tese final - césar
TRANSCRIPT
-
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
CSAR AUGUSTO DE ASSIS SILVA
Entre a deficincia e a cultura:
Anlise etnogrfica de atividades missionrias com surdos
SO PAULO
2010
-
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Entre a deficincia e a cultura:
Anlise etnogrfica de atividades missionrias com surdos
Csar Augusto de Assis Silva
Tese apresentada ao Programa de Ps- Graduao em
Antropologia Social do Departamento de
Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e
Cincias Humanas da Universidade de So Paulo,
para a obteno do ttulo de Doutor em Antropologia
Social.
Orientador: Prof. Dr. Jos Guilherme Cantor Magnani
SO PAULO
2010
-
Aos meus pais
Por tudo o que sou
-
AGRADECIMENTOS
Quero agradecer a todas as pessoas que contriburam nessa longa jornada.
Ao meu orientador, Jos Guilherme Cantor Magnani, por ter acreditado em meu
potencial, desde a graduao. Agradeo tambm pelo modo generoso como me orientou,
sempre presente, o que permitiu o meu contnuo desenvolvimento. Sem o seu constante
estmulo etnografia este trabalho no teria sido possvel. Alm de um orientador, tive o
prazer de ter um grande parceiro em muitas pesquisas de campo.
Aos professores Paula Montero, Jlio Simes, Cristina Pompa e Laura Moutinho,
pela participao valiosa nas bancas de qualificao, respectivamente, do mestrado e do
doutorado.
Aos funcionrios do Departamento de Antropologia, Celso, Edinaldo, Ivanete, Rose
e Soraya.
s minhas queridas amigas Jacqueline Teixeira e Priscila Almeida que contriburam
at o ltimo momento com este trabalho. Vocs so minhas irms na academia e parte
fundamental do meu processo de formao. Devo muito a vocs.
Aos muitos colegas que esto ou que j passaram pelo NAU. Em especial, os
vinculados ao NAU Surdos, Jacqueline Teixeira, Priscila Almeida, Laura Soares, Anglica
Durante, Bernard Guerrieri, Fernanda Squariz, Nrishinro Mahe, Leslie Sandes, Cibele
Assnsio e Ivo Alves. Obrigado pelas trocas, apoio e companhia.
Aos colegas do grupo de pesquisa Estudos da Comunidade Surda (ECS), sobretudo,
Leland McCleary, Evani Viotti, Tarcsio Leite, Andr Xavier, Carol Casatti e Renata
Moreira. Sempre foi timo aprender com vocs.
-
Aos muitos colegas do PPGAS, especialmente Eva Scheliga, Anna Catarina, Thas
Waldman, Enrico, Flor, Adalton, Glebson, Glucia, Adriana, Jessie Sklair, Daniel DeLucca,
Daniela Alfonsi, Alexandre Barbosa, Gabriel Pugliese e Thas Brito.
Ao Leonardo Siqueira Antonio, pelo apoio em assuntos de ordem grfica.
Aos colegas que fiz em campo e tambm colaboradores desta pesquisa. Sou muito
grato por terem partilhado um pouco de suas vidas comigo, especialmente, Ricardo Sander,
Roberto Cardoso, Odirlei Roque de Faria, lvaro Conceio, Marco Antonio Arriens,
Neivaldo Zovico, Juliana Fernandes, Cyntia Teixeira, Neiva Aquino, Felipe Barbosa, Ir.
Marta Barbosa, Larissa Pissinati, Marli Celada, Eduardo Rocha, Tiago Bezerra, Sylvia Lia,
Anah Mello e Fabiano Campos.
Aos meus queridos grandes amigos Daniele Cristine, Jacqueline Teixeira, Maurcio
Rodrigues, Priscila Almeida, Ricardo Ferreira, Simone Toji e Thiago Rezende. Obrigado por
estarem sempre por perto.
Agradeo minha famlia. Aos meus pais, Tita e Nice, aos meus irmos, Marcos e
Rosana, minha v Ciana, ao meu cunhado Rogrio e aos meus sobrinhos Fernanda e
Felipe. Obrigado por todo amor e apoio que vocs me do. Vocs so as pessoas mais
importantes do mundo para mim.
Esta pesquisa foi possvel graas ao financiamento, em diferentes momentos, da
Coordenadoria de Aperfeioamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES) e do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq).
-
RESUMO
O objetivo desta reflexo empreender uma anlise sobre o processo de constituio
da surdez como particularidade tnico-lingstica. Primeiramente, o foco privilegiado a
comparao etnogrfica e histrica das prticas de algumas instituies religiosas - Igreja
Catlica, Igreja Batista e Testemunhas de Jeov que tm se ocupado da atividade
missionria com surdos. Como procedimento metodolgico, a ateno esteve voltada para a
dimenso performativa dos rituais dessas instituies, com a inteno de revelar como elas
produzem diferenas entre pessoas surdas e ouvintes em termos de lngua e cultura.
Compem tambm o universo emprico, dicionrios religiosos e manuais de evangelismo
referentes surdez. Em um segundo momento, a inteno revelar a circulao de agentes
religiosos em outras instncias, tais como, movimento social, instituies universitrias e
mercado (que emerge relacionado lngua brasileira de sinais libras). As trocas entre esses
domnios religiosos e no religiosos foram constitutivas para o engendramento da surdez
como particularidade tnico-lingstica traduzida em normatividade jurdica no interior do
Estado-nao.
Palavras-chave: Surdez. Lngua Brasileira de Sinas Libras. Estudos Surdos. Atividade
missionria. Movimento Social.
-
ABSTRACT
The aim of this study is analyze the process of deaf as ethno-linguistic particularity.
First of all we built an ethnographic and historical comparison between the practices of some
religious institutions - Catholic Church, Baptist Church and Jehovahs Witnesses - that have
engaged in missionary activity with the deaf. As a methodological procedure, attention was
focused on the performance of these institutions rituals, with the intention of revealing how
they produce differences between deaf and hearing people in terms of language and culture.
Also the empirical universe constitutes religious dictionaries and evangelism manuals
relative to deaf. In a second moment, the intention is to reveal the movement of religious
agents in other instances, such as social movements, academic institutions and markets (that
emerge related to the Brazilian Sign Language -LBS). As will be shown, the exchanges
between these domains religious and nonreligious were constitutive for the engendering of
deaf as ethno-linguistic particularity in legal universe inside the nation-state.
Key-words: Deaf. Brazilian Sign Language. Deaf Studies. Missionary activity. Social
Movement.
-
SUMRIO
INTRODUO ............................................................................................................................... 10
1. LNGUA DE SINAIS E EDUCAO RELATIVA SURDEZ ............................................................ 14 2. PARADOXOS DA SURDEZ: ENTRE A DEFICINCIA E A CULTURA ............................................. 21 3. QUESTES DA TESE ................................................................................................................... 24 4. SOBRE O LEVANTAMENTO DOS DADOS EMPRICOS ................................................................. 27 5. ESTRUTURA DA TESE ................................................................................................................ 29
1. IGREJA CATLICA E SURDEZ: NORMATIVIDADES HETEROGNEAS ................ 31
1.1. NORMATIVIDADES HETEROGNEAS NOS RITUAIS CATLICOS ............................................ 33 1.1.1. PASTORAL DOS SURDOS SO FRANCISCO DE ASSIS: O RITO DA MISSA PARA SURDOS ............ 33 1.1.2. PASTORAL DOS DEFICIENTES AUDITIVOS DE MOEMA: AS MISSAS COM INTRPRETE DE LNGUA DE SINAIS .............................................................................................................................. 41 1.2. O PARADOXO DA IGREJA CATLICA NA SURDEZ: INCORPORAO DE NORMATIVIDADES EXTERIORES E REFERNCIA DE BASE .............................................................................................. 47 1.3. IGREJA CATLICA E EDUCAO ESPECIAL RELATIVA SURDEZ ....................................... 52 1.3.1. A HISTRIA CANNICA DA SURDEZ ...................................................................................... 55 1.4. ASSOCIAES DE SURDOS-MUDOS E A IGREJA CATLICA .................................................... 62 1.5. AS PUBLICAES DO PADRE EUGNIO OATES ..................................................................... 65 1.6. CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................................ 70
2. A MISSO PROTESTANTE COM O POVO SURDO: O ENGENDRAMENTO DA SURDEZ NO REGISTRO PARTICULARISTA IGUALITRIO ............................................. 72
2.1. O PARTICULARISMO IGUALITRIO DE LUTERANOS NA SURDEZ: A EMERGNCIA DA LINGUAGEM DE SINAIS DO BRASIL E DA COMUNICAO TOTAL ...................................................... 74 2.2. HISTRIA E DISSEMINAO DA ATIVIDADE MISSIONRIA BATISTA COM SURDOS.............. 83 2.2.1. O MINISTRIO COM SURDOS DA JUNTA DAS MISSES NACIONAIS: DA COMUNICAO TOTAL AO BILINGISMO ............................................................................................................................... 84 2.2.2. AS OFICINAS DO PASTOR MARCO ANTONIO ARRIENS COMO AGNCIA DIVULGADORA DA PERFORMANCE DA INTERPRETAO .................................................................................................. 89 2.3. CARACTERSTICAS DAS CONGREGAES BATISTAS E FUNDAMENTAO TEOLGICA DO MINISTRIO COM SURDOS ................................................................................................................. 93 2.4. A PERFORMANCE DA INTERPRETAO E A DISPOSIO DISCIPLINAR QUE SEPARA SURDOS E OUVINTES ....................................................................................................................................... 95 2.5. O EFAT SIMBOLICAMENTE OPERADO: SENDO OUVINTE PARA COM OS OUVINTES........... 102 2.6. ESCOLA BBLICA DOMINICAL E A PARTICULARIDADE LINGSTICA................................. 103 2.7. CONSIDERAES FINAIS ...................................................................................................... 105
3. A UNIVERSALIDADE DO GOVERNO DO REINO DE DEUS E A PARTICULARIDADE DAS LNGUAS: AS CONGREGAES EM LNGUA DE SINAS DA
TESTEMUNHAS DE JEOV ..................................................................................................... 107
-
3.1. A TEOLOGIA MILENARISTA DA TESTEMUNHAS DE JEOV: DISTINGUINDO-SE DAS DEMAIS IGREJAS CRISTS............................................................................................................................ 108 3.2. ESTTICA DA ELEIO: ORDEM E PUREZA ......................................................................... 114 3.3. A CONGREGAO EM LNGUA DE SINAIS ............................................................................ 116 3.4. USOS DA LNGUA DE SINAIS: O DICIONRIO LINGUAGEM DE SINAIS.................................. 122 3.5. DIFERENAS NO MARCADAS ENTRE IRMOS ................................................................... 126 3.6. CONSIDERAES FINAIS ...................................................................................................... 129
4. AGENTES RELIGIOSOS EM CIRCULAO: MOVIMENTO SOCIAL, INTELECTUAIS E MERCADO ................................................................................................. 131
4.1. AS INSTITUIES RELIGIOSAS E A DENOMINADA COMUNIDADE SURDA ............................ 132 4.2. A REPRESENTAO POLTICA DA FENEIS NA CONFORMAO DA PARTICULARIDADE LINGSTICA................................................................................................................................... 138 4.3. INTELECTUAIS E A FENEIS NO ENGENDRAMENTO DA SURDEZ COMO PARTICULARIDADE LINGSTICA................................................................................................................................... 147 4.4. MOVIMENTO SOCIAL E RELIGIO: CIRCULAO SISTEMTICA. ...................................... 150 4.5. O MERCADO DA LIBRAS ....................................................................................................... 155 4.6. CONSIDERAES FINAIS ...................................................................................................... 163
CONCLUSO ............................................................................................................................... 164
1. A SURDEZ NO REGISTRO PARTICULARISTA IGUALITRIO .................................................... 166 2. A SURDEZ NO REGISTRO UNIVERSALISTA HIERRQUICO ..................................................... 169 3. SOBREPOSIES DE FORMAES DISCURSIVAS .................................................................... 172 4. A PASTORAL DAS CONSCINCIAS: DO CORPO INDIVIDUAL POPULAO ........................... 173 5. ESTRATGIA SEM SUJEITO: A SURDEZ NO ESTADO DE EPISTEME MULTICULTURAL .......... 177
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS......................................................................................... 181
-
10
INTRODUO
A Associao Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Crvico Facial publicou,
em 29 de outubro de 2009, uma nota intitulada ORL em prol da informao na TV Globo1.
