tirinha como fazer

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    ANALISANDO E CONSTRUINDO TIRINHAS DE JORNAL: UMA PROPOSTA DETRABALHO EM AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

    Belisa dos Santos1 (PPGE/FURB)

    [email protected] Luise Steuck2 (Colégio Sinodal Doutor Blumenau)[email protected]

    Ao partir do princípio de que a linguagem é social, é interação consigo mesmo e com osoutros, trabalhamos no sentido de privilegiar esta concepção durante as aulas de LínguaPortuguesa, deixando de lado a prática tradicional de ensino de nomenclaturas gramaticaispara dar espaço ao uso cotidiano da língua através dos gêneros discursivos. Para isso,construímos, em 2006, uma proposta de sequência didática. Inicialmente, o objetivo eraapresentar uma sequência de acordo com os módulos propostos por Dolz e Schneuwly (2004),fazendo antes uma conceituação do gênero tirinhas de jornal. Agora, neste artigo,pretendemos expandir e aprofundar esse trabalho e tratar do papel dessa proposta em aulas deLíngua Portuguesa. Para isso, ampliamos o aporte teórico: a fim de discutir questões sobregêneros discursivos, embasamo-nos na teoria do Círculo de Bakhtin; referente às sequênciasdidáticas, continuamos apoiando-nos nos conceitos de Dolz e Schneuwly; e para abordar aanálise de textos em sala de aula, trazemos as discussões de Antunes e Geraldi. Em seguida,apresentamos uma explanação sobre tirinhas de jornal e os aspectos linguísticos presentesneste gênero. Posteriormente, introduzimos a proposta da sequência didática, levantandoquestões e relacionando-as ao que foi exposto no referencial teórico. Finalmente, tecemosnossas considerações finais, propondo uma reflexão quanto ao trabalho com os gênerosdiscursivos em sala de aula e, especificamente, com os gêneros jornalísticos. Dessa maneira,pretendemos contribuir com professores de Língua Portuguesa e suas práticas, não somenteoferecendo uma proposta de atividade, mas também proporcionando um momento de debate eproblematização acerca das atividades com diferentes textos durante as aulas.

    PALAVRAS-CHAVE:Sequência didática. Análise de textos. Tirinhas de jornal.

    1. INTRODUÇÃO

    A concepção de linguagem como forma de interação pauta as atuais diretrizes e

    propostas para aulas de Língua Portuguesa. Dessa forma, o trabalho com gêneros discursivosganha destaque e passa a ser o objeto principal dessas aulas. Ao invés de iniciar o estudo dalíngua em unidades gramaticais e partir para seus usos no texto, de forma descontextualizada,inicia-se o estudo a partir do texto para, então, depreender-se os recursos lexicais utilizados eseus efeitos de sentido. Porém, para utilizá-lo nesse processo, dentro dessa perspectiva deinteração, é necessário que se tenha um discernimento do que pode ser chamado de texto.

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    A princípio, entendia-se como texto apenas aqueles que se inseriam na modalidadede narração, dissertação ou descrição. Aos poucos essa ideia foi sendo discutida e estudada eabriu-se espaço para a noção de gênero. Ou seja, o conceito de gênero aborda de uma maneira

    melhor textos de diferentes esferas. Assim, derruba-se a noção de tipologia textual, queabarcava apenas alguns tipos de textos, não considerando outras produções escritas/orais. Essanova noção leva em consideração os diversos textos que circulam socialmente e que sãoorganizados em diferentes esferas: literária, escolar, televisiva, jornalística, política, etc.

    Para a noção do gênero possui-se também uma maneira diferente de ensino-aprendizagem. Entende-se que o ensino de um determinado gênero se dá em um processo: asequência didática (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004). De acordo com os autores, “uma

    sequência didática é um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática,em torno de um gênero textual e escrito” (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 97).

    O intuito dessa sequência é preparar os alunos para entrar em contato com um gêneroespecífico. Eles devem poder manejar diversos textos de um mesmo gênero para observar ascaracterísticas mais marcantes. Depreendendo essas características, é possível estabelecer umesquema de regras importantes para a construção do texto. Entretanto, todo o processo é feitode maneira delongada, elaborado a partir de diversos módulos até a construção final. Nesses

    módulos, são abordadas particularidades linguísticas importantes para a leitura e a escrita dogênero – a análise do texto.

