tese de mestrado - análise do sistema construtivo pombalino e recuperação de um edifício.pdf
TRANSCRIPT
Agradecimentos Os meus mais sinceros agradecimentos aos professores Mário Lopes e Rita Bento, pela extraordinária
orientação e apoio, pelo rigor e encorajamento, e pela constante procura por fazer a ponte entre a “sua”
engenharia e a “minha” arquitectura.
Agradeço também à professora Ana Tostões, coordenadora do Mestrado Integrado em Arquitectura
do IST, pela atenção e apoio que me deu quando precisei, ao Dr. Vítor Teixeira pela disponibilidade e
simpatia, e à Sílvia Neves pela ajuda e companhia nalgumas fases do trabalho.
Agradeço ainda aos meus colegas e amigos por estarem presentes, por me darem um ombro ou uma
mão, pelo carinho e apoio que recebi e agradeço ao Nuno pela paciência, pelo amparo, pelo entusiasmo
ao longo de todo este percurso, por tudo o resto.
E aos meus pais, uma dívida de gratidão eterna.
1
ANÁLISE DO SISTEMA CONSTRUTIVO POMBALINO E RECUPERAÇÃO DE UM EDIFÍCIO
Resumo analítico O presente trabalho refere-se à compreensão e análise do processo construtivo utilizado para a
reconstrução da Baixa Pombalina após o sismo de 1 de Novembro de 1755.
O entendimento deste sistema passa pela listagem das técnicas construtivas e materiais utilizados,
pela leitura da estrutura espacial interior dos edifícios, pelo estudo do comportamento sísmico destes e
pela sua valorização, nomeadamente no âmbito da candidatura da Baixa a Património da Humanidade,
apresentando-se o sistema construtivo pombalino como um marco estrutural, arquitectónico, urbanístico.
É feita uma análise das alterações sucessivas que os edifícios pombalinos foram sofrendo ao longo
dos anos (desde a reconstrução da Baixa até ao momento presente) e dos riscos a que estas alterações
conduziram e continuam a conduzir, nomeadamente pelo aumento da vulnerabilidade sísmica desses
edifícios.
Todo este estudo é elaborado com os objectivos de alertar para os erros construtivos que se têm
vindo a fazer, prejudicando um património histórico e urbano pertencente a todos nós, e fornecer
critérios de recuperação dos edifícios pombalinos, à luz dos usos e funcionalidades actuais, conciliando
com estes factores a preservação do sistema de construção pombalina.
Palavras-chave
Edifícios pombalinos; alterações estruturais; critérios de recuperação; património da humanidade.
2
ANALYSIS OF THE POMBALINO CONSTRUCTIVE SYSTEM AND RECUPERATION OF A BUILDING
Abstract The present work refers to the understanding and analysis of the constructive process used for the
reconstruction of Baixa Pombalina after the earthquake on the 1P
stP November 1755.
The understanding of this system involves the list of the constructive techniques and used materials, the
interpretation of the inner space structure of the buildings, the study of its seismic behaviour and its value,
namely in the context of the candidature of Baixa for the World Heritage, presenting the pombalino
constructive system as a unique structural, architectural, town planning landmark.
An analysis of the successive alterations that these buildings have been suffering along the years (from the
reconstruction of Baixa until the present days) and the risks that these alterations led and keep leading,
increasing the seismic vulnerability of such buildings, is presented.
This study has the objective to alert for the constructive mistakes that have been made, damaging a
historical and urbane inheritance that belongs to all of us, and to supply recuperation criteria of pombalinos
buildings, taking into account the current uses and needs, allowing the reconciliation of these factors along
with the preservation of pombalino construction system.
Keywords
Pombalinos buildings; structural alterations; recuperation criteria; World Heritage.
3
ÍNDICE
1 Introdução 10 – 17
1.1 Considerações preliminares 10
1.2 Âmbito do trabalho 16
1.3 Síntese de capítulos 17
2
Análise do Sistema Construtivo Pombalino
18 – 44
2.1 Descrição de edifícios pombalinos 18
2.2 Técnicas construtivas e materiais utilizados 23
2.3 Estrutura espacial pombalina 37
2.4 Comportamento sísmico e riscos para a segurança da Baixa 42
3
Alterações estruturais e seus efeitos
45 – 50
4
Recuperação de um Edifício Pombalino
51 – 74
4.1 Breve descrição do Edifício 51
4.2 Estado de Conservação e alterações estruturais do Edifício 59
4.3 Recuperação da estrutura pombalina e reabilitação do Edifício 68
5
Considerações finais
75 – 79
5.1
5.2
5.3
Candidatura a Património da Humanidade
Resumo e conclusões
Recomendações para desenvolvimentos futuros
75
76
79
Referências Bibliográficas
80 – 81
Anexos
82 – 96
4
LISTA DE QUADROS E FIGURAS
0 Fotografia aérea da Baixa Pombalina (Santos [22]) 9
1.1.01
Lisboa antes do Terramoto de 1755 – Imagem do séc. XVIII de Matthaus Seutter, S. Coes
Mag. George Aug. Vindel (Mateus [18])
10
1.1.02 Desenvolvimento de Lisboa antes de 1755 – Limites da cidade nos séculos XII, XIV e
XVIII (Santos [22])
11
1.1.03 Planta de Lisboa de 1650, João Nunes Tinoco 12
1.1.04 Lisboa durante o incêndio de 1755 – Imagem do séc. XVIII de Matthaus Seutter, S. Coes
Mag. George Aug. Vindel (Mateus [18])
13
1.1.05 «O terramoto de Lisboa» – Imagem de cerca de 1760 de J. Glama Ströberle (França [11]) 13
1.1.06 Planta para a Reconstrução de Lisboa de 1758, elaborada por Eugénio dos Santos 15
2.1.01
Propostas para fachadas de edifícios da Baixa – Manuel da Maia (Santos [22])
18
2.1.02 Proposta para fachada de edifícios da Baixa – Eugénio dos Santos (Santos [22]) 19
2.1.03
2.1.04
2.1.05
Praça do Rossio (Passos [19]):
a) Fototipia animada de 1905;
b) Fototipia de 1905.
Um dos alçados tipo dos quarteirões pombalinos (França, Mateus [12])
Fotografia de edifício pombalino na Praça da Figueira.
20
21
22
2.2.01
Esquema do solo de fundação do edifício (Santos [21])
24
2.2.02 Esquema da fundação do edifício (Santos [21]) 25
2.2.03 Axonometria da estrutura de um edifício (Santos [21]) 26
2.2.04 Ligação das vigas com ferrolhos (Leitão [13]) 27
2.2.05 Esquema de frontal de tecido (Santos [21]) 28
2.2.06 Esquema de frontal à galega (Santos [21]) 29
2.2.07 Esquema de frontal à francesa (Santos [21]) 29
2.2.08 Esquema de tabique suspenso ou aliviado (Leitão [13]) 30
2.2.09 Esquema da disposição dos elementos de travamento na ligação parede/piso
(Pinho [20])
30
2.2.10 Esquema de estrutura do pavimento (Santos [21]) 31
2.2.11 Esquemas de solução de soalhos:
1) solho a meio fio;
2) solho de junta;
3) solho de macho-fêmea
31
2.2.12 Fotografia do tecto de uma divisão interior de um edifício pombalino 32
2.2.13 Esquema de estrutura das escadas (Santos [21]) 33
5
2.2.14 Esquema da diferença entre águas-furtadas e mansardas (adaptado de Cardoso [7]) 33
2.2.15 Esquema das coberturas (Santos [21]):
a) Trapeira;
b) Colocação das telhas
34
2.2.16 Esquema da estrutura da janela de peito (Santos [21]) 35
2.2.17 Esquema de trapeira com janela de peito de guilhotina (Santos [21]) 35
2.2.18 Corte esquemático mostrando o sumidouro e o colector comum. (França [10]) 36
2.3.01
Fotografia de interior do terceiro piso do edifício da Pastelaria Suiça
37
2.3.02 Fotografia de um patamar com as portas de entrada para os apartamentos
(Santos [22])
38
2.3.03 a) Planta de um andar-tipo (adaptado de Santos [22])
b) Planta cotada de um andar-tipo (adaptado de Santos [22])
39
40
2.3.04 Fotografia de edifício na Rua do Ouro
41
2.3.05 Fotografia de uma cozinha onde se pode ver a pia original tapada num nicho da
parede (Santos [22])
41
2.4.01
Principais tipos de edifícios de alvenaria em Lisboa (adaptado de Mascarenhas [15])
43
3.01
Fotografia da loja Lisbonense – sombreamento e reclames luminosos de imagem
bastante negativa na Baixa
45
3.02
Fotografia de um edifício com remoção de frontais e introdução de vigas metálicas
(Bento, Lopes, Cardoso [5])
46
3.03 Esquema de comportamento de estrutura triangulada e rectangular face a acções
horizontais
47
3.04 Fotografia de gaiola danificada por intervenção posterior à construção original (Bento,
Lopes, Cardoso [5])
47
3.05 Fotografias de interrupções dos alinhamentos verticais da fachada:
a) Fotografia de edifício na Praça da Figueira;
b) Fotografia de edifício na Rua Augusta
48
3.06 Fotografias de edifícios com mais pisos que os previstos originalmente:
a) Fotografia da Rua da Prata onde a maioria dos edifícios tem 6 pisos;
b) Fotografia da Rua Augusta onde um edifício chega a ter 7 pisos
49
3.07 Esquema de aumento de esforços com o aumento do número de pisos 50
4.1.01
Planta geral da Baixa e envolvente
51
4.1.02 Fotografia de pormenor do conjunto de edifícios (fachadas poente e sul) 52
4.1.03 Fotografia de pormenor do conjunto de edifícios (fachada poente) 53
4.1.04 Planta de localização do edifício – prédios analisados 54
6
4.1.05 Planta esquemática do piso térreo – acessos a pisos superiores (feitos a Poente) e
diferentes edifícios assinalados
54
4.1.06 Planta esquemática do primeiro piso 55
4.1.07 Fotografia do interior do saguão do edifício 3 56
4.1.08 Fotografia de um corredor do edifício 4 56
4.1.09 Planta esquemática do segundo piso 57
4.1.10 Planta esquemática do terceiro piso 57
4.1.11 Planta esquemática do quarto piso (águas-furtadas) 58
4.2.01
Fotografia de pormenor – águas-furtadas
59
4.2.02 Fotografias de pormenor:
a) Vidros partidos;
b) Espaços comerciais abandonados
59
4.2.03 Fotografias no interior do bloco – fendilhação de frontal 60
4.2.04 Fotografias no interior do bloco:
a) descasques do revestimento do frontal;
b) deformação no pavimento
61
4.2.05 Fotografias no interior do bloco:
a) descasques do revestimento do tecto com exposição do fasquiado;
b) colapso do revestimento do tecto com exposição da estrutura do pavimento
61
4.2.06 Fotografia no interior do bloco:
a) empolamento do reboco de um tabique;
b) empolamento do reboco e abaulamento de um tabique
61
4.2.07 Fotografia no interior do bloco:
a) colapso do revestimento do tecto com exposição da estrutura do pavimento;
b) sistema improvisado de drenagem das águas pluviais presente no primeiro piso dos
edifícios 3 e 4
62
4.2.08 Fotografia no interior do bloco:
a) sistema improvisado de apoio à estrutura da cobertura;
b) escadas do edifício 4
62
4.2.09 Fotografia de espaço comercial no piso térreo – redução da secção do pilar 63
4.2.10 Planta esquemática do piso térreo:
a) onde se assinalam as paredes de alvenaria retiradas a traço interrompido vermelho;
b) onde se assinala a malha de frontais dos pisos superiores a vermelho.
64
4.2.11 Fotografias no interior do bloco:
a) sala com vários frontais retirados;
b) pormenor de frontal cortado
65
4.2.12 Planta esquemática do primeiro piso
(onde se assinalam os frontais retirados a traço interrompido laranja e a parede de alvenaria
desenquadrada da estrutura original pombalina a vermelho).
65
4.2.13 Planta esquemática do segundo piso 66
7
(onde se assinalam os frontais retirados a traço interrompido laranja e a parede de alvenaria
desenquadrada da estrutura original pombalina a vermelho).
4.2.14 Planta esquemática do terceiro piso
(onde se assinalam os frontais retirados a traço interrompido laranja e a parede de alvenaria
desenquadrada da estrutura original pombalina a vermelho).
67
4.2.15 Planta esquemática do quarto piso
[onde se assinalam os frontais retirados a traço interrompido laranja, as paredes de alvenaria
(paredes meeiras e dos saguões) a traço interrompido vermelho e a parede de alvenaria
desenquadrada da estrutura original pombalina a vermelho].
67
4.3.01
Fotografia no interior do bloco – estrutura de pavimento em madeira bastante
danificada
70
4.3.02 Planta esquemática do piso térreo
(onde se assinala a tracejado as área mais afectadas por intervenções anteriores)
71
4.3.03 Planta esquemática dos pisos superiores com as alterações à estrutura original de
frontais – a vermelho (traço cheio): frontais originais que seriam alterados; – a azul: localização
futura dos frontais alterados.
72
4.3.04 Fotografia do interior do edifício 3:
a) tecto do espaço de entrada;
b) paredes do espaço de entrada
73
4.3.05 Fotografia do exterior do edifício 3:
a) porta de entrada;
b) pormenor do elemento em ferro
73
8
0 _ Fotografia aérea da Baixa Pombalina (Santos [22])
9
1 Introdução
1.1 Considerações preliminares
Em 1755, Lisboa era uma cidade com cerca de 250 000 habitantes, aproximadamente um décimo da
população de Portugal, de tecido urbano medieval.
A cidade, que foi destruída por um terramoto de uma amplitude jamais registada e por um incêndio
devastador, crescera ao longo dos séculos de forma orgânica, condicionada pelo estuário do Tejo e por
uma base topográfica acidentada, como ilustra a imagem 1.1.01.
1.1.01 _ Lisboa antes do Terramoto de 1755 – Imagem do séc. XVIII de Matthaus Seutter, S. Coes Mag. George Aug. Vindel (Mateus [18])
Pela sua localização estratégica, Lisboa era um ponto de encontro entre o mundo atlântico e o mundo
mediterrânico. O seu desenvolvimento (ilustrado na figura 1.1.02), desde os tempos da Pré-História com
as estações paleolíticas e neolíticas que povoavam a região, passando por ocupações celtas, cartaginesas,
fenícias, romanas e mouros, deveu-se a factores físicos bastante favoráveis – o clima ameno, uma terra
fértil, uma colina de fácil defesa junto ao rio, e este, bastante largo, ideal para abrigar embarcações.
Entre a segunda metade do século XIII e a primeira do século XIV deu-se um rápido crescimento da
cidade, sendo construída, no reinado de D. Fernando, uma nova cerca da cidade (em 1375), alargando os
seus limites para cerca de sete vezes a superfície confinada pela cerca moura (séc. XII), desenvolvendo-se
sobretudo ao longo da litoral do rio.
10
1.1.02 _ Desenvolvimento de Lisboa antes de 1755 –
Limites da cidade nos séculos XII, XIV e XVIII (Santos [22]) Também no período dos Descobrimentos (séc. XV e primeira metade do séc. XVI) se assistiu a um
aumento populacional provocado pela afluência de pessoas à cidade ligadas aos negócios, à construção
naval, ou simplesmente atraídas pela aventura da expansão além-mar. Lisboa era então uma capital com
um abundante comércio internacional, baseado na economia das Índias – que se veio a mostrar de
duração limitada.
Apesar do crescente aumento da população, a cidade desenvolvia-se sem plano, de acordo com as
necessidades do momento, moldando-se à topografia do terreno (que, com as suas várias colinas, não
favorecia uma regularidade de desenho urbano). Na planície que se estendia entre a colina do Castelo (a
nascente) e a de São Francisco (a poente) ficava a zona central da cidade: a “Baixa”.
No século XVI, porém, assistiu-se ao primeiro anúncio de uma cidade “moderna” – o fenómeno
urbanístico da edificação do Bairro Alto de S. Roque (que se pode ver na imagem 1.1.03). Este ergueu-se
fora das muralhas fernandinas a ocidente, com ruas bem largas, de traçado regular e malha ortogonal que,
por isso, facilmente se distinguia da restante cidade medieval (como se pode observar na planta de Tinoco
de 1650 – imagem 1.1.03).
11
1.1.03 _ Planta de Lisboa de 1650, João Nunes Tinoco
Do centro comercial da cidade destacavam-se dois grandes espaços públicos – o Rossio a norte,
abrindo para o campo e arredores, e o Terreiro do Paço. Entre eles existia um espaço densamente
construído, labiríntico com os seus becos e ruas estreitas e irregulares, à imagem das áreas mais antigas
da cidade (Alfama e Castelo). O centro de Lisboa correspondia então às paróquias da Madalena, S. Julião e
S. Nicolau, e na Rua Nova ficava o coração das actividades comerciais de toda esta zona.
Com o aumento populacional, muitos edifícios foram alterados, aumentando o seu número de pisos –
o que contribuía para a precariedade sentida ao nível da salubridade, higiene e conforto das ruas. Os
terramotos de 1531, 1551 e 1597 contribuíram também para estas reconstruções.
Em 1581, aquando da estadia de Filipe II de Espanha em Portugal, o Paço da Ribeira foi remodelado e
embelezado – é nesta altura que Filippo Terzi constrói o torreão e a nova fachada do edifício que ocupava
o lado poente do Terreiro do Paço. Também durante a ocupação espanhola, foram construídos muitos
palácios, conventos e outros edifícios monásticos.
No século XVII, já no reinado de D. João IV, foram tomadas medidas de alteração do espaço público
para melhorar a circulação de coches nas principais ruas, sendo para isso demolidas várias casas.
Para além das igrejas, palácios e conventos que povoavam a cidade, é de salientar a grande obra que
foi o Aqueduto das Águas Livres (construído entre 1732 e 1749), projecto de Manuel da Maia e de
Custódio Vieira, tendo Carlos Mardel integrado a equipa em 1748. Este permaneceu intacto após o
terramoto, podendo ainda hoje ser apreciado.
Já na época de D. José, foi construído o Teatro do Tejo, junto do Paço da Ribeira. Inaugurado em 1755
durou apenas alguns meses, tendo sido completamente destruído pelo terramoto.
12
No primeiro dia de Novembro de 1755, dia de Todos os Santos, pelas nove horas e quarenta da
manhã, a cidade foi sacudida por um terramoto de proporções avassaladoras (ilustrado na imagem 1.1.04).
Este terramoto de magnitude e intensidade violentas, ao qual se seguiu um incêndio catastrófico que
durou cinco a seis dias, destruiu completamente o centro de Lisboa, os seus edifícios, a sua riqueza, os
seus valores artísticos e patrimoniais.
