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    Saberes e prticas mdicas e a constituio da identidade pessoal

    PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 16(1):45-58, 2006 45

    Saberes e prticas mdicas e a constituio da

    identidade pessoal

    CLARA VIRGINIA DE Q. PINHEIRO*

    RESUMO

    O objetivo deste artigo examinar a relao entre prticas de sade e a

    constituio da identidade pessoal. Nosso ponto de partida a tese foucaultiana

    de que a medicina moderna inaugura um campo de conhecimento cientfico

    sobre o corpo, tendo em vista sua objetivao a partir da referncia morte.

    O lugar central do corpo no domnio mdico possibilita uma forma de relao

    do sujeito consigo mesmo na qual a conscincia de si como singularidade, ou

    seja, como eu mesmo,se confunde com a individualidade orgnica.Pressu-

    pomos que no contexto da clnica a formao da identidade se caracteriza

    pelo fato de estar circunscrita aos limites da corporeidade. Entretanto, na

    atualidade, com a biomedicina, o corpo se torna objeto de manipulao do

    indivduo, transformando a relao de identidade entre subjetividade e

    corporeidade. Desencarnada, a identidade pessoal se torna realidade freneti-

    camente mutante.

    Palavras-chave: Prticas de sade, identidade pessoal e corporeidade, MichelFoucault.

    Recebido em: 10/02/2006.

    Aprovado em: 11/06/2006.

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    O objetivo do presente artigo examinar a relao entre os saberes eprticas de sade e a constituio de certa forma de experincia de si. Partimos

    da seguinte idia: o campo mdico, mais do que um domnio estritamente tcnico-cientfico, estabelece parmetros atravs dos quais o indivduo define suaidentidade pessoal. Em outros termos, a experincia mdica implica, de umlado, teorias e procedimentos tcnicos e, de outro lado, um indivduo que seposiciona como objeto desse saber, na medida que se reconhece como doente,uma vez que sofre de um mal orgnico.

    Nesse contexto, devemos ressaltar o lugar central do corpo, que constitui,para lanar mo de indicaes de Ricoeur (1987), o ponto de ancoragem dosujeito, o qual o inscreve no mundo, situando-o como singularidade, ou seja,como eu mesmo.O corpo como referncia da experincia subjetiva se relacionaao fato de a existncia pessoal ser compreendida a partir das formas temporale espacial de estar no mundo, isto , como ser vivo. Assim, essa maneira de sesituar no mundo implica abandonar a idia de que a doena algo que existe emsi mesmo, que constitui realidade prpria, independentemente de uma inscriocorporal. Implica, ainda, descartar a crena de que a razo do mal se explicapor uma vontade divina.

    Nessa abordagem das relaes entre prticas de sade e identidadepessoal, seguimos a linha de pensamento foucaultiano acerca dos processospelos quais o homem se torna sujeito. Foucault (1994c) considera dois sentidosrelativos noo de sujeito, quais sejam, sujeito no que diz respeito a estarsubmetido ao outro e sujeito ligado prpria identidade, pela conscincia ouconhecimento de si mesmo. Com relao ao sentido de sujeito subordinado prpria identidade, Foucault (1994c) formula a idia de um trabalho deautoformao atravs do qual o sujeito se reconhece como objeto de um sabere de uma prtica cientfica, bem como sujeito de uma determinada cultura.

    Portanto, no devemos pensar que na nossa sociedade medicalizada o indivduo passivamente arrastado a uma condio de mero objeto cientfico.

    Dessa forma devemos ressaltar, em conformidade com os ensinamentosde Foucault, que em referncia ao universo simblico, o qual implica saberes,poderes e tcnicas de constituio de si, que situamos nossa problemtica. Trata-se, ento, como nos esclarece Kehl (2003, p. 243), de examinar a experinciado eu e do corpo como objetos sociais, distanciando-se, pelo menos nos limitesdo presente trabalho, de uma referncia dimenso subjetiva da corporeidadena direo de uma fenomenologia da corporeidade, como fez Ortega (2005a,

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    2005b) em seus estudos sobre os efeitos das novas tecnologias na experinciasubjetiva do corpo.