    Seguindo essa perspectiva e adotando a concepção de linguagem como interação,construímos, em 2006, uma proposta de sequência didática com o gênero tiras jornalísticas.Inicialmente, o objetivo era apresentar uma sequência de acordo com os módulos propostospor Dolz e Schneuwly (2004), fazendo antes uma conceituação do gênero tiras de jornal.Agora, neste artigo, pretendemos expandir e aprofundar esse trabalho e tratar do papel dessa

    proposta em aulas de Língua Portuguesa. Para isso, ampliamos o aporte teórico: a fim dediscutir questões sobre gêneros discursivos, embasamo-nos na teoria do Círculo de Bakhtin;referente às sequências didáticas, continuamos apoiando-nos nos conceitos de Dolz eSchneuwly; e para abordar a análise de textos em sala de aula, trazemos as discussões deAntunes e Geraldi. Em seguida, apresentamos uma explanação sobre tirinhas de jornal e osaspectos linguísticos presentes neste gênero. Posteriormente, introduzimos a proposta dasequência didática, levantando questões e relacionando-as ao que foi exposto no referencialteórico. Finalmente, tecemos nossas considerações finais, propondo uma reflexão quanto aotrabalho com os gêneros discursivos em sala de aula e, especificamente, com os gêneros jornalísticos. Dessa maneira, pretendemos contribuir com professores de Língua Portuguesa e

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    suas práticas, não somente oferecendo uma proposta de atividade, mas tambémproporcionando um momento de debate e problematização acerca das atividades com osgêneros discursivos durante as aulas.

    2. COMPREENDENDO AS QUESTÕES DE GÊNEROS DISCURSIVOS,SEQUÊNCIA DIDÁTICA E ANÁLISE DE TEXTOS: CONCEITOS QUE SEMISTURAM E SE COMPLEMENTAM

    O conceito dos gêneros discursivos, do qual fazemos uso neste artigo, foi elaboradopor Bakhtin (2011), estudioso da linguagem e da literatura. O autor e seu círculo, composto

    por intelectuais de diferentes áreas, concebiam a linguagem como um fenômeno social, deinteração, o que ia de encontro às teorias do objetivismo abstrato (em que o que prevalece é anorma, tornando a língua estável e acabada) e subjetivismo individualista (ato individual,apenas expressão do pensamento), hoje discutidas como as diferentes concepções delinguagem: linguagem como instrumento de comunicação e linguagem como expressão dopensamento (GERALDI, 1984, p. 43). Nesse sentido, entendiam que a linguagem se dava pormeio de enunciados (verbais e não verbais) e que, por estes serem efetuados no meio social,

    não podiam ser neutros, uma vez que eram orientados sempre a um interlocutor, com umpropósito, numa situação específica. Ou seja, todo enunciado expressa uma ideologia, umaposição avaliativa, é sempre uma resposta a outro enunciado. Mesmo que um sujeito falesozinho, consigo mesmo, seu enunciado é sempre uma resposta a seus enunciados anteriores ede outras pessoas. Além disso, é importante lembrar que os enunciados compreendem overbal e o não verbal: uma frase como “Não gostei do que você fez.” expressa uma posiçãoavaliativa, mas da mesma forma um olhar de reprovação. Se dentro de uma situação social

    específica um gesto, apenas uma palavra, uma imagem expressa uma posição, tem um efeitode sentido, constitui-se então como enunciado. Essas posições avaliativas do sujeito refletemas ideologias das esferas em que circula, tais como a familiar, religiosa, escolar, do trabalho,etc.

    Todavia, em situações específicas, os enunciados de diferentes pessoas tornam-sesemelhantes. Conforme Bakhtin (2011, p. 262, grifos do autor): “cada enunciado particular éindividual, mas cada campo de utilização da língua elabora seustipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamosgêneros do discurso .”. Assim, uma carta, por exemplo,segue um padrão, um modelo, mas relativamente estável, pois cada sujeito escreve-a demaneira diferente. São essestipos relativamente estáveis que nos fazem reconhecer uma

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    receita, uma notícia, que estamos assistindo a uma aula, que estamos ouvindo um debate, etc.Alguns deles, mais formais, são mais padronizados, como os da esfera escolar, acadêmica, jurídica, do trabalho. Outros, ligados a situações cotidianas menos elaboradas, são mais

    flexíveis e propícios ao estilo individual do falante.Por serem relativamente estáveis, cada gênero possui um modelo, composto por três

    dimensões: temática, estilística e composicional. A temática diz respeito ao conteúdo; aestilística, à “seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua”(BAKHTIN, 2011, p. 261); e a composicional diz respeito à forma, à estrutura. Essasdimensões devem ser exploradas ao trabalhar os gêneros discursivos nas aulas de LínguaPortuguesa, e essa é a proposta das sequências didáticas, que têm “a finalidade de ajudar o

    aluno a dominar melhorum gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de umamaneira mais adequada numa dada situação de comunicação.” (DOLZ; NOVERRAZ;SCHNEUWLY, 2004, p. 97, grifo dos autores).