1.1.04 _ Lisboa durante o incêndio de 1755 – Imagem do séc. XVIII de Matthaus Seutter, S. Coes Mag. George Aug. Vindel (Mateus [18])
As zonas mais afectadas eram as que haviam sido mais densamente edificadas: a zona central da
Baixa, desde o Terreiro do Paço até ao Rossio, estendendo-se para nascente e poente pelas encostas da
colina do Castelo e de São Francisco; e também a área compreendida entre Alfama, o Campo de Santa
Clara e Nossa Senhora do Monte. O número de mortos não foi oficializado, havendo no entanto cartas
escritas de Lisboa que falam em 70 mil a 85 mil mortos – um terço da população da capital – que, no
entanto se pensa ser uma estimativa por excesso. Vários hospitais e palácios não resistiram, tendo
desaparecido.
O impacto social do fenómeno ocorrido estendeu-se por toda a Europa, tendo vindo a inspirar
filósofos e poetas como Voltaire, Kant, Rousseau e Goethe, entre outros (como se apresenta na imagem
1.1.05).
1.1.05 _ «O terramoto de Lisboa» – Imagem de cerca de 1760 de J. Glama Ströberle (França [11])
Sebastião José de Carvalho e Melo, então Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra
e conhecido pelo título de Marquês de Pombal, soube providenciar as medidas de emergência
necessárias face à tragédia abatida sobre a cidade, desencadeando posteriormente o processo da
Reconstrução de Lisboa.
Foi então proposto por Manuel da Maia, Engenheiro mor do reino, um Plano de Renovação da cidade,
aprovado por Sebastião José de Carvalho e Melo e posto em execução pelo rei D. José através do Alvará
13
de 12 de Maio de 1758. Este Plano aliava os pensamentos iluministas ao poder político e às competências
dos técnicos que o elaboraram, convergindo numa solução de grande eficácia.
Manuel da Maia estudou inicialmente cinco modos de possível renovação de Lisboa:
“O primeiro restitui-la ao seu antigo estado, levantando os edifícios nas suas antigas alturas, e as
ruas nas suas mesmas larguras.” P
“O 2º modo, levantando os edifícios nas suas antigas alturas, e mudando as ruas estreitas em ruas
largas.” P
“O 3º modo, diminuindo as alturas [dos edifícios] e dois pavimentos sobre o térreo, e mudando as
ruas estreitas em largas.” P
“O 4º modo, arrasando toda a cidade baixa, levantando-a com os entulhos, formando novas ruas
com liberdade competente, tanto na largura como na altura dos edifícios que nunca poderá exceder a
largura das ruas […] livrando Lisboa baixa das inundações que padece em ocasiões de maré-cheia.”
P
P“O 5º modo, desprezando Lisboa arruinada, e formando outra de novo desde Alcântara até
Pedrouços; com permissão porém de que os donos das casas de Lisboa arruinada as pudessem
levantar como quisessem.” (Cristóvão Ayres, pp. 25-27 [3])P
Seguidamente, o Engenheiro mor do reino organiza três equipas de Engenheiros militares às quais
encomenda seis propostas de urbanização da cidade, cada uma dando resposta a diferentes
condicionamentos. A primeira equipa, que elaborou a Planta nº 1, era composta pelo Ajudante Pedro
Gualter da Fonseca (que elaborou também a Planta nº 4) com a colaboração do Praticante Francisco
Pinheiro da Cunha; a segunda, que elaborou a Planta nº 2, era composta pelo Capitão Elias Sebastião Pope
(que elaborou também a Planta nº 5) com a colaboração do seu filho o Praticante José Domingos Pope; e
a terceira, que elaborou a Planta nº 3 (apresentada na imagem 1.1.06), era composta pelo Capitão Eugénio
dos Santos e Carvalho (que elaborou também a Planta nº 6) com a colaboração do Ajudante Carlos
Andreas.
Os três primeiros projectos (Plantas nº 1, 2 e 3) definem o desenvolvimento de traçados regulares a
demarcarem quarteirões, propondo uma maior articulação entre as duas praças principais. Nos restantes
planos, foi dada maior liberdade aos arquitectos para pensar novas soluções possíveis – neste segundo
grupo de propostas, as plantas nº 4 e nº 6 ignoravam qualquer pré-existência urbana. O plano de Eugénio
dos Santos (apresentado na imagem 1.1.06), viria a ser o escolhido, e mostrava ser o mais inovador e ao
mesmo tempo sensato e ponderado.
O plano de Eugénio dos Santos contava com um traçado de ruas ortogonal que enquadrava o novo e
regularizado espaço do Terreiro do Paço. O Rossio fica aproximadamente com metade da área do Terreiro
do Paço e os dois ficam unidos por duas das três ruas nobres da Baixa (a Rua do Ouro e a Rua Augusta –
mais tarde a Rua da Prata seria incluída nas ruas principais por ter o seu início no Terreiro do Paço). Estas
ruas teriam 60 palmos de largura (cerca de 13,2 m), tendo 10 palmos (2,2 m) de cada lado destinados a
passeios.
14
1.1.06 _ Planta Final para o plano-piloto da Baixa-Chiado, 1758
Em 1758 o plano de Eugénio dos Santos foi aprovado e foi introduzido um novo elemento à equipa –
o Tenente-coronel Carlos Mardel.
Apesar de se apoiar na ideia da estandardização construtiva (a reconstrução da cidade deveria ser
rápida e de custos reduzidos), e de uma certa monotonia tipificada, a nova malha em quadrícula é
astuciosamente rica e harmoniosa, com uma dinâmica própria conseguida pela proporção dos blocos que
a compõe, de diferentes dimensões e orientações face ao terreno de suporte, e pelos eixos monumentais
criados.
O projecto de reconstrução dizia respeito não só à nova planta da cidade mas também à tipologia dos
edifícios que formariam a sua imagem de conjunto. Assim são apresentados a Marquês de Pombal os
projectos que definiam as fachadas dos edifícios, de desenho digno e modesto, variando
hierarquicamente em conformidade com a importância das ruas. São também apresentados os modelos
construtivos e esquemas estruturais dos edifícios contendo os principais aspectos que hoje conhecemos
como o sistema construtivo pombalino.
Foi ainda dada uma grande importância ao espaço público urbano, onde a vida social se desenrola,
sendo por isso estudados melhoramentos técnicos que iriam ser introduzidos – nomeadamente a rede de
esgotos e recolha de lixos, o abastecimento domiciliário de água e das bocas-de-incêndio.
Estavam assim lançadas as bases daquela que se viria a mostrar como uma das mais admiráveis
reconstruções de uma cidade após uma catástrofe.
15
1.2 Âmbito do trabalho
Os principais objectivos do desenvolvimento da dissertação prendem-se com, em primeiro lugar, o
compreender e valorizar do sistema construtivo pombalino como um exemplo e um marco histórico da
construção anti-sísmica – tentando percebendo as suas mais-valias como a introdução do sistema de
gaiola.
É também de extrema importância fazer uma análise das várias alterações sofridas pelos edifícios
pombalinos (e principais reduções da sua resistência estrutural) com o fim de elaborar uma série de
critérios para a sua recuperação de uma forma mais consciente, baseados na preservação do sistema
construtivo pombalino e sua compatibilização com as novas necessidades e funções.
A título ilustrativo, foi ainda desenvolvido um exemplo prático: a recuperação de um conjunto de
edifícios pombalinos com base nos critérios desenvolvidos na presente dissertação.
O trabalho foi então estruturado em diferentes fases, começando por uma análise mais abrangente,
aproximando-se gradualmente do objecto de intervenção do projecto.
Desta forma, foi feita uma primeira abordagem descritiva do sistema construtivo: o seu
desenvolvimento histórico, as suas técnicas e materiais principais, o seu comportamento estrutural e
sísmico, bem como as suas qualidades espaciais e tipológicas.
Seguidamente foi elaborado um estudo das principais alterações sofridas em edifícios pombalinos.
Este estudo teve como base uma análise visual de alguns edifícios da Baixa pombalina, cruzada com os
conhecimentos adquiridos na fase anterior e com fontes documentais utilizadas.
Na esmagadora maioria dos casos, as alterações sofridas resultam numa redução da resistência
sísmica do edifício – sendo que por isso esta fase foi extremamente útil para compreender aquilo que não
se deve fazer aquando de intervenções/ reabilitações de edifícios pombalinos, elaborando assim uma
série de exemplos pela negativa.
Após esta análise mais abrangente, os conceitos e critérios desenvolvidos foram aplicados a um caso
de estudo, um edifício pombalino da Baixa de Lisboa. Através de elementos desenhados e de várias visitas
ao edifício, foi feito um levantamento do desenho e do estado de conservação do mesmo, bem como das
alterações sofridas face ao seu desenho inicial – a partir daqui foram tiradas conclusões qualitativas
quanto ao seu actual comportamento estrutural.
Importa referir que este estudo mais aprofundado teve também como objectivo saber até que ponto
se pode (ou se deve) recuperar aspectos construtivos alterados, ou como essas intervenções devem ser
feitas.
Todo este trabalho de análise teve um interesse último, que é o da aplicação dos conhecimentos
adquiridos na intervenção sobre o edifício estudado (ou seja, criar o fundamento teórico do objecto de
projecto).
Desta forma, o propósito do trabalho é que este estudo passe a ser mais do que um caso de estudo
meramente académico; trata-se de se reunir informação que possa alterar o modo de reabilitação de
edifícios semelhantes, podendo vir a constituir uma base prática desse tipo de intervenções.
16
1.3 Síntese de capítulos
Os capítulos que seguidamente se apresentam são concordantes com os objectivos a atingir com o
presente trabalho teórico. É neste contexto que surgem os capítulos seguintes:
O Capítulo 2 – Análise do Sistema Construtivo pombalino vem fazer uma primeira aproximação aos
métodos de construção utilizados aquando da Reconstrução Pombalina, mostrando as técnicas e
materiais constituintes, o comportamento estrutural que este sistema apresenta, bem como as qualidades
espaciais e tipológicas que caracterizam este tipo de construção.
O Capítulo 3 – Alterações estruturais e seus efeitos apresenta um estudo das principais alterações
estruturais sofridas em edifícios pombalinos, procurando entender os efeitos gerados por este tipo de
intervenção, quer ao nível estrutural quer em termos espaciais.
O Capítulo 4 – Recuperação de um Edifício Pombalino pretende articular os conhecimentos teóricos
adquiridos com uma situação real, ou seja, foi feito um levantamento do estado do edificado (quais as
alterações estruturais de que foi alvo, qual o seu estado de conservação), procurando perceber o seu
actual comportamento estrutural e que tipo de intervenção deverá ser feita de modo a respeitar o seu
sistema construtivo inicial, elaborando uma série de critérios para a sua recuperação.
Finalmente, no Capítulo 5 – Considerações Finais são sintetizadas as principais conclusões obtidas com
o trabalho – principalmente no que diz respeito à valorização deste sistema construtivo, nomeadamente
pela mais-valia que este poderá ser para o Património da Humanidade.
Este trabalho pretende assim contribuir de forma consciente para a compreensão do sistema
construtivo pombalino e seu respeito aquando de intervenções em edifícios que fazem parte do conjunto
monumental classificado que é a Baixa Pombalina.
17
2 Análise do Sistema Construtivo Pombalino
2.1 Descrição de edifícios pombalinos
O processo de Reconstrução da Baixa Pombalina começou um ano após ter sido aprovado o Plano de
Eugénio dos Santos e Carlos Mardel, ou seja, em 1758, e durou quase cem anos.
Os novos quarteirões formavam uma malha regular ortogonal de ruas hierarquicamente distintas – as
actividades nobres estabeleciam-se nos pisos térreos edifícios localizados nas ruas principais, e as
actividades mais modestas e manuais instalavam-se nos pisos térreos dos edifícios das ruas secundárias
(articuladas com as primeiras através de travessas).
Esta hierarquia estava presente não só no tipo de actividades que se faziam nos pisos térreos, mas
também na largura das ruas e no desenho das fachadas dos edifícios (descritas adiante) – pensado no
sentido de reforçar essa mesma hierarquia.
À proposta de Manuel da Maia para o desenho de fachada (figura 2.1.01) foi acrescentado mais um
piso na versão final de Eugénio dos Santos – perfazendo um total de cinco pisos (contando com as águas--
furtadas ou mansardas na cobertura – como se pode ver na imagem 2.1.02). A altura total das fachadas
dos quarteirões pombalinos seria então sensivelmente igual à largura das ruas principais.
2.1.01 _ Propostas para fachadas de edifícios da Baixa – Manuel da Maia (Santos [22])
18
2.1.02 _ Proposta para fachada de edifícios da Baixa – Eugénio dos Santos (Santos [22])
A proposta de Eugénio dos Santos foi a executada. Segundo este desenho de fachada, de grande
racionalidade e rigor, todos os edifícios da Baixa teriam quarto pisos elevados e águas-furtadas na
cobertura (os planos inclinados do telhado era subdividido pelas paredes meeiras). Os edifícios de
Rendimento Pombalino (edificados sensivelmente entre 1758 e 1880) eram então compostos por três
grandes momentos de composição da fachada: o embasamento constituído pelo rés-do-chão, o piso
comercial onde se instalariam as lojas com uma sequência de portas; o corpo do edifício composto pelos
três andares elevados – o primeiro andar, também conhecido como o andar nobre, onde os vãos para a
rua são varandas individuais em pedra (as chamadas janelas de sacada) com gradeamentos em ferro,
seguindo-se dois pisos com janelas de peito; e finalmente, o coroamento composto pelo telhado com as
águas-furtadas (como ilustra a imagem 2.1.02).
É de notar que em fachadas de edifícios localizados em travessas, e não em ruas principais ou
secundárias, encontramos janelas de peito em vez de varandas.
Todo o desenho da fachada é submetido a uma geometria regular, que forma um todo tipificado e
um pouco monótono, onde a sequência alternada das trapeiras nos telhados lhe confere algum ritmo.
Os edifícios pombalinos deviam respeitar o desenho modular imposto pelas fachadas do quarteirão –
desta forma, a largura de cada frente de edifício ficava definida por um múltiplo do módulo base do
desenho da fachada. Os edifícios em cada quarteirão podiam assim ter uma grande diversidade de áreas,
consoante a largura da sua frente, sendo que pelo exterior se conseguia sempre uma homogeneidade
contínua da fachada, promovendo assim a função de enquadramento dos eixos das ruas pretendido.
19
Os quarteirões pombalinos, compostos por um número variável de edifícios, tinham ainda um saguão
comum, ou logradouro. As paredes que limitavam o saguão, bem como as paredes circundantes do
quarteirão eram sempre em alvenaria de pedra com cerca de 90 cm de espessura no rés-do-chão,
espessura esta que ia reduzindo ligeiramente nos pisos superiores.
Ainda em relação às fachadas, foram tipificadas várias categorias específicas consoante a fachada do
edifício desse para uma rua principal, para uma rua secundária, para uma rua de declive acentuado como
é o caso das que sobem para o Chiado, ou para uma praça – o Terreiro do Paço ou a Praça do Rossio
(ilustrada nas imagens 2.1.03.a e 2.1.03.b), ou seja, no mesmo quarteirão as fachadas diferiam consoante a
sua localização na malha urbana. Esta ideia vem sublinhar, mais uma vez, a importância que foi dada ao
espaço público que se eleva à do espaço construído, sendo que a continuidade sequencial que compõe
as fachadas é conseguida nas ruas e não nos quarteirões).
2.1.03 _ Praça do Rossio: a) fototipia animada de 1905; b) fototipia de 1905 (Passos [19])
Nestas categorias, as principais diferenças encontradas são na decoração – feita apenas com as
cantarias dos vãos que, dependendo da posição hierárquica das ruas, têm maior ou menor pormenor no
seu recorte. Os esquemas de composição pouco variam, à excepção do vão do primeiro andar, ora em
janela de sacadaTP
1PT, ora em janela de peitoTP
2PT. As esquinas dos quarteirões são marcadas com cunhais.
No piso térreo dos edifícios todos os vãos têm molduras em pedra, o arranque do chão é feito com
soco alto e o final do embasamento é marcado com faixa – uma marcação semelhante é feita no final do
andar nobre, em pedra. Nos pisos superiores existem janelas de peito – no segundo andar – seguindo-se
janelas adoçadas à cornija, de verga abaulada – no terceiro andar. Nestes pisos destacava-se o uso
habitacional, sendo que podiam ainda ser encontradas raras excepções em que se utilizavam os pisos
superiores como armazéns das lojas do piso térreo.
TP
1PT Janela com portas até ao nível do pavimento, dando geralmente para uma pequena varanda de pedra individual.
TP
2PT Janela “comum”, arrancando normalmente a 90 cm do pavimento.
20
Ainda de referir é o facto de se assistir a uma alternância do desenho das vergas dos vãos do piso
térreo (à excepção do que acontece nas ruas principais onde todas as vergas são iguais). Nestes casos,
encontramos vãos com verga curva, que têm uma maior largura que os outros, e com verga recta (e
cantos chanfrados). Esta peculiaridade pode ser explicada pelo tipo de actividade imposta nas ruas
secundárias como manufacturas, cocheiras, etc., que exigiam vãos de maior largura.
Na arquitectura pombalina, de grande austeridade na métrica claramente definida nas fachadas,
assiste-se a um despojamento de adorno, uma quase total ausência decorativa (ver imagem 2.1.04 e
fotografia 2.1.05) – ao contrário do que se fazia então noutras cidades europeias. Esta austeridade
arquitectónica (aliada a uma grande originalidade e apuramento do processo construtivo), outrora
entendida como um modo pobre e pouco ambicioso de fazer arquitectura, só começou a ser entendida e
valorizada bastante tempo depois da reconstrução.
Cornija
Janela de verga abaulada
Verga recta (cantos chanfrados)
Cunhal
Janela de peito
Janela de sacada
2.1.04 – Um dos alçados tipo dos quarteirões pombalinos (França, Mateus [12]
21
2.1.05 – Fotografia de edifício pombalino na Praça da Figueira
22
2.2 Técnicas construtivas e materiais utilizados
Ao falar das técnicas construtivas utilizadas na Reconstrução de Lisboa após o sismo de 1755, é de
salientar antes de tudo a grande inovação construtiva que foi introduzida nos novos edifícios – a estrutura
em gaiola. Apesar de não ser uma invenção pombalina (existindo já na Europa estruturas trianguladas de
madeira em construções esporádicas e individuais), a grande inovação consiste no facto de, pela primeira
vez na História, se ter aplicado esta estrutura à escala de uma cidade.
