texto completo

Upload: gisele-evangelista

Post on 15-Oct-2015

11 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 5/25/2018 Texto Completo

    1/139

    ANA PAULA PEREIRA DE CASTRO

    RELAES DE GNERO NA EDUCAO INFANTIL:UMA ANLISE A PARTIR DA ATIVIDADE LDICA

    Dissertao apresentada Universidade Federal de Viosa, como

    parte das exigncias do Programa de Ps-Graduao em Economia Domstica,

    para obteno do ttulo de MagisterScientiae.

  • 5/25/2018 Texto Completo

    2/139

    ANA PAULA PEREIRA DE CASTRO

    RELAES DE GNERO NA EDUCAO INFANTIL:UMA ANLISE A PARTIR DA ATIVIDADE LDICA

    Dissertao apresentada Universidade Federal de Viosa, como

    parte das exigncias do Programa de Ps-

    Graduao em Economia Domstica, paraobteno do ttulo deMagister Scientiae.

    APROVADA:11 de maio de 2006.

    ______________________________Prof.Ana Louise de Carvalho Fiza(Co-orientadora)

    _______________________________Profa. Karla Maria Damiano Teixeira

  • 5/25/2018 Texto Completo

    3/139

    Dedico ao Roberto,

    minha me e meu pai,

    ao Luiz Eduardo e Fernanda

    e ao Lucas.

  • 5/25/2018 Texto Completo

    4/139

    AGRADECIMENTOS

    A Deus e aos meus amigos espirituais, por terem me ajudado a enfrentar os

    problemas que foram surgindo ao longo do trabalho.

    Ao Roberto, por ter me apoiado durante todo este tempo e por ter me mostrado

    que os desafios existem para serem superados.

    Aos meus pais, pelo amor incondicional e pelos telefonemas que me deram fora

    e vontade para continuar a lutar pelos meus objetivos; aos meus irmos, pelo amor e

    pela solidariedade; e ao meu sobrinho Lucas pelo seu carinho e amor e toda a minha

    famlia, meus primos e, principalmente, Tia Cida, ao Tio Larcio, ao Tio Carlinhos e

    Tia Dulce pela contribuio que deram minha formao.

    Diva e ao Ceclio, pelo carinho, e por suas palavras amigas e encorajadoras,

    ao Guilherme, por ter conseguido os livros necessrios para finalizar este trabalho.

    minha orientadora e amiga, Lurdinha, por ter desempenhado seu papel de

    orientadora no sentido real de orientao, despertando-me sempre o desejo pela

    pesquisa e pela busca de novos conhecimentos.

    Universidade Federal de Viosa e Capes por terem possibilitado e apoiado

  • 5/25/2018 Texto Completo

    5/139

    A todas as crianas que participaram deste estudo, pelo entusiasmo e

    criatividade ao realizarem as atividades, o que tornou a pesquisa mais prazerosa e

    atraente. Tambm aos pais dessas crianas por no terem colocado nenhum obstculo

    para a realizao deste trabalho.

    s minhas amigas da Graduao, em especial Andressa, que me apoiou nessa

    caminhada.

    Aos meus colegas da turma do Mestrado, Adriana, Aline, Andresa, Cida, Deni,

    Regina, Sirle, Poliana, Fernando, Eraldo, e Vnia pela colaborao.

    Cida e ao Ricardo, por terem disponibilizado a filmadora, sem a qual esta

    pesquisa teria grandes dificuldades para ser concluda.

    Sheyla e Shirlene por terem me recebido com carinho e por terem me apoiado

    na etapa final deste trabalho.

    E a todos que contriburam para a realizao desse trabalho.

  • 5/25/2018 Texto Completo

    6/139

    BIOGRAFIA

    ANA PAULA PEREIRA DE CASTRO, filha de Jos Ren de Castro e Dilma

    Junqueira Pereira de Castro, nasceu em Carmo de Mina, MG, em 11 de julho de 1979.

    Em 1998, ingressou no Curso de Economia Domstica da Universidade Federal

    (UFV), em Viosa, MG, onde durante a graduao, teve a oportunidade de exercer

    atividades de pesquisa.

    Em 2000, foi bolsista de iniciao cientifica da FAPEMIG, em um projeto de

    pesquisa que tinha como objetivo analisar a trajetria do Programa de Renda Mnima

    em Viosa, MG.

    Em 2001, iniciou a Licenciatura Plena em Economia Domstica, com

    habilitao em Educao Infantil. Em setembro de 2002, graduou-se em Bacharelado e

    Licenciatura em Economia Domstica.

    Em maro de 2004, iniciou o mestrado no Programa de Ps-Graduao em

    Economia Domstica, vindo a conclu-lo em 11 de maio de 2006.

  • 5/25/2018 Texto Completo

    7/139

    CONTEDO

    Pgina

    RESUMO...................................................................................................................................viii

    ABSTRACT.................................................................................................................................. x

    1. INTRODUO........................................................................................................................ 1

    2. HIPTESES.............................................................................................................................. 6

    3. OBJETIVOS ............................................................................................................................. 74. REFERENCIAL TERICO ..................................................................................................... 8

    4.1. A construo do conhecimento na teoria piagetiana........................................................ 124.1.1. Interao social e afetividade na perspectiva piagetiana ............................................ 21

    4.2. O jogo simblico.............................................................................................................. 26

    5. REVISO DE LITERATURA............................................................................................... 30

    5.1. A instituio famlia e os papis sociais ao longo da histria.......................................... 305.1.1. A contribuio dos estudos de gnero para a compreenso dos papis sociais .......... 41

    6. PROCEDIMENTOS METODOLGICOS............................................................................ 46

    6 1 L l d t d j it d i 46

  • 5/25/2018 Texto Completo

    8/139

    7.2. Jogos desenvolvidos na rea do brinquedo dramtico com acessrios............................ 75

    7.2.1. rea do brinquedo dramtico com acessrios caracterizando salo de cabeleireiro 76

    7.2.2. rea do brinquedo dramtico com acessrios caracterizando escola......................... 81

    7.2.3. rea do brinquedo dramtico com acessrios caracterizando consultrio mdico.. 86

    7.2.4. rea do brinquedo dramtico com acessrios caracterizando oficina mecnica ..... 89

    7.2.5. rea do brinquedo dramtico com acessrios caracterizando supermercado ............ 93

    7.3. Brinquedo dramtico livre x brinquedo dramtico com acessrios................................. 98

    8. CONSIDERAES FINAIS................................................................................................ 104

    REFERNCIAS........................................................................................................................ 110

    APNDICES............................................................................................................................. 117

  • 5/25/2018 Texto Completo

    9/139

    RESUMO

    CASTRO, Ana Paula Pereira de, M.S., Universidade Federal de Viosa, maio de 2006.Relaes de gnero na Educao Infantil: uma anlise a partir da atividadeldica. Orientadora: Maria de Lourdes Mattos Barreto. Co-orientadoras: Ana Louisede Carvalho Fiza e Maria Thereza Costa Coelho de Souza.

    O objetivo deste trabalho consistiu em analisar, atravs do jogo simblico, o

    processo de constituio das identidades de gnero. As questes que nortearam a pesquisa

    foram: Que tipos de modelos meninos e meninas do Laboratrio de Desenvolvimento

    Infantil e do Laboratrio de Desenvolvimento Humano esto produzindo e reproduzindo

    nos jogos? Os papis representados nos jogos apontam as mudanas que esto sendoconstrudas nas relaes familiares e nas relaes de gnero na sociedade atual? Existe

    uma hierarquia sexual de poder nas relaes sociais estabelecidas entre meninos e

    meninas nos seus jogos? Adotamos a teoria piagetiana e a teoria do psicodrama como

  • 5/25/2018 Texto Completo

    10/139

    representados na rea do brinquedo dramtico. Os resultados apontaram para as

    mudanas que esto ocorrendo nos padres de diviso sexual do trabalho, nas relaes

    de gnero, no casamento e na famlia. Observamos que o papel de me foi o mais

    representado pelas meninas, embora elas tenham representado outros papis, retratando

    a multiplicidade de papis vivenciada pelas mulheres, o que alguns pesquisadores tm

    definido como a fragmentao da identidade. Os papis de filho e a imitao de animais

    foram mais representados pelos meninos e a presena dos meninos na rea do brinquedo

    dramtico foi menor em relao presena das meninas. A pesquisa contribuiu para

    mostrar como o jogo constitui fonte importante para anlise das relaes de gnero na

    infncia, principalmente na faixa etria estudada, pois nesta idade a criana j passou de

    um funcionamento embasado na ao para um funcionamento representacional. Alm

    disso, ao longo do desenvolvimento as crianas vo construindo as identidades de

    gnero, assim como constroem o conhecimento fsico, lgico-matemtico e social.

  • 5/25/2018 Texto Completo

    11/139

    ABSTRACT

    CASTRO, Ana Paula Pereira de. M.S., Universidade Federal de Viosa, May, 2006.Gender relations in the Child Education: an analysis from the playful activity Adviser: Maria de Lourdes Mattos Barreto. Co-Advisers: Ana Louise de CarvalhoFiza and Maria Thereza Costa Coelho de Souza.

    The general methodology consisted of analysing the process of gender identities

    through the use of symbolic (role playing) games. The questions which guided thisresearch were: What kind of patterns are girls and boys of Laboratrio de

    Desenvolvimento Infantil (LDI) and Laboratrio de Desenvolvimento Humano (LDH)

    producing and reproducing in their games? Do roles played in the games indicate

    changes that have occurred into family relationships or gender relationships of current

    society? Is there a sexual power hierarchy in the social relationships settled betweenboys and girls in their games? As a working strategy, we have adopted the Theory of

    Piaget and the use of Psychodrama. We have focused on the role of social interactions

    in the games and knowledge acquisition in the childrens development. We have also

  • 5/25/2018 Texto Completo

    12/139

    the one that girls played the most, although they have played other roles that highlight

    situations experienced by women, which has been defined by some researchers as the

    identity fragmentation. The principal roles of boys were those of sons and animals, and

    their presence in the dramatic area was smaller compared to the girls. The research

    contributed to show how the game is an important source of data for use in the analysis

    of gender relationships in childhood, in the age group studied, considering that at that

    age children have already passed from an operation based on action to a representative

    operation. In addition, it was found that throughout the development period, the children

    continue to build their gender identities, as well as the physical, the logical-

    mathematical and the social knowledge.

  • 5/25/2018 Texto Completo

    13/139

    1. INTRODUO

    O interesse que motivou a realizao deste trabalho surgiu a partir de algumas

    situaes vivenciadas durante o estgio de graduao no Laboratrio de

    Desenvolvimento Humano (LDH), da Universidade Federal de Viosa (UFV), em

    Viosa, MG. No LDH, no perodo de aproximadamente uma hora e 10 minutos, as

    crianas desenvolviam atividades na rea interna, que era dividida em reas ou centros

    de interesse, a saber: rea de blocos1, rea de brinquedo dramtico2, rea de brinquedo

    manipulativo3, rea de artes4, rea de cincias5e rea silenciosa6. Dessa forma, durante

    o perodo de atividades livres as crianas podiam realizar atividades nas diferentes

    reas.