A matria em questo informava que um grupo formado por quatro mdicos
otorrinolaringologistas Prof. Dr. Ricardo Ferreira Bento, Prof. Dr. Silvio Caldas, Prof. Dr.
Shiro Tomita e Prof. Dr. Rogrio Hamershimidt participou de um almoo com diretores do
Marketing Social da Rede Globo de Televiso, Luiz Erlanger e Albert Alcouloumbre, para
conversarem sobre surdez, tema presente na novela das 18 horas da emissora, denominada
Cama de Gato. A novela conta com um personagem, de nome Tarcsio, que era pianista e
perdeu a audio.
Informa o professor Dr. Ricardo Bento na nota, sobre os objetivos da comitiva que
ele organizou:
Entregamos uma carta ao Erlanger, assinada por dez professores doutores de vrias universidades
federais e estaduais Prof. Dr. Rubens Vuonno de Brito Neto, Prof. Dr. Luiz Lavinsky, Prof. Dr.
Shiro Tomita, Prof. Dr. Paulo Porto, Prof. Dr. Silvio da Silva Caldas Neto, Prof. Dr. Andr Luis
Sampaio, Prof. Dr. Robinson Koki Tsuji, Prof. Dr. Rogrio Hamershimidt, alm de mim pedindo
que se preste ateno no implante coclear como tendncia mundial em tratamento de surdez severa e
profunda e que consideramos um retrocesso o uso de Libras na novela.
Na referida reunio, os mdicos informaram aos diretores da Rede Globo os
resultados positivos da cirurgia de implante coclear2 e o seu crescimento ao redor do mundo,
contabilizando mais de 300 mil implantes. Informaram tambm sobre a portaria aprovada
pelo Ministrio da Sade SUS-MS 1.287 de 1999 que garante o tratamento gratuito para
a surdez severa e profunda, tendo j sido realizadas 3 mil cirurgias de implante coclear no
Brasil.
1 Disponvel em: http://www.sborl.org.br/conteudo/secao.asp?id=2092&s=51 Acesso em 09/03/2010.
2 A cirurgia de implante coclear consiste na introduo de eletrodos na cclea com o objetivo de ativar
artificialmente, por meio de eletrochoques, as clulas ciliadas. Esses estmulos so decodificados como sons
pelo crebro. No Brasil, essas cirurgias so realizadas, sobretudo, nos hospitais pblicos vinculados a grandes
universidades.
-
11
A carta entregue aos diretores da emissora foi encaminhada s autoras da novela,
Duca Rachid e Thelma Guedes, para que elas obtivessem conhecimento sobre essa nova
realidade da surdez. O objetivo da iniciativa dos mdicos foi garantir que a novela global
passasse a informar sobre tal tratamento, influenciando positivamente a escolha das famlias
que possuem filhos com surdez para a realizao da cirurgia do implante coclear. Afirma
tambm o mdico na nota:
Os telespectadores da novela que vivenciam o problema podero prejudicar a deciso de famlias
que viro a tratarem seus filhos surdos. Temos que respeitar a vontade daqueles adultos que no
tiveram a oportunidade de serem implantados e hoje desejam continuar surdos. Mas no se pode negar
s crianas pequenas, que ainda no podem decidir por si prprias, o direito de serem ouvintes.
Diante de tal posicionamento dos referidos mdicos, em que se afirmou ser o uso da
lngua brasileira de sinais (libras)3 um retrocesso, sendo fundamental, portanto, garantir s
crianas brasileiras com surdez a cirurgia de implante coclear para fazer valer o seu direito
de ouvirem, outro grupo de intelectuais reagiu prontamente. Membros do Grupo de Trabalho
Lngua de Sinais da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Lingstica
(ANPOL) juntamente com outros especialistas em lngua de sinais4 enviaram, em 11 de
novembro de 2009, outra carta5 aos mesmos diretores da Rede Globo, desaprovando alguns
dos argumentos dos referidos mdicos.
Afirmam os intelectuais da lngua de sinais:
3 A categoria legtima atual, presente na legislao e utilizada por intelectuais, lngua brasileira de sinais,
com abreviao libras. Apesar de geralmente ser escrita tambm como Libras ou LIBRAS, nesta anlise ser
utilizada com fins de padronizao a grafia em caixa baixa, libras, exceto em citaes textuais em que esteja
grafada de outro modo. Outras categorias tambm utilizadas para nomear essa lngua sempre estaro em itlico
e referidas a contextos comunicativos e histricos bem determinados. O termo no marcado ser lngua de sinais. Quando a anlise referir-se somente ao lxico atribudo a essa lngua, se usar o termo sinal, que equivale ao termo palavra em lngua oral. 4 Assinaram essa carta: Dr. Tarcsio de A. Leite (UFSC); Dra. Ana Claudia B. Lodi (UNIMEPI); Dra. Regina
Maria de Souza (UNICAMP); Dr. Leland McCleary (USP); Dra. Wilma Favorito (INES); Dra. Rossana Finau
(CEFET-PR); Dra Marianne Stumpf (UFSC); Ms. Myrna S. Monteiro (UFRJ); Dra Maria Cristina Pereira
(PUC-DERDIC-SP); Dra Ana Regina e Souza Campello (UFSC); Dr. Fernando Capovilla (USP); Dra. Maria
Ceclia Moura (PUCSP); Dra. Sandra Patrcia do Nascimento (FENEIS-DF); Dra. Cllia Regina Ramos
(UFRJ); Dra. Ronice M. de Quadros (UFSC). 5 Disponvel em: http://viniciusnascimentoempauta.blogspot.com/2009/11/manifestacao-de-pesquisadores-da-
area.html /Acesso em 09/03/2010.
-
12
Os surdos brasileiros esto espalhados no pas e formam a Comunidade Surda Brasileira. Esses
surdos usam a Lngua Brasileira de Sinais, reconhecida por meio da Lei de Libras 10.436, de 2002.
uma lngua que apresenta todas as propriedades lingsticas de quaisquer outras lnguas humanas, ou
seja, por meio dela possvel falar sobre quaisquer assuntos (desde o mais trivial at o mais
acadmico, tcnico e cientfico).
Em consonncia com a Declarao Universal dos Direitos Lingsticos UNESCO6,
os referidos intelectuais afirmam que qualquer comunidade lingstica tem o direito de usar
a sua lngua nativa. Alm disso, mencionam que conforme a Federao Mundial de Surdos,
o Brasil um dos pases mais avanados quanto s polticas lingsticas de reconhecimento
da lngua de sinais. Assim, conclui esse segundo grupo de intelectuais:
Portanto, a manifestao dos otorrinolaringologistas REDE GLOBO, dizendo que a utilizao da
Libras na novela Cama de Gato considerada um retrocesso improcedente! Pelo contrrio, a
REDE GLOBO, como j fez em outros momentos, est incluindo uma das lnguas nacionais do pas
em suas novelas. Fazendo isso, a REDE GLOBO, alm de incluir os surdos brasileiros, usurios da
Libras, na sociedade, est reconhecendo o estatuto lingstico social de grupo social minoritrio que
faz parte do pas. Essa atitude louvvel e representa, sim, uma postura atual e atenta realidade
brasileira.
Dando continuidade ao seu discurso marcadamente igualitrio, os intelectuais da
lngua de sinais argumentam a favor da vantagem de ser bilnge em um mundo globalizado.
Assim, desautorizaram qualquer sugesto mdica de que a cirurgia do implante coclear deva
estar atrelada proibio do uso dessa lngua. Para legitimar o seu argumento, mencionam
na referida carta outras equipes mdicas que recomendam explicitamente o uso de lngua de
sinais na reabilitao auditiva de crianas submetidas ao implante coclear, refutando a
posio dos mdicos.
Assim, a controvrsia narrada demonstra de modo explcito o choque de duas
concepes de surdez. De um lado, intelectuais vinculados ao saber mdico, professores de
diversas instituies pblicas federais e estaduais, amparados por uma portaria do Ministrio
da Sade, procuram garantir a publicizao da tendncia mundial no tratamento da surdez, a
saber, a cirurgia do implante coclear. Neste caso, a lngua de sinais considerada um
6 Disponvel em: http://www.linguistic-declaration.org/index.htm Acesso em 03/03/2010.
-
13
retrocesso, algo que, portanto, deveria ficar no passado, j que crianas brasileiras com
surdez severa e profunda podem passar a ouvir. claramente perceptvel nos argumentos
mobilizados pelos mdicos, que a surdez neste caso est enquadrada em um registro
universalista hierrquico. Nessa concepo, o surdo um outro, que fundamentalmente no
ouve, e que precisa ascender condio de igualdade do ouvinte, este sobretudo um ser
humano que ouve, por meio de formas de normalizao. Atualmente, o modo mais avanado
em termos tecnolgicos dessa normalizao se d via cirurgia de implante coclear, que
complementada com a oralizao, a saber, o ensino da articulao oral e da leitura labial.