Esta estrutura em madeira teria surgido empiricamente aquando do abandono do plano de Manuel
da Maia (de uma edificação de quarteirões com apenas dois pisos) e do seguimento da proposta final de
Eugénio dos Santos. Aquando dos estudos para a reconstrução, Carlos Mardel teria realizado, no Terreiro
do Paço, um ensaio sísmico da estrutura, colocando um modelo sobre um estrado, sujeito à marcha
compassada de um destacamento militar, a fim de serem reproduzidos os efeitos de um sismo.
Tratando-se de uma reconstrução de uma parte da cidade completamente devastada por um sismo
avassalador e um enorme incêndio, os principais objectivos a atingir seriam o de se criar edifícios com um
comportamento sísmico adequado e com uma maior resistência contra incêndios, no sentido de esta
nova cidade ter maior segurança e de se evitarem novas catástrofes.
Entre os elementos de projecto elaborados por Eugénio dos Santos, Carlos Mardel e Reinaldo Manuel
encontram-se a geometria das fachadas ao longo de ruas e praças, as cotas de soleira dos edifícios, a
disposição típica do edifício em corte e também pormenores tipo como as coberturas, as paredes corta-
fogo e os esgotos. Os detalhes construtivos eram depois produzidos pelos mestres da Casa do Risco.
Comecemos a descrição das técnicas construtivas e materiais utilizados pelas infra-estruturas dos
edifícios – as suas fundações (ilustradas nas figuras 2.2.01 e 2.2.02).
É já sabido que os escombros provocados pelo colapso desta parte da cidade foram utilizados para
subir a cota dos terrenos (e, consequentemente, a cota da soleira dos edifícios), servindo assim como
camada superior do solo de fundação. Este primeiro nível de escombros foi compactado e regularizado
pela circulação que se fazia sobre ele no decorrer das obras de reconstrução. A medida de utilização dos
escombros veio também evitar os custos de transporte da remoção dos entulhos para outro local,
conduzindo também a uma alteração da topografia do terreno.
Em relação ao solo subjacente, esta zona de Lisboa está assente em terrenos de assoreamentos dos
antigos braços do rio, e por várias vezes ficava inundada. Esta oscilação do nível freático pelo regime de
marés apresenta-se como a maior condicionante da densidade aparente do solo e das condições das
fundações.
23
1 – Alvenaria 2 – Prumo 3 – Reboco 4 – Ombreira 5 – Soleira
6 – Formigão 7 – Massame 8 – Escombros 9 – Fundações de pedra 10 – Estacaria
2.2.01 _ Esquema do solo de fundação do edifício (Santos [21])
A técnica de fundações por estacas, utilizada na reconstrução, não pode ser considerada como uma
inovação pombalina, tendo já usada por Manuel da Maia e outros engenheiros em obras fluviais e
terrenos confinantes.
Nas fundações dos edifícios pombalinos eram utilizadas estacas em madeira, mais precisamente toros
de pinho verde não sangrado (de modo a permanecer imputrescível em ambiente húmido) com cerca de
15 a 20 cm de diâmetro, distando 40 a 50 cm entre si. Eram cravadas no terreno à pressão, com o auxílio
de “bate-estacas” – compostos por roldanas suportadas por treliças que “desdobravam a força necessária,
à elevação de um pilão que era deixado cair sobre o toro” (Santos [16]).
Esta estacaria servia então de apoio a tabuleiros de toros com 20 a 30 cm de diâmetro, colocados na
horizontal em fiadas perpendiculares entre si – que eram solidarizadas com ferros de secção triangular de
30 a 35 cm de comprimento.
24
2.2.02 _ Esquema da fundação do edifício (Santos [21
Após a colocação desta grelhagem em madeira, as fundações dos ed
pedra aparelhada. Estas fundações teriam uma altura sempre superior
espessura cerca de 2 vezes superior à das paredes que suportavam. Era
mesma execução de aparelho da pedra – os espaços entre os lintéis er
entulho e terra em sucessivas camadas.
Nos casos de construção de edifícios em terrenos de declive acident
natural se mostre insuficiente ou caso haja deslizamentos entre camadas de
para vencer os desníveis era o da construção de muros de suporte. Muit
meeiras dos edifícios (também chamadas de paredes meãs, paredes de sep
de gigantes, ou contra fortes, do muro.
Tanto as paredes meeiras como os muros de suporte eram elementos
constituídos por alvenaria de pedra.
1 – Prumo 2 – Frechal 3 – Abóbada 4 – Arco 5 – Alvenaria 6 – Formigão 7 – Massame 8 – Fundações 9 – Enrocamento 10 – Grelhagem 11 – Estacaria
])
ifícios seguiam em blocos de
a 8 palmos (1,80 m) e uma
m travadas por lintéis com a
am depois preenchidos com
ado – cujo ângulo de talude
terreno – o método utilizado
as vezes, as próprias paredes
aração entre edifícios) serviam
de grande espessura e massa,
25
Ainda no caso de existirem declives acentuados no terreno de implantação, eram construídas caves –
precisamente, com o propósito de vencer os desníveis de terreno.
O tecto das caves era geralmente abobadado, e os pilares de onde arrancavam os arcos tinham uma
grande secção. As abóbadas eram construídas em ladrilho de barro e os arcos em pedra talhada em cunha
que descarregavam as cargas nos pilares ou em paredes portantes.
No piso térreo, piso onde se encontravam lojas e armazéns com acessos independentes para a rua,
geralmente era também utilizado o sistema de arcos e abóbadas em pedra aparelhada, idêntico ao das
caves – como se pode observar na figura 2.2.03 (podendo, em construções mais modestas haver
simplesmente um sistema de arcos suportados por pilares sobre os quais era colocado um tecto de
madeira). Os pilares dos pisos térreos (tanto os interiores como os pilares de fachada) eram em alvenaria
de pedra. Este piso tinha a importante função de redistribuição das cargas às fundações, de uma forma
mais uniforme, trabalhando assim como um piso intermédio de grande monolitismo.
O pavimento deste piso variava em função do tipo de uso, sendo em lajedos de pedra de dimensões
desiguais para comércio, e em terra ou calçada para cavalariças.
2.2.03 _ Axonometria da estrutura de um edifício (Santos [21]) – veja-se que este exemplo não é o caso tipo uma vez que só os edifícios construídos em terrenos de declives acentuados é que tinham caves sob o piso térreo.
26
Acima do rés-do-chão, nos pisos superiores, a estrutura deixa de ser exclusivamente em alvenaria de
pedra, e passa a ser utilizada uma estrutura em madeira. Esta estrutura diz-se tridimensional pois é
composta por elementos horizontais (a estrutura dos pisos e da cobertura) e verticais (as paredes
resistentes de madeira, ou seja, os frontais que constituem a gaiola pombalina) solidarizados entre si e
colocadas em ambas as direcções principais de desenvolvimento dos edifícios (perpendiculares e
paralelas às fachadas).
A madeira, cuja utilização remonta aos primeiros tempos de vida do Homem, passa assim a ter um
papel fundamental na construção, podendo afirmar-se que a “arte” das estruturas em madeira ganha, no
século XVIII, uma expressão tão evoluída como a do início do século XX. Esta arte dos carpinteiros torna-se
cada vez mais valorizada e criteriosa, desde a escolha e tratamento das madeiras, aos detalhes
construtivos cuidadosamente estudados, ensaiados e experimentados. Apesar de susceptível a ataques
de agentes biológicos e de ter características especiais como a anisotropia e a higroscopicidade, a
madeira apresenta características muito positivas como a facilidade de manuseamento e transporte, e o
facto de ser uma riqueza renovável.
As paredes de fachada dos quarteirões pombalinos eram de alvenaria de pedra e continham
elementos de madeira junto ao paramento interior, uma estrutura de madeira que ficava solidária com a
restante gaiola. Nestes casos eram utilizadas mãos, peças que se colocavam nos elementos de madeira da
estrutura do interior dos edifícios com entrega na alvenaria para melhorar a ligação das paredes de
alvenaria aos elementos da estrutura interior. As paredes exteriores eram acabadas com pintura de cal –
sendo utilizado o gesso em edifícios mais importantes (o revestimento exterior a azulejo é só utilizado
numa fase posterior da reconstrução).
As madeiras eram ligadas por ensambladuras características reforçadas por pregagens de ferro
forjado. Geralmente, eram ainda incluídos elementos de reforço para garantir a transmissão de forças
entre elementos estruturais através dos pavimentos (peças de ferro fixadas às paredes exteriores e ligadas
aos vigamentos de madeira, ilustradas na figura 2.2.04). No entanto, não há certezas quanto à qualidade
ou ao processo de execução em todos os edifícios pombalinos.
2.2.04 _ Ligação das vigas com ferrolhos (Leitão [13])
A gaiola propriamente dita é composta por elementos verticais e horizontais, denominados
respectivamente de prumos e travessas, contraventados por elementos denominados de diagonais –
sendo que as cruzes formadas por esses elementos são conhecidas como cruzes de SP
toP André. A geometria
27
conseguida com a disposição destes elementos é variável, pensando-se que esta depende da formação
técnica do artista que as executou (sendo até encontradas diferentes geometrias de gaiola no mesmo
edifício). No entanto o mais comum era serem encontrados dois níveis intermédios de travessas por piso,
com prumos espaçados a 70 cm.
A madeira utilizada nos frontais era de carvalho, azinho ou sobro, com uma secção de 13x15 cm em
prumos e cerca de 10x13 cm em travessas. Os frontais distribuíam as suas cargas pelos elementos da
gaiola até aos frechais (assinalados na imagem 2.2.05) que as encaminham até às fundações.
O tipo de frontal mais utilizado é o frontal de tecido (figura 2.2.05), embora também se encontrem
casos onde se optou pelo frontal à galega (figura 2.2.06) ou por um mais leve, o frontal à francesa (figura
2.2.07 – estes últimos de características elásticas inferiores ao primeiro). Em qualquer dos casos, os frontais
eram preenchidos com alvenaria ligeira de tijolo maciço ou de pedra miúda, assente com argamassa de
cal, rebocados e estucados apresentando uma espessura total de cerca de 15 a 20 cm, podendo mesmo
chegar aos 25 cm.
Toda esta estrutura de madeira assenta no embasamento de pedra do piso térreo ou das fundações
através de um frechal reforçado a fim de se conseguir uma maior continuidade mecânica na distribuição
das cargas.
2.2.05 _ Esquema de frontal de tecido (Santos [21])
1 – Viga de sobrado 2 – Pendural 3 – Chincharréu 4 – Prumo 5 – Escora 6 – Verga 7 – Frechal
28
2.2.06 _ Esquema de frontal à galega (Santos [21]) 2.2.07 _ Esquema de frontal à francesa (Santos [21])
No interior dos edifícios, nem todas as paredes eram resistentes (frontais). Também constituídas por
elementos de madeira, as restantes paredes interiores divisórias não se destinavam a suportar cargas
verticais nem horizontais e eram mais esbeltas que as anteriores (com cerca de 10 a 15 cm de espessura,
podendo chegar aos 18 cm) e são denominadas de paredes costaneiras ou tabiques.
Os tabiques mais simples e ligeiros eram executados com uma fiada de tábuas costaneiras pregadas
ao alto, com espaçamentos entre si de cerca de 1 cm, em duas réguas com 10 a 12 cm de largura fixas no
sobrado e no tecto. Eram posteriormente pregadas às costaneiras fasquias horizontais (ripas de madeira),
colocadas paralelamente com intervalos de cerca de 3 cm (estas ripas tinham secção trapezoidal, sendo
que a sua face mais larga ficava para fora, a fim de poder ficar retida nos intervalos a argamassa com que
se executava o revestimento da parede).
Este tipo de tabique era construído depois de colocado o solho. Havia, no entanto, um outro tipo,
denominado de tabique suspenso ou aliviado (ilustrado na figura 2.2.08), de construção semelhante à dos
frontais. Esta parede é também constituída por prumos e travessas, de pequena esquadria, sobre os quais
se pregavam as costaneiras e as fasquias. Este tipo de tabique não descarregava sobre o pavimento,
sendo construído geralmente em simultâneo com a gaiola.
Em qualquer dos casos, nas paredes de tabique as portas eram sempre definidas por meio de prumos
e com vergas seguras por pendurais.
29
2.2.08 _ Esquema de tabique suspenso ou aliviado (Leitão [13])
Como elementos verticais da construção tínhamos ainda as paredes de meeiras (também
designadas por paredes meãs ou ainda paredes de empena), paredes que dividiam os lotes e tinham
também a função de corta-fogo. Estas paredes, de espessura constante em toda a sua altura, eram de
alvenaria de pedra e não tinham vãos. Não eram utilizadas juntas de dilatação uma vez que os materiais
empregues eram muito idênticos em termos do coeficiente de dilatação.
Os pavimentos dos edifícios eram executados, como já foi mencionado, com uma estrutura em
madeira perfeitamente solidária com a gaiola (como se apresenta na imagem 2.2.09).
2.2.09 _ Esquema da disposição dos elementos de travamento na ligação parede/piso (Pinho [20])
A estrutura dos pavimentos (ilustrada na imagem 2.2.10) era constituída por vigas de casquinha de
sequeiro ou de carvalho com secções de 13x18 cm, espaçadas entre si em cerca de 40 a 50 cm, que
podiam ser travadas por tarugos de menor secção, colocados entre as vigas, no planos destas. Este
30
tarugamento das vigas era quase sempre feito de forma alinhada, e as tábuas do sobrado eram
posteriormente colocadas perpendicularmente às vigas.
Regra geral, o solho era aplicado a meio fio ou meia madeira (à portuguesa – 1 da figura 2.2.11) com
os topos desencontrados, salvo raras excepções em que se optava pelo solho de junta, forma menos
cuidada e sem qualquer encaixe (2 da figura 2.2.11), ou, mais tardiamente, o de macho-fêmea (à inglesa –
3 da figura 2.2.11).
1 – Prumo da Cruz 2 – Escora 3 – Travessa 4 – Prumo 5 – Fasquiado 6 – Viga 7 – Tábua de remate do tarugo 8 – Tarugo 9 – Forro do tecto 10 – Solho 11 – Rodapé 12 – Pardo, esboço e estuque
2.2.10 _ Esquema de estrutura do pavimento (Santos [21])
2.2.11 _ Esquemas d solução de soalhos:
1) solho a ho-fêmea
pavimento do andar nobre era também revestido a madeira de solho, sendo deixada uma caixa-de-
ar e
ti-las aos frechais. Estas
tinh
1
2
3
e meio fio; 2) solho de junta; 3) solho de mac
O
ntre o solho e o entulho colocado no extradorso das abóbadas do piso térreo.
As vigas do pavimento serviam para receber as cargas dos pisos e transmi
am ainda uma entrega variável nas paredes exteriores com o objectivo de assegurar a transmissão de
forças horizontais e verticais nessas ligações. No caso em que esta entrega era considerável contribuía
31
também para reduzir a rotação das extremidades das vigas e consequentemente reduzir o seu momento
flector a meio vão.
Aquando da necessidade de abertura de vãos no pavimento (no caso de escadas ou fugas de
cha
inalmente, os tectos eram executados com tábuas de forro pintadas em saia e blusa (como se pode
obs
minés) eram colocadas cadeiras, barrotes de madeira que funcionavam como pequenas vigas
transversais às vigas do pavimento e que reorientavam as cargas transmitidas por estas últimas.
F
ervar na imagem 2.2.12), que eram aplicadas directamente ao vigamento – mais tarde ou
excepcionalmente os tectos eram estucados.
2.2.12 _ Fotografia do tecto de uma divisão interior de um edifício pombalino
s escadas dos edifícios pombalinos originais eram sempre interiores e sem iluminação natural. No
piso
s escadas rodeadas por três
par
eram em madeira maciça com encabeço. A madeira utilizada
nas
A
térreo estas eram em pedra, com um ou dois lanços, seguindo para os pisos superiores em madeira.
No piso térreo o espelho e o cobertor funcionavam em bloco, descarregando nas paredes laterais e a
meio num suporte (parede que acompanhava as escadas apenas neste piso).
Já nos pisos superiores a sua concepção era bastante compacta, estando a
edes em gaiola, solidárias com os degraus. Após o piso térreo, as escadas arrancavam da cobertura de
alvenaria deste piso, sendo que o degrau de arranque, em bloco de pedra, servia também de travamento
das pernas do lanço (geralmente duas por cada tramo). Estas ficavam travadas lateralmente pelas paredes
resistentes – como ilustra a imagem 2.2.13.
Os espelhos e cobertores dos degraus
pernas era a de carvalho. O lambril era em azulejos que revestiam cerca de cinco palmos de altura das
paredes das escadas, estando os azulejos alinhados no sentido das pernas. Finalmente, o revestimento do
tecto das escadas tinha o mesmo tratamento dos restantes.
32
escadas (Santos [21])
egra geral, as coberturas dos edifícios pombalinos eram de duas águas, de simples concepção –
asn
espaços utilizáveis: inicialmente as águas-furtadas e, mais
tard
2.2.14 _ Esquema da diferença entre águas-furtadas e mansardas (adaptado de Cardoso [7])
2.2.13 _ Esquema de estrutura das
R
as, madres, varas, fileira e contra-frechal.
As coberturas eram aproveitadas com
iamente, as mansardas (estas diferenciam-se das primeiras por ter duas inclinações diferentes em
cada água, divergindo também na sua estrutura de madeira, e permitindo um aproveitamento mais
racional do desvão, espaço entre a estrutura do telhado e o pavimento, sem aumento do número de pisos
– como mostra a figura 2.2.14).
1 – Escora
patamar
o
azulejo
Água-furtada Mansarda
2 – Prumo 3 – Solho
4 – Tarugo5 – Frechal 6 – Verga
e7 – Solho d8 – Cadeia 9 – Perna 10 – Espelh11 – Cobertor 12 – Taipa
l de13 – Lambri14 – Estuque e esboço 15 – Reboco 16 – Emboço
33
Os vãos colocados nas coberturas eram geralmente de peito alto (as trapeiras – figura 2.2.15.a), e para
o se
ão como as próprias asnas da cobertura descarregavam nos
frec
da cobertura era feito em telha de canudo argamassada, colocada de baixo para cima,
até
2.2.15 _ Esquema das coberturas: a) trapeira; b) colocação das telhas (Santos [21])
Em relação aos vãos existentes nestes edifícios, estes eram já previstos na própria estrutura de gaiola,
per
redes de fachada, junto do seu paramento
exte
de ressalva, e eram constituídos por
ladr
punçoamentos. Os panos de peitos eram executados em tijolo maciço.
u acesso era necessário o recurso a dois ou três degraus. As paredes exteriores dos vãos das águas-
furtadas ou das mansardas eram em tabique.
