the little miss havana: notas de pesquisa sobre a
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THE LITTLE MISS HAVANA: NOTAS DE PESQUISA SOBRE A TRAJETÓRIA DA
CANTORA GLORIA ESTEFAN
Igor Lemos Moreira1
(Universidade do Estado de Santa Catarina)
Resumo: Gloria Estefan nasceu em Havana (1957), tendo se exilado nos Estados Unidos logo após a Revolução Cubana, país no qual construiu sua carreira artística como cantora de música pop cubana a partir da década de 1970. Neste trabalho, pretendemos apresentar questões gerais acerca dos primeiros movimentos de pesquisa a respeito sua carreira profissional, com ênfase nas discussões teórico metodológicas, destacando as potencialidades do entrecruzamento entre artes, música e história no estudo de seu percurso artístico entre 1977 e 2011. Em um primeiro momento, discute-se as a sua relação com as indústrias fonográficas, os envolvimentos políticos e aspectos gerais de sua trajetória profissional. Em seguida, são levantadas discussões preliminares a respeito das formas como a cantora e a mídia construíram representações latinas, hispânicas e cubanas a partir das produções e das narrativas sobre sua identidade artística. Esta comunicação apresenta resultados parciais do projeto de doutoramento intitulado “The Little Miss Havana”: Gloria Estefan e as representações latino-americanas (1977-2011)” em desenvolvimento. Palavras-chave: Gloria Estefan; Representações latino-americanas; Música Pop;
História do Tempo Presente. Gloria Estefan2, como é artisticamente conhecida Gloria María Milagros
Farjado, é uma artista cubana naturalizada nos Estados Unidos, conhecida no cenário
internacional como uma das “divas” da música pop do final do século XX. Nascida em
Havana, no ano de 1957, sua trajetória de vida é perpassada pela história recente de
Cuba, as relações entre os Estados Unidos e o país, e o próprio desenvolvimento do
1 Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Mestre e graduado em História pela mesma instituição. Bolsista CAPES-DS. Essa pesquisa contou com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. 2 A presente comunicação apresenta reflexões iniciais de meu projeto de doutoramento em história, iniciado em 2019, no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Neste projeto, intitulado “The Little Miss Havana”: Gloria Estefan e as representações latino-americanas (1977-2011)” em que analiso a trajetória artística da cantora cubano-americana Gloria Estefan a partir de três eixos principais: As formas pelas quais a artista elaborou, significou e narrou identificações e representações de cubanidades e latinidades no decorrer de sua carreira; Os modos como tais construções de identidades foram significadas pela mídia estadunidense e global; As diferentes maneiras de engajamento associadas a esse processo, em especial os engajamentos políticos e sociais da artista no referente a Cuba e aos Estados Unidos. A comunicação aqui apresentada, neste sentido, é um primeiro ensaio de revisão do projeto e de atualização de alguns debates a partir do contato com a documentação que constitui o corpus documental da tese.
campo da música pop. Filha de um dos guarda-costas de Fulgêncio Batista, Gloria
Estefan e sua família se exilaram nos EUA logo após a revolução de 01 de janeiro de
1959 por oposição ao regime, e como tentativa de evitarem serem perseguidos no
país pela proximidade com o ex-ditador.
Logo após a entrada no país, a família se fixou na cidade de Miami, que naquele
contexto começava a se consolidar como um dos principais focos da migração
cubana, o que veio a construir uma comunidade emocional (SARDO, 2010)
anticastristas nessa localidade através de uma “ ‘ponte imaginária’ entre Havana e o
estado da Florida” (AYERBE, 2004). Esse processo de exílio ocorreu em um contexto
maior de fluxos para os Estados Unidos, marcados pela ideia de oposição política
(GOTT, 2006; CHOMSKY, 2015). No país, sua família envolveu-se diretamente nos
movimentos de oposição a Revolução Cubana, tendo seu pai participado do “Ataque
a Baia dos Porcos”, o que influenciou em sua construção como identitária migrante
cubana vivente nos EUA nos anos seguintes, em especial na carreira musical.