Nesse caso, a desvantagem de ser surdo explcita, pois o que estrutura essa concepo a
falta de audio, o que compromete a plena comunicao com os outros, vistos como os
normais. Por conta disso, a lngua de sinais vista como um recurso ltimo daqueles surdos
que no tiveram a oportunidade de se tornarem ouvintes por meio do implante coclear.
Do outro lado esto os intelectuais que mobilizam o saber lingstico tambm
composto em sua maioria por professores universitrios de instituies pblicas federais e
estaduais , amparados na legislao do Estado-nao sobre a lngua de sinais e na
conveno internacional de direitos lingsticos. Esta parte argumenta a favor da igualdade
possvel entre surdos e ouvintes por meio do reconhecimento das particularidades
lingsticas em questo. Longe de ser um retrocesso ou algo a ser tolerado, a libras um
capital simblico a mais que confere vantagens sociais, disponvel, sobretudo, para as
pessoas com surdez em tempos de globalizao. Neste caso, o implante coclear que pode
ser tolerado (desde que ele no signifique a proibio do uso da lngua de sinais), contudo,
ele jamais visto como algo fundamentalmente necessrio. Como deve estar claro, os
argumentos dos intelectuais da lngua de sinais esto estruturados em um registro
particularista igualitrio. Neste caso, o surdo um outro que fundamentalmente utiliza uma
lngua especfica e que somente pode se tornar um igual no interior do Estado-nao por
meio do reconhecimento de sua particularidade lingstica, j que membro de uma
comunidade lingstica minoritria, a denominada comunidade surda brasileira7.
7 Comunidade surda tambm uma categoria nativa e ser sempre utilizada em itlico. Geralmente ela
utilizada para nomear a complexa rede que integra instituies diversas como escolas especiais, associaes,
igrejas e pontos de encontro. Contudo, ela tambm categoria poltica, j que representantes polticos,
sobretudo vinculados FENEIS, ocupam posies de porta-vozes da comunidade surda.
-
14
Ambos os lados da controvrsia no poupam o adjetivo brasileiro a controvrsia
trata do surdo brasileiro, da comunidade surda brasileira e da referncia ao Brasil em
suas argumentaes. As duas partes esto igualmente legitimadas e institucionalizadas por
aparatos estatais diversos, sobretudo sade e educao, que desenham polticas pblicas
especficas para a gerncia da populao com surdez, que de acordo com dados do IBGE
2000, soma 5.735.099 pessoas, perfazendo 3,38% dos brasileiros8. Ambas esto se
posicionando a favor de uma determinada maneira de intervir diretamente no corpo surdo,
quer seja pelo implante coclear, quer seja pela exposio a uma lngua que pode ser
aprendida sem fazer recurso audio, de modo espontneo. Desse modo, de maneira
paradigmtica, o embate considerado explicita o choque de normatividades que se figuram
como relativamente estveis com relao surdez.
O objetivo fundamental desta tese compreender como, em um processo histrico
recente, se performatizou a surdez afirmada como particularidade lingstica. A anlise que
segue pretende evidenciar como se postula nas imanncias das prticas descontinuidades
entre surdos e ouvintes, formando entre estes diferenas tidas como do plano da lngua e
cultura. Surdo ou ouvinte, nesse caso, no um sujeito anterior s prticas que o constitui,
mas sim uma posio produzida por meio de reiteraes sistemticas9.
1. Lngua de sinais e educao relativa surdez
Afirma a Lei Federal 10.436 de 24 de abril de 2002, que reconhece a libras como um
meio oficial de comunicao:
Art. 1 reconhecida como meio legal de comunicao e expresso a Lngua Brasileira de Sinais
Libras e outros recursos de expresso a ela associados.
Pargrafo nico: Entende-se como Lngua Brasileira de Sinais Libras a forma de comunicao e
expresso, em que os sistemas lingusticos de natureza visual-motora, com estrutura gramatical prpria,
8 A categoria utilizada pelo IBGE 2000 incapaz, com alguma ou grande dificuldade permanente de ouvir. O
total de pessoas com pelo menos alguma deficincia no Brasil de 24.600.256, 14,5% da populao. 9 Por conta disso, nesta anlise, as categorias utilizadas para classificar pessoas que se diferenciam pela audio
estaro grafadas em itlico, so termos nativos referidos a contextos histricos e comunicativos bem
determinados.
-
15
constituem um sistema lingustico de transmisso de idias e fatos, oriundos de comunidade de pessoas
surdas do Brasil.
Essa Lei foi regulamentada pelo Decreto Federal 5626, de 22 de dezembro de 2005,
que institui uma srie de alteraes institucionais na educao em seus diversos nveis e
tambm em agncias concessionrias de servio pblico, para fomentar o uso e a difuso da
libras. Alm disso, o Decreto tambm faz referncia categoria cultura:
Art. 2 Para os fins deste Decreto, considera-se pessoa surda aquela que, por ter perda auditiva,
compreende e interage com o mundo por meio de experincias visuais, manifestando sua cultura
principalmente pelo uso da Lngua Brasileira de Sinais Libras.
Esse dispositivo jurdico o coroamento de um processo bastante complexo que
envolveu diversos saberes e agentes que configuraram a surdez em termos de particularidade
tnico-lingstica. Em termos rigorosamente legislativos, ele se iniciou em 1996, com o
projeto lei da senadora evanglica Benedita da Silva (PT-RJ). Tal projeto expresso de
uma demanda de um movimento social liderado em grande medida pela Federao Nacional
de Educao e Integrao de Surdos (FENEIS), com sede no Rio de Janeiro RJ, entre
outras associaes, e conta com o apoio de intelectuais que tm fomentado h algumas
dcadas a afirmao do estatuto de lngua natural da lngua de sinais falada no Brasil.
As pesquisas cientficas que revelam o estatuto de lngua das lnguas so bastante
recentes. Em 1983, no contexto da Escola Especial Concrdia Centro Educacional para
Deficientes Auditivos, escola vinculada Igreja Evanglica Luterana do Brasil, foi
produzida uma publicao em que se afirma o estatuto de lngua do que ento denominaram
Linguagem de Sinais do Brasil (Hoemann et al, 1983). Integrava a equipe de publicao a
lingista luterana Gldis Rehfeldt, bem como outros intelectuais luteranos e educadores
catlicos vinculados a diversas escolas especiais voltadas para a surdez. Esse livro foi
organizado por Harry e Shirley Hoemann, luteranos, e pelo padre catlico Eugnio Oates.
desse meio que emergem, posteriormente, outras lingistas das lnguas de sinais, que atuam
nesse campo, como Ronice Quadros (UFSC) e Lodenir Karnopp (UFRGS).
Alm dessa linhagem de pesquisa em lngua de sinais proveniente do meio luterano,
necessrio considerar as pesquisas vinculadas Universidade Federal do Rio de Janeiro
-
16
(UFRJ), levadas a cabo por Lucinda Ferreira Brito (1986, 1991, 1993). atribuda a essa
lingista a inaugurao de uma reflexo sistemtica em lingstica das lnguas de sinais no
Brasil. Suas publicaes se iniciaram ainda nos anos 1980 e foram capitais para o processo
de reconhecimento da libras como lngua legtima. sob sua orientao, que emerge
tambm a lingista Tanya de Amara Felipe de Souza (Felipe, 1992, 1993), com trabalhos de
referncia para o reconhecimento dessa lngua.
Em termos internacionais, esse processo de constituio de uma linha de pesquisa
especfica na lingista tambm recente. atribudo ao norte-americano William C Stokoe
a comprovao do estatuto de lngua natural das lnguas de sinais. Esse autor demonstrou,
pela anlise dos sinais da American Sign Language (ASL), que as lnguas de sinais eram
tambm lnguas naturais, uma vez que partilhavam com as lnguas orais os mesmos
princpios de estruturao. Em Sign Language Structure, de 1960, Stokoe demonstra que
possvel identificar nos sinais que constituem o lxico da ASL, uma combinao e
recombinao de um nmero finito de fonemas, ou seja, de unidades desprovidas de
significado, mas capazes de distingui-lo.
A principal diferena entre as lnguas orais e as lnguas de sinais estaria no canal de
expresso e recepo, j que a lngua de sinais se expressaria de modo gestual-visual, e no
oral-auditivo. Levando em conta esse dado, Stokoe designou os fonemas das lnguas de
sinais por quiremas (do gregro quiros mo) que, segundo o autor, teriam trs formas
fundamentais: i) configurao de mo (forma apresentada por dedos e palma quando da
realizao de um sinal), ii) localizao (ponto no corpo ou em frente a ele em que um sinal
articulado) e iii) movimento (forma em que a(s) mo(s) se movem durante a produo de um
sinal). So precisamente esses elementos que, tal como os fonemas das lnguas orais, se
organizam em um sistema produzindo uma lngua.
A lingstica concebe como lngua natural as lnguas que emergem de forma
espontnea de uma comunidade de falantes. De acordo com a lingstica das lnguas de
sinais, as lnguas de sinais so to naturais como qualquer lngua oral, pois emergiram das
comunidades surdas e so passveis de anlise lingstica em diversos planos: fonolgico,
morfolgico, sinttico, semntico e pragmtico. Alm disso, elas desempenham plenamente
todas as funes lingsticas das lnguas orais, estruturando-se de modo equivalente, apesar
de utilizar outro canal de expresso. A argumentao da ordem da fonologia parece
-
17
constituir o elemento primordial para o reconhecimento do estatuto de lngua de diversas
lnguas de sinais, bem como para fomentar pesquisas lingsticas desse objeto em outros
nveis de anlise.
As pesquisas cientficas que afirmam o estatuto de lngua natural das lnguas de
sinais impactam no modo como se concebe a educao de pessoas com surdez. consenso
na bibliografia sobre o tema que h trs grandes perodos dessa educao: o oralismo, a
comunicao total e o bilingsmo (Capovilla, 2001; Skliar, 1998). Esses perodos sero
considerados brevemente para situar o contexto histrico desta pesquisa.
