traduzir mea culpa ao ritmo de louis-ferdinand céline
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Mea Culpