 43, tendo a
devoo objetivos materiais e imediatistas. Buscava-se, atravs do culto e dos
rituais, auferir a intercesso dos santos para obter proteo para as colheitas,
41 Sobre esta faceta da represso Inquisitorial, ver a tese de Lana Lage da Gama Lima, AConfisso Pelo Avesso , apresentada Universidade de So Paulo em 1991, 3 vols.,mimeo.
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em viagens, para moradias, ou mesmo para aplacar sua fria - que podia ser
al tamente destrutiva, como fica patente nesta citao de Wil l iam Tyndale
(incio do sculo XVI):
O que se procurava, no cristianismo tradicional , era a intimidade
com os santos; buscava-se mesmo traz-los para o mais prximo crculo
famil iar , adotando com eles relaes de compadrio sui generis - como, por
exemplo, ao batizar uma criana com o nome de determinado santo,
consagrando-a ass im a ele e , conseqentemente, pondo-a sob sua pro teo 45.
Os santos tambm eram solicitados para cuidar de eventualidades cotidianastais como doenas, sumios de objetos etc. Mas, segundo K. Thomas, o culto
dos santos era apenas uma faceta do magismo que caracterizava a Igreja
medieval46. As bnos, rituais e sacramentos eclesisticos eram tidos como
possuidores de propriedades mgicas, que podiam ser utilizados pelos fiis. A
Igreja pr-tridentina era vista como um "repositrio de poderes
sobrenaturais, que podiam ser distribudos aos fiis para auxili-los em seus
problemas do cotidiano"47. O impacto das Reformas e da Inquisio, neste
sentido, foi de desvincular o profano do sagrado, e eliminar a intimidade
existente entre este e os fiis.
Esta forma religiosa tambm poderia ser chamada de
"religiosidade popular". Contudo, surge aqui um problema: esta religiosidade
42 John Bossy, A Cristandade no Ocidente , Lisboa, Edies 70, 1990 (principalmente aprimeira parte) e Keith Thomas, Religio e o Declnio da Magia , So Paulo,Companhia das Letras, 1991 (captulos 2 e 3).
43 Bossy, op. cit., pag. 26.44 Apud K. Thomas, op. cit., pag. 36.45 Bossy, op. cit., pag. 32.46 Thomas, op. cit., pag. 38.
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popular porque praticada pelo "povo", ou seja, as menos abastadas camadas
sociais? Tal idia cai por terra se tivermos em mente que pessoas de todos os
nveis sociais - mesmo depois dos processos de reformas rel igiosas -
continuavam imersos neste tipo de rel igiosidade. A idia classista de uma
"rel igiosidade popular" em relao oposta de uma cul tura ou rel igiosidade
"de el ite" ou "erudita" perde razo de ser , quando anal isada sob esta tica - e
inclusive sob o prisma da rel igiosidade paraense. Roger Chartier , ao
equacionar o problema da cul tura popular em estudo sobre textos e leituras
no Antigo Regime, chegou concluso de que tal oposio r gida no possui
pertinncia. O que h, segundo o autor, so "prticas partilhadas que
atravessam os horizontes sociais". A esta diviso radical entre popular e
erudito, "que muitas vezes definia o povo ( . . .) como o conjunto daqueles que
se situavam fora dos modelos das el ites", Chartier prefere "o inventrio das
divises mltiplas que fragmentam o corpo social". Isto : alm da distino
scio-econmica, o pesquisador deve levar em conta as diferenas sexuais,
terr itoriais e rel igiosas, entre outras 48. Desta forma, a religiosidade combatida
pelo conclio de Trento s pode ser chamada de "popular" se posta em
oposio religio estabelecida pela Igreja - esta, por sua vez, "erudita"
porque baseada nos cnones sacramentados pela reforma catlica. A distino
se desloca: de um critrio socioeconmico, passamos a pensar em termos de
algo estabelecido e normativo, em contraposio a um conjunto de crenas e
ritos que esto fora da ortodoxia doutrinria da Igreja.
47 Idem, pag. 40.48 Roger Char tier , Text os, impr esso s, leitur as in op . cit, s.d. , pag. 134.
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CAPTULO 2
- INQUISIO E MAGIA -
I - INQUISIO E BRUXARIA
As ondas de represso bruxaria e feitiaria no podem ser
entendidas fora do contexto cronolgico que lhes deu origem. Tratamos aqui
da emergncia do mundo moderno ocidental , com todas as suas
peculiaridades: as crises do sculo XIV, as navegaes e descobrimentos, a
inveno da imprensa, as reformas rel igiosas e a constituio do Estado
absolutista. Jean Delumeau, em importante estudo sobre o medo no
Ocidente, mostra como houve uma escalada de temores, motivados pelo
funesto sculo XIV. Graas a uma conjuntura que inclui o desagregar do
feudalismo, as ondas de peste, avano dos turcos, o cisma da Igreja ocidental ,
a Guerra dos Cem anos, e as diversas revoltas urbanas e camponesas fomes e
catacl ismas, os temores mudaram de direo. Os telogos passaram a buscar
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no sobrenatural e no apocal ptico a explicao para tamanha confluncia de
desgraas: deste modo, assistimos a uma mudana: de medos de fenmenos
naturais para temores escato lgicos , apocal pt icos49. Tais temores tambm
abrangiam supostos inimigos da cristandade, que atacavam orquestrados por
um inimigo supremo: Sat. O sentimento geral - que tomou vulto a partir do
sculo XIV, principalmente - era o de que havia uma conspirao universal
para a derrocada da cristandade. Conspirao esta levada a efeito pelos
demnios, muulmanos, turcos, leprosos, judeus, mulheres - e as bruxas.