Tanto o vigamento do pavimento do desv
hais, tendo entregas consideráveis nas paredes exteriores de alvenaria – na chamada zona de
cintagem superior, constituída pela cornija em ladrilho aparelhado. A cornija era aproveitada para afastar
as águas de escorrimento da cobertura, drenadas pelas telhas do beirado, do paramento exterior do
corpo do edifício.
O revestimento
à cumeeira, e o tipo de telhado mais usual o meio mouriscado (figura 2.2.15 b)). No caso da existência
de mansardas, devido ao elevado declive do telhado, as telhas eram pregadas às ripas e às fasquias das
paredes exteriores das trapeiras.
mitindo a modulação constante encontrada nas fachadas.
Para a execução dos vãos eram introduzidos arcos nas pa
rior (ou seja, na alvenaria de pedra – ver imagem 2.2.16), tentando deste modo minimizar
descontinuidades na propagação das cargas ao longo das mesmas.
Os arcos mais comuns eram abatidos, denominados de arcos
ilho cerâmico e o seu arranque era feito com uma pedra de maiores dimensões que tinha uma entrega
nas paredes (de dimensões concordantes com o vão que se vencia) de modo a evitar possíveis
34
Os tipos de vãos que podiam ser executados eram as janelas de guilhotina em vãos de peito (figura
2.2.16), as portas janelas de batente com duas folhas em vãos de sacada (nos andares nobres as bandeiras
das
2.2.16 _ Esquema da estrutura da janela de peito (Santos [21])
2.2.17 _ Esquem uilhotina (Santos [21])
Quanto às as as cozinhas
dispunham de água em recipientes cerâmicos e de ma ira. As águas residuais eram lançadas para a rua,
pois não eram previstas instalações sanitárias.
janelas eram fixas ou, excepcionalmente, de charneira inferior de batente a abrir para dentro), os vãos
de ventilação de caves protegidos por grades em varão de ferro forjado, e os vãos das trapeiras em
guilhotina (figura 2.2.17).
Bandeira da janela
Folha da janela
Pano de peito
a de água-furtada com janela de peito de g
redes técnicas usadas sabe-se que nos edifícios pombalinos, apen
de
35
Existiam ainda sumidouros, não constituindo inovação técnica uma vez que antes de 1755 já existiam
valas tapadas de recolha de águas negras nos pátios de algumas habitações colectivas. A novidade reside
na tentativa de implementação de sistemas de drenagem dessas valas para um colector comum (ilustrado
na f
i também a pensar na drenagem das águas que Manuel da Maia quis utilizar o aterro desta zona da
cida
.
igura 2.2.18) – este drenava também as águas pluviais e residuais através de sumidouros situados nas
ruas.
A construção dos sumidouros e das valas colectoras era em pedra de modo a contornar o problema
da oscilação do nível das águas freáticas.
Fo
de para criar um desnível suficiente ao seu escoamento – embora, na prática, não tenha sido
conseguido o seu correcto funcionamento
O abastecimento de água era feito por meio de chafarizes públicos, tal como já acontecia desde a
entrada em funcionamento do Aqueduto das Águas Livres em 1744.
2.2.18 _ Corte esquemático mostrando o sumidouro e o colector comum (França [10])
36
2.3 Estrutura espacial pombalina
Apresentadas as técnicas construtivas e os materiais que eram utilizados, segue-se uma abordagem
dos edifícios pombalinos na sua vertente espacial numa tentativa de entender o modo como os espaços
estavam articulados com as funções.
Esta abordagem é particularmente interessante quando enquadrada no seguimento do trabalho,
uma vez que este será a base teórica de uma recuperação de um edifício pombalino à luz dos usos e
funções próprios dos nossos dias – sendo a arquitectura desse edificado a disciplina que faz a ponte entre
os espaços e as condicionantes encontradas nos edifícios pombalinos e as novas funções a que esses
edifícios devem dar resposta, de modo a não ficarem obsoletos e abandonados por não se conseguirem
adequar aos novos requisitos espaciais e às noções de conforto e comodidade actuais.
Uma das características dos prédios de rendimento pombalinos é o facto de apresentarem um aumento
da altura entre pisos face a construções anteriores ao terramoto – como os edifícios do Bairro Alto, por
exemplo.
Assim sendo, assiste-se a um pé-direito bastante generoso, especialmente no piso térreo e no andar
nobre – regra geral ambos tinham 16 palmos de altura, o que equivale a cerca de 3,70 metros (Pinho [20]),
sendo que nalguns casos o pé-direito se aproxima dos 4 m. Os dois pisos elevados que se seguiam ao
andar nobre teriam um pé-direito também elevado (como se pode observar na imagem 2.3.01), e só nas
águas furtadas é que se assiste a uma diminuição deste valor – sendo que mesmo nestes casos o pé-
direito se mantém acima dos 2,5 metros.
2.3.01 _ Fotografia de interior do terceiro piso de um edifício pombalino
37
O já elevado pé-direito do piso térreo chega a ser ainda maior nalguns casos de edifícios localizados
em artérias de declive muito acentuado. Nestas situações, uma vez que as fundações do edifício eram
implantadas todas à mesma cota (como que numa plataforma), originavam as diferentes alturas de pé-
direito. Deste facto podiam ser geradas caves parciais, desníveis de acesso às lojas e, quando o pé direito
o permitia, sobrelojas.
Ainda no piso térreo, o sistema de arcaria que o constitui era feito de modo a se conseguir um espaço
mais amplo, sem paredes divisórias, para a instalação das lojas. Neste espaço apenas existem os pilares e
as paredes portantes, deixando um espaço mais desafogado para o estabelecimento das actividades
comerciais, de outros serviços ou ainda das cavalariças.
Os pisos superiores são ligados ao piso térreo por escadas que começam a ter, nesta época, um papel
mais importante nos edifícios. Ao invés da típica escada de tiro, utilizada na maioria das construções
correntes anteriores ao terramoto, cuja função básica e única era conseguir um acesso eficaz ao piso
superior, as escadas dos edifícios pombalinos ganham uma nova expressão. Geralmente formadas por
dois lanços, em que um dos patins se apresenta como o patamar de acesso aos apartamentos, as escadas
são mais amplas e mais cuidadas – nomeadamente no trabalho de ferro integrado nas guardas.
O mencionado patamar (apresentado na imagem 2.3.02) fazia a distribuição, regra geral, para dois
apartamentos simétricos por piso, separados pela caixa de escadas – “edifícios de risco ao meio” ou de
esquerdo/direito (ou apenas um apartamento nos casos em que a reduzida largura do lote não permitia
dois). Geralmente, todos os andares superiores eram vocacionados para a habitação, podendo no entanto,
nalguns casos, ser usados simultaneamente para outras actividades. Os apartamentos apresentam, regra
geral, duas portas de entrada – uma, mais ampla, que dá acesso a uma área nobre das casas e outra de
serviços, que podia ser utilizada sem aceder ou perturbar o resto da casa.
2.3.02 _ Fotografia de um patamar com as portas de entrada para os apartamentos (Santos [22])
38
Nos apartamentos dos edifícios pombalinos os espaços interiores são bastante compartimentados –
quer pelos frontais, quer pelos tabiques – originando uma multiplicação de divisões, todas elas de
pequena área (como se ilustra nas imagens 2.3.03 a) e b)). Estes compartimentos estão normalmente
articulados entre si por portas usualmente de dupla folha, bastante altas (proporcionais ao pé-direito
desses espaços). Por este motivo, os espaços de circulação escasseiam. Apesar disso, nota-se que estes
espaços, como os corredores, ganham uma maior importância (ainda que se mostrem bastante “tímidos”
face aos padrões correntes), à semelhança do que se assiste no caso das escadas, uma vez que na
arquitectura anterior ao terramoto a circulação era sempre feita pela comunicação directa das várias salas.
Apesar de ser incorporado nos apartamentos, o corredor não assume por completo o seu papel, não
fazendo ainda a distribuição interior do apartamento – no caso apresentado em plantas, o corredor liga
apenas duas salas que comunicariam mesmo que este espaço não existisse.
2.3.03 a) Planta de um andar-tipo (adaptado de Santos [22])
39
2.3.03 b) Planta cotada de um andar-tipo (adaptado de Santos [22])
As paredes de frontal formavam as principais divisórias interiores (separando as zonas nobres do
apartamento das zonas de serviço), enquanto que os tabiques faziam os compartimentos mais pequenos,
sendo por isso importante o facto de terem uma reduzida espessura, de modo a não ser roubado muito
espaço interior.
As zonas nobres da habitação voltavam-se sempre para a fachada principal e eram espaços providos
de luz natural. Apesar da reduzida área das divisórias interiores, estes espaços que davam para a fachada
principal conseguiam ter uma luz natural muito boa devido às janelas altas – tanto as de peito como
principalmente as de sacada presentes no piso nobre (como se pode ver na imagem 2.3.04).
Já as zonas de serviço ou as zonas menos nobres, como as cozinhas, instalavam-se na parte posterior
do edifício, junto do logradouro (onde se encontram muitas vezes pequenas varandas traseiras) ou em
espaços interiores, sem vãos para o exterior.
40
2.3.04 _ Fotografia de edifício na Rua do Ouro
No plano original, constata-se a ausência da inclusão de instalações sanitárias nos apartamentos,
existindo apelas uma pia de despejos num pequeno nicho localizado nas cozinhas (como se ilustra na
imagem 2.3.05).
2.3.05 _ Fotografia de uma cozinha onde se pode ver a pia original tapada num nicho da parede (Santos [22])
Resta mencionar o facto de se conseguir aproveitar os espaços das águas furtadas para utilização
habitacional graças à grande profundidade de empena dos edifícios. Apesar de se contar com uma
inclinação dos telhados que garantisse um bom escoamento das águas pluviais, o desvão da cobertura
era quase sempre aproveitado por se conseguirem áreas de pé-direito aceitável para utilização quotidiana
– apesar de, como já foi mencionado, serem espaços bastante mais baixos que os dos pisos inferiores.
2.4 Comportamento sísmico e riscos para a segurança da Baixa
41
Neste capítulo é inevitável falar do risco sísmico a que qualquer parte da cidade está sujeita, em
particular a zona da Baixa. Os sismos são fenómenos naturais recorrentes – Lisboa foi sacudida por sismos
com potencial destrutivo em 1909, 1755 (o de maior intensidade e magnitude), 1612, 1597, 1531, e será
certamente atingida no futuro. Em relação à Baixa, pode mesmo dizer-se que o risco sísmico é o mais sério
para a segurança estrutural dos edifícios.
Tal como foi mencionado no capítulo 2.2 – Técnicas construtivas e materiais utilizados, a estrutura
pombalina de gaiola foi sujeita a ensaios nos estudos feitos para a reconstrução e finalmente introduzida
no novo sistema construtivo pelas suas adequadas características de comportamento sísmico – sendo que
a sua principal função seria precisamente a de conferir resistência à estrutura com o objectivo de evitar o
colapso do edifício em caso de um sismo futuro.
A gaiola pombalina foi então sabiamente estudada e executada de forma a assegurar a máxima
resistência possível aos terramotos. As treliças de madeira são aptas a resistir a cargas horizontais e
verticais uma vez que os barrotes que as constituem resistem bem a forças axiais – princípios semelhantes
aos utilizados hoje em dia na concepção de estruturas metálicas treliçadas. Estes princípios prendem-se
com a noção básica da forma das treliças: conjunto de barras que constituem triângulos, a única figura
geométrica que não pode variar de forma sem variar o comprimento dos lados (sendo por isso impossível
induzir deformações sem induzir forças axiais às quais as barras das treliças conseguem resistir).
De facto, foi concluído que a presença da estrutura de madeira tridimensional “contribui
significativamente para aumentar a rigidez e resistência do edifício” (Cardoso, Lopes, Bento [6]). Esse
aumento da rigidez contribui também para uma redução considerável dos deslocamentos das fachadas
para fora do seu plano (ou seja, a estrutura de gaiola limita os deslocamentos das paredes de alvenaria)
num edifício sujeito à acção de um sismo (que se considera equivalente à actuação de forças horizontais).
Este comportamento deve-se ao funcionamento em conjunto das paredes de alvenaria (as paredes
exteriores, portantes) e de frontal (as paredes interiores resistentes). Consegue-se com isso uma estrutura
que funciona com um sistema tridimensional com capacidade para resistir a forças horizontais que
actuem em qualquer direcção – conclusão retirada do estudo comparativo do comportamento dinâmico
de um edifício com gaiola e do mesmo edifício admitindo que não tinha gaiola (Bento, Lopes, Cardoso [4]).
Este funcionamento “em bloco” é facilmente compreendido ao fazer-se uma analogia com caixas de
cartão: as paredes exteriores, fachadas e empenas, correspondem às paredes da caixa. Na ocorrência de
um abalo forte, e estando a caixa vazia, ou seja, sem ligações sólidas entre paredes, cada uma das paredes
da caixa “tem movimento independentemente do movimento das outras paredes” (Cardoso, Lopes,
Bento [6]). Por outro lado, se procedermos à união das paredes pelo interior e pelos cantos da caixa, as
paredes da caixa passam a mover-se em conjunto.
O estudo mencionado veio confirmar a eficiência da gaiola na melhoria do comportamento do
edifício estudado na ocorrência de um sismo – tal como haviam previsto Eugénio dos Santos e Carlos
Mardel aquando da concepção desta estrutura.
É ainda de lembrar que o piso térreo dos edifícios pombalinos não tem presente na sua estrutura a
gaiola de madeira – deve-se este aspecto construtivo ao facto de se conseguirem obter espaços mais
amplos, mas também à maior resistência ao fogo que a alvenaria de pedra apresenta e por se conseguir
42
impedir a subida das águas por capilaridade, protegendo-se assim a madeira da água. Devido a esta
ausência da estrutura treliçada de madeira, este piso apresenta-se como um ponto fraco do edifício em
termos de resistência sísmica.
Ainda assim, pelas razões apresentadas, os edifícios pombalinos (figura 1 da imagem 2.4.01) têm um
melhor comportamento sísmico que os edifícios de alvenaria que lhes sucederam – nomeadamente, os
edifícios GaioleirosP
P(figura 2 da imagem 2.4.01), aproximadamente de 1880 a 1940, e os edifícios de PlacaP
P(figura 3 da imagem 2.4.01), de 1940 a 1960 (Appleton [2]).
Este facto deve-se à qualidade construtiva dos edifícios pombalinos, que se viu decrescida nos seus
sucessores, uma vez que a estrutura tridimensional completa em madeira vai deixando de ter
protagonismo – nos edifícios Gaioleiros a alvenaria torna-se o principal material estrutural, deixando de
existir paredes interiores resistentes em frontal, e nos edifícios de Placa assiste-se à introdução de finas
placas de betão que vêm substituir os pavimentos de madeira, sendo os elementos de madeira
praticamente suprimidos (Cardoso [7]).
3 2 1
2.4.01 _ Principais tipos de edifícios de alvenaria em Lisboa (adaptado de Mascarenhas [15]): 1) Edifícios Pombalinos; 2) Edifícios Gaioleiros; 3) Edifícios de Placa
Em termos da sua resistência sísmica, os principais pontos fracos dos edifícios pombalinos originais
podem ser as ligações dos frontais às fachadas ou os pilares do piso térreo onde a gaiola não está
presente, de acordo com um estudo efectuado sobre um edifício original pombalino (Lopes, Bento,
Cardoso [14]).
Ainda assim, o mesmo estudo realça o facto de a resistência sísmica do edifício pombalino estudado
poder aproximar-se do valor regulamentar actual, bastando para isso garantir a resistência adequada às
ligações entre a gaiola pombalina e as fachadas – donde se depreende a genialidade da concepção desta
estrutura, que data, lembre-se, de há 250 anos. É de referir que este estudo é apenas de um edifício, em
que se considera a preservação da estrutura original, podendo por isso edifícios alterados apresentar
resistências bastante inferiores.
Apesar do mencionado, muitos dos edifícios da Baixa têm sido alvos de intervenções feitas sem que
houvesse preocupação de garantir a manutenção das suas capacidades de resistência a forças horizontais.
Na maioria dos casos estas intervenções pioraram significativamente o comportamento sísmico dos
edifícios (como veremos no capítulo seguinte).
43
É de lembrar que a Baixa Pombalina é uma zona da cidade de elevado valor patrimonial pela sua
história e por ter na sua génese a reconstrução de uma cidade (ou de uma grande parte dela) na qual
foram levadas em conta preocupações sísmicas que culminam na aplicação sistemática à escala de uma
cidade da estrutura em gaiola de madeira – um marco na história da construção, não só nacional mas
também internacional. A estrutura dos edifícios da Baixa é um dos maiores valores patrimoniais desta área
(se não o maior), pelo que deve ser preservada.
Este facto não pode ser ignorado, logo devem ser tidos em conta os sérios riscos para a integridade
física a que muitos dos edifícios pombalinos estão sujeitos, ou seja, é necessário avaliar a sua segurança
estrutural e, consequentemente, as medidas de reforço estrutural adequadas.
Apesar de não se conseguir ainda avaliar a extensão e gravidade do problema, temos como um dos
riscos para a segurança dos edifícios da Baixa o apodrecimento que se tem vindo a verificar nas estacas de
madeira das fundações, resultante da variação do nível freático. Este lento processo de alterações no
subsolo tem também provocado abatimentos no solo, à superfície, (ainda) sem consequências relevantes
para a estrutura dos edifícios. Daqui se pode concluir que “as estacas não têm a importância que se
pensava que poderiam ter na capacidade de carga das fundações” (Lopes, Bento, Cardoso [14]), devendo-
se a capacidade de carga provavelmente às camadas superiores de terreno (tendo sido então a
compactação desta camada de terreno a função primordial das estacas).
De grande importância para a avaliação da situação existente (de variação dos níveis freáticos e nos
assentamentos que alterações no subsolo possam provocar) seriam estudos que aprofundassem o
impacto das obras subterrâneas já executados ou a executar, tais como túneis, parques de
estacionamento, construção de caves, etc.
Deveria ainda ser objecto de análise o desempenho das fundações sob acções sísmicas, devido ao
carácter dinâmico destas (diferente das acções verticais) e a possíveis alterações das propriedades dos
solos durante o sismo.
Outro risco que importa referir é o risco eléctrico a que os edifícios pombalinos estão sujeitos. Devido
à data em que as instalações eléctricas originais foram executadas, muitas destas não respeitam as
normas de segurança actuais, apresentando-se obsoletas e constituindo por isso um factor de risco de
incêndio significativo – a substituição dessas instalações mostra-se uma medida a tomar para a redução
desse risco.
