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INTERESSE PÚBLICO - IP BELO HORIZONTE, ANO 15, N. 77, JAN./FEV. 2013 Para uma teoria do ato administrativo unilateral Celso Antônio Bandeira de Mello Palavras-chave: Ato administrativo. Direito administrativo. 1 Entre as classificações dos atos administrativos, uma, de supina importância (de par com a divisão entre atos unilaterais e atos convencionais), embora muito pouco mencionada, é a que os divide em atos ampliativos e atos restritivos da situação jurídica dos administrados. Comece-se por esclarecer que atos ampliativos são os atos favoráveis ao administrado, ou seja, os que ampliam sua esfera de desfrute das situações jurídicas e que restritivos são os desfavoráveis, ou seja, os que restringem, comprimem ou suprimem uma dada situação jurídica desfrutada por alguém. Embora jamais tenhamos encontrado esta advertência, é importante notar que a teoria do ato administrativo unilateral foi largamente construída — e de modo altamente impróprio, porque parcial — sobre esta última categoria, isto é, sobre os atos que se apresentam como impositivos para os administrados: atos restritivos de sua esfera jurídica (quais, exempli gratia, uma declaração de utilidade pública para fins de desapropriação, os atos fiscalizadores e sancionadores em geral, as revogações, anulações ou que, de todo modo, constrangem o administrado a fazer, não fazer ou suportar algo). Tanto é exato que este viés errôneo presidiu o exame do ato administrativo que, na França, é comum definir-se o ato administrativo referindo-o como uma “decisão

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Textos de Direito Administrativo

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INTERESSE PBLICO - IPBELO HORIZONTE, ANO 15, N. 77, JAN./FEV. 2013

Para uma teoria do ato administrativo unilateral

Celso Antnio Bandeira de Mello

Palavras-chave: Ato administrativo. Direito administrativo.

1Entre as classificaes dos atos administrativos, uma, de supina importncia (de par com a diviso entre atos unilaterais e atos convencionais), embora muito pouco mencionada, a que os divide em atosampliativose atosrestritivosda situao jurdica dos administrados. Comece-se por esclarecer que atos ampliativos so os atos favorveis ao administrado, ou seja, os que ampliam sua esfera de desfrute das situaes jurdicas e que restritivos so os desfavorveis, ou seja, os que restringem, comprimem ou suprimem uma dada situao jurdica desfrutada por algum.

Embora jamais tenhamos encontrado esta advertncia, importante notar que a teoria do ato administrativo unilateral foi largamente construda e de modo altamente imprprio, porque parcial sobre esta ltima categoria, isto , sobre os atos que se apresentam como impositivos para os administrados: atos restritivos de sua esfera jurdica (quais,exempli gratia, uma declarao de utilidade pblica para fins de desapropriao, os atos fiscalizadores e sancionadores em geral, as revogaes, anulaes ou que, de todo modo, constrangem o administrado a fazer, no fazer ou suportar algo).

Tanto exato que este vis errneo presidiu o exame do ato administrativo que, na Frana, comum definir-se o ato administrativo referindo-o como uma deciso executria. Ora, isto, evidentemente, no exato, pois, para s-lo, seria preciso excluir do campo dos atos administrativos os atos ampliativos (como as permisses, concesses, admisses, licenas, autorizaes etc.), o que, evidentemente, ningum faz, conquanto estes ltimos no exibam a totalidade das caractersticas presentes nos atos tomados como paradigmas para a construo da teoria do ato administrativo. Deveras, a admisso, a autorizao, a concesso,exempli gratia, so atos administrativos, ningum jamais o negou, e no se constituem em decises executrias, porque, com toda evidncia, no se prope a questo de executar estes atos contra a vontade do admitido, do autorizado do concessionrio, como no se proporia em relao a qualquer beneficirio.

Ren Chapus anota que, no aresto Huglo (1982), o Conselho de Estado francs manifestou-se no sentido de que o carter executrio das decises administrativas a regra fundamental do direito pblico.1Embora, ao nosso ver, sem descortinar que o discrmen importante entre atos unilaterais ampliativos e restritivos, o fato que obras mais modernas procuram discernir a deciso executria de outros atos administrativos. Assim, noDroit Administratifde Georges Vedel e Pierre Devolv, os autores averbam que as decises executrias so uma variedade de atos administrativos unilaterais, mas que a expresso cuja fortuna notoriamente se deve a Hauriou vinha sendo usualmente empregada como sinnimo de ato administrativo unilateral, o que eles prprios, como o declaram, haviam feito at essa 12 edio.2A presena da aludida perspectiva equivocada facilmente se nota tambm na teoria do processo administrativo (chamado igualmente deprocedimento administrativo), a qual est centrada, de modo claro, nos atos restritivos, dada sua evidente preocupao em colocar limites que resguardem o administrado de eventuais arbitrariedades administrativas. Por isso, nem todos os princpios indicados como pertinentes ao processo administrativo so aplicveis generalidade deles. Alguns destes princpios no podem ser referidos aos atos ampliativos, como adiante indicamos.

2 bvio que no pode servir como uma teoria do ato administrativo aquela que erigida to somente sobre uma categoria deles e que, por conseguinte, imputar, ainda que apenas de modo implcito, a todo e qualquer ato administrativo caractersticas s aplicveis a uma espcie deles. Outrossim, ao deixar de lado a necessria vestibular distino entre as duas importantes espcies mencionadas, escamoteia a necessidade de exame particularizado de cada qual e com isto redunda na falta de percepo de aspectos que seriam decisivos para a compreenso de certos institutos. que alguns deles dizem respeito to s a uma dessas categorias, como ocorre com o tema da manifestao da vontade do particular ou com o tema da chamada coisa julgada administrativa ou da executoriedade, questes estas que no se aplicam aos atos restritivos. Outras vezes, o prprio instituto em causa se apresenta distinto conforme estejam em questo atos ampliativos ou restritivos, como sucede no caso da invalidao.

No nosso propsito aqui, evidentemente, pretender reelaborar toda a teoria do ato administrativo, o que demandaria, como bvio, uma amplitude absolutamente incompatvel com este despretensioso artigo, mas to somente atrair a ateno para aquilo que deve obrigatoriamente presidir tal elaborao.

