tolerancia e emancipacao
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TOLERNCIA E EMANCIPAO:
O TOLERANTISMO NO DEBATE TERICO E NA EXPERINCIA
HISTRICA MODERNA
Rodrigo Medina Zagni
... Tcita e muda, mas gloriosa vitria da parte inferior da alma, chamada irascvel.
Quem assim vence, ainda que no saia a campo, no deixa de vencer inimigo, porque
se vence a si mesmo, que do homem o maior inimigo.
Rafael Bluteau
O termo tolerncia foi cunhado no ambiente europeu do Humanismo do
Renascimento, descrito no ano de 1502 quando apareceu em forma de verbete no
Dicionrio em oito lnguas de Ambrsio Calepino. Sua etimologia revela as matrizes
latinas tolerare e tollere, cujo radical comum, tol, equivale s aes de erguer ou
suportar, motivo pelo qual deu origem, por sua vez, unidade de medida de peso que
refere a capacidade ou tolerncia de suportar determinada carga. Tolerar significa,
portanto, suportar pacientemente uma condio adversa por determinado tempo; no
referindo contudo a aceitao plena dessa condio essencialmente indesejvel.1
A sociedade que produziu este conceito obedecia a uma dupla determinao;
primeiramente, a cosmologia crist cujo teocentrismo levara s converses forosas de
pagos e perseguio s heresias e que tentara promover a unidade da f pela violncia
do movimento cruzadstico entre os sculos XI e XIII; noutro sentido, a conquista da
Amrica que descortinara uma outra metade do mundo, a partir de 1492, impusera
Europa no apenas o autctone gravemente distinto daquilo que constituam suas
referncias culturais e tambm biotpicas, mas o espelho do Novo Mundo a partir do
qual a Europa pde ver a si e revisitar seu conceito de civilizao2, face a violncia
ensejada pela conquista e pela colonizao da Amrica. O humanismo, afirmado entre
Docente do curso de Relaes Internacionais da Universidade Federal de So Paulo e coordenador do
Grupo de Pesquisa Conflitos armados, massacres e genocdios na era contempornea (UNIFESP/CNPq). 1 Cf.: AURLIO, Diogo Pires; Tolerncia/Intolerncia; in: ROMANO, Roggerio (dir.). Enciclopdia
Einaudi 22. Poltica/Intolerncia. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 2010, p. 179. 2 Deste esforo, destacam-se as obras de MORE, Thomas. Utopia. So Paulo: Martins Fontes, 1999;
MONTAIGNE, Michel Eyquem de; Dos canibais; in: MONTAIGNE, Michel Eyquem de. Ensaios. Coleo Os Pensadores. So Paulo: Nova Cultural, 2001; e LA BOTIE, Etienne de. Discurso da
servido voluntria. So Paulo: Brasiliense, 1999, entre outros.
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os sc. XIV e XVI tentou a homogeneizao, seja no mbito eclesistico da renovattio,
seja em termos laicos, por meios no violentos e buscando aquilo que haveria de
comum em mltiplas conscincias.
Esta primeira estratgia do humanismo inscreveu os esforos de Nicolau de Cusa
nos tratados De docta ignorantia, de 1440, e De Pace Fidei, de 1453, dedicados a
identificar na verdade crist elementos universalmente assimilveis a outras
cosmovises religiosas. tambm o que distingue o pensamento neoplatonista de
Giovanni Pico della Mirandola, nos tratados De ente et uno, de 1480, e Conclusiones
philosophicae, cabalisticae et theologicae, de 1486; ainda de Marclio Ficino, filsofo
florentino, na obra Theologia platonica de immortalitate animorum, de 1491. Mas
marca sobretudo o pensamento de Thomas More no Dilogo contra as heresias, na
Splica das Almas, no Tratado sobre a Paixo de Cristo, na Expositio Passionis,
no Tratado para receber o Corpo de Nosso Senhor e na Piedosa Instruo; e, por
fim, de Erasmo de Rotterdam, essencialmente no Manual do cavaleiro cristo3, escrito
entre 1499 e 1501 na forma do Enquiridion, uma sntese do humanismo cristo que
acabou editada no sculo XVI e difundiu-se rapidamente provocando uma invaso
erasmiana na Europa.
O rompimento com uma cosmoviso teocentrista, datada do passado medieval,
anunciou uma era de antropocentrismo na qual o Homem fora elevado a uma plataforma
superior quelas em que eram mantidas as religies positivadas e cujas Escrituras
detinham o peso de Livro da Lei.
O sc. XVII, que dera luz ao racionalismo de Descartes e de Leibniz, com a
publicao das teses de Espinosa, em 1670, no Tratado teolgico-poltico, identificou
a coexistncia conflituosa de verdades e crenas auto excludentes, provenientes do
Estado e indistintas da religio, opondo-se a este tipo de violncia por tratar-se ainda do
cerne dos conflitos que se avolumavam no ambiente europeu ainda ressentido da Guerra
dos Trinta Anos (1618-1648), que prefigurara a maior dentre todas as guerras de
religio sangradas no ambiente europeu e em um perodo notadamente pr-
revolucionrio. Para Espinosa, a funo do Estado seria a de defender a liberdade
individual e no legislar sobre verdades universais, isso porque o soberano, tanto quanto
seus sditos, estaria obrigado lei da natureza que imporia a tolerncia universal por
3 ROTTERDAM, Erasmo de. Enquiridion. Manual del caballero cristiano. Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos, 1995.
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meio da liberdade de opinio4. Imbudo da tarefa humanista de estabelecer aquilo que h
de universal nos dogmas religiosos constitutivos do mosaico de realidades europeias,
estabeleceu no mesmo tratado os sete dogmas da f, presentes nos livros sagrados de
toda e qualquer religio letrada, a saber: ... existe um ser supremo que ama a justia e a
caridade, ao qual, para ser salvos, todos tm de obedecer e adorar, cultivando a justia
e a caridade para com o prximo5.
Essas tentativas conciliatrias e que levariam as doutrinas religiosas a cederem
em nome de uma plataforma comum de impossvel composio, excluiria das religies
seus prprios dogmas com o perigo de descaracteriz-las completamente, revelando o
intento como impraticvel. Tratava-se de uma utopia que mascarava, em ltima
instncia, a violncia da homogeneizao doutrinal.
O sc. XVII mesmo encontrou uma sada cosmopoltica para este pano de fundo
utpico e isso se deu logo aps a Guerra dos Trinta Anos, considerada a ltima das
guerras religiosas europeias e que, ao seu trmino, quando lavrado o Tratado de
Vesteflia, ao inaugurar o moderno sistema de Estados o fez no marco da construo da
prpria ordem ocidental moderna na qual a razo de Estado se sobreps aos princpios
religiosos medievais, fincados na soberania universal do Papado. No mbito religioso, a
Paz de Vesteflia foi responsvel, nos Estados germnicos devastados pelas trs dcadas
de guerra civil, pelo estabelecimento de uma base federativa com pluralidade religiosa.
Dentre as causas que levaram a Europa a sangrar a mais horrenda de suas
guerras, segundo Geoffrey Parker comparvel apenas s guerras mundiais na primeira
metade do sc. XX6, est a Paz de Augsburgo, de 1555, que imps fim, ao menos
temporariamente, guerra confessional alem estabelecendo o jus reformandi, ou seja, a
concesso, por parte dos catlicos, do direito reforma, em funo de sua manifesta
incapacidade de eliminar a heresia protestante. O princpio do cujus rgio, eius religio7
franqueava a possibilidade de cada casa real decidir por sua religio oficial, catlica ou
luterana, que por sua vez deveria ser obedecida fielmente por seus sditos
estabelecendo-se o direito de emigrarem aqueles que professassem f contrria. Em
1572, o projeto levou a Europa ao massacre dos huguenote na Noite de So
Bartolomeu, episdio sangrento da represso aos protestantes na Frana e que pode ter
4 ESPINOSA, B. Tractatus Theologico-politicus. Lisboa: INCM, 1988, passim.
5 Ibid. p. 294.
6 PARKER, Geoffrey (ed.). La Guerra de los Treinta Aos. Madri: A. Machado Libros, 2003, pp. 249-
297. 7 "Tal prncipe, sua religio".