Segundo Delumeau, tais medos - e a idia de conspirao a eles associada -
tinham origem nas elites culturais, principalmente nos setores eclesisticos: a
partir da, atravs de um processo de difuso, atingiam a sociedade como um
todo.
Dentre estes temores em constante escalada, dois deles se faziam
notar especialmente: um, relacionado ao prprio arquiteto da conspirao,
isto , Sat; o outro, concernente queles que - acreditava-se ento - obravam
em favor e nome do Prncipe das Trevas. Delumeau identifica estes agentes
como sendo os idlatras amerndios, os muulmanos, judeus e bruxas 50.
49 Um interessante estudo sobre movimentos milenaristas e apocalpticos do final daIdade Mdia o de Norman Cohn, Na Senda do Milnio , Lisboa, Presena, 1981.
50 Jean Delumeau, Histria do Medo no Ocidente , So Paulo, Companhia das Letras,1990 - especialmente os captulos de 6 a 12.
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- A Conspirao Universal
Antes de anal isar mais profundamente a bruxaria, faz-se
necessria uma investigao sobre aquele que era sua razo de ser e que era o
responsvel por todos os males que afl igiam os cristos: Sat.
Os papis atr ibudos ao Diabo sofreram al teraes no decorrer
do tempo. Seguindo a tradio judaico-crist vemos que, no VelhoTestamento, Deus tido como o responsvel por todas as coisas, boas e ms.
Segundo Norman Cohn, os infor tnios eram punies enviadas por Deus para
aqueles que transgredissem suas leis. Sat ainda no surgira exercendo as
funes que tradicionalmente lhe so atr ibudas 51. A figura do tentador se
manifestar no livro das Crnicas , onde Sat influencia a David, fazendo
com que ele realize um censo do povo eleito - mensurando, assim, a obra doSenhor, que por si s algo inquestionvel ou isenta de qualquer avaliao
por parte dos simples mortais (I, 21). No texto das Crnicas reza que
"Levantou-se, pois, satans contra Israel e incitou Davi a refazer o
recenseamento de Israel"52
o que despertou a ira de Deus, incomodado pela presuno do
rei poeta, insuflado por Sat. Quando abordamos a literatura judaica dos
sculos II a.C. at I d.C., encontramos uma demonologia plenamente
51 No rman Cohn , Th e myth of Satan and his hum an ser vant s in Mary D ou glas (ed.) ,Witchcraft , London, Tavistock, 1971, pp. 4-5.
52 Bblia Sagrada , Rio de Janeiro, Gamma, 1982.
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desenvolvida, onde Sat e sua corte de anjos cados combatem contra Deus.
Cohn atr ibui esta idia ao contato com a rel igio iraniana - onde, segundo
reza a tradio mazdesta, aps um combate entre as faces de Ahura Mazda
(criador do mundo de luz e verdade) e Ahriman, incorporao do mal , este
l timo fora derrotado, sendo confinado ao reino das sombras, e seguido pelos
daevas (que eram os antigos deuses, que passaram a ser vistos como
demnios malf icos)53. Visto por Zaratustra como a personificao do mal,
Ahriman , segundo J. B. Russel, "o primeiro diabo claramente definido"54.
O cristianismo recebeu, em segunda mo, a influncia destadoutrina iraniana - atravs da demonologia judaica, a qual foi totalmente
incorporada pela nova religio55. Os Evangelhos, radicalizando uma
concepo dualista que divide todas as coisas com base em uma opo entre
Cristo e Sat, trazem diversas menes a este combate entre o bem e o mal.
O Diabo, a partir de ento, torna-se o Inimigo por excelncia, combatendo
Jesus, seus discpulos e apstolos, bem como os seguidores destes, "tramando
incessantemente a ruptura da fidelidade ao Senhor e pondo a perder os seus
corpos e almas". A partir da, o mundo ser partilhado entre Cristo e Sat 56.
As campanhas de evangelizao e conversos dos adeptos do paganismo
greco-romano, por sua vez, vo contribuir com um grande enriquecimento do
imaginrio demonolgico cristo, graas a uma interpretao negativa de
elementos do paganismo, por parte da religio agora dominante. Esta, por sua
vez, via-se s voltas com uma evangelizao de fiis que quase sempre no
53 Cohn, op. cit., pag. 7.54 Jeffrey Burton Russel, O Diabo , Rio de Janeiro, Campus, 1991, pags. 48 e 86.55 Carlos Roberto F. Nogueira, O Diabo no Imaginrio Cristo , So Paulo, tica, 1986,
pag. 17.