    Inserida nesse contexto, durante a realizao do estgio observei que um

    menino, na maior parte do tempo das atividades livres na rea interna, ficava no

    brinquedo dramtico, brincando com boneca, vestindo roupas e sapatos femininos,

    1Na rea de blocos,encontram-se blocos de tamanhos e modelos variados para as crianas realizaremsuas construes.

  • 5/25/2018 Texto Completo

    14/139

    assumindo o papel de me e se autodenominando Diana. Essa situao tambm foi

    observada por outros estudantes que realizavam o mesmo estgio, o que gerou uma srie

    de comentrios preconceituosos a respeito dessa criana.

    Vrias questes foram levantadas por esse grupo de estagirios e, durante as

    conversas informais, procurvamos entender por que aquele menino brincava com

    boneca, usava roupas femininas e gostava de representar o papel de me. As discusses

    se centravam sempre no mesmo assunto, ou seja, de que existia um problema que

    deveria ser tratado, e questionava-se a orientao sexual desse menino. Alguns

    acreditavam que j haviam nascido assim, outros no arriscavam uma explicao, mas

    defendiam a importncia de um tratamento. Essas questes me instigaram a buscar

    explicaes que fossem alm do senso comum e que permitissem melhor compreenso

    desse comportamento que estava sendo considerado como desvio.

    A partir dessas inquietaes, passei a buscar pesquisas que abordassem as

    questes de sexualidade na infncia. Deparei-me com perspectivas pautadas no

    determinismo biolgico. Contudo, as leituras de algumas autoras como Louro (2002),

    Finco (2003) e Felipe (2001), entre outras, que utilizam o referencial terico de gnero,

    auxiliaram-me a direcionar essa discusso.

    Diversos agentes de socializao esto constantemente nos ensinando formas de

    ser homem e de ser mulher. Em razo dessas classificaes feitas pelos discursos

    hegemnicos, muitas vezes passamos a acreditar que existe uma nica forma de ser

    menino e uma nica forma de ser menina, e tudo o que foge desses parmetros

    enquadrado como anormal, problemtico ou patolgico. Diferentes agentes de

    socializao como a famlia, a escola, os meios de comunicao e os grupos de pares7

    acabam reproduzindo e, conseqentemente, reforando os atributos ideolgicos do

    papel feminino e do papel masculino. A instituio de educao infantil, por ser um

    espao educacional em que a criana desde muito pequena passa grande parte de seu

  • 5/25/2018 Texto Completo

    15/139

    saberes (SANTOS, 2004). Como aponta Sabat (2001), nas imagens publicitrias

    podemos encontrar um campo de constituio de sujeitos, em que as relaes de gnero

    representadas pela mdia so campos de constituio de identidades e, muitas vezes,

    reproduzem os modelos sociais hegemnicos.

    Reforando essas consideraes, estudo realizado por Felipe (1999) apontou que

    as propagandas de revistas e televiso e outros anncios imagticos no apenas tentam

    vender seu produto ao associ-lo a certas qualidades socialmente desejveis, mas

    tambm vende uma viso de mundo, um estilo de vida. Inserida nesse contexto, a

    criana no tendo, ainda, uma viso crtica, tende, muitas vezes, a incorporar esses

    padres considerando-os como caractersticas naturais do ser humano e, assim,

    aprendem desde cedo uma maneira idealizada de ser homem e de ser mulher.

    Como destaca Freitas (2001), no podemos, contudo, esquecer que os indivduos

    so ativos no seu processo de construo do conhecimento. Assim, esses valores

    transmitidos pela televiso no so assimilados de forma mecnica, embora sejam

    utilizados para constituio de suas identidades. Considerando que a criana no

    passiva na construo de seu conhecimento, Piaget (1965/1973) destacou que toda

    conduta formada por normas, valores e smbolos. Dessa forma, a interao e

    transmisso social so um dos fatores para a construo do conhecimento. A criana,

    por meio da interao com os sujeitos e os objetos, assimila e acomoda os valores, as

    regras, as leis e o sistema de linguagem de sua sociedade, dentre outros. Nessa

    interao, as crianas vo conhecendo os comportamentos que so aceitos e os que so

    rejeitados e vo construindo suas identidades e as diferentes formas de ser meninoe de

    ser menina.

    Nesse contexto, como afirma Fischer e Marques (2005), a educao formal e

    informal pode contribuir para manter as desigualdades entre os sexos. Essas autoras

    destacam que ao oferecermos brinquedos diferentes para meninos e meninas estamos

  • 5/25/2018 Texto Completo

    16/139

    Segundo Felipe (2001), muitos professores consideram como problema o fato de

    o menino brincar com boneca ou se fantasiar de personagens femininos. Muitas vezes,

    chegam a encaminhar o menino para tratamento psicolgico, pois acreditam que seu

    comportamento no condizente com sua masculinidade. Agem da mesma forma

    quando se deparam com uma menina que tem comportamento extremamente ativo ou

    uma grande capacidade de questionar. A autora referida afirma que muitas vezes, nessas

    situaes, os comportamentos so vistos como parte integrante de uma essncia

    feminina e masculina. Destaca que o conceito de gnero surgiu para problematizar essas

    colocaes e refutar a idia de essncia, mostrando que tanto o jeito de ser homem

    quanto o jeito de ser mulher so construdos histrica e socialmente. Ressalta que,

    quando aceitamos que existem comportamentos apropriados para meninas e para

    meninos, estamos impondo limites ao desenvolvimento total das crianas.

    Nesse sentido, Louro (2003a) destaca que estamos vivendo um tempo em que a

    diversidade no pode ser explicada pela oposio binria. Precisamos estar atentos para

    a existncia de mltiplas identidades. O ideal de homem branco ocidental heterossexual

    e de classe mdia passa a ser contestado. Portanto, discutir as diferentes formas de ser

    menino e de ser menina fundamental para rompermos essas categorizaes feitas pela

    escola, pela mdia, pela Igreja, enfim, pela sociedade e at por ns no dia-a-dia.

    Pesquisas tm mostrado que as questes da construo das identidades sexuais e

    de gnero no tm sido discutidas com o rigor necessrio. Segundo Vianna e Unbehaum

    (2004), o prprio texto do Plano Nacional de Educao no abrange as questes de

    gnero no mbito da educao infantil. Alm da carncia de pesquisas que

    problematizem a pluralidade que estamos vivendo, grande parte das pesquisas

    desenvolvidas est sendo construda a partir de binarismos: homem/mulher, forte/fraco

    e pblico/privado, dentre outros. Nesse sentido, as mulheres so vistas como o oposto

    do homem onde devem se ajustar para atender ao padro masculino (SANTOS 2004)

  • 5/25/2018 Texto Completo

    17/139

    de Desenvolvimento Humano da UFV despertou algumas questes que constituem a

    problemtica deste trabalho: Que tipos de modelos meninos e meninas do LDI e

    LDH esto produzindo e reproduzindo nos jogos? Os papis representados nos

    jogos apontam as mudanas que esto sendo construdas nas relaes familiares e

    nas relaes de gnero na sociedade atual? Existe uma hierarquia sexual de poder

    nas relaes sociais estabelecidas entre meninos e meninas nos seus jogos?

    Essa carncia de estudos que problematizem a pluralidade e a diversidade da

    sexualidade e dos papis de gnero dos sujeitos na sociedade e no mbito da educao

    infantil, somadas s dificuldades apresentadas pelos profissionais, professores e pelas

    famlias nas creches e pr-escolas, indica a importncia do desenvolvimento desta

    pesquisa.

    Acreditamos que esta pesquisa pode contribuir para que repensemos nossa

    prtica enquanto educadores, pais e membros da sociedade e para que as crianas

    possam viver sua infncia em plenitude, sem ter que se sujeitar s classificaes

    arbitrrias impostas pelos adultos. Ao observarmos a sociedade, verificamos que ela

    constituda por diferentes homens e diferentes mulheres que, na maioria das vezes,

    contradizem o ideal de homem e de mulher que so passados pelos diversos agentes de

    socializao. Pontuar essa diversidade imprescindvel para que alguns

    comportamentos deixem de ser enquadrados como anormais e preocupantes. Afinal,

    vivemos numa sociedade plural que est em constante transformao, em que as

    diferenas no devem ser transformadas em desigualdades. Como destaca Felipe (2001),

    existem diferentes maneiras de ser menino e de ser menina, portanto no podemos

    estabelecer padres em relao ao que seja apropriado criana em funo de seu sexo.

  • 5/25/2018 Texto Completo

    18/139

    2. HIPTESES

    Acredita-se que as crianas na faixa etria estudada, ou seja, entre 4 e 6 anos, j

    tenham incorporado alguns esteretipos de gnero presentes na sociedade.

    As representaes das crianas no iro reproduzir apenas a dicotomia entre papis

    pblicos e privados, presentes na famlia burguesa moderna, mas iro tambm refletir

    essas mudanas que esto ocorrendo nos padres de casamento, famlia, na diviso

    sexual do trabalho e nas relaes de gnero.

  • 5/25/2018 Texto Completo

    19/139

    3. OBJETIVOS

    Analisar, atravs dos jogos simblicos, o processo de constituio das

    identidades de gnero. Especificamente, buscamos:

    Verificar os brinquedos utilizados por meninos e meninas nos jogos desenvolvidos

    na rea de brinquedo dramtico.

    Analisar os jogos desenvolvidos por meninos e meninas na rea de brinquedo

    dramtico.

    Analisar os papis sociais e contrapapis representados nos jogos desenvolvidos no

    brinquedo dramtico.

    Identificar os modelos de famlias representados pelas crianas nos jogos

    desenvolvidos na rea do brinquedo dramtico.

  • 5/25/2018 Texto Completo

    20/139

    4. REFERENCIAL TERICO

    Ao iniciarmos esta pesquisa, partimos do pressuposto de que o sujeito tem

    estrutura de pensamento coerente e que constri representaes da realidade sua volta.

    Dessa forma, consideramos que o pensamento da criana difere do pensamento do

    adulto, e, portanto, as pesquisas realizadas com as crianas possuem suas

    particularidades e no podem seguir os mesmos caminhos metodolgicos dos estudos

    realizados com adultos. Ao buscar as pesquisas conduzidas com crianas, deparamos

    com uma grande quantidade de pesquisas embasadas na teoria piagetiana, mas no

    abordando as questes de gnero. No entanto, as pesquisas que discutiam as questes de

    gnero no abordavam a problemtica do desenvolvimento da criana. A partir desse

    momento, vrias dvidas foram surgindo, por exemplo: Como relacionar as discusses

    de gnero com a questo do desenvolvimento da criana?