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chegado a 70 mil mortos. A esfera religiosa confunde-se nesse contexto com a
econmica, uma vez que ao converter um reino ao protestantismo seguiu-se o confisco
pelo Estado das terras da Igreja, que por sua vez eram destinadas em grande parte
agricultura.8
A tolerncia inscrita nesse princpio - do cujus rgio, eius religio - est ainda
vinculada a sua acepo tradicional: ... de condescendncia para com aquela espcie
de ilcito cuja proibio acarreta inconvenientes de qualquer espcie ou se revela, pura
e simplesmente, impossvel9, ou seja, as diferenas seguiam caracterizadas como
ilcitas e sua aceitao estaria condenada a ser suspensa quando as condies que
permitiram que fossem toleradas fossem alteradas.
o caso do Edito de Nantes, assinado em 1598 e que foi resultado tambm do
Massacre da Noite de So Bartolomeu, em 1572, e dos 36 anos de perseguies e
morticnios perpetrados contra os huguenotes a quem o edito concedia garantias de
tolerncia religiosa. No edito de pacificao, como ficou conhecido, tal medida de
tolerncia, corroborando a acepo tradicional do termo, estabelecia a confisso catlica
como religio oficial do Estado francs e oferecia liberdade aos calvinistas para
exercerem sua f. o que reafirma Elisabeth Labrousse na anlise que empreendeu
sobre a revogao do edito, promovida por Lus XIV em 1685 e que, de uma Frana
poltica e religiosamente dividida, fez regredir uma Frana catlica:
... preciso notar que o Edito de Nantes no tinha estabelecido uma liberdade de
conscincia, no sentido actual, que pressupe um individualismo impensvel no sculo
XVII e que remete a opes religiosas para a esfera individual e privada. O edito concedia
privilgios, minuciosamente circunscritos, s Igrejas reformadas de Frana; definia os seus
espaos de implantao lcita e reconhecia aos franceses o direito de escolher uma ou outra
das confisses crists reconhecidas no reino.10
A revogao do edito converteu o conceito jurdico-poltico de tolerncia a uma
frmula anterior, na qual estavam cindidos os hereges - que produziam interpretaes
desautorizadas pela Igreja dos textos sagrados do Cristianismo -, e pagos que ainda
desconheciam a verdade crist -, sendo a tolerncia reservada a pagos enquanto, para
os hereges, a j comum intolerncia.
8 Cf.: PARKER, Geoffrey. Op. cit. pp. 249-297 e KENNEDY, Paul. Ascenso e queda das grandes
potncias: transformao econmica e conflito militar de 1500 a 2000. Rio de Janeiro: Campus, 1989, pp.
39-77. 9 AURLIO, Diogo Pires; op. cit. p. 186.
10 LABROUSSE, Elisabeth. La rvocation de lEdit de Nantes. Paris: Payot, 1985, cit. por AURLIO,
Diogo Pires; op. cit. p. 186.
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Dentre as razo da tolerncia, para o filsofo poltico italiano Norberto Bobbio,
a mais vil aquela que obedeceu a imperativos prticos da realidade vigentes a este
tempo de sangrentas guerras religiosas e que se fez traduzir como prtica de prudncia
poltica. No mais das vezes este tipo de razo se expressou como tolerncia a
diversidade de prticas religiosas exatamente por parte daqueles que, portadores de uma
verdade alada condio de universal, estariam propensos intolerncia. No se trata
de renunciar s prprias crenas, transcendncia das diferenas ou da manifestao de
superioridade moral daquele que tolera, mas de suportar a crena vista como erro
porque sua perseguio, historicamente, demonstra que ao invs de aniquilar o
diferente, d-lhe foras para seguir adiante na qualidade de martirizado. Tolerar, como
ato de astcia, um mal necessrio uma vez que a intolerncia no obtm os
resultados a que se prope11.
Nesta chave analtica, a tolerncia como doutrina teolgica deixava de se
relacionar com o problema da verdade (seu prprio cerne) e passava a aceitar
convenientemente o erro, assumindo uma forma notadamente utilitarista, quando
plpito da poltica.
J como mtodo universal, segundo Bobbio durante o Humanismo do
Renascimento que uma razo mais sublime passa a ser caracterizada como forma de
persuaso, sobrepondo-se ao uso da coero e da fora, recurso comum da autoridade
eclesistica durante todo o milnio anterior. O que possibilitou isso foi o franco
reconhecimento da capacidade do outro em perseguir no apenas seus interesses
egosticos; mas de reconhecer os interesses alheios: pedra angular da avassaladora
produo literria do perodo, ou seja, uma f depositada no mais na autoridade
religiosa, mas no Homem. A persuaso tomou com isso o lugar da violncia, momento
em que a tolerncia passou a distanciar-se, em seus significados, das prticas de
violncia e, mais, a opor-se a elas.
Durante o Humanismo do Renascimento, o sentido de tolerncia se interpunha,
ao trmino das sangrentas guerras religiosas, como instrumento de construo de uma
Europa pacfica.
Em 1721, o Vocabulrio Portugus e Latino de Rafael Bluteau reapresentou o
termo com uma leve oscilao de significado, equivalendo pacincia. Tratava-se,
segundo o dicionrio, de uma virtude reservada queles dotados de uma moral superior
11
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 206.
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e capazes, com isso, de suportar temporariamente o peso de situaes indesejadas,
sendo a negociao desta temporalidade mediada pela convenincia. Deste significado
desdobra-se seu uso jurdico como ato dos jurisconsultos em permitir coisas ilcitas,
como exceo norma vigente, sem que tais coisas deixassem de serem vistas como tal:
... segundo os jurisconsultos, uma certa permisso de cousas no lcitas, sem castigo de
quem as comete, porm sem concesso nem dispensa para elas; e assim em muitas partes
so toleradas as mulheres Damas, ainda que seja ilcita a arte meretrcia.12
Deste significado provm o uso social do termo casa de tolerncia para se referir ao
lugar onde tem prtica a prostituio o que menciona Paul Claudel13 -, ainda que em
realidades onde o meretrcio no seja mais ilcito, seno moralmente condenvel
segundo a moral dominante.
O termo nasceu carregado, portanto, de significados ambivalentes. Seja como
sinnimo de pacincia e de uma aceitao dissimulada, mediada pela convenincia; seja
como vigor de nimo e altrusmo para sofrer pacientemente condies dificultosas.
Tolerar pode significar dissimular, tanto quanto sofrer em razo de uma virtude sublime.
O sculo do iluminismo produziu tambm, nas densas reflexes que marcaram o
desenvolvimento do liberalismo poltico, uma profunda ressignificao do conceito de
tolerncia. Na Encyclopdie de Denis Diderot e DAlembert, em 1751, foi invocado
um estado de natureza sobre o qual deveria impor-se a razo; mas no uma razo
universal e abstrata, seno aquela proveniente do livre-arbtrio. O programa iluminista
enaltecia a razo movendo-a contra as causas da intolerncia: a superstio e o
obscurecimento da alma humana produzidos pela vigncia de poderes tirnicos que
ganharam forma no Estado Absolutista, cujo princpio legitimador para o exerccio do
poder poltico e para a concentrao plena de soberania nas mos do soberano era
sumamente religioso: tratava-se de um governante escolhido por Deus, escolha
chancelada pela Igreja tendo como lugar cerimonial para a coroao de grande parte dos
monarcas europeus o Vaticano, recebendo, aquele que deveria reinar, a coroa
diretamente das mos do Papa.
