tese ilha da encantaria
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Tese sobre a encantaria maranhense e sua relação com a mitopoética; estudo da figura do rei Sebastião; estudo histórico da encantaria no nordeste.TRANSCRIPT
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
AS ILHAS DA ENCANTARIA:
O REI SEBASTIO NA POESIA ORAL NUTRINDO
IMAGINRIOS
Claudiclio Rodrigues da Silva
2010
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
AS ILHAS DA ENCANTARIA:
O REI SEBASTIO NA POESIA ORAL NUTRINDO
IMAGINRIOS
Claudiclio Rodrigues da Silva
2010
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AS ILHAS DA ENCANTARIA: O REI SEBASTIO NA
POESIA ORAL NUTRINDO IMAGINRIOS
Por
Claudiclio Rodrigues da Silva
Orientador: Prof. Dr. Alberto Pucheu Neto
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Cincia da Literatura, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para a obteno do Ttulo
de Doutor em Cincia da Literatura (Potica).
Examinada por:
__________________________________________________________________________
Presidente: Prof. Dr. Alberto Pucheu Neto (Departamento de Cincia da Literatura, UFRJ)
___________________________________________________________________________
Prof. Dra. Jacqueline Hermann (Departamento de Histria, UFRJ)
__________________________________________________________________________
Prof. Dra. Martha Alkmin (Departamento de Cincia da Literatura, UFRJ)
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Coutinho (Departamento de Cincia da Literatura, UFRJ)
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Gustavo Bernardo Galvo Krause (Departamento de Literatura Comparada, UERJ)
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
Rio de Janeiro
Junho de 2010
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Silva, Claudiclio Rodrigues da.
As ilhas da Encantaria: o rei Sebastio na poesia oral
nutrindo imaginrios/ Claudiclio Rodrigues da Silva. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010.
xiii, 387 f.; Il.; 30cm.
Orientador: Prof. Doutor Alberto Pucheu Neto.
Tese (Doutorado) UFRJ/ Programa de Ps-Graduao em Cincia da Literatura, 2010.
Referncias Bibliogrficas: f. 269-278
1. Sebastianismo. 2. Maranho. 3. Mito. 4. Poesial Oral. 5.
Performance. I. Neto, Alberto Pucheu. II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de
Ps-Graduao em Cincia da Literatura. III. Ttulo.
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O mytho o nada que tudo.
O mesmo sol que abre os cus
um mytho brilhante e mudo
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
(Fernando Pessoa, Mensagem)
Rei, rei, Rei Sebastio
Rei, rei, Rei Sebastio
Se desencantar Lenis
Vai abaixo o Maranho.
(doutrina para o Rei Sebastio)
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RESUMO
AS ILHAS DA ENCANTARIA:
O REI SEBASTIO NA POESIA ORAL NUTRINDO IMAGINRIOS
Por
Claudiclio Rodrigues da Silva
Orientador: Prof. Dr. Alberto Pucheu Neto
Resumo de Tese de Doutorado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Cincia da
Literatura, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para a
obteno do Ttulo de Doutor em Cincia da Literatura, Potica.
O rei Sebastio, monarca portugus do sculo XVI, viveu apenas 24 anos e se tornou no
apenas smbolo da nao portuguesa, mas cone da cristandade. Antes mesmo de nascer,
recebera o epteto de O desejado, e aps sua possvel morte, na batalha de Alccer Quibir, em 1578, passou a ser O encoberto. O sebastianismo - a crena na volta do rei - foi transplantado para todas as colnias portuguesas, suscitando na gente simples a promessa de
ser para sempre livre do jugo da opresso. Passados cinco sculos, o rei ainda esperado e
lembrado com muito vigor. No Brasil, duas ilhas maranhenses dizem abrigar o corpo mstico
do encoberto: a Ilha de So Lus e a Ilha de Lenis. O rei surge metamorfoseado num touro
ou num pssaro, trajando uma veste real abrasileirada, e convida todos para o seu
desocultamento. Para ele so entoados doutrinas, cantos e toadas, no rito afro-brasileiro do
tambor de Mina e na manifestao popular do bumba meu boi. O reino sebastinico
apresentado na potica da Encantaria. Esta tese constitui um estudo fronteirio em que vrios
campos do saber convergem para o mito sebastinico, no cerne do potico. Como uma
mitopotica construda para dar conta da vida, morte e destino? Como o rei Sebastio,
smbolo da saudade, sai da histria e torna-se mito? De que modo, em pleno sculo XXI, o rei
reverenciado por uma comunidade pr-letrada, onde a oralidade e a memria so a estrutura
da manuteno do legado cultural? De que modo a cultura letrada se apropria desse discurso
para reapresentar o mito sebastinico?
Palavras-chave: Sebastianismo, Maranho, Mito, Poesia Oral, Performance.
Rio de Janeiro
Junho de 2010
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ABSTRACT
MYTHICAL ISLANDS:
KING SEBASTIAN IN THE ORAL POETRY
Por
Claudiclio Rodrigues da Silva
Orientador: Prof. Dr. Alberto Pucheu Neto
Resumo de Tese de Doutorado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Cincia da
Literatura, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para a
obteno do Ttulo de Doutor em Cincia da Literatura, Potica.
King Sebastian, XVI century Portuguese monarch, lived only 24 years and became not only a
symbol of the Portuguese nation, but an icon of Christianity. Even before he was born, he was
called the desired, and, after his possible death at the Alccer Quibir battle in 1578, they called him the uncovered. Sebastianism - the belief in the king's return was widely transplanted throughout the Portuguese colonies, making humble people believe in the
promise of always being free from oppression. Five centuries later, the king is still expected
and remembered with much vigor. In Brazil, two islands in Maranho are known for
sheltering his mystical body: Ilha de So Lus and Ilha de Lenis. The king emerges in a
metamorphose of a bull or a bird, in a Brazilian royal vest and invites all to his uncover. In his
behalf the people sing religious chants, with the afro-Brazilian Mina Drum and in the popular
demonstration of the bumba meu boi folklore. The sebastianic kingdom is presented inside a
poetic conjure. The present thesis constitutes in a study dealing with a borderline between
many fields that converge to the sebastianic myth, in it's poetic heart. How is poetic myth
built to take over life, death and destiny? How does king Sebastian, symbol of longing
(missing someone), leave history to become a myth? How can the king, in the XXI century be
reverenced by a pre-literate community, where speach and memory are the maintenance
structure of the cultural legacy? In which ways does the literate culture appropriate itself of
this speech to reintroduce the sebastianic myth?
Key Words: Sebastianism, Maranho, Myth, Oral Poetry, Performance.
Rio de Janeiro
Junho de 2010
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RESUMEE UEBERBLICK
ILHAS MTICAS: O REI SEBASTIO NA POESIA ORAL
Por
Claudiclio Rodrigues da Silva
Orientador: Prof. Dr. Alberto Pucheu Neto
Der Koenik Sebastian, portugiesischer Monarch im XVI (sechzehnten Jahrhundert), lebte nur
24 (vierundzwanzig) Jahre und ist nicht nur ein Symbol der portugiesischen Nation geworden,
sondern auch Ikone des Christentums. Noch bevor er geboren wurde, bekam er den
Spitznamen der Gewuenschte und nach seinem moeglichen Tod, im Kampf zu Alccer Quibir, 1578, wurde er der Versteckte. Der Sebastianismus der Glaube an die Wiederkunft des Koenigs wurde in allen portugiesischen Kolonien implantiert, um so in den einfachen Leuten das Versprechen hervorzurufen, fuer immer von der Unterdrueckung befreit zu
werden. Nach fuenf Jahrhunderten wird der Koenig immer noch erwartet und man erinnert
sich noch sehr an ihn. In Brasilien wird von zwei Inseln berichtet, die den mystischen
Koerper des Versteckten beherbergen: die Insel So Luis und die Insel der Lenes (Duenen). Der verwandelte Koenig taucht auf einem Stier oder auf einem Vogel mit einem
verbrasilianischten, koeniglichem Gewandt auf und laedt alle zu seiner Entschleierung ein. Zu
seiner Ehre werden Lehren, Lieder und Weisen im afro-brasilianischen Rythmus der Mina Trommel, sowie durch den Bumba meu Boi, ein volkstuemlicher Brauch, eingestimmt. Das sebastianische Reichwird in der Poetik der Verzauberung dargeboten. Diese These stellt ein
Grenzstudium dar, bei welchem verschiedene Wissensfelder zum sebastianischen Mythus im
poetischen Kern zusammen laufen. Wie wird ein poetischer Mythos aufgebaut, um vom
Leben, Tod und Schicksal Rechenschaft ab zu geben? Wie kann der Koenig Sebastian,
Symbol der Sehnsucht, aus der Geschichte hervorgehen und zum Mythos werden? Auf welche
Art und Weise wird der Koenig, mitten im XXI Jahrhundert, von einer ungebildeten
Gemeinde, wo die muendliche Ueberlieferung und die Erinnerung Struktur und
Aufrechterhaltung des kulturellen Vermaechtnisses sind , verehrt? Auf welche Art und Weise
eignet sich die gebildete Kultur diesen Bericht an, um um den sebastianischen Mythos neu
vorzustellen?
Schluesselworte: Sebastianismus; Maranho; Mythos; muendliche Poesie; Auffuehrung.
Rio de Janeiro
Junho de 2010
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Ao Pucheu,
que me ajudou a pensar os sebastianos
e foi ncora e leme.
Aos pescadores da Ilha de Lenis
- homens, mulheres, jovens, crianas, idosos -
que me apontaram onde fica a Encantaria,
embora eu nunca tenha chegado l.
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Esta tese foi possvel
graas ao auxlio do CNPq.