Bem observando, nota-se que a teoria daexistnciae davalidadedos atos administrativos , realmente, igual tanto para os atos restritivos como para os ampliativos, conquanto os efeitos da invalidao, como se anotou, no sejam os mesmos em uma e outra categoria; mais alm salientamos que nos atos restritivos os efeitos da invalidao soex tunce nos atos ampliativos geralmente soex nunc. Assim tambm ateoria da eficcia, oudos efeitos, distinta entre eles, no se propondo em relao aos ampliativos nada do que se relaciona com a imperatividade, exigibilidade ou executoriedade.

Dessarte, o discrmen entre as duas espcies de atos importantssimo, porquanto preside uma fundamental bipartio de regimes.

3Comece-se por anotar que, ao serem relacionados atributos ou caractersticas dos atos administrativos unilaterais, costuma-se arrolar como prprias deles apresuno de legitimidade, aimperatividade, aexigibilidadee aautoexecutoriedade. As duas primeiras certamente tanto se aplicam a atos restritivos quanto ampliativos, pois no h duvidar que em ambas as hipteses os atos provenientes da Administrao devem se presumir conformes ao Direito, at prova em contrrio ou at impugnao em juzo, assim como de se reconhecer igualmente que possuem a fora jurdica inerente a quaisquer deles derivados do Poder Pblico. No se trata, ressalve-se, de afirmar que podem ser impostos forosamente a terceiros, mas de assumir que possuem a fora jurdica de constituir por si mesmos uma situao jurdica, isto , de deflagrar efeitos por si prprios. Se estas duas caractersticas so comuns a todos os atos administrativos unilaterais, as duas outras mencionadas, quais sejam, a exigibilidade e a executoriedade no comparecem no caso dos atos ampliativos, valendo to s para os restritivos.

Com efeito, a exigibilidade, a nosso ver, o atributo por fora do qual a Administrao pode constranger o administrado a cumprir o disposto no ato, valendo-se para tanto de meios indiretos de compulso, tais as multas, como as impostas ao administrado que no atendeu a intimao para consertar a calada fronteira sua casa, a recusa em expedir o alvar de construo para a reforma pretendida pelo particular se ele no quitar a obrigao de demolir a obra irregular ali efetuada etc. No faria sentido pretender constranger o particular a desfrutar de um benefcio que lhe estivesse sendo outorgado por meio de algum ato ampliativo.

A executoriedade a prerrogativa de que dispe a Administrao de promover por si mesmo a execuo da pretenso administrativa, isto , sem necessidade de obt-la por meio do Poder Judicirio, quando legalmente previsto ou perante situaes urgentes ou nas quais inexista outra via de direito igualmente eficaz para salvaguardar o interesse pblico em risco. claro que, ao emitir um ato benfico ao administrado, que lhe amplia a situao jurdica, a Administrao no ter porque impor ao beneficirio sua concreo material. Da que tal atributo s se prope em relao aos atos restritivos.

4Consoante se observou, a mesma viso imperfeita reproduz-se ao ser tratado o tema do processo ou procedimento administrativo (expresses muitas vezes utilizadas como equivalentes). De fato, fcil perceber, na enumerao dos princpios a ele reportados, que nem todos so pertinentes generalidade dos processos. Assim, o princpio daoficialidadee o dagratuidadeno se aplicam obrigatoriamente nos procedimentosampliativos de direitosuscitados pelos interessados.

5No que atina ao tema dos atos cuja prtica ou cuja eficcia depende de manifestao do particular evidente que diz respeito to s aos atos ampliativos e que disto no se haveria de cogitar em relao queles em que, inversamente, o Poder Pblico est preordenado a comprimir ou suprimir direitos ou interesses do administrado, pois, para faz-lo, como bvio, no ir pedir a aquiescncia daquele a quem queira desfavorecer.

Neste passo est-se a referir s mais variadas hipteses em que o ato administrativo pressupe a concordncia prvia ou posterior do administrado. o que ocorre para a emisso de autorizaes, licenas, permisses, concesses e quejandos, as quais s so expedidas caso haja interessados que previamente os requeiram ou que se habilitem a tanto. O mesmo sucede em relao a alguns outros atos que a Administrao pode praticar, mas cujos efeitos finais dependem de manifestao concordante, como uma nomeao para cargo de livre provimento, pois no acarreta investidura no cargo sem que o nomeado o aceite, tomando posse dele, ou a outorga de qualquer situao honorfica dispensada a algum, como uma comenda,exempli gratia. Sobre a natureza desses atos e as diversas teorias que foram sugeridas a respeito de alguns deles, pelo menos, questionando se so atos bilaterais ou se so dois atos unilaterais que se conjugam para obteno do resultado final, se so contratos impregnados de um elemento de comando e outras variaes, altamente elucidativa a exposio de Stassinopoulos.3A nosso ver, deixando de lado o caso da nomeao, que exigiria explicaes mais minuciosas para seu completo esclarecimento, entendemos que so dois atos unilaterais que se completam e que se reclamam.

6Tambm as questes suscitadas a respeito da chamada coisa julgada administrativa tm lugar unicamente em relao aos atos ampliativos.Toda vez que a Administrao decidir um dado assunto em ltima instncia, de modo contencioso, ocorrer a chamada coisa julgada administrativa. Algumas vezes, com esta nomenclatura, alis muito criticada, pretende-se referir a situao sucessiva a algum ato administrativo em decorrncia do qual a Administrao fica impedida no s de se retratar dele na esfera administrativa, mas tambm de question-lo judicialmente. Vale dizer: a chamada coisa julgada administrativa implica,para ela, adefinitividadedos efeitos de uma deciso que haja tomado.

O tema, repita-se, diz respeito exclusivamente aos atos ampliativos da esfera jurdica dos administrados. O fenmeno aludido s ocorre em relao a este gnero de atos, pois se trata de instituto que cumpre uma funo degarantia dos administradose que concerne ao tema da segurana jurdica estratificada j na prpria rbita da Administrao. Logo, no tem porque se propor quando em causa atos restritivos.