44
3 Alterações estruturais e seus efeitos
Os edifícios construídos após o terramoto de 1755 eram dotados de uma excelente qualidade
estrutural e também arquitectónica (especialmente quando comparados com a construção que se fazia
antes do terramoto de 1755). Tanto o desenho urbano como o edificado proporcionavam condições
benéficas de saúde e higiene públicas – veja-se, por exemplo, a tentativa de implementação de sistemas
de drenagem de águas residuais e pluviais (descrito no capítulo 2.2).
A zona da Baixa foi sempre sujeita a pressões especulativas e apesar da grande qualidade
apresentada, os edifícios originais pombalinos foram sendo modificados ao longo dos tempos, mas
principalmente no início do século XX.
Algumas das alterações introduzidas não provocaram efeitos negativos, do ponto de vista estrutural,
como acontece com a alteração do revestimento exterior dos edifícios para azulejos ou a alteração das
águas-furtadas (constantes dos planos originais) para mansardas. São ainda de lembrar alterações que,
não fragilizando o comportamento estrutural dos edifícios, vêm produzir uma leitura bastante prejudicial
da imagem urbana da Baixa – como os elementos adicionados aos edifícios (toldos e reclames luminosos
– como se mostra na figura 3.01 –, aparelhos de ar condicionado…), a maior parte das vezes de muito má
qualidade estética – ou que potenciam situações de insalubridade – como a ocupação excessiva dos
logradouros com ampliações dos pisos térreos.
3.01 _ Fotografia da loja Lisbonense – sombreamento e reclames luminosos de imagem bastante negativa na Baixa
Infelizmente, a grande maioria das alterações construtivas, que se reflectem essencialmente na
transformação da estrutura e da tipologia dos edifícios, veio conduzir a modificações estruturais
significativas que vieram aumentar a vulnerabilidade dos edifícios às acções sísmicas. Estas intervenções
visavam melhorar as condições de habitabilidade e de alteração de usos, mas em muitos casos não houve
a preocupação de manter a resistência estrutural às acções sísmicas que os edifícios apresentavam.
45
As alterações construtivas limitavam-se muitas vezes aos pisos térreos dos edifícios – para uma
melhor acomodação de espaços comerciais com requisitos espaciais mais exigentes – chegando em
vários casos a estender-se por todos os andares, ou mesmo a aumentar o número de pisos.
No entanto, é de assinalar que houve ainda situações excepcionais em que se procedeu à demolição
de todo o interior do edifício e à posterior reconstrução com materiais e técnicas diferentes dos originais,
construindo caves e/ou aumentando o número de andares. Nestas situações, a nova estrutura,
geralmente em betão armado, pode ser vantajosa do ponto de vista estrutural, aumentando a resistência
sísmica do edifício – em especial nas construções a partir da década de 1960, uma vez que a
regulamentação anti-sísmica surge em 1958. Apesar disto, estas intervenções não são aceitáveis, dada a
necessidade de preservação do património construído de maior valor cultural, cada vez mais uma
componente importante da nossa identidade nacional.
Uma das mais correntes alterações à estrutura dos edifícios pombalinos que veio enfraquecer
significativamente a sua resistência sísmica por via da redução da sua resistência a cargas horizontais, é a
remoção de paredes interiores resistentes (os já mencionados frontais), ou seja, a interrupção da
estrutura tridimensional da gaiola.
Estas intervenções têm sido levadas a cabo essencialmente para se conseguir uma maior amplitude
espacial ou uma nova utilidade funcional (por exemplo na aproximação ao conceito de open spaces para
espaços de escritórios). Os frontais são retirados em um ou mais pisos (incluindo as diagonais de madeira
e o enchimento de alvenaria do painel) e são geralmente substituídos por elementos estruturais de betão
armado ou elementos metálicos, horizontais e por vezes também verticais (como se pode observar na
figura 3.02).
3.02 _ Fotografia de um edifício com remoção de frontais e introdução de vigas metálicas (Bento, Lopes, Cardoso [5])
Os novos elementos estruturais, se bem dimensionados, têm capacidade de suporte de acções
verticais – suporte da estrutura e sobrecargas dos pisos superiores, fazendo a normal redistribuição do
carregamento vertical para os elementos verticais estruturais adjacentes. No entanto, a nova estrutura
tem muito menos resistência e rigidez para forças horizontais do que a estrutura original (como se ilustra
na figura 3.03 onde se percebe que uma peça original formada por elementos triangulares não se
deforma se não pela variação do comprimento das suas arestas, sendo bastante mais rígida). É nesta
46
diferença que se verifica a alteração do comportamento do edifício quando sujeito a acções horizontais –
tornando-se nitidamente enfraquecido pela remoção da estrutura triangulada da gaiola e substituição
por uma estrutura rectangular.
Dependendo da direcção de alinhamento do frontal, a sua remoção pode ainda eliminar o apoio das
fachadas, deixando de impedir o deslocamento horizontal destas para fora do seu plano (favorecendo
desta forma o destacamento das fachadas quando sujeitas à acção de sismos).
3.03 _ Esquema de comportamento de estrutura triangulada e rectangular face a acções horizontais
Ainda em relação às paredes de frontal, uma alteração também bastante comum é o corte de
diagonais da gaiola. Esta alteração (apresentada na figura 3.04), geralmente oculta pelo recobrimento
em alvenaria e pelos rebocos, é executada essencialmente para executar rasgos nas paredes interiores
para introduzir canalizações de água ou gás (em simultâneo com a inclusão de casas de banho no interior
das habitações).
Embora menos gravosa que a anterior, esta intervenção provoca um efeito semelhante ao acima
descrito uma vez que, ao reduzir a secção dos elementos constituintes da gaiola de madeira, enfraquece a
estrutura. Nestes casos, o corte dos elementos de madeira é geralmente evitável, bastando para isso
colocar as canalizações fora das paredes de frontal. E embora as consequências sejam muito menos
gravosas, é também aconselhável não furar elementos estruturais de madeira com atravessamentos
horizontais.
3.04 _ Fotografia de gaiola danificada por intervenção posterior
à construção original (Bento, Lopes, Cardoso [5])
47
Um outro exemplo de alteração estrutural é o do corte de pilares ao nível do piso térreo. Este tipo
de intervenção (que se pode considerar mesmo como “vandalismo estrutural” (Bento, Lopes, Cardoso [5]),
mesmo que levada a cabo inconscientemente) foi efectuado durante décadas para abertura de montras
em estabelecimentos comerciais ou para a criação de grandes espaços abertos.
O resultado está à vista de qualquer visitante da Baixa – as ruas estão repletas de edifícios com
elementos verticais de suporte acima do piso térreo que não encontram continuidade neste piso (facto
este que potencia a formação de um mecanismo de rotura por corte na base que pode originar colapsos
ou roturas frágeis e repentinas, de grande risco para a estrutura).
De facto, com intervenções desta natureza, a resistência dos pisos térreos fica bastante reduzida,
aumentando, como no exemplo anterior, a vulnerabilidade sísmica do edifício. Isto acontece porque,
apesar das soluções de alteração poderem ser dimensionadas para suportar as acções verticais (por
exemplo, pela introdução de vigas metálicas no topo da parede ou pilar que se corta para redistribuir as
cargas verticais para elementos adjacentes), o efeito provocado é equivalente à supressão de um pilar
como elemento que resistiria também às acções horizontais, fragilizando todo o edifício.
Este tipo de intervenções cria (ou acentua) um ‘soft-story’, ou seja, o piso térreo, potencialmente mais
vulnerável que os restantes pisos por não ter paredes de frontal, é enfraquecido pela supressão de
elementos verticais, antevendo-se por isso um comportamento bastante pior da estrutura para as acções
horizontais.
Para além dos inconvenientes estruturais que este tipo de alteração traz, é ainda de notar que o
rasgamento de vãos no piso térreo vem destruir a leitura original do embasamento do edifício pombalino,
de grande regularidade e rigor geométrico (como se pode observar nas figuras 3.05.a e 3.05.b).
3.05 _ Fotografias de interrupções dos alinhamentos verticais da fachada: a) Fotografia de edifício na Praça da Figueira onde se contam, pelo menos 3 pilares cortados;
b) Fotografia de edifício na Rua Augusta com 2 pilares de fachada cortados
48
Outra alteração, de grande impacte visual na volumetria da Baixa, é o adicionar mais pisos para além
dos previstos inicialmente no Plano Pombalino (piso térreo, três pisos elevados e águas-furtadas na
cobertura), provocando uma leitura um pouco anárquica do que deveria ser a regular volumetria
pombalina, desqualificando a sua métrica compositiva (como se pode observar nas figuras 3.06 a) e b)).
Esta alteração ao desenho original pode dever-se ao facto de os edifícios terem sido construídos
posteriormente (altura dos “pombalinos tardios”, de grande pressão dos proprietários e esquecimento das
regras originais ou mesmo das consequências dos sismos), ou de terem sido acrescentados pisos em data
posterior à construção original.
Facilmente se conclui que essa alteração conduz a um aumento do peso próprio da estrutura,
especialmente desfavorável por estar no topo do edifício, o que aumenta os esforços em todos os
restantes pisos (como se pode observar no esquema 3.07). Se os elementos verticais de suporte dos pisos
acrescentados são de alvenaria (o que depende da época da intervenção), o mais provável é não terem
paredes de frontal, podendo por isso o contraventamento das fachadas ser de pior qualidade, reduzindo a
resistência à flexão para fora do seu plano. Independentemente do tipo de construção e do melhor ou
pior reforço das ligações à restante estrutura, o acréscimo de pisos corresponde a um aumento de forças
sísmicas que actuam no edifício, reduzindo assim a sua capacidade para resistir a sismos intensos.
3.06 _ Fotografias de edifícios com mais pisos que os previstos originalmente: a) Fotografia da Rua da Prata onde a
maioria dos edifícios tem 6 pisos; b) Fotografia da Rua Augusta onde um edifício chega a ter 7 pisos
49
3.07 _ Esquema de aumento de esforços com o aumento do número de pisos
Um fenómeno que, apesar de não se considerar uma alteração estrutural, deve ser referido é o facto
de a ocorrência de assentamentos de apoio, ou seja, de deslocamentos verticais das fundações, potenciar
o enfraquecimento induzido nos edifícios pelas alterações indicadas.
Estes assentamentos são provocados pelo apodrecimento da madeira das estacas (e consequente
aparecimento de vazios) causado pelas alterações no subsolo. A ocorrência de assentamentos em si não
provoca geralmente o colapso da estrutura, mas conduz a situações de maior sensibilidade estrutural
pelas consequências surgidas – abertura de fendas, destacamentos de alvenaria, rotura de tubagens…
Volta assim a realçar-se, como foi já mencionado no capítulo anterior, que um dos maiores (se não o
maior) riscos para a segurança estrutural dos edifícios pombalinos é o risco sísmico, especialmente
quando se tem em conta as variadas alterações estruturais a que têm sido submetidos, e que têm
degradado profundamente a sua resistência sísmica.
De facto, durante anos, os edifícios pombalinos foram sujeitos a intervenções que, com o objectivo de
aumentar volumetrias, melhorar as condições de habitabilidade ou transformar o tipo de utilização,
alteraram demasiado a sua estrutura. Há que ter em conta que a melhoria das condições de
habitabilidade ou a modificação dos usos dos edifícios são ambições que se devem ter em conta se
queremos que a Baixa Pombalina esteja apta a receber moradores e utilizadores actuais, com
necessidades espaciais e funcionais diferentes das consideradas aquando da construção original. No
entanto, as intervenções devem compatibilizar as novas necessidades com o respeito pela sua estrutura
original, e nunca enfraquecê-la.
Para reduzir o risco que se está a correr de perder grande parte do património que a Baixa representa
(assim como, paralelamente, o risco de perda de grande número de vidas humanas), é urgente corrigir o
comportamento negligente com que se têm levado a cabo muitas intervenções, feitas “sem qualquer
preocupação com o efeito dos sismos sobre as construções, havendo mesmo muitas situações em que
estas pioram significativamente o comportamento do edifício tornando-o mais vulnerável em caso de
sismo” (Bento, Lopes, Cardoso [5]).
50
4 Recuperação de um Edifício Pombalino
4.1 Breve descrição do Edifício
O edifício (ou conjunto de edifícios) eleito para o trabalho desta dissertação fica localizado na Baixa
Pombalina, de que se mostra uma planta na figura 4.1.01. Pretende fazer-se a análise das alterações
estruturais sofridas ao longo dos anos e dos riscos a que estas alterações conduzem do ponto de vista de
comportamento sísmico, assim como fornecer critérios de recuperação que permitam por um lado
preservar o sistema de construção pombalina ainda existente e adaptá-lo às funcionalidades actuais.
A escolha do edifício vem no seguimento do trabalho que está a ser realizado no Projecto Final do
curso: uma reabilitação da Praça da Figueira que passa pelo desenho do espaço público, pela inserção de
um mercado (recuperando a antiga função principal desta praça) e pela revitalização de edifícios na sua
envolvente, nomeadamente pela alteração dos seus usos – aproximando-os mais às actuais necessidades.
4.1.01 _ Planta geral da Baixa e envolvente
O edifício em questão começou a ser construído na última década do século XVIII e tem a
particularidade de não ser um quarteirão típico da Baixa com logradouro (como se viu na descrição de
edifício pombalinos no capítulo 2.1).
Sendo também mais estreito que os quarteirões característicos da Baixa, este edifício (ou, mais
correctamente, este conjunto de edifícios) apresenta as dimensões gerais em planta de 22,70 e 21,60
metros de largura, respectivamente nas fachadas Norte e Sul, e de cerca de 85,20 metros de comprimento.
51
Pelo número de paredes de alvenaria de pedra encontradas no interior do conjunto (paredes meeiras)
pode concluir-se que este é formado por um conjunto de sete prédios de diferentes larguras de frente –
actualmente e como consequência das transformações espaço-funcionais (que resultaram também em
alterações estruturais – descritas no capítulo 4.2) que sofreram ao longo dos anos, estes edifícios não são
completamente independentes entre si do ponto de vista dos espaços interiores, podendo, nalguns pisos,
passar-se de um prédio para outro através de aberturas nas paredes meeiras. Do ponto de vista estrutural,
os prédios nunca foram independentes entre si, pois não há juntas e cada prédio partilha as paredes
meeiras com os prédios adjacentes.
Tal como previsto no plano de Eugénio dos Santos para todos os edifícios pombalinos, também o
edifício em estudo tem 5 pisos: o rés-do-chão, o andar nobre, 2 pisos superiores e as águas-furtadas.
Na fachada poente (ver fotografias 4.1.02 e 4.1.03 com pormenores desta fachada) podemos observar
que se nota a partição do volume nos diversos prédios – separados entre si com paredes de alvenaria de
pedra que se denotam no paramento exterior com cunhais semelhantes aos que marcam as esquinas do
edifício.
Já na fachada nascente, todo o edifício se apresenta mais uniforme, não sendo aparentes as divisões
dos prédios. É de notar que todas as janelas desta fachada são de peito (como também acontece nas
fachadas norte e sul), diferente da fachada anterior em que há uma alternância de janelas de peito e de
sacada no andar nobre, de acordo com o desenho de fachada dos restantes edifícios da zona em que se
insere. Em todas as fachadas, as janelas do terceiro piso elevado são adoçadas à cornija, de verga
abaulada (na fachada poente e sul) ou recta (nas restantes fachadas).
4.1.02 _ Fotografia de pormenor do conjunto de edifícios (fachadas poente e sul)
52
4.1.03 _ Fotografia de pormenor do conjunto de edifícios (fachada poente)
Actualmente, o conjunto de edifícios tem como principal função o comércio – localizado
exclusivamente no piso térreo, onde se localizam ainda alguns espaços de serviços. Nos pisos superiores
encontramos escritórios e uma pensão de dimensões reduzidas, mas a grande maioria destes pisos estão
ao abandono.
Apesar do aspecto renovado (ou pelo menos de “cara lavada”) que é visível na fachada do lado
poente, basta observar as águas-furtadas dos edifícios para nos apercebermos do péssimo estado de
conservação em que o edifício se encontra. Em muitos casos notam-se inclusivamente capas
improvisadas de plástico, colocadas sobre as telhas, numa tentativa de evitar a entrada de águas pluviais
para o interior dos edifícios.
Pode também observar-se que há uma inclusão de tubagens nos telhados – provenientes das lojas de
comércio alimentar do piso térreo – feita de forma quase anárquica e sem qualquer preocupação
aparente com a preservação do desenho original do edifício. Este aspecto, associado às antenas
parabólicas salientes dos telhados, bem como aos acrescentos volumétricos que se encontram também
ao nível das águas-furtadas contribui para uma imagem muito negativa do conjunto de edifícios, uma
imagem de abandono e de desordem que o prejudica substancialmente.
Neste capítulo, apenas alguns dos prédios serão analisados (assinalados na imagem 4.1.04). Estes
prédios, ao contrário dos prédios vizinhos, estão completamente abandonados em todos os pisos acima
do piso térreo e é por este motivo que serão os escolhidos para a análise e proposta de reabilitação.
Os edifícios em questão estão ligados por um percurso que se pode fazer entre eles, mas não em
todos os pisos – algumas portas localizadas nas paredes meeiras encontram-se actualmente tapadas. No
entanto é impossível, em qualquer piso, passar dos edifícios assinalados na imagem 4.1.04 a preto para os
edifícios vizinhos.
53
1 2 3 4 5
4.1.04 _ Planta de localização do edifício – prédios analisados
Em termos da organização espacial interna dos edifícios estudados (numerados de 1 a 5 na imagem
4.1.04, cujas plantas dos diferentes pisos se encontram em anexo – do 01.1 ao 01.5 e do 02.1 ao 02.5, nas
páginas 83 à 92), temos um piso térreo ocupado por espaços de cariz comercial ou de serviços (como já
foi mencionado). Estes espaços ocupam praticamente toda a área deste piso à excepção dos três espaços
de acesso aos pisos superiores – localizados nos edifícios 2, 3 e 4, junto de paredes meeiras, como se pode
ver na planta esquemática 4.1.05 ou nas plantas 01.1 e 02.1 em anexo nas páginas 83 e 88
respectivamente.
Os espaços comerciais e de serviços têm dimensões bastante diferentes – neste conjunto de edifícios
existem espaços com aproximadamente 270 mP
2P (como o que se encontra entre dois dos acessos aos pisos
superiores, ocupando parte do 2º e do 3º edifícios) e outros com pouco mais de 10 mP
2P – e quase todos
eles se encontram separados por paredes de alvenaria de pedra (marcada a preto na planta 4.1.05).
Alguns destes espaços têm acessos por escadas a caves e/ou duas frentes, atravessando transversalmente
o bloco de edifícios.