    Conforme já citado na introdução deste artigo, a sequência didática é um conjunto deatividades sistemáticas para o ensino de um gênero oral ou escrito. Dolz, Noverraz eSchneuwly (2004, p. 98) propõem um esquema com as seguintes etapas: apresentação dasituação, produção inicial, módulos (quantos forem necessários) e produção final. Na

    apresentação da situação, o professor detalha o que acontecerá ao final da sequência, quais osobjetivos ao final do trabalho; na produção inicial, os alunos elaboram uma primeira produçãodo gênero estudado, que servirá como um diagnóstico para o professor e para o aluno; nosmódulos, o professor desenvolve as atividades com base no diagnóstico feito, trabalhando ascaracterísticas do gênero de forma sistemática e aprofundada; na produção final, os alunosproduzem novamente um texto, mas agora com base nos aspectos estudados, e o professorpode avaliar o progresso da turma. Entretanto, como esclarecem os autores:

    [...] para adaptar o trabalho à realidade de sua turma, o professor deverá, por vezes,criar outras atividades ou modificar os textos de referência utilizados. Por outrolado, durante o tempo consagrado à sequência, o professor deverá levar em conta osfenômenos de desencorajamento que poderão manifestar-se. Sobre esse ponto, pode-se lembrar que nem toda atividade de produção deve, forçosamente, dar lugar a umaaprendizagem tão sistemática quanto a que se tem em vista nas sequências, e quedeve ser deixado um espaço para as atividades mais informais e menos exigentes emtermos de tempo. (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 128)

    A proposta da sequência, portanto, é uma alternativa para o trabalho com os gêneros

    em sala de aula, e não tem de ser seguida de maneira rígida e inalterável. Cabe ao professor,

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    de acordo com o que é observado na turma, adaptar esses passos e as atividades, a fim defacilitar esse processo para os alunos.

    Porém, apesar desse caráter flexível das sequências, certas questões devem ser

    levadas em consideração no trabalho com os gêneros e não podem ser deixadas de lado. Setrabalhamos na perspectiva de linguagem como interação e pautamos nossas aulas a partir doensino dos gêneros, entendemos que o aluno deve tornar-se apto a usar a língua comadequação em diferentes situações, além de compreender o que lê e ouve de forma crítica.Mais do que “escrever tudo corretamente”, é necessário compreender por que se escreve dedeterminada maneira em um gênero específico, por que se utilizam certos recursosgramaticais e outros não. Na sequência didática, cabe ao professor fazer com que o aluno

    depreenda as regularidades em vez de simplesmente passar regras de um conteúdo gramatical.Dessa forma, contextualiza-se a gramática à situação de produção. Assim, uma prática quedeve ser contemplada durante as sequências didáticas é a análise linguística. Segundo Antunes(2010, p. 18), “uma análise de textos, na perspectiva mais ampla, será tanto mais pertinentequanto mais aliar o linguístico às situações onde as interações acontecem.”. Se a linguagem ésocial, dirige-se a um interlocutor com um propósito, expressando ideologias e posiçõesavaliativas, o aluno tem de ser instigado a perceber isso nos textos e como isso se constrói

    com os recursos lexicais e gramaticais. Mais do que perceber classes gramaticais isoladas, eleprecisa compreender o global: qual é o suporte daquele gênero, em que esfera ele circula,quem são seus interlocutores, enfim, todo o contexto que envolve o texto. Além disso,

    a comparação de diferentes formas de construir textos é que leva à compreensão daexistência de múltiplas configurações textuais, de variedades linguísticas e, noconfronto destas, à aprendizagem de novas configurações ou ao processo deconstrução de nova variedade padrão. (GERALDI, 1993, p. 217)

    Logo, um dos módulos essenciais de uma sequência didática é a análise dos textospelos alunos, relacionando todo o contexto às regularidades e escolhas lexicais e gramaticais,com o intuito de aprimorar os conhecimentos do aluno sobre a língua, de formacontextualizada, e de que os utilize adequadamente no cotidiano, na interação com os outrosem diferentes situações. “A finalidade da análise, portanto, é promover esse estado depergunta, de busca; esse querer ver, mais por dentro, a engrenagem de funcionamento dalinguagem.” (ANTUNES, 2010, p. 52).