No Brasil, at a dcada de 1980, a educao voltada para a surdez estava posta no
que comumente se denomina oralismo. O objetivo da educao no era propriamente a
transmisso de contedos escolares, mas, fundamentalmente, a reabilitao da surdo-mudez,
pelo ensino da articulao oral e da leitura labial. Essa prtica pedaggica remonta o sculo
XVIII, tendo no alemo Heinicke, educador de surdos, o seu principal expoente. comum
na bibliografia sobre o tema a afirmao de que o processo de oralismo se consolida a partir
do Congresso de Milo, em 1880, quando se definiu como prioritrio para a educao de
pessoas surdas a aquisio de lngua oral (Sacks, 1999).
O oralismo como filosofia pedaggica dominante entra em declnio com a
emergncia da comunicao total. Nesse caso, o objetivo fundamental da educao deixa de
ser a aquisio da lngua oral e diversos modos de comunicao passam a ser utilizados, tais
como a lngua de sinais, a oralidade, a leitura labial, o desenho, a mmica, o teatro, e
quaisquer outros modos de comunicao possvel na sala de aula. O importante passa a ser o
contedo a ser transmitido, e no o modo. Como ser desenvolvido no segundo captulo, a
publicao dos luteranos, intitulada Linguagem de Sinais do Brasil (Hoemann et al, 1983),
tem um papel fundamental na formulao desse modelo de educao no Brasil.
somente a partir dos anos 1990 que emergem as produes cientficas que vo
pleitear o bilingismo como outra etapa da educao especial relativa surdez (Ferreira
Brito, 1995; Quadros, 1997). Nas reivindicaes por uma educao bilnge, afirma-se que a
educao de surdos teria que se dar pela aquisio da lngua de sinais como primeira lngua
(L1), pois essa seria a lngua que a criana poderia adquirir de modo espontneo, natural,
sem instruo especfica, diferentemente da lngua oral, que teria que ser aprendida por um
rigoroso processo de aquisio artificial, que demanda mais tempo e uma terapia individual.
-
18
Tendo a criana adquirido a L1, a lngua oral seria aprendida como segunda lngua (L2), ou
seja, essas lnguas seriam aprendidas em momentos diferentes e como disciplinas escolares
diferentes. Esses seriam os fundamentos de educao bilnge para surdos, sendo esta a
educao que ganhou normatividade jurdica.
No que tange a esta reflexo, de fundamental importncia destacar como ser
considerado o que se entende por lngua de sinais. Dois aspectos de ordem terico-
metodolgica so centrais nesta anlise: i) objetiva-se ter uma postura etnogrfica diante da
definio das categorias consideradas legtimas para nomear a lngua de sinais; ii) visa-se
demonstrar como o processo de afirmao da surdez enquanto particularidade lingstica
implicou a performatizao de uma lngua legtima, em que os seus sinais so utilizados em
separado lngua oral.
Diversas foram as expresses utilizadas para nomear a comunicao gestual-visual
atribuda s pessoas com surdez nas ltimas dcadas. Nos anos 1960, padre Eugnio Oates
utilizou os termos mmicas, gestos e linguagem das mos (Oates [1969], 1988). Nos anos
1980, luteranos utilizam a categoria Linguagem de Sinais do Brasil (Hoemann et al, 1983).
Tambm nos anos 1980, lingistas das lnguas de sinais utilizaram o termo lngua de sinais
dos centros urbanos brasileiros (LSCB) (Ferreira Brito, 1986, 1993; Felipe, 1992, 1993;
Quadros, 1994). Nos anos 1990, testemunhas de Jeov utilizaram linguagem de sinais
(Testemunhas de Jeov, 1992) e batistas utilizaram linguagem e lngua de sinais (Junta das
Misses Nacionais, 1991). A categoria libras parece remontar aos anos 1980, como
comprovam os relatrios da FENEIS e, aps isso, torna-se progressivamente a partir dos
anos 1990 a categoria utilizada amplamente por intelectuais e religiosos, at ganhar
normatividade jurdica no sculo XXI, sendo grafada muitas vezes, como foi afirmado,
como Libras ou LIBRAS. Essa diversidade de categorias ser contemplada no modo como
esta tese est organizada.
Esta reflexo visa demonstrar como, em uma reiterada disciplina nos rituais
religiosos, se produz descontinuidades entre surdos e ouvintes por meio de marcaes de
diferenas lingsticas. Esse processo implica tambm a performatizao da lngua de sinais
como lngua separada da lngua oral. Tendo por fundamento terico a sociolingstica de
Pierre Bourdieu (1998), nesta anlise, lngua no entendida como uma entidade auto-
engendrada passvel de anlise e descrio. Trata-se de entender como, na dinmica da
-
19
performatizao do surdo por meio de prticas disciplinares, relaes de saber-poder
especficas e lutas entre agentes tm emergido fronteiras simblicas que conformam uma
lngua de sinais legtima independente do portugus.
precisamente na luta simblica necessria para a produo de uma lngua legtima
nacional no interior do Estado-nao, ainda em curso, que emerge a libras, entendida como
uma entidade com gramtica prpria, como a legislao citada afirma, amparada em
pesquisas lingsticas. Essa lngua geralmente tida como independente do portugus e
passvel de descrio. Quadros (2004:84), partindo de uma lingstica contrastiva, explicita
uma lista bastante elucidativa de quais seriam as diferenas entre a lngua portuguesa e a
libras:
(1) A lngua de sinais visual-espacial e a lngua portuguesa oral-auditiva.
(2) A lngua de sinais baseada nas experincias visuais das comunidades surdas mediante as
interaes culturais surdas, enquanto a lngua de sinais constitui-se baseada nos sons.
(3) A lngua de sinais apresenta uma sintaxe espacial incluindo os chamados classificadores. A
lngua portuguesa usa uma sintaxe linear utilizando a descrio para captar o uso de
classificadores.
(4) A lngua de sinais utiliza a estrutura tpico-comentrio, enquanto a lngua portuguesa evita
este tipo de construo.
(5) A lngua de sinais utiliza a estrutura do foco atravs de repeties sistemticas. Este processo
no comum na lngua portuguesa.
(6) A lngua de sinais utiliza as referncias anafricas atravs de pontos estabelecidos no espao
que exclui as ambigidades que so possveis na lngua portuguesa.
(7) A lngua de sinas no tem marcao de gnero, enquanto que na lngua portuguesa o gnero
marcado a ponto de ser redundante.
(8) A lngua de sinais atribui um valor gramatical s expresses faciais. Esse fator no
considerado como relevante na lngua portuguesa, apesar de poder se substitudo pela
prosdia.
(9) Coisas que so ditas na lngua de sinais no so ditas usando o mesmo tipo de construo
gramatical na lngua portuguesa. Assim, tem vezes que uma grande frase necessria para
dizer poucas palavras em uma ou outra lngua.
(10) A escrita da Lngua de sinais no alfabtica.
O que Quadros faz um jogo de espelhos que constitui as duas lnguas, definindo
algumas caractersticas como presentes em uma e ausentes na outra. precisamente nesse
jogo que se purifica as caractersticas fundamentais do que consistiria a libras, como em um
-
20
laboratrio para usar um argumento de Latour (1994). Esse tipo de anlise possui funo
performativa, conforma prticas que progressivamente passam a opor o que passa a ser
entendido como duas lnguas independentes. Parece se desenhar o que Bourdieu (1982)
chama de efeito teoria: o que a cincia afirma se performatiza em realidades sociolgicas.
precisamente esse processo poltico e cientfico de reconhecimento de uma lngua
de sinais particular que faz emergir progressivamente um manejo especfico de sinais visto
como estigmatizado10
, isto , no prestigiado, algumas vezes tido como incorreto, que seria
o portugus sinalizado. Esse manejo consiste na desorganizao da separao clara entre o
que seria o portugus e o que seria a libras. Seguindo os argumentos de Quadros, o que
caracterizaria o portugus seria a sua sintaxe linear, j a libras teria uma sintaxe que faria
uso do espao, ou seja, os sinais expressos no estariam na ordem da sintaxe linear do
portugus. De outro modo, o denominado portugus sinalizado consistiria na expresso
gestual-visual por meio de sinais, contudo, eles esto postos na sintaxe linear do portugus.
Um exemplo emprico pode clarear o argumento. Em portugus, um falante pode
dizer a frase, o cachorro entrou na casa. Em libras, entendida como uma lngua
independente do portugus, o falante sinalizaria: CASA + CACHORRO + ENTRAR11
, ou
seja, i) ele construiria espacialmente a casa, utilizando as duas mos unidas pelas pontas dos
dedos, ii) sinalizaria o cachorro, que consiste em utilizar uma mo sobre a boca e o nariz
para marcar o focinho, por fim, iii) sinalizaria de forma direcional a ao do cachorro, com a
mo direita entrando exatamente no espao imaginrio em que a casa foi colocada. De outro
modo, em portugus sinalizado, um falante usaria os mesmo sinais usados na frase em
libras, contudo, a ordem seria dada pela sintaxe linear do portugus, a saber, CACHORRO
+ ENTRAR + CASA. Essas marcaes evidentemente so situacionais e contrastiva, no
devem ser entendidas como entidades.
O objetivo desta tese no realizar uma descrio do que tem sido performatizado
como a sintaxe espacial da libras, purificada do portugus e do portugus sinalizado. Isso
10
Bagno (2009:11-12) faz uma distino trplice da realidade sociolingstica: (1) norma-padro, que seria o
modelo idealizado de lngua certa descrito e prescrito pela tradio gramatical normativa, e que no
corresponderia a uma variedade falada e escrita; e num continuum (2) o conjunto das variedade prestigiadas,
faladas pelos cidados de maior poder aquisitivo, de maior nvel de escolarizao e de maior prestgio
sociocultural e (3) o conjunto das variedades estigmatizadas, faladas por pessoas menos escolarizadas e com
menor poder aquisitivo. 11
Seguindo a marcao corrente na bibliografia sobre lngua de sinais, nesta anlise, quando houver referncia
aos sinais glosados para o portugus, a sua escrita estar grafada em caixa alta.
-
21
exigiria um outro investimento investigativo. Contudo, necessrio considerar que a
disciplina corporal e espacial que permite a performatizao do surdo como pessoa usuria
de outra lngua tem tambm performatizado a libras como lngua separada do portugus e do
portugus sinalizado. A tenso entre essas categorias estar presente em toda a tese.
2. Paradoxos da surdez: entre a deficincia e a cultura
A afirmao do estatuto de lngua natural da lngua de sinais tem produzido um
discurso em que se afirma a surdez tambm como particularidade tnica. No texto do
Decreto citado, afirma-se que a pessoa surda compreende e interage com o mundo por meio
de experincias visuais e que ela manifesta a sua cultura por meio da libras. Os trabalhos
cientficos que amparam tal legislao realizam uma produo discursiva semelhante,
utilizando uma srie de categorias das cincias sociais para conformar essa surdez, a saber,
lngua, cultura e comunidade.