    Foi na esteira dessa concepo que abordamos o livroNascimento daclnica, no qual Foucault (1994a) estuda as condies de possibilidade dosdiscursos mdico-cientficos. Podemos dizer, a partir dessa pesquisa foucaultiana,que com a medicina moderna se inaugura uma forma de ser sujeito como algoque diz respeito individualidade corporal. Pois, como afirma Siding (1992),devemos reconhecer o mesmo denominador comum nos estudos foucaultianossobre a loucura, a morte e a doena na modernidade - por exemplo, a constituiode uma forma de relao consigo mesmo como indivduo, logo, o reconhecimento

    de si mesmo como fundamento de toda e qualquer experincia.Nossa hiptese de que com a medicina moderna inaugura-se um

    novo campo da experincia subjetiva no qual a identidade pessoal estintrinsecamente relacionada ao corpo, que, por sua vez, entendido a partir dasnoes de vida e morte. Em outros termos, a clnica moderna se estabelecepela ruptura com a viso dualista entre mente e corpo, engendrando uma formade experincia subjetiva enraizada na existncia corporal, isto , nas sensaese nas necessidades de sobrevivncia e, tambm, nas vivncias de prazer edesprazer.

    Ora, podemos supor que a perspectiva mdica caracterstica damodernidade origina uma forma de subjetividade sobreposta corporeidade,referindo-se ao sentir, ao ter prazer e ao desejar - quer dizer, precisamente, aoestar vivo, tendo em vista a posio singular relativa morte. Da a dificuldadede desvincular a identidade pessoal, ou seja, o eu mesmo, do corporal como sefossem realidades diferentes. Pois a experincia de estar vivo implica asimultaneidade da referncia ao corporal e ao subjetivo, uma vez que constitui,conforme indicaes de Ricouer (1987, p. 76-77) um fato de inscrio, a sa-

    ber, a inscrio do tempo vivido no tempo do mundo. Da mesma maneira, aconexo entre aqui e um lugar do mundo, a localizao, tambm um fato deinscrio. A corporeidade demarca, assim, a posio do particular, do indi-vidual, em relao ao geral, ao universal. Talvez no seja incorreto afirmar queessa forma de inscrio do indivduo no mundo, situando-o como ser finito,constitui, propriamente, o objeto dos discursos clnicos caractersticos da medicinaanatomopatolgica.

    Todavia, devemos entrever relaes diferentes entre a identidade pessoal

    e a forma de corporeidade na medida em que os discursos cientficos se deslocam

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    de uma anatomopatologia para uma biomedicina (e biotecnologias). Taltransferncia discursiva implica mudanas de paradigmas no que diz respeito

    corporeidade, a qual deixa de ser referida finitude, constituindo-se em matria-prima da normatividade biolgica. Essa mudana de modelos mdicos implica adesencarnao da subjetividade, uma vez que, nos novos discursos, o corpodeixa de ser o ponto de ancoragem do sujeito no mundo,pois perde a referncias dimenses temporal e espacial, que tm como referente a vida em relaointrnseca com a morte. Assim, ressaltamos mais uma vez que situamos nossasproblemticas da corporeidade e da identidade pessoal tendo em vista as redesdiscursivas que implicam relaes de foras e nas quais se redefinem as posiesde corpo/mente, identidade/alteridade, natureza/cultura, homem/mquina.

    Situemo-nos, ento, no interior dos discursos e prticas mdicas.

    O surgimento da medicina moderna e a constituio da experincia

    subjetiva da corporeidade

    Segundo Machado (1982),Nascimento da clnicatrata especificamenteda histria da ruptura conceitual da cincia mdica, entre uma medicinaclassificatria das espcies patolgicas do sculo XVII e a inaugurao de umsaber mdico do indivduo doente, que tem incio no final do sculo XVIII.Atravs dessa ruptura se constitui uma nova concepo de doena como lesocorporal, radicalizando-se como novo campo epistemolgico, com aanatomopatologia estabelecida por Bichat, que torna possvel uma medicinafisiolgica, com Brossais.