Ressalte-se que a chamada coisa julgada administrativa abrange a irrevogabilidade do ato, mas sua significao mais extensa. Com efeito, nela se compreende, alm da irrevogabilidade, uma irretratabilidade que impede o Poder Pblico de questionar do ato tambm na esfera judicial, ao contrrio da mera irrevogabilidade, que no probe a Administrao de impugnar em juzo um ato que considere ilegal e no mais possa rever na prpria esfera.

Inversamente, seu alcance menos extenso do que o da coisa julgada propriamente dita. Com efeito, sua definitividade est restrita a ela prpria, Administrao, mas terceiros no esto impedidos de buscar judicialmente a correo do ato.

Assim, o atingido por uma deciso produtora de coisa julgada administrativa em favor de outrem e contrria a suas pretenses poder recorrer ao Judicirio para revis-la. Alm disso, seu questionamento na esfera judicial admissvel sempre que caiba ao popular, ao civil pblica ou que, porfasou pornefas, haja legitimidade ativa do Ministrio Pblico.

A coisa julgada administrativa, consoante entendemos, prope-se unicamente em situaes nas quais a Administrao haja decidido contenciosamente determinada questo isto , em que tenhaformalmente assumido a posio de aplicar o Direito a um tema litigioso; portanto, tambm, com as implicaes de um contraditrio. Alis, nisto exibe-se mais uma diferena em relao simples irrevogabilidade, que, como visto, estende-se a inmeras outras hipteses.

7Outra utilidade da distino entre atos ampliativos e atos restritivos reside em que a partir dela que se consegue resolver adequadamente a questo de saber-se se os efeitos da invalidao sempre, ou nem sempre, tm efeitosex tunce com base nela que se poder determinar se seus efeitos sero desta espcie ou se e quando seroex nunc.

Reformulando o entendimento que em poca pretrita adotvamos na matria, pensamos que o assunto s se resolve adequadamente tomando-se em conta esta fundamentalssima distino e que cada vez nos parece mais importante para uma teoria do ato administrativo entre atosrestritivose atosampliativosda esfera jurdica dos administrados.

Na conformidade dessa perspectiva, parece-nos que efetivamente nos atos unilateraisrestritivosda esfera jurdica dos administrados, se eram invlidos, todas as razes concorrem para que sua fulminao produza efeitosex tunc, exonerando por inteiro quem fora indevidamente agravado pelo Poder Pblico das consequncias onerosas. Pelo contrrio, nos atos unilateraisampliativosda esfera jurdica do administrado, se este no concorreu para o vcio do ato, estando de boa-f, sua fulminao s deve produzir efeitosex nunc, ou seja, depois de pronunciada.

Com efeito, se os atos em questo foram obra do prprio Poder Pblico, se estavam, pois, investidos da presuno de veracidade e legitimidade que acompanha os atos administrativos, natural que o administrado de boa-f (at por no poder se substituir Administrao na qualidade de guardio da lisura jurdica dos atos por aquela praticados) tenha agido na conformidade deles, desfrutando do que resultava de tais atos. No h duvidar que, por terem sido invalidamente praticados, a Administrao deva fulmin-los, impedindo que continuem a desencadear efeitos; mas tambm certo que no h razo prestante para desconstituir o que se produziu sob o beneplcito do prprio Poder Pblico e que o administrado tinha o direito de supor que o habilitava regularmente.

Assim,v.g., se algum nomeado em consequncia de concurso pblico invlido, e por isso vem a ser anulada a nomeao dele decorrente, o nomeado no dever restituir o que percebeu pelo tempo que trabalhou. Nem se diga que assim h de ser to s por fora da vedao do enriquecimento sem causa, que impediria ao Poder Pblico ser beneficirio de um trabalho gratuito. Deveras, embora no comparea tal fundamento, a soluo haver de ser a mesma se algum permissionrio de uso de um bem pblico e mais tarde vem-se a descobrir que a permisso foi invalidamente outorgada. A invalidao dever operar da para o futuro. Descaberia eliminar retroativamente a permisso; isto , o permissionrio, salvo se estava de m-f, no ter que devolver tudo o que lucrou durante o tempo em que desfrutou da permisso de uso do bem.

As solues indicadas ressalte-se no interferem em outro tema, qual o da cabvel responsabilizao do agente pblico que haja operado de m-f em um ou outro caso, independentemente da boa ou m-f do administrado.

8Os tpicos focalizados so suficientes para exibir no apenas a importncia da distino entre atos ampliativos e restritivos, mas a necessidade de revisar a teoria do ato administrativo seja para corrigir-lhe a mencionada impropriedade, seja para que se possa, atravs disso, explorar adequadamente o tema, iluminando aspectos que ficam na sombra ou simplesmente insuspeitados quando se faz abstrao do discrmen aludido ao construir teoricamente a matria.

1 Droit Administratif Gnral. 6ed. Paris: Montchrestien, 1992. t. I, p. 375.

2 VEDEL, Georges; DEVOLV, Pierre.Droit Administratif. 12eed. Paris: Presses Universitaires de France, 1992.

3 STASSINOPOULOS, Michel.Trait des Actes Administratifs. Atenas: Librairie du Recueil Sirey, 1954. p. 57-62.

Como citar este contedo na verso digital:Conforme a NBR 6023:2002 da Associao Brasileira de Normas Tcnicas (ABNT), este texto cientfico publicado em peridico eletrnico deve ser citado da seguinte forma:

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antnio. Para uma teoria do ato administrativo unilateral.Interesse Pblico IP, Belo Horizonte, ano 15, n. 77, jan./fev. 2013. Disponvel em: . Acesso em: 21 ago. 2014.

Como citar este contedo na verso impressa:Conforme a NBR 6023:2002 da Associao Brasileira de Normas Tcnicas (ABNT), este texto cientfico publicado em peridico impresso deve ser citado da seguinte forma:

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antnio. Para uma teoria do ato administrativo unilateral.Interesse Pblico IP, Belo Horizonte, ano 15, n. 77, p. 15-21, jan./fev. 2013.