O exerccio do poder poltico da Igreja, como anteparo e aliado do poder
monrquico, constituam os inimigos mais nefastos da liberdade humana segundo o
pensamento iluminista, o que revelam as sentenas Jean Meslier, o chamado padre-
12
Cit. por AURLIO, Diogo Pires; op. cit. p. 179. 13
Ibid. p. 179.
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ateu da aldeia de trpigny, publicado postumamente como "Extrait des sentiments de
Jean Meslier", editado por Voltaire: "Je voudrais, et ce sera le dernier et le plus ardent
de mes souhaits, je voudrais que le dernier des rois ft trangl avec les boyaux du
dernier prtre."14
; de Denis Diderot, no poema que constitui "Les leuthromanes": "Et
ses mains ourdiraient les entrailles du prtre / Au dfaut d'un cordon pour trangler les
rois"15
; e, por fim, do ps-iluminista, contemporneo da Revoluo Francesa e que se
tornaria um fervoroso reacionrio pr-monarquista, Jean-Franois de la Harpe, a quem
se deve a obliterao dos versos de Diderot em seu "Cours de Littrature Ancienne et
Moderne", de 1799: "Et des boyaux du dernier prtre / Serrons le cou du dernier roi"16
.
Tais seriam os inimigos da liberdade direito inato -, qual, segundo Immanuel
Kant, o homem seria naturalmente vocacionado.17
Para Kant, na Fundamentao da
Metafsica dos Costumes, de 1797,
... a liberdade (a independncia relativamente ao arbtrio constritivo de outrem), na medida
em que pode coexistir com a liberdade de qualquer outro segundo uma lei universal, este
direito nico, originrio, que corresponde a todo o homem em virtude da sua humanidade.18
Em 1763, no Tratado sobre a Tolerncia, Voltaire sustentou a existncia de
um estado de natureza violento e cuja violncia, por ser natural, no poderia ser
suprimida ainda que se compreendesse a necessidade da paz. No contratualismo
defendido por Voltaire, a violncia natural deveria ser transferida, por meio do pacto,
para o Estado que operaria ento o uso de uma violncia legtima para a promoo do
bem comum; com isso, a tolerncia seria decorrente da supresso, pela via da lei, da
violncia inerente natureza humana, etapa anterior mesmo ao contrato social que
pactuaria o estado civil.19
Um ano depois, Voltaire apresentou, em seu Dicionrio
Filosfico, um conceito de tolerncia j vinculado s tradies do contratualismo e do
jusnaturalismo e no qual o estado de natureza, ainda que violento, promoveria a
aceitao mtua de fraquezas e erros humanos: ns somos todos feitos de fraquezas e
erros; a primeira lei da natureza perdoarmo-nos reciprocamente as nossas
14
Eu gostaria, e este ser o ltimo e o mais ardente dos meus desejos, eu gostaria que o ltimo rei fosse estrangulado com as tripas do ltimo padre. 15
E suas mos arrancaro as entranhas do padre / na falta de uma corda para estrangular os reis. 16
"E com as tripas do ltimo padre / estrangulemos o pescoo do ltimo rei." 17
KANT, Immanuel; Resposta pergunta: o que so as luzes?, in: KANT, Immanuel. A paz perptua e outros opsculos. Lisboa: Ed. 70, 1988, p. 493. 18
KANT, Immanuel. Fundamentao da Metafsica dos Costumes. Lisboa: Companhia Editora Nacional,
1964, p. 237. 19
VOLTAIRE. Trait sur la tolerance. Paris: Garnier Flamarion, 1989, passim.
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loucuras20. A violncia, tanto quanto as possibilidades de tolerncia, seriam elementos
constitutivos de uma natureza humana universal e que transcenderia a prpria histria,
tendo como ncleo duro o logus de liberdade. A natureza humana e sua integrao no
cerne das sociedades prescindiria da condio de liberdade e neg-la a algum,
tolhendo-lhe o direito primal do livre-pensar e agir, de acordo com seus prprios
critrios, seria negar a tolerncia.
No iderio liberal do sc. XVIII, o debate contratualista opunha as teses pr-
absolutistas, j fixadas desde o sculo anterior, quelas engajadas nas transformaes
liberais que visavam pr abaixo o Antigo Regime. No clssico de Thomas Hobbes,
Leviat ou matria, forma e poder de um Estado Eclesistico e Civil, escrito em 1651,
sustentou-se um estado de natureza - dos indivduos desassistidos da tutela do estado
civil -, egostico e catico no qual os indivduos competiriam entre si por bens escassos
em natureza, a bellum omnium contra omnes21
na qual o homo homini lupus22
. Movidos
pela pulso de autopreservao tendo como nica certeza a existncia do homem mais
forte que o homem mais forte -, desejosos por deixarem a guerra de todos contra todos,
os prprios indivduos pactuariam o estado civil, contrato que prescreveria a outorga da
liberdade dos sditos pela tutela do Estado, encarnado na forma do Leviat23
: o summa
potestas, ou seja, o mais forte entre todos24
.
Levantando-se ainda contra as teses de Jean Bodin, inscritas sobretudo no
tratado Os seis livros da repblica, de 1576, autores do contratualismo liberal ingls,
como John Locke no Segundo Tratado sobre o Governo Civil, de 1689, e do
iluminismo francs, como Jean-Jacques Rousseau no Contrato Social, de 1762,
postularam um estado de natureza benvolo no qual imperaria a cooperao e no a
competio; sendo a corrupo desta condio decorrente da pactuao de um tipo de
Estado que, pela violncia, tolheria a liberdade primal dos indivduos, motivo pelo qual
deveria ser a liberdade salvaguardada na qualidade de direito natural - inalienvel - pelo
prprio Estado, ordenado a partir de princpios constitucionais cujo objetivo primordial
seria o de consagrar os direitos humanos25
.
20
VOLTAIRE. Diccionaire philosophique et portarif. Paris: Garnier Flamarion, 1964, p. 362 e 363. 21
Guerra de todos contra todos. 22
O homem o lobo do homem. 23
Monstro bblico descrito no Livro de J e cuja origem remete Tiamat, monstruosidade babilnica. 24
HOBBES. Leviat ou matria, forma e poder de um Estado eclesistico e civil. So Paulo: Martin
Claret, 2007, pp. 127-268. 25
LOCKE. Carta acerca da tolerncia; Segundo tratado sobre o governo; Ensaio acerca do
entendimento humano. So Paulo: Abril Cultural, 1978, pp. 33-85; ROUSSEAU, Jean-Jacques. O
Contrato Social. So Paulo: Cultrix, 1978, pp. 21-135.
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O carter universalista do Iluminismo matizaria a concepo liberal de um
estado de natureza primal, uma vez que particularidades regionais, relativismos morais e
culturais no teriam lugar na caracterizao de um homem universal. Sobre a abstrao
criada pelo novo conceito de humanidade, nos esclarece Diogo Pires Aurlio, professor
do Instituto de Filosofia da Linguagem da Universidade Nova de Lisboa,
... a humanidade aquilo que em definitivo o identifica, mas , ao mesmo tempo, algo que
o transcende, na medida em que no se confunde com nenhuma das suas circunstncias ou
das suas manifestaes concretas. Tudo o quanto o diferencia dos outros deve, pois, ser
secundarizado, reduzido a condio de simples acidente, de modo a no permitir que a
diferena, se fosse promovida a algo de essencial, ocasionasse a intolerncia.26
Tem-se, com isso, um conceito de tolerncia que se vincula quilo que h de universal e
comum essncia humana, e no s diferenas que guardam os indivduos entre si. A
determinao dessa essncia , portanto, marcadamente excludente j que nelas no
cabe a diversidade, dependendo essencialmente das similitudes.