    Decerto, neste estudo sobre a medicina podemos dar nfase constituiode uma forma de subjetividade como realidade concreta, que se refere experincia da corporeidade. Partimos da idia de que os saberes mdicos e

    biolgicos caractersticos da poca moderna inventam uma sobreposio entreindividualidade orgnica e subjetividade. Acreditamos, ento, que a histria donascimento da clnica trata da gnese de uma forma de conscincia de si, aomesmo tempo em que instaura novo campo do conhecimento cientfico.

    Segundo Foucault (1994a), a clnica um campo do conhecimentomdico no qual a doena identificada a uma leso corporal. Tal forma dedefinio da doena implica o rompimento com a medicina classificatria,dominante no sculo XVII e meados do sculo XVIII, que concebia as doenas

    como essncias patolgicas, definidas como configurao de sintomas.

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    O novo campo epistemolgico, de acordo com Foucault (1994a), seinstaura a partir das pesquisas de Bichat sobre os tecidos como elementos

    constitutivos da unidade corporal, como fundamento dos fenmenos orgnicos.Da se estabelecer uma relao entre anatomia e patologia, entre corpo e doena.Na medida em que a doena passa a ser referida ao corpo, os sintomas deixamde ser considerados a prpria doena. Todas as alteraes da experincia,como febres, sensao de asfixia, palpitaes sbitas, por exemplo, noconstituem em si mesmas os fenmenos da doena, mas se referem s condiese s leses tissulares, construindo um sistema de relaes que diz respeito acausas, origens e sedes. A partir da anatomopatologia, todo sintoma clnicodeve ser relacionado a uma alterao morfolgica. Nas palavras de Foucault

    (1994a, p. 155):A doena no um feixe de caractersticas disseminadas pela superfcie do

    corpo [...] um conjunto de formas e deformaes, figuras, acidentes,

    elementos deslocados, destrudos ou modificados que se encadeiam uns com

    os outros, segundo uma geografia que se pode seguir passo a passo. No

    mais uma espcie patolgica inserindo-se no corpo, onde possvel; o

    prprio corpo tornando-se doente.

    a referncia morte que promove a descontinuidade entre a medicinaclssica e a medicina moderna, uma vez que referida morte a doena perde oestatuto de realidade originria e essencial. Assim, a descoberta do corpo comoespao prprio da doena est estreitamente ligada s noes biolgicas devida e morte. Pois, como ressalta Foucault (1994a, p. 227), somente a partir daformulao da morte como fundamento epistemolgico do fenmeno patolgicoque a doena pde tomar corpo nocorpo vivo dos indivduos (grifos doautor).

    Com efeito, essa relao fundamental entre corpo, vida e morte estvinculada tanto s pesquisas de Bichat, acerca dos tecidos como elementosconstitutivos da unidade corporal, como, segundo o ponto de vista de Foucault(1995), a Cuvier. Este efetuou uma reorganizao no saber biolgico, atravsda qual subordina a anlise dos seres vivos estrutura orgnica, a qual sedefine por referncia funcionalidade. Pois a biologia est ligada formulaoda noo de vida, entendida como puro movimento, na medida em que temcomo propriedade essencial a funo. Referida funo, a vida movimentoem direo s condies de manuteno e realizao da existncia. Com a

    funo como referncia, o corpo constitui uma totalidade organizada na qual as

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    partes se relacionam de forma dependente, no havendo modificao numelemento que no altere todo o sistema. Portanto, h um entrecruzamento en-

    tre os conceitos de vida, corpo, doena e morte. O conceito de vida s pode seesclarecer na medida em que se considera sua situao de oposio morte.Nessa perspectiva, devemos reconhecer a enorme influncia de Canguilhem(1995), em suas pesquisas sobre as relaes entre normal e patolgico, sobreos estudos foucaltianos acerca do surgimento das cincias modernas.