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SUMRIO
LISTA DE FIGURAS
INTRODUO TRAAR ROTAS E RESERVAR PASSAGENS................................18
ROTA I BARCO SEGURO, LEVANTAR NCORA, IAR VELA, RUMO
NORTE....................................................................................................................................30
1. PANORAMA.......................................................................................................................31
1.1 NATUREZA E SENTIDO DO IMAGINRIO MTICO..................................................41
1.2 MITOPOTICA ESPAO SAGRADO DA POESIA....................................................46
1.3 CORPOREIDADE E PERFORMANCE: DA VOZ COMO GESTO................................52
ROTA II A HISTRIA VIRA MITO COM OS FIOS DA SAUDADE E A
TESSITURA DA ESPERANA............................................................................................67
2. O MITO DA SAUDADE: DO SONHO DO IMPRIO AO IMPRIO DO SONHO..68
2.1 SOB O SIGNO DA CRUZ: PAIXO, MORTE E RESSURREIO. DE QUEM?.......74
2.1.1 Kyrie Eleison para o rei desejado.....................................................................................76
2.1.2 Te Deum laudamus para o rei cristo...............................................................................78
2.1.3 Hoc est enim Corpus meum: exquias para um corpo ausente.......................................81
2.1.4 Rquiem para o rei mitificado.........................................................................................84
ROTA III DICES MITOPOTICAS DAS ILHAS SEBASTINICAS..................94
3. CARTOGRAFIAS IMAGINRIAS DE UMA ILHA....................................................95
3.1 AS ILHAS SEBASTINICAS, A POTICA DA ENCANTARIA E A CONSTRUO
DAS HETEROTOPIAS..........................................................................................................102
3.2 A ILHA DE SO LUS: A SAUDADE SE FAZ CANTO E DANA..........................112
3.3 ILHA DE LENIS: PASSAPORTE PARA A ENCANTARIA..................................123
3.4 MITOPOTICA DOS ELEMENTOS PRIMORDIAIS.................................................153
3.5 A QUADRATURA DO CRCULO: TEMPO QUE SE CUMPRE E SE RENOVA.......186
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ROTA IV - DAS VOZES PARA AS LETRAS: PRESENA DO SEBASTIANISMO
MARANHENSE NA CULTURA LETRADA....................................................................207
4. QUANDO A LITERATURA VAI BEBER NAS FONTES DO ORAL........................208
4.1 A viso do rei Sebastio como pressgio de morte no romance Cais da Sagrao......... 209
4.2 A viso do navio dos mortos em O dono do mar..............................................................212
4.3 O prenncio do reino da justia em Ferreira Gullar..........................................................217
4.4 Releitura do encanto na poesia de Augusto Cassas...........................................................220
4.5 O profundo mistrio das ilhas em Bandeira Tribuzi.........................................................223
4.6 A corte que fantasmeia no romanceiro de Stella Leonardos.............................................232
4.7 O encantado galope beira-mar no poema de Bandeira de Mello...................................244
4.8 Visagens viventes no conto de Nagib Jorge Neto.............................................................249
4.9 Faces do mito em outras poticas.....................................................................................255
CONSIDERAES SOBRE A VIAGEM OU POSSESSES DA ILHA......................265
BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................269
DOSSI SEBSTICO..........................................................................................................279
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1. Detalhe do documento em que aparece pela primeira vez a palavra-sinal "Portugal",
1129, p. 76.
Figura 2. Cristvo de Morais, O Rei D. Sebastio 1571, leo sobre tela, 99 x 85cm, Museu
Nacional de Arte Antiga, Lisboa, Portugal, p.79.
Figura 3. O braso do rei Sebastio contm o escudo das quinas, ladeado pelas flechas que
fazem referncia a So Sebastio, p. 81.
Figura 4. Batalha de Alccer Quibir. ANDRADE, Miguel Leito de, 1553-1630., 2 grav.
desdobr. : il. ; 4 (17 cm), Biblioteca Nacional de Lisboa, p. 83.
Figura 5. Foto de satlite, Ilha de So Lus. Capturada do Google Earth, p. 112.
Figura 6. Detalhe do centro histrico de So Lus. Fonte: Google Earth, p. 114.
Figura 7. Faixa litornea do Estado do Maranho, p.123.
Figura 8. Faixa ocidental maranhense. A regio das reentrncias, com arquiplago de Maia
na parte superior, p. 124.
Figura 9. Baa de Lenis e Arquiplago de Maia, p. 124.
Figura 10. Arquiplago de Maia, p. 124.
Figura 11. Mapa fsico, detalhe, itinerrio So Lus-Lenis, p. 125.
Figura 12. Detalhe do Arquiplago de Maia com ilha de Lenis em destaque. Fonte: carta
nutica nmero 400, p. 125.
Figura 13. Ilha de Lenis: povoado ao centro, manguezal e oceano no alto, p. 127.
Figura 14. Desenho feito por um menino e dado a uma turista que havia pedido para o
mesmo desenhar o rei da ilha. Janeiro de 2009, p. 139.
Figura 15. Dona Teresa canta. O olhar longe, volta-se para a luz, enquanto canta, p. 167.
Figura 16. Dona Teresa. A mo paira sobre a mesa-altar e comea a marcar o ritmo, p. 168.
Figura 17. Dona Teresa. As batidas fortes dos dedos sobre a mesa lembram o toque dos
tambores, p. 168.
Figura 18. Dona Teresa. Ao narrar, os braos acompanham o rumo da histria e do o tom da
grandeza do evento narrado, p. 168.
Figura 19. Dona Teresa. As mos tambm falam, p. 169.
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Figura 20. Dona Teresa. A narradora ri e o relato assume o tom de conversa, p. 169.
Figura 21. Dona Nini comea a cantar e seu semblante evoca uma saudade, p. 170.
Figura 22. Dona Nini. A mo gesticula ao narrar as vises da ilha, p. 171.
Figura 23. Dona Nini. O brao se ergue e aponta os lugares onde aconteceram as vises, p.
171.
Figura 24. Dona Nini. O dedo indica firmemente que o rei est querendo tomar de volta a
ilha, p. 171.
Figura 25. Telma. A narradora aponta com energia, ao falar das vises, p. 172.
Figura 26. Telma descreve como o rei aparece, p. 173.
Figura 27. Telma. A descrio da grandiosidade do palcio real visvel nesse quadro, p. 173.
Figura 28. Telma. Os dedos enumeram a riqueza doada pelo rei, p. 173.
Figura 29. Maneco, o novo paj tambm amo do boi, p. 175.
Figura 30. Maneco. Enquanto fala sobre o auto, intercala a fala com toadas, p. 175.
Figura 31. Maneco. De repente, quando o assunto desviado para o rei Sebastio, sua
aparncia muda, p. 176.
Figura 32. Maneco, indicando a origem do encanto, p.176.
Figura 33. Maneco. Sua mo tambm d indicao para onde o rei se mudou, p. 176.
Figura 34. Ribamar. Redes de pesca ao fundo indica o ofcio do narrador, p. 177.
Figura 35. Ribamar. Os dedos geis promovem o ritmo no instrumento de improviso, p. 178.
Figura 36. Ribamar. At a argola de arame, presa bacia, torna-se indispensvel s
sonoridades obtidas, p. 178.
Figura 37. Dunga olha para a cmera e se prepara para entoar, p. 180.
Figura 38. Dunga toca o marac, aps a primeira parte capela, p.180.
Figura 39. Dunga sopra o apito, avisando que a toada acabou, p. 180.
Figura 40. Seu Chico. O olhar do narrador encara o ouvinte, impe respeito, p. 181.
Figura 41. Seu Chico indica a referncia do lugar onde sua famlia morava, p. 181.
Figura 42. Seu Chico faz gestos para dizer como a ilha foi fundada, p. 182.
Figura 43. Seu Chico descreve o palcio do rei, p. 182.
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Figura 44. Seu Chico. A mo coando a fronte indica retomada no relato, p. 182.
Figura 45. Seu Chico. Braos erguidos indicam a areia levantando para formar um muro e
esconder o rei, p.183.
Figura 46. Seu Chico. O dedo indicador atesta que a viso trouxe mal estar, p.183.
Figura 47. Ouroboros. Manuscrito alqumico, Theodoros Pelecanos, 1478, Bibliothque
Nationale, Paris, p.196.
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LEGENDA
Este cone ao lado de um texto, relato ou canto, significa que o trecho faz parte do
DVD documentrio Sebastianos: os narradores de Lenis, parte integrante da tese.
Este cone indica que o texto da cano, toada, doutrina ou relato faz parte do
CD de udio que acompanha a tese. Logo abaixo deste cone, h um quadro com o
nmero da faixa no CD.
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INTRODUO- TRAAR ROTAS E RESERVAR PASSAGENS
mais difcil interpretar interpretaes do que as coisas.
Montaigne
O mistrio isto , a inacessibilidade absoluta no seno a expresso da outridade, desse Outro que se apresenta como algo por definio alheio ou estranho a
ns. O Outro algo que no como ns, um ser que
tambm um no ser. E a primeira coisa que sua presena
desperta a estupefao.
(Octavio Paz, O arco e a lira, 1982, p. 156)
Do inapreensvel. Sendo impossvel apalpar um corpo constitudo de nvoa e vislumbrar sua
pulsao, j que ele pura evanescncia, de que maneira deve-se apresentar um estudo cujo
objeto da ordem do velado e cujo desvelamento, a voz, tambm de natureza efmera?
Diante do inapreensvel, o mundo do saber secularizado desaba, incrdulo de sua
limitao e ao pesquisador parece restar apenas a exposio de suas restries frente
iminente ineficcia de um enfoque terico. Afinal, precisa salvaguardar seu estudo. O que
diro os examinadores diante de um trabalho acadmico assim construdo? Onde se
sustentaria seu trabalho? Qual seria o cho dele? A estrutura do estudo estaria fundamentada
numa base terico-cientfica? O percurso teria consistncia? Projetei-me num pulo, saindo do
cho da teoria e ainda no consegui tocar o solo. No entanto, sequer tateei o objeto, alto
demais. Como percorrer um caminho impossvel, visto que os ps no esto no cho e o corpo
no tem asas? Nessa situao, todo mtodo ineficaz, porque aponta para algo que no
sensvel, uma fissura. Porm, sendo o mtodo um percurso, pensar em caminhar j pr-se a
caminho. Uma sada seria resgatar o comeo, tecendo um discurso sobre o processo, que
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funcionaria quase como uma justificativa do suposto fracasso, uma forma de encontrar luz na
escurido do decurso. Ou encontrar a prpria escurido, j que a luz pode ofuscar a essncia.
Talvez, outro modo de pensar isso seja possvel. Aquilo que nos afasta tambm o que
no une; aquilo que parece ineficaz torna-se, de repente, caminho para o pensamento. E ento
este trabalho se nutre dessa ineficcia para fortalecer-se no que tem de mais concreto: lidar
com o objeto perdido, garantindo sua inacessibilidade. Percorro o caminho aos sebastianos
deparando-me com a inacessibilidade a eles, mas, nessa viagem mesmo, sei que posso lidar
com eles pela ausncia, pela falta, por tentar chegar a uma ilha da qual me afasta, revolto, o
mar do pensamento. A experincia crtica do pensamento que norteia minha pesquisa me tira
do labirinto da indeciso para dizer essa verdade da linguagem com o objeto ausente ou
perdido pelo privilgio da negatividade [...] (PUCHEU, 2008, p. 26)1.
Quando a experincia da linguagem obriga a pensar a falta dela - o negativo - porque a
linguagem no d conta do dizer, que resta a fazer ao poeta, ao filsofo, ao pesquisador?
Dizer o indizvel atravs das fagulhas do obscuro. Mas dizer o que no se diz deixar que a
abertura acontea para outros campos do pensamento e da viso. entregar-se de tal maneira
ao incompreensvel e cegamente permitir-se ver o no-lugar. Habitar um no-lugar na poesia,
na filosofia, na crtica como realizar a experincia mstica, na qual o crente no discute o
significado da experincia, porque ela s se realiza no sentir. como participar da experincia
mtica, na qual o homem primitivo depositava todas as explicaes na palavra sagrada,
atravs da experincia da ritualizao que tambm e sempre uma reatualizao. Deixar que a
palavra no seja buscar o no-lugar. Alis, sagrado quer dizer exatamente marcado com o
sinal. E o sinal da linguagem ser insignificante, ou seja, no se traduz no dizer2.
Ainda que parea uma digresso, este incio quer ser, na verdade, uma espcie de
regresso, uma sesso onde arrisco-me a resgatar o que fui durante o trajeto e,
consequentemente, dar conta das posturas que assumi. Quem sabe, tentando recompor meus
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fragmentos de pesquisador, possa entrever melhor os passos dados, a fim de que meu trabalho
seja compreendido a partir do no-lugar que lhe prprio.
No seria incorreto assegurar que o meu objeto de estudo congrega diferentes reas do
conhecimento e, no entanto, no se sustenta em nenhuma isoladamente. Vejamos: falar de um
rei que perdeu uma guerra convocar a Histria. Mas se esse rei virou lenda e mito a ponto de
suscitar a criao de narrativas por diferentes naes, isso pertence Mitologia. E se a
memria desse rei se encarna no rito e vira culto, isso da ordem da Teologia. Se a figura do
rei modifica o cotidiano de pessoas simples, que explicam os fenmenos com base no
sobrenatural, isso compete Antropologia. Se a presena do rei suscita a construo de um
legado artstico (dana, canto, gesto, pintura, cinema), isso interessa Arte. Se a palavra
congrega canto e conto no ecoar da voz, isso de natureza da Poesia. Este estudo evoca tudo
isso e no tem pretenso de dar conta de nada que no seja o instante das narrativas, as
simultaneidades e temporalidades da palavra que se faz mito, que um dia foi Histria. Sei
onde estou, num abismo. Abismar-se experimentar a sensao desconfortvel de projeo
para um lugar desconhecido, de forma brusca, sem a velha segurana. entregar-se diante do
novo, como quem se atira de um precipcio, certo de que ser amparado no fim. Ou no.
Uma palavra que poderia, ainda que sem muito mrito, amparar o sentido dessa
congregao das diferentes reas em torno de um assunto a interdisciplinaridade3 (ou talvez
a noo de metadisciplinaridade, pensando no mais em disciplinas, mas para alm delas).
Entretanto, no foi meu objetivo entrar nas questes de cada rea, percorrendo seu horizonte
reflexivo. Meu lugar sempre foi e a literatura, ou melhor, a poesia, naquilo que ela tem de
mais originria, uma reunio de eventos, pela palavra. a linguagem o meu esteio, meu ponto
de partida, meu ponto de chegada e, sempre, um porto de passagem. E aqui sinalizo para a
noo tambm da linguagem como o ressoar do silncio. J sei onde meu lugar: preciso
assegurar que estou partindo da poesia para chegar nela. Nesse percurso, vou apenas acenando
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para outras reas, sem ultrapassar a fronteira. Este estudo e deve ser pensado como uma
zona fronteiria, que no se sustenta fora desse limiar e precisa ficar na borda de certos
conhecimentos para ser livre.
Da necessidade de uma etnografia. Era necessrio transformar minhas experincias em
narrativas. Assumindo o lugar de narrador sei que corro riscos ao tomar partido e fazer
escolhas. Mas esta postura no teria como ser diferente, pois a partir da interpenetrao das
vozes do eu e do outro que o discurso se tece e se mostra, num processo dialgico e
polifnico (BAKHTIN). Alm disso, este estudo quer ser entendido menos como um produto
terico-reflexivo e mais como uma rapsdia tecida com as vozes de muitos narradores. Assim,
o narrador retira da experincia o que ele conta: sua prpria experincia ou a relatada pelos
outros. E incorpora as coisas narradas experincia dos seus ouvintes (BENJAMIN, 1985, p.
201). No pode o pesquisador ser neutro, nem conseguir fazer emergir a voz do outro
isolando a sua. Ir ao encontro do outro, conviver com ele, ainda que por pouco tempo,
entrevist-lo, fazer-se presena na vida dele, assumir a condio de um curioso que a tudo
pergunta e que no sabe de nada, anotar, gravar, filmar: eis as funes de um pesquisador de
campo. Na volta para casa, o que resta? Inmeras anotaes, horas de gravaes a serem
transcritas e depois interpretadas com o olhar aguado e puramente engajado. No, no parece
que estou descrevendo uma atividade comum ao pesquisador da Literatura, e, sim, da
Antropologia. Refiz todo o caminho do etngrafo, at agora.
O pesquisador da rea de Letras no seria aquele que se lana noutra viagem, a saber,
o texto j impresso, sobre o qual se debrua para construir teorias? No entanto, quando o livro
que se quer estudar ainda no foi escrito no papel, mas est inscrito nos corpos dos falantes,
que tecem com a voz um discurso sobre um lugar e personagens existentes concretamente na
tradio, que por excelncia de base oral, o pesquisador volta-se para o cerne da literatura,
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que o acontecer potico. Foi assim que li as pessoas com quem convivi. medida que
realizava o meu trabalho, minha cabea ia ficando povoada daqueles seres excelsos que tanto
interferem na vida de pessoas reais. Cada entrevistado se configurava para mim na pgina de
um livro que vem sendo escrito/inscrito h mais de um sculo no espao oval de uma ilha
literalmente isolada. Ao conviver com aqueles pescadores, naquele lugar, era como se eu
estivesse inserido numa enciclopdia viva, e as palavras ganhavam fora maior nos espaos
mitificados da ilha a ponto de qualquer rudo soar para mim com um alerta. Ali tudo tem
sentido, nada acontece ao acaso, naquele lugar em que a condio do homem ser prisioneiro
de um continente-oval e subserviente ao tempo da natureza se quiser usufruir dela. Foi preciso
perceber o tempo sob outra expectativa. Quando um pescador dizia que ia pescar noite, no
era hora do relgio que ele obedecia, mas lua. Para partir da ilha, preciso esperar a mar
subir e se coadunar com o esturio, assim como para desembarcar s vezes necessrio
esperar a mar secar. At as festas do lugar s podem acontecer no quarto-crescente, que
quando os homens voltam da pesca. Quando o sol em unio com a brancura da areia me
obrigava a ficar escondido em casa entre 10 da manh e 4 da tarde, refm da claridade, uma
claridade desconcertante, eu percebia o quanto o homem estava atrelado s foras da natureza
e a ela obedecia piamente. A natureza dita as ordens, domina, coloca o homem no seu devido
lugar.
Eu no queria ser o etngrafo para fazer o papel do antroplogo, aquele que tudo
descreve, ancorado numa pretensa autoridade. Ao tentar retratar uma situao, o antroplogo
no estaria tambm assumindo uma posio similar do intrprete literrio, trazendo para a
cena do seu texto as intersubjetividades e se mostrando como autor ou narrador, numa perfeita
heteroglossia, como indicava Bakhtin em sua teoria dialgica?! (1953). Se na antropologia
interpretativa o pesquisador adquire a funo de um narrador-observador ou personagem,
tambm o intrprete literrio, ao tomar para si a prtica etnogrfica, no se torna neutro diante
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da leitura que faz. Ambos so narradores e a finalidade da leitura que direciona os caminhos.
Literatura e Antropologia caminham lado a lado, tateiam os mesmos espaos, olham a cultura
com os mesmos olhos interessados; mas enquanto uma tende a transformar pessoas em
personagens e fatos em enredos, a outra preocupa-se em mapear o sentido dos ritos, da vida,
das representaes. Seguem de mos dadas, no limite de suas fronteiras. No entanto, penso
que a melhor aproximao para esse mapeamento que fiz seria o termo etnopotica, que me
permite apresentar a poesia no seu cerne, inebriada das vozes, bocas e corpos dos narradores.
Da urgncia do uso da imagem-movimento para apreenso da performance. Desde o
incio do projeto de doutorado, eu sabia que se quisesse trabalhar com a voz e o corpo,
deveria pensar na dificuldade de analisar as vozes dos narradores sebastinicos de modo
satisfatrio. Tal empecilho poderia ter uma soluo no mnimo desconfortvel, a saber, o
estudo com base no material transcrito. Quando a palavra entronizada no papel, perde um
pouco de sua aura e magnitude, passando a ser representao da representao.
A ideia inicial foi trabalhar com gravao de udio, a voz capturada no tempo-espao
de uma performance e presa ao eterno momento de sua enunciao gravada, como diria Paul
Zumthor. Alm dos registros sonoros j coletados por outros pesquisadores (em entrevistas,
curta-metragens e pesquisas etnogrficas), tambm quis fazer minhas prprias coletas. O
primeiro contato fsico com a ilha de Lenis, que eu conhecia h oito anos das pesquisas
bibliogrficas e videogrficas, deu-se em janeiro de 2007, quando fiz as primeiras entrevistas.
Munido de um notebook com programa de udio e microfone, apresentava-me aos ilhus e
lhes explicava o objetivo da pesquisa. S depois marcava a entrevista, que poderia acontecer
logo em seguida ou apenas no outro dia.
De posse das entrevistas, o trabalho seguinte foi ouvir pacientemente cada gravao
para fazer as transcries. Aqui, um novo impasse surgiu, pois era imprescindvel escolher
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entre realizar a transcrio literal (aproximada da fala, com as pausas, indicaes de risos, uso
do registro fora do padro gramatical) ou adaptada escrita, sobretudo com cortes de
repeties, supresses de palavras de retomada (anafricas). E nesse momento percebi que
nunca estaria no meu texto o texto tal qual fora dito. Tampouco resgataria e transmitiria ao
leitor o momento, o lugar, as expresses corporais, as modulaes verbais to significativas
no instante nico da entrevista.
Foi a partir da que senti a urgncia de tambm filmar os espaos da ilha e as
entrevistas. Assim, eu poderia ver, quantas vezes quisesse, os gestos, as entonaes, os rudos
dos entrevistados, elementos muito importantes na leitura, e sem os quais a palavra seria
destituda de suas marcas de temporalidades e espacialidades. isto, portanto, o que constitui
o termo performance no meu estudo: o corpo da voz no corpo do narrador, no corpo da terra
em que ele habita. A captura da imagem e do som, decerto, acaba por interferir na
apresentao de tudo isso, pois a escolha da modulao da cor, a tomada de cena, os cortes na
edio, o volume do udio, enfim, alteram significativamente a percepo do olhar. Mas a
que tambm est o meu papel de narrador. No h neutralidade nesse tipo de trabalho. Nunca
houve. Deixar que o leitor/espectador leia a partir de minha leitura um caminho possvel.
No sei se seguro, mas meu caminho que ofereo generosamente e sem esperar outra coisa
que no seja a vontade de oferecer o narrado. Abertura para um espao virtual, a imagem na
tela pura heterotopia, termo impresso por Foucault, mundo projetado para alm do real e
que espelha outros espaos simultaneamente.
De posse de uma cmera HDV, a minha preocupao ao chegar a Lenis era com a
reao dos entrevistados. Afinal, no qualquer pessoa que se mostra vontade na frente de
um quase desconhecido portando uma cmera nada discreta, alm de outros materiais. No
entanto, para minha surpresa, ao montar o aparelho e comear a conversar, percebia que o
entrevistado sequer notava a cmera, diante do que tinha para contar. A mim parecia que cada
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um entrava numa espcie de transe, pela palavra que proferia e, de modo muito natural, a
entrevista tornava-se a captura de um momento mgico, sagrado, ritualizado na confluncia
da narrao e do canto.
O documentrio Sebastianos: os narradores da Ilha de Lenis a minha verso da
lenda do Rei Sebastio. Nele h a palavra, a imagem e o silncio. Talvez o espectador possa,
durante sua exibio, vislumbrar o sentido do termo Encantaria, quando toda a ilha deixa de
ser simplesmente uma ilha paradisaca e passa a ser narrada como morada do Encoberto.
Embora ache que a tese apresenta uma nuance de rapsdia na medida em que cantos e
contos foram costurados para dar conta de uma unidade narrativa, ela deve ser percebida mais
como um livro de viagem, um dirio de bordo ou relato de viagem. Logo no incio, entrego a
voc a carta nutica nmero 400, que corresponde aos espaos que iremos visitar. A seguir, os
captulos apresentam as rotas que percorreremos, navegantes, rumo a um lugar que no fica
em lugar algum. Para ler performaticamente ao longo do texto aquilo que est documentado
no CD e no DVD, cones indicam que o texto ao lado corresponde a um arquivo de udio ou
vdeo.
Dos desdobramentos da pesquisa. Ultrapassando os limites acadmicos, dois produtos
surgiram como consequncia da minha pesquisa: um livro infantojuvenil e uma casa de
cultura para a Ilha de Lenis (memorial e biblioteca)4. No estavam nos meus planos, mas
surgiram, culminando meu projeto. Prova de que o conhecimento acadmico deve mesmo
suscitar uma mudana na sociedade. Nada mais justo devolver o conhecimento ao verdadeiro
dono.
O texto do livro O rei que virou lenda (Editora A Girafa, 2009), ilustrado por Eloar
Guazzelli, nasceu num momento em que eu andava atormentado, com dificuldade para
organizar os relatos dos entrevistados em linguagem acadmica sem lhes silenciar. Queria
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deixar que os ilhus falassem por eles mesmos, sem a necessidade de fazer ressoar sua voz a
partir de tericos. Para mim no estava clara ainda a rota das dices. Por outro lado, cabia a
mim organizar essas falas como quem constri uma narrativa de fico. Os rumos dependem
do autor, ainda que o leitor recrie suas rotas. Ento, imerso na histria do rei Sebastio e nos
relatos de suas vises, escrevi essa narrativa em forma de poema. Os seis poemas podem ser
uma outra leitura da tese, j que fao o mesmo que fiz academicamente, ou seja, narro a
histria do monarca, de como ele, saindo da histria para entrar no mito, acabou por
abrasileirar-se. Os seis poemas-captulos so acompanhados por seis ilustraes em traos
prprios do universo das histrias em quadrinhos. Os poemas foram impressos em fonte
branca sobre o fundo terracota para sugerir a realeza do Encoberto.
A casa de cultura da ilha de Lenis comeou a ser desejo meu quando, em 2008,
numa das visitas para pesquisa, ouvi que a comunidade havia tentado construir uma biblioteca
com a ajuda de um rapaz que conviveu com eles e trouxera muitos livros doados. A casa no
foi feita e os livros estavam se estragando nas casas de alguns moradores. Antes disso, eu j
pensara em doar todo o material que me serviu de pesquisa, sobretudo obras bibliogrficas e
videogrficas sobre a lenda do rei Sebastio naquela ilha. Para Lenis se dirigiram e
continuam se dirigindo inmeros pesquisadores, alm de reprteres, a procura das belezas
naturais quase intocveis ou atrados pela exotismo dos albinos que ali moram. Se por um
lado esses documentos preservam a memria desta comunidade, por outro, quase nada desse
material era conhecido pelos moradores. Agora, com a chegada da energia, e com ela a TV, o
DVD e o aparelho de som, j esto ameaadas as conversas noite, quando velhos e jovens
contavam suas experincias e relatavam as histrias dali. tempo de trazer de volta aquilo
que eles j esto perdendo, a riqueza da tradio oral.
Diante disso, o Memorial Rei Sebastio foi construdo com o objetivo de trazer a
memria dos velhos ao espao cotidiano do jovem, utilizando sua linguagem, j que o dilogo
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est ficando escasso, garantindo que as crianas reconheam a herana cultural mtica e
sintam o desejo de perpetuar esse imaginrio. resultado do esforo de muitos amigos que
me ajudaram com doaes e campanhas. A comunidade de Lenis tambm deu sua parcela
de ajuda e no dia 20 de janeiro de 2010 (dia do aniversrio do nascimento do rei Sebastio e
dia de So Sebastio) a casa foi inaugurada com muita festa. O espao cumpre trs propsitos:
abre-se ao morador para que ele reconhea sua histria nos objetos ali presentes, oferece ao
turista a riqueza cultural da ilha e acolhe o pesquisador interessado sobretudo no
sebastianismo. Trata-se de um espao mltiplo de apresentao, preservao e construo de
saberes. Fundado por voluntrios, tambm est sendo gerenciado por voluntrios.
Resta agora dizer que, antes da viagem, eu era o inexperiente, a ilha era o
desconhecido; as rotas, percursos incertos. Ento me pus no caminho das rotas que me foram
possveis. Se o objetivo era experienciar o novo, aquilo que para mim soava distante, aqui
revelo no a experincia que tive, mas aquela que no me foi dada enquanto l estive. Na
qualidade de um ex-viajante que, revendo suas imagens, as anotaes dos dirios, as
passagens e bilhetes, s quando a viagem j no existe que a linguagem dela comea a
vigorar. S quando no h mais viagem que podemos pensar o que ocorreu. E desse ponto
em diante, as imagens reminiscentes adquirem seu poder simblico, dizvel, posto que durante
a viagem, estvamos cegos pelo xtase puro do viajante deslumbrado. Nem por isso, deixei de
ser inexperiente.
Que venham outras viagens!
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NOTAS
1 Portanto, uma teoria que trabalha a negatividade, tal qual se configura no projeto de Agamben, que me d
segurana neste trabalho. A ideia da experincia da linguagem como a falta, o negativo, se mostra de modo
preciso no ensaio de Pucheu sobre o Estncias, do Agamben: Da linguagem que deseja falar o no-lingustico, recusado, chega-se a uma vivncia da linguagem que traz em si o negativo, a rachadura que impe uma falta no
s entre a realidade no-lingustica e a linguagem, como entre o homem e a linguagem, em uma infncia que,
desde sempre e para sempre, nos constitui em todas as idades. Do mesmo modo em que se fala de um objeto
perdido, poder-se-ia falar de um sujeito perdido. Ao homem, falta o prprio homem, e, nesta falta, destitudo de
si, suprimido justamente disso que o conserva, lanado numa vacncia indizvel, o lugar do homem se mistura a
um no-lugar, o homem se confunde com o inumano. O homem um vivente divorciado de si pela linguagem
que, nele, abre o negativo (PUCHEU, 2008, p. 26) 2 Nesta ambincia da experincia da linguagem do ser negativo do homem que, assim, faz emergir o vazio do
fundamento, realizando-o, se apresenta uma poesia pura, uma filosofia pura e uma crtica pura [...] (PUCHEU, 2008, p. 26).
3 O rei Sebastio e o bumba meu boi so temas maranhenses pesquisados nas mais diversas reas acadmicas. Se
alguns estudiosos focalizam a o histrico, outros querem dar conta da indumentria ou da organizao do rito e
da brincadeira. Outros, ainda, se fixam na recepo dessas manifestaes pela mdia do passado e do presente .
H tambm quem investiga a apropriao da linguagem e do discurso popular para fazer uma releitura nas artes
visuais. Temas interdisciplinares por excelncia, que obrigam o pesquisador a aventurar-se por outras fronteiras.
Alm das obras que fazem parte da bibliografia, cito como exemplo alguns trabalhos acadmicos relevantes
sobre o sebastianismo no Maranho, alm, claro, das obras literrias, teatrais, miditicas e plsticas inspiradas
no imaginrio sebastinico maranhense e mencionadas ao longo da tese. Os cursos esto sublinhados, para ser ter
noo da amplitude do tema estudado e do interesse de reas distintas:
a) SANTOS, Tnia Lima dos. Do mito sebastianista lenda de D. Sebastio no Maranho. Mestrado em Letras,
Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, 1999.
b) GODOY, Mrcio Honrio de. Dom Sebastio no Brasil: fatos da cultura e da comunicao em tempo/espao.
Mestrado em Comunicao e Semitica. Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, 2000.
c) PEREIRA, Madian de Jesus Frazo. O imaginrio fantstico da Ilha dos Lenis: estudo sobre a construo
da identidade albina numa ilha maranhense. Mestrado em Antropologia. Universidade Federal do Par, UFPA,
Brasil, 2000.
d) FELIZOLA, Ana Alice de Melo. Rei Sebastio: o mito narrando naes. Curso de Mestrado em Letras,
Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Par, Belm, 2001.
e) PEREIRA, Rosuel Lima. O Sebastianismo e o imaginrio brasileiro. Mestrado em Letras. Bordeus, Frana,
2001. (Atualmente est desenvolvendo tese sob o ttulo: O papel das Ordens religiosas na divulgao do
sentimento sebastianista nos sculos XVI e XVII no Brasil -Maranho. Universidade Michel de Montaigne -
Bordeaux III Bordeus. Departamento de Estudos Ibricos e Ibero-Americanos).
f) ANDRADE, Joel Carlos de Souza. Os filhos da lua: Poticas sebastianistas na Ilha dos Lenis MA. Dissertao de Mestrado em Histria. UFCE. Fortaleza, 2002
g) SILVA, Claudiclio Rodrigues da. Uma esttica da oralidade: Problemtica da potica oral. Mestrado em
Teoria Literria. Universidade Federal Fluminense. Niteri, 2005 (Aqui eu j menciono o mito sebastinico e
fao um elenco do que viria a ser analisado no doutorado).
h) PEREIRA, Madian de Jesus Frazo. O Patrimnio da ilha encantada do rei Sebastio: bens simblicos e
naturais no cenrio do ecoturismo e das unidades de conservao. Doutorado em Sociologia. Universidade
Federal da Paraba, 2007.
i) GODOY, Mrcio Honorio de. Dom Sebastio no Brasil: Das Oralidades Tradicionais Mdia. Doutorado em
Comunicao e Semitica. Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, PUC/SP, 2007.
Alm desses trabalhos acadmicos, cito dois outros que me chegaram aps a concluso da tese. O primeiro um
espetculo de dana chamado A dana do Encoberto, de autoria de Larissa Malty, de Braslia, 2001, com msica
composta por Marcello Linhos, violeiro, instrumentista e compositor. O espetculo foi apresentado em So Lus,
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Braslia e Madri. O outro trabalho o documentrio A Ilha de Dom Sebastio, de Ivan Canabrava e Marcya Reis,
Braslia, 2002.
4 O texto original do livro e a ata de inaugurao do memorial, bem como fotos da construo e inaugurao
esto nos anexos.
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ROTA I
BARCO SEGURO, LEVANTAR NCORA, IAR VELA,
RUMO NORTE.
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1. PANORAMA
Na segunda metade do sculo XIX, pesquisas sobre oralidade tentavam desvendar a dinmica
da poesia oral, tomando como produo modelar os eptetos da composio grega arcaica dos
sculos XII-VIII a.C. (Ilada, Odisseia, Teogonia, por exemplo). Numa sociedade
eminentemente oral, a poesia era o fundamento, e por ela as leis eram dispostas, os ritos
celebrados, o passado presentificava-se e se designava o universo. Na voz dos aedos e
rapsodos, a poesia congregava deuses e homens na ao/germinao da palavra. Todas essas
pesquisas tomavam como ponto de partida a poesia de comunidades pr-letradas
contemporneas aos pesquisadores para se chegar dinmica da poesia grega arcaica, num
mtodo comparativo. As diversas reas (Antropologia, Literatura, Artes Cnicas, Histria,
etc.) estudavam o mesmo objeto oral sem perceber que era a performance o termo comum e
integrador de tais estudos.
Sculo XVI d.C. - Portugal espera um rei ardentemente. O desejado nasce, e o reino no cai
em mos espanholas. Aos 24 anos, na frica, numa batalha contra os mouros, o rei perece,
tornando-se o Encoberto, e s resta a Portugal voltar a sonhar com o seu retorno, para a
fundao do Quinto Imprio. Metrpole e colnias constroem e passam a alimentar o mito do
ocultamento, propagando-o atravs de narrativas orais, trovas, cantos, cartas, sermes e
relatos da vida e da morte do rei.
Sculo XXI. Passados quatro sculos, o rei ainda esperado nas naes lusfonas e ressurge
nas artes verbais faladas, cantadas e escritas. assim que, no Maranho, a figura do Rei
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Sebastio ressoa familiar tanto na Ilha de So Lus (capital), quanto na Ilha de Lenis, uma
comunidade de cerca de 300 habitantes, a oeste do estado, na regio das reentrncias
maranhenses. Numa prosa informal, nas doutrinas entoadas por mineiros (representantes do
rito afro-maranhense do Tambor de Mina), nas manifestaes populares, na msica e na
literatura, o rei aguarda o grande dia: quando seu reino emergir do fundo do oceano, para
fundar, no Maranho, o novo Imprio.
Esses percursos se unem na minha pesquisa, convergindo para o fundamento da
palavra, o cerne desse caminhar. Palavra oralizada e oralizante, corporificada. Vejamos o
ponto de partida. Da Grcia, busco nos deuses, aedos, rapsodos e nas vozes das Musas uma
elucidao da funo da Poesia, para a anlise mais fecunda das narrativas sebastinicas
faladas e cantadas nas ilhas maranhenses. Como a Poesia os inspirava a narrar as grandezas
do mundo sagrado, uma vez que no havia o registro escrito? Dos deuses, desejo que sua
cosmogonia me sirva de sustentao na tese da construo de um mundo pela palavra; mundo
sagrado, mtico e mstico que na Poesia tem o poder de irromper. Isso capaz de me acenar
para o qu? Por enquanto, vislumbro a estruturao de uma mitopotica das ilhas
maranhenses que, semelhana do mundo grego grafo, explicaria seu cotidiano e os
fenmenos naturais a partir de uma cosmoviso mtica, cujo centro a figura de Dom
Sebastio. E nesse caminho que se pe meu passo.
Sobre o alicerce da memria oral, no Maranho, uma mesma narrativa costurada de
diferentes modos, com distintos materiais. Nas vozes dos cantadores e contadores, as palavras
tecem fios multicoloridos, construindo uma colcha rendada e enredada de lendas e mitos. Pelo
poder da palavra professada e cantada, essas vozes trazem constantemente ao presente o
passado e o futuro, atravs dos ritos e da brincadeira.
Tal criao potica, unindo-se memria e histria, concretiza-se nas vozes dos
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ancios, pela perpetuao da tradio, onde a memria produz, alimenta e d vigor ao
imaginrio, anunciando e instaurando o novo. As vozes polifnicas das toadas do boi nos
largos e praas, os cantos dos encantados do culto afro-maranhense do Tambor de Mina e as
conversas e relatos fantsticos de um prosador: eis o legado potico.
A Poesia quer ser ouvida, no apenas lida; quer ser cantada outra vez. A Poesia quer de
volta o seu estatuto, palavra como fundamento, funo que constri, restaura e salvaguarda
um mundo. A voz necessita de um corpo palpvel, ainda que ele no seja o fim, mas apenas a
via de acesso para a sua materializao. Se a Poesia ao criadora corporificada, cad o
corpo da palavra? Para falar do corpo preciso deixar o corpo falar, dar voz voz emudecida,
silenciar mais ainda o que silncio, a saber, a palavra escrita. preciso resgatar o corpo. Eis
a urgncia do nosso tempo: entronizar a voz no templo da poesia, corporificando-a. Parece um
paradoxo falar da voz na terra da letra. No mundo grafocntrico, a palavra escrita vale por
verdade, papis ganham status de documentos, de jias, enquanto a fala, acusada de
instantnea, nem ouvida claramente. Mas no toa que nas comunidades interioranas,
onde todos se conhecem e a vida parece transcorrer num ritmo mais calmo, as leis, os
testamentos e os tratados ainda so firmados pela boca, mesmo que depois sejam fixados na
moldura oficial do papel. Pronunciada na frente de testemunhas, a voz vale tanto quanto um
pedao de papel carimbado num cartrio. Te dou a minha palavra soa como carimbo,
afianando o compromisso assumido. Ora, ningum d a palavra por dar. que a palavra dada
vai ao outro cheia de confiana. Vou cumprir minha palavra teria, por conseguinte, o
mesmo peso de responsabilidade que a assinatura de um documento escrito e lavrado. o
estatuto da palavra com o vigor da voz, que tambm prova da justia nas relaes em que a
palavra oral o fundamento. O homem oferece aquilo que de mais valor ele tem: a palavra.
Na pesquisa para o mestrado1, meu objetivo era estudar o contexto do sebastianismo
nas manifestaes maranhenses que tm o oral como suporte. No entanto, medida que
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coletava material para o estudo, deparava-me com uma diversidade de textos que nem sequer
caberiam naquilo que se costumou nomear de literatura oral. Na verdade, o que se
convencionou designar literatura oral no teria muito sentido ao ser aplicado a esse corpus,
pois incorreria numa abordagem dicotmica, por oposio literatura escrita, sempre vista
como superior, erudita, enquanto a outra seria destituda de valor autoral por ser fruto da gente
iletrada2. Essa lacuna em termos tericos e a dificuldade de encontrar teoria que no tratasse o
objeto de forma dspar entre cultura grafa e cultura letrada, cannica ou no, erudita ou
popular, me fez tentar pensar a poesia oral sem ter que justificar na polarizao a defesa de
uma ou outra forma de representao do imaginrio. Por essa razo, desloquei o foco da
pesquisa, procurando inicialmente percorrer o caminho dos tericos da oralidade, no intuito
de encontrar uma esttica da poesia oral. Porm, ao agir desse modo, tambm no estaria eu
incidindo numa abordagem dicotmica? Se o foco da minha pesquisa consistia em mostrar o
vigor potico do oral e seu discurso mtico absorvido pelo escrito, minha preocupao no
deveria ser no contraste oralidade/escritura, mas na tentativa de buscar um caminho vivel
para apresentar essa potica sebastinica sem incidir numa anlise folclorizada por um lado,
ou, por outro, num estudo com base na tradio escrita, ambas culminando no uso do termo
literatura oral. Por isso, achei mais coerente percorrer o caminho das controvrsias da
poesia oral e da literatura, apresentando uma dissertao que apontava a problemtica da
potica oral para estar mais seguro (e, sobretudo, mais liberto) no doutorado.
Resumindo: cunhado no sculo XX por oposio a literatura escrita, no suportando o
hibridismo das produes verbais, o termo literatura oral3 nunca abarcou a diversidade de
gneros constituintes de uma poesia oral, preterida pela academia, e somente estudada na rea
das cincias sociais como artefato folclrico. Fora essa excluso do mundo das letras, h que
se levar em conta a dificuldade de classificao de uma tipologia oral, em meio a uma
variedade de gneros. A pequena lista a seguir apresenta a dimenso da produo oral e o
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problema de conceituar tal objeto em estudos tradicionalmente da ambincia da escritura:
a) pequenos relatos de fatos reais alimentados com a imaginao do prosador;
b) ditos e provrbios;
c) cantos de natureza ldica ou de trabalho;
d) cantos litrgico-religiosos, originrios do culto oficial ou provenientes das
manifestaes populares e sincrticas (misturas de cultos e ritos populares marcados por cores
locais) como pontos e doutrinas;
e) trovas populares e cordis produzidos inicialmente para declamao ou para o canto
em praa pblica, acompanhados de viola, que mais tarde foram adaptados para folhetos
impressos numa linguagem coloquial (herana dos romanceiros europeus).
f) lendas, mitos e relatos fantsticos envolvendo personagens do passado ou memrias
de fatos cotidianos, ampliados pelo fundo sobrenatural e com traos cmicos, satricos ou
dramticos;
g) repentes, desafios e cantorias, acompanhados de viola;
h) toadas de manifestaes populares de rua;
i) a produo nos grandes centros urbanos dos happenings e canes representativas
populares nacionais que usam como suporte outras mdias, como o vdeo e o cd;
j) releituras urbanas de cancioneiros, cordis e repentes, atravs de uma roupagem
rtmico-performtica contempornea.
Atravs desses caminhos diversos, mltiplos e divergentes, e para alm das querelas
dicotmicas, pude constatar que o nico acesso a uma potica da voz pressupe um retorno
ao sentido originrio da poesia, gesto de mundo, fundamento de um universo, quando tudo
era descrito e narrado poeticamente, no rito performtico, e por isso sacro. Quando a cultura
era eminentemente oral, a poesia produzia o livro vivo nas vozes dos ancios, numa
enciclopdia oral, desenvolvida no cotidiano social, poltico, religioso e de lazer.
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Meu percurso por esta temtica parte do seguinte pressuposto: busco uma
interpretao do interesse do sujeito ps-moderno com o resgate daquilo que foi remediado
pelo mundo racionalista, a saber, o mito, o rito, as manifestaes e comportamentos de
comunidades no-inseridas nos espaos modelados pelos iluministas, espaos estritamente
grafocntricos nos quais estamos mergulhados h tempos. poesia dos no-letrados que
recorro. Por que o interesse pelo canto, dana, lendas e mitos dessas camadas sempre postas
margem do conhecimento e da cidade?
H quase um sculo, Walter Benjamin denunciava a pobreza nas relaes humanas, a
escassez da experincia, ou melhor, a ausncia da transmisso das vivncias pelo puro prazer
de contar. A fonte onde bebem os narradores, a experincia, estava em desuso, com a pressa
gerada por uma era em que o lucro que controlava os ponteiros do tempo, a humanidade
acabava de acordar ainda tonta do pesadelo que foi a Primeira Guerra e vivia na iminncia de
uma outra mais poderosa e catastrfica. Mas no parece contraditrio que uma sociedade que
vira morrer um sculo e nascer outro, vivera o sonho do progresso, e no auge da Belle poque
fora arrebatada ao pesadelo das trincheiras, voltara da guerra nula de histrias e, portanto,
empobrecida de experincias, justamente essa sociedade seja atualmente explorada por todos
os mecanismos ficcionais, sobretudo a literatura e o cinema? Todos os anos somos
bombardeados por uma infinidade de narrativas que ficcionalizam a brutalidade que
emudecera os verdadeiros personagens. Comeamos o sculo XX pobres de narradores, uma
vez que aquelas experincias no deveriam ser rememoradas, e comeamos o sculo XXI
regurgitando esses horrores em nome do entretenimento. Prazer pelo horror ou seria
expiao? Pobreza de experincia ou busca pelas vozes emudecidas que podem ser instigadas
a ecoar enquanto tempo?
Benjamin assegura que entre as narrativas escritas, as melhores so as que menos se
distinguem das histrias orais contadas pelos inmeros narradores annimos (1985, p. 198).
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Dois modelos arquetpicos desses narradores so o campons que, cuidando da terra, morre
ali no seu lugar; e o marinheiro, que percorre terras distantes, comercializando. Ambos tm o
que contar uma vez que, suas experincias, por mais dolorosas que sejam, aguam uma
escuta. Nesses dois narradores residem duas formas de narrar: um traz ao seu lugar as
experincias de lugares distantes, enquanto o outro traz de um tempo distante, pela memria,
uma tradio passada de gerao a gerao. Benjamim associa essa arte de narrar arte de
tecer, o trabalho manual propiciava o desenrolar da prosa, lenta e calma, no ritmo preciso da
agulhada na rede, ou da martelada no sapato, ou ainda, no preparo do alimento. Os artfices,
portanto, foram os herdeiros dessa experincia narrativa dos dois arqutipos de narradores
(BENJAMIN, 1985, p. 199). Se as experincias de narrar esto em baixa, isto se deve pelo
fato de que acordamos todos os dias simplesmente cheios de notcias, repletos de cobertura
dos fatos, e assim passamos o dia, sendo bombardeados pela informao, mas essas
informaes no esto a servio da narrativa, continuamos pobres em histrias
surpreendentes (BENJAMIN, 1985, p. 203). Enquanto a informao s til na sua
efemeridade, e uma vez que lanada j no ter mais serventia, a narrativa continua resoluta,
conserva suas foras e depois de muito tempo ainda capaz de se desenvolver
(BENJAMIN, 1994, p. 204).
parte isso, principalmente na segunda metade do sculo XX, ao mesmo tempo em
que as cidades se avolumaram, incharam, e o campo se despopularizou, ps-se em evidncia o
universo rural, analfabeto, marginal e popular nos mass media que culminou numa verdadeira
enxurrada de pesquisas acadmicas sobre o tema. O mundo ficou pequeno, do tamanho das
novas tecnologias, que reduzem os espaos e fundem as paisagens, dando ao homem a falsa
impresso de conhecer todos os lugares ao mesmo tempo em que lhe tira o direito
explorao no-virtual dos territrios. As subjetividades foram ento ameaadas pela
homogeneizao do sujeito. Os ciberespaos promovem, segundo Guattari, uma
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desterritorializao do ser humano:
O ser humano contemporneo fundamentalmente um ser
desterritorializado. Seus territrios, existncias originais corpo, espao domstico, cl, culto no esto mais plantados em solo estvel, mas integram-se desde agora em um mundo de representaes precrias e em constante movimento (1994, p. 9)
A crise do racionalismo exacerbado aponta para essa necessidade de uma volta s
origens, como foi a revoluo romntica em fins do sculo XVIII e incio do sculo XIX. O
autoritarismo da razo, conduzindo a humanidade viso cronolgica, no possibilitou uma
abertura do pensar, ao contrrio, preparou-nos para uma totalizao do pensamento, e nos fez
chegar ao Terceiro Milnio com o bojo acumulado e nos sentindo vazios, conforme assegura
Portella:
Sculo vespertino vem a ser sculo de acumulao e de vazio. Todas as
conquistas, os afazeres e as tarefas, os relacionamentos, as instituies, os
grupos e os indivduos, tudo enfim protegido, promovido e favorecido. Ao
mesmo tempo em que hipoteca a liberdade e paralisa a criatividade. Estamos
falando do amparo que subjuga. Impera por toda parte um espao saturado
pelas dependncias de ter e no ter.1
Esse sculo vespertino, uma metfora para o que Portella denomina de modernidade
tardia, est repleto de ambivalncia e ambiguidade, quebrando qualquer paradigma, inclusive
o lugar da Histria e seu olhar carrancudo para a narrativa. E um recomeo esboado pelo
homem. Estamos sempre num recomeo.
Talvez, preocupado com a perda do sonho, o homem desterritorializado busca resgatar
sua ancestralidade, procura fincar os ps no cho de um caminho possvel. As pesquisas
etnogrficas, a Etnomusicologia, a Antropologia, a Etnocenologia, a servio de uma
transdisciplinaridade, tm colaborado para um caminho que culmine no mais numa
polarizao bem moda racionalista do erudito/popular, letrado/iletrado, centro/margem, etc.,
1 Palestra proferida em 10 de fevereiro de 1999, por ocasio das instalaes do Comit Caminhos do pensamento
hoje, Paris: UNESCO/colgio do Brasil (ORDECC), sob o ttulo Revisitando o comeo da Histria.
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mas a uma reconduo dos espaos subjetivos. Nessa perspectiva, o corpo se insere como a
ponte vivel, e cobra seu espao, seu territrio. Mais prximo do que Guattari denomina
ecosofia, essa expectativa vigente na atualidade procura destituir o totalitarismo do
pensamento, inserindo uma escolha tico-poltica da diversidade, do dissenso criador, da
responsabilidade frente diferena e alteridade (1994, p. 10). preciso, pois, buscar novos
caminhos para o pensamento, espaos onde as mentalidades sejam reterritorializadas. Guattari
aponta um itinerrio:
Recuperar o olhar da criana e da poesia, ao invs do olhar cego e seco para
o sentido da vida, prprios dos especialistas e tecnocratas. No se trata de
opor aqui a utopia de uma nova Jerusalm Celeste, como aquela do Apocalipse, face s urgncias de nossa poca, mas de instaurar uma nova
Cidade subjetiva no corao mesmo de suas necessidades, reorientando as finalidades tecnolgicas, cientficas, econmicas, as relaes internacionais
[...] e as grandes mquinas dos mass mdia (GUATTARI, 1994, p.11).
Ensaiando passos no caminho apontado por Guattari, minha reflexo no mira o olhar
para os habitantes do corao da cidade, mas queles que formam um corpo na unio dos seus
corpos, e celebram um novo comeo, ou um recomeo: os habitantes da margem, os isolados,
no sentido mais etimolgico que a palavra isolar possa ter, a saber, o habitante ilhado, ou
tornado ilha. Os espaos perifricos da urbe servem agora de cenrio para uma polifonia que
se apresenta aos olhares acadmicos, vindos do centro da cidade, para beber da fonte, e
resgatar o novo homem na voz mitopotica. No se trata de um olhar antropolgico,
sociolgico ou, ainda, de natureza folclorizante. Tampouco constitui um olhar isolado. Trata-
se de olhares plurais, caleidoscpicos, destitudos daquele saber arrogante que ia ao primitivo
para especular, interpretar. O objetivo agora buscar no outro o pedao de ns que ficou
perdido, j que ele a fonte primria desse conhecimento.
Portanto, interessa perceber a linguagem potica que funda o sagrado (tomado aqui
no como suporte da religio, mas como essncia formadora do homem), denuncia a histria e
instaura o novo pelo vigor potico. O territrio do sagrado no se limita, pelo contrrio,
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agrega todas as vozes e mundos para celebrar a promessa, na liturgia do mito.
Assumo, pois, a condio de um narrador viajante, o marinheiro. Viajo para longe, a
um lugar ermo, a fim de buscar o tempo necessrio para o ouvido atento. l que encontro o
narrador pescador, que, embora nunca tenha sado do seu espao, tem muito a contar para
quem tem todo o tempo a ouvir. Numa cabana de palha e madeira, enquanto conserta a rede
para o trabalho noturno, o narrador vai tambm tecendo os fios das histrias. Com a agulha e
a linha vai alinhavando e dando ns na rede, e alinhando os eventos que ouvira dizer ou
presenciara. Para esta viagem, de certo modo, foi preciso que eu me afastasse do mundo
letrado a fim de voltar-me comunidade de oralidade secundria, que produz sua poesia
totalmente com o auxlio da memria e do oral.
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1.1 NATUREZA E SENTIDO DO IMAGINRIO MTICO
Vida. Morte. Destino. Trs palavras fortes. To densas que no suportam o peso do
prprio sentido. Mas elas s tm esse peso para quem foi agraciado com a capacidade de
experienciar a linguagem. Elas s causam medo para quem se pergunta sobre elas. O que a
vida para um animal? O que significa morrer para uma planta? E que ideia uma rocha faz do
destino? Se apenas o homem tem a capacidade de transcender, isso significa que no h
escapatria. Todo o pensamento humano se esfora para entender o contedo dessas trs
palavras. Para que nascer? E, se nascemos, por que devemos acabar? Somos destinados a qu?