No processo poltico e acadmico de produo da surdez como particularidade
tnico-lingstica, a categoria legtima para classificar as pessoas com surdez usurias da
libras tornou-se surdo, desautorizando o uso de outras categorias tais como mudo, surdo-
mudo, surdo e mudo, mudinho, deficiente auditivo e d.a.. Nas recentes publicaes
acadmicas que do legitimidade a essa surdez comum tambm que se use e reivindique a
grafia Surdo (s em caixa alta), para afirmar a condio scio-antropolgica da surdez, em
oposio categoria surdo (s em caixa baixa), que se refere condio audiolgica de no
ouvir (Padden & Humphries, 1988:2)12
.
A coletividade de onde se afirma ter emergido a libras geralmente referida como a
comunidade surda ou comunidade surda brasileira. consenso na bibliografia sobre surdez
que o processo de constituio dessa coletividade produto de instituies totais corretivas
que associaram pessoas com surdez (Padden & Humphries, 1988; Lane, 1992; Sacks, 1998).
Como majoritariamente as pessoas com surdez nascem em famlias em que todos ouvem,
cerca de 95% (Skliar, 2000:129), a forma de associao necessria para o engendramento de
uma lngua se deu em domnios exteriores famlia. As escolas especiais, como ser
12
Como geralmente nesta tese a categoria surdo (em itlico) est referida a essa concepo scio-antropolgica
da surdez, torna-se desnecessria a sua marcao em caixa alta.
-
22
demonstrado, constituem referncias fundamentais para a constituio dessa surdez e so
instituies centrais na rede que se denomina comunidade surda.
As referncias tericas que conformam essa surdez tambm afirmam que, no
processo de constituio da comunidade surda, alm de uma lngua, emergiu uma cultura
especfica, a cultura surda. Como o texto da lei afirma, o que caracterizaria
fundamentalmente essa cultura seria o modo como ela se expressa em lngua de sinais e
como ela constituda por experincias gestuais-visuais. Nesse caso, a surdez no seria uma
deficincia, mas sim, um dado biolgico que fez conformar outra cultura13
.
Precisamente nesse sentido emergem reflexes acadmicas no mbito da pedagogia
conformando o que se convenciona chamar de estudos surdos. No Brasil, uma das
referncias fundamentais Carlos Skliar (1998), que se apropria dos estudos culturais de
Stuart Hall para fomentar uma outra linha de reflexo, visando superar a surdez entendida
como deficincia e vinculada educao especial. Afirma o autor:
A nossa proposta no era, nem atualmente, a de constitu-lo [o Ncleo de Pesquisas em Polticas
Educacionais para Surdos NUPPES] com um subproduto ou uma sub-rea temtica da educao
especial, nem a de mant-lo dentro de uma prtica e de um discurso hegemnico da deficincia. Muito
pelo contrrio, nos motivava a criao de um novo espao acadmico e de uma nova territorialidade
educacional qual denominados: Estudos Surdos em Educao (1998:5)
E explica:
Os Estudos Surdos se constituem enquanto um programa de pesquisa em educao, onde as
identidades, as lnguas, os projetos educacionais, a histria, a arte, as comunidades e as culturas surdas
so focalizados e entendidos a partir da diferena, a partir do seu reconhecimento poltico. (idem,
ibidem)
13
O que est em operao mais uma edio das relaes de equivalncia entre as categorias lngua e cultura.
A proximidade entre os termos remonta uma histria de longa durao. De acordo com Norbet Elias (1994
[1934]), a emergncia da categoria kultur, no romantismo alemo, est vinculada ao esprito de um povo,
entendido como a sua lngua e as realizaes artsticas, intelectuais e religiosas. Tal proximidade entre lngua e
cultura est tambm presente em alguns fundadores da antropologia e lingstica, tais como, Franz Boas,
Edward Tylor e Max Mller. Como ser evidenciado ao longo desta reflexo, tal equivalncia reiterada nos
recentes trabalhos cientficos e nos projetos missionrios relativos surdez.
-
23
O autor utiliza o termo ouvintismo para demonstrar o processo histrico de
etnocentrismo que fundamentou a educao especial relativa surdez. Para Skliar, o
oralismo, como filosofia e prtica pedaggica, constituiu a operacionalizao prtica de uma
episteme centrada em uma concepo de ser humano como necessariamente ouvinte, que
oprimiu historicamente os surdos. Desse modo, Skliar afirma a dimenso poltica dos
estudos surdos em educao, que deve visar uma crtica a toda forma de opresso dos
ouvintes sobre a lngua, a cultura e a identidade dos surdos. objetivo da educao reforar
essas instncias, devendo ser retirada a educao dos surdos da educao especial relativa
deficincia. Skliar (1998, 1999, 2000) tornou-se uma importante referncia na consolidao
dessa educao focada na particularidade tnico-lingstica dos surdos, bem como os
estudos surdos estabelecem trocas reiteradas com a lingstica das lnguas de sinais.
Apesar da notvel produtividade que esses argumentos tm tido para se traduzirem
em polticas pedaggicas e realidade sociolgica, necessrio considerar que um paradoxo
se impe nesse processo poltico e acadmico. Embora a inteno seja retirar a educao de
surdos da educao especial e da concepo de deficincia, como Skliar argumenta, essa
concepo de surdez apenas pode se traduzir em termos de normatividade jurdica na
medida em que essa produo discursiva pode se tornar legtima nos mbitos do Estado
vinculados educao especial e aos assuntos da pessoa com deficincia.
O reconhecimento jurdico da libras vem no bojo de um processo de constituio de
um dispositivo jurdico de Estado que regula a populao formada por pessoas com
deficincia, que, como foi mencionado, corresponde a 14,5% do total de habitantes do pas.
Esse processo ocorre em diversas instncias, notadamente, educao, sade, trabalho,
previdncia e comunicao. No que compete educao, instncia chave desta anlise,
desde a Constituio de 1988 o Estado tem ratificado o seu compromisso com a educao de
pessoas com deficincia nas escolares regulares, fomentando um desmonte das escolas
especiais e conformando o que se desenha como educao inclusiva14
. Alm disso,
engendra-se tambm a lei de acessibilidade, que visa a superao de barreiras de toda ordem
14
Constituio Federal 1988, artigo 208, III; Estatuto da Criana e do Adolescente, Lei Federal 8.069/90, Art.
54, III; LDB, Lei Federal 9394/96, captulo V; Plano Nacional de Educao, Lei Feral 10.172/01, cap. 8;
Diretrizes Nacionais para a Educao Especial na Educao Bsica, resoluo n2/2001; Declarao de
Salamanca (1994) que afirma internacionalmente a preferncia pela educao inclusiva na escola regular.
-
24
(arquitetnica, comunicativa, intelectual) no domnio pblico15
, bem como polticas
integrativas no mercado de trabalho por meio de cotas para pessoas com deficincia nas
empresas16
.
Para que a surdez como particularidade tnico-lingstica se constitusse como
normatividade jurdica, os agentes envolvidos no processo tiveram que em diversos mbitos
sistematicamente ratificar o estatuto de lngua natural da libras e, nesse processo, afirmaram
a surdez como particularidade tnico-lingstico, negando qualquer concepo de
deficincia. Contudo esse processo apenas se consolidou tendo o CORDE, Coordenadoria
Nacional da Pessoa Portadora de Deficincia e a Secretria de Educao Especial do
Ministrio da Educao, entre outras instncias do Estado, como interlocutores.
Assim, a surdez afirmada como particularidade lingstica, objeto desta anlise,
complexa, pois no se resume a uma oposio simplista entre diferena ou deficincia. Por
um lado, essa formulao se d nesses termos, negando o termo deficiente auditivo,
deficincia auditiva e qualquer outra concepo que se refira reabilitao ou correo. Por
outro, ela apenas se legitima na medida em que se torna a deficincia auditiva legtima que
precisa ser contemplada pelos domnios do Estado, sobretudo a educao. A questo relativa
definio da surdez como deficincia ou cultura tambm percorre toda esta tese.
3. Questes da tese
Desde de 2002, no Ncleo de Antropologia Urbana da USP (NAU-USP)17
sob
coordenao do professor Dr. Jos Guilherme Cantor Magnani, tem sido realizada uma
ampla etnografia em um circuito18
relativo surdez, formado, sobretudo, por escolas
especiais, associaes de surdos, pontos de encontros, instituies religiosas e eventos
15
Lei Federal 10.098, de 19 de dezembro de 2000 16
Lei Federal 8213/1991. 17
Esta pesquisa alm de ser realizada no mbito do NAU-USP, tambm est relacionada ao grupo de pesquisa
Estudos da Comunidade Surda: lngua, cultura e histria, coordenada pelo professor Dr. Leland McCleary do
Departamento de Letras Modernas da USP. 18
Na definio de Magnani o circuito une estabelecimentos, espaos e equipamentos caracterizados pelo exerccio de determinada prtica ou oferta de determinado servio, porm no contguos na paisagem urbana (2008:45).
-
25
acadmicos e polticos19
. Em diversas pesquisas de campo, logo foi identificada uma forte
presena de agentes religiosos na surdez, atuando em muitas instncias, a saber, no
movimento social surdo, representado sobretudo pela FENEIS, em instituies
universitrias, eventos polticos e tambm atuando em um mercado que se consolidou aps o
reconhecimento jurdico da libras como lngua, que nesta anlise ser referido como
mercado da libras.
Essa forte presena de agentes com trajetria religiosa tambm se apresenta na mdia
televisiva. Desde 1999, as missas da TV Cano Nova, vinculadas Renovao Carismtica
Catlica, apresentam o intrprete no canto inferior da televiso. A partir de 2000, o mesmo
passou a ser realizado pela Igreja Internacional da Graa de Deus, do Missionrio R. R.
Soares, comumente classificada como neopentecostal (Assis Silva & Teixeira, 2008). Aps a
regulamentao da libras, os agentes religiosos que j atuavam no mercado de diversas
maneiras, tambm passaram a atuar na televiso interpretando as comunicaes oficiais do
Estado, propagandas de partidos polticos e avisos sobre recomendao de faixa etria de
audincia.