    Ao longo da realizao da reviso bibliogrfica, deparamos com vrias

    dissertaes e artigos embasados na socionomia8, especificamente, abordando as teorias

    do vnculo e dos papis Por meio dessas leituras verificamos que a socionomia e a

  • 5/25/2018 Texto Completo

    21/139

    relaes necessrias para respondermos aos questionamentos levantados nesta

    dissertao. Outro trabalho que teve grande contribuio foi a tese Educao e Gnero:

    uma leitura psicodramtica, apresentada por Maria Luiza Neto Siqueira, em 1999, na

    Unicamp. Assim, comeamos a trilhar um caminho articulando a teoria piagetiana com

    o psicodrama, relacionando essas teorias com as pesquisas realizadas sobre a temtica:

    gnero/infncia. Ao fazer essa opo, estvamos cientes de que esse seria apenas um

    dos caminhos entre tantos outros que poderiam ter sido traados.

    Considerando a relao entre a teoria piagetiana e o psicodrama, Blake apud

    Wechsler (2002) apresenta uma afirmao que tambm valiosa para essa articulao

    entre as duas teorias:

    O mtodo de Piaget, por um lado, e as tcnicas psicodramticas, por

    outro, podem ser considerados complementares e resta pesquisafutura determinar as condies timas para o uso de cada uma delas ea maneira pela qual podem ser empregadas em conjunto, nainvestigao da vida subjetiva das crianas (BLAKE apudWECHSLER, 2002, p. 36).

    As crianas estudadas estavam, teoricamente, no perodo pr-operatrio, o qual,

    segundo Piaget, caracteriza-se pelo jogo simblico. Wechsler (1999) ressalta que, nessafase, a criana exercita, atravs dos jogos simblicos, os papis psicodramticos, pois

    papis sociais, propriamente ditos, ela somente conseguir exercitar a partir do perodo

    operatrio-concreto, quando adquire a estrutura de reversibilidade. Segundo essa autora,

    os jogos simblicos podem ser considerados os jogos dramticos, visto que, de acordo

    com a teoria piagetiana, a criana no perodo pr-operatrio ainda no construiu asestruturas de regras. O jogo dramtico, por meio da representao de papis, possibilita

    a explorao e expanso do eu, permitindo s crianas conhec-los mais intimamente.

    Na viso psicodramtica, o papel visto como a parte tangvel do eu; ele expressa os

  • 5/25/2018 Texto Completo

    22/139

    original da palavra grega drao eu fao, eu luto , descobre a vida ea si prpria, pelas tentativas emocionais, cognitivas e fsicas que serepetem no prprio jogo, por intermdio dos papis assumidos(SLADE apud WECHSLER, 1999, p. 119).

    Para Moreno apud Nery (2005), todo ser humano possui um fator ativo que ele

    denomina fator espontaneidade (fator e), o qual responsvel pela singularidade de

    cada indivduo, pela peculiaridade do desempenho dos papis sociais aprendidos na

    sociedade: assim, por exemplo, cada pessoa ser uma amiga ou uma vizinha com seujeito nico de ser (NERY, 2005, p. 9). Ao explorar o universo da criana em seu livro

    Psicodrama, Moreno (1975) destaca que:

    O fator e um agente ativo em favor da criana, muito antes que ainteligncia e a memria desenvolvam novos mtodos de orientaopara a criana. Mas chega um ponto, no desenvolvimento infantil, emque a inteligncia e a memria assumem a liderana, e ofator ev-secada vez mais forado a uma relao de subservincia em relao aambas. ... Por algum tempo, como se fosse capaz de fazer ainteligncia, a memria e as foras sociais subordinadas suas. Mas,finalmente, submete-se aos poderosos esteretipos sociais e culturaisque dominam o meio humano. Da, em diante, medida que a crianaganha em anos, o fator e converte-se em funo esquecida(MORENO, 1975, p. 131).

    Moreno (1975) acrescenta que a educao formal sempre se preocupou com o

    desenvolvimento da memria e da inteligncia, esquecendo-se da importncia de se

    exercitar o fator espontaneidade. Alm disso, muitas pessoas associam o fator

    espontaneidade emoo e ao e no ao pensamento e ao repouso. Entretanto, a

    espontaneidade pode estar presente numa pessoa tanto quando pensa como quandosente, ao descansar tanto quanto ao dedicar-se a determinada ao (MORENO, 1975, p.

    163).

    Nery (2005) acrescenta que, ao desempenhar os diversos papis, estamos

  • 5/25/2018 Texto Completo

    23/139

    A um sujeito simultaneamente afetivo e cognitivo que se dirige para oobjeto, buscando assimil-lo, de acordo com um interesse afetivo ecom possibilidades cognitivas para realizar a assimilao (DESOUZA, 2002a, p. 58).

    No que diz respeito questo da afetividade, Moreno apud Wechsler (2002)

    ressalta que ela o que explica os movimentos dos indivduos em direo aos objetos e

    pessoas, sejam eles de atrao, sejam de repulsa.

    Na fase primitiva da matriz de identidade, a criana no distingueentre prximo e distante. Mas, gradualmente, o sentido deproximidade e distncia vai-se desenvolvendo e a criana comea aser atrada para pessoas e objetos ou a afastar-se deles. Este oprimeiro reflexo social indicando o aparecimento dofator tele, e oncleo dos subjacentes padres de atrao-repulsa e das emoesespecializadas (MORENO, 1975, p. 119).

    Sob essa mesma perspectiva, Nery (2005) afirma que as relaes estabelecidas

    entre as pessoas, ao desempenharem os papis, no so simtricas ou assimtricas por

    natureza, mas so construdas. Ao discutir a questo dos vnculos que as crianas

    estabelecem, essa pesquisadora enfatiza que:

    Penso que em todos os vnculos, no apenas com os pais, ou at nummesmo vnculo do seu grupo social, a criana pode aprender esseesquema de atividade, passividade e interatividade, alm de outrasmodalidades vinculares. Isso porque vnculo implica movimento,dinmica, contradies, dentre tantos outros fatores (NERY, 2005, p.31).

    Entendendo o desenvolvimento sob essa tica, podemos dizer que a vivncia dospapis, sejam os psicossomticos9, os imaginrios ou os sociais, cumpre sua funo

    especfica na construo da identidade psicossocial do indivduo. Wechsler (2002)

    afirma que o processo de construo da identidade deve ser entendido como um

  • 5/25/2018 Texto Completo

    24/139

    Os papis psicossomticos, psicodramticos e sociais se articulam, assim

    desenhando a identidade do sujeito. Entretanto, quando nos referimos construo da

    identidade, no estamos falando de uma identidade imutvel, predeterminada, mas

    estamos falando de uma identidade que est em constante processo de transformao,

    portanto considerada transitria, provisria e plural. Como afirma Wechsler (2002), o

    indivduo continuar, pela vida toda, construindo novos conhecimentos e, portanto, re-

    significando o velho (WECHSLER, 2002, p. 23).

    Dessa forma, procuramos desenvolver esta pesquisa considerando que o sujeito

    constitudo por mltiplas identidades. Como ressalta Finco (2004), qualquer

    transgresso ao ideal de homem e mulher foi considerada como possibilidades de ser

    menino e de ser menina e no, simplesmente, como algo anormal e preocupante.

    4.1. A construo do conhecimento na teoria piagetiana

    A questo da origem do conhecimento preocupao de vrios pesquisadores

    que buscam explicaes sobre como as crianas pensam, como se desenvolvem e como

    adquirem o conhecimento sobre o mundo. Os pressupostos dos principais tericos

    variam, em parte, pelo fato de que cada um considera o ser humano a partir de uma

    perspectiva. Cada teoria baseia-se em um modelo de ser humano, isto , cada uma

    considera a criana de modo diferente, buscando, assim, explicar o seu desenvolvimento

    de acordo com sua formao, viso do mundo e contextualizao histrica. Dessa

    forma, as teorias de desenvolvimento no so complementares, pois cada uma constitui

    seu objeto de forma diferente. Becker (2003) situa a perspectiva da epistemologia

    gentica da seguinte forma:

  • 5/25/2018 Texto Completo

    25/139

    minorias de indivduos que atraem para si quase todas aspossibilidades sociais (BECKER, 2003, p. 13).

    Considerando que o sujeito constri seu conhecimento, a teoria piagetiana foi

    definida para ancorar a pesquisa em funo de sua complexidade e de seu poder

    explicativo, no que se refere construo do conhecimento. Dessa forma, consideramos

    necessrio recorrer epistemologia gentica de Piaget, pois, assim como os tericos

    ps-estruturalistas, que discutem as questes de gnero, ele pontua que as condutas e as

    atitudes so formadas por valores, regras e smbolos, que variam de sociedade para

    sociedade e de gerao para gerao. Ressalta, ainda, que devemos ter clareza de que

    todas as atitudes so inspiradas pelo meio ambiente. Assim, podemos dizer que a atitude

    resulta do processo de interao social, no qual a famlia, os amigos, a escola, a mdia, a

    Igreja e outros grupos sociais tm papel relevante. Dessa forma, os componentes das

    atitudes que inspiram nossas aes no so inatos ou predeterminados, mas so

    construdos na interao com o meio fsico e social. E por meio da ao que vamos

    construir o conhecimento, seja ele fsico, lgico-matemtico ou social.

    A problemtica inicial de Piaget fundamentalmente filosfica. Asquestes levantadas so: o que conhecimento? O que conhecemos?A partir dessas questes iniciais, outra pergunta toma forma e setransforma na questo bsica de reflexo e estudo: Como se passa deum estado de conhecimento menos complexo a outro maiscomplexo? J que nem o apriorismonem o empirismo deram contade responder, segundo Piaget, a questo do conhecimento, quaisseriam as bases do acmulo de conhecimento? Desta forma, oconstrutivismo se prope responder essa questo e toda obra de Piagetgirou em torno dela, sendo que sua originalidade est na busca de

    respostas no comportamento das crianas, do nascimento at adolescncia (BARRETO, 2005, p. 1).

    Em oposio ao empirismo e ao inatismo, o interacionismo considera que para

    h h i i di l i i l

  • 5/25/2018 Texto Completo

    26/139

    pesquisas comprometidas com a idia de construo simultnea dainteligncia e do mundo (DE SOUZA, 2004, p. 37).

    Ao longo de seus estudos, Piaget constatou que essa passagem resulta de um

    processo dinmico e que no h um fator determinante do desenvolvimento e, sim, que

    existem fatores do desenvolvimento que so: maturao e hereditariedade, exerccio e

    experincia, interao e transmisso social e equilibrao. Esses quatro fatores do

    desenvolvimento esto relacionados ao desenvolvimento cognitivo e explicam a

    evoluo mental.

    Baseada na teoria piagetiana, Barreto (1996) afirma que a maturao e

    hereditariedade so fatores biolgicos ligados ao sistema gentico e maturao,

    principalmente, dos sistemas nervoso e endcrino. Seguindo essa mesma perspectiva

    terica, Wadsworth (1999) enfatiza que a maturao impe limites ao desenvolvimento

    cognitivo, e esse limite diminui medida que a maturao progride; nesse processo, a

    ao da criana no meio fundamental.