Esse pensamento privilgio apenas de filsofos, cientistas e poetas? No, todo homem est
em contato o tempo todo com uma voz que o guia por caminhos ou rios de questionamentos.
Percursos tortuosos que s vezes do em algum lugar e muitas vezes em lugar algum. Desde
que o homem homem, para alm das divergncias da escala evolutiva da espcie humana,
desde que o homem pensa, no h nada mais desafiador do que o contedo dessa trade. O
pensamento fez o homem buscar uma outra experincia da realidade, para alm do fsico, do
sensvel. H um mundo inteligvel, abstrato, que ultrapassa nossa finitude, nossa limitao
fsica.
Por que nascemos? Essa indagao surge quando nos damos conta de que a vida
transcorrer e esse desenrolar nos cobra aes. E quanto mais nos aproximamos da morte, mais
a ideia da vida ferve em nossas veias. Com ela nos apegamos. No queremos desistir dela. Por
que devemos morrer, se nos foi permitido saborear o gosto da existncia? Se pudssemos
subverter a natureza e mudar o curso... Se pudssemos ser donos do nosso prprio caminho...
E no somos? No escolhemos entre variantes infindas? No existe o infinito para o vivente.
Um dia vamos morrer e tudo poder estar acabado. O ser passou para a categoria do no-ser.
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Aquilo que o homem acha mais bonito, a vida, ser aniquilada. nesse momento que l
dentro comea a rebentar uma revolta, uma vontade de pedir retratao existncia, um
desejo enorme de justia. No justo dar o gostinho da vida para tir-lo em seguida. No
direito no dar possibilidades de escolha diante da morte. No tico que um ser sozinho, a
natureza, resolva brincar com os seres. Mas o que justia, o que direito e o que tica?
Outras palavras que o homem criou para ajud-lo a suportar a carga pesadssima daquela
trade.
O que fazer, ento, diante de to desafiadoras questes? Desde que o homem teve o
seu primeiro espasmo diante de um trovo e saiu a imitar o barulho, e o raio flamejante
possuiu o galho despertando neste homem uma paixo, e a gua borbulhante conduziu este
homem a um balbucio, e o bisonte despertou o desejo de captura atravs da tintura na caverna;
desde que esses arroubos de conscincia habitaram o homem, foi descoberta a passagem para
o mundo paralelo e inteligvel. Basta que analisemos as descobertas arqueolgicas sobre os
homens pr-histricos para chegarmos concluso de que l, bem no comeo, o medo girava
em torno da trade vida, morte, destino. O impulso do desejo o medo. Mas no o medo
paralisante.
Por que enterrar o morto? Ainda mais: por que enfeit-lo, vel-lo, construir para ele
um templo, ench-lo de recomendaes, rode-lo de presentes, cerc-lo de lamentos ou festa?
Por que preocupao com aquilo que j no mais, que no tem mais sentido no mundo
sensvel? que morto est o ser, mas no a morte. Ela est ali presente, com toda sua
majestade, com toda sua grandeza. Ela est ali dizendo para quem quiser ouvir: Derrotei a
vida. Derrotarei sempre. No h como fugir. Eu sou o teu destino. Mas, paradoxalmente,
tambm ali, num funeral, realizado h milnios, que est a fraqueza da morte. No momento
em que se valoriza a fraqueza, o homem se descobre grande perante o inevitvel. Diante do
morto, urgente que se celebre a vida, que seja lembrada uma trajetria, prodgios e
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conquistas. No apenas pelo morto que se chora, seno tambm pelos vivos, para que
continuem vivos, para que sejam mais fortes ainda diante da ameaa constante. Os mortos no
escutam a sua histria4, mas os vivos precisam dela para dizer tudo o que a existncia capaz
de permitir e, enfim, sonharem com uma possvel eternidade.
Eis a instaurao do mito. Estava fundada a mitologia, a religio e tudo o que somos
hoje enquanto pensamento. Imaginar o poder de ampliao do horizonte humano, j que o
horizonte que divide o mundo sensvel do inteligvel ilusrio. A imaginao construo do
sentido da existncia, mas no significa que esta faculdade se apoia no irreal apenas porque
tenta tornar o imaterial palpvel. No est absorto no irracional esse horizonte. Narrar os
prodgios do morto e elaborar pela palavra outros feitos responder quela questo to velha
que nasceu junto com o pensamento: como domar vida, morte e destino?
Como ento pensar que o mito leva ao irracional? Que ele no d conta das questes,
j que mera inveno? O mito nos aproxima ainda mais do mundo real, porque nos d fora
para o enfrentamento do nosso dilema. Assim, no deve ser encarado como natureza
alienante, pois se servindo do concreto nos faz tocar o indizvel. Volve nossa face para o
mundo em que habitamos, enquanto projeta-nos para o mundo paralelo, pura doao. Como
dizer que o mito a grandeza da divindade apontando nossa pequenez, se somos ns os
construtores dos deuses, se eles so o reflexo da nossa pergunta primordial?
Domnio do fogo, domnio da caa, domnio da representao... Sempre a trade
incitando o homem. Sem fogo, a morte se fortalece; sem caa, a fome a morte; sem
representao, acontece a morte da memria. O medo fez o homem criar o rito para ter
domnio sobre si. E o rito a liturgia, um ato de libao e oblao para a existncia. O mito
vislumbra o desconhecido do cimo da montanha da linguagem, e descobre que tudo um,
tudo-um. Por isso, toda experincia mtica da ordem do excepcional. Alm do que somos e
temos, somos desafiados a avanar ao desconhecido, numa experincia extrema em prol da
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vitria da vida. O mito reconfigura a vida, recriando-a, restaura o poder do homem que, tendo
conscincia de sua finitude, celebra a vida enquanto fita a morte com probidade.
Tudo era um. Para os homens do passado, deuses, fenmenos meteorolgicos,
elementos da natureza, animais e pessoas no s habitavam o mesmo espao como tambm
estavam ligados emocionalmente. As respostas para problemas cotidianos, um mnimo
problema que fosse, podiam vir de um relmpago, do sereno, do cheiro da terra, das folhas
caindo, da mudana das estaes... A natureza falava diretamente ao homem, quando ouvi-la
era capacidade primordial para garantia da sobrevivncia. Esse sentido congregava os outros.
Se tudo substncia de algo infinitamente maior que no consegue ser explicado, as mesmas
leis regem os seres visveis e invisveis, palpveis e impalpveis. Desse modo, atitudes e
sentimentos no seriam muito diferentes das rvores, da gua, da rocha e das nuvens, pois
tambm estariam impregnados da fora necessria para modificar o mundo. Uma simples dor
mata, uma simples inveja corri, uma simples atrao pode virar tormenta. Se as foras
subjacentes aos homens, e que se concretizam nas atitudes e qualidades, tm o poder de
engrandec-los ou derrot-los, ento justo construir um roteiro de normas para ensinar a
comunidade a entender o mundo, as emoes, os medos e alegrias. Portanto, quando o mito
mostra o comportamento dos deuses, que no tm caractersticas distantes dos homens, est
indicando, na verdade, o caminho para as relaes humanas, na melhor pedagogia possvel,
que a pedagogia do prazer (acaso existe uma pedagogia eficaz sem o prazer?). Foi essa
forma de ver e sentir o mundo que moldou o homem primitivo, instituiu as civilizaes e
mesmo aps o advento da cincia, na idade da razo, no foi sucumbido de todo, mas
continuou e continua organizando a trajetria humana.
O tempo do mito, por conseguinte, no opera na linearidade cronolgica, nem se
sustenta a. Uma vez que mundo interior, mundo exterior e mundo do transcendente se
irmanam, no possvel associar eventos de naturezas to distintas na sucesso e transcorrer
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histricos. Se os eventos da natureza, as emoes e os fatos esto num mesmo nvel de
importncia, o tempo que abraa e beija todas essas instncias o da graa benevolente, que
traz superfcie do presente o acontecido e o que ainda vir, para a celebrao da vida. A
palavra entronizada no rito para promover a catarse que opera a cura. Todo mito procura.
Todo mito evoca uma saudade intemporal do mundo perfeito porque uno. Essa noo de
intemporalidade muito complexa para o homem de hoje que caiu nas artimanhas do
cronmetro e h tempos no consegue explicar sua existncia no mundo sem a necessidade da
linearidade do transcurso, ordenadamente, do antigo para o novo, do passado para o presente.
Isso to caro ao homem que o relgio do novo milnio tem a preciso atmica. Mas no foi
a teoria quntica que veio quebrar a noo de causa e efeito, como o fato de dois corpos no
poderem ocupar o mesmo espao? Que relgio mede o tempo de um pensamento? Qual a
medida de tempo das emoes? Por que o relgio biolgico no segue o mesmo esquema do
relgio-objeto? E por que o relgio-objeto precisa, de tempos em tempos, ser adiantado em
relao aos movimentos dos astros? Os homens do passado resolveram muitos problemas
quando instituram a fundao do mito no tempo do rito. Assim, o que j ocorrera, continuaria
a ocorrer sucessivas vezes. Ritualizar , pois, re-atualizar a vida, livrando-a das artimanhas do
tempo linear.
O mito promove um jogo utilizando-se da poesia e da msica, da dana, do gesto,
enfim, do corpo, para operar uma epifania, manifestao do inexprimvel. Mito engajamento
para uma possibilidade. Essa possibilidade no aniquila as verdades sabidas, s projeta para
outros modos de v-las. O mito s quer ter eficcia na irrupo de um imaginrio.
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1.2 MITOPOTICA: ESPAO SAGRADO DA POESIA
A natureza e o sentido do imaginrio mtico permitem que o vejamos apenas de modo
rarefeito. Sendo vivncia, o mito se oculta e s consente ser vislumbrado por imagens
moventes. Como uma tentativa de ver alm da cortina, na busca de um sentido para a sua
existncia, o humano concebe arqutipos cujas referncias primrias possibilitam interpretar
fenmenos, fatos, destinos.
Este estudo pretende constituir a reunio de um imaginrio e no propriamente a
interpretao de uma mitologia. Sendo o mito um impulso originrio, criao por excelncia,
o interesse se d em observar o como e o porqu dessas expresses imagticas, tomando como
modelo o mito sebastinico. Num imaginrio, so estruturadas leis, ideais se efetivam em
sonhos, instituem-se os ritos e se d sentido vida. No havendo separao entre ao e
pensamento, j que a manifestao da palavra ao e o mito, a presena do ausente, a
experincia mtica da linguagem no suporta a reduo interpretativa, pois se fundamenta a
partir de experincias mltiplas.