    Nesse contexto epistemolgico, vida e morte adquirem um estatutoeminentemente instrumental, uma vez que dizem respeito ao funcionamento docorpo e suas condies de existncia. Nesse sentido, a morte um fato preciso

    e localizvel no corpo, seja como fenmeno que diz respeito falncia dosrgos ou, segundo o conceito mais recente, morte enceflica. Morrer significano gozar fisicamente das coisas boas da vida; assim, diz respeito ausnciaou ineficincia da atividade corporal. Dessa maneira, a morte no conferenenhuma dignidade ao sujeito, como cita Vernant (1987), no perodo arcaico, noqual a bela morte perpetuava gloriosamente os nomes dos heris guerreiros.

    Desse modo, tendo em vista os ensinamentos de Canguilhem (1995),temos de um lado os movimentos da vida, que se caracterizam peloestabelecimento das condies de sua manuteno e realizao e, de outro, osmovimentos que conduzem destruio orgnica. A partir desse ponto de vistada normatividade da vida, a doena significa forma de vida inadequada,desvalorizada, exprime um modo de realizao deficiente da vida.

    Quanto oposio entre vida e morte, a doena adquire seu significado,assumindo uma posio intermediria, pois se constitui como uma forma devida patolgica. Em outras palavras, a vida, a doena e a morte so fenmenoslocalizveis e visveis no corpo, cujo princpio de funcionamento a polaridadeda vida e da morte. A vida entendida como normatividade, isto , criao de

    normas de vida, enquanto a doena se define como limitao, impossibilidade,impotncia do organismo em relao s necessidades de funcionalidade - portanto,de sobrevivncia.

    Ora, essa concepo mdica e biolgica da vida, da morte e da doenacomo realidade corporal cria uma forma de relao do homem consigo mesmo.Podemos dizer que a problemtica da doena, da vida e da morte s pode serqualificada quando se leva em conta a individualidade orgnica de cada servivo. A medida da normatividade, ou seja, capacidade de resistncia morte,

    relativa forma de vida de cada um e s condies do funcionamento orgnico

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    frente s exigncias do meio. Nesse sentido, o objeto do saber e da intervenomdica a existncia de cada indivduo. Em outros termos, a forma de vida s

    pode ser qualificada tendo em vista que cada caso um caso. Portanto, o corpode cada um se torna no s meio de sobrevivncia, mas, fundamentalmente, oprincpio e o fim da prpria existncia, na medida em que se sobrepem corposaudvel e formas adequadas de viver - de querer e ter prazer e de ser livre.Portanto, queremos ressaltar que a experincia de si como sujeito estintrinsecamente subordinada experincia do corpo como realidade temporal eespacial, i.e., como finitude.

    Esse carter individualizante do cuidado mdico obriga o sujeito a uma

    preocupao permanente com a prpria sade, a qual depende de sua forma devida. Estabelece, assim, uma prtica de auto-regulao, autodomnio que implicao conhecimento de sua situao orgnica singular. Da o individuo submeter-se,incessantemente, a uma disciplina constante da alimentao, da higiene, dosexerccios fsicos, das relaes sexuais, entre outros cuidados.

    Conforme a perspectiva foucaultiana, a especificidade da medicinamoderna a constituio da individualidade - portanto, da conduta individual,como objeto da ateno mdica. Nesse ponto, inspirando-se em Pinell (1998),podemos reconhecer o papel das prticas mdicas no processo civilizador, talcomo foi tratado por Norberto Elias (1994), possibilitando a generalizao e aconsolidao das mudanas de costumes no que diz respeito aos cuidadoscorporais, s boas maneiras que passam a regular as relaes entre os homensnas sociedades ocidentais modernas.

    Os comportamentos civilizados com os quais estamos acostumados,tais como os hbitos de usar o banheiro para funes corporais e os cuidadoshiginicos, como escarrar, limpar o nariz, como tambm a disciplina mesa deno comer com as mos, resultaram de um longo processo de constituio do

    autocontrole corporal. Hoje, esses comportamentos so justificados mais peloscuidados com a sade do que pelas boas maneiras necessrias convivnciasocial qual foram associadas originariamente na sociedade de corte. Dessemodo, o cuidado com o corpo no se justifica pelas relaes entre os homens,por uma preocupao com a vida em sociedade, mas com a inquietao emrelao a si mesmo, maneira prpria de estar no mundo, que se qualifica pelaspossibilidades de uma vida saudvel e durvel. A vida, como realidade corporal,tornou-se a razo de ser absoluta da nossa disciplina, de nossa submisso s

    regras e interdies.