Em 1789, mesmo ano em que as revolues burguesas prometiam mudar a
paisagem poltica da Europa, no Dicionrio da Lngua Portuguesa de Antonio Moraes
e Silva o pensamento ilustrado, de natureza profundamente laicizante, foi responsvel
por uma distino elementar que comeava a afastar os sentidos da tolerncia de uma
acepo puramente religiosa: entre tolerncia e indulgncia. Enquanto tolerar, j por
tradio aludia passividade em dissimular e permitir coisa digna de castigo; na
indulgncia o responsvel pelo sofrimento resulta perdoado. Aquele que tolera,
portanto, no desculpa nem perdoa. Logo, o conceito de tolerncia se afasta
paulatinamente da condio de superioridade moral de seu agente, pois na indulgncia
que se manifesta a pureza de carter propensa ao perdo, virtude elementar do
cristianismo; enquanto a tolerncia um sofrimento quase forado; as circunstncias
o aconselham e talvez o prescrevam...27.
A difuso das ideias liberais, ao tempo da Revoluo Francesa, produziu
tambm outra distino: entre a tolerncia religiosa, a ... condescendncia em permitir
a prtica de todos os cultos, assegurando a cada indivduo a liberdade de seguir a
religio que professa, e a tolerncia poltica, ... princpio da escola liberal, que
reconhece em todo o indivduo o direito absoluto de seguir e sustentar livremente
26
AURLIO, Diogo Pires; op. cit. p. 182. 27
Ibid. p. 180.
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falando, ou escrevendo, as doutrinas de que partidrio, embora completa oposio
s idias predominantes, representadas no poder28.
Para Norberto Bobbio o avano das ideias liberais na Europa e nos Estados
Unidos culminou na ascenso de uma nova razo da tolerncia, no mais como razo de
mtodo a convenincia-violncia medieval e a persuaso renascentista -; mas como
razo moral, na forma do respeito pessoa alheia, convertido em princpio moral
absoluto. Com isso, interpe-se um novo tipo de conflito, entre uma razo terica
aquilo que o indivduo deve crer e uma razo prtica aquilo que o indivduo deve
fazer -; transpostos qualidade de conflitos morais, os princpios antagnicos seriam os
de uma moral da coerncia, que leva os indivduos a elevarem sua moral acima de todas
as outras; e uma moral do respeito, que leva a aceitao do outro e de seus contedos
morais.29
Para Bobbio, trata-se do fundamento do Estado liberal uma vez que seria ele
desprovido de mecanismos coercitivos que tivessem por finalidade impor aos
indivduos uma verdade ulterior, levando ao primado da verdade interior. Para o autor,
com isso, tem-se uma tolerncia como dever tico e, como dever, este contedo nos
aproxima essencialmente do imperativo categrico kantiano.
Isso porque a sntese do conceito de tolerncia, apenso s teses do
contratualismo liberal, foi elaborada por Kant no tratado A religio nos limites da
simples razo, de 1793, que apresentou um estado de natureza tico no qual os
regramentos deveriam ser impostos pelo indivduo a si mesmo, sendo ilegtima sua
coero por parte de quaisquer poderes externos a si.30
A liberdade seria uma pr-
condio para a igualdade na medida em que todos seriam, naturalmente, igualmente
livres, passando ento a tolerncia a significar igualdade. Mais do que isso, sendo o
igualitarismo e o universalismo identificveis com a razo, uma vez que a razo
universal que identificaria os indivduos como iguais, esta impeliria os homens
tolerncia; tomando-se, pelo anverso, a intolerncia como ato de irracionalidade, no
sendo possvel haver uma razo intolerante. Para Kant, quando os indivduos so
afastados das luzes dessa razo universal, luzes que esto presentes em si mesmos, as
trevas da irracionalidade levariam s guerras. A razo levaria igualdade, a igualdade
conduziria tolerncia, conforme a razo iluminista; devendo ser perseguidos os
28
Ibid. 29
BOBBIO, Norberto. Op. cit. pp. 208-209. 30
KANT, Immanuel. A religio nos limites da simples razo. Covilh: Universidade da Beira Interior,
2008, passim.
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institutos religiosos ou filosficos que obstaculizariam, pela coero, o livre-pensar e
agir. Fica claro, nesses termos, porque a primeira metade do sculo XX poria abaixo tais
esquemas filosficos, enquanto ainda no sculo XIX seria desvelada a falcia da
liberdade burguesa, para contingentes inteiros submetidos subalternidade da
expropriao de classe.
Mas o culto iluminista razo e a persecuo ao obscurantismo religioso acabou
revelando uma razo obscurecida, que em muito se parecia com a religio: uma religio
da razo. Ao entronarem, os destas, a razo como veculo condutor da verdade, esta
passava a ter um status muitssimo parecido com o de qualquer seita, bem como seus
proponentes o de fiis adeptos; e tal qual um credo, a razo dispunha ainda de
pregadores, perseguidos e mrtires, sendo instrumento de brutais fenmenos de
intolerncia.
No entanto, o culto iluminista razo no pode ser confundido com a natureza
das revolues burguesas desse mesmo perodo, como parece faz-lo Diogo Pires
Aurlio no verbete que escrevera Enciclopdia Einaudi, tratando do binmio
tolerncia/intolerncia. Ao caracterizar os processos revolucionrios nos Estados
Unidos e na Frana como momentos em que a razo, sacralizada pelo movimento
ilustrado, a partir da cultura passava a anexar a autoridade e a soberania polticas31
, o
autor toma no a razo, mas a prpria revoluo, como criadora de um novo tipo de
intolerncia. Isso porque, nosso entendimento o de que o perodo de terror que se viu
em Frana durante a Repblica Jacobina subproduto da entronizao da razo e no
um componente inerente s revolues sociais que, no sc. XVIII, preconizaram a
racionalizao da poltica, por meio de sua laicidade, e puseram abaixo a estrutura
maior da dominao de classe engendrada pela nobreza europeia: o Estado
Absolutista32
. Corre-se o risco de supor que outro caminho, que no o da revoluo
social, fosse possvel nos quadros do Antigo Regime para operar as transformaes
demandadas pelos segmentos de sociedade convulsionados e para a resoluo de crises
econmicas, para as quais no havia sadas poltico-institucionais.
Sendo a revoluo social um processo histrico complexo, decorrente das
contradies desenvolvidas no bojo das sociedades de classe que lhe do forma e
contedo, o mesmo pode-se dizer da etapa de guerra civil que lhe constitui, momento
31
AURLIO, Diogo Pires; op. cit. p. 192. 32
como caracterizou o Estado Absolutista ANDERSON, Perry. Linhagens do estado absolutista. So
Paulo: Brasiliense, 2004, pp. 15-57.
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em que interesses antagnicos e que tentam recompor o ordenamento que rura se
articulam a fim de frear o processo revolucionrio, no mais das vezes apoiados por
foras estrangeiras que temem a expanso espacial do processo de revoluo social.
to descabido empreender, com isso, juzos valorativos sobre a natureza das
revolues sociais quanto faz-lo acerca da natureza dos regimes demolidos pelas
revolues; compreender esses processos em suas estruturas profundas implica em
atravessar a fina camada que se cristaliza em sua superfcie, no raso dos juzos morais
edificados a partir de elementos factuais, produtores de metanarrativas que culminam
invariavelmente em um maniquesmo simplista no qual aparecem, em forma bifurcada:
evoluo/revoluo como meras opes histricas.