Agentes protestantes e testemunhas de Jeov esto bastante presentes no mercado da
libras, atuando sobretudo como intrpretes. De outro lado, a Igreja Catlica est relacionada
a outros domnios, sobretudo na constituio da educao especial relativa surdez. uma
histria de longa durao que remonta ao sculo XVI, com o padre Ponce de Lon, educador
de surdos-mudos (como eram referidos) nobres, na Espanha, e o sculo XVIII, com o padre
Abade LEpe, na Frana, que utilizou os sinais para a educao. No Brasil, ao longo de
sculo XX, foram fundadas, por ordens religiosas diversas que possuem carisma para o
cuidado e a catequese de surdos-mudos, escolas especiais para esse tipo de educao. Como
ser demonstrado, agentes catlicos esto diretamente vinculados a constituies de
territrios em que pessoas com surdez se associam, de onde pode emergir a lngua de sinais.
Os agentes religiosos tambm esto muito presentes na organizao de publicaes
que desempenham funes de dicionrios em lngua de sinais, antes mesmo de ela ter se
consolidado com lngua natural. A Igreja Catlica produziu em 1969, o dicionrio
Linguagem das mos, de Pe. Eugnio Oates. Em 1983, luteranos juntamente com catlicos,
19
Resultados parciais desta pesquisa podem ser vistas em Magnani (2003, 2007, 2008), Magnani et al (2008),
Assis Silva & Teixeira (2008).
-
26
publicaram o livro Linguagem de sinais do Brasil, que traz tambm uma coleo de sinais.
A Igreja Batista, em 1987, publicou o dicionrio Comunicando com as mos e em 1991, o
dicionrio de sinais bblicos, O Clamor do silncio. A instituio religiosa Testemunhas de
Jeov, em 1992, produziu o dicionrio Linguagem de sinais, reeditado em 2008.
Recentemente, a Igreja Catlica publicou um novo dicionrio de sinais religiosos, em
formato virtual20
.
Por conta dessa grande presena de agentes religiosos na surdez, a presente tese visa
tomar como objeto etnogrfico, sobretudo, as prticas missionrias de trs instituies
religiosas que ocupam centralidade nessa questo, a saber, a Igreja Catlica, a Igreja Batista
vinculada Conveno Batista Brasileira e a Testemunhas de Jeov. Em menor grau, no
captulo que trata da atividade missionria batista, tambm compe os dados da anlise o
livro Linguagem de Sinais do Brasil, produzido pela Igreja Evanglica Luterana do Brasil
(Hoemann et al, 1983).
So duas as questes centrais que motivam a anlise que segue. A primeira questo
consiste em evidenciar como as instituies religiosas consideradas em seus rituais
performatizam descontinuidades entre pessoas que se diferenciam pela audio. A segunda
questo consiste em evidenciar como os agentes dessas instituies realizam mediaes em
outras instncias tidas como no religiosas.
Tendo por base os argumentos de Mariza Peirano (2003), esta anlise no parte de
uma concepo rgida e absoluta do ritual. pela anlise etnogrfica das trs instituies
consideradas que o ritual ser descrito, considerando todos os elementos pertinentes para os
objetivos desta reflexo. Sendo uma das caractersticas fundamentais do ritual a sua ao
performativa (Tambiah, 1985:128), o que interessa a esta reflexo demonstrar a disciplina
relativa surdez que performatiza separaes sistemticas entre corpos, lngua e cultura.
Ser diferenciado pela audio como surdo, ouvinte ou deficiente auditivo no
constitui um dado a priori desta anlise. O corpo, neste caso, deve ser entendido como uma
natureza plstica, como diz Rabinow (1999) um convite manipulao, sendo necessrio
demonstrar como, nos rituais, o corpo est sendo conformado em sua materialidade como
diferente pela lngua e cultura. Contudo, seguindo Butler (2008), o corpo no uma natureza
passiva ou receptculo de normas, pois, em grande medida, a agncia coletiva de corpos
20
Disponvel em http://www.surdosonline.com.br/ Acesso em 03/03/2010.
-
27
que tambm conforma esse processo, j que eles podem subverter normatizaes e as
redefinirem21
.
Alm disso, necessrio considerar que a obra de Michel Foucault (1979, 1988,
1996, 2002, 2005, 2007) bastante inspiradora para a reflexo que segue. Por conta do
objeto desta anlise, a surdez, ser entendido como produto de prticas discursivas histricas,
no h nesta reflexo uma dicotomia entre etnografia e histria. com a mesma postura
etnogrfica que so considerados os dados empricos presentes nos rituais em congregaes
religiosas, assim como nos manuais e dicionrios religiosos histricos, com a inteno de
compreender o processo de constituio dessa surdez. Trata-se sempre de verificar como se
marca diferena entre pessoas que so tidas como surdas ou ouvintes e como a lingstica
incorporadas em projetos missionrios para definir disciplinas sobre corpos.
A segunda questo perseguida por este trabalho entender como agentes religiosos
circulam em instncias pblicas tidas como no religiosas, como exemplo, o movimento
social, a academia e o mercado. A circulao que se visa analisar bastante dinmica. Por
um lado, as instituies religiosas incorporam produes acadmicas sobre lngua de sinais
que conformam as suas prticas disciplinares. Por outro, os agentes religiosos acabam por
rotinizar determinadas prticas em suas congregaes e para alm, pois atuam em outras
instncias, como academia, mercado e movimento social. precisamente esse trnsito entre
instituies religiosas, movimento social, produes acadmicas e mercado que esta tese
visa analisar, tendo por foco, sobretudo, os agentes religiosos que cruzam esses domnios.
Esse seria precisamente o processo de mediao que as instituies religiosas realizam nessa
questo22
.
4. Sobre o levantamento dos dados empricos
Para responder questo de como os rituais performatizam descontinuidade entre
pessoas que se diferenciam pela audio, a base emprica fundamental desta reflexo
21
necessrio considerar que, de acordo com a bibliografia sobre surdez, as lnguas de sinais emergem como
produto do poder repressor ouvintista. 22
A circulao de temas, problemas e questes entre atividade missionria, movimento indgena e cincias
sociais, expresso em Montero et al (2006), em grande medida motivou teoricamente esta anlise etnogrfica
das relaes entre atividades missionrias e a surdez.
-
28
consiste nos dados coletados por meio de pesquisa de campo nas instituies religiosas
tomadas como objeto. Alm disso, para responder segunda questo (como agentes e
prticas religiosas circulam em domnios tidos como no religiosos), esta pesquisa tambm
organiza dados que revelam um cruzamento entre instituies religiosas, movimento social
organizado, produes cientfica e o mercado da libras.
Com referncia Igreja Catlica, os dados empricos foram coletados em duas
pastorais, a saber, Pastoral dos Surdos So Francisco de Assis (Vila Clementino) vinculada
Parquia So Francisco de Assis e ao Instituto Santa Teresinha e a Pastoral dos
Deficientes Auditivos da Igreja Nossa Senhora Aparecida de Moema, localizada no bairro
de mesmo nome. Com menor investimento, outras parquias catlicas tambm foram
consideradas, assim como excurses, encontros, seminrios e congressos catlicos sobre
surdez.
No que se refere s congregaes batistas vinculadas Conveno Batista Brasileira,
as etnografias foram realizadas nas Igrejas Batista de Vila Mariana e da Liberdade, alm de
outras congregaes que sediaram encontros, seminrios e congressos. O curso de formao
de intrpretes de linguagem de sinais, ministrado pelo pastor Marco Antonio Arriens, que
possui formao teolgica batista, tambm constitui uma fonte de dados importante para a
anlise.
Considerando a instituio religiosa Testemunhas de Jeov, a pesquisa de campo foi
realizada nas Congregaes em Lngua de Sinais dos Sales do Reino da Vila Carro e
Santana, alm de visitas em algumas outras congregaes. Do mesmo modo, tambm foram
pesquisados eventos que renem diversas congregaes, alm de uma visita ao Lar de Betel,
em Cesrio Lange - SP, sede brasileira da instituio, onde se produz materiais e publicaes
diversas.
Como foi afirmado, este trabalho no concebe dicotomia entre etnografia e histria.
Por conta disso, foram considerados em grande medida dicionrios e manuais religiosos, que
so constantemente agenciados nas atividades missionrias analisadas. Na anlise, eles tm a
funo de historicizar ao mximo o presente dos rituais. por conta disso que, no captulo
sobre a Igreja Catlica, alguns dados histricos sobre a educao de surdos tornou-se
primordial, bem como considerar as publicaes pioneiras sobre a linguagem das mos do
padre Eugnio Oates. Do mesmo modo, no captulo sobre a atividade missionria
-
29
protestante, em que considerada a Igreja Batista, a publicao catlico-luterana Linguagem
de Sinais do Brasil tambm analisada, pois ser alvo de apropriaes posteriores diversas.
Assim como, tambm compem o universo emprico de investigao duas edies da
publicao O Clamor do silncio.
O segundo conjunto de pesquisa constituiu uma ampla investigao na rede que
comumente denominada comunidade surda. Como exemplos, dados sobre as escolas
especiais, associaes, eventos polticos e acadmicos vinculados surdez e cursos de lngua
de sinais foram considerados. Alm disso, foram analisados documentos que revelam dados
sobre a constituio da FENEIS. A trajetria religiosa de intelectuais tambm foi
contemplada e a questo primordial que organizou essa pesquisa emprica foi compreender
como os agentes religiosos circulam em diversos domnios.
5. Estrutura da tese
A tese est dividida em quatro captulos.
No primeiro captulo, o foco da anlise est concentrado na Igreja Catlica. Sero
demonstrados, sobretudo, dados empricos referentes a duas pastorais, a Pastoral dos Surdos
So Francisco de Assis e a Pastoral dos Deficientes Auditivos de Moema. Pretende-se
evidenciar como essa instituio em suas parquias expressa normatividades heterogneas
relativas surdez, no que se refere ao uso de categorias classificatrias e nas corporalidades
de seus membros. Alm disso, este captulo contempla a anlise de dados sobre a relao
histrica de longa durao da Igreja Catlica com a surdez, expressa na educao especial,
associaes de surdos e publicaes de padre Eugnio Oates.
No segundo captulo, parte-se para a anlise de atividades missionrias protestantes,
considerando, sobretudo, o ministrio com surdos das congregaes batistas. Diferentemente
da Igreja Catlica, nessa instituio a surdez afirmada e performatizada como
particularidade tnico-lingstica. Nesse caso, a disciplina gestada marca diferenas entre
surdos e ouvintes em termos de lngua e cultura, o que est em plena consonncia com a
surdez que ganhou normatividade jurdica. Alm disso, para explicar as razes histricas
pelas quais essa disciplina foi engendrada, so consideradas trs publicaes religiosas
uma publicao luterana, Linguagem de Sinais do Brasil, e duas edies da publicao
-
30
batista O clamor do silncio que revelam como instituies protestantes incorporam
trabalhos cientficos para configurar atividades missionrias que afirmam a surdez como
particularidade tnico-lingstica.