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    Portanto, no incorreremos em erro ao enfatizar que com a racionalidadeanatomopatolgica se estabelece uma relao de dependncia entre identidade

    pessoal e corporeidade. A identidade est circunscrita aos limites corporais,no sendo possvel extrapol-los. O corpo encarna o destino inexorvel daexistncia humana. Entretanto, o homem pode evitar a doena e,conseqentemente, a morte, atravs do adestramento de seus hbitos ecomportamentos, instaurando, assim, uma prtica permanente de autocontrole.Tal prtica de cuidado de si implica um reconhecimento de si como sujeitoautnomo e responsvel que pode, a partir de decises corretas (saudveis),definir o curso de seu destino tendo em vista seus limites fsicos que osingularizam e o situam entre a vida e a morte. Desse modo, podemos dizer que

    essa sobreposio da corporeidade e da subjetividade constitui uma experinciaque se caracteriza pela temporalidade (passado, presente, futuro, durao,continuidade) e espacialidade (direcionamento, orientao, adaptabilidade), apartir das quais o sujeito se define como singularidade, como si mesmo.

    Consideramos que a nfase dada s possibilidades da vida como realidadeem si mesma - descartando a referncia morte, que caracteriza as biomedicinas- acarreta uma mudana na relao entre corporeidade e subjetividade, na medidaem que a irredutibilidade corporal deixa de ser a matria-prima do trabalho de

    constituio de si como sujeito. Talvez no seja incorreto dizer que a biomedicinatransforma a relao de identidade entre o corporal e o si mesmo, uma vez que osdiscursos mdicos deixam de se referir morte como fundamento do vivo,engendrando, de acordo com Tucherman (2004, p. 192), outras experinciasespao-temporais, outras subjetividades, inteligncias e mesmo anatomias.

    A biomedicina e a objetivao do corpo

    Assim, o domnio propriamente clnico das prticas de sade fundadaspela anatomia patolgica, organizadas em torno da idia de corpo doente apartir da oposio entre vida e morte, est sendo suplantado por um domnioque abandona o plo da morte como referncia. Esta se orienta pela concepode vida como realidade que se define por si mesma, que deve ser o alvo para oqual convergem todos os esforos mdicos. Agora o objeto das novas formasde intervenes mdicas deixa de ser o corpo padecente do sujeito, mas aspossibilidades ilimitadas de qualificao e potencializao das formas de vida.Ora, ao mesmo tempo em que se inaugura um novo campo mdico, se

    estabelecem novas relaes entre identidade e corporeidade.

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    A medicina, quando ultrapassa seus limites propriamente clnicos,estendendo seu domnio de objetos para alm do corpo doente, est tambm

    ampliando suas funes com finalidades essencialmente teraputicas, denormalizao do indivduo para a funo de preveno e, mais precisamente,de promoo de sade. Da a importncia considervel que a medicina genticatem hoje, viabilizada pela racionalidade da biologia molecular, em funo de seucarter eminentemente preditivo e preventivo, de detectar, antes mesmo de oindivduo ter nascido, suas predisposies doena. Nesse contexto, conformeindicaes de Le Breton (2003), o cadver - mais precisamente, a morte -deixa de ser o fundamento epistemolgico do conhecimento sobre a vida.