As razes da Revoluo Francesa e, mais extensivamente, das revolues
burguesas ultimadas no avano das ideias liberais, no se detm, de fato, distino
entre tipos de absolutismo mais ou menos tolerantes. Mesmo porque, no se trata, em
essncia, apenas da luta pela liberdade religiosa e poltica; mas de um desejo de
emancipao plena das classes laboriosas e, portanto, de um contexto muito mais amplo
que inscreve esses elementos no processo de luta de classes em sua expresso mais
dramtica e inadivel.
A intolerncia avolumava-se, mais e mais, na violncia da expropriao de
classe, agravada no sc. XIX com a consolidao do mundo industrial e
internacionalizada na forma do neocolonialismo, ncleo dinmico do imperialismo, a
partir da diviso internacional do trabalho que internacionalizou tambm as
contradies lgicas do binmio capital/trabalho.
No mundo inaugurado pela industrializao, consolidado na forma do mundo
burgus, a produo de contradies lgicas decorrentes da consagrao da razo como
princpio persecutrio da desrazo, culminou naquilo que parecia ser seu extremo
oposto: a intolerncia. No se trata de uma anomalia; mas da constatao de uma
falcia: de que a razo levaria igualdade e, esta, tolerncia. O igualitarismo burgus,
que resignificava o ideal de democracia, nos quadros do capitalismo industrial
mostrava-se to excludente quanto sua matriz grega, pressupondo uma igualdade entre
iguais caracterizada pela violncia da expropriao de classe que marcava pele o
proletariado urbano. A razo estava distante demais das possibilidades de construo de
uma sociedade igualitria; dando conta minimamente da construo de uma ideologia
meritocrtica burguesa que em vrios momentos voltou-se para as religies a fim de
legitimar as prprias desigualdades, bem como fez com que tambm o operariado
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buscasse promessas de redeno post-mortem nas religies protestantes, reavivadas pelo
proletariado no ambiente urbano e fabril do sc. XIX33
.
A fantasia de uma razo que inexoravelmente levaria igualdade e tolerncia -
que no apenas utopia, trata-se de um procedimento ideolgico - responsvel por
contradies e paradoxos perversos, como as muitas tentativas de justificao, nos
Estados Unidos, do instituto da escravido inaugurado j em meados do sc. XVII,
desde explicaes de carter biolgico at tentativas filosficas e sociolgicas. Diogo
Pires Aurlio chama a ateno para o fato de os primeiros tratados da sociologia
americana, por exemplo aqueles consagrados por revistas como a American Journal of
Sociology, se dedicarem a teorizar a inferioridade dos trabalhadores negros,
justificando sua reduo a condio de escravos.34
O prprio perodo de terror que assaltara o processo revolucionrio francs est
inscrito nessas contradies. De 1792 a 1794 o governo francs passou a ter hegemonia
da esquerda jacobina chefiada por Robespierre; teve incio, com isso, o terceiro e mais
radical perodo da revoluo: a Repblica Jacobina; nesse perodo, o rei foi julgado e
decapitado, a monarquia foi abolida e foi declarado o sufrgio universal. A revoluo
assumiu ento um profundo carter antirreligioso suprimindo a Igreja e guilhotinando
padres de forma sistemtica. Diante da crise militar foi proposto um novo tipo de
exrcito, baseado na eliminao da distino entre civis e militares: todos os cidados
seriam soldados da revoluo, os bens poderiam ser confiscados em benefcio da nao
e em caso de perigo extremo; trata-se de um novo exrcito e os elementos que o
iluminaram foram a guerra de movimentos a mobilidade ttica das tropas e a
implantao do terror contrarrevoluo, por meio de julgamentos e execues
sumrias de contrarrevolucionrios. Do terror que marcou o perodo advm o invento do
mdico francs Joseph-Ignace Guillotin, que desenvolveu um mtodo de execuo com
base em um mecanismo de acionamento de uma lmina para decapitao, que permitia
executar um nmero maior de pessoas com menor dispndio de energia e muito mais
rapidamente. Do terror no adveio progressos significativos prpria revoluo e seus
princpios fundacionais: sob os jacobinos, o sufrgio nunca foi utilizado e o controle de
preos no funcionou, mas as promessas empurravam o povo francs para a guerra
33
Cf.: FROMM, Eric. O medo liberdade. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986, pp. 90-113. 34
AURLIO, Diogo Pires; op. cit. p. 193.
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derrotando a contrarrevoluo monrquica e exrcitos estrangeiros, enquanto eram
massacradas, internamente, as dissidncias.35
Para Aurlio Diogo Pires, o que diferencia este tipo de terror daquele comum ao
Antigo Regime o fato de que, durante a revoluo, ele buscou legitimar-se
racionalmente; a bem do fato de que ... a razo descobrir-se- religio.36
O momento culminante desta passagem a promoo do Culto ao Ser
Supremo, por parte de Maximilien de Robespierre, sobre o qual Hannah Arendt
asseverou:
... o ridculo do empreendimento era to grande que se deve ter tornado manifesto queles
que assistiram s primeiras cenas, tal como o veio a ser para as geraes futuras; logo na
altura, deve ter dado a impresso de que o deus dos filsofos sobre o qual Lutero e Pascal
descarregaram o seu desprezo teria, finalmente, decidido revelar-se sob a aparncia de um
palhao de circo.37
O sc. XIX, com o assentamento das teses do socialismo cientfico de Karl Marx
e Friedrich Engels, rompera com a lgica iluminista e com o processo de converso da
razo condio de nova religio. Na crtica que Marx empreendera a Feuerbach38
, est
presente a percepo de que os ataques que este engendrara dominao religiosa,
empreendidos no a partir de uma perspectiva social, incorriam no risco de eles mesmos
assumirem uma estrutura argumentativa religiosa. Como instrumento de dominao,
para o fundador do materialismo histrico-dialtico, a religio seria o obstculo maior
emancipao do homem, enquanto mantida como instrumento de dominao e servil
aos interesses das classes dominantes. Buscando a redeno no plano celeste, abnegava-
se da emancipao da classe trabalhadora no plano terreno, da o seu carter nocivo e
alienador, distensionador de todo e qualquer recalcamento e, com isso, impeditivo da
tomada de conscincia, pr-condio para a luta de classes. Logo, no bastaria
emancipar o Estado do poder religioso, como se operou nas revolues burguesas do
sc. XVIII; a aurora comunista anunciava, para este novo tempo, a emancipao do
Homem frente a quaisquer poderes. A crtica maior Feuerbach consiste na sustentao
35
Cf.: SOBOUL, Albert. A Revoluo Francesa. Rio de Janeiro: DIFEL, 2007, pp. 7-99; HOBSBAWM,
Eric J. A era das revolues: 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008, pp. 83-143; RUD, George.
La multitud en la historia: estdio de los distrbios populares en Francia e Inglaterra 1730-1848. Buenos Aires, Mxico, Madri: Siglo Veinteuno, 1989, pp. 99-139; e SOL, Jacques. A Revoluo
Francesa em questes. Rio de Janeiro: Zahar, 1989, pp. 54-72; 139-164. 36
AURLIO, Diogo Pires; op. cit. pp. 193 e 194. 37
ARENDT, Hannah. Sobre a Revoluo. Lisboa: Moraes Editores, 1971, p. 182; cit. por AURLIO,
Diogo Pires; op. cit. p. 194. 38
Teses sobre Feuerbach; in: MARX, Karl. A ideologia alem. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2007, pp. 27-34.