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abandonavam seus antigos cul tos e crenas, assimilando ensinamentos novos
com as antigas convices - isto, quando tais assimilaes no eram j feitas
pelos prprios missionrios catequizadores. Alm disso, a doutrina crist
assimilou aos seus demnios as concepes pags das divindades infernais 57.
nos sculos XI-XII que, segundo Delumeau, Sat ir surgir em
cena massivamente. neste momento que a figura iconogrfica do Diabo
toma forma, sendo pictoricamente representado ou esculpido 58. Mas a partir
do sculo XIV que Sat lana o seu grande ataque. A cristandade encontrava-
se como que obsidiada pela figura do Grande Inimigo. Para Delumeau, estaobsesso vai se manifestar, na iconografia, em uma vasta gama de imagens
infernais, e na idia fixa das armadilhas e tentaes de que Sat faz uso, na
inteno de perder os seres humanos59. A violncia das torturas e tormentos
do Inferno transborda na Iconografia, e o Sat medieval - que assustava mas
tinha l seus ares de comicidade, que por muito tempo persistiu no
imaginrio popular, como uma figura at benfazeja e enganvel60
- torna-se
pujantemente violento, terrvel, assustador. Neste primeiro alvorecer da
Idade Moderna, os conceitos e imagens satnicas da Idade Mdia assumiram
'uma coerncia, uma importncia e uma difuso jamais alcanadas" 61. O
Grande Tentador estava presente em todos os aspectos da vida, e tudo que
acontecia poderia ser obra sua - para castigar os homens ou para seduzi-los,
levando-os perdio.
56 Idem pag. 18.57 Idem, pp. 26-31.58 Delumeau, op. cit., pag. 239.59 Idem, pag. 240.60 Nogueira, op. cit., pag. 76.61 Idem, pag. 73.
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O medo do Diabo tomava forma sistematizada nas obras de
demonologia que, graas imprensa, t inham grande divulgao - o que fazia
aumentar ainda mais o medo. Estas edies atingiam ampla gama do pblico
leitor , quer fosse atravs de pesados tratados ou de publicaes "populares",
de custo menos elevado 62. As informaes a contidas alcanavam um pblico
ainda mais amplo de analfabetos, na medida em que eram lidas em voz alta
para as pessoas, ou citadas em prdicas e sermes, difundindo assim tais
idias demonolgicas63.
A literatura demonolgica apresentava aos leitores um vastoarsenal informativo, contendo tudo o que ele devia saber a respeito do
Maligno: como ele se apresenta, de que modo age no sentido de tentar e
perder a humanidade, quais as armadilhas que ele apronta, como diagnosticar
a ao do demnio, etc. Rossel Hope Robbins enumera 33 ttulos de tratados
demonolgicos publicados entre 1475 e 1540 (entre livros alemes, franceses,
italianos e espanhis); Delumeau conta (deficientemente, segundo o prprio)
16 ttulos de diversas nacionalidades, entre 1659 e 1647 64. Tendo em conta
que estas obras possuem sucessivas reedies, ficamos impressionados com
seu alcance atravs do tempo: somente o Malleus Maleficarum , cone maior
da literatura de caa s bruxas e inspirador de tantas obras posteriores, teve
81 edies na Europa entre 1486, data de sua primeira edio, e 1669, quando
62 Ver, a este respeito, Lucien Febvre e Henri-Jean Martin, O Aparecimento do Livro ,So Pau lo, UN E SP/ HU CIT E C, 1992, capt ulos 4 e 8.
63 Sobr e a difu so das idias atravs das pr ticas de leitur a, ver Roger Char tier , Text os,impresso s, leituras in A Histria Cultural , Lisboa/ DI FEL, Rio de Janeiro/ BertrandBrasil, s.d. D o mesm o aut or , ver As pr ticas da escr ita na Histria da Vida Privada ,So Paulo, Companhia das Letras, 1991, vol. 3, pp. 113-161.
64 Rossel Hope Robbins, The Encyclopedia of Witchcraft & Demonology, New York,Bon anza , 1981, pp . 145-147; De lumeau , op . cit., pag. 248.
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j ar r efecia a o n d a p ersecu t r ia 65. Atravs de sermes e prdicas, catecismos e
da citada literatura demonolgica, o af de desmascarar o Diabo, bem como o
pnico a ele relativo, foram se disseminando por todo o corpo da cristandade.
O Diabo era, ento, mais uma dura realidade presente no
cotidiano poca. J escrevera Lutero que "somos corpos sujeitos ao diabo, e
estrangeiros, hspedes no mundo no qual o diabo prncipe e o Deus"66. Por
isso, as desgraas e decepes eram atribudas ao Diabo. As tempestades,
troves, ms colheitas, as doenas, em tudo era visto o dedo do adversrio,
que castigava a humanidade pelas suas iniqidades, ou procurava perd-la.Por ser incorpreo, o Diabo podia tomar a forma que lhe aprouvesse para se
aproximar das pessoas, e podia estar em todos os lugares. E tambm graas
a esta incorporeidade que ele pode obrar diversos prodgios. Diz o Malleus
que o Diabo, por tomar diversas formas, pode estar em diversos locais e
conjurar os elementos da natureza; ele tambm tem poderes para desfazer a
obra de Deus at onde este lhe permita67
.
Contudo, Sat no estava desacompanhado nesta empreitada
aviltante. Contava com o apoio de uma legio de demnios e de agentes
humanos. Quanto aos primeiros, o discurso demonolgico afirmava estarem
disseminados por todos os lados. Francesco Maria Guazzo identifica, em seu
Compendium Maleficarum , seis tipos de demnios: os que residem no fogo,
e no tm contato com os homens; os do ar, que esto ao redor dos homens e
podem tomar consistncia fsica, tornando-se visveis e sendo causadores de
65 Robbins, op. cit., pag. 337.66 Apud Delumeau, op. cit., pag. 251.
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tormentas e tempestades; os terrestres, que vivem nas f lorestas, cavernas e
mesmo entre os homens; os demnios aqut icos , responsveis pelos
afogamentos e naufrgios, bem como pela violncia do mar - habitantes de
rios, lagos e mares; os subterrneos, que vivem em grutas e cavernas,
causando terremotos, erupes e abalos nos al icerces das casas; por f im, os
demnios das trevas, que no suportam a luz e s se locomovem e
manifestam na mais completa escurido 68.
A quantidade de demnios existentes de uma ordem assombrosa:
demonlogos que dedicaram-se ao censo das hostes infernais calcularam que existiriam entre 6
e 7 milhes de demnios. Alphonsus de Spina em seu Fortalicium Fidei (1467) chegou
astronmica cifra de 133 milhes de demnios. E todos eles obrando em prejuzo da
cristandade69! Devido a tal quantidade de seres infernais, surgiu a idia de que cada homem, ao
nascer, seria acompanhado de um deles, que o tentaria por toda a sua vida - o que, por outro
lado, acarretou na noo de que haveria um anjo da guarda para cada indivduo, justamente
para proteg-lo de tal tentador vitalcio70
A humanidade, contudo, tinha algo mais a temer, alm desses
servos incorpreos de Sat: havia tambm os seus aliados humanos. Eles
podiam estar em qualquer lugar, podendo - em teoria - ser qualquer pessoa.
Infiltrados no seio da cristandade, podiam implodi-la a partir de seu prprio
interior. Por outro lado, eram identificveis e estavam ao alcance de uma
vingana imediata - que fornecesse aos homens um paliativo para a
impotncia ante os adversrios imateriais.
67 Heinrich Kramer & Jakob Sprenger, Malleus Maleficarum , Rio de Janeiro, Rosa dosTempos, 1991, questo I, pp. 49-63.
68 Francesco Maria Guazzo, Compendium Maleficarum (1608), Apud Robbins, op. cit.,pp. 132-133.
69 Eram exatos 133 306 668 demnios. Apud Robbins, op. cit., pag. 130.70 Delumeau, op. cit., pag. 257. Ver tambm Keith Thomas, Religio e o Declnio da
Magia, So Paulo, Companhia das Letras, 1991, pag. 382.
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A idia de que estes agentes de Sat viviam infiltrados no seio das sociedades
to antiga quanto o prprio cristianismo. O que variava, ao sabor das conjunturas, era a
identificao do membros desta quinta-coluna dos infernos. A Igreja primitiva os associava
aos pagos; com o passar do tempo, aqueles que professavam idias e crenas discordantes da
ortodoxia crists tambm foram ligados a essa proposio. Na Idade Mdia, esta idia est
associada aos hereges, judeus, muulmanos. Na Frana do sculo XII, por exemplo,
acreditava-se uma caracterstica dos hereges - segundo aqueles que os perseguiam - a adorao
do Diabo encarnado em alguma forma fsica -um gato negro, um sapo, um bode ou homem -,
elemento que depois foi incorporado pelo discurso contra a bruxaria. E no sculo XIV, apso
rumoroso processo contra os templrios, a bruxaria comeou a ser associada heresia71.
- A Caa s Bruxas (ou: a histria de um conceito)
A idia que fazemos atualmente a respeito da bruxa - uma mulher
velha e feia, que possui poderes sobrenaturais malignos, que anda em contato
com os demnios e vai voando numa vassoura ao Sabbat - levou muito tempo
para cristalizar-se. Brian P. Levack, em estudo sobre a caa s bruxas na
Europa moderna, mostra como a grande represso s foi possvel a partir do
momento em que o discurso erudito cristalizara a imagem da bruxa - atravs
71 Cohn, op. cit., pp. 7-11.
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do que o autor denomina "conceito cumulativo de bruxaria" - bem como
encontrava-se pronto todo um aparato jur d ico e processual72.