    Trata-se, ento, a propsito de um saber e de uma prtica de qualificaoda vida, da constituio de outro campo mdico, no qual a experincia do sujeitono se baseia na oposio entre o normal e o patolgico, nem implica umaexperincia corporal, tal como se realiza na clnica. Agora, conforme indicaesde Sinding (1992, p. 80), a biologia, um saber sobre a vida e no sobre a doena(talvez seja interessante explicitar), tomou conta da configurao sobre ascondies mdicas do indivduo, que no se fundamenta no exame ocular daanatomia, o signo biolgico no tem nada de visual. Podemos dizer, juntamentecom Sinding, que a medicina, mais do que uma cincia do normal e do patolgico,

    hoje uma cincia do devir do indivduo. Uma medicina dita preditiva visa aimpedir que a doena se atualize. A partir da perspectiva da medicina biolgica,a individualidade no diz respeito organicidade do corpo, mas, segundo Reid(1992, p. 121), sua programao por seqncias genticas. Desse modo, aatividade montona, cotidiana, do olhar mdico sobre a singularidade do corpodoente, substituda pela leitura de uma configurao gentica codificada, que,podemos dizer, no tem nada de pessoal. Com isso, a relao mdico-pacientedeixa de ser o cerne da prtica mdica. Com sua estrutura de genes codificada, possvel - este o sonho de muitos geneticistas - que cada indivduo possa terseu genoma particular, que poder vir transcrito num compactdisc (REID,1992). Tal objeto deter o segredo, se segredo houver, de cada individualidade,que, enfatizamos, no tem nada de singular e de pessoal. preciso, ento, queperguntemos: de que tipo de subjetividade se trata nesse campo da biomedicina?

    importante lembrar que, conforme vimos acerca da anatomiapatolgica, a prtica clnica cria uma experincia da individualidade, podemosdizer, da pessoalidade, intrinsecamente relacionada opacidade do corpo. Oexame detalhado que olha, perscruta, palpa e escuta o corpo possibilita um

    forte sentido de identidade, na medida em que associa referncia aoeu mesmo,

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    ao corpo, tendo em vista seu tempo vivido. E agora, cabe-nos perguntar: o queest em jogo a propsito do corpo e do sujeito nessas novas prticas, discursos

    e instituies mdico-cientficos que partem dos genes como referncia ltimados seres vivos? Podemos pensar que esse o pano de fundo da crescentesensao de perplexidade e de novidade com relao s implicaes daspesquisas biolgicas em esferas no somente cientficas, mas, tambm, nosdomnios legais, mdicos, artsticos e morais.

    Do ponto de vista terico, Reid (1992), seguindo a linha de anlisefoucaultiana, estabelece comparaes entre clnica e medicina gentica,procurando as bases de uma reorganizao do saber sobre a doena. O alvo

    dos deslocamentos entre uma e outra, entre anatomopatologia e biologia mo-lecular, se concentra na individualidade orgnica, uma vez que na gentica sesubstitui a dependncia entre doena e movimento funcional pela programaolinear dos genes, independentemente de um organismo. Mesmo considerandoque h controvrsias entre os cientistas biolgicos a esse respeito, Reid serefere posio de Franois Jacob sobre o mtodo de anlise prprio dosgeneticistas, que aponta para o longo percurso entre gentipo e fentipo, que desconhecido, podendo haver alguma solidariedade orgnica em relao expresso de determinado gene. No entanto, a gentica se interessa pelo que

    aparece na superfcie e, da, procura deduzir o contedo.Assim Reid (1992, p. 123) cita Jacob, bilogo, ganhador do Prmio

    Nobel (1965, com Lwof e Monod): Quanto aos mecanismos intermediriosque vo do gene ao carter, a gentica os ignora totalmente. Em outros termos,a partir dessa concepo, a gentica no se interessa pelo indivduo, no quersaber das interaes do gene com o meio orgnico. Por outro lado, Reid (1992,p. 124) tambm aponta para pesquisas que procuram conhecer os modos deinterveno dos genes sobre o funcionamento orgnico: Fala-se mais e mais

    de uma gentica fisiologista individualizante, na medida em que a ausncia oupresena de um gene pode em alguns deslanchar uma doena e em outros noproduzir nada. Mas no se pode confundir a, pois, como afirma Reid, algumacoisa nos leva para alm da clnica, que a prtica de manipulao do materialgentico, ou seja, a interveno nos cdigos genticos com o objetivo detransform-los, de criar possibilidades, de ir alm das identidades. como, porexemplo, grosseiramente falando, fazer um cajueiro produzir bananas, comotambm produzir geraes de indivduos idnticos, sem variaes genticas,que o caso das tcnicas de clonagem. Nessas prticas, a dependncia entre

    identidade, individualidade e corpo se perde.