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de que seria incuo o combate a esses poderes apenas no plano filosfico; o conceito de
prxis que conjugava reflexo filosfica a ao transformadora da realidade social
impunha o combate antirreligioso entendido como o combate s instituies religiosas
que anteparavam a explorao de classe - no contexto da luta de classes, motor dialtico
da histria.
A aurora comunista que despontara j em 1848 - mesmo ano em que fora
publicado o Manifesto do Partido Comunista - na forma de um vagalho
revolucionrio que varreu a Europa no como uma revoluo burguesa, mas encampada
primordialmente por trabalhadores pobres39
a Primavera dos Povos -, tinha em seu
horizonte uma sociedade igualitria na qual a igualdade seria resultado da abolio das
classes sociais. Para Marx, a produo da igualdade poltica operada durante as
revolues liberais teria sido puramente ficcional, incapaz de libertar as classes
laboriosas dos grilhes que a prendiam aos interesses das classes proprietrias, isso
porque no teriam dado condies para uma efetiva igualdade social, do que resultara
uma liberdade burguesa que, para o proletariado, significava a iluso de liberdade.
O sc. XIX foi tambm o tempo de um profundo cientificismo, filho do
positivismo de Augusto Comte inaugurado no "Discurso preliminar sobre o esprito
positivo, de 1858, revolucionado pelas teses evolucionistas de Charles Darwin,
publicadas no tratado A origem das espcies, em 1859, e que se encontrara com as
recm-nascidas cincias Humanas e Sociais (Economia, Histria, Antropologia,
Sociologia etc.) pela via do spencerianismo- aluso ao esforo de Herbert Spencer em
conjugar as teses do evolucionismo darwinista com a anlise das sociedades humanas -,
do qual despontara um darwinismo social que, por sua vez, matizara uma antropologia
rcica, uma sociologia gentica e uma histria mergulhada no progressismo positivista.
O cientificismo havia soterrado o antropocentrismo humanista, bem como os ltimos
resqucios de teocentrismo que, porventura, teriam sobrevivido ao passado medieval;
mas criara tambm uma nova f, dessa vez depositada nas cincias que prometiam
redimir as sociedades humanas de suas mais graves contradies.
O ciclo civilizao & barbrie, que contava neste novo momento com aportes
explicativos pretensamente cientficos, produziu reflexes suis generis acerca da
tolerncia, como expressa o clssico de Stuart Mill, On Liberty, publicado em 1859
(mesmo ano de divulgao da Teoria Evolucionista de Darwin) e centrada na
39
Cf.: HOBSBAWM, Eric J. A era do capital - 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005, pp. 27-50 e
PALMADE, Guy (org.). La poca de la burguesia. Mxico: Siglo Veinteuno, 2000, pp. 1-53.
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liberdade de opinio elevada condio de primeira grandeza com vistas emancipao
das sociedades humanas. Contudo sua doutrina exclua aqueles que apontava como ...
povos atrasados cuja raa pode considerar-se na sua menoridade. Para o fervoroso
defensor da tolerncia entre os povos, at mesmo o despotismo seria justificvel, desde
que movido a disciplinar ... selvagens, contanto que o objetivo seja o seu prprio
aperfeioamento, ficando os meios justificados se esse fim de justificar40.
Em 1899, Cndido de Figueiredo, em seu Dicionrio, apresentou duas
inovaes que, mais adequadamente, explicitaram a bifurcao criada pela vigncia de
dois dos significados fundacionais do conceito de tolerncia: o termo derivado
tolerantismo, referindo o sistema pelo qual se produzia, nos limites do Estado, a
tolerncia em relao prtica de todas as religies; e outro derivado, tolerada,
sinnimo da prostituta sujeita inspeo e regulamentao policial por estar inscrita nos
registros administrativos da burocracia estatal. Em verdade, o sculo do cientificismo e
do positivismo, em seu ocaso, manifestava a partir dos lxicos uma primeira dissociao
entre a liberdade religiosa e a permisso de atos ilcitos, isso porque, o avano das ideias
liberais na Europa do sc. XVIII, por meio das revolues burguesas que fundaram o
mundo contemporneo, culminou na forma do Estado laico; da a associao entre
tolerncia e liberdade de religio e de pensamento, para um novo momento em que
professar tais liberdades era ato considerado lcito.
O encurtamento dessas distncias e o recurso inferiorizao do outro como
estratgia para sua dominao foram flagrantes durante toda a era dos imprios, de
1875 a 191441
, cujo exoesqueleto fora o sistema colonial que estabeleceu, na periferia e
semiperiferia do sistema capitalista o locus de explorao das grandes potncias em sua
corrida concorrencial, nos quadros do industrialismo, pela liderana do sistema-mundo
capitalista. A ocupao e a gesto de povos careciam de validade e justificativa
ideolgica, do que se valeram discursos intolerantes alados condio de
pseudocincias incumbidas de validar as diferenas como ndices de inconcluso de
processos civilizatrios. Povos na infncia, formaes sociais inconclusas e ndices de
barbrie prescindiriam da disciplinadora mo colonizadora europeia a fim de seguirem
na corrida cujo ponto final seria a civilizao, no seu modo ocidental. Mas a prpria
contra resposta dada violncia da ocupao estrangeira, nos limites dos grandes
imprios, tambm proclamava as identidades, neste caso coletivas, e de cujo
40
MILL, Stuart. On Liberty. London: Penguin Books, 1974, p. 69. 41
HOBSBAWM, Eric. A era dos imprios - 1875-1914. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
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reconhecimento tem-se a ideia de nao, na complexa e abstrata conjugao entre povos
(e seus els identitrios) e territrio, sobre o qual reivindicava-se autodeterminao,
revelia dos grandes imprios desejosos por manterem sua unidade territorial.
Dessas comunidades imaginadas42 que reivindicam o reconhecimento de sua
cultura, produziu-se nos quadros da dominao colonial ocidental o fenmeno do
etnocentrismo a partir da lgica da indiferena, negando qualquer razo universalista,
sobretudo a razo iluminista posta a termo j na primeira metade do novo sculo.
As primeiras convulses que deram origem Antropologia Cultural, a partir da
escola boasiana, assentaram a crtica ao etnocentrismo por meio de proposituras
relativistas que buscavam calibrar os olhares buscando identificar as distncias entre o
eu e o outro, sem contudo reafirmar a superioridade do eu, seno relativizar e
identificar os sistemas simblicos do outro conferindo-lhe autonomia, sendo para isso
necessrio ver o outro a partir das referncias do outro.
Noberto Bobbio recuperou, deste incio de sculo, a clebre controvrsia entre
Luigi Luzzatti e Benedetto Croce, e que complexizava a problemtica associao entre
as antteses indiferena-fanatismo e tolerncia-intolerncia. Na obra La libert di
coscienza e di scienza, publicada em 1909, Luzzatti exaltava a tolerncia como
manifestao do esprito liberal, logo, presente no Estado liberal; enquanto Croce, em
1926 e nas pginas de Cultura e vitamorale, retrucava que a tolerncia no se
verificaria como esprito universal, seno como frmula prtica e contingente, logo,
no seria vivel sua aplicao como critrio para julgar a histria. A questo central,
para Croce, a de que nem sempre entre os tolerantes encontram-se os espritos nobres,
verificando-se em muitos casos, pelo contrrio, os retricos e os indiferentes. Escreveu
Croce, em1943, no Pagina Sparse: Os espritos vigorosos matavam e morriam43, os
demais, apenas toleravam e isso por pura convenincia.