O que houve foi um grande processo - encetado principalmentepelas elites eclesisticas, mas que encontrou eco na magistratura civil e entre
os segmentos letrados de um modo geral - de demonizao e detrao de
crenas e prticas particulares, que se encontravam dispersas. Tais crenas,
que viriam a estar no bojo dos processos de bruxaria, possuam origens
arcaicas e com ramificaes as mais diversas possveis, conforme demonstrou
o historiador italiano Carlo Ginzburg em estudo de flego sobre o sabbat73
.Assim era com a crena no "exrcito furioso" de espritos que, noite, errava
pelas estradas desertas em companhia de Diana; bem como no caso dos
lobisomens, e tambm da Lmia, um esprito vampiresco que raptava crianas
pequenas para sugar seu sangue. Tais crenas possuam origem pr-crist,
remontando ao paganismo greco-romano e mesmo alm, e subsistiam graas
ao carter precrio e sincretizante da cristianizao da Europa - sendo que
manifestavam-se com maior vigor nas zonas rurais e locais mais afastados dos
grandes centros, onde o cristianismo era apenas um fino verniz que recobria
o mais pujante paganismo 74.
Da censura e de uma atitude em grande parte complacente para
com os magos e feiticeiros de aldeia - que praticavam adivinhaes,
curandeirismos e magia propiciatria de um modo geral -, caracterstica da
72 Bian P. Levack, A Caa s Bruxas , Rio de Janeiro, Campus, 1988, especialmente ocaptulo 2.
73 Carlo Ginzburg, H istria N oturna, So Paulo, Companhia das Letras, 1991.74 Rober t Muchembled , Sorcellerie, culture populaire et chr istianisme au XVIe sicle in
Annales , 28 anne, 1, jan-fev. 1973, pp. 264-284.
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Igreja da al ta Idade Mdia, passou-se a uma intolerncia cada vez mais
acirrada. A Igreja sempre tivera uma relao ambgua com a magia: enquanto
sua doutrina dava nfase no poder de intercesso dos santos, e, detr imento da
pura prtica da magia, seus fiis e mesmo o clero viam no ritual e seus
aparatos um arsenal de poderes mgicos, passveis de conjuro e de apl icvel
s mais diversas circunstncias. Inclusive, esta foi a tnica da catequese da
Europa, e mesmo em momentos poster iores . Coexis t iam, en to , do is t ipos de
magia: um, "legal izado" e presente nos r itos e sacramentos da Igreja; outro,
fruto de um processo de apropriao destes mesmos elementos por parte dos
fiis e do clero - este, no aprovado pela doutrina crist. A Igreja da alta
Idade Mdia, porm, seguia a opinio do C a n o n E p i s c o p i , que afirmava ser a
feitiaria um crime onr ico ou imaginrio 75.
Contudo, medida em que a Igreja buscava reformular a prpria
doutrina e liturgia, foi encetada uma campanha para eliminao do magismo,
tanto no seio dos rituais como entre os fiis76
. A esta atitude de
endurecimento para com as prticas mgicas soma-se o processo de represso
s heresias a partir do sculo XII. A pouco e pouco - na medida em que a
tratadstica demonolgica se concretizava, e tambm de acordo com o
espocar de diversos focos de movimentos herticos - a prtica de magia foi
sendo associada e confundida com a heresia por inquisidores e magistrados,
tomando assim, aos poucos, sua forma clssica - a que est nos manuais
demonolgicos e regimentos inquisitoriais. medida em que a cristandade se
debatia com o aumento do poder de Sat, a crena na bruxaria se firmava e
75 Robbins, op. cit., pag. 74.
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consolidava, aos poucos, no imaginrio europeu. No sculo XIV, com a bula
Super I l l iu s Specu la (1326) do papa Joo XXII, a feitiaria era associada
heresia, tornando-se um del ito de alada inquisitorial , a ser reprimido pelo
famoso Tribunal . Antes, a feitiaria era punida pelo poder pblico, que via a
magia malfica como uma conduta anti-social , tal como o roubo e o
homicd io .
E o que fazia com que a bruxaria - diferentemente da feitiaria
ordinria (que consistia no recurso a oraes e r ituais para o alcance de
objetivos materiais imediatos) - fosse vista como heresia? O ponto
diferenciador era o seguinte: atravs de um pacto, no qual se comprometia a
servir e adorar Sat - rompendo os laos com Cristo e a Igreja, e incorrendo
assim no crime de latria, segundo o Manual dos Inqu is idores 77 - em troca de
poder, riquezas e gozos materiais, a bruxa passava a conspirar, ao lado do
Maligno, contra a espcie humana. Todo o poder da bruxa advm do Diabo, e
ela s tem acesso a ele por meio do pacto. Kramer e Sprenger, no MalleusMaleficarum, afirmam peremptoriamente que
" intil argumentar que todo efeito das bruxarias fantstico ou
irreal [ao contrrio do que afirmava o Canon Episcopi ], pois no
poderia ser realizado sem que se recorresse aos poderes do Diabo:
necessrio, para tal, que se faa um pacto com ele, pelo qual a bruxa
de fato e verdadeiramente se torna sua serva e a ele se devota - o que
no feito em estado onrico ou ilusrio, mas sim concretamente: a
bruxa passa a cooperar com o Diabo e a ele se une. Pois a residetoda a finalidade da bruxaria..." 78.