Ao ingressar no ensino superior, na década de 1970, como estudante de
psicologia na Universidade de Miami, Gloria Estefan conheceu Emílio Estefan, com
quem veio a se casar posteriormente, e que a convidou a ser vocalista da banda Miami
Sound Machine, um grupo de música latina formado por jovens migrantes. Com foco
em sonoridades e ritmos latinos3, especialmente caribenhos, o grupo produziu suas
primeiras canções em gravadoras locais, sendo seu primeiro LP, intitulado Live
Again/Renacer, lançado em 1977 contendo músicas em inglês e espanhol. Contudo,
foi apenas na década de 1980 que o grupo alcançou destaque no país e
internacionalmente.
Parte do destaque da cantora e do grupo ocorreu em função do lançamento de
“Conga” (1985), que chegou a ocupar as principais paradas musicais e continuou a
projetar o grupo até a década seguinte. O “sucesso” da canção esteve também
associado a inserção da artista na música pop, que se consolidava na mesma década
como um campo específico da indústria fonográfica, em especial pelo uso dos
3 Em 29 de julho de 1988 o jornalista Stephen Holden publicou uma resenha no The New York Times, intitulada “Salsa Spice from Miami” na qual destacava, a partir do álbum Let It Loose (1987), o “compromisso” da banda com a música latino-americana, em especial na sua divulgação nos Estados Unidos, creditando o início desse movimento e sua consolidação ao sucesso da música “Conga”. Segundo a resenha, tal “compromisso” seria observável não apenas pelas sonoridades ou temáticas das canções, mas também pela sua linguagem.
videoclipes e da performances dançantes (SOARES, 2015), através de figuras como
Madonna, Celine Dion e Ricky Martin. “Gonga” ainda influenciou outros artistas que
viram no mercado latino uma possibilidade de nicho para atuação, o que gerou uma
série de debates no país e na indústria fonográfica acerca dos estereótipos da
representação latino-americana nos Estados Unidos, nos quais a cantora ocupou um
papel central. Um exemplo dessa discussão foi o lançamento de La Isla Bonita (1986),
por Madonna, e que gerou uma série de contradições e polêmicas e que
oportunizaram a Gloria Estefan ocupar uma posição de “voz autorizada” sobre as
apropriações feitas pela já considerada “rainha do pop” (O’BRIEN, 2018).
Em 1990, Gloria Estefan deixou oficialmente com a banda, lançando-se como
artista solo com Emílio Estefan enquanto seu empresário. Durante esse período, a
cantora lançou mais de 8 álbuns, além de produzir outras canções que se destacaram
na mídia e na indústria como Mi Terra (1993) e Abriendo Puertas (1995). Nessa
década percebe-se um aumento nas menções sobre Cuba e sobre o exílio em suas
produções, no contexto em que o país passava por novas crises econômicas e ondas
migratórias durante o “Período Especial em Tempos de Paz”, momento no qual ocorre
a dolarização na economia cubana, a crise da união soviética e a implementação das
leis Torricelli e Helms-Burton nos Estados Unidos (GOTT, 2006). Esse processo se
estendeu no decorrer do século XXI, contexto no qual a cantora seguiu produzindo
suas canções e manifestando-se publicamente a respeito de Cuba e das comunidades
migrantes latinas, como no caso Elián González.
Ao optar por trabalhar com a trajetória artística de Gloria Estefan, pretende-se
“percorrer os caminhos traçados pelos indivíduos a partir das relações que eles
construíram em distintos espaços e tempos” (AVELAR, 2018. p. 131), sem produzir
um relato totalizante e/ou elogioso de sua vida como poderia ocorrer em uma biografia
(BOURDIEU, 2006). Deste modo, proponho analisar a trajetória de Gloria Estefan por
meio da mídia e das produções, procurando compreender quais são suas construções
artísticas, representações e relações com diferentes esferas, grupos, locais e
temporalidades, que geraram trocas e jogos de identificações. Ao mesmo tempo,
como sujeito relacional (CARNEIRO, 2018), suas produções e trajetória não estão
separadas do contexto, que a influência e no qual também desempenha determinados
papéis.
A pesquisa em andamento se insere em uma problemática maior, centrada nas
análises sobre as indústrias culturais e fonográficas contemporânea e suas relações
com as temporalidades e as dimensões sociais, culturais, políticas e econômicas.