Em suma, para o intolerante ou para quem se coloca acima da anttese tolerncia-
intolerncia, julgando-a historicamente e no de modo prtico-poltico, o tolerante seria
frequentemente tolerante no por boas razes, mas por ms razes. No seria tolerante
porque estivesse seriamente empenhado em defender o direito de cada um a professar a
prpria verdade, no caso em que tenha uma, mas porque no d a menor importncia
verdade.44
42
ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexes sobre a origem e a difuso do
nacionalismo. So Paulo: Cia. das Letras, 2008. 43
Cit. por BOBBIO, Norberto. Op. cit. p. 205. 44
BOBBIO, Norberto. Op. cit. p. 205.
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No haveria portanto, para Bobbio, relao direta entre a anttese indiferena-fanatismo
e tolerncia-intolerncia, esta essencialmente prtica, esvaziada dos contedos que
alimentariam, por sua vez, a primeira.
O incio do breve sculo XX, para Eric Hobsbawm inaugurado em 1914 com a
ecloso da Grande Guerra (e cujo trmino teria se dado em 1989), descortinou uma
primeira poro de tempo como uma era de catstrofes ou uma era da guerra total,
que teria se estendido at 194545
; mas teria apresentado concretas possibilidades de
realizao do programa socialista teorizado pelos fundadores do socialismo cientfico,
em outubro de 1917, quando os bolcheviques liderados por Lnin assaltaram os cus.
No por motivos endgenos, como faz crer Diogo Pires Aurlio quando utiliza
Saint-Just para quem a revoluo tal qual o deus Cronos, que devora seus prprios
filhos a fim de explicar o totalitarismo sovitico46; mas como assalto
contrarrevolucionrio: o iderio marxista-lenilista fora soterrado pelo terrorismo de
Estado stalinista e que produzira no apenas intolerncia de forma persecutria, mas
massacres e processos genocidrios.
O igualitarismo socialista dera lugar, sob Joseph Stalin, submisso plena do
indivduo, e com isso de sua primal liberdade, ao Partido; do Partido a sua direo; e da
direo vontade do seu lder mximo que, por sua vez, encarnaria a vontade do povo.
Sustentando-se o stalinismo no apenas na violncia de Estado, mas no extremado culto
a personalidade do lder, possvel inserir sua vigncia no ciclo de regimes totalitrios
que marcaram uma fase nefasta da histria europeia no sc. XX, partilhada pelo
nazismo alemo, pelo fascismo italiano, pelo salazarismo portugus, pelo franquismo
espanhol e pelo militarismo japons.
Em 1929, s vsperas do colapso do capitalismo internacional, Sigmund Freud,
que j havia fixado a tolerncia como um ideal civilizacional em Totem e tabu,
publicou em O mal-estar na civilizao sua oposio, nos princpios fundacionais da
psicanlise, s tentativas de limitao da agressividade humana, para ele inata, por meio
tanto da tica crist quanto da tica socialista e que manifestariam um gravssimo
desconhecimento idealista da natureza humana. Para ele
Com efeito, o homem tentado a satisfazer a sua necessidade de agresso custa do
prximo, a explorar o seu trabalho sem contemplaes, a utiliz-lo sexualmente sem o seu
45
HOBSBAWM. Era dos extremos: o breve sculo XX 1914-1991. So Paulo: Cia. Das Letras, 1995, pp. 11-28. 46
AURLIO, Diogo Pires; op. cit. pp. 193 e 195.
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consentimento, a apropriar-se dos seus bens, a humilh-lo, a infringir-lhe sofrimentos, a
martiriza-lo e a mata-lo.47
Mas a via liberal, tampouco, primava pela liberdade do homus economicus.
Talvez a mais consistente crtica j elaborada ao conceito liberal de tolerncia foi feita
por Herbert Marcuse, no ensaio Repressive Tolerance48, de 1965, e que representa o
gnero da crtica marxista aos direitos do homem provenientes do iderio liberal do sc.
XVIII. Como signo de passividade, a tolerncia se convertera, nas sociedades liberais,
em uma forma de legitimao do ordenamento social estabelecido, inclusas as matrizes
da dominao econmica, a partir da qual se configuram as relaes polticas e que se
manifestam como violncia. Para Marcuse
... aquilo que hoje se proclama e pratica como tolerncia est, em muitas das suas
manifestaes, ao servio da causa da opresso (...) A intolerncia atrasou em centenas de
anos o progresso e prolongou a escravido e a tortura de inocentes. No acontecer o
mesmo com a tolerncia indiscriminada e pura? No haver situaes histricas em que
uma tal tolerncia impede a libertao e multiplica as vtimas que so sacrificadas ao status
quo? Pode a garantia indiscriminada de direitos polticos ser repressiva?49
Para o autor, evidentemente sim; a emancipao almejada pelas classes
subalternas, na conjugao entre liberdade e igualdade, s seria possvel na forma de um
pensar independente de doutrinao e manipulao, livre portanto de qualquer tipo de
autoridade. Contudo, Marcuse sublinha o fato de que no se pode supor que nas
sociedades liberais, capitalistas, no se operem formas diversas de autoridade,
doutrinrias e manipuladoras, ainda que se tenha a iluso da liberdade de pensar e de
agir ao passo de uma flagrante desigualdade comum s sociedades de classe,
radicalizada na forma da sociedade de consumo de massa. Marcuse desdobra seus
argumentos sublinhando o fato de que as opinies, nas sociedades de consumo de
massa, no seriam autnomas em funo da apropriao, por parte das classes sociais
empodeiradas economicamente, de tecnologias que funcionam como instrumentos de
dominao voltados formao da opinio, por meio da manipulao da informao e
da linguagem, ou seja, o poder do complexo miditico servil aos interesses do grande
capital. Assegura-se o status quo ainda que o pensamento dissidente possa ganhar
47
Cit. por AURLIO, Diogo Pires; op. cit. p. 203. 48
in: MARCUSE, Herbert; MOORE, JR., Barrington; WOLFF, Robert Paul. A Critique of Pure
Tolerance. Boston: Beacon Press, 1969, pp. 95-137. 49
Cit. por AURLIO, Diogo Pires; op. cit. p. 197.
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algum lugar, segue bloqueado uma vez que se dissemina a leitura e a interpretao de
qualquer contradiscurso, traduzindo-o como pensamento minoritrio e incoerente.
Marcuse j havia considerado o tipo de raciocnio condenatrio da ao violenta
realizada por tipos sociais oprimidos com vistas a sua libertao; distinguindo
gravemente este tipo de violncia daquela praticada pelos opressores. Sendo a violncia
opressora uma constante na histria da humanidade, seja na forma fsica, seja mental,
observa-se como constante histrica a violncia dos oprimidos como um passo em
direo a sua libertao, pr-condio para uma sociedade efetivamente igualitria. No
se deve portanto confundir violncia e intolerncia; na intolerncia a violncia, eivada
de significados, instrumento do eu cujos referenciais scio-culturais so
reconhecidos em relao ao outro, que escapa a estes referenciais. J a violncia,
como ato de liberdade, segundo Erich Fromm, o princpio da razo. neste erro que
incorrem aqueles que pensam haver um crculo que reiteradas vezes se fecha e no qual a
almejada tolerncia transforma-se na brutal intolerncia. Afirmar que ... a violncia a
parteira de toda a velha sociedade grvida de uma nova50, como fizera Marx, no se
trata de um apangio, mas de uma constatao emprica decorrente do acuidado
empreendimento do materialismo histrico-dialtico e do processo ruptural ensejado
pela marcha tritica que pressupe a luta de classes como motor dialtico da histria.
Logo, a verdadeira razo no est na violncia; mas na busca por elimin-la na sua base
fundacional: a violncia da expropriao de classe.