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INTERESSE PBLICO - IPBELO HORIZONTE, ANO 8, N. 38, JUL./AGO. 2006

O Direito Adquirido e o Direito Administrativo

Celso Antnio Bandeira de Mello

1. Todo o problema da aplicao da lei no tempo gira em torno da necessidade de harmonizar duas idias que parecem antagonizar-se. De um lado, ocorre a impostergvel exigncia de estabilidade nas relaes jurdicas. Este reclamo, advindo do valorsegurana, que conatural ao Direito, postula a imutabilidade das situaes constitudas. Da sua proteo contra alteraes que poderiam advir de leis supervenientes, se a estas fosse reconhecido o condo de interferir com os vnculos regularmente constitudos no passado.

De outro lado, milita a convico de que as regras novas por fora se ho de presumir mais satisfatrias para reger a vida social e por isso mesmo no podem ser detidas pelos eventos regulados no passado. Ocorre, ademais, que a alterao legislativa condio do progresso social, donde a convenincia de reconhecer-lhe operatividade ampla desde sua entrada em vigor.

2.Na verdade, a antinomia entre as duas ordens de valores prezveis muito mais aparente que real. As normas positivas e as solues doutrinrias, a final acolhidas nas ordenaes jurdicas, consistem justamente em demonstrao de que perfeitamente possvel chegar-se a uma soluo equilibrada, capaz de confortar as duas ordens de interesses, sem comprometimento dos valores nucleares que os animam.

3.Antes de rememorar a gnese do direito adquirido, til, para dissipar dificuldades geradas simplesmente por problemas taxinmicos, bordar consideraes sobre o possvel campo de conflitos no direito intertemporal.

O tempo, esquematicamente, pode ser considerado em sua bvia diviso compreensiva dopassado, presente e futuro. Donde, quaisquer relaes ou situaes jurdicas forosamente se alocam ou se alocaro em um dentre estes trs segmentos.

4. H certos acontecimentos que sucederam no pretritoe nele se encerraram. Isto : algu mas relaes jurdicas nascem, medram e fenecem dentro do imprio de uma nica lei, sob cuja gide se extinguem integralmente seus efeitos. O advento de lei posterior obviamente no pode afet-las, salvo retroagindo, isto , volvendo para o passado. E a retroao, segundo exps Paul Roubier, "(...) a aplicao da lei a uma data anterior sua promulgao, ou, como se disse, uma fico da preexistncia da lei"1. Vale dizer, a retroatividade ocorre quando a lei nova, ainda conforme expresses do mesmo jurista, "remonta em seus efeitos aqum do dia de sua promulgao, invade o domnio natural da lei antiga"2.

5. A retroao, evidentemente, no situao normal, mas, pelo contrrio, invulgar, anmala, alheia ndole corrente das regras jurdicas. Com efeito, as leis existem para disciplinar o que est perante elas e no para regredir no tempo e desacomodar os acontecimentos socialmente vencidos e soterrados na poeira do tempo. Para obstar a retroao das leis no h que invocar a teoria do direito adquirido, cuja finalidade e ambio so outros, como ao diante se ver.

O obstculo perturbao destas situaes decorre pura e simplesmente do princpio da irretroatividade das leis porque, para alcan-las, a lei nova teria que retroceder, desvelar a cortina do tempo transacto, em suma, retroagir.

Portanto, a supervenincia de regras distintas das anteriores em nada interfere com osfacta praeterita, ou seja, com as relaes superadas.

6. Cumpre esclarecer, todavia, que uma situao jurdica pode considerar-se pretrita em mais de um sentido. Vale dizer: pode-se, restritivamente, reservar tal qualificao a fatos passados em quetanto a situao jurdica quanto o gozo delaj estejam, ambos, cumpridos e, portanto, encerrados no pretrito.

Seria o caso,e.g., do transcurso do perodo de tempo de trabalho necessrio para que um funcionrio goze frias e a efetivao deste gozo. Se ambos sucedem no tempo pregresso, tem-se um fato, uma situao, absolutamente consumados. Normas sucessivas, obviedade, no interfeririam com eles, inobstante viessem a regular diferentemente a matria, exigindo,verbi gratia, lapso temporal de trabalho maior para obter as frias e perodo de gozo menor.Idemquanto aquisio de vencimentos, gratificaes, adicionais, etc.,urna vez efetivada a percepo deles.

A regra superveniente, que alterasse as condies para se fazer jus a eles ou oquantumdo pagamento correspectivo, seria inoperante em relao a estes acontecimentos j clausurados na histria.

7.Pode-se - e deve-se -, outrossim, considerar pretrita uma situao - j agora em termos mais amplos e tecnicamente mais exatos - quando os requisitos de direito para seu gozo j se perfizeram no passado,embora o desfrute, propriamente dito, ainda no haja se efetuado.

Vale dizer: cogita-se aqui da completa integralizao de uma situao jurdica reportada a seu prprio tempo (no ao futuro), cujafruio, todavia, ainda est por se realizar, quando sobrevm novo regramento.

Seria o caso de perfazer-se o tempo necessrio para o servidor pblico passar aposentadoria, gozar frias, sem que, entretanto, haja procedido ao desfrute destes direitos.Idem, com relao ao pagamento de vencimentos, gratificaes, adicionais que, por qualquer razo (que no vem ao ponto), ainda no tenha recebido.

Percebe-se, ainda, nesta segunda srie de exemplos, que a situao jurdicacompletou-se totalmente em tempo pregresso, faltando apenas a efetiva implementao da fruio de algo a que j sehavia feito juse que, desde ento, podia-se fazer valer. Com efeito: os fatores constitutivos destas situaes jurdicas no so a efetiva aposentao, o gozo das frias, nem a recepo das importncias a haver. Pelo contrrio, todos ele s seriam juridicamente exigveis porque j estava integrado, aperfeioado e disponvel o correspondente direito. Logo, lei nova no poderia, sem desconstituir a situao jurdica passada, interferir com as relaes anteriores.