Historiadores como Marcos Napolitano (2016) e José Geraldo Vinci de Moraes (2010;
2018) apontam as potencialidades da música, da canção e dos sons como
documentos para a história, remontando a perspectiva da escola dos Annales e da
história problema, destacando a compreensão dos documentos sonoros como
produções socioculturais inscritas em temporalidades múltiplas. Enquanto linguagem,
a música é não apenas uma forma de comunicação, mas também um modo de
expressão permeado por diferentes camadas de temporalidades, intenções sociais,
projetos culturais, usos do passado e elaborações de representações.
Sendo a história do tempo presente um campo de institucionalização recente
no Brasil (FERREIRA, 2018), é possível perceber os diálogos possíveis entre as áreas
tendo em vista que entre seus principais pilares teóricos gravitam em campos como a
memória, o trauma, as demandas sociais e o testemunho (DOSSE, 2012; ROUSSO,
2016). Sob influência da perspectiva francesa, que se consolidou no Instituto de
História do Tempo Presente da França (1989), a história do tempo presente possibilita
um processo de historicização das sociedades contemporâneas procurando não
apenas compreender o tempo dito enquanto “atual”, mas sua constituição enquanto
dimensão temporal e sua relação com outras camadas de passados, presentes e
futuros que o constituem (ROUSSO, 2016; KOSELLECK, 2014).
Na medida em que são operacionalizadas categorias como estratos de tempo
(KOSELLECK, 2014), a cotemporalidade (TURIN, 2019) ou contemporaneidade de
fenômenos não contemporâneos (ROUSSO, 2016), essa perspectiva possibilita
analisar as múltiplas temporalidades que atravessam a música no tempo presente,
assim como suas relações históricas com as identidades e alteridades por meio das
escutas, visualidades, composições e sonoridades (SCANDAROLLI, 2016). Pensar a
canção a partir da sua relação com o tempo, uma outra forma de compreender a
própria história da música, é também destacar suas relações com o contexto social
(NAPOLITANO, 2016) na qual foi produzida, consumida e significado, perspectiva
pela qual pretende-se analisar a trajetória artística de Gloria Estefan.
Neste sentido interpreta-se que essa abordagem possibilita problematizar a
contemporaneidade, procurando pensá-la “como uma cotemporalidade, isto é, como
uma “concordância de tempos múltiplos”, marcada por uma “multiplicidade não
resolvida” (TURIN, 2019. P. 11). Ao analisar a trajetória artística de Gloria Estefan,
que tem como principal campo de atuação a música pop latina, pretende-se
compreender as tensões temporais e representações mobilizadas em sua constituição
enquanto artista, considerada por muitos como diva, categoria fundamental para o
estudo da indústria cultural contemporânea. Enquanto categoria, a diva está
associada a noção de projeção e identificação com um individuo que está entre o
material e o imaginativo (MORIN, 1989). Remontando as divas da opera e a
construção de personagens midiáticos no cinema, a figura da diva/estrela foi
resignificada com a expansão midiática a partir da segunda metade do século XX, em
especial com a criação de revistas especializadas no cinema e na vida dos
atores/atrizes, gerando processos de identificação dos públicos diretamente com os
artistas e não mais com seus personagens (MACIEL, 2011).
Esse processo não se restringiu apenas ao cinema. Na indústria fonográfica
percebe-se uma aproximação das cantoras, performers e cantatutoras com essa
imagem, sendo esse processo atravessado pela expansão midiática. Contudo, uma
das marcas fundamentais na música foi a construção de um arquétipo destas artistas
associadas a voz, a moda e, principalmente, a noção de performance. Ao mesmo
tempo, com a virada do século XX para o XXI esse processo é novamente
resignificado, demonstrando a fluidez e aceleração dessa indústria (DIAS, 2008),
percebendo-se novas construções em torno destas artistas, que jogaram com tais
arquétipos incorporando novos sentidos e representações, mobilizando outros
marcadores sociais como raça, gênero, classe e religião (MARTÍNEZ CANO, 2017),
indicando as potencialidades de uma perspectiva interseccional. Esse é o caso de
artistas como Madonna, Britney Spears, Rihanna, Jennifer Lopez e Gloria Estefan.
Apesar de não a questão central da pesquisa, certamente a discussões do
ponto de vista da interseccionalidade, inclusive para compreender a própria
constituição da trajetória, as representações e projeções da “imagem” da artista, será
fundamental ao possibilitar discutir a complexidade de sua constituição como sujeito
(LUGONES, 2008) . Neste sentido, destaca-se que a produção da cantora está
associada à sua identificação como “latina” acepção estadunidense que define o “não
branco” como um outro e como um sujeito racializado, assim como mulher, artista,
migrante, classe “média” e católica, sendo estes marcadores que atravessam suas
narrativas. Neste sentido, o “gênero inscreve o corpo racializado” (AKOTIRENE, 2018.
p. 22), sendo fundamental perceber as imbricações culturais, sociais e políticas
presentes em figuras consideradas como divas.
Ao discutir os processos que envolvem as indústrias culturais na
contemporaneidade, Néstor García Canclini (2015) não menciona as divas, porém
discute a elaboração de figuras simbólicas no contexto dos jogos de identificações e
hibridismos, considerando Gloria Estefan como central nestes processos. Para o
autor, a cantora é um exemplo das novas configurações dessa indústria que passaria
por processos de complexificação, e também de jogos de mercado, inserindo novos
grupos sociais que estariam entre a participação na estrutura e a oposição ao sistema.
O ponto central, para Canclini, seriam os jogos de linguagem (inglês e espanhol) nas
canções de Gloria Estefan, não mencionando os aspectos visuais ou midiáticos que a
envolveram, o que se pretende abordar neste projeto.
A discussão sobre a linguagem associada a canção, e a constituição de
identificações no tempo presente, é abordada também por Judith Butler e Gayatri
Spivak (2018) que consideram a canção como dimensão fundamental para
compreender a ideia de pertencimento, em especial em contexto de migração. De
certa maneira, as discussões de ambas as autoras podem ser aproximadas das
perspectivas de Susana Sardo (2010) a respeito a importância da música para
constituição de comunidades emocionais, grupos sociais em que a emoção constitui
um laço e o principal pilar das identificações, no contexto de trânsitos e
deslocamentos.
O ponto em comum nestas leituras está na associação da ideia de
pertencimento a de associação a uma temporalidade e experiência, não mais apenas
ao território ou ao Estado-Nação. No caso de Gloria Estefan essa relação, apesar de
evocar o território cubano ou estadunidense, tem como pano central uma discussão
sobre a temporalidade e a experiência do refúgio e do exílio, perpassada por
categorias como nostalgia e ressentimento, presentificadas e representadas em suas
produções artísticas e na mídia. É por meio destas tenções que a cantora se constituiu
enquanto figura central na indústria cultural contemporânea, se construído e sendo
considerada como diva latina em diálogo com demais dimensões sociais, culturais,
econômicas e políticas.
As observações iniciais indicadas até aqui têm possibilitado levantar alguns
eixos centrais para o estudo das narrativas a respeito da cantora na mídia, em especial
para aquelas relacionadas as diferentes representações e visões associadas a ela.
Percebe-se que existe um esforço por parte do periódico em tratar a cantora para além
de suas produções, destacando suas ações políticas, mas também como voz
autorizada para temáticas latinas, colocando-a como representante fundamental
desta comunidade nos Estados Unidos. Esse processo será problematizado em
etapas futuras da pesquisa na medida que algumas publicações demonstram uma
homogeneização da noção de latino, entendido pelo veículo como o “não branco”
falante de espanhol, e que por vezes foi colaborado estrategicamente por Gloria
Estefan. Inclusive essa discussão é perceptível em reportagens nas seções de
gastronomia sobre seus restaurantes de temática latina no país4.
Com relação as produções artísticas, se pretende analisar também os aspectos
narrativos, ampliando a própria noção de narrativa para além do texto escrito. Como
destaca a historiadora Márcia Ramos de Oliveira (2002), a canção é “é uma peça
musical feita para ser cantada que não implica em uma demasiada especialização
musical, podendo ser criada e executada de forma mais simples e que é um
instrumento de expressão utilizado por todas as culturas ao longo da história.”
(OLIVEIRA, 2002. p. 92). Vale destacar que a canção, a partir de análises na área de
ciências humanas, deve ser vista para além de seus elementos estruturais, de sua
forma e percurso harmónico, incorporando também sua letra, performance e melodia,
dimensões fundamentais para compreender a narrativa envolvida (TATIT, 2014).
4 WARD, Timothy Jack. For a Latin Restaurant, a Carmen Miranda Hat. The New York Times. New York, p. 89. 25 dez. 1997.
Neste sentido, o estudo da canção pode ser aproximado dos videoclipes, na medida
em que ao analisar a música pop, definida como canção popular-midiática, o
audiovisual é um elemento indispensável para sua elaboração, em especial associado
a noção de performance (SOARES, 2004).
Partindo dos apontamentos de Paul Zumthor (2007), percebe-se que a
performance, assim como a canção e a imagem, constrói sentidos e signos por meio
dos quais é possível perceber as relações temporais, suas intencionalidades e
representações envolvidas. A ideia de performance, está necessariamente associada
as dimensões teatrais, orais e virtualidades, e deve ser compreendida como uma
manifestação situada em um contexto cultural e situacional, onde ela transformasse
em acontecimento e é significada (ZUMTHOR, 2007).
As canções, assim como as demais produções artísticas de Gloria Estefan a
exemplo de seus videoclipes, serão vistas enquanto “processos”, considerando que
estas dependem constantemente de seus momentos de performance, e/ou gravação,
e que só podem ser compreendidas em meio a sua pluralidade e status de “obra
aberta” (GONZALEZ, 2016). Articulando tais dimensões, é importante compreender
que “o desenvolvimento que uma canção pode ter ao longo do tempo nas mãos de
seus próprios autores e intérpretes dialoga de maneira muito particular com os
conceitos de cover e versão. Tudo isso situa o arranjo e a performance como mais um
texto a ser decifrado na análise da canção[...]” (GONZALEZ, 2016. P. 118).
Tais medidas possibilitam discutir o conceito de representações na medida que
permitem delimitar diferentes formas pelas quais se “transmitem as diferentes
modalidades de exibição de identidade social ou da potência política tal como as
fazem ver e crer os signos, as condutas e os ritos.” (CHARTIER, 2009. p. 50). Neste
sentido, temos considerado que, além das relações entre ausência e presença pelas
quais as representações são elaboradas, estas se materializam nas produções
artísticas da cantora, assim como no material midiático. Parte-se de uma discussão a
respeito das “relações entre o representado e as formas de sua representação, e
outra, a relação entre essas formas e a matéria em que elas se realizam.”
(RANCIÈRE, 2018. P. 64). Um exemplo possível de discussão, que permite visualizar
os caminhos metodológicos pode ser realizado a partir da canção Conga (1985).
Lançada em 1985, a canção é uma dos principais hits de Gloria Estefan, sendo
ela a canção que teria alavancado sua carreira segundo reportagens da edição
especial da revista Billboard, em homenagem a cantora, lançada em 20035. A canção
que inicialmente seria uma música voltada as discotecas, com uma letra de
mensagem simples e um arranjo eletrônico como base da canção, como seria
característico na música pop (SOARES, 2015), tinha como fonte de inspiração o
“conga”, que é um instrumento de percussão cubano muito semelhante ao atabaque,
sendo geralmente montado em pares ou trios. Tambor característico da música afro-
caribenha, presente em ritmos como o merengue e a salsa, o “conga” foi a inspiração
principal da letra e para a base sonora da canção. Ao mesmo tempo, o termo designa
um gênero musical urbano latino, que tinha como base o próprio instrumento, e que
se popularizou nos salões estadunidenses na segunda metade do século XX .
Além disso, “conga”, como destaca Jesús Gómez Cairo (2011), é uma dança,
associada diretamente ao gênero musical, e que se popularizou em Cuba a partir da
segunda metade do século XX, destacando a relação entre sonoridades e
corporalidade. Percebe-se ainda que essa multiplicidade de significados está
associada a popularização da conga e a um processo em Cuba onde a multiplicidade
de gêneros urbanos “originou a produção de música para essas danças e foram
criados formatos orquestrais específicos para muitas delas e outras que foram
“polivalentes” para combiná-las.” (CAIRO, 2011. P. 192).
Neste sentido, o instrumento, o gênero musical e a dança serviram de base
para a elaboração do videoclipe, lançado no mesmo ano. Compreender esse universo
de referenciais e dimensões presentes na canção, composta originalmente por
Enrique E. Garcia e produzida por Emílio Estefan enquanto a cantora ainda integrava
o Miami Sound Machine, permite ampliar e discutir a própria narrativa criada para o
videoclipe, e que até o presente é associada a figura artística de Gloria Estefan. O
cenário de inserção da Conga nos Estados Unidos, por exemplo, foi retomado no
5 BILLBOARD. Gloria Estefan celebrates a career milestone selling 70 million records! Estados Unidos:
Billboard, 11 out. 2003.
videoclipe, que se passa em um salão de festas intitulado Copacabana, onde se
realizava um concerto em homenagem “ao embaixador”.
Logo após a apresentação de piano, a banda Miami Sound Machine é
convidada a subir ao palco, momento no qual Gloria Estefan, que estava sentada na
plateia, afirma que não seria a melhor ideia pois aquele “não era o melhor lugar para
isso”. Apesar de resistir, a cantora sobe ao palco com sua banda, momento no qual
começam a cantar “Conga”, provocando um sentimento de surpresa na plateia, que
logo se levanta e começa a ocupar o salão com danças. É interessante perceber que,
apesar do protagonismo da banda e da própria artista, a imagem recorrente dos
próprios instrumentos de percussão, por meio dos jogos de imagem, além dos
próprios solos do tambor, permitiu a reafirmação da narrativa da canção. Além da
presença dos próprios instrumentos da banda, em outros ambientes do cenário é
possível perceber imagens recortadas dos tambores.
A partir de observações iniciais, assim como da sistematização de alguns
aspectos, é possível perceber uma relação de continuidade entre canção e videoclipe.
Se por um lado a construção narrativa permite constatar tal aspecto, ela também
possibilita refletir sobre os processos que envolviam a difusão da música latina nos
Estados Unidos a partir dos anos 1970 e 1980, e suas interfaces com a música pop.
Neste contexto, como destaca Gonzalez (2016), a indústria cultural voltava-se a
chamada “world music”, intensificando seus segmentos que trabalhavam nos setores
internacionais buscando construir um aspecto cosmopolita, em especial naquilo que
era produzido nos EUA. Ao mesmo tempo, essa década foi marcada por um nova
onda de exilados cubanos que chegaram ao país, a partir da abertura dos portos de
Mariel em 1980, calculando-se a migração de mais de 120.000 pessoas (GOTT, 2006;
CHOMSKY, 2015). Estes dois processos, apesar de se referirem a dimensões
bastante distintas, estão diretamente relacionados a novas configurações
estadunidenses, em especial de suas indústrias culturais, e que vieram a provocar o
investimento e a expansão de artistas referenciais latinos no país. As próprias tensões
envolvidas nessas reconfigurações são representadas no videoclipe, e na canção, em
especial na menção aos ritmos latinos ou a dúvida se o espaço de um salão seria o
melhor lugar para o Miami Sound Machine se apresentar.
Essa análise, ainda preliminar, possibilita observar, do ponto de vista
metodológico, alguns aspectos possíveis com relação a análise sobre as canções e
os videoclipes de Gloria Estefan. Parte destas das análises sobre as canções, e o
próprio videoclipe destacado, estarão diretamente associadas ao material midiático.
No caso de “Conga”, por exemplo, para além da análise das produções em si, será
possível, por meio da vinculação entre mídia e música, problematizar a trajetória da
canção nos Estados Unidos, assim como sua circularidade e associações com outras
questões. Uma dimensão possível a ser explorada será compreender, para além da
sua divulgação, como as indústrias e as comunidades latinas significaram tal
produção, através das paradas musicais e informações sobre a programação das
rádios disponíveis na revista Billboard, assim como a resenha sobre a canção no
referido impresso e no The New York Times. A possibilidade de análise narrativa
conjunta deste material tem como potencialidade compreender as relações entre a
artista e o meio no qual estava inserida, aprendo vias para discutir sua trajetória do
ponto de vista relacional e das representações. Deste modo, mais do que sua
trajetória, essa articulação metodológica demonstra a complexidade dos sujeitos e
artistas nas indústrias culturais, atentando para sua fluidez e relações temporais na
constituição de suas carreiras.
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