4.1.05 _ Planta esquemática do piso térreo –
Acessos a pisos superiores (feitos a Poente) e diferentes edifícios assinalados
Neste piso é de realçar a grande irregularidade do desenho da estrutura – sem a identificação das
paredes meeiras pelo exterior ou sem a sua leitura nas plantas dos pisos superiores torna-se até um pouco
difícil compreender os limites de cada edifício a partir da planta do piso térreo. Esta percepção é ainda
54
mais complicada de se ter devido aos espaços que se desenvolvem em mais do que um edifício,
rompendo as paredes meeiras que os separam. Este aspecto pode dever-se a uma apropriação mais
orgânica dos edifícios, ao longo dos tempos, havendo uma preocupação por uma maior adequação dos
espaços aos usos – que resulta em alterações na estrutura que, naturalmente, terão vindo a danificar o seu
desempenho.
No piso superior a divisão nos cinco edifícios é identificada mais claramente. As paredes meeiras
atravessam o bloco transversalmente e em toda a sua largura, sendo interrompidas ocasionalmente por
vãos que possibilitam a comunicação entre edifícios (como se pode observar na planta esquemática
4.1.06).
Junto destas paredes de alvenaria de pedra (com espessuras que variam entre os 60 e 70 cm)
encontram-se saguões de dimensões reduzidas, inexistentes no piso térreo, cuja função se prende
principalmente com a ventilação natural dos espaços interiores (ver fotografia 4.1.07) – no entanto, estes
saguões em nada vêm melhorar os níveis de iluminação destes espaçosTP
1PT.
Contíguos aos saguões encontram-se os núcleos de escadas dos edifícios 2, 3 e 4 (sendo que no
edifício 3 existe ainda um elevador) – os únicos com acesso por escadas ao piso térreo. Os pisos superiores
dos edifícios 1 e 5 são acedidos internamente, pela transição a partir de edifícios adjacentes.
4.1.06 _ Planta esquemática do primeiro piso
Como se tinha visto no capítulo 2.2, referente às Técnicas Construtivas dos Edifícios Pombalinos, a partir
do piso térreo a estrutura interior é em madeira (gaiola pombalina composta por frontais) com paredes
divisórias em tabique. De facto, as únicas paredes em alvenaria de pedra (assinaladas a preto na imagem
4.1.06) são as fachadas, as paredes meeiras e as que desenham os saguões – excepção feita a uma parede
única no edifício 5, em alvenaria de pedra. As restantes paredes são frontais (paredes estruturais de
espessuras de 15 a 20 cm, assinaladas a cinzento na imagem 4.1.06) e tabiques (paredes com espessuras
TP
1PT Na verdade, até a sua função principal de ventilação das divisões interiores é reduzida pela soma de elementos no
seu núcleo como é o caso, por exemplo, da adição de instalações sanitárias (ou latrinas).
55
inferiores, na ordem dos 10 cm, assinalados a cinza claro na mesma imagem – ver também plantas 01.2 e
02.2 em anexo, nas páginas 84 e 89 respectivamente).
As dimensões dos espaços são, regra geral, reduzidos, à excepção das amplas divisões encontradas
no 2º e no 3º edifício – que, como se verá no capítulo seguinte, resultam de alterações à estrutura original.
O piso 1 tem um pé direito bastante generoso (ligeiramente inferior ao do piso térreo mas superior ao dos
restantes pisos) e os vãos de peito ou de sacada criam muitas vezes a possibilidade de haver uma
ventilação cruzada (entre as fachadas Nascente e Poente) pela existência de corredores que ligam uma
fachada à outra (ver fotografia 4.1.08).
Apesar disso, é de salientar o elevado número de divisões interiores (quartos sem vãos para o exterior
– excluindo-se deste grupo os espaços de corredor) presentes neste e nos pisos seguintes – ver plantas
01.1 à 01.5 em anexo, nas páginas 83 à 87. Estas divisões apresentam níveis de ventilação e iluminação
natural quase nulos, pelo que são espaços de muito baixa salubridade e conforto térmico – ainda assim,
ocupam quase toda uma faixa central do bloco (onde se localizam os núcleos de escadas e os saguões,
que se mostram insuficientes para a ventilação destas divisões).
4.1.07 _ Fotografia do interior do saguão do edifício 3 4.1.08 _ Fotografia de um corredor do edifício 4
Os pisos superiores (exceptuando-se o último piso, das águas-furtadas) têm algumas das paredes
estruturais que foram retiradas no primeiro piso – como se pode observar claramente comparando as
plantas 4.1.06 com as 4.1.09 e 4.1.10 (as maiores diferenças ocorrem nos edifícios 2 e 3). Os frontais
existentes nestes pisos (assinalados nas plantas 4.1.09 e 4.1.10 a cinzento) formam uma malha de
alinhamentos irregulares mas com distâncias semelhantes entre si.
O segundo piso é o que apresenta mais paredes de frontal (podendo mesmo dizer-se que é o piso
mais “completo”, ou menos adulterado face à construção original), e por esse motivo é o piso onde
56
melhor se pode perceber o desenho da gaiola (ver também as plantas 01. 3 e 02. 3 em anexo, nas páginas
85 e 90 respectivamente).
4.1.09 _ Planta esquemática do segundo piso
No terceiro piso observa-se uma alteração à estrutura dos pisos inferiores no primeiro edifício (apesar
de apresentar uma estrutura bastante semelhante à do segundo piso nos edifícios 2, 3, 4 e 5) – um corte
de frontais, paredes com função estrutural que estariam inseridas na malha da gaiola (ver também as
plantas 1.04 e 2.04 em anexo, nas páginas 86 e 91 respectivamente), que transforma o espaço interior,
tornando-o mais amplo, mas que naturalmente prejudica o desempenho sísmico do edifício.
4.1.10 _ Planta esquemática do terceiro piso
O quarto piso apresenta uma estrutura diferente dos pisos anteriores. Os edifícios 1 e 2 tornam-se
quase como um só, bastante amplo pela inexistência de paredes estruturais e rara presença de paredes
divisórias, mas também pela abertura de grandes vãos nas paredes meeiras entre eles. Nos edifícios
57
vizinhos mantêm-se a maioria das paredes estruturais (ver também as plantas 1.05 e 2.05 em anexo nas
páginas 87 e 92 respectivamente).
4.1.11 _ Planta esquemática do quarto piso (águas-furtadas)
58
4.2 Estado de conservação e alterações estruturais do Edifício
Neste sub-capítulo, para além de listar as alterações estruturais que os edifícios em estudo têm vindo
a sofrer (tentando compreender os porquês das mesmas), é pertinente avaliar também o estado de
conservação em que o bloco se encontra.
Esta avaliação é feita em duas fases: uma primeira, de apreciação do exterior do bloco de edifícios, e
uma segunda, onde se descrevem as anomalias encontradas no interior dos edifícios.
No exterior, pode realçar-se o facto de este bloco ter sido alvo de uma recuperação da sua fachada
poente – por este motivo, não são encontradas quaisquer anomalias visíveis nos paramentos ou nos vãos
desta fachada. No entanto, a mencionada recuperação não abrangeu as águas-furtadas dos edifícios, pelo
que é bastante clara a deterioração do revestimento e da própria estrutura da cobertura (como se pode
observar na imagem 4.2.01).
4.2.01 _ Fotografia de pormenor – águas-furtadas
De grande importância ao nível da imagem exterior do bloco, encontram-se, na fachada nascente,
alguns vidros de janelas partidos, que denotam o abandono em que se encontram os pisos superiores dos
edifícios estudados (ver imagem 4.2.02.a), e em existem alguns espaços comerciais do piso térreo
deixados ao abandono e ao vandalismo (ver imagem 4.2.02.b).
4.2.02 _ Fotografias de pormenor: a) Vidros partidos; b) Espaços comerciais abandonados
59
No interior dos edifícios é possível perceber que o estado de conservação em que estes se encontram
é bastante pior que aquele que se pode entender pela observação exterior. Em praticamente todos os
pisos são encontradas diversas anomalias que denotam o péssimo estado de conservação em que os
edifícios se encontram.
As anomalias existentes encontram-se na maioria das componentes construtivas do bloco,
nomeadamente nas paredes resistentes (sendo os frontais os mais danificados, tanto em termos
estruturais como ao nível dos acabamentos e revestimentos), nos pavimentos (mais uma vez, quer ao
nível estrutural quer em acabamentos e revestimentos), nos elementos constituintes das escadas
(incluindo alguns elementos de ferro como os corrimãos) e nas paredes de compartimentação
(tabiques).
Em relação às paredes resistentes e aos pavimentos, uma causa possível das anomalias observadas
pode ser a ocorrência de assentamentos diferenciais nas fundações – provocando fendilhações (ver
imagem 4.2.03) e desprendimentos do reboco e outros acabamentos (como pinturas ou azulejos) nos
frontais (ver imagem 4.2.04.a) e deformações excessivas nos soalhos (ver imagem 4.2.04.b) que podem
resultar em fendilhações dos revestimentos dos tectos, deixando expostos os fasquiados de madeira (ver
imagem 4.2.05.a). Outra causa plausível destas anomalias é a multiplicação de alterações estruturais – tais
como o corte de pilares no piso térreo ou a remoção de frontais nos pisos superiores – efectuadas
principalmente durante o século XX.
Como consequência das deformações da gaiola pombalina, as paredes de compartimentação foram
também sofrendo danos tanto na sua geometria como nos seus revestimentos. As mencionadas
anomalias na gaiola “podem fazer com que se mobilizem as capacidades resistentes destas paredes
secundárias, muito para além do que foi previsto no seu projecto e construção” (Appleton [2], pp. 122),
originando abaulamentos e/ou empolamentos de rebocos (ver imagens 4.2.06.a e 4.2.06.b).
4.2.03 _ Fotografias no interior do bloco – fendilhação de frontal
60
4.2.04 _ Fotografias no interior do bloco: a) descasques do revestimento do frontal; b) deformação no pavimento
4.2.06 _ Fotografia no interior do bloco: a) empolamento do reboco de um tabique; b) empolamento do reboco e abaulamento de um tabique
inda em relação a estes elementos construtivos, feitos em madeira, importa referir que a presença
da á
4.2.05 _ Fotografias no interior do bloco: a) descasques do revestimento do tecto com exposição do fasquiado; b) colapso do revestimento do tecto com exposição da estrutura do pavimento
A
gua tem um papel fundamental na degradação tanto do aspecto visual destes constituintes como do
seu comportamento mecânico. Na ausência de manutenção adequada, a humidade de precipitação, mais
61
grave que a de condensação ou de terreno, infiltra-se ao longo dos anos através das coberturas, paredes e
das próprias caixilharias exteriores proporcionando um ambiente propício para o desenvolvimento de
fungos de podridão e para os ataques de xilófagos.
As zonas de entrega dos vigamentos de madeira dos pavimentos nas paredes resistentes são as mais
afec
s coberturas dos edifícios estudados são as que mais anomalias apresentam – “a cobertura é um
elem
tadas pelas infiltrações, que, associadas aos processos de envelhecimento da madeira, provocam
empenamentos, fissuras, destruição de zonas de apoio entre outras deteriorações – podendo levar a
colapsos integrais dos revestimentos dos tectos (ver imagem 4.2.05.b, 4.2.07.a e 4.2.07.b).
4.2.07 _ Fotografia no interior do bloco: a) colapso do revestimento do tecto com exposição da estrutura do pavimento; b) sistema improvisado de drenagem das águas pluviais presente no primeiro piso dos edifícios 3 e 4
A
ento da envolvente do edifício exposto de forma contínua à acção da água da chuva, das variações
de temperatura, do vento carregado de poeiras, da poluição, etc.” (Appleton [2], pp. 117) – e estas
relacionam-se principalmente com o facto de a água se infiltrar em zonas correntes da cobertura e com a
própria fluência da madeira (Appleton [2], pp. 117). Regra geral, a fluência dos elementos estruturais gera
folgas no revestimento em telha, o que facilita a penetração da água. Uma vez humedecidos, os
elementos em madeira deterioram-se, aumentando ainda mais a deformação da estrutura (ver imagem
4.2.08.a).
4.2.08 _ Fotografia no interior do bloco: a) sistema improvisado de apoio à estrutura da cobertura; b) escadas do edifício 4
62
As anomalias observadas nas escadas devem-se maioritariamente a factores já abordados (ver
imagem 4.2.07.b). Ainda assim é de mencionar as acções mecânicas como o desgaste a que os degraus e
os patins estão sujeitos que em geral é superior ao sentido nos restantes pavimentos.
Resta ainda referir as alterações sofridas nos saguões. Observando as plantas esquemáticas dos
diferentes pisos do bloco estudado (expostas nas páginas seguintes) percebe-se que alguns destes
espaços vão sendo ocupados por instalações sanitárias, o que obstrui parcialmente o espaço de
ventilação do saguão. Note-se, no entanto, que esta situação não é o caso mais comum pois, em geral, os
saguões têm dimensões muito maiores, normalmente comuns a todos os edifícios que constituem o
quarteirão. Nestes casos, a opção pela introdução de elevadores ou instalações sanitárias no espaço de
saguão afectaria muito menos a função de ventilação dos mesmos.
Finalmente, são avaliadas as alterações estruturais sofridas nos diferentes pisos deste conjunto de
edifícios. Em relação ao piso térreo, podemos observar pelo desenho em planta (apresentado na imagem
4.2.10.a e também na planta 02.1 em anexo, na página 88) que a estrutura actual se encontra bastante
alterada relativamente à estrutura original. Como foi já descrito no capítulo 2.2, Técnicas construtivas e
materiais utilizados, os pisos térreos originais tinham muito poucas paredes interiores – existiam apenas as
paredes meeiras em alvenaria de pedra, podendo haver algumas paredes, também em alvenaria, que
separavam os espaços das lojas/ armazéns/ cavalariças dos acessos às zonas de habitação/ escritórios dos
pisos superiores – havendo ainda pilares de alvenaria, no alinhamento do cruzamento de frontais de pisos
superiores, que suportavam os arcos e abóbadas que formavam o tecto deste piso.
Nestes edifícios não encontramos os espaços amplos pontuados por pilares, característicos da
construção pombalina original. Nalgumas zonas torna-se até um pouco complicado distinguir as paredes
meeiras de outras paredes de alvenaria que terão sido construídas à posteriori, denotando-se um desenho
bastante irregular (ver na imagem 4.2.10.a as aberturas feitas nalgumas paredes meeiras, cuja geometria
deveria mantida desde as fundações até ao último piso). Neste piso é ainda de assinalar que alguns vãos
foram rasgados, pelo corte ou redução da secção de pilares, numa provável tentativa de ganhar espaço
de montra nas fachadas (ver fotografia 4.2.09 e imagem 4.2.10.a onde está marcado o desenho de fachada
proveniente dos pisos superiores e se pode observar a supressão, mudança de posição ou redução de
secção de alguns pilares).
4.2.09 _ Fotografia de espaço comercial no piso térreo – redução da secção do pilar
63
4.2.10.a _ Planta esquemática do piso térreo
onde se assinalam as paredes de alvenaria retiradas a traço interrompido vermelhoTP
1PT.
4.2.10.b _ Planta esquemática do piso térreo onde se assinala a malha de frontais dos pisos superiores a vermelho.
Este tipo de alterações à estrutura do piso térreo (corte ou redução de pilares e rasgos abertos nas
paredes meeiras) vem enfraquecer o seu comportamento, diminuindo a rigidez deste piso – o que
provoca um aumento da vulnerabilidade sísmica do edifício (ver capítulo 3, Alterações estruturais e seus
efeitos).
Em relação às paredes adicionadas para dividir os vários espaços comerciais, o mais provável é que
muitas delas tenham sido feitas no seguimento de pilares, ou seja, muitas delas (principalmente as do
TP
1PT Note-se que existe uma certa incerteza em relação à parede meeira que separa os edifícios 1 e 2 pois há zonas com
uma espessura reduzidas – apesar disso não parece haver lógica a substituição de uma parede de alvenaria por um tabique.
64
edifício 5) estão em continuidade com os frontais dos pisos superiores (ver imagem 4.2.09.b) – o que não
enfraquece a estrutura, pelo contrário, pode até contribuir para aumentar a sua rigidez e resistência.
No primeiro piso encontram-se alguns frontais cortados (como se pode ver na fotografia 4.2.11.b) e
outros que foram completamente retirados, chegando a observar-se espaços tão amplos que não são
interrompidos por nenhuma parede resistente no sentido transversal do bloco (situação que não era
possível de acontecer com a estrutura de gaiola dos edifícios pombalinos originais – ver fotografia 4.2.11.a
e imagem 4.2.12 onde se assinalam os frontais retirados, e também a planta 02.2 em anexo, na página 89).
4.2.11 _ Fotografias no interior do bloco: a) sala com vários frontais retirados; b) pormenor de frontal cortado
4.2.12 _ Planta esquemática do primeiro piso onde se assinalam os frontais retirados a traço interrompido laranja e a
parede de alvenaria desenquadrada da estrutura original pombalina a vermelho.
65
O corte ou remoção total dos frontais, apesar de permitir uma maior amplitude espacial ou até
melhorar o conforto visual e térmico dos espaços (por possibilitar iluminação natural e ventilação
cruzadas), vem alterar o comportamento do edifício quando sujeito a acções horizontais, como as acções
sísmicas, enfraquecendo-o.
Nos pisos superiores (ver imagens 4.2.13, 4.2.14 e 4.2.15 e ainda as plantas 02.3, 02.4 e 02.5 em anexo,
nas páginas 90, 91 e 92) continuam a poder identificar-se zonas de onde foram retirados alguns frontais,
sendo o edifício 5 o que menor número de alteração estruturais apresenta. Apesar de ser o menos
modificado relativamente aos restantes edifícios estudados, no último piso podem encontrar-se algumas
remoções de frontais, e em todos os pisos existe uma pequena parede de alvenaria (que não se enquadra
nas estruturas originais pombalinas – assinalada nas imagens 4.2.12, 4.2.13, 4.2.14 e 4.2.15), cujo efeito na
estrutura do bloco se pode traduzir apenas no aumento de massa – sem melhoramentos relevantes ao
nível do comportamento estrutural do edifício ou redução da sua vulnerabilidade sísmica pois, como já foi
visto anteriormente, a estrutura triangulada em madeira tem um melhor comportamento estrutural,
nomeadamente por resistir a acções horizontais.
4.2.13 _ Planta esquemática do segundo piso onde se assinalam os frontais retirados a traço interrompido laranja e a parede de alvenaria desenquadrada da estrutura original pombalina a vermelho.
66
4.2.14_ Planta esquemática do terceiro piso onde se assinalam os frontais retirados a traço interrompido laranja e a parede de alvenaria desenquadrada da estrutura original pombalina a vermelho.