Segundo Bachelard, a imaginao menos a possibilidade de formar imagens do que a
faculdade de deform-las, ou seja, a capacidade de mudar a imagem presente numa ausente.
Assim, o vocbulo fundamental que corresponde imaginao no imagem, mas
imaginrio (2001, p.1). Imaginao sempre uma abertura do/para o imaginrio, o
inesperado deflagrado pelo esperado. Isso acontece numa mobilidade, no h imaginrio no
repouso, na inrcia, pois no movimento que as imagens se processam. Mito imagem que
no cessa de acontecer, atravs do anncio da fala, do gesto, do corpo. O mito suscita um rito
que a abertura para o imaginrio.
Para percorrer um caminho mais seguro, preciso delimitar o conceito de mito, j que
a palavra assume historicamente inmeras acepes, algumas at bem distanciadas do
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originrio grego Mythos. Ao conceito de Mito costumou-se contrapor o de Logos,
pressupondo divergncia, um abismo. Mito constantemente apresentado como sendo uma
narrativa de origem, ou seja, um relato de ordem cosmognica. A explicao do surgimento de
um mundo pela palavra constituiria o sentido de mito. Enquanto logos assumiria a realidade, o
mito seria a fico, portanto, no-realidade.
Se tanto logos quanto mito querem dizer a palavra por excelncia, o mito poderia se
configurar como o outro do logos, mas no o oposto. Na vertente deste pensamento, Vernant
afirma:
Os mitos so outra coisa: so relatos aceitos, entendidos, sentidos como tais
desde nossos mais antigos documentos. Comportam assim, em sua origem,
uma dimenso de fictcio, demonstrada pela evoluo semntica do termo mythos, que acabou por designar, em oposio ao que d ordem do real por
um lado, e da demonstrao argumentada por outro, o que do domnio da
fico pura: a fbula. Esse aspecto de narrao [...] relaciona o mito grego
ao que chamamos de religio, assim como ao que hoje para ns a literatura.
(1996, p. 230).
Essa distino entre mito e logos surge justamente a partir da introduo da cultura
grafocntrica, em virtude do domnio do pensamento lgico. Outra dubiedade apontada por
Vernant a que coloca o mito em posio oposta Histria. Enquanto a Histria d conta do
passado marcadamente factual e recente, ancorando-se inclusive no testemunho e nos
vestgios documentais, o mito refere-se ao passado remoto, numa esfera distante, atemporal e
por isso difcil de ser compreendida, ficando sua verdade condicionada palavra. Tanto pela
palavra oral quanto pelo carter libertrio do tempo, o mito mostra-se no plano do fabuloso,
da fico, enquanto a histria se pretende verdadeira5.
O que se observa atualmente a produo de mitos, a necessidade deles, mesmo em
meio a tentativas de desmitificao da experincia humana. Para Carneiro Leo (2002)
necessria uma anlise originria para se entender por que esse interesse pelo retorno ao mito.
A prpria cincia constri os seus, numa atitude aparentemente contraditria, demonstrao
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de que a racionalidade no suficiente para o processo de elaborao do pensamento. A
verdade original encerrada no mito est sendo consumida nas narrativas cotidianas, nos
mecanismos de produo de cultura, nos sistemas financeiros virtuais e at na banalizao dos
anseios do homem atual mergulhado no mundo no definido do ciberespao.
Na Grcia antiga, o mito no se confundia com poesia, pois era a prpria poesia.
Podemos dizer que os gregos tinham como suporte para sua histria poltica, educacional e
religiosa toda uma enciclopdia oral mitopotica.
Todo mito opera uma realidade, sua finalidade ter eficcia, produzindo um mundo
pela narrativa. Por isso se sustenta de atemporalidade e universalidade. Sua geografia tambm
outra. Entendido como uma narrativa que enumera aes, o mito conta como alguma coisa
surgiu, como se deu esse aparecimento. , pois, em princpio, uma narrativa de fundao.
Todas as coisas que apareceram nesse mundo, apareceram tambm atravs da narrativa, nesse
fluir potico. Pode-se ento falar em termos de uma coletividade mtica ou sociedade mtica
em que as aes de seres sobrenaturais acontecem numa temporalidade e espacialidade no-
humanos. A mitopotica funde esses mundos para que o homem possa sentir-se parte de uma
esfera numinosa, maior que ele e suas foras. Se o tempo mtico no cronolgico, a
narrativa que instaura um momento original, onde algo vem a ser a partir de tempo e lugar
sagrados. o tempo mgico da origem. Essa geografia tambm descontnua e tnue porque,
embora opere uma realidade com eficcia, sua funo transcende o real, aponta para outro
mapeamento da percepo da vida. Est-se sempre na origem, celebrando-a, revivendo-a,
ritualizando-a. portanto, o mito no apenas aponta para um passado primordial, como tambm
presentifica esse instante o tempo todo.
O homem, ento, precisa do rito para sentir esse xtase criador. Nesse sentido, tambm
uma mitopotica sempre uma teopotica. A mensagem do mito ou sua hermenutica
(hermeneuein = transmitir = interpretar) concebida na vivncia e na sua expresso dinmica:
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Nem toda interpretao uma hermenutica. Somente aquela que descer at
dinmica do destino que estrutura a histria. Nesse contexto o mito assume
um outro sentido. Deixa de ser uma lenda isto , um relato de estrias sem verdade para reaver toda a fora de sua palavra. Pois ho mythos exprime o destino que se lega historicamente existncia. (CARNEIRO LEO, 2002, p. 196)
Para Cassirer, ao oferecer uma origem, o mito tambm assinala um vir-a-ser, no se
restringindo apenas numa criao confundida com um passado remoto e no-datvel, a no
ser pela marca de origem, como o momentum primordial em que algo nasce:
O verdadeiro mito no nasce simplesmente no momento em que a intuio
do universo com suas partes e foras se configura em certas imagens e
figuras de deuses e demnios, mas no momento em que se atribui a tais
figuras, uma emergncia, um via-a-ser, uma vida no tempo (1987, p. 129).
O mito assinala no somente o rito de criao, mas nos insere num tempo alheio ao
cronmetro da Histria (quer esse tempo seja linear ou cclico). Apresenta, pois, uma outra
dimenso. Segundo Freitag6 (2002), o conceito de tempo subjacente no mito no pode ser
entendido como um desenrolar, prprio do tempo histrico, em que fatos e eventos se
sucedem. O mito lana-nos para o tempo original (Urzeit), um tempo efetivo (eingtliche Zeit)
ou sagrado (heilige Zeit): Essa passagem corresponderia a um rito de passagem para uma
nova qualidade de vida, em que dado o salto qualitativo no tempo, do tempo profano para o
tempo sagrado (ou no) (FREITAG, 2002, p.118).
Desse modo, podemos dizer que o mito a saga que no se esgota no discurso, mas se
constri mltiplo e poeticamente. A mitopotica, assim, apresenta-se como o impulso para a
criao ao mesmo tempo em que rene e d sentido ao corpo de imagens resultantes das
experincias do pensar, dizer e fazer.
Como se d a experincia mtica da linguagem? Ou melhor, como a linguagem capaz
de ser o prprio fazer mtico? Pelo rito o mito se move, sublimando as aes humanas. Da a
dificuldade de pensar o mito teoricamente sem um retorno sua constituio original, l onde
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a razo nem se anunciava ainda, e as leis s eram entendidas pela saga do fazer-dizer.
H que se penetrar na narrativa do mito e experiment-la para vislumbrar sua voz.
Digo vislumbrar porque o mito duplamente manifestao e ocultao e sua aparncia
mistrio para a linguagem. Mas se o Mito origem que se funda no discurso, ento a se
encontra o Logos, palavra fundante e instauradora que cobra do dizer uma postura, e do
ouvido, a plena ateno, j que ambos vigoram na ordenao da vida pela linguagem:
[...] o Logos linguagem ontolgica da vida, no mais elevado grau de sua
exploso na histria humana, por isso, a vigncia criadora do Logos
revoluciona no apenas a fala e o discurso, mas tambm o ouvido e o ouvir.
Nas peripcias da criao, ouvir escutar o Logos, seguindo o advento de
sua dinmica de reunio no curso da histria. (CARNEIRO LEO, 2002, p.
140)
Tudo que de alguma forma o porque foi ordenado na conscincia csmica do
mundo. O dizer constitui esse realizar pleno e ontolgico, conjuntura estrutural e fora de
congregar. Na casa do dizer tudo coeso e estrutura, a impera a totalidade deste mundo que
se organiza na operao da linguagem. No h espao para a desordem e conflitos
(CARNEIRO LEO, 2002, p.140). Embora se pense na Linguagem como um meio, e meio
natural, instrumental, ela no define o homem de modo reducionista, pelo contrrio, s o
define na sua essncia. Os limites do mundo passam necessariamente pelos limites da
linguagem, as fronteiras da linguagem sinalizam sempre possibilidades infinitas de aberturas,
nunca fechamento.
Por isso a experincia da Linguagem , antes de tudo, a abertura do ser para o mundo,
seja no xtase provocado pela voz das Musas, ou escutando e auscultando a voz originria do
dizer. Essa voz poderosa o mago da existncia ou da ideia de existncia, corpo do potico,
pura construo e doao. A poesia neste trabalho quer ser vista liberta do esttico, alm do
sentido religioso e do ldico. A poesia congrega tudo isso, mas livre para ser mais, no reino
do mundo que lhe prprio, o imaginrio. No imaginrio somos e no somos, mitificamos e
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mistificamos a vida para que ela seja grandiosa, libertando-se das amarras do fsico e do
tempo. Buscar destituir a noo que temos de poesia o primeiro passo para a leitura deste
trabalho, que no se enquadra em rea alguma do pensamento cartesiano academicista. ele,
o potico, que deve vigorar no seu rito prprio, na harmonia de sua msica, no fulgor obscuro
de sua voz que quer ser palavra, mas nem sempre a palavra a compreende. por isso que a
potica aqui apresentada a potica da Encantaria, como feitio, liturgia, profecia e
adivinhao, encanto lanando seu grito atemporal, extemporal, atpico e inebriando o
ouvinte atento7.
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1.3 CORPOREIDADE E PERFORMANCE: DA VOZ COMO GESTO.
No princpio era a voz, emanao original do ser no mundo. S muito depois que
veio a palavra, tentativa de concretizao do pensamento. Na noite da evoluo, a palavra
vestiu-se da voz e foi para o baile flertar com o mundo. E a voz emudeceu pelo concretismo
da palavra? Talvez. Mas quando a palavra no consegue abarcar o mundo, que se torna
indizvel, inexprimvel, s a voz que se exprime soberanamente, ecoando sons primitivos, a
msica da origem que deve ser sentida, no explicada. A voz experincia plena do ser aqui e
agora. Mas o que seria essa voz que instrumento do jogo potico e objeto de si mesma,