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    Podemos pensar numa paixo pela mutao que pode ser expressapela questo: se posso mudar, por que continuar o mesmo?. Podemos pensar,

    de acordo com Le Breton (2004), numa nova verso do dualismo, que seestabelece a partir de uma relao de exterioridade entre homem e corpo, masno mais nos termos de uma dualidade entre mente e corpo. , segundo Fou-cault (1995), ultrapassar os limites da finitude, assim como analisa Deleuze(1986). Trata-se do fini-ilimitado, de partir dos cdigos dados e levar aspossibilidades ilimitadas de situaes novas, chegando ao desaparecimentodefinitivo da idia de homem. Como refora Reid (1992, p. 126): atransplantao do gene - dos cdigos - embaralha a linha de demarcao entreo humano e o animal e mesmo entre o animado e inanimado.

    Tais mudanas no estatuto do real e do humano, a partir dos discursoscientficos, constituem temas de vrios estudos, que abordam diferentes aspectosda constituio de uma nova antropologia. Para citar apenas alguns, Le Breton(2003), considerando as vrias tecnologias que marcam o mundo contemporneo,fala da desencarnao da alma em virtude da desvalorizao do corpo comomeio de realizao da condio humana; Jurandir Freire Costa (2004) examinaa personalidade somtica como resultado da reviravolta do mundo dos valores,as normas cientficas tomam o lugar dos ideais morais, engendrando as

    bioidentidades; Haraway (1985) e Tucherman (2004) apontam a ruptura com amodernidade instaurada pelas novas prticas mdicas, conduzindo morte daclnica e, conseqentemente, inventando novos sentidos de humanidade; Rabinow(1999), por sua vez, considera a influncia de diferentes racionalidades mdicasna construo das bioidentidades; Ortega (2005) examina os efeitos nacorporeidade, no que diz respeito antropologia mnima na fenomenologia docorporal, das novas tcnicas de visibilidade do interior do corpo.

    Assim, podemos dizer que nos situamos em outra dimenso da histria

    da humanidade, pois, como afirma Foucault, no mais somente um indivduoou sua descendncia imediata que afetada com as intervenes mdicas ebiolgicas, mas a prpria vida. A, a separao entre natureza e cultura sedissolve; natureza e cultura se fundem; encontramos-nos na dimenso de umabio-histria. Nesse sentido, segundo Rabinow (1999), diz respeito ao fato de avida se tornar artificial, podemos dizer, cultural, ao mesmo tempo que a culturase naturaliza.

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    NOTA

    *Professora no Programa de Mestrado em Psicologia da Universidade de Fortaleza; doutora em

    Sade Coletiva pelo IMS-UERJ; mestre em Psicologia Clnica pela PUCAMP. Endereo

    eletrnico: [email protected].

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    Clara Virginia de Queiroz Pinheiro

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    ABSTRACT

    Knowledge and medical practice and the constitution of personal

    identity

    This paper aims to examine the relationship between health practices and

    the constitution of personal identity. Our starting point is Foucaults theory

    which states that modern medicine inaugurates a field of scientific knowledge

    on the body, considering its objectification based on the reference to death.

    This central part of the body in the medical realm allows the way the subject

    relates to itself, in which awareness of itself as singularity, that is, as Imyself, is mixed-up with organic individuality. We presuppose that within

    the clinical context, identity formation is bound to the limits of corporeity.

    However, due to bio-medicine, the body has become an object of manipulation

    of the individual, and changes the identity relationship between subjectivity

    and corporeity. Disembodied, personal identity turns into a frenziedly mobile

    reality.

    Key words: Health practice, personal identity; corporeity; Michel Foucault.