76 Keith Thomas, op. cit., principalmente o captulo 3.77 Nicolaus Eymerich, op. cit., pag. 55.78 Malleus ..., pag. 57. Com ent rio meu.
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Esta argumentao representa um considervel endurecimento de
posies, em relao ao Canon . Endurecimento to grande que f ica patente j
na primeira questo do Mal leus - que segue, em sua estrutura, a forma de um
debate retrico -, onde afirmado que "crer em bruxas to essencial f
catl ica que sustentar obstinadamente opinio contrria h de ter vivo sabor
de heresia", e cuja argumentao comea justamente com uma violenta crtica
ao C a n o n E p i s c o p i 79!
O pacto demonaco era, ento, o cerne da crena na bruxaria. Foi
graas a ele que a feitiaria - antes vista como uma prtica anti-social devidoao maleficium, - isto , a magia prejudicial passvel de punio pela justia
laica - passou a ser associada heresia. Segundo Levack, "no sentido mais
pleno da palavra, uma bruxa era tanto uma praticante de magia malfica,
como uma adoradora do Diabo, e o pacto era a maneira atravs do qual
ambas as formas de atividade mais claramente se relacionavam" 80.
79 Idem, pag. 49.80 Levack, op. cit., pag. 33.
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O pacto era tambm aquilo que conferia um carter conspirativo
s aes das bruxas. Ao arrancarem das bruxas confisses de contratos
demonacos, juzes e inquisidores conseguiam a evidncia irrefutvel de que
os acusados faziam, conscientemente, parte de uma imensa conspirao.
Desta forma, sintomtico o que escreve, no sculo XVII, o jesuta
Alexandre Perier - renomado missionrio, com estadas no Brasil - em sua
obra intitulada D e s e n ga n o d o s P e c a d o r e s :
" coisa sabida aquele dano e malefcio que fazem no mundo, quase
em todas as naes , aque las depravadas mulheres a que vs chamais
vulgarmente fe i t ice i ras ou bruxas . E stas desgraadas como t m arrenegado
a f pelo contrato feito com o Demnio, a quem tm vendido a sua alma, ficam
conseguintemente inimigas do gnero humano, principalmente catlico, e por
isso procuram fazer-lhe o mal que podem..."81
Contudo, alm do pacto demonaco, o conceito de bruxaria
engloba outros elementos - decorrentes, todos eles, deste contrato infernalentre a bruxa e o Diabo. Um deles o maleficium - a magia malfica, a qual
j men cionamos an ter io rmen te. O maleficium era, antes, atribudo aos
feiticeiros. Ele podia se manifestar das mais diversas formas: desde uma dor
de cabea provocada, segundo se acreditava, por mau-olhado, at uma geada
conjurada por bruxas, que arrasasse as plantaes. Na bula Summis
Desiderantis Affectibus , de 1484, em que o papa Inocncio VIII lanaoficialmente a campanha de represso bruxaria, esto arrolados alguns atos
tpicos das bruxas. Diz o texto que elas
81 Alexandre Perier, Desengano dos Pecadores , Lisboa, Miguel Manescal da Costa, 1765,pp. 316317. Gr ifo meu.
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". . . tm assassinado crianas ainda no tero da me, a lm de
novi lhos , e tm arruinado o produto da te rra , a s uvas das vinhas , os
frutos das rvores , e mais a inda : t m des t rudo homens , mulheres ,
bes tas de ca rga , rebanhos , animais de out ras espc ies , pa rre i ras ,
pomares , prados , pas tos , t r igo e mui tos out ros ce rea is ; e s tas pessoasmiserve is [ as bruxas] a inda a f l igem e a tormentam homens e
mulheres , animais de ca rga , rebanhos in te i ros e mui tos out ros
animais com dores te rr ve is e las t imve is e com doenas a t rozes , quer
in te rnas , quer ex te rnas ; e impedem os homens de rea l iza r o a to
sexua l e as mulheres de conceberem, de ta l forma que os maridos no
vm a conhecer as esposas e as esposas no vm a conhecer os
ma r i dos . " 82
Eis aqui, resumidos, os diversos tipos de maleficium. Podemos
concluir que eles estavam ligados a ameaas sobrevivncia humana - seja
enquanto reproduo da espcie (atravs dos bloqueios s relaes conjugais
ou fertilidade), ou enquanto subsistncia, na medida em que as bruxas
danificam e destroem tanto bens materiais quanto meios de sustentao. Alm
do pacto e do maleficium, o conceito de bruxaria inclua elementos outros
como a demonolatria, a crena na capacidade da bruxa em se metamorfosear
em animais (geralmente insetos ou bichos de pequeno porte, como ratos,
gatos e ces), a crena na ida e participao no sabbat (e, ligada a este
elemento, a crena de que as bruxas voavam) - e sua difuso atravs de
tratados e obras que procuravam incentivar os julgamentos tiveram um efeito
devastador, tanto ao nvel das mentalidades e crenas quanto no fomento
represso.