    Pensando nisso, passamos, a seguir, à conceituação do gênero que exploramos naproposta de sequência didática deste artigo e às suas características, pois são esses aspectos

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    que serão retomados posteriormente nas atividades da sequência e que podem ser exploradosna análise linguística do gênero.

    3. AS TIRINHAS DE JORNAL: CONCEITO E CARACTERÍSTICAS

    Inicialmente, atenta-se ao fato de que toda tira é uma história em quadrinho, mas oinverso nem sempre é verdadeiro. Assim, traçaremos aqui um breve histórico das histórias emquadrinhos, para depois contemplar a questão das tiras jornalísticas. Sabe-se que osquadrinhos são um conjunto de signos, ou seja, em sua construção tem-se a palavra queinterage com uma imagem, colocadas juntas em um espaço delimitado.

    As histórias em quadrinhos têm sua origem na civilização europeia com osurgimento das técnicas de reprodução gráfica. No entanto, foi através de grandes empresas jornalísticas dos Estados Unidos, ao final do século XIX, que os quadrinhos começaram aobter destaque, ganhando uma expressão individual.

    Despontando inicialmente nas páginas dominicais dos jornais norte-americanos evoltados para as populações de migrantes, os quadrinhos eram predominantementecômicos, com desenhos satíricos e personagens. Alguns anos depois, passaram a terpublicação diária nos jornais – as célebres “tiras” –, e diversificar suas temáticas,abrindo espaços para histórias que enfocavam núcleos familiares, animaisantropomorfizados e protagonistas femininas, embora ainda conservando os traçosestilizados e o enfoque predominantemente cômico. (RAMA; VERGUEIRO, 2004,p. 10)

    Dessa forma, entendendo o jornal como meio de comunicação popular, podemosobservar que os quadrinhos são um gênero voltado para um grande público. Assim, “desde oinício, sua característica foi a de comunicação de massa” (LUYTEN, 1987, p. 9). Éimportante entender ainda que, desde o seu surgimento, as histórias em quadrinhos vêm

    atingir um tema cotidiano, justamente para não se distanciar dessa questão popular, brincandocom situações reais, possíveis de acontecer.

    Com isso, verificamos que o momento sócio-histórico vivido reflete-se diretamentenesse gênero. Na década de 50, por exemplo, Charles Schultz cria seus quadrinhos, os Peanutsou A Turma do Charlie Brown, que por muito tempo apareceram como tiras em diversos jornais. Esses tipos de quadrinhos, orientados por uma filosofia existencialista (LUYTEN,1984, p. 13), são os chamados quadrinhos pensantes, pois surgem em uma época

    questionando a sociedade sobre aspectos filosóficos e sóciopsicológicos. Um outro exemploainda é quanto ao surgimento das heroínas, na década de 60; acontecimento que vem como

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    reflexo dos movimentos feministas do momento (LUYTEN, 1984, p. 13). Essa questão socialfica ainda mais evidente nas tiras jornalísticas, já que buscam atingir as massas, desde asesferas mais populares até as mais sofisticadas, ou seja, atingindo um grupo maior do que o

    atingido pelas histórias em quadrinhos. Dessa maneira, em um espaço menor, as tiras, muitasvezes, causam um impacto maior, justamente devido a todo seu aspecto discursivo e a seusuporte, o jornal, que tem maior circulação que revistas de quadrinhos.

    Alguns personagens de tiras apresentam-se explicitamente como sendo,politicamente, de esquerda ou de direita. Outros mostram claramente suas posições dentro desituações familiares e/ou de trabalho. Pode haver a constituição de diversas situações nas tiras.As histórias de família, por exemplo, podem ter início em uma tira e perpassar por outras, mas

    as tiras, individualmente, têm um início e um fim bem determinados. O que continua são ascaracterísticas dos personagens determinadas por suas formações ideológicas.

    Outra questão particular das tiras em quadrinho é que um leitor pode perfeitamenteentender o conteúdo de uma tira isolada, ou pode ler várias de um mesmo personagem, paraconstruir um perfil deste. “As tiras de jornal, por sua própria característica, precisam trabalhartemas específicos em dois ou três quadrinhos, algumas vezes de forma isolada, em outrasinterligadas com tiras anteriores e posteriores” (RAMA; VERGUEIRO, 2004, p. 45).

    Além disso, as tiras em quadrinho possuem toda uma questão estilística. Ou seja,além de imagens e palavras estarem articuladas, há ainda uso de uma linguagem bastanteparticular. A palavra dos quadrinhos vem em um espaço específico: os balões. Sendo assim,diz-se que eles são a marca registrada desse gênero. Segundo Luyten (1984, p. 14), “o balãofoi a grande invenção das HQ. Como o próprio nome sugere, a sua forma assemelha-se comum apêndice ou delta. Dentro do círculo estão expressas as ideias da personagem: o que fala epensa. O conteúdo do balão é, em geral, de caráter verbal.”. É pertinente observar que existem

    diferentes tipos de balões que expressam diferentes sentidos: há balões para fala em voznormal, balões para pensamento, balões para fala de um narrador/participante externo, etc.Assim, o sentido se constrói não só pelas palavras, mas também pelos elementosextralinguísticos.

    Porém, algumas tiras podem conter apenas os personagens sem fala nenhuma, masnem por isso deixam produzir um efeito de sentido. Observa-se um exemplo, a seguir, emuma tira da Turma da Mônica: a situação é clara e o efeito de sentido também. Mais uma vez,percebemos que o sentido dá-se pelo enunciado como um todo, aspectos verbais e nãoverbais.

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    Tirinha 1 – Efeitos de sentido em tirinhas sem balões.

    Fonte: http://anjinhos.cocararaquara.com.br/wp-content/uploads/2012/05/TurmaMonica1.bmp. Acesso em05/09/2012.

    Atentamos ainda ao fato de que nos balões podem vir dispostas algumas imagens.Pode-se ter, por exemplo, a imagem de carneirinhos pulando uma cerca, produzindo a ideia deque o personagem está contando carneirinhos para tentar dormir. Pode-se ainda encontrar aimagem de uma lâmpada acesa que sugere ao leitor que aquele personagem teve uma ideiabrilhante. Quando um personagem faz uso de palavras de baixo calão, no balão aparecemcobras, caveiras e lagartos, para preservar os leitores infanto-juvenis. São diferentes

    estratégias semióticas de constituir sentidos dentro desse gênero. Essas imagens dentro debalões requerem o conhecimento do leitor, ou seja, a imagem que aparece nos balõesdemanda do leitor a depreensão de um outro significado de acordo com elementospreviamente conhecidos.

    Outra característica dos quadrinhos é o grande uso das onomatopeias. De acordo comCunha e Cintra (2001, p. 116), “são palavras imitativas, isto é, palavras que procuramreproduzir aproximadamente certos sons ou certos ruídos” por meio de símbolos alfabéticos.

    Na tira abaixo, da Turma do Charlie Brown, observamos a presença da onomatopeiaarf para representar o latido do cão. Recordamos aí que, como os quadrinhos dessa turma sãode origem norte-americana, a representação do som é feita de acordo com o que é conhecidopor lá. Isso porque “diferentes culturas representam os sons de acordo com o idioma utilizadopara a sua comunicação” (RAMA; VERGUEIRO, 2004, p. 62). No nosso caso, na línguaportuguesa, a representação do latido éau .

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    Tirinha 2 – Exemplo de onomatopeia.

    Fonte: http://tiras-snoopy.blogspot.com.br/2006/02/tira-original-de-21-fev-1959.html. Acesso em 05/09/2012.

    Apresentamos a seguir um quadro com algumas onomatopeias bastante utilizadas nastirinhas:

    Quadro 1 – Onomatopeias utilizadas em histórias em quadrinhos e tirinhas de jornal.Onomatopeia Significado nas HQ Tradução

    SLAM! Porta batendo Bater com força uma portaCRACK! Objeto partindo-se Quebrar; arrebentar; racharSNIFF! Fungar; cão farejando Aspirar audivelmente pelo

    narizSPLASH! Pessoa ou objeto caindo na

    águaEspirrar; esguichar

    GULP! Engasgo Tragar; engolir; devorar;sufocar

    CRASH! Choque Ruído elétricoFonte: LUYTEN, 1987, p. 14.

    O que se percebe é que muitas das onomatopeias utilizadas na nossa língua “[...] jáestão dotadas de significado em inglês, quando são transportadas para outras línguas, ficamapenas com uma função de signos visuais, isto é, passam a ser convenção na linguagem das

    HQ.” (LUYTEN, 1987, p. 14).Para sugerir movimentos, as histórias em quadrinhos desenham a trajetória dos

    objetos, ou a imagem aparece duplicada, sobreposta, para dar a ideia de tremor. Abaixo, emuma tira do Radicci, percebemos esse artefato estilístico para dar movimento ao personagem eaos objetos que lhe são atirados.

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    Tirinha 3 – Efeitos de movimento.

    Fonte: http://www.blogdomatheus.com/2012/08/30-tirinhas-radicci.html. Acesso em 05/09/2012.

    Além disso, os personagens, para cada momento, podem ter uma expressão facialdiferente. Por exemplo, o queixo caído e os cabelos arrepiados exprimem a sensação de medo,susto; já a mão no queixo ou a sobrancelha levantada dão a ideia de dúvida. Esse aspecto nãoverbal, como exemplificado na Tirinha 1, juntamente com as outras característicasobservadas, contribui para o entendimento da tirinha como um todo.

    Compreendemos, assim, que os quadrinhos fazem uso de diversos recursos para suaconstrução final e para dar ao leitor uma sensação de realidade, dando vida e sentidos aos

    personagens. Ainda, notamos que os efeitos de sentido do texto, essenciais para acompreensão do gênero, dão-se pelos enunciados verbais e não verbais, e que é preciso umconhecimento prévio e uma leitura atenciosa para que haja um entendimento, uma leituraativa e crítica. Portanto, faz-se necessário explorar todas essas características do gênero comos alunos em sala de aula. Partimos, então, para a proposta da sequência didática e dasatividades que exploram os aspectos apresentados nesta seção.

    4. OS ALUNOS EM AÇÃO: UMA PROPOSTA DE SEQUÊNCIA DIDÁTICA PARA ACONSTRUÇÃO DE TIRINHAS EM SALA DE AULA

    Com a discussão dos aspectos teóricos e a contextualização do gênero, partimosagora para a sequência didática que elaboramos em 2006. A sequência foi preparada deacordo com o esquema de Dolz e Schneuwly (2004), ou seja, organizada em módulos, queserão aqui apresentados. Em cada um deles, levantaremos questões e relações com a teoria

    abordada neste artigo, a fim de oferecer contribuições práticas, mas também teóricas, ecoerentes com as propostas atuais para o ensino de Língua Portuguesa.

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    Esta sequência tem como objetivos: introduzir os alunos no universo dos gêneros;verificar qual o conhecimento do gênero tirinhas que já possuem; inseri-los no contexto donovo gênero estudado; ajudá-los a dominar melhor o gênero tirinha; construir com os alunos

    uma produção do gênero estudado.

    4.1 Módulo 1: o contato inicial com o gênero

    Neste módulo, tem-se o objetivo de colocar os aprendizes em contato com o gênero,observando, inclusive, o local que as tiras ocupam dentro do jornal. Para tanto, deverãocircular pela sala jornais variados contendo as tirinhas, trazidos pelos alunos ou pelos

    mediadores.É importante aqui trazer o gênero dentro de seu suporte, o jornal, pois isso pode ser

    trabalhado com os alunos posteriormente. Retirar a tira do jornal e entregá-la solta faz comque grande parte do efeito de sentido se perca, pois se perde a referência da esfera em queaquele jornal é produzido, a data em que a tira foi veiculada, qual é o perfil do leitor, etc.Como afirma Bakhtin (2010, p. 116, grifo do autor): “Qualquer que seja o aspecto daexpressão-enunciação considerado, ele será determinado pelas condições reais da enunciação

    em questão, isto é, antes de tudo pela situação social mais imediata. ”.

    4.2 Módulo 2: depreendendo características do gênero

    Nesse momento, cada aluno deverá escolher um mínimo de cinco tiras jornalísticaspara observar alguns itens referentes ao conteúdo e à formatação. Cada aprendiz deve fazer assuas anotações, que serão socializadas posteriormente. Seguem algumas sugestões de itens

    que podem ser observados:a) A expressão física dos personagens: é sempre a mesma, muda, recursosutilizados, etc.

    b) Quantos quadrinhos compõem uma tirinha?c) Há uma quantidade definida de balões nos quadrinhos? Todos eles são iguais?d) Há início e fim bem delimitados na história desenvolvida?e) O autor se fez entender nesse pequeno espaço?f) Sobre o que falam as tirinhas? Tirinhas de diferentes autores e de diferentes

    jornais têm temas em comum?g) Há identificação do autor? Onde?

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    h) Todas as tirinhas possuem falas de personagens? Se não, aquelas sem fala têmsentido?

    Neste módulo entram as questões de análise linguística, em que o aluno é levado a

    depreender as regularidades do texto e de como elas criam os efeitos de sentido dentro dogênero. “Incluem-se nas atividades de análise linguística as reflexões sobre as estratégias dodizer, o conjunto historicamente constituído de configurações textuais.” (GERALDI, 1993, p.192).

    4.3 Módulo 3: discutindo as observações e elaborando um esquema do gênero

    As observações feitas pelos alunos no módulo anterior são agora discutidas pelogrande grupo. Após a discussão, busca-se elaborar um quadro contendo as regras básicas paraa confecção e construção de tiras jornalísticas.

    Com essas observações, elabora-se um panorama, de acordo com as três dimensõesdo gênero (conforme citado na seção 2 deste artigo): qual é o conteúdo das tirinhas, se elaspossuem uma estrutura definida e como é a linguagem nesse tipo de texto.

    4.4 Módulo 4: explorando as figuras de linguagem

    Nesse módulo, far-se-á uma análise sobre as onomatopeias. Para isso, é necessárioque os alunos entrem em contato com tiras que utilizem esse recurso. Essas tiras podem serescolhidas pelo professor previamente, a fim de facilitar o processo. Então, discute-se com osalunos sobre essas expressões encontradas e o que elas representam, para que eles mesmosdepreendam que são representações de sons.

    Depois de compreendido, é possível pedir aos alunos para que observem arecorrência desse recurso nas tiras e o efeito que produzem. Pode-se, também, utilizar tiras deoutros países, traduzidas, como as da Mafalda ou dos Peanuts, para que os alunos percebamcomo os sons são percebidos e representados de maneiras diferentes em diversos lugares domundo.

    Nesse momento, explora-se um conteúdo gramatical, porém dentro de uma situaçãoreal de uso. Assim, o aluno, além de depreender o conceito, passa a saber usá-loadequadamente quando for necessário. De acordo com Antunes (2010, p. 46):

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    De fato, somente no texto é possível encontrar justificativa relevante para, porexemplo, a escolha dos artigos (definido e indefinido), das expressões dêiticas (depessoa, tempo e lugar), para a compreensão de relações semânticas entre frasesencadeadas sem a presença de conectivos explícitos; para as propriedadesreferenciais de substantivos e pronomes, sem falar nas muitas funções textuais ediscursivas da repetição de uma palavra ou da substituição de uma por outraequivalente.

    4.5 Módulo 5: análise linguística das tirinhas

    Esse módulo trabalhará com a questão da linguagem. Os alunos são provocados aanalisar a linguagem que é utilizada nas tirinhas (se é formal ou mais próxima da falacotidiana), observando assim verbos e pronomes utilizados, como também expressões

    populares ou linguagem típica de uma região.Mais uma vez, o módulo dá ênfase à análise linguística, agora voltada à dimensão

    estilística do gênero, observando quem enuncia, de onde enuncia, qual é o gênero e como issoexerce influência na linguagem, que nem sempre funciona conforme as regras da gramáticanormativa.

    4.6 Módulo 6: observando os personagens, aqueles que enunciam

    Nesse módulo far-se-á um trabalho com os personagens. Utilizar-se-á, para isso, o jornal local mais lido pela turma, ou de mais fácil acesso. Com alguns jornais em mãos,escolhem-se as tiras dos personagens mais frequentes naqueles jornais. Feita essa seleção, osalunos têm de elaborar um perfil do personagem escolhido, atentando ao fato de que cada tirapossui um início e fim, mas que a construção do personagem é feita ao longo do processo.

    Assim como no módulo anterior, aqui são abordados aspectos extralinguísticos quese relacionam com o enunciado: de que esfera esse personagem fala? Quais são suasideologias? Sua linguagem adequa-se a essas questões? Desse modo, instiga-se o aluno apensar criticamente sobre o texto que está lendo, percebendo que nossos discursos sempreexpressam uma posição avaliativa.

    4.7 Módulo 7: tornando-se autor do gênero tirinha de jornal

    A fim de aplicar todos os conhecimentos adquiridos durante a aplicação dessasequência didática, pedir-se-á aos aprendizes que produzam suas próprias tirinhas. Para isso, épossível solicitar que eles construam as tiras sobre um episódio que ocorreu em classe ou na

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    própria escola. Os alunos, individualmente ou em duplas, podem criar seu própriopersonagem, desenhando-o ou recortando de tiras já utilizadas, deixando livre a opção paradesenhar ou não, visto que nem todos se sentem confortáveis com isso. Essas tiras, ao final do

    trabalho, podem ser expostas na escola, publicadas no jornal da escola (se houver) ouencadernadas e transformadas em livro que pode ser acessado por outros alunos na biblioteca.

    Nesse momento, é importante que a produção do aluno seja lida por outros, não sópelo professor, pois o texto é um objeto de interação social e, para produzi-lo, é preciso que“a) se tenha o que dizer; b) se tenha uma razão para dizer o que se tem a dizer; c) se tenhapara quem dizer o que se tem a dizer [...]” (GERALDI, 1993, p. 137). Isolar a produção doaluno à avaliação do professor é caminhar contra a perspectiva de linguagem como interação,

    que se dá no social.Do mesmo modo, pode-se fazer um trabalho interdisciplinar com os professores de

    Artes, por exemplo, a fim de mostrar que a linguagem é utilizada – e é primordial – em todasas áreas do conhecimento e não é somente um objeto de estudo das aulas de LínguaPortuguesa.

    5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

    A partir dessa proposta de sequência didática com o gênero tiras de jornal, podemosampliar a reflexão sobre o papel dessa proposta nas aulas de Língua Portuguesa. Conformemencionamos durante todo o artigo, partimos da concepção de linguagem como forma deinteração, como fenômeno social. Logo, o aprendizado de Língua Portuguesa deve estarrelacionado às interações cotidianas do aluno, aos usos reais da língua, nas mais diversassituações. O ensino deve pautar-se nos usos efetivos da linguagem pelos sujeitos, em vez de

    pautar-se na metalinguagem da gramática normativa, que será apenas decorada e, muitasvezes, esquecida.Além disso, ao interagir com diferentes textos, o aluno tem de estar apto a

    compreendê-lo criticamente, lendo as entrelinhas do que está escrito, observando os aspectosextralinguísticos que interferem no sentido. Ao trabalharmos com o texto jornalístico em salade aula – como é o caso da proposta deste artigo –, outras leituras podem (e devem) ser feitas.Ao ler uma tira isolada, fora de seu suporte, perdem-se as implicações políticas e sociais dotexto que, como vimos, não é escrito por acaso, não possui enunciados neutros. Essesenunciados, que possuem uma posição axiológica, estabelecem relação com outros gênerospresentes no mesmo jornal: a tira pode tratar de um tema polêmico que ocorreu naquela

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    semana e que foi tratado em uma notícia nas primeiras páginas, no editorial, nas cartas doleitor, etc. A análise dos textos, portanto, deve permitir que o aluno depreenda essas relações eque chegue às suas conclusões, de maneira individual e crítica. O ensino da língua deve ser

    emancipador, deve estabelecer uma relação com o cotidiano do aluno, com o seu papel social.Nesse sentido, entendemos que o trabalho com os gêneros discursivos dentro da

    proposta da sequência didática é uma boa maneira de começarmos. Aos poucos, com passospequenos, caminhando junto com os alunos, podemos torná-los usuários competentes ecríticos da língua; consequentemente, cidadãos críticos.

    Lembramos que toda sequência didática é uma proposta de trabalho, e que pode seradaptada de acordo com as necessidades do professor e da turma. Esperamos que a sequência

    aqui apresentada seja mais uma alternativa para a sala de aula, e que as discussões aqui feitaslevantem reflexões não só nesse momento, mas em cada sequência didática elaborada.

    REFERÊNCIAS

    ANTUNES, Irandé.Análise de textos: fundamentos e práticas. São Paulo: Parábola Editorial,2010.

    BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail.Estética da criaçãoverbal. 6. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.

    BAKHTIN, Mikhail (VOLOCHÍNOV, V. N.).Marxismo e filosofia da linguagem. 14. ed.São Paulo: Hucitec, 2010.

    CUNHA, Celso; CINTRA, Luís F. Lindley.Nova gramática do português contemporâneo.3. ed. rev. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

    DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernard.Gêneros orais e escritos na escola. Campinas-SP: Mercado de Letras, 2004.

    GERALDI, João Wanderlei. Concepções de linguagem e ensino de português. In: GERALDI,João Wanderlei (org.).O texto na sala de aula: leitura e produção. 2. ed. Cascavel: Assoeste,1984.

    _____.Portos de passagem. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

    LUYTEN, Sonia Maria Bibe.Histórias em quadrinhos: leitura crítica. São Paulo: EdiçõesPaulinas, 1984.

    _____.O que é história em quadrinhos. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

    RAMA, Ângela; VERGUEIRO, Waldomiro (org.).Como usar as histórias em quadrinhosna sala de aula. São Paulo: Contexto, 2004.