4.2.15 _ Planta esquemática do quarto piso onde se assinalam os frontais retirados a traço interrompido laranja, as paredes de alvenaria (paredes meeiras e dos saguões) a traço interrompido vermelho e a parede de alvenaria
desenquadrada da estrutura original pombalina a vermelho.
67
4.3 Recuperação da estrutura pombalina e reabilitação do Edifício
Tendo como base o caso de estudo apresentado, o presente capítulo vem alertar para a urgência de
intervenções que visem reabilitar os edifícios pombalinos, tendo em conta não só a adequação às novas
funcionalidades como também a segurança dos utentes e a salvaguarda do património arquitectónico e
estrutural do sistema de construção pombalino – sob o ponto de vista estrutural, as reabilitações destes
edifícios não devem ter como objectivo apenas assegurar a sua funcionalidade até a um próximo sismo;
devem sim tentar capacitá-los a resistir aos próximos sismos.
À luz das cartas e convenções internacionais de recuperação, conservação e restauro estrutural e
arquitectónico, as intervenções em estruturas antigas devem ser regidas por seis requisitos principais,
sendo eles: eficáciaTP
1PT, compatibilidade, durabilidade, reversibilidade, invasividade e eficiênciaP
1P.
Sendo a estrutura de gaiola um sistema que representou uma grande inovação construtiva, o ponto
de partida para a reabilitação dos edifícios pombalinos deve passar obrigatoriamente pela recuperação
e/ou reforço desta, para que se volte a ter o bom comportamento sob acção sísmica original destes
edifícios – de facto, a importância da gaiola não é meramente histórica uma vez que é este sistema
estrutural que confere ou potencia um razoável comportamento sísmico aos edifícios pombalinos, apesar
de todas as alterações que têm sofrido.
O excepcional valor patrimonial do sistema de gaiola deve ser preservado, e para tal é necessário
manter as estruturas originais, ao invés de as substituir por materiais e tecnologias contemporâneos – “o
uso e abuso do betão armado e do aço tornam as intervenções, frequentemente, demasiado pesadas,
intrusivas e atentatórias da originalidade dos velhos edifícios, para além da sua eficácia face aos actuais
requisitos de comportamento estrutural ser, muitas vezes, duvidosa.” (Cóias [8], pp. 65)
Este tipo de comportamento é também concordante com princípios de desenvolvimento sustentável,
uma vez que promove uma racionalização dos encargos envolvidos nas intervenções, quer pela
minimização do uso de novos materiais, quer pela (re)utilização dos materiais existentes.
Apesar de, mesmo depois de se proceder a uma recuperação da estrutura pombalina, não se
alcançarem os valores de segurança das normas e regulamentos actuais (tais como o Regulamento de
Segurança e Acções, RSA de 1983), o facto de se tratarem de estruturas históricas torna inadequadas as
intervenções que visem aumentar a resistência estrutural de tal forma que se percam os elementos
estruturais da concepção original, devendo optar-se por abordagens mais flexíveis e abrangentes.
Em relação à reabilitação dos edifícios pombalinos, para além de questões relacionadas com a
recuperação ou melhoria do comportamento estrutural dos edifícios, há outros aspectos a avaliar no
próprio processo de reabilitação, que se prendem com questões mais pragmáticas como por exemplo o
da acessibilidade de utentes com mobilidade reduzida ou o da viabilidade económica da intervenção.
De facto, este último aspecto é de extrema importância, uma vez que não é possível pensar numa
reabilitação dos edifícios pombalinos e na recuperação e preservação do património arquitectónico/
TP
1PT A eficácia de uma intervenção prende-se com o facto de esta conseguir responder concretamente aos objectivos a
que foi proposta; por eficiência entende-se que a intervenção deve ser com o menor custo possível (adaptado de Cóias [8], pp. 67).
68
estrutural sem que estas intervenções sejam economicamente viáveis. Quer isto dizer que há que tratar o
princípio da intervenção mínima (ou da invasividade mínimaTP
1PT) com alguma delicadeza, uma vez que uma
intervenção feita de forma muito restritivaTP
2PT num conjunto de edifícios como o do caso de estudo pode vir
a impossibilitar a inclusão de aspectos que são essenciais para satisfazerem as necessidades funcionais
actuais.
Nesta linha de raciocínio, é essencial analisar a viabilidade da inclusão de elevadores nos edifícios
estudados. Hoje em dia, qualquer edifício construído de raiz tem geralmente elevadoresTP
3PT – por motivos
que se prendem com a comodidade dos seus utilizadores mas também com aspectos sociais pela
facilitação do acesso a pessoas portadoras de deficiências motoras ou de mobilidade reduzida.
No caso dos edifícios antigos, a inclusão de elevadores pode, por um lado, ser um elemento que os
valoriza em termos económicos, tornando a sua utilização mais cómoda e alargada a um público mais
abrangente (sendo que facilita a utilização do edifício a pessoas com mobilidade reduzida, a idosos…).
Por outro lado, não se pode esquecer o facto de se tratar de um elemento totalmente novo que prejudica
a autenticidade do edifício e que exige um reforço estrutural.
Visto haverem prós e contras na avaliação da inclusão de elevadores, um aspecto importante a ter em
conta será a função que o edifício terá, e se será um edifício público ou privado.
Assim, no caso de edifícios cuja reabilitação os adapte para o uso habitacional, o uso de elevadores
pode considerar-se desejável, mas não essencial. Já nos casos de reabilitação de edifícios pombalinos para
usos não habitacionais – como hotéis, escritórios, espaços comerciais desenvolvidos em mais do que um
piso ou outros usos públicos – a inserção de elevadores torna-se indispensável. Nestes casos, a
intervenção deve ser o menos intrusiva possível, o que se pode conseguir pela utilização de materiais
mais leves ou pela não utilização dos espaços de saguão (se estes forem de dimensões reduzidas por se
prejudicar a função dos mesmos de ventilação natural) – a utilização de perfis metálicos na estrutura do
elevador apresenta-se, provavelmente, como a solução menos intrusiva e mais facilmente reversível
(especialmente quando comparada com soluções em betão armado, bastante mais intrusivas e com
elevado peso próprio).
Há ainda outros aspectos merecedores de atenção aquando da intervenção de reabilitação de
edifícios pombalinos. Como é evidente, regra geral, os edifícios antigos não obedecem a regulamentos
actuais como o Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU) ou o Regulamento das Características de
Comportamento Térmico dos Edifícios (RCCTE).
TP
1PT Um dos requisitos das intervenções de reabilitação é o da invasividade: “a intervenção deve ser o menos invasiva
possível, isto é, deve envolver a mínima perturbação possível da integridade e da estabilidade da construção, das suas funções e dos seus utentes” (Cóias [8], pp. 67). TP
2PT Entenda-se por intervenção muito restritiva uma reabilitação que preserve todos os elementos originais, sem fazer
uso de novos materiais ou de novas tecnologias. TP
3PT Nos termos do n.º 1 do Artigo 50.º do RGEU, é obrigatório instalar elevadores T“quando a altura do último piso
destinado a habitação exceder 11,5m” [23]T
69
Veja-se o caso dos núcleos de escadas dos edifícios estudados: nenhum deles cumpre todas as
dimensões requeridas nos regulamentos actuais (larguras de lanços, relação espelho/ cobertor do degrau,
dimensões dos patamares…). O que acontece nestes casos é que a modificação da geometria destes
elementos de forma a fazer-se cumprir os regulamentos implicaria, devido à necessidade de aumentar o
espaço disponível para as escadas, profundas alterações na malha da gaiola – ou seja, pensa-se ser
preferível assumir um funcionamento um pouco diferente dos edifícios actuais, possivelmente menos
exigente ao nível do conforto térmico, do desenho ergonómico ou da segurança contra incêndios, e
privilegiar a manutenção do património estrutural e arquitectónico dos edifícios (se todas as intervenções
de reabilitação de edifícios antigos tivessem como objectivo adaptá-los integralmente aos novos
regulamentos, estaríamos a prejudicar fortemente a integridade patrimonial dos mesmos, adulterando os
seus elementos originais).
Mais concretamente, em relação ao conjunto de edifícios estudados, e independentemente do tipo
de uso que se queira vir a dar aos mesmos, é necessário definir as áreas a reabilitar, seja pela reconstrução
de elementos estruturais retirados ou pela relocalização de outro tipo de elementos (como instalações
sanitárias) que tenham sido acrescentados.
A reconstrução de elementos estruturais, como as paredes meeiras ou os frontais, tem como
objectivo restabelecer ou melhorar o comportamento estrutural original dos edifícios (principalmente
face a forças horizontais, como os sismos).
Este processo de reabilitação dos edifícios deve ainda proceder a uma melhoria do projecto original
pela utilização dos mesmos materiais tradicionais (se possível, de melhor qualidade) ou pela substituição
de materiais que se mostrem danificados (como se ilustra na fotografia 4.3.01).
4.3.01 _ Fotografia no interior do bloco – estrutura de pavimento em madeira bastante danificada
70
Em relação ao piso térreo seria essencial recuperar os pilares de fachada que foram cortados bem
como as paredes meeiras que foram rasgadas (a reconstrução das paredes meeiras, neste caso de estudo,
estende-se também ao último piso – ver imagem 4.2.14 do capítulo anterior).
Outra solução que se poderia adoptar para melhorar o comportamento estrutural do piso térreo seria
construir paredes de alvenaria de boa qualidade no alinhamento dos frontais dos pisos superiores
(sobretudo nas áreas que estão mais afectadas por intervenções anteriores – ver imagem 4.3.02 e planta
03.1 em anexo, na página 93), numa tentativa de transferir de forma mais directa as cargas dos frontais
para as fundações.
4.3.02 _ Planta esquemática do piso térreo
onde se assinala a tracejado as área mais afectadas por intervenções anteriores.
Nos pisos superiores, para além de reconstruir frontais cortados ou completamente retirados, há
outro tipo de intervenções, de carácter um pouco mais invasivo, que merecem ser estudadas.
A malha criada pelos frontais deve ser o mais regular possível e por este motivo pode ser vantajoso
alterar a geometria/ posicionamento de algumas destas paredes estruturais no sentido de se ganhar uma
maior continuidade entre frontais, distribuindo de forma mais homogénea as cargas. Esta solução viria
exigir particular cuidado na sua execução, no sentido de se conseguir a maior continuidade possível entre
frontais existentes e novos frontais (caso contrário reduzir-se-iam os benefícios esperados).
A imagem que se segue (4.3.03 – ver também planta 03.2 em anexo, na página 94) apresenta as
alterações à estrutura de frontais que se propõem: a vermelho (traço cheio) estão representados os
frontais que se poderiam alterar (no edifício 5 a “deslocação” de dois frontais resulta numa maior
continuidade da estrutura no sentido transversal do bloco), e as mudanças menos significativas, as mais
dispensáveis, estão assinaladas com um círculo (nestes casos o cruzamento original de frontais não está
“alinhado” e a deslocação dos mesmos, alinhando-os numa mesma direcção, viria trazer uma maior
resistência à estrutura; no entanto, nestes casos poder-se-ia optar pelo reforço da ligação da gaiola de
madeira com elementos metálicos (Appleton [2], pp. 190), uma opção talvez mais económica). Nesta
imagem pode ainda perceber-se que, na eventual eliminação de todas as paredes dispensáveis à
estrutura dos edifícios (os tabiques), as áreas conseguidas entre frontais são regra geral espaçosas, tendo
os menores espaços cerca de 11 mP
2P.
71
4.3.03 _ Planta esquemática dos pisos superiores com as alterações à estrutura original de frontais – a vermelho (traço
cheio): frontais originais que seriam alterados; – a azul: localização futura dos frontais alterados.
A reabilitação destes edifícios tem ainda o propósito de se adaptar a estrutura original da gaiola
pombalina às exigências espaço-funcionais da vida actual, sem se perder, ou melhor, enfatizando o valor
patrimonial dessa estrutura.
Por este motivo, e complementar ao facto de a maioria das alvenarias de enchimento dos frontais
serem de qualidade bastante fracaTP
1PT, uma opção para se conseguir uma maior amplitude espacialTP
2PT, ou
para possibilitar a iluminação ou ventilação naturais de espaços interiores, seria a remoção do
enchimento de alguns frontais ou a reconstrução de frontais sem se proceder ao seu enchimentoTP
3PT
(solução que conduz, obviamente a uma redução do peso próprio destes elementos estruturais). Assim, o
uso de frontais abertos apresenta-se como uma solução que não só amplifica os diversos espaços,
tornando-os partes de um todo mais coerente, como também resulta na exposição de elementos
históricos que aliam o valor patrimonial ao valor decorativo.
Apesar desta possibilidade, é importante lembrar que o enchimento da gaiola pode ajudar a
contraventar os elementos de madeira e que “os rebocos desempenham um papel importante na
conservação da madeira” (Appleton [2], pp. 190-191), e que, sempre que se encontre em bom estado de
conservação, devem ser mantidos. No entanto, nos edifícios em estudo, grande parte dos frontais
encontram-se com descasques do reboco ou rebocos em mau estado de conservação pelo que a solução
da utilização de frontais abertos se poderia manter válida – desde que utilizando madeiras de boa
qualidade, protegidas contra a humidade ou ataques de xilófagos e sempre procedendo a uma correcta e
cuidada execução e manutenção, para minimizar a menor protecção da estrutura de madeira da gaiola.
TP
1PT Durante a reconstrução, a alvenaria utilizada no enchimento das Cruzes de Santo André era regra geral de muito má
qualidade, sendo muitas vezes restos e entulhos, e não contribuía para aumentar a rigidez dos frontais. TP
2PT Apesar da validade da procura por espaços mais amplos, é de referir que as dimensões reduzidas existentes nos
edifícios estudados e na maioria dos edifícios pombalinos se devem sobretudo à compartimentação feita pelos tabiques – entre os frontais conseguem-se dimensões que se aproximam bastante das dimensões que actualmente consideramos confortáveis. TP
3PT A remoção do enchimento dos frontais ou a sua reconstrução sem enchimento pouco pode vir a prejudicar o
funcionamento da estrutura; pelo contrário, o comportamento da estrutura pode beneficiar, pois as forças de inércia induzidas pelos sismos serão inferiores.
72
Há ainda que referir que deve haver um cuidado especial na preservação ou recuperação de
elementos arquitectónicos ou decorativos de qualidade que se encontrem danificados, seja qual for que
venha a ser a futura utilização dos edifícios. São disto exemplos os baixos-relevos encontrados no tecto e
nas paredes da entrada do edifício 3, apresentados nas fotografias 4.3.04.a e 4.3.04.b, ou o elemento
decorativo em ferro forjado na porta de entrada (ver fotografias 4.3.05.a e 4.3.05.b), ou o arranque das
escadas no piso térreo ou alguns painéis de azulejos, todos desse edifício.
4.3.04 _ Fotografia do interior do edifício 3: a) tecto do espaço de entrada; b) paredes do espaço de entrada
4.3.05 _ Fotografia do exterior do edifício 3: a) porta de entrada; b) pormenor do elemento em ferro
Nos anexos 03.3 e 03.4 encontram-se representados em planta o piso “tipo” e as águas-furtadas de
uma possível adaptação dos edifícios estudados para habitações, mantendo a área comercial do piso
térreo – neste piso pode notar-se a construção de paredes de alvenaria no alinhamento dos frontais dos
pisos superiores (ver planta 03.1 em anexo, na página 93), melhorando assim o seu comportamento
estrutural.
73
Nas plantas seguintes (03.3 e 03.4 em anexo, nas páginas 95 e 96) é possível observar como se pode
realmente adaptar uma malha de frontais existentes às necessidades espaciais das habitações actuais –
todos os frontais existentes foram mantidos, sendo que os que haviam sido retirados ou cortados foram
reconstruídos.
Em relação aos tabiques, e como se pode entender pela planta 03.2 em anexo, a maioria deles não foi
mantida por motivos que se prendem com o novo desenho dos espaços, nomeadamente pela abertura
de espaços de dimensões muito reduzidas, e da procura da disposição dos espaços secundários (como
instalações sanitárias ou espaços de arrumos) nas áreas centrais, desprovidas de iluminação natural. A
opção por se retirarem as paredes divisórias em tabique não constitui um problema em termos estruturais
ou patrimoniais pois, como já se viu ao longo deste trabalho, estas não contribuem para o funcionamento
estrutural dos edifícios nem têm o valor histórico dos frontais.
Em termos de organização espacial geral, temos os dois primeiros edifícios servidos por um núcleo de
escadas (o existente) e em cada um propôs-se uma habitação por piso (acima do piso térreo). No edifício 3
foi mantido também o núcleo de escadas e este serve apenas um apartamento por piso. Finalmente, os
edifícios 4 e 5, comunicantes, propuseram-se ser servidos pelo núcleo de escadas existente no edifício 4
(onde se localiza um apartamento por piso) mas também por um elevador inserido no edifício 5, junto à
parede meeira que os divide – a opção pela inclusão de um elevador nestes edifícios prende-se com o
número de habitações a servir, uma vez que passam a existir 4 habitações por piso neste conjunto de
edifícios (4 e 5).
Propôs-se uma reabilitação dos quatro saguões existentes, sendo retirados quaisquer elementos que
tenham sido adicionados ao desenho original, que possibilita finalmente o propósito do seu desenho – a
ventilação natural de alguns espaços interiores, tanto nas habitações, como nos núcleos de escadas. Uma
forma de potenciar o uso dos saguões, nomeadamente pelo seu aproveitamento para iluminação natural
das mencionadas áreas, seria a utilização de um revestimento do seu interior a uma cor clara e materiais
que melhor reflectissem a luz solar (como azulejos brancos, por exemplo).
Apesar da contribuição dos saguões para a ventilação de espaços interiores, e tendo o seu efeito em
conta, procedeu-se ainda, nalgumas situações particulares, à solução já exposta da utilização de frontais
abertos. Embora se tenham privilegiado os espaços limítrofes dos edifícios (junto às fachadas) para
utilizações que requerem maior conforto, e consequentemente melhores níveis de iluminação e
ventilação naturais (como as salas ou os quartos) a existência de grandes áreas interiores levou ao recurso
dos frontais abertos, sendo que estes vão articular as salas com as áreas de refeição e algumas cozinhas,
num sistema que se aproxima do conceito de open spaces.
Embora se trate de uma arquitectura mais condicionada pelas questões estruturais do que é corrente,
o exemplo apresentado serve o propósito de mostrar que é realmente possível adaptar a estrutura
pombalina às necessidades espaço-funcionais actuais. É apenas necessário encontrar um ponto de
equilíbrio entre os aspectos relacionados com a segurança e comodidade dos utentes, intrinsecamente
ligados com a viabilidade económica da reabilitação, e a preservação o mais fiel possível da construção
original, privilegiando a sua integridade patrimonial.