82 In Malleus ..., pp. 44-45.
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- A Represso
Em seu consagrado estudo, Keith Thomas explica a grande onda
de represso bruxaria como fruto de uma conjuno de fatores: primeiro, a
elaborao e posterior imposio de um discurso demonolgico erudito;
segundo, uma grande insegurana por parte dos f iis em geral , privados da
proteo mgica oferecida pelo cristianismo tradicional - que, como notamos,
sofreu um poderoso processo de f il tragem por parte das reformas rel igiosas - ;
em vir tude deste fator , os homens teriam ficado indefesos frente s prticas
d e m a l e f i c i u m - contra as quais estavam imunes anteriormente, devido ao
amparo mgico oferecido pelos r ituais da Igreja. A conjuno destes fatores
que teria favorecido o espocar de sucessivas ondas repressivas, tanto em
local idades de credo catl ico quanto protestante83. Tais ondas, em seu
conjunto, que formam o que se convencionou chamar de grande caa s
bruxas.
Esta explicao d conta do fato de a perseguio ter incio antes
das reformas religiosas - em virtude da crescente presso do discurso erudito,
que encontrava alguma ressonncia entre as camadas populares. Ajuda
tambm a explicar o porque da fria repressora que teve seu auge entre os
sculos XVI-XVII (1560-1650), tanto do lado catlico quanto do protestante
(neste, inclusive, com muito maior fora e virulncia): ao retirar o aparato
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mgico que impregnava a crena crist, as reformas deixaram l ivre um campo
onde o discurso demonolgico - que j fazia fora para se impor - pde
finalmente tr iunfar . Tratamos, aqui, da difuso destas idias no seio das
camadas da populao que no pertenciam s el ites letradas.
A partir de tal confluncia, povo e magistrados entraram em
simbiose de crenas, e atuaram conjugadamente. Os primeiros espreitando,
denunciando e s vezes tomando para si a justia; os l timos, punindo
efetivamente, julgando e condenando atravs de uma mquina judiciria que
era al imentada pelas denncias do povo. Esta conjugao de pontos de vista
fez com que os praticantes de magia e feitiarias, antes vistos como
"desclassif icados rel igiosos", na opinio de Francisco Bethencourt, fossem
transformados tambm em "desclass if icados sociais" 84
83 Thomas, op. cit., especialmente o captulo 15.84 Francisco Bethencourt , O Imaginrio da Magia , Lisboa, Projecto Universidade
Aberta, 1987, pag. 22.
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I I O CONTEXTO IBRICO
As ondas de represso bruxaria foram mais intensas,
principalmente, nos lugares onde o modelo demonolgico elaborado pelos
setores letrados teve uma difuso mais sl ida. Arderam bruxas em fogueiras
inglesas, francesas, alems, e suas, entre outras. Tais ondas repressivas
varreram periodicamente a Europa, de um modo geral , entre os sculos XV e
XVIII , vindo a perder flego e f inalmente extinguir-se no sculo XVIII .
A Pennsula Ibrica, porm, apresentou singulares
peculiaridades, no que tange insero no movimento maior, europeu, de
represso bruxaria. Comparando com outros pases europeus, o nmero de
execues por bruxaria em Portugal e Espanha mnimo, para no dizer
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insignif icante. Muito poucas bruxas foram - comparativamente falando -
queimadas na Pennsula Ibrica85.
Isto devido a uma srie de fatores. O primeiro - e o maispatente dentre eles - a excessiva ateno dada, pela Inquisio ibrica num
todo, ao problema dos judeus conversos. Preocupada em rastrear e punir os
delitos dos judaizantes, os Tribunais portugueses e espanhis no enfatizaram
a represso bruxaria.
A tal peculiaridade soma-se o fato de que a Pennsula Ibrica foi
afetada em menor intensidade pelo discurso demonolgico que grassava por
todo o continente europeu, impulsionando a caa s bruxas. Inclusive, para
Portugal, no h uma produo demonolgica no sentido clssico do termo -
algo como os famosos tratados como o Malleus e outros congneres.
Segundo Laura de Mello e Souza, os elementos demonolgicos no possuem
uma tratadstica prpria em Portugal, aparecendo dispersos ao longo da
literatura religiosa86. Tais elementos se encontram pulverizados entre os
manuais de confessores, catecismos e tratados de teologia moral - os quais,
segundo Bethencourt, por usarem uma argumentao baseada no comentrio
aos dez mandamentos, aos sete pecados capitais e aos sacramentos, discutem
a feitiaria no mbito do primeiro mandamento, o "amar a Deus sobre todas
as coisas"87 Quando da represso s atividades demonacas, os inquisidores
lusos estavam mais preocupados em rastrear o pacto e a adorao ao Diabo
85 Bethencourt apresenta uma relao dos processados por feitiaria, magia e bruxariapelos Tribunais inquisitoriais lusitanos no sculo XVI. O nmero de acusados debruxaria insignificante. Cf. Id. ibid. , pp. 302-307.