Aurlio Buarque de Holanda, em seu Dicionrio da Lngua Portuguesa de
1974, apresentou uma definio mais abrangente e que abarcou, em alguma medida,
todo o repertrio pretrito de significaes, adicionando-lhes uma concepo cientfica
nova e que desenhou seus contornos contemporneos; segundo ele, tolerncia a
... tendncia a admitir modos de pensar, de agir e de sentir que diferem dos de um indivduo
ou de grupos determinados, polticos ou religiosos (...); diferena mxima admitida entre
um valor especificado e o obtido; margem especificada como admissvel para o erro e uma
medida ou para discrepncia em relao a um padro.51
Sobre o conceito contemporneo de tolerncia, a partir da definio dada por
Aurlio Buarque de Holanda, Diogo Pires Aurlio conclui existir ento um padro, uma
margem de tolerncia e o intolervel52
.
50
MARX, Karl. O Capital. Livro I, tomo III. Lisboa: Avante!; Moscovo: Progresso, 1997, p. 848. 51
Ibid. 52
Ibid.
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O termo est muitssimo influenciado, portanto, pelo conceito antropolgico de
etnocentrismo, por sua vez debruado sobre as relaes que se estabelecem entre o eu,
cujos referenciais compreensivos para seus sistemas culturais so conhecidos, e o no-
eu, que por sua vez mantm prticas culturais cujos sentidos e significados escapam,
essencialmente, ao universo referencial conhecido daquele para quem seus valores que
ocupam centralidade. Dizer da tolerncia entre aqueles que se reconhecem no mesmo
universo simblico plasmar no plano das identidades dos sujeitos um vetor
notadamente relacional, onde todos se conhecem; no se pode dizer o mesmo na
relao entre o eu e o outro, sobretudo quando o outro, incompreendido, recebe a
fecha de inferior ou extico (o que d no mesmo). O desafio seria o de transcender as
diferenas, tentando ajustar a compreenso do eu em relao ao outro.
Caso extremo em que o etnocentrismo se cala de explicaes pretensamente
cientficas foi o desenvolvimento, na Alemanha, da disciplina de Higiene Racial,
alimentada pelas pseudoteorias eugnicas que, por sua vez, nasceram no ambiente extra
alemo, especificamente na Inglaterra portadora do fardo do homem branco, ou seja,
ainda na segunda metade do sc. XIX. Trata-se da antessala do Holocausto, precedido
por uma srie de medidas de excluso do componente judeu na sociedade alem pelo
menos desde 1935, quando ganham revestimento jurdico-formal a partir das leis de
Nuremberg, de carter sumamente racista, seguidas do brutal processo de guetorizao
que, com a Segunda Guerra Mundial em curso, se articulariam ao complexo
concentracionrio do nazismo e ao objetivo final do aniquilamento dos 11 milhes de
judeus de toda a Europa, dos quais 6 milhes pereceram.
O antissemitismo no foi monoplio da sociedade alem do Terceiro Reich,
trata-se de um fenmeno antigo e complexo que permite identificar prticas de
bestializao de grupos sociais que, em distintos momentos e em diversas sociedades,
receberam o estigma do outro e por isso foram sistematicamente isolados, no caso dos
judeus dos autos de f a cabo pelo Santo Ofcio aos guetos e pogroms que
antecederam o morticnio perpetrado, no sc. XX, em escala e com modus operandi
industriais.
De acordo com Diogo Pires Aurlio, o gueto como categoria permitiria
estender lgicas correlatas ao processo de excluso que vitimou sociedades negras nos
Estados Unidos aps a abolio da escravatura, bem como na frica do Sul, durante a
vigncia do apartheid.
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O ghetto, alis, mais do que uma reserva territorial, uma condio jurdico-social, na
medida em que se apresenta como um articulado de normas destinadas a limitar os
movimentos e a restringir os contatos ao mnimo possvel. Porm, o sistema de limpeza de sangue, com ou sem massacre, no contempla sequer esta hiptese de tolerncia resignada para com um residual de igualdade. Tolerar aquele que se diz transportar o crime nas veias
e cuja existncia significa j de si uma ameaa para os valores da comunidade atentar
contra esta. O verdadeiro membro de uma comunidade que se autojustifica por ser
etnicamente homogeneizada ser aquele que denuncia aos tribunais o diferente. A nica
atitude que o relaciona com o outro a perseguio que deve mover-lhe. A perseguio ou
a cumplicidade. Que ele chegue ou no ao extermnio, depende s das circunstncias.53
Na obra A era dos Direitos, publicada primeiramente na Itlia em 1990,
Norbeto Bobbio, ao analisar as razes da tolerncia e deparando-se com uma
multiplicidade de significados atribudos do termo, tomou como historicamente
dominante aquele que refere um problema de convivncia de crenas religiosas e
polticas. Atualizado para aquele incio de dcada - a ltima do milnio -, o termo
estendia-se, em seus usos sociais, para o problema da convivncia com minorias tnicas,
lingusticas e raciais, do que se desdobra uma dupla natureza do conceito de tolerncia:
a intolerncia de crenas implicaria no problema da existncia de um discurso
monoltico e intransigente sobre a verdade; enquanto a intolerncia diversidade fsica
ou social imporia o problema do preconceito e, consequentemente, dos atos
discriminatrios.54
Trata-se de duas formas de intolerncia e que possuem, com isso, duas diferentes
razes: no primeiro caso, a convico da existncia de uma verdade universalmente
vlida; no segundo, a existncia de estruturas pr-compreensivas da realidade, fixadas e
difundidas de maneira acrtica pela tradio ou por uma autoridade socialmente aceita.
Para Bobbio, ambas as razes se confundem na medida em que verdades que se
pretendam universalmente vlidas, via de regra, operam generalizaes em demasiado
grau que possam ser identificadas como preconceituosas.
Para o autor, ao lado das trs doutrinas que j foram mencionadas anteriormente
teolgica, humanista e liberal -, a natureza da verdade contempla ainda teorias que do
ponto de vista terico sustentam a necessidade do confronto e snteses de mltiplas e
parciais verdades, solapando a malfadada ideia de uma verdade universal. Verdades
multifacetadas constituiriam no mais um universo de vivncias, mas um multiverso de
convivncias onde a tolerncia no seria um mero mtodo ou um dever moral, seno
uma necessidade das sociedades humanas para que possam coabitar as mesmas
53
AURLIO, Diogo Pires; op. cit. p. 211. 54
BOBBIO, Norberto. Op. cit. p. 203.
-
23
realidades, dada a natureza multifacetada e sempre parcial da verdade, melhor dizendo,
das verdades todas relativamente vlidas.55
Consideraes finais
Essas distncias, que outrora podiam ser verificveis no espao geogrfico onde
o outro divisava do eu por distncias intransponveis; hoje esto instaladas no
complexo estacionrio das mentalidades, onde as transformaes se operam muito
lentamente e onde o eu e o outro seguem divorciados, ainda que os processos de
mundializao do capital e os densos fluxos de transportes populacionais imponham a
existncia do outro no mesmo espao urbano das cidades globais, segue ele
pertencendo a um outro mundo por escapar dos padres referenciais que definem e
reafirmam o eu, valendo-se inclusive da marginalizao do outro a quem se destina
toda sorte de violncias, o que inclui a expropriao de classe intercortada por
elementos tnicos.
A crise profunda em que est mergulhada a Civilizao Ocidental; para alm das
crises econmicas, apresenta-se na forma de uma crise de modelo civilizacional que
carece ser revisto a fim de assumir configuraes inclusivas, dada a premncia da
emancipao das classes subalternas, majoritariamente populaes pobres e deslocadas
da periferia do sistema capitalista periferia que, hoje, est em todas as partes -,
contingentes que no carecem apenas dos bens materiais necessrios a sua existncia
fsica, mas famintas de existncia social, do que depende seu reconhecimento como
indivduos plenos, portadores do direito inalienvel da diferena e, no limite, do direito
de existir.
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55
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