No terceiro captulo, tem-se por objeto de reflexo as congregaes em lngua de
sinais da instituio religiosa crist milenarista Testemunhas de Jeov. De modo semelhante
a protestantes, em sua atividade missionria a surdez est plenamente performatizada como
particularidade lingstica. Em tais congregaes, seus membros, quer sejam pessoas surdas,
quer ouvintes, comunicam-se em lngua de sinais, bem como suas publicaes esto
traduzidas para essa lngua e editada em vdeos. Contudo, nos rituais dessa instituio, como
ser demonstrado, no h marcao entre pessoas que se diferenciam pela audio, nem
tampouco qualquer afirmao da surdez como particularidade tnica, o que a diferencia das
congregaes batistas analisadas.
No quarto captulo, sero analisados desdobramentos em outras instncias dessas
atividades missionrias consideradas. Ser explicitada uma intensa circulao de agentes
religiosos em domnios como o movimento social, instituies universitrias, aparatos do
Estado e o mercado que emerge vinculado libras, evidenciando um consenso entre muitos
agentes que conformaram a surdez afirmada e performatizada como particularidade tnico-
lingstica.
Por fim, na concluso, sero retomadas as principais caracterstica da surdez
afirmada como particularidade tnico-lingstica, analisada ao longo desta reflexo, assim
como ser considerado como ela se traduziu em uma forma de gerncia da populao surda,
entrando em uma regime de governamentabilidade do Estado.
-
31
1. Igreja Catlica e surdez: normatividades heterogneas
A expresso effata23
est vinculada a um milagre especfico descrito no evangelho de
Marcos (7.31-37). Significa abra-te e, de acordo com tal passagem bblica, Cristo a
proferiu depois de molhar com saliva os ouvidos e a lngua de um surdo-mudo, o que teria
feito os ouvidos desse homem abrirem-se e sua lngua soltar-se. Tendo por inspirao essa
passagem, historicamente, a surdez coloca uma questo para o cristianismo, o que tem
originado procedimentos heterogneos de abertura nos corpos de pessoas classificadas como
surdo-mudo, deficiente auditivo ou surdo: o que consiste a operacionalizao prtica do
effata.
Na Igreja Catlica, effata no usada exclusivamente quando em referncia surdez.
Em verdade, ela est presente em um sacramento primordial da Igreja, o batismo, ritual
universal que prov a introduo dos novos membros no que tido como o corpo mstico de
Cristo, a prpria Igreja. Nesse sacramento, em sua verso completa, que por vezes
facultativa, o sacerdote tocando a boca e ouvidos da pessoa, geralmente a criana,
pronuncia: effata o Senhor Jesus que fez os surdos ouvirem e os mudos falarem lhes
conceda que possa logo ouvir sua Palavra e professar a f para louvor e glria de Deus Pai.
Amm24. Assim, nesse sacramento basilar, a referida categoria est vinculada ao chamado
universal de toda humanidade ao cristianismo.
Efat a forma como geralmente protestantes enunciam essa categoria. A slaba
tnica no t e a segunda slaba tem pronncia fa, como est tambm na Nova
Traduo da Linguagem de Hoje (Bblia Sagrada, 2001). De outro modo, catlicos parecem
preferir a pronncia feta, mais prxima da pronncia em grego, com slaba tnica no e
a segunda slaba recebe pronncia f. comum tambm em escritos catlicos a grafia
heterognea do termo, como exemplo: ephphata, effata, effeta, efeta ou feta. Diversos so
os agenciamentos dessa categoria por missionrios cristos, sendo utilizada para nomear
escolas especiais, ministrios protestantes, pastorais catlicas, associaes, sites vinculados
23
Do grego grego 24
Ritual de batismo, disponvel em:
http://www.cleofas.com.br/virtual/texto.php?doc=SACRAMENTO&id=sac0998 Acesso em 24/05/2010.
-
32
surdez, eventos religiosos, materiais de evangelismo e catequese, estampas de bandeiras e
camisetas, vitrais de parquias, entre outras apropriaes25
.
Como se pretende evidenciar nesta tese, so diversas as instituies religiosas crists
que atuam conformando a surdez. No Brasil, nenhuma instituio parece guardar relaes de
longa durao to extensas com a surdez como a Igreja Catlica, sendo mesmo uma histria
bastante plural, tornando-se de difcil notificao a afirmao referente a desde quando
atuam nessa questo. Por conta dessa profundidade histrica, as pesquisas de campo nessa
instituio revelam que h uma heterogeneidade de normatividades em relao surdez.
Diferentemente de prticas de protestantes e de testemunhas de Jeov, como ser
demonstrado nos captulos 2 e 3, os quais esto plenamente conformes surdez afirmada
como particularidade lingstica, a Igreja Catlica possui uma relao bem mais mltipla,
em que camadas histricas de sua misso plural se evidenciam.
As parquias catlicas pesquisadas expressam conformaes da surdez que
geralmente so tidas como relacionadas a diferentes momentos histricos da educao
especial de surdos: oralismo, comunicao total e bilingismo. Em seus rituais, possvel
identificar que h pessoas surdas que se expressam exclusivamente por meio oral; outros
utilizam sinais performatizados em estrita concordncia com a sintaxe linear do portugus;
outros tambm se expressam por sinais, mas realizados em uma sintaxe espacial, como um
cdigo independente do portugus.
Por conta dessa heterogeneidade de manejos lingsticos em seus rituais, as prticas
catlicas no expressam um pleno ajustamento s normatividades relativas surdez
afirmada como particularidade lingstica, j que outras disciplinas parecem estar
corporificadas em seus fiis. Alm disso, as categorias que atualmente so tidas como
legtimas e que normatizam a surdez nem sempre esto plenamente incorporadas na fala de
seus membros, de modo que a surdez entendida como particularidade tnico-lingstica,
embora presente na Igreja Catlica, incorporada paulatinamente, no raro, por meio de
prticas advindas de outras instituies, acomodando-se em meio a outras normatividades
concorrentes.
25
Nesta tese, quando referida ao contexto catlico ser utilizada a categoria effata , termo que intitula o site da
Pastoral dos Surdos do Brasil. http://www.effata.org.br/?s=apastoral Acesso em 25/05/2010,
-
33
Este captulo visa tratar precisamente dessa heterogeneidade de normatividades e
dessa histria que vincula a Igreja Catlica a instituies tidas como referncias de base na
surdez: escolas especiais e associaes. Como ser demonstrado, a multiplicidade de
normatividades est diretamente vinculada a camadas histricas de uma misso catlica
plural na surdez.
1.1. Normatividades heterogneas nos rituais catlicos
Na cidade de So Paulo h, em linhas gerais, duas formas de insero, com utilizao
de sinais, de pessoas surdas em parquias catlicas. O primeiro modo se d por meio da
realizao de missas especficas para surdos, sendo esta prtica mais antiga, j que algumas
parquias e ordens catlicas esto historicamente vinculadas educao especial relativa
surdez; o segundo modo se d pela insero de pessoas surdas em missas comuns,
possibilitada pela presena de intrpretes, constituindo uma prtica mais recente,
desenvolvida sob forte influncia de prticas advindas de congregaes protestantes.
Os dados da anlise que segue esto referidos sobretudo a duas pastorais relativas
surdez, que possuem centralidade na cidade de So Paulo. Para considerar o primeiro caso,
as missas para surdos, a pesquisa de campo se deu na Pastoral dos Surdos So Francisco de
Assis, vinculado Igreja So Francisco de Assis e ao Instituto Santa Teresinha. No segundo
caso, missas comuns com intrpretes, a pesquisa de campo trata da Pastoral dos Deficientes
Auditivos de Moema, que muitas vezes tambm se denomina Pastoral dos Surdos de
Moema. Ambas as pastorais integram a Regional Sul 1, seguindo a diviso do pas da Igreja
Catlica, fazendo parte de uma uma rede nacional de parquias que executam atividades de
evangelizao e catequese com surdos algo que somente tem crescido nos ltimos anos ,
o que denominam ser Pastoral dos Surdos do Brasil.
1.1.1. Pastoral dos Surdos So Francisco de Assis: o rito da missa para surdos
A Pastoral dos Surdos So Francisco de Assis, que realiza missas para surdos em
So Paulo, data a sua fundao de 1989 e est diretamente vinculada catequese de alunos
-
34
surdos de duas escolas especiais relativas surdez, o Instituto Santa Teresinha (escola da
ordem Congregao das Irms de Nossa Senhora do Calvrio) e a Diviso de Educao e
Reabilitao dos Distrbios da Comunicao (DERDIC)26
, tendo de fato surgido nos
domnios desta ltima escola, e posteriormente se associado primeira. Atualmente, as
missas dessa pastoral se realizam de modo relativamente itinerante, nos dois primeiros
domingos do ms as missas so realizadas na Parquia So Francisco de Assis, no bairro de
Vila Clementino, nas proximidades da DERDIC, e no ltimo domingo do ms realizada na
capela do Instituto Santa Teresinha, no bairro Bosque da Sade.
Por conta dessa relao com as escolas, o pblico majoritrio (no exclusivo) da
pastoral composto por alunos e ex-alunos das duas instituies referidas, bem como
catequistas e professores vinculados a elas. Alm disso, ele majoritariamente jovem e o
manejo que fazem dos sinais no parece estar atrelado rigorosamente sintaxe linear da
lngua portuguesa. Contudo, evidentemente, h excees e o portugus sinalizado, tambm
se faz presente na performance lingstica de alguns membros. Por meio da pesquisa nessa
pastoral, identificou-se que, quando se considera o fator gerao, h uma grande tendncia
em pessoas surdas mais velhas e escolarizadas utilizarem os sinais em concordncia com a
sintaxe linear do portugus. A catequista que compem essa pastoral e auxilia na realizao
das missas, uma senhora que estudou na escola especial das Calvarianas, exemplar dessa
performance lingstica.