A noo de irretroatividade das leis, considerada em seus justos termos, consentneos com a prpria ndole do Direito, seria plenamente suficiente para a proteo destas situaes. Entretanto, para defender-lhes a estabilidade e imuniz-las contra a possvel pretenso de invocar-se a lei nova, fala-se, s vezes, ematooufato jurdico perfeitoou mesmo emdireito adquirido.

No h inconveniente em tais invocaes; entretanto, repita-se, a noo de direito adquirido seria desnecessria para a proteo de tais situaes, conquanto no se negue que seja prestante para defend-las. Em outras palavras: mesmo que inexistisse proteo constitucional ao direito adquirido, as situaes descritas persistiriam resguardadas contra o impacto das leis novas, seja por fora de uma noo compreensiva da irretroatividade, seja por necessidade de respeitar-se oato jurdico perfeito, ou ofato jurdico perfeito.

8.Ao lado dos acontecimentos que se cumpriram no passado e nele se venceram, quais os referidos, outros h em que, ao sobrevir lei nova. encontram-seem curso. Transitando no presente. So osnegotia pendentia. E dizer: nasceram no passado (em relao lei superveniente) mas atravessam opresentee projetam-seno futuro. Iniciaram-se ao tempo do preceito antigo, mas no esto juridicamente encerrados e por isso ingressam no tempo de imprio da lei nova, de tal sorte que esta, sem retroagir e sem negar aquilo que j haja transcorrido, ir alcan-los sob o foco de suas disposies,salvosehouver sobrevivncia da lei antiga para aregncia destas relaes.

9. Em nome da segurana e estabilidade jurdicas, valores altamente prezveis no Direito, e a fim de evitar a lea que colocaria em permanente sobressalto as partes de um vnculo jurdico, concebe-se que em certos casos a fora da lei antiga projete-se no futuro envolucrando relaes constitudas - mas no encerradas - sob sua gide.

a teoria do direito adquirido que se presta excelentemente para agasalhar o propsito de colocar a salvo da incidncia da nova lei certas relaes, que assim percorrem o tempo encasuladas no abrigo protetor das regras velhas. Estas sobrevivem para alm de seu prprio tempo, com o fito especfico de acobertar direitos que seriam muito frgeis e inconsistentes se no existira este expediente jurdico.

10. A teoria do direito adquirido e seu reconhecimento pela legislao dos povos cultos veio a se constituir na frmula mais perfeita para a salvaguarda da tranqilidade jurdica e para os interesses dos indivduos. Atravs dela construiu-se um mecanismo de defesa contra mudanas bruscas, oriundas de alteraes legais que teriam o condo de subverter as composies de interesses lisamente constitudos, porque previstos ou autorizados no sistema normativo vigente ao tempo de sua instaurao. Sem o amparo do direito adquirido irromperia a lea nas relaes sociais, a imprevisibilidade, o sobressalto, noes antitticas queles que so os objetivos centrais do prprio Direito: a previsibilidade e segurana.

sua mingua, a prpria certeza das situaes jurdicas e, portanto, dos interesses individuais ficaria gravemente comprometida, por exposta ao sabor do imprevisto. Da que o direito adquirido erigido em valor prezvel e, entre ns, constitucionalmente defendido no captulo dosdireitos e garantias individuais, com o que se ressalta seu carter de proteo ao cidado, seja em suas relaes com terceiros, seja em seus vnculos com o Estado (art. 5, XXXVI).

11.Desde tempos recuados os doutrinadores e as prprias normas jurdicas revelaram a preocupao de no perturbar vnculos constitudos no passado.

Os primeiros esforos significativos em tema de Direito intertemporal vo ser encontrados no Direito romano. clebre o texto de Ccero, nasVerrinas, com o qual, em sua segunda orao contra Verres, o pretor, censura acrimoniosamente o retorno das leis ao passado. Citando as leis Voconia, Atnia e Furia, argumenta que o edito de Verres agredia a tradio dojus civilepor intentar que suas regras alcanassem e afastassem disposio testamentria manifestada antes do edito.

Limongi Frana, doutor da mxima suposio na matria, expondo a questo, advoga a tese de que os pontos de vista de Ccero no eram criao original deste famigerado tribuno, mas apenas refletiam o "fruto da cincia acumulada de muitas geraes de juristas". Entende que as razes desta tese remontam a trs sculos, pois atribui sua origem aos escritos dosVeteres(Publius Mucius Scaevola. Junius Brutus e M. Manilius) -qui fundaverunt jus civile, no dizer de Pomponio3.

12. No Direito clssico iria surgir a noo decausae finitae, isto , as questes encerradas por julgamento, por acordo de vontades e por prescrio, conforme fragmentos de Paulo e de Ulpiano. De acordo com Roubier, as leis novas poderiam alcanar ascausaependentessendo-lhes intangveis to-s ascausae finitae4. Limongi Frana, pelo contrrio, considera que os textos citados no impem concluso oclusiva do entendimento de que ascausae pendentestambm estariam a salvo.

Lembrando a pobreza do perodo clssico na matria, aduz que os textos em pauta devem ser entendidos em coordenao com o perodo anterior e com as leis precedentes. Traz colao as leis Atnia e Pompia, recolhidas em guisa de exemplo, e que, segundo a inteligncia que lhes deram Aulus Gellius e Plnio, o moo, s dispunham para o futuro5.

13.Os subseqentes marcos de grande relevo para o Direito intertemporal foram a 1 e a 2 Regra Teodosianas, ambas reveladoras da tendncia ampliativa na proteo s situaes nascidas no passado.

De acordo com a 1 Regra, as normas apenas dispem para o futuro:omnia constituta non praeteritis caluniam faciunt, sed futuri s regulam ponunt. Sempre conforme Limongi Frana, autor ilustre de quem recolhemos todas estas eruditas lies, a 2 Regra, mais conhecida, dispe: " norma assentada a de que as leis e constituies do forma aos negcios futuros e de que no atingem os fatos passados, a no ser que tenham feito referncia expressa, quer ao passado, quer aos negcios pendentes" (traduo do autor)6.