74
5 Considerações finais
5.1 Candidatura a Património da Humanidade
A reconstrução da Baixa da cidade de Lisboa constituiu um gesto que harmonizou o planeamento
urbano com os aspectos arquitectónicos e construtivos, sendo construído um objecto global de inegável
valor patrimonial.
Hoje em dia, corre-se o risco de perder grande parte do património arquitectónico, urbano e também
estrutural que a Baixa representa (paralelamente com o risco de perda de grande número de vidas) pelo
estado estrutural de grande vulnerabilidade sísmica em que se encontram grande número dos edifícios
pombalinos – devido sobretudo às alterações estruturais destes edifícios.
Esta situação deve ser corrigida com urgência e a preservação do património não pode passar
unicamente pela manutenção mimética dos edifícios originais – é necessário haver uma operação global
de reabilitação que se traduza numa adaptação dos espaços interiores às necessidades actuais para que
os edifícios possam ser utilizados e fazer parte da vida da cidade, ao invés de serem deixados ao
abandono.
Esta adaptação à vida actual é também uma estratégia de viabilização económica das próprias
intervenções de recuperação do património, e consequentemente do objectivo da candidatura da Baixa
Pombalina a Património da Humanidade: “(…) a Baixa Pombalina de Lisboa reúne, à priori, todas as
condições para uma eventual candidatura à lista do Património da Humanidade. Porém, em face do actual
estado generalizado de depressão urbana, há ainda muito a fazer para tornar esta candidatura viável no
exigente quadro da UNESCO” (Rodeia [12], pp. 92).
Apesar do estado em que se encontra grande parte dos edifícios pombalinos, é importante lembrar
que no processo de reconstrução foram aplicadas, pela primeira vez na história da Humanidade, regras de
construção anti-sísmica de forma rigorosa e à escala da cidade, marcando a história da engenharia sísmica
mundial. A utilização à escala da cidade da estrutura em gaiola de madeira é dos factores mais
importantes, e certamente o mais inovador, que distingue a Baixa Pombalina a nível internacional, ou seja,
deveria ser o elemento base para justificar a candidatura a Património da Humanidade (não se querendo
com isto desvalorizar aspectos de cariz urbano, arquitectónico, cultural ou histórico).
75
5.2 Resumo e Conclusões
Neste trabalho analisou-se a reabilitação da Baixa Pombalina tendo em conta não só a conservação
dos edifícios como também a possibilidade de alterações de uso, que pode ser indispensável para
viabilizar economicamente a própria reabilitação, e os aspectos relacionados com a segurança estrutural.
Estes são fundamentais para assegurar a segurança dos utilizadores dos edifícios e a transmissão deste
património de valor inestimável às gerações futuras em condições de segurança e sustentabilidade face à
ocorrência de futuros sismos.
A Baixa que hoje conhecemos resultou do violento sismo de 1 de Novembro de 1755, ao qual se
seguiu um incêndio catastrófico, teve proporções avassaladoras. Tendo destruído completamente o
centro de Lisboa, ou seja, as zonas mais densamente edificadas, foi necessário tomar medidas de
emergência que desencadearam o processo da reconstrução da capital. Manuel da Maia, Engenheiro mor
do reino, levou então a cabo um plano de renovação da cidade, em conjunto com Eugénio dos Santos e
Carlos Mardel, que veio a ser posto em execução em 1758.
O plano assentava na ideia da estandardização construtiva, conseguida pelos quarteirões tipificados
inseridos numa malha regular ortogonal, e pela modularidade da tipologia dos edifícios e das suas
fachadas, que variavam hierarquicamente em conformidade com a importância das ruas e com o tipo de
actividade desenvolvida. Foram ainda inseridos alguns melhoramentos das redes públicas (rede de
esgotos e recolha de lixos, o abastecimento domiciliário de água e das bocas-de-incêndio).
Além dos aspectos urbanos e arquitectónicos, nos quais foi dada grande importância ao espaço
público, foi estudado um novo processo de construção – o Sistema Construtivo Pombalino. De facto, em
termos urbanos e arquitectónicos a reconstrução da Baixa não a distingue do que se fazia no resto da
Europa – a grande inovação trazida pelo processo reconstrutivo é a estrutura dos novos edifícios.
Esta estrutura, a gaiola pombalina, nunca havia sido aplicada à escala de uma cidade e a sua eficiência
foi alvo de estudo, nomeadamente através de ensaios sísmicos num modelo (numa tentativa de se criar
edifícios com um comportamento sísmico adequado procurando evitar-se novas catástrofes). É de
lembrar que esta estrutura de madeira só começa acima do piso térreo, sendo que a estrutura deste piso é
em pilares de alvenaria de pedra e paredes meeiras, também em alvenaria de pedra, assente numa base
de fundação de blocos de pedra aparelhada e estacaria de madeira.
A gaiola pombalina é uma estrutura tridimensional em madeira, composta pelas paredes interiores
resistentes (frontais formados pelas treliças chamadas de Cruzes de SP
toP André), solidárias entre si, e a sua
principal função seria a de conferir resistência à estrutura e de evitar o colapso do edifício no caso de um
futuro sismo. As treliças de madeira são bastante resistentes a forças no seu plano, tanto verticais como
horizontais, pois é impossível induzir deformações sem induzir forças axiais às quais as barras das treliças
conseguem resistir. Esta estrutura tridimensional aumenta significativamente a rigidez e resistência do
edifício e, se devidamente ligada às paredes de alvenaria, induz um funcionamento de conjunto que tira o
melhor partido possível de cada tipo de material e elemento estrutural, capacitando o edifício para resistir
a forças horizontais (como as forças sísmicas).
76
Num estudo efectuado sobre um edifício original pombalino (Lopes, Bento, Cardoso [14]) é realçado o
facto de a resistência sísmica do edifício pombalino estudado (cuja genial concepção estrutural data de há
250 anos) se aproximar do valor regulamentar actual, se se garantir a resistência adequada às ligações
entre a gaiola pombalina e as fachadas.
Pelas suas características estruturais, pela inovação que constituiu e pela escala a que foi aplicada, a
estrutura dos edifícios da Baixa é um dos maiores valores patrimoniais desta área (se não o maior),
apresentando-se a gaiola pombalina como um marco na história da construção, não só nacional mas
também internacional.
Apesar da excelente qualidade estrutural (e também arquitectónica, embora não constitua um
aspecto inovador), os edifícios originais pombalinos foram sendo modificados ao longo dos tempos –
facto que se deveu sobretudo a pressões especulativas e modificações de uso.
Algumas das alterações introduzidas, como o aumento do número de pisos, a remoção de frontais
interrompendo a estrutura tridimensional da gaiola (que são geralmente substituídos por elementos
metálicos ou em betão armado), o corte das diagonais dos frontais ou ainda o corte de pilares no piso
térreo, provocaram graves efeitos na estrutura original, aumentando a vulnerabilidade dos edifícios às
acções sísmicas. Este tipo de alterações prejudica realmente a estrutura dos edifícios pombalinos, por
exemplo ao reduzir a rigidez e resistência a forças horizontais pela remoção de elementos da estrutura
triangulada da gaiola e substituição por uma estrutura rectangular.
Apesar destes exemplos de intervenções nos edifícios pombalinos, que resultaram no
enfraquecimento da sua estrutura, não se pode esquecer que alguns dos motivos que levaram às
alterações nos edifícios são válidos.
O estudo prático apresentado no capítulo 4, Recuperação de um Edifício Pombalino, teve como
objectivo mostrar que se se quiser reabilitar os edifícios pombalinos é fundamental adaptar os edifícios às
necessidades e usos actuais, compatibilizando este objectivo com a preservação da sua estrutura e
garantindo níveis de segurança aceitáveis aos seus utentes. Estas ambições serão válidas desde que o
caminho para as obter não interfira com a preservação da estrutura original – facto que foi demonstrado
na terceira parte do mencionado capítulo, relativo à Recuperação da estrutura pombalina e reabilitação do
edifício, onde se apresentam algumas medidas que compatibilizam a alteração da utilização
(aproximando-a das necessidades espaciais contemporâneas) com a manutenção e recuperação da
estrutura original.
As futuras intervenções em edifícios pombalinos devem partir do conhecimento profundo da
construção original, em paralelo com o levantamento das alterações estruturais sofridas por cada edifício.
Estas bases são essenciais para a compreensão do comportamento estrutural do edifício e para se poder
distinguir os elementos indispensáveis à estrutura dos que se poderiam retirar sem quaisquer implicações
no comportamento estrutural. De uma forma muito simples, é fundamental distinguir os frontais
(elementos constituintes da gaiola) dos tabiques (paredes de compartimentação sem função estrutural),
para que se possa proceder à manutenção ou recuperação, no caso da existência de frontais retirados, de
77
todos os elementos estruturais – aqui se incluem também as paredes meeiras, de separação dos vários
edifícios bem como os pilares do piso térreo.
Estas intervenções exigem um grande esforço de financiamento, e por este motivo é inviável
ponderar a recuperação da generalidade dos edifícios pombalinos com o objectivo único de preservar a
estrutura. Tratando-se de edifícios, é necessário dotá-los de aspectos que os tornem aptos a ser utilizados
nos dias de hoje, quer se tratem de adaptações para usos habitacionais, para hotéis, para escritórios… Por
este motivo é importante ponderar cada caso em particular, podendo justificar-se a escolha por uma
intervenção menos restritiva (ou seja, que não leve tanto em consideração o princípio da invasividade
mínima) nos casos em que a preservação o mais fiel possível do original venha pôr em causa aspectos
relacionados com a segurança e comodidade dos utentes – que podem ser essenciais em alguns
projectos de reabilitação para que possam ser economicamente viáveis (como é o exemplo da inclusão de
elevadores, abordado no capítulo 4.3, Recuperação da estrutura pombalina e reabilitação do edifício).
Estas questões foram ilustradas num caso de estudo, no qual se identificaram os elementos a
preservar e outros que poderiam ser removidos para satisfazer necessidades espaço-funcionais actuais, no
sentido de viabilizar economicamente a intervenção de reabilitação.
É fundamental reter a necessidade de recuperação da Baixa Pombalina, salientando-se a procura da
obtenção de maior segurança para os actuais utilizadores dos edifícios bem como a importância da
transmissão em segurança às gerações futuras deste património, levando em consideração a protecção
contra futuros sismos.
As intervenções de reabilitação de edifícios pombalinos devem ter o objectivo de os aproximar ao seu
desenho original, corrigindo as alterações que tenham posto em risco o seu comportamento estrutural,
através de uma arquitectura condicionada pelo equilíbrio existente entre a preservação o mais fiel
possível da construção original e a sua adaptação às necessidades espaço-funcionais actuais.
Este trabalho indica que a viabilização económica de novos usos para estes edifícios é compatível
com a preservação das qualidades originais destes edifícios, desde que estes aspectos sejam devidamente
ponderados no projecto de reabilitação, desde o início.
78
5.3 Recomendações para desenvolvimentos futuros
O trabalho realizado culminou numa proposta exemplificativa de reabilitação de um conjunto de
edifícios localizados na Baixa. Alguns elementos que constituíram esta proposta não devem ser encarados
como taxativos. Por exemplo, a localização e os materiais que se pensaram utilizar para o elevador que
seria incluído no edifício são perfeitamente discutíveis, bem como a necessidade da sua introdução num
edifício cujo uso seria habitacional. Da mesma forma, a opção pela utilização de frontais abertos, embora
possa ser bastante atractiva do ponto de vista arquitectónico (pelas vantagens que traz ao nível espacial,
ao nível da iluminação e ventilação dos espaços interiores) ou do ponto de vista meramente estético,
pode ser um pouco polémico em termos estruturais uma vez que o papel das alvenarias de enchimento
dos frontais não é consensual.
Numa situação de reabilitação real, estas hipóteses deveriam ser estudadas com mais rigor,
nomeadamente através de ensaios e inspecções do edifício que averiguassem a qualidade dos materiais
existentes (sendo eles de elementos estruturais – como as madeiras que constituem a gaiola – ou de
elementos não estruturais – como as alvenarias de enchimento dos frontais).
Ainda em relação a estes aspectos, cujo interesse não é, muito provavelmente, apenas académico ou
profissional (veja-se o interesse dos proprietários dos edifícios ou dos moradores ou utilizadores dos
mesmos), poderiam ser desenvolvidos alguns debates públicos que sondassem as opiniões dos actuais e
potenciais utilizadores destes edifícios. Estes debates deveriam ser antecedidos por conferências ou
outros meios de divulgação que informassem os interessados do valor patrimonial dos edifícios
pombalinos, da capacidade de resistência da estrutura de gaiola, das possíveis soluções de reabilitação
dos edifícios…
Por outro lado seria interessante fomentar o desenvolvimento de trabalhos sobre o tema da
reabilitação de edifícios pombalinos, com o objectivo de se construir uma base sólida teórica para o
processo de reabilitação real.
É neste sentido que se propõe um alargamento deste estudo a quarteirões pombalinos típicos (em
poucas palavras, com um saguão interior comum a todos os edifícios constituintes do quarteirão), ou a
edifícios pombalinos típicos (leia-se, com uma frente, ou duas, no caso de edifícios de gaveto, para a rua e
com uma ou duas frentes para o interior de quarteirão). Estes estudos seriam bastante úteis para se poder
falar em reabilitação dos quarteirões pombalinos, e numa recuperação do património e revitalização
consciente da Baixa, especialmente se encarada como uma intervenção global – é importante referir o
valor de conjunto patrimonial da Baixa Pombalina, que não se esgota num só edifício; pelo contrário, a
reconstrução da Baixa deve encarar toda aquela área de Lisboa como um todo coerente.
79
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] AA/VV – Estudo da Baixa Pombalina, Primeira Parte III, Faculdade de Arquitectura, Universidade Técnica
de Lisboa, 1999.
[2] APPLETON, João – Reabilitação de Edifícios Antigos, Patologias e tecnologias de intervenção, 1ª Edição,
Edições Orion, Setembro de 2003.
[3] AYRES, Cristóvão – Manuel da Maia e os Engenheiros Militares Portugueses no Terramoto de 1755 Lisboa:
Imprensa Nacional, 1910, pp. 25-27
[4] BENTO, Rita; LOPES, Mário; CARDOSO, Rafaela – “Comportamento Sísmico de um Edifício Pombalino”,
Revista Arquitectura e Vida, Lisboa, nº 55, Dezembro de 2004, pp. 24-29.
[5] BENTO, Rita; LOPES, Mário; CARDOSO, Rafaela – “Vulnerabilidade da Baixa Pombalina”, Revista
Arquitectura e Vida, Lisboa, nº 54, Novembro de 2004, pp. 25-29.
[6] CARDOSO, Rafaela; LOPES, Mário; BENTO, Rita – “Edifícios de alvenaria de Lisboa – Avaliação e
Estratégias de Reforço Sísmico”, Revista Engenharia e Vida, Lisboa, nº 17, Outubro de 2005, pp. 26-
36.
[7] CARDOSO, Rafaela – Vulnerabilidade Sísmica de Estruturas Antigas de Alvenaria – Aplicação a um Edifício
Pombalino, Dissertação para a obtenção do grau de mestre em Engenharia de Estruturas, Instituto
Superior Técnico, Universidade Técnica de Lisboa, Outubro de 2002.
[8] CÓIAS, Vítor – “Reabilitação Sísmica de Edifícios Pombalinos: concepção e projecto”, Revista
Engenharia e Vida, Lisboa, nº 17, Outubro de 2005, pp. 64-69.
[9] CRUZ, José Paulo Mendes Dias – Deterioração, reparação e reforço de estruturas de madeira, Tese para a
obtenção do grau de mestre em Construção, Instituto Superior Técnico, Universidade Técnica de
Lisboa, 1993.
[10] FRANÇA, José Augusto – Lisboa Pombalina e o Iluminismo, 3ª Edição, Lisboa: Bertrand Editora, 1987.
[11] FRANÇA, José Augusto – A Reconstrução de Lisboa e a Arquitectura Pombalina, 3ª Edição, Lisboa:
Bertrand Editora, 1987.
[12] FRANÇA, José Augusto; MATEUS, João Mascarenhas; APPLETON, João; RODEIA, João – A Baixa
Pombalina e a sua importância para o Património Mundial: Comunicações das Jornadas de 9 e 10 de
Outubro de 2003, Câmara Municipal de Lisboa, Pelouro do Licenciamento Urbanístico e
Reabilitação Urbana, 2004.
80
[13] LEITÃO, Luiz Augusto – Curso elementar de Construções, Escola Central da Arma de Engenharia, Estado
Maior do Exército. Lisboa: Imprensa Nacional, 1896.
[14] LOPES, Mário; BENTO, Rita; CARDOSO, Rafaela – “Segurança estrutural da Baixa Pombalina”, Revista
Semestral de Edifícios e Monumentos, Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais,
Setembro 2004, 176-181.
[15] MASCARENHAS, Jorge – Evolução do Sistema Construtivo dos Edifícios de Rendimento da Baixa
Pombalina em Lisboa, Relacionada com as Condições Sísmicas do Local, 3º Encontro Sobre
Sismologia e Engenharia Sísmica, IST, Lisboa, 1997.
[16] MASCARENHAS, Jorge – Baixa Pombalina, Algumas Inovações Técnicas, 2º ENCORE, LNEC, Lisboa, 1994.
[17] MASCARENHAS, Jorge – Sistemas de Construção V – O Edifício de Rendimento da Baixa Pombalina de
Lisboa. Lisboa, Edição Livros Horizonte, 2004.
[18] MATEUS, João Mascarenhas – Baixa Pombalina: 250 anos em imagens, Lisboa, Câmara Municipal de
Lisboa, 2004.
[19] PASSOS, José Manuel da Silva – O Bilhete-postal Ilustrado e a História Urbana de Lisboa, 2ª Edição,
Editorial Caminho S.A., Lisboa, 1990.
[20] PINHO, Fernando Farinha da Silva – Sistematização do estudo sobre paredes de edifícios antigos: análise
de casos, Tese para a obtenção do grau de mestre em Construção, Instituto Superior Técnico,
Universidade Técnica de Lisboa, 1995.
[21] SANTOS, Vítor Lopes – Descrição do sistema construtivo pombalino, Lisboa, 1989.
[22] SANTOS, Maria Helena Ribeiro – A Baixa Pombalina. Passado e Futuro, Livros Horizonte, Lisboa, Janeiro
de 2000.
[23] Regulamento Geral das Edificações Urbanas, Decreto-Lei n.º 38 382 de Agosto de 1951.
81
ANEXOS
82