    O exerccio e a experincia so necessrios ao desenvolvimento, existindo dois

    tipos de experincia: a experincia fsica e a experincia lgico-matemtica. H uma

    categoria de conhecimentos construdos a partir da experincia dos objetos e de suas

    relaes, mas com abstrao a partir dos objetos. O conhecimento estruturado a partir

    da abstrao emprica, que consiste em agir sobre o objeto para tirar dele suas

    propriedades observveis. Essas propriedades so abstradas quando a criana age sobre

    os objetos e observa como eles reagem s suas aes por intermdio de seus sentidos. A

    experincia lgico-matemtica consiste em agir sobre os objetos para conhecer o

    resultado da coordenao das aes. O conhecimento lgico-matemtico estruturado a

    partir da abstrao reflexiva, que um processo cognitivo ligado ao exerccio do

    pensamento e tem origem na coordenao das aes que a criana exerce sobre os

  • 5/25/2018 Texto Completo

    27/139

    criana, que supe que haja instrumentos operatrios adequados a essa assimilao

    (PIAGET apud BARRETO, 1996).

    Esses trs fatores, ou seja, maturao e hereditariedade, exerccio e experincia,

    interao e transmisso social no podem operar sozinhos. necessria uma

    coordenao entre eles, ou seja, uma auto-regulao que Piaget denominou

    equilibrao. A equilibrao um fator necessrio para conciliar as contribuies dos

    outros trs fatores, e um fator interno observvel em cada construo parcial e na

    passagem de um estgio de desenvolvimento ao outro (BARRETO, 1996). Conforme

    afirma De Souza (2004):

    Uma teoria construtivista, pelo fato de demonstrar que odesenvolvimento cognitivo no pode ser explicado exclusivamentepela hereditariedade, nem apenas pela influncia do meio, deve

    postular a existncia de um processo interno ao sujeito que incita atransformar suas formas de conhecimento no sentido de umaotimizao. Esse processo a equilibrao. A idia central de Piaget a de que o desenvolvimento uma evoluo dirigida por necessidadesinternas de equilbrio (MONTANGERO; MAURICE-NAVILLE,1998, p. 155).

    Apesar de no ser considerado um fator do desenvolvimento, a afetividade deve

    ser ressaltada, pois o desenvolvimento intelectual composto por dois componentes:

    um cognitivo e outro afetivo. A motivao e a seleo so dois aspectos do afeto,

    necessrios ao desenvolvimento intelectual. Para Piaget, no h ao puramente

    cognitiva e nem puramente afetiva, pois os aspectos afetivos so construdos da mesma

    forma que os aspectos cognitivos (WADSWORTH, 1999). Assim, o menino no nasce

    gostando de futebol e de carrinho e a menina de boneca e de casinha; essas preferncias

    so construdas por meio das experincias, das interaes e transmisses sociais. Com

    base nos pressupostos da teria piagetiana, Wechsler (1997) enfatiza que

  • 5/25/2018 Texto Completo

    28/139

    vivos se adaptam constantemente s mudanas das condies ambientais e que os atos

    biolgicos so de adaptao ao meio fsico e organizaes do meio ambiente. A mente e

    o corpo no funcionam separadamente, e a atividade mental submete-se s mesmas leis

    que governam a atividade biolgica. Isso o levou a conceber o desenvolvimento

    cognitivo do mesmo modo que o desenvolvimento biolgico. Porm, no significa que

    o desenvolvimento mental deva ser atribudo ao funcionamento biolgico, mas que os

    conceitos referentes ao desenvolvimento biolgico so teis e vlidos para pesquisar o

    desenvolvimento intelectual (PIAGET apud BARRETO, 2005).

    Com base na teoria de Piaget, Wadsworth (1999) afirma que existem elementos

    invariantes que esto presentes em todos os organismos vivos. Nesse sentido, a

    adaptao10e a organizao11so invariantes funcionais bsicas presentes em todos os

    seres vivos. A adaptao ocorre por meio da assimilao12 e da acomodao13. A

    assimilao e a acomodao so fundamentais ao funcionamento intelectual e esto

    presentes em todas as aes intelectuais de qualquer tipo e em qualquer nvel de

    desenvolvimento. A acomodao explica o desenvolvimento (mudana qualitativa) e a

    assimilao, o crescimento (mudana quantitativa). Juntos, assimilao e acomodao

    explicam a adaptao intelectual e o desenvolvimento das estruturas cognitivas.

    Nessa perspectiva, Coll e Gillirion (1995) reforam que a criana, ao longo de

    seu desenvolvimento, constri e reconstri seus esquemas, diferenciando-os. Barreto

    (1996), seguindo Piaget, acrescenta que, medida que a criana se desenvolve, os

    esquemas se modificam, tornando-se mais refinados. O sistema cognitivo , portanto,

    um sistema aberto e fechado ao mesmo tempo. considerado aberto em funo das

    trocas que estabelece com o meio e fechado devido sua ordem cclica, que o mantm e

    mostra a existncia da organizao. Quanto mais aberto o sistema cognitivo, menor sua

    determinao biolgica e maior sua possibilidade de se desenvolver.

    O desenvolvimento cognitivo fruto das mudanas que ocorrem nas estruturas

  • 5/25/2018 Texto Completo

    29/139

    maneira de atuar e compreender a realidade. Coll e Gillirion (1995), ancorados na

    teoria de Piaget, enfatizam que as estruturas de desenvolvimento traduzem as diferentes

    formas de organizao mental. Ressaltam que essas mudanas no desenvolvimento

    intelectual devem ser vistas como um processo contnuo, em que os esquemas so

    construdos e reconstrudos de forma gradual.

    Do nascimento at a adolescncia, Piaget distingue quatro estruturas diferentes

    de desenvolvimento. A primeira estrutura a sensrio motora (do nascimento at os 2

    anos), passando para o perodo pr-operatrio (2 a 6 anos), depois para o perodo das

    operaes concretas (6 a 12 anos) at atingir o perodo das operaes formais (12 anos

    em diante). importante ressaltar, como afirma Piaget, que as idades cronolgicas

    sugeridas so apenas norteadoras e, portanto, podem variar em funo da experincia de

    cada indivduo (BARRETO, 1996).

    Na estrutura sensrio-motora, a criana passa de um perodo neonatal, de

    completa indiferenciao entre o eue o mundo para uma organizao de aes sensrio-

    motoras. Os esquemas sensrio-motores permitem a organizao dos estmulos

    ambientais, possibilitando que a criana interaja com o mundo. A inteligncia sensrio-

    motora se restringe ao nvel prtico, a um funcionamento embasado nas aes

    (PIAGET, 1947/1983).

    A estrutura pr-operatria caracteriza-se pela aquisio da funo simblica.

    Nesse perodo, tudo que a criana construiu no plano da ao deve ser reconstrudo no

    plano da representao. Em funo dessas mudanas, novas relaes sociais surgem,

    modificando o pensamento da criana. As relaes sociais de cooperao ainda no

    esto presentes, caracterizando uma fase constituda pelo egocentrismo e aceitao

    passiva das regras (PIAGET, 1947/1983). Nesse perodo, Wechsler (2002) enfatiza que:

    A criana (...) exercita os papis imaginrios, os quais expressam sua

  • 5/25/2018 Texto Completo

    30/139

    expressar essa capacidade de representar, por meio de uma imitao diferida, o jogo

    simblico, do desenho, da imagem mental e da linguagem falada. A imitao diferida ,

    basicamente, uma acomodao; a imitao de objetos e eventos que no esto

    presentes no momento em que ocorre a imitao. Significa dizer que a criana capaz

    de representar mentalmente, ou seja, consegue recordar o comportamento imitado. O

    jogo simblico caracteriza-se por ser uma forma de auto-expresso, pois ele permite a

    criana satisfazer o eu pela transformao do que real naquilo que desejado

    (WADSWORTH, 1999).

    Nesse perodo, surge a capacidade de representar coisas atravs do desenho,

    entretanto, no incio, no ocorre uma comunicao efetiva; aparecerem apenas alguns

    rabiscos devido ao egocentrismo. No entanto, as imagens mentais so representaes

    internas de objetos e eventos. As imagens so consideradas como smbolos, embora

    sejam estticos e rgidos. A aquisio da linguagem falada importante, pois ela

    expressa o pensamento da criana. Mesmo que ocorra a pronuncia de algumas palavras

    no perodo sensrio-motor, a linguagem usada para representar objetos e eventos

    aparece apenas com a estrutura pr-operatria (WADSWORTH, 1999). Entretanto, a

    linguagem, como ressalta Barreto (2005):

    (...) no sinnimo de pensamento. As crianas sabem muitas coisascujos nomes desconhecem, e sabem muitas palavras que realmenteno compreendem (...) A linguagem na fase pr-operacional tipicamente egocntrica, embora a criana a use tambm paracomunicao e nesse caso leva em considerao o ponto de vista dosoutros (BARRETO, 2005, p. 2).

    No perodo pr-operatrio, o pensamento ainda est preso percepo. Algumas

    caractersticas do pensamento pr-operatrio atuam como obstculo ao pensamento

    lgico. Essas caractersticas so: egocentrismo, centrao, pensamento por estados, pr-

    conceitos e raciocnio transdutivo representao ligada ao e irrreversibilidade

  • 5/25/2018 Texto Completo

    31/139

    concluses a partir dessas relaes. Devido ao pensamento por estados, a criana no

    consegue juntar uma totalidade de condies sucessivas em um todo corrente e

    integrado, ou seja, ela no focaliza o processo de transformao do incio ao fim, mas se

    detm a cada intervalo entre os estados, caracterizando um pensamento rgido e esttico

    (BARRETO, 2001b).

    A centrao explicada pelo fato de a criana centrar sobre aspectos perceptivos

    dos objetos. Ela tende a focalizar os aspectos que mais lhe chamam ateno, ignorando

    outros aspectos importantes, e, conseqentemente, ocorre o predomnio da avaliao

    perceptiva em detrimento da avaliao cognitiva (BARRETO, 1996).

    Uma caracterstica importante para a construo do conhecimento a

    reversibilidade, ou seja, a capacidade de seguir a linha de raciocnio de volta ao ponto

    de partida. Porm, no perodo pr-operatrio a criana no capaz de entender que

    certos fenmenos so reversveis, caracterizando um pensamento marcado pela

    irreversibilidade (WADSWORTH, 1999).

    Apesar de a criana poder representar a realidade alm de agir sobre ela, suas

    representaes esto muito prximas das aes. No lugar de esquematizar, reordenar e

    refazer os acontecimentos, a criana imprime as seqncias de fatos em sua mente da

    mesma forma como as aes, caracterizando, assim, um pensamento extremamente

    concreto (WADSWORTH, 1999).

    Segundo Piaget, o perodo pr-operatrio no considerado como apenas um

    nvel de transio para as operaes, mas possui caractersticas prprias em que a

    criana necessita superar uma srie de obstculos para passar de um perodo

    estritamente ligado ao para um de operao. Nesse sentido, Piaget afirma que:

    Um primeiro obstculo est relacionado necessidade de reconstruir,no plano representacional, o que j foi adquirido no plano da ao. A

  • 5/25/2018 Texto Completo

    32/139

    um entre outros, e a linguagem usada para comunicar (PIAGET apud BARRETO,

    1996).