A missa para surdos apresenta exatamente a mesma estruturao de qualquer missa
catlica apostlica romana comum, a saber: i) Ritos de Entrada (saudao sacerdotal, ato
penitencial); ii) Liturgia da Palavra (leituras bblicas, homilia, profisso de f); iii) Liturgia
Eucarstica (ofertrio, prefcio, orao eucarstica); iv) Ritos de Comunho (Pai Nosso, Paz
de Cristo, Comunho); e por fim, Ritos de Despedida (avisos, despedida do sacerdote). Tal
como todas as missas catlicas, so compostas por uma oralidade cannica rgida, definida
mundialmente pela Santa S. Apesar de, no caso da missa para surdos, haver geralmente
menos msicas do que as missas comuns, j que no h msicos presentes nesses rituais,
necessrio considerar que ela no deixa de ser um ritual estruturado de modo absolutamente
oral, em que os sinais acompanham essa oralidade.
26
Esta escola foi fundada em 1954, quando se denominava Instituto Educacional So Paulo (IESP). Em 1969,
foi incorporado pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo.
Fonte:http://www.pucsp.br/derdic/historico.html Acesso em 05/05/2010.
-
35
Quem celebra a missa um padre ouvinte, que assumidamente sabe bem poucos
sinais. A sua fala, durante toda a missa, interpretada para os sinais, tal como se d em
diversas denominaes protestantes. Alm disso, assim como na missa comum, a missa para
surdos no se resume somente fala do sacerdote, pois compe o ritual um dilogo cannico
estabelecido durante toda a missa entre este e a assemblia. Nas missas comuns,
constituinte desse dilogo que a fala da assemblia, em resposta a do sacerdote, seja em
unssono com algum integrante da parquia, que fala no microfone, posicionando-se
tambm no altar. No caso da missa para surdos, uma pessoa com surdez, tambm integrante
da parquia, usando veste ritual tal como o sacerdote, sinaliza o que costuma ser dito no
microfone, de modo que todos copiam os seus sinais para a plena realizao do dilogo.
Dessa forma, considerando apenas a lngua de sinais, o dilogo se d entre o intrprete (que
traduz a fala do padre) e a pessoa surda auxiliar (que sinaliza o dito da assemblia). A
resposta da assemblia, alm de ser sinalizada, tambm dita em portugus por pessoas
ouvintes presentes e pessoas surdas mas oralizadas.
A parte central da missa, a consagrao, um momento extraordinrio da missa para
surdos. Esse a nica parte em que o sacerdote alm de falar, sinaliza conjuntamente,
reproduzindo as palavras e os gestos de Jesus na ltima ceia. Seguindo o ritual, ergue
posteriormente a hstia e o clice, que, de acordo com a teologia catlica, contm o corpo e
o sangue de Cristo, momento em que todos se ajoelham ou tomam postura de reverncia.
Nesse momento, o intrprete e a pessoa com surdez ajudante da celebrao deixam as suas
funes de auxiliares da celebrao e se ajoelham junto com a assemblia, estando
desobrigados da sinalizao, visto que o sacerdote o faz. Aps esse momento, em que o
sacerdote oralizou e sinalizou a parte central do rito de transubstancializao, o intrprete e a
pessoa com surdez auxiliar retornam para a sua posio de intermediao.
Apesar da proximidade estrutural com a missa comum, outras especificidades do
ritual para surdos se explicitam, a comear pela homilia, momento em que o presidente da
celebrao fala para a assemblia, como na maior parte do ritual, em portugus, cabendo ao
intrprete sinalizar o dito sacerdotal. Comumente, o sermo do padre trata dos textos
bblicos lidos na parte litrgica (i - Velho Testamento na primeira leitura, ii - Novo
Testamento na segunda leitura e, a parte principal, iii - o Evangelho), em linhas gerais, ele
procura realizar uma mediao entre o livro sagrado e o cotidiano da assemblia. Do ponto
-
36
de vista meramente formal, para auxiliar o padre na referncia aos textos bblicos de modo
inteligvel a essa assemblia, alm da interpretao para a lngua de sinais, comum que
membros da parquia projetem alguns poucos desenhos em um telo, para ilustrar a
passagem bblica considerada, visando tornar a explicao do padre mais visual27
.
Alm disso, a especificidade da composio da assemblia, o fato de ser
majoritariamente de pessoas surdas, sempre um dado relevante no contedo de sua
pregao. Desse modo, alm da prdica bblica catlica habitual, algumas referncias so
reiteradas, inserindo a missa para surdos em uma histria mais geral do catolicismo. Na
homilia comum que se faam referncias, repetidas em cada missa, a nomes de religiosos
catlicos que trabalharam para a evangelizao dos surdo-mudos ao longo da histria, tais
como So Francisco de Sales, Ludovico Pavoni, Felippo Smaldone, Jos Gualandi, Pedro
Bonhome, entre outros e , sobretudo, aos nomes dos religiosos catlicos que atuaram no
Brasil evangelizando pessoas surdas, os padres Eugnio Oates (redentorista norte-
americano) e Vicente de Paulo Penido Bunier (diocesano, sendo o primeiro padre surdo
brasileiro), reverenciados como os bandeirantes28
da Pastoral dos Surdos no Brasil29
.
Alm dessa insero do ritual em uma histria plural da relao que remonta a
sculos entre a Igreja Catlica e surdez, comum que a fala do sacerdote, em algumas
missas, tome um tom poltico, ainda que brando, referindo-se s injustias sociais e
condio de excluso das pessoas com deficincia na sociedade contempornea. Assim, em
consonncia com ideais catlicos que se desenvolveram aps o Conclio Vaticano II, a sua
prdica costuma incentivar a construo de uma sociedade mais justa e solidria, nesse caso,
para surdos (ou deficientes auditivos) e tambm para as pessoas com deficincia em
27
O uso de desenhos na explicao de qualquer contedo para surdos faz parte da prtica pedaggica intitulada
comunicao total, que, como foi demonstrado na Introduo, a filosofia pedaggica vigente entre o oralismo
e o bilingismo. 28
Categoria pela qual so referidos. 29
Na publicao feta: Eu falo com Deus da Ordem Pequena Misso para Surdos, de origem italiana, h uma
Ladainha dos Amigos dos Surdos (s/d:75), que citam os seguintes religiosos catlicos: So Francisco de Sales,
So Jos Cotolengo, Beato Pedro Bonilli, Beato Joo Nepomuceno, Ludovico Pavoni, Felippo Smaldone, Jos
Gualandi, rsola Mezzini, Antonio Prvolo, Severino Fabriani e Pedro Bonhome. Estes tambm so referidos
como os Apstolos dos Surdos, isto , pessoas santas religiosas que teriam se dedicado ao cuidado, educao
e catequese de surdos-mudos em diversos pases da Europa.
-
37
geral30
.Tal preocupao com a condio de excluso social da pessoa com deficincia parece
ter se tornado ainda mais presente aps a Campanha da Fraternidade de 200631
.
Outras especificidades do ritual da missa para surdos precisam ser consideradas.
Quando a assemblia reza o Pai Nosso, presente em todas as missas na parte do rito de
comunho, ela o faz com as mos em lngua de sinais, acompanhando a reza oralizada.
Como esto com as mos ocupadas, todos aproximam os ps, tocando-se uns aos outros,
realizando correntes nas fileiras. Ademais, como tambm de praxe em missas comuns, no
incio ou durante a celebrao, entram pelo corredor objetos santificados do ritual, tais como
imagens, a Bblia sagrada, os objetos da liturgia da comunho, entre outros elementos. No
caso da missa para surdos, comum a entrada, pelo corredor, de objetos vinculados a essa
pastoral e que ganham sacralidade, tais como bandeiras ilustradas com o braso da Pastoral
dos Surdos e com a categoria effata expressa e bem destacada e tambm desenhos de Cristo,
ou apenas da mo de Cristo, tocando um ouvido e operando o milagre. Alm dessas
bandeiras, publicaes especficas para a catequese de surdos ou deficientes auditivos, que
geralmente esto exclusivamente em lngua portuguesa, tambm costumam percorrer esse
trajeto ritual.
Uma das caractersticas importantes da missa para surdos a prolongada Orao
dos fiis, tambm chamada Orao Universal ou Prece dos Irmos, momento do rito
catlico em que os participantes podem fazer pedidos individuais em um tom geral. Esse o
momento de intensa participao da assemblia, em que os coordenadores do rito, sacerdote
e auxiliares, no tolhem em nada a participao pblica, deixando que ela se expresse
exausto. O mesmo parece se processar durante a orao pela Paz, momento em que todos
se cumprimentam e sinalizam PAZ32
entre si. O sacerdote geralmente cumprimenta a
totalidade da assemblia e muitos membros fazem o mesmo, sendo tal parte do rito mais
demorada que o habitual. Nesse sentido, a missa para surdos mais uma ocasio, entre
30
Na fala do sacerdote, como comum na Igreja Catlica, as categorias surdo e deficiente auditivo costumam
ser intercambiveis e mesmo a surdez relativa libras no deixa de ser, geralmente, indicializada categoria
geral deficincia, posio anloga aos dispositivos jurdicos e mbitos do Estado. 31
O tema da Campanha da Fraternidade de 2006 foi Fraternidade e pessoas com deficincia e teve por lema
Levanta-se e vem para o meio (Marcos 3.3.). No texto base de tal campanha (CNBB, 2006), h um levantamento histrico que demonstra as relaes de longa durao entre a Igreja Catlica e as denominadas
deficincias. Nessa Campanha, a Igreja firmou o seu compromisso com a evangelizao e a promoo social
das pessoas com deficincia. 32
O sinal de paz geralmente feito com a configurao da mo em P, em movimento de zigue-zague na altura
do tronco (descrio pessoal).
-
38
outras, de encontro e sociabilidade. Como exemplo, comum que geralmente seus
participantes cheguem antes da missa propriamente dita e no parecem ter pressa para
comear; aps o trmino do rito, ficam conversando horas a fio, tambm sem pressa de irem
embora da parquia, de modo que parece ser uma estratgia dos organizadores do rito
possibilitar a sociabilidade desse pblico.
Uma caracterstica importante da Igreja Catlica precisa ser considerada para os
objetivos desta anlise. Os rituais que conformam os sete sacramentos33
esto estruturados
por uma oralidade rgida e estvel. Alm disso, a missa catlica tambm um ritual que
possui uma padronizao dada pela oralidade cannica e uma disposio corporal da
assemblia estritamente regulada. De igual modo, as oraes fundamentais que constituem
as prticas catlicas, o Pai Nosso, a Ave Maria, o Credo e a Salva Rainha, apenas para citar
as mais presentes nas missas comuns, so tambm oraes de oralidade fixa, que o fiel deve
decorar e repetir cotidianamente. Assim, a canonicidade, a rigidez e