Gabba, em sua refulgenteTeoria della Retroativit delle Leggi, esclarece que esta regra estabeleceu a defesa dos "fatii consomati, o totalmentepraeteritae i fatti non compiuti,negotia pendentia, cio fatti comminciatti sotto una legge anteriore, o in altri termini, le ulteriori conseguenze di fatti posti in essere sotto l'impero di una legge anteriore"7.

14.No Direito justinianeu, registram-se vrias passagens em que h reprovao retroatividade e defesa dos efeitos oriundos de fatos e atos produzidos no passado.

S na Idade Mdia, entretanto, surgiria a idia dojus quaesitum, isto , do direito adquirido, cuja noo, todavia, em nenhum texto se encontra esclarecida com preciso. A indicao de seu contedo vem a ser elucidada apenas nos tempos modernos.

Cumpre reiterar que o problema do direito adquirido de modo algum se confunde com a questo dos fatos realizados e exauridos no passado. Justamente, a utilidade dessa teoria, o ponto que lhe serve de apangio, o de se propor a resolver questes derivadas dosfacta pendentia. Em suma: seu prstimo revela-se, sobremodo, na soluo que apresenta para salvaguarda dosefeitosde situaes transactas. Isto , prope-se a determinar a lei aplicvel s situaes em curso. Os fatos consumados,facta praeterita, j se encontram plenamente acobertados pela teoria da irretroatividade das leis.

Deveras, no h confundir osfacta praeterita, ocorridos e vencidosante diem legis, com osfacta futura, sucedidosex die legisnem com osfacta pendentia, surgidosante diem legis, mas cujos efeitos se perlongam e se processam durante o imprio da lei superveniente. precisamente com relao a estes ltimos que se pem as questes delicadas de direito intertemporal.

Da que o grande mrito da teoria do direito adquirido no reside na proposta de salvaguardar o que j se venceu, mas justamente em oferecer soluo para os problemas suscitados pelosfacta pendentia, ao indicar quando a lei nova tem que respeitar o que ainda no est clausurado pela cortina do tempo transacto.

15. Em sntese: as leis novas, em princpio, so expedidas para imediata aplicao. conseqncia disto, ento, que, de um lado, passem a reger todas as relaes jurdicas surdidasapssua vigncia e, de outro lado, que apanham tambmas relaes em curso, vale dizer, ainda no exauridas. Com efeito, nesta segunda hiptese no se pode dizer que sejam retroativas, pois respeitam os efeitos que precederam a seu advento, alcanando to-s aqueles efeitos que se esto propagando ainda e que, por isso mesmo, se desenrolam j poca da vigncia da lei nova. Retroagir agir em relao ao passado. Se uma lei apanha relaes que existemno presente, no est se reclinando sobre o pretrito; pelo contrrio, est incidindo sobre aquilo que se processa na atualidade.

Segue-se que as relaes que nasceram e que faticamente ou apenas juridicamente se completaram no passado obviamente no tm por que serem afetadas por lei superveniente. Para que fossem atingidas seria necessrio que a leiretroagisse.A simples noo da irretroatividade da lei suficiente para proteg-las.

16.Diversamente, as relaes nascidas no passado, mas que esto intercorrendo no presente e se projetando para o futuro,em princpio, poderiam e podem ser alcanadas pela lei nova, sem que por fora disto se possa dizer ocorrente o fenmeno da retroao.

Sucede, entretanto, que, como foi dito, mesmo sem haver retroao, esta imediata aplicao da lei - que interferiria com as relaes j em curso - pode aparecer como fonte de perturbao, de insegurana, de instabilidade, gravosa aos objetivos consagrados na lei velha, isto , na lei do tempo transacto que serviu de calo jurdico para os direitos suscetveis de serem afetados pela nova lei.

17. precisamente para atender a tais situaes que surgiu a noo dedireito adquirido. Sua funo, portanto, no a de impedir a retroatividade da lei. Sua funo diversa, qual seja: a de assegurara sobrevivncia da lei antiga para reger estas situaes. O que a teoria do direito adquirido veio cumprir - como instrumento de proteo contra a incidncia da lei nova - foi precisamente a garantia deincolumidade, perante os ulteriores regramentos, a direitos que, nascidos em dada poca e cuja fruio se protrair, ingressaro eventualmente no tempo de novas leis. O que se quer que permaneam indenes, vale dizer, acobertados pelas disposies da lei velha.

Em suma: o direito adquirido umablindagem. o encasulamento de um direito que segue e seguir sempre envolucrado pela lei do tempo de sua constituio, de tal sorte que estar, a qualquer poca, protegido por aquela mesma lei e por isso infenso a novas disposies legais que poderiam afet-los.

18.Esta a funo do direito adquirido e no alguma outra. E isto aparece com clareza ao se considerar, precisamente, que a lei nova no retroativa quando se aplica s situaes em curso. Se o fora, poder-se-ia pensar que o direito adquirido instrumento de defesa contra a retroatividade. No . Contra a retroatividade basta a noo singela de que a lei vige para seu tempo e no para o tempo pretrito. A noo de direito adquirido no uma superfetao, mas, o meio jurdico concebido para albergar no manto da lei velha certas situaes que, nascidas no passado, querem-se por ela sempre reguladas, inobstante atravessando o tempo das leis supervenientes. De resto, por isto mesmo que sua ocorrncia no pode ser interpretada com viso acanhada e desatenta a seus verdadeiros propsitos.

Em rigor. como muito bem o disse Paul Roubier, o direito adquirido um problema de sobrevivncia da lei antiga, emrelao a certas situaesque nela se hospedavam.

19.Da se conclui que cabe invocar direito adquirido (uma vez presentes seus caracteres, que sero a breve trecho referidos) exata e precisamente para a defesa de situaesque seriam normalmente alcanadaspelo novo regramento, caso no houvesse direito adquirido. importante frisar que o apelo a esta noo tem lugar exata e precisamente naquelas situaes que seriam lisa e normalmente atingidas pela lei nova - como sucede, a cotio, nas mudanas de regimes concernentes a servidores pblicos - no fora o bice do direito adquirido. E a invocao em tela tem por objeto especfico - pois isto inerncia do direito adquirido - assegurar que o direito questionado continue a ser regido na conformidade da lei vencida.