    Nessa fase, a criana no se limita aos aspectos perceptivos, sua deciso passa a

    ser lgica e os argumentos de suas respostas se tornam coerentes. Os processos mentais

    se tornam lgicos, ou seja, desenvolve-se um sistema internalizado de aes totalmente

    reversveis. Durante o desenvolvimento operacional concreto, a criana desenvolve

    processos de pensamento lgico (operaes) que podem ser aplicados a problemas reais

    (concretos) (WADSWORTH, 1999, p. 103). O pensamento operatrio-concreto se

    limita a resolver problemas concretos, ou seja, est preso s experincias acessveis.

    Nesse perodo, a criana tem dificuldades de raciocinar sobre problemas verbais

    complexos que envolvam problemas hipotticos ou questes futuras (WADSWORTH,

    1999).

    A entrada da criana no novo perodo operatrio concreto garante anova possibilidade de seu pensamento. Ela adquire a capacidade deoperar mentalmente, traduzida pela possibilidade de compreenso dalgica que permeia o universo fsico e social. (...). nesse momentoque a criana consegue jogar os papis sociais, de fato.Anteriormente ela os exercitava, mas com a particularidade que seupensamento imprimia ao prprio papel, portanto exercitava os papis

    de fantasia. Desse modo, somente depois de adquirir a estrutura dereversibilidade que ela conseguir exercit-los com o devido respeitos generalizaes que eles necessitam para serem assimilados comotais pelo pensamento (WECHSLER, 2002, p. 96).

    Piaget destaca que a estrutura operatria formal caracterizada pelo raciocnio

    lgico independente do concreto. H coordenao das duas formas de reversibilidade,

    ou seja, por inverso e reciprocidade, e h distino entre o real e o possvel. O

    adolescente capaz de formar esquemas conceituais abstratos e realizar com eles

    operaes mentais que possuem uma lgica formal que lhe possibilita uma flexibilidade

  • 5/25/2018 Texto Completo

    33/139

    interdisciplinar, possibilita o desenvolvimento de novos estudos, ampliando, inclusive, o

    entendimento sobre as relaes de gnero na infncia.

    4.1.1. Interao social e afetividade na perspectiva piagetiana

    Piaget, em seu livro Estudos Sociolgicos (1973), descreve que a sociedade

    constituda no pela soma dos indivduos, mas por um sistema de atividades, cujas

    interaes so aes que modificam umas as outras. Essas interaes modificam a

    conscincia dos indivduos, e sua anlise pode explicar as representaes coletivas, pois

    toda conduta formada por dois tipos de interao, ou seja, pela interao sujeito-

    sujeito e pela interao sujeito-objeto. Essas interaes modificam o sujeito e o objeto

    ao mesmo tempo. Piaget ressalta que toda conduta executada em comum se traduz,

    necessariamente, pela constituio de normas, de valores ou de significantes

    convencionais. Dessa forma, podemos afirmar que as regras, os valores de troca e os

    sinais constituem os trs aspectos constitutivos dos fatos sociais.

    Atravs dos valores de troca, um novo fato se consolida socialmente,

    transformando os valores e os tornando dependentes da relao entre os vrios sujeitos e

    os objetos. E, por fim, o ltimo aspecto citado por Piaget, do fato social, o sinal ou o

    meio de expresso que serve transmisso das regras e dos valores, como os sinais

    verbais, a escrita, os gestos, a maneira de vestir, os ritos e outros. Assim, toda interao

    social aparece se manifestando sob a forma de regras, valores e smbolos (PIAGET,

    1965/1973). Dessa forma, o pensamento originalmente individual, passando,

    progressivamente, a um pensamento socializado. As trocas que o indivduo mantm

    com o meio social variam de acordo com o seu nvel de desenvolvimento, modificando

    de forma variada a estrutura mental (PERRET CLERMONT 1985) Assim:

  • 5/25/2018 Texto Completo

    34/139

    exclusivamente social, e, portanto, a atividade operatria interna e a cooperao externa

    so aspectos complementares de um nico conjunto. A cooperao fundamental para o

    desenvolvimento de condutas importantes, pois atravs do intercmbio interindividual,

    ou seja, da reciprocidade total, que a criana chega ao pensamento lgico (BARRETO,

    1996). Reforando essas colocaes, De Souza (2004) afirma que:

    A teoria de desenvolvimento de Piaget focaliza as interaes do

    sujeito com os objetos como os responsveis pela construo doconhecimento de si mesmo e do mundo e, conseqentemente, pelodesenvolvimento psicolgico (...). Esse modelo interacionista dedesenvolvimento (...) foi fruto do posicionamento epistemolgico quedefende que o conhecimento no est nem nos objetos nem no sujeito,mas dever ser construdo a partir dos encontros interativos entresujeito e objeto (DE SOUZA, 2004, p. 40).

    De acordo com Piaget (1947/1983), a sociedade, muitas vezes, atua mais que omeio fsico, modificando o indivduo em sua prpria estrutura, uma vez que o fora a

    reconhecer fatos, como tambm lhe fornece um sistema de signos inteiramente acabado,

    que modifica seu pensamento, impondo-lhe valores novos e uma srie de obrigaes.

    Portanto, a vida social transforma a inteligncia pela tripla mediao da linguagem

    (signo); do contedo dos intercmbios (valores intelectuais); e das regras impostas aopensamento (normas coletivas lgicas ou pr-lgicas). Tomando como base esses

    conceitos e refutando as explicaes essencialistas que justificam as desigualdades entre

    os sexos, consideramos que as condutas so formadas por regras, valores e smbolos que

    variam de sociedade para sociedade.

    Ao falar do papel da interao na construo do conhecimento, no podemos

    deixar de mencionar a linguagem, pois a maior parte da aprendizagem da criana

    depende da linguagem, que constitui a base de toda a comunicao social (BARRETO,

    2005, p.11). Na construo do conhecimento social, a linguagem essencial, pois

  • 5/25/2018 Texto Completo

    35/139

    prescrita ao indivduo pela sociedade no homognea, pois a prpria sociedade

    heterognea. Dessa forma, ele relata que a sociedade um conjunto de relaes sociais,

    em que encontramos os dois extremos: as relaes de coao e as relaes de

    cooperao.

    Segundo Piaget (1932/1977), a moral da coao considerada, pela criana,

    como sagrada e est ligada ao respeito unilateral e heteronomia. Caracteriza-se pela

    aceitao passiva de determinado nmero de ordens. Entretanto, a moral da cooperao

    tem como princpio a solidariedade, a autonomia e o respeito mtuo. Dessa forma, para

    a socializao da criana a cooperao necessria, porque somente a cooperao

    conseguir libert-la da mstica da palavra adulta.

    A moral infantil divide-se, desse modo, em noes impostas pelo adulto e em

    noes nascidas da colaborao entre as prprias crianas. A presso do adulto sobre a

    criana suficiente para fazer surgir na conscincia dela o sentimento do dever.

    Entretanto, essa obedincia ligada ao respeito unilateral contribui para produzir na

    criana um sentimento de revolta ou de passividade. No entanto, a regra incorporada

    atravs da cooperao e do respeito mtuo d origem a uma prtica efetiva, onde impera

    a autonomia. Portanto, as regras seguidas pelas crianas nos mais diversos assuntos so

    frutos das relaes sociais (PIAGET, 1932/1977).

    Analisando os fatos mentais, atravs de estudo realizado com crianas, Piaget

    constatou que a conscincia da obrigao supe dois tipos de relao: uma relao

    baseada no respeito unilateral, em que um obriga e o outro obedece; e uma relao de

    respeito mtuo, quando ambos se obrigam reciprocamente. Piaget ressalta, ainda, que

    no podemos esquecer que o sujeito pode ser obrigado por regras providas de geraesanteriores, das quais herdeiro social (PIAGET, 1965/1973). Assim, a elite moral de

    uma sociedade sempre encontra resistncias s suas inovaes, devido ao respeito pelas

    tradies estabelecidas (PIAGET 1965/1973 p 42)

  • 5/25/2018 Texto Completo

    36/139

    Sentir e pensar so analogamente duas faces de uma mesma moeda,formam uma unidade na qual somente uma das faces no poderia dar

    significado s condutas cotidianas, assim como afetividade e cogniotambm esto sempre presentes em qualquer construo e apropriaode conhecimentos (PIAGET apud GODOY, 2001, p. 76).

    Alm disso, por meio da interao social, a criana incorpora os valores, as

    regras e os smbolos de sua sociedade, e, conseqentemente, sua ao passa a ser

    influenciada por esse conhecimento social que adquiriu. Nesse sentido, Godoy (2001),em sua tese de doutorado intitulada As relaes tnico-raciais e o juzo moral no

    contexto escolar,destaca que o afeto tem influncia na forma como vemos o mundo,

    como apropriamos de juzos de valor e como nos relacionamos. Por meio de constantes

    adaptaes, as estruturas cognitivas e afetivas vo sendo organizadas e dependentes

    sempre da dimenso interpessoal e intrapessoal. Para Piaget, segundo De Souza(2002b), a afetividade a fora direcionadora, ou seja, responsvel pelo

    direcionamento das aes, e se manifesta nas aes e condutas dos indivduos, estando

    associada s escolhas que o indivduo faz. Dessa forma, podemos dizer que tanto a

    funo intelectual quanto a afetiva so dependentes da socializao. Apesar de Piaget

    no ter se referido aos possveis efeitos sociais e afetivos, ele reconhece sua importnciapara as construes e elaboraes infantis. Esses efeitos so vistos por ele como

    necessrios, mas no suficientes, para explicar a evoluo psicolgica da criana (DE

    SOUZA, 2004).

    Piaget (1974) considera que a afetividade est relacionada funo da

    inteligncia ao como uma fora energizante porque a afetividade influencia aescolha do indivduo em mostrar esforo intelectual, servindo, ento, como um

    regulador da ao. Essa ao reguladora influencia a escolha de metas, representando

    um papel que determina valores. Afeto, enquanto energtica, pode combinar com

  • 5/25/2018 Texto Completo

    37/139

    das experincias dirias. Ao analisar o desenvolvimento da inteligncia, Piaget destaca

    que a construo de todo e qualquer conhecimento permeado pela equilibrao, ou

    seja:

    Neste sentido, possvel dizer que podem ocorrer passagens do menorconhecimento para um maior, via equilibraes, as quais do aosujeito no s a possibilidade de desenvolver-se no mbito cognitivo,mas tambm no afetivo, social e moral, sempre em ascendncia. Esseprocesso de equilibrao faz mudar a forma como o sujeito interpreta

    as situaes sociais e, portanto, passar pelo processo de mudanastambm quanto aos sentimentos (GODOY, 2001, p. 81).

    A afetividade no modifica diretamente os esquemas, proporcionando sua

    transformao, mas indica os esquemas que sero modificados. A afetividade, portanto,

    pode acelerar a construo de determinado conhecimento ou promover inibies e

    bloqueios (PIAGET apud DE SOUZA, 2002b).