86 Laur a de Mello e Souza, O con junt o: a Amr ica diab lica in Inferno Atlntico , SoPaulo, Companhia das Letras, 1993, pag. 24.
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do que em buscar evidncias de participao no sabbat 88. A fraca difuso do
conceito de bruxaria fez com que seus elementos surgissem de forma dispersa
nos processos ibricos de feitiaria, nunca apresentando um todo consistente.
Para o caso espanhol, a situao apresenta poucas variantes.
Carlos Roberto F. Nogueira mostra que, no obstante a atuao de
inquisidores que possuam contato mais prximo com a literatura
demonolgica clssica, o conceito de bruxaria possui pouca penetrao em
territrio espanhol. Acreditando que as bruxas vinham da vizinha Frana, os
espanhis no davam aos casos de bruxaria o tratamento que era dispensadoem outros locais. Segundo o autor, faltaram em Espanha "uma perseguio e
uma doutrinao sistemtica" que pudessem levar a "uma 'bruxomania'
generalizada"89.
87 Bethencourt , op.cit . , pag. 20.88 Laur a de M. e Souza, Em tor no de um mito : a elipse do sab in op. cit. , pag. 167.89 Nogueira, A Migrao do Sabbat , texto indito, mimeo, pag. 7. Agradeo, aqui, a
gentileza do autor em franquear-me o acesso a este estudo.
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CAPTULO 3
- POLTICA POMBALINA E INQUISIO -
I - PANORAMA DO PORTUGAL PR-POMBALINO
- Breve H ist ric o da Gove rna o Po m bal in a
No sculo XVIII, Portugal vivia uma situao de defasagem em relao ao
resto da Europa e, em certa medida, face Espanha. Defasagem esta que ocorria ao nvel da
cultura, das idias, da poltica e economia. Era como se em Portugal as mudanas custassem a
acontecer.
Portugal ocupou posio de ponta no desenvolvimento poltico, econmico e
social da Europa no incio da Idade Moderna, graas a um precoce processo de"modernizao" que teve em seu bojo os progressos da navegao, a expanso ultramarina, a
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formao do Estado absolutista, estando na vanguarda dos acontecimentos no perodo que vai
de fins do sculo XV a princpios do XVI90.
Contudo, por um processo histrico cuja discusso foge ao mbito desta
pesquisa, encontramos esse florescimento como que cristalizado. A Pennsula Ibrica - e,notadamente, Portugal - encalacrara-se em si mesma contra quaisquer novidades vindas de
fora, que eram imediatamente associadas, pelo pensamento eclesistico vigente, heterodoxia
e heresia. Tudo que vinha do exterior constitua-se em potencial ameaa ordem
estabelecida. Este casticismo, "francamente dominante nos crculos dirigentes", possua
averso a qualquer tipo de novidade europia e, paradoxalmente, cultivava o exotismo do
Oriente91.
Uma combinao entre os instrumentos de manuteno da ortodoxia -notadamente, a Companhia de Jesus e a Inquisio - e o Estado atuou no sentido de proteger
Portugal contra tudo aquilo que o desviasse das diretrizes do conclio tridentino, bem como
contra a "modernidade" que trazia em si o esprito matemtico e naturalista, a secularizao e
o racionalismo - elementos que, em Portugal, foram rejeitados a priori92. Segundo Francisco
Falcon -autor de obra j tida como clssica para o estudo do perodo pombalino -, o resultado
deste fechamento
"Uma viso do mundo completamente toldada, ensimesmada, fechada ao
exterior, mais distante do que nunca da 'teoria do progresso' que avana alm-Pirineus: viso
essa que se afirma e fortalece na medida exata em que se contrape ao outro, o herege, o
estrangeiro; fato que ir justificar plenamente, aos seus olhos, a autodefesa com os aparelhos
repressivos, polticos e ideolgicos, de que dispe93.
90 Sobre este florescimento, ver H is tria de Portugal volum e 3 - No Alvorece r da
Modernidade , coordenao de Joaquim Romero Magalhes, Lisboa, Editorial Estampa,s.d.91 Histria de Portugal vol 4 - O Antigo Regime , Lisboa, Editorial Estampa, s.d., pag.
24.92 Francisco Jos Calazans Falcon, A poca Pombalina , So Paulo, tica, 1982, pp.
149ss. Ver tambm A. H. de Oliveira Marques, Historia de Portugal , Cid. Mexico,Fondo de Cultura Economica, 1984, v. 1, pag. 300. O conclio de Trento encontrouresistncias das monarquias absolutistas no que tange, principalmente, justiaeclesistica e subordinao episcopal a Roma. Em Portugal tambm no foi diferente,tendo as medidas tridentinas, apesar de rpida aceitao, uma implantao morosa. VerHistria de Portugal v. 3 , pag. 291.
93 Falcon, op. cit., pag. 154.
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