20. bvio que no so abrigados pelo quadro da lei velha quaisquer direitos nascidos no passado e ainda transeuntes quando do advento da lei nova.

Este abrigo imunizador s alcana certas situaes especficas, ou seja, certos direitos que apresentam em sua constituio, algo que os peculiariza, autorizando concluir que se trata do chamadodireito adquirido. Cumpre saber, ento, quando se considera adquirido um direito. disto que nos ocuparemos a seguir.

21. Segundo Gabba, adquirido todo direito que:

"a) conseqncia de fato idneo a produzi-lo, em virtude da lei do tempo em que foi cumprido, ainda que a ocasio de faz-lo valer no se apresente antes da atuao de uma lei nova referente ao mesmo;

b) ao termo da lei sob cujo imprio ocorreu o fato do qual se originou, entrou imediatamente a fazer parte do patrimnio de quem o adquiriu."8Donde, o ato capaz de investir o indivduo em dada situao jurdica confere-lhe,ipso facto, o gozo de todos os efeitos precedentes daquela situao pessoal, inobstante devam ser diferidos no tempo. Uma vez que integram o contedo da relao formada, incorporam-se ao patrimnio do sujeito. Por isso Gabba averbou: "(...) adquirido um direito qualquer, todas as faculdades que nascem dele so, tambm elas, direitos adquiridos, porque e enquanto se possam absorver no conceito geral daquele direito"9.

22. Vale dizer: direito adquirido, por definio, no apenas o direito em sua expresso momentnea. fugaz, mas abrange todos os desdobramentos que nele se contm. Sendo evidente que nas relaes jurdicas os direitos se conectam, ora como coexistentes, ora como conseqentes uns dos outros, de maneira a formar uma totalidade, cuja identidade se perfaz em sua globalidade, de mister concluir, ainda com Gabba, que, em linha de princpio: "As conseqncias de um direito adquirido devem ser havidas tambm como direitos adquiridos junto com ele e em virtude dele, quando se possa consider-las como desenvolvimento do conceito do direito em causa ou transformao"10.

23. Mas, em rigor, a questo medular a de reconhecer quando um direito dever ser considerado "integrado no patrimnio" de algum e, por isso, intangvel. O problema, num primeiro sbito de vista, pode parecer de difcil desate. Entretanto, pelo menos no mbito do Direito Administrativo, sua resoluo, nos casos concretos, geralmente muito simples.

Com efeito, dado que os direitos nascem da Constituio, de uma lei (ou de ato na forma dela praticado), tudo se resume em verificar, a partir da dico da norma - de seu esprito - se o contedo do dispositivo gerador do direito cumpre ou noa funo lgica de consolidar uma situaoque ,per se, como soem ser as relaes de direito pblico, basicamente mutvel.

24. Tomem-se alguns exemplos para aclarar. Paradigmtico o caso da estabilidade Se a Constituio confere estabilidade a quem preencher dados requisitos, da mais acaciana obviedade que o sentido lgico desta norma - e s pode ser - o de estratificar tal situao, posto que estabilizar significa precisamente "garantir continuidade". Se no fora para elidir o atributo de precariedade, cristalizando um estado at ento mutvel, seria um sem-sentido atribuir estabilidade.

Do mesmo modo, evidencia-se esta consolidao quando a lei declaraincorporadosaos vencimentos de algum dadas vantagens, benefcios, etc. Com efeito, no faria sentido algum proceder a esta incorporao se no fora para coloc-los a salvo de mutaes futuras. Pois bvio que enquanto persistisse a mesma situao (normativa e ftica) em vista da qual o servidor os vinha fruindo, continuaria a fru-los sem necessidade de lei alguma que os incorporasse. clarssimo, pois, quea funo lgicada lei que declara ou reconhece algo como incorporado s pode ser a de prevenir dada situao contra os eventos cambiantes do futuro. Em suma: seu alcance consolidar uma situao, incorporando-a ao patrimnio de algum, a fim de que fique a salvo de munies ulteriores.

evidente, pois, que uma vez preenchidos os requisitos supostos para sua aquisio. como,exempli gratia,o da estabilidade, o servidor ganha umstatus consolidado, defendido contra quaisquer alteraes normativas posteriores.

S umanova Constituiopoderia infirmar-lhe tal garantia, substanciada no direito adquirido. E poderia faz-lo unicamente porque uma nova Constituio representa ruptura cabal com a ordem jurdica precedente, constituindo-se, por definio, na derrocada dela com a instaurao de outra ordem, emergente, esem vnculos com a anterior.

Nenhuma outra regra de Direito, fosse qual fosse, poderia aspirar derrubada de direitos adquiridos, porque, em sua origem, tal norma estaria sempre atrelada prpria Constituio, ou seja, ao prprio documento fundamental que, no caso brasileiro, declara salvaguardados os direitos adquiridos.

Outrossim, se a Constituio declarairredutveis os vencimentos, de solar evidncia que os pretende defendidos contra providncias que os reduzam. Em regime onde vigore o princpio da legalidade, seria evidentemente despiciendo tal atributo que a Constituio lhes confere se no fora para interditar que normas ulteriores, provenientes de Casa ou Casas Legislativas, afetassem a integralidade dos vencimentos a que cada qual faa jus. Segue-se quenenhuma regra de direito, pelas razes supra-expendidas, teria o poder de reduzi-los, salvo, evidentemente,uma nova Constituio, conforme acima elucidado.

25. As frmulas pelas quais se expressam estas consolidaes de direito so variadas. A lei ora se vale da expresso "incorporados", ora declara "assegurados" tais ou quais direitos, ora os proclama "garantidos", ora os reconhece "adquiridos", e assim por diante.

De toda sorte, o que cumpre verificar se a dico da regra de direito ou a que resulta de um conjunto delas implica definir como intangvel um dado estado ou situao, isto , como resguardado, sem embargo de se tratar de vnculo jurdico cujos efeitos devero se desdobrar no tempo. , pois, a garantia de estabilizao para o futuro, de cristalizao do que existe em um dado tempo, o que se contm nas regras que indicam assegurados os direitos preexistentes, salvaguardados os direitos j adquiridos, protegidas as situaes anteriores.