    De acordo com De La Taille (1992a), a afetividade comumente interpretada

    como uma energia, ou seja, como algo que impulsiona as aes, e ao longo do

    desenvolvimento da inteligncia o princpio bsico permanece o mesmo: a afetividade

    a mola propulsora das aes, e a razo est a seu servio. Esse dualismo entre

    afetividade e razo pode ser compreendido a partir dos dois termos que socomplementares: a afetividade seria a energia, o que move a ao, enquanto a razo

    seria o que possibilitaria ao sujeito identificar desejos, sentimentos variados e obter

    xito nas aes.

    H dois aspectos do afeto: um seria a motivao ou energizao da atividade

    intelectual, e o outro seria a seleo, sendo que esta no provocada pelas atividadescognitivas, mas pela afetividade, ou seja, pelo interesse. O afeto se desenvolve no

    mesmo sentido que a cognio. medida que os aspectos cognitivos se desenvolvem,

    h um desenvolvimento paralelo da afetividade As crianas assimilam as experincias

  • 5/25/2018 Texto Completo

    38/139

    no algo que nasce e se mantm no mbito individual, mas reflete ainterao entre esse individual e o coletivo. Nas bases dessaconcepo est a de um sujeito que se faz atravs dos processos de

    interao, mediao social e internalizao. Ou seja, a histriaindividual est sempre contextualizada num coletivo maior do qual oindivduo faz parte como sujeito atuante (SIQUEIRA, 1999, p. 33).

    Na faixa etria entre 4 e 6 anos ocorre o incio do simbolismo coletivo, quando

    os papis representados se diferenciam cada vez mais, tornando-se complementares.

    Nesse perodo, devido capacidade de representar, a criana utiliza o jogo simblico

    para se auto-expressar, transformando o real no desejado. Por meio do jogo simblico,

    ela representa os papis com os quais mais se identifica. Como afirma Louro apud

    Felipe (2001), as representaes no so apenas meras representaes que refletem as

    prticas dos sujeitos, mas elas so, de fato, descries que os constituem, que os

    produzem. Portanto, por meio da anlise dos jogos possvel conhecer o mundo das

    crianas, identificando como vivenciam as diferentes formas de ser menino e de ser

    menina.

    4.2. O jogo simblico

    Mesmo passando por vrias transformaes ao logo da Histria, o jogo

    fundamental para o desenvolvimento da criana, pois atravs dele ela expressa seu

    pensamento e exercita sua capacidade de observar e concentrar. Brincando em grupo, a

    criana aprende a respeitar a opinio dos outros e a enfrentar as frustraes, alm de

    amadurecer emocionalmente, tornando-se uma pessoa mais cooperativa e socivel

    (SOUZA, 2004).

    Para Brougre apud Porto (2004), analisar o brinquedo confrontar com a

  • 5/25/2018 Texto Completo

    39/139

    vez que jogar agir. Ora, quando se joga no se joga sozinho, sempreh um outro, mesmo que este outro seja imaginrio ou um outro queno passa de um si mesmo e que se tenta superar (WECHSLER, 1999,

    p. 74).

    Huizinga apud Wechsler (1999) define o jogo como uma atividade livre, ldica,

    sem interesses materiais, delimitada por espaos e tempos prprios. Wechsler completa

    dizendo que o jogo de papis representa realidades existentes na cultura e enfatiza que

    o contexto dramtico constitudo pelo como se, ou seja, pelo faz-de-conta ou

    realidade dramtica, em que o tempo e o espao fazem parte dessa dimenso subjetiva,

    embora vividos sobre um espao concreto e demarcado (WECHSLER, 1999, p.90).

    Consideramos que para alm das definies gerais sobre os jogos preciso

    discutir uma classificao dos jogos, pois eles respondem a necessidades diferentes dos

    sujeitos, portanto no podemos generaliz-los. Piaget estudou o jogo para entender

    como a criana constri o desenvolvimento moral e o considera como dependente da

    estrutura cognitiva, ou seja, o jogo est relacionado ao pensamento disponvel em cada

    estrutura de desenvolvimento. Nessa perspectiva, o estgio de desenvolvimento da

    criana influencia a complexidade do jogo e a criana usa-o como veculo para o

    desenvolvimento cognitivo (BARRETO, 1996).

    Piaget, ao discutir a classificao dos jogos, utilizou trs categorias: jogos de

    exerccio, simblico e de regras. O jogo de exerccio aparece na fase pr-verbal, o

    simblico o que vamos discutir com mais nfase, para embasarmos as discusses deste

    trabalho, enquanto o jogo de regras ocorre atravs das interaes das crianas, em que as

    regras so transmitidas socialmente de criana para criana. Piaget cita ainda uma quarta

    modalidade, que o jogo de construo, que faz a transio entre essas estruturas e as

    condutas adaptadas. De acordo com a teoria piagetiana, para entendermos os jogos

    desenvolvidos pelas crianas, precisamos compreender que a estrutura de jogo acompanha

  • 5/25/2018 Texto Completo

    40/139

    deixa de realizar os outros jogos, ou seja, mantm em seu repertrio os quatro tipos de

    jogos.

    Teoricamente, as crianas do estudo se encontram no perodo pr-operatrio e,

    dessa forma, a estrutura de jogo caracterstica a simblica. Piaget enfatiza que a

    imitao passa por vrias etapas at que, com o passar do tempo, a criana capaz de

    representar um objeto mesmo na ausncia deste. Quando isso acontece, significa que h

    uma evocao simblica de realidades ausentes. Ocorre uma ligao entre a imagem

    (significante) e o conceito (significado), capaz de originar o jogo simblico, tambm

    chamado de faz-de-conta (BERTOLDO; RUSCHEL, 2004).

    Na teoria piagetiana, o perodo da atividade representativa egocntrica (2-7

    anos) caracterizado pelos estgios do pensamento pr-conceitual (2-4 anos) e do

    pensamento intuitivo (4-7 anos). Os jogos simblicos, dos 4 aos 7 anos, tendem a

    aproximar mais do real, perdendo seu carter de deformao ldica, associando-se

    realidade na qual a criana est inserida. Nesse aspecto, podemos traar um paralelo

    entre a teoria de Piaget e Moreno, quando este diz que, medida que a criana se

    desenvolve, ofator efica cada vez mais subordinado aos esteretipos sociais e culturais.

    Nesse contexto, Piaget destaca que o jogo simblico, presente no estgio intuitivo (dos

    4 aos 7 anos), apresenta trs caractersticas que o diferencia do jogo simblicodesenvolvido no perodo anterior (dos 2 aos 4 anos de idade). A primeira caracterstica

    a ordem relativa das construes ldicas, opostas incoerncia das combinaes

    simblicas anteriores; a segunda est relacionada com a preocupao, por parte da

    criana, da imitao da realidade; a terceira caracterstica o incio do simbolismo

    coletivo, ou seja, os papis representados se diferenciam cada vez mais, tornando-secomplementares (PIAGET, 1946/1978).

    Nos jogos de faz-de-conta, a criana vai, aos poucos, reconstruindo em

    esquemas verbais ou simblicos o que havia construdo no plano da ao Nessa nova

  • 5/25/2018 Texto Completo

    41/139

    cometermos esse equvoco ele afirma que: Os pormenores das prprias atitudes so

    inspirados, evidentemente, pelo meio ambiente (...). Assim, podemos estar certos de que

    todos os eventos, alegres ou aborrecidos, que ocorrem na vida da criana repercutir-se-

    o nas suas bonecas (PIAGET, 1946/ 1978, p. 140).

    Nesse sentido, Benjamin apud Volpato (2002) afirma que os jogos e

    brincadeiras tm papel importante na formao do sujeito. Destaca que na educao

    infantil as crianas se apropriam dos elementos culturais dos adultos, internalizando,

    reproduzindo e reinventando gestos, modos de andar, de falar, de sentir, de ser

    (VOLPATO, 2002, p. 222).

    De acordo com Moreno (1975), antes de a criana adquirir a capacidade de

    representar, todos os componentes reais estavam fundidos no desempenho dos papis

    psicossomticos. Quando comea a ocorrer a diviso do universo real e fictcio, surgem

    os papis psicodramticos. Ao representarem os papis psicodramticos, as crianas

    interagem com outras pessoas, com objetos nos ambientes real e imaginrio.

    Atravs do jogo, a criana extravasa suas emoes, interpreta a realidade e

    expressa seu pensamento. Portanto, a observao e anlise dos jogos so fundamentais

    para conhecer melhor as crianas. Buscamos fazer a anlise dos jogos desenvolvidos

    pelas crianas, considerando que o sujeito constitudo por mltiplas identidades,portanto qualquer transgresso ao ideal de homem e de mulher foi considerada como

    possibilidades de ser menino e de ser menina e no, simplesmente, como algo anormal e

    preocupante.

  • 5/25/2018 Texto Completo

    42/139

    5. REVISO DE LITERATURA

    5.1. A instituio famlia e os papis sociais ao longo da histria

    Para discutir os papis representados pelas crianas, consideramos pertinente

    abordar algumas transformaes pelas quais as famlias vm passando, tendo em vista

    que as mudanas estruturais da sociedade interferem na dinmica de funcionamento da

    famlia, afetando as relaes entre os seus membros e o desempenho dos diversos

    papis sociais.Morgan apud Canevacci (1981) relata que a origem da famlia monogmica est

    ligada ao desenvolvimento da idia de propriedade na mente humana. Ele ressalta que,

    com esse tipo de configurao familiar, buscou-se legitimar a transmisso hereditria da

    propriedade privada, e, nesse contexto, a certeza da paternidade biolgica assumiu um

    significado que era desconhecido anteriormente. Seguindo uma escala evolutiva, asfamlias foram classificadas por Morgan de acordo com o nmero de proibies

    consangneas, passando da famlia punaluana14, sindismica15 at chegar famlia

    monogmica Dando nfase ao darwinismo e ao empirismo positivista Morgan foi

  • 5/25/2018 Texto Completo

    43/139

    Com a finalidade de garantir a herana aos filhos considerados legtimos,

    passou-se a valorizar a virgindade e a fidelidade da mulher, instituindo-se um rgido

    controle sobre a sexualidade feminina. Assim, essa nova configurao a famlia

    monogmica contribuiu para consolidar a diviso do trabalho e dos papis sociais

    (NARVAZ, 2005).

    Segundo Engels apud Canevacci (1981), a monogamia surgiu como uma forma

    de opresso do sexo feminino por parte do sexo masculino, onde o casamento passou a

    ser considerado um dever para com os deuses, o Estado e os parentes. Engels ressalta

    ainda que:

    A existncia da escravido junto monogamia, presena de jovensbelas cativas que pertencem, de corpo e alma, ao homem, queimprime desde a origem um carter especfico monogamia que monogamia s para a mulher, e no para o homem (ENGELS, 1981,p. 67).

    Vrias transformaes ocorreram, a partir do sculo XV, nas realidades das

    famlias e nos sentimentos relacionados com a famlia e com a infncia. Uma das

    transformaes que podemos destacar est relacionada com a educao, que deixou de

    ser realizada pela permanncia dosaprendizes na casa dos mestres e passou a ser fornecidacada vez mais pelas escolas.

    Na Idade Mdia, os meninos e as meninas eram considerados adultos em

    miniaturas. Eles permaneciam em casa at os 7 ou 9 anos de idade e, aps esse perodo,

    eram enviados para casa de outras pessoas para aprenderem um ofcio. Dessa forma, a

    criana aprendia pela prtica e, muitas vezes, o servio domstico desempenhado pelas

    crianas se confundia com aprendizagem. Aris (1978) enfatiza que nessa poca o

    limite entre uma profisso e a vida particular no era muito definido, destacando:

  • 5/25/2018 Texto Completo

    44/139

    sentimentos relacionados com a famlia e a infncia estreitaram os laos afetivos entre

    pais e filhos. Como aponta Aris (1978):

    A substituio da aprendizagem pela escola exprime tambm umaaproximao da famlia e das crianas, do sentimento da famlia e dosentimento da infncia, outrora separados. A famlia concentrou-se emtorno da criana (...) O clima sentimental era agora completamentediferente, mais prximo do nosso, como se a famlia moderna tivessenascido ao mesmo tempo que a escola, ou, ao menos, que o hbitogeral de educar as crianas na escola (ARIS, 1978, p. 232).

    Essas mudanas no processo de aprendizagem no ocorreram da mesma forma

    para a educao dos meninos e das meninas. As meninas, ao contrrio dos meninos,

    eram ensinadas pela prtica e pelos costumes em casa, enquanto os meninos eram

    enviados para as escolas. Entretanto, no eram todos os meninos, pois a escolarizao

    atendeu primeiro os filhos de classe mdia. Muraro (1993) enfatiza que essas

    transformaes que ocorreram com as famlias, no incio da industrializao,

    provocaram mais uma vez a excluso das mulheres do mundo pblico e explica:

    Se a famlia medieval era a unidade de produo e reproduo, a

    famlia capitalista passa a ser apenas a unidade de reproduo da forade trabalho. A produo econmica transferida para as fbricas,longe do lar. Como o mercado era incipiente e mal dava para oshomens, as mulheres so incentivadas a ficar em casa e a se dedicarinteiramente famlia e aos filhos. Surge ento a figura da dona decasa e da me dedicada e sofredora (MURARO, 1993, p. 123).

    Segundo Reis apud Narvaz (2005), com o advento do capitalismo o modelo

    patriarcal sofreu grandes transformaes, pois no estava atendendo aos interesses do

    novo modo de organizao social capitalista. Estabeleceu-se a dissociao dos espaos

    pblicos e privados, e a famlia deslocou-se para a esfera privada, demarcando locais

  • 5/25/2018 Texto Completo

    45/139

    eficientes, cujos operadores ganhavam os melhores salrios. Por conseguinte, a posio

    de um pai branco como provedor principal foi instalada, e os maridos se orgulhavam

    por manter as esposas em casa cuidando das crianas.

    Reforando essas afirmaes, Vaitsman (1994) enfatiza que a modernizao16

    ocasionou significativas mudanas na construo do gnero moderno. Segundo

    Shienbinger (2001), a cincia, nesse perodo, contribui para reforar as ideologias de

    gnero, afirmando que a mulher, devido sua natureza passiva, frgil e sensvel, deveria

    se responsabilizar pelo mundo privado, enquanto o homem, por ser forte e inteligente,

    deveria assumir as responsabilidades presentes no mundo pblico, protegendo e

    sustentando sua esposa e seus filhos. Badinter (1995) ressalta que Rousseau com a

    publicao do mile, em 1792, contribuiu para disseminar as ideologias de gnero,

    incentivando os pais a novos sentimentos e, particularmente, as mulheres ao amor

    materno. Rousseau apresentou uma imagem ideal da mulher atravs da personagemSophie, esposa do mile. Sophie foi representada como uma mulher fraca, tmida,

    submissa e, acima de tudo, como complemento para formar junto com mile

    inteligente, forte, imperioso e sob suas ordens o todo da humanidade.

    A famlia moderna, assim caracterizou-se pela dependncia da mulher ao marido

    e pela dependncia das crianas figura materna. A mulher era considerada responsvelpela educao dos filhos e pelo cuidado da casa, e o homem era visto como responsvel

    pela esfera pblica e como provedor financeiro da famlia. Nesse tipo de configurao

    familiar, o casamento deixou de ser um acordo com base em interesses polticos e

    econmicos entre as famlias e passou a ser um contrato afetivo e sexual dos sujeitos

    (NARVAZ, 2005). Em seu livro Flexveis e Plurais, Vaitsman (1994) afirma que:

    Esse modelo de famlia, tpico da burguesia nas sociedades modernase de sua forma tpico-ideal de famlia, aquela formada pelo homem

  • 5/25/2018 Texto Completo

    46/139

    A ideologia que estava presente nesse momento, deu por tarefademonstrar que embora todos os homens sejam iguais perante a lei,as mulheres eram, por sua natureza, diferentes. (ALMEIDA, 1987, p.

    57).

    A desigualdade deixou de ser vista como algo determinado por Deus e passou a

    ser vista como algo derivado da natureza e, portanto, incontornvel. A literatura teve

    papel muito importante na disseminao dessa nova ideologia, e o prprio Rousseau,

    como podemos ver, se debruou sobre a natureza feminina, relacionando a mulher

    maternidade, destacando a questo do instinto materno. Alm de Rousseau, outros

    pesquisadores contriburam para divulgar essa ideologia e, conseqentemente, para

    limitar as oportunidades das mulheres.

    Segundo Almeida (1987), no entanto, essa idia de famlia nuclear burguesa, ao

    chegar ao Brasil, encontrou uma realidade muito diferente da realidade citadina,

    industrial ou comercial em que foi gestada. Aqui, a economia era baseada no latifndio

    exportador e, alm disso, o trabalho era escravo. Podemos dizer que:

    A famlia rural transplantada para as cidades do sculo XIX haviasofrido modificaes superficiais. Mas a mentalidade estruturadasobre o patriarcalismo continuava a ser dominante (ALMEIDA, 1987,

    p. 57).

    Nesse perodo, o trabalho dos mdicos e higienistas foi um dos canais para

    insero das idias sobre a famlia nuclear burguesa, tambm conhecida como famlia

    burguesa moderna.

    O aburguesamento das famlias constituiu, inicialmente, mais umverniz superficial atingindo parte dos hbitos das elites urbanas, massempre coexistindo com o substrato da nossa formao engendradoantes do sculo XIX. E desse casamento que nasceu a nossafamlia conjugal atual (ALMEIDA, 1987, p. 64).

  • 5/25/2018 Texto Completo

    47/139

    e a participao cultural da mulher diferiam das de seu marido. As atividades

    desempenhadas pelas mulheres se limitavam ao mundo privado, onde elas dirigiam o

    trabalho dos escravos na cozinha, na fiao, na tecelagem e na costura. A famlia

    desempenhava uma funo principalmente econmica e poltica e, em razo disso, os

    aspectos emocionais no eram vistos como suficientes para o rompimento da famlia

    (MELLO; SOUZA, 1951). Como afirma Almeida (1987):

    A matriz da famlia patriarcal, com sua tica implcita dominante,espraiou-se por todas as outras formas concretas de organizaofamiliar, seja a famlia dos escravos e dos homens livres no passado,seja a famlia conjugal mais recente (ALMEIDA, 1987, p. 56).

    Quando falamos, entretanto, de matriz de referncia, no podemos confundir

    com os modelos de estrutura familiar, pois, como afirma Samara (1987), a famlia

    patriarcal foi apenas um dos modelos presentes no Brasil, no perodo colonial, apesar deter sido considerada como um modelo genrico de estrutura familiar por grande parte da

    literatura. Nesse contexto, Samara (1987) enfatiza que o prprio conceito de famlia

    precisa ser revisto, pois a utilizao de uma concepo nica e genrica no suficiente

    para discutir a complexidade da sociedade brasileira. No entanto, Vaitsman (1994)

    adverte que a famlia conjugal moderna foi assim denominada para diferenci-la dafamlia nuclear, pois as famlias nucleares no so necessariamente modernas. Para

    Vaitsman (1994), utilizar o termo nuclear para se referir famlia moderna no seria

    adequado, pois estaramos ignorando a questo da historicidade. Ressalta que:

    A ttulo de exemplo, sabe-se que no Brasil colonial, ainda longe dos

    ventos da modernizao, existiam, ao lado da famlia patriarcal,famlias nucleares (Correa, 1982), estas, no entanto, no apresentavamas relaes que considero como o elemento estruturante da famliamoderna: a dicotomia entre papis pblicos e privados atribudossegundo o gnero, em circunstncias histricas marcadas peladiferenciao institucional das esferas sociais caractersticas das

  • 5/25/2018 Texto Completo

    48/139

    Segundo Badinter (1995), esses discursos presentes no sculo XVIII divulgaram

    um ideal de mulher, ressaltando a importncia do amor materno para a famlia. Essas

    mudanas que ocorreram no sculo XVIII desenharam uma nova imagem do papel de

    me, tornando a maternidade uma nobre funo, e, para ressaltar essa importncia da

    maternidade, o papel de me foi associado a um aspecto mstico. Assim, ser me passou

    a ser um papel gratificante, e toda mulher considerada como boa me passou a ser vista

    como uma santa mulher. Nota-se que esses discursos tiveram influncia muito grande

    na construo e disseminao de uma nova imagem do papel materno, e pouco a poucoo desejo pela maternidade passou a povoar o imaginrio de muitas mulheres. Nesse

    cenrio, as meninas, desde muito cedo, passaram a ser preparadas, atravs de suas

    bonecas e outros brinquedos, para serem doces mes, que desempenham seu papel com

    pacincia e zelo.

    Segundo Badinter (1995), foram as mulheres da classe mdia burguesa asprimeiras a aderirem ao modelo rousseauniano, pois no trabalhavam ao lado do marido

    e tinham uma participao social limitada pela dependncia figura masculina. Dessa

    forma, as mulheres das famlias modernas, limitadas ao espao privado, representado

    pela casa, foram consagradas como a rainha do lar.

    Ainda que a propaganda intensiva de Rousseau e de seus sucessoresno tenha conseguido convencer todas as mulheres a serem mesextremosas, seus discursos tiveram sobre ela um forte feito (...) Asmulheres se sentiam cada vez mais responsveis pelos filhos. Assim,quando no podiam assumir seu dever consideravam-se culpadas(BADINTER, 1995, p. 239).