Se houver espao para medraremdvidas consistentesquanto a isto, recurso exegtico recomendvel indagar-se se a aplicao imediata do regramento superveniente causar conturbao de monta, abalo traumtico nas relaes j constitudas. Em sendo afirmativa a concluso, tratar-se- de saber se na ordenao anterior existem elementosplausveisindicirios do propsito de mant-los, ainda que parcialmente, a bom recato, portanto defendidos, mais ou menos amplamente, contra supervenincias normativas.

Justifica-se esta zelosa perquirio de um possvel direito adquirido nos casos duvidosos, porquanto esta garantia, como dito, inspira-se precisamente no intento de evitar trnsito demasiado oneroso para a segurana jurdica e tranqilidade dos que, fiados no regramento precedente, constituram vnculos de direito que se perlongariam no tempo. A cautela sobremodo recomendvel perante relaes que se encartam no desdobrar de um longo lapso temporal. Com efeito, a comoo delas frustraria expectativas que, se nutridas por dilatado prazo ao abrigo das leis vigentes, tornariam particularmente traumticos os agravamentos acaso trazidos por regras novas.

26.De par com as noes at agora expostas, cumpre anotar que tambm se reconhece a existncia de direito adquirido perante certos liames jurdicos que, por sua prpria ndole, so armados pelas partes sobre a inafastvel pressuposio de que continuariam regidos na conformidade das clusulas ensejadas pela lei do tempo em que so formados. Referimo-nos aoscontratosem geral e, assim tambm, aos chamados contratos administrativos.

Aqui, no se trata de reconhecer que determinadas leis professam o intento de imunizar dadas situaes ante a supervenincia de regras novas. Antes, trata-se de reconhecer que este instituto - o do contrato, ao menos nos de trato sucessivo - traz, inerentemente, em sua compostura medular,a idia de estabilizaoe que o Direito, ao contempl-lo, no poderia, incoerentemente, negar-lhe o que lhe essencial.

Com efeito: perante contratos, seria ilgico que os vnculos formados corressem autonomamente sua sorte, regidos pela lei do tempo de sua formao, enquanto so alterados de imediato os efeitos jurdicos sob cujo patrocnio as partes buscaram a composio do negcio. A lea assim instaurada viria a constituir resultado literalmente antittico ao pretendido pela teoria do direito adquirido.

de lembrar que os contratos de trato sucessivo constituem-se por excelncia em atos de previso. Por meio deste instituto, a ordem jurdica prestigia a autonomia da vontade ao ponto de propiciar-lhe o poder de fazer ajustes cuja fora especfica atrair para o presente eventos a serem desenrolados em um futuro s vezes distante.

Por via dele, ento, as partes propem-se a garantir, desde j, aquilo que dever ubicar-se nofuturo. Donde, ao se comprometerem, o que os contratantes esto visando a eliminao da precariedade, porque a essncia do pacto (tal como nas hipteses inicialmente consideradas)estabilizar,de logo, eventos que devero suceder mais alm no tempo. O fulcro do instituto, portanto, repousa na continuidade dos termos que presidem a avena. Se a lei nova pudesse subverter o quadro jurdico dentro no qual as partes avenaram, fazendo aplicar de imediato as regras supervenientes, estaria negando sentido prpria essncia deste tipo de vnculo, por instaurar resultado oposto ao que se busca com o instituto do contrato.

27. to veemente a fora desta idia, que Paul Roubier, embora avesso teoria do direito adquirido, no pde resistir convico de que as situaes contratuais reclamam tratamento especfico capaz de salvaguardar o respeito posio dos contratantes.

Como se sabe, o ilustrado mestre francs era partidrio da aplicao imediata das leis, cuja incidncia deveria, em seu entender, alcanar os fatos pendentes. De acordo com ele, censurvel a retroatividade. Portanto, ho de ser respeitados osfacta praeterita. J os inconclusos so colhidos a partir da lei superveniente pelas regras que dela promanem. Sem embargo da laboriosa construo terica que erigiu em defesa deste ponto de vista, encontrou-se na contingncia de abrir uma exceo imensa sua tese para sufragar a intangibilidade dos contratos.

Roubier reconhece que o respeito lei dos contratos em curso regra certa e considerado verdadeiro "artigo de f". Reconhece, ainda, que para a teoria no direito adquirido no h a menor dificuldade em explicar esta intangibilidade11. O mesmo, contudo, no se passa com sua doutrina, a qual no fornece justificao evidente para a sobrevivncia das normas que presidem o contrato.

28. Sem embargo, o autor percebe a necessidade de preservar as relaes deste teor contra mutaes imediatas advindas de regulao normativa superveniente. Justifica, ento, esta intangibilidade apoiando-se na idia de que os contratos so atos de previso em que a escolha procedida pelos contratantes ao comporem consensualmente seus interesses decidida inteiramente em funo das clusulas ou da lei vigorante. Da apostilar: " evidente que a escolha seria intil se uma lei nova, modificando as disposies do regime em vigor no dia em que o contrato foi travado, viesse a trazer uma subverso em suas previses"12.

Com absoluta procedncia, ressalta o carter monoltico do regime do contrato que se constitui por "um bloco de clusulas que no se pode apreciar seno luz da legislao sob a qual foi realizado"13.

Da afirmar a plena soberania do acordo, inobjetvel mesmo em face do advento de clusulas imperativas que dispunham em sentido diverso dos termos anteriores. E conclui que em tema de contratos, em vez de aplicar-se o simples princpio da irretroatividade, aplica-se princpio mais amplo, qual o da sobrevivncia da lei antiga14.

Como citar este contedo na verso digital:Conforme a NBR 6023:2002 da Associao Brasileira de Normas Tcnicas (ABNT), este texto cientfico publicado em peridico eletrnico deve ser citado da seguinte forma:

O Direito Adquirido e o Direito Administrativo.Interesse Pblico - IPBelo Horizonte, n. 38, ano 8 Julho / Agosto 2006 Disponvel em: . Acesso em: 21 ago. 2014.