    Parsons e Bales apud Vaitsman (1994), ao analisarem a famlia moderna,

    interpretaram a dicotomia pblico/privado a partir dos conceitos de papis instrumentais

    e expressivos. Os papis instrumentais foram associados ao mundo da produo, do

  • 5/25/2018 Texto Completo

    49/139

    Esse modelo de famlia, tpico da burguesia nas sociedades ocidentais

    contemporneas, passou a ser visto como o modelo normal no imaginrio social, e as

    demais configuraes foram, na maioria das vezes, desqualificadas ou at mesmo no

    reconhecidas como famlia (NARVAZ, 2005). Esse modelo constituiu-se em um

    modelo hierrquico, em que as meninas eram educadas para serem esposas, mes e

    donas de casa, em detrimento de outras habilidades. Esse padro de famlia se tornou

    dominante entre as classes mdias dos grandes centros urbanos at meados de 1960

    (VAITSMAN, 1994). Tendo como base as ideologias das esferas separadas, aspessoas consideravam o espao privado da famlia como o lugar natural da mulher e o

    emprego remunerado, como o espao masculino por excelncia. Segundo Oliveira

    (2005), a dicotomia entre os papis sexuais familiares era vista como

    complementaridade, e buscava-se, por meio da especializao dos papis masculino e

    feminino, a manuteno da famlia e o fornecimento das bases para a socializao dacriana.

    Somente em 1962 o Cdigo Civil Brasileiro foi alterado, permitindo que as

    mulheres casadas trabalhassem fora de casa, sem a autorizao de seus maridos. At

    essa data, de acordo com o Cdigo Civil Brasileiro, a mulher casada s poderia

    trabalhar fora de casa com a autorizao do esposo (NARVAZ, 2005).Bruschini e Lombardi (2002) ressaltam que vrios fatores devem ser analisados

    quando se quer entender esse processo de insero da mulher no mercado de trabalho.

    Elas destacam que fundamental verificar as mudanas nos padres culturais e nos

    valores relativos ao papel social da mulher, assim como a presena dos movimentos

    feministas, desde os anos de 1970. Enfatizam que, na dcada de 1990, alm do aumentoda participao no mercado de trabalho, ocorreram significativas mudanas no perfil das

    trabalhadoras brasileiras, que at o final dos anos de 1970, em sua maioria, eram jovens,

    solteiras e sem filhos e a partir dos anos de 1980 passaram a ser mais velhas casadas e

  • 5/25/2018 Texto Completo

    50/139

    Os papis domsticos no desapareceram, passando, ao invs disso, acoexistir, colidir e interpenetrar-se com outros. Isso significa que nos as prticas, mas tambm a identidade fragmenta-se (VAITSMAN,

    1994, p. 133).

    Segundo Bruschini e Lombardi (2002), no entanto, para se entender o

    crescimento da participao das mulheres casadas no mercado de trabalho deve-se levar

    em considerao a presso econmica derivada da diversificao do consumo e do

    aumento dos gastos com sade e educao, devido precarizao dos sistemas pblicos.

    Alm dessa presso econmica, deve-se entender que esse aumento fruto de um

    intenso processo de mudana cultural ocorrida no Brasil a partir dos anos de 1970.

    Essas transformaes sociais, para Amorin et al. (2000), tm gerado novos

    papis e relacionamentos familiares, levando as famlias a uma crescente busca pelas

    instituies de educao infantil para auxiliarem o cuidado e a educao dos filhos

    pequenos. Ao procurarem essas instituies, muitas famlias comeam a se sentir

    culpadas, angustiadas, porque, em nossa sociedade, prevalece a idia de que o cuidado

    ideal para a criana aquele provido pela me, no ambiente domstico.

    Vaitsman (1994) relata que, com o aprofundamento da industrializao e da

    urbanizao, as mulheres passaram a assumir posies no espao pblico e, em razo

    disso, a dicotomia entre pblico e privado foi abalada. Assim, a famlia moderna, que

    era padro dominante entre as classes mdias brasileiras na dcada de 1960, foi

    substituda por relaes que se instituram sob novas formas. Nessa nova realidade, a

    famlia moderna deixou de ser o padro dominante e passou a conviver legitimamente

    com uma pluralidade de outros padres de casamento e de famlia.

    Com a ruptura da dicotomia entre pblico e privado atribuda segundo o gnero,

    as fronteiras entre os papis masculinos e femininos foram redefinidas. Nesse cenrio de

    grandes transformaes, a identidade deixou de ser entendida como estvel, passando a

  • 5/25/2018 Texto Completo

    51/139

    associadas com as transformaes estruturais das sociedades. Nesse sentido, ele destaca

    que a ps-modernidade no levou ao desaparecimento dos antigos ideais, mas, como

    enfatiza Vaitsman (1994), passamos a conviver com a pluralidade, o que Figueira(1987) denominou como o desmapeamento, ou seja, a coexistncia de mapas, ideais e

    normas contraditrias nos sujeitos. Nessa mesma perspectiva, Biasoli-Alves (2006)

    afirma que, por uma srie de razes, no podemos responder afirmativamente questo:

    Aconteceram s rupturas? Obviamente no, h muitas continuidades aserem consideradas. Os valores que os mais velhos cultivaram ebuscaram imprimir nos seus filhos e netos esto ainda presentes, hoje,mesmo que sob outras roupagens (BIASOLI-ALVES, 2000, p. 11).

    Nesse contexto de grandes transformaes, as pessoas passaram a buscar

    solues para o conflito gerado pela modernizao acelerada do Pas, almejando

    encontrar respostas para a questo Quem sou eu?. Segundo Figueira (1987), as duas

    respostas tpicas encontradas pela classe mdia brasileira ao desmapeamento foram a

    procura por mapas atravs da psicoterapia e da psicanlise e a modernizao reativa.

    A modernizao reativa ou falsa modernizao, segundo Figueira (1987),

    engendrada pela prpria lgica de funcionamento do sujeito. Para explicar esse processo

    de falsa modernizao, ele distingue dois tipos de regra: a de primeiro grau e a de

    segundo grau. A regra de primeiro grau est associada com a autoridade exterior ao

    sujeito, ou seja, esse tipo de regra determina o comportamento do sujeito:

    As regras de primeiro grau, que do nfase aos cdigos, so

    fundamentais para o ideal da famlia hierrquica. Regras deste tipoengendram um imaginrio moral dicotmico e maniquesta, comnoes claras de certo e errado associadas a definies razoavelmententidas de desvio. (...) (por exemplo, homens com comportamentosefeminados so desviantes porque, ao subverterem os marcadoresi i d id tid d li b t i

    d j it di it d i A i l i f j

  • 5/25/2018 Texto Completo

    52/139

    no do ao sujeito o direito de opinar. Assim, o que ele vai ser ou fazer j est

    determinado de fora(FIGUEIRA, 1987, p. 27). O que diferencia esse tipo de regra da

    regra de primeiro grau que o contedo deixa de ser arcaico e passa a ser moderno.Assim, as frases imperativas como Mulher tem que ser virgem antes do casamento

    foram substitudas por frases como Virgindade j era. Essa substituio se limita ao

    contedo das regras, impedindo que o sujeito faa suas escolhas.

    Nesta perspectiva, a modernizao verdadeira seria a queconseguisse transformar, dentro do sujeito, regras de primeiro grau emregras de segundo grau, num processo que, por estar fundamentado naopo, pode ser chamado de individuao (FIGUEIRA, 1987, p. 27).

    Singly (2000) destaca que a famlia moderna se caracterizou, sobretudo, por uma

    lgica baseada nos interesses do grupo familiar, especificamente do chefe da famlia.

    Dessa forma, prevalecia a regra de primeiro grau. De acordo com a ideologia presentena famlia moderna, o homem deveria desempenhar o papel de provedor financeiro da

    famlia e a mulher, dedicar-se aos filhos, casa e ao marido. Assim, os interesses

    individuais eram anulados pelos interesses do grupo e, ento, os interesses da famlia

    englobavam os interesses do indivduo.

    A famlia, entretanto, denominada ps-moderna caracteriza-se pelo processo deindividualizao, ou seja, o elemento central no mais o grupo reunido e, sim, os

    membros que a compem. A famlia transforma-se em um espao privado a servio dos

    indivduos (SINGLY, 2000, p. 15). Devido ao processo de individuao, o indivduo

    deixou de se submeter aos interesses da famlia, e o casamento passou de uma aliana

    hierrquica para uma relao mais igualitria. Essas transformaes tornaram asfamlias mais instveis, pois passaram a prevalecer os interesses individuais, os quais,

    muitas vezes, so contraditrios e causadores de grandes conflitos (SINGLY, 2000).

    N tid V it d t

    forma lenta e pont al em alg ns aspectos Arajo e Scalon (2005) concl em q e as

  • 5/25/2018 Texto Completo

    53/139

    forma lenta e pontual em alguns aspectos. Arajo e Scalon (2005) concluem que as

    mudanas geradas pelo processo de modernizao vm apontando para maior igualdade

    de gnero.

    5.1.1. A contribuio dos estudos de gnero para a compreenso dos papis sociais

    Consideramos pertinente expor a forma como o conceito de gnero aquientendido. Sorj (1992, p. 15) destaca que gnero um produto social, aprendido,

    representado, institucionalizado e transmitido ao longo das geraes. Nesse mesmo

    sentido, Scott (1995) enfatiza que o termo gnero:

    utilizado para designar as relaes sociais entre os sexos. Seu usorejeita explicitamente explicaes biolgicas, como aquelas queencontram um denominador comum, para diversas formas desubordinao feminina, nos fatos de que as mulheres tm a capacidadepara dar a luz e de que os homens tm uma fora muscular superior.Em vez disso, o termo gnero torna-se uma forma de indicarconstrues culturais- a criao inteiramente social de idias sobreos papis adequados aos homens e as mulheres. Trata-se de umaforma de se referir s origens exclusivamente sociais das identidades

    subjetivas de homens e mulheres (SCOTT, 1995, p. 75).

    Louro (2003b) ressalta que o conceito de gnero est diretamente relacionado

    com a histria do movimento feminista contemporneo, realando que, no final da

    dcada de 1960, o feminismo passou a se preocupar tambm com as construes

    tericas. Nesse perodo, conhecido como segunda onda, o conceito de gnero foi

    problematizado, e as militantes feministas comearam a trazer para as universidades as

    questes que as mobilizavam. Scott (1995), ao expor sua interpretao sobre o termo

    gnero, afirma que:

    categoria gnero defendida pelas teorias modernas apontava para uma caracterstica

  • 5/25/2018 Texto Completo

    54/139

    categoria gnero, defendida pelas teorias modernas, apontava para uma caracterstica

    comum a todas as mulheres, embasadas sempre na posio binria homem-mulher. Essa

    viso moderna deixava de lado a questo de que a sociedade constituda por mulherese que coexistem no universo da subjetividade mltiplas identidades. Sorj (1992)

    enfatiza que:

    Ao desacreditar as metanarrativas, cuja funo foi legitimar a ilusode uma histria humana universal(...) o pensamento ps-moderno(...) privilegia a indeterminao, a fragmentao, a diferena e aheterogeneidade (SORJ, 1992, p. 19).

    Reforando essas afirmaes, Louro (2003a) prope a disseminao de um

    pensamento plural, que rejeite os argumentos biolgicos e culturais da desigualdade.

    Enfatiza a necessidade de rompermos com essa viso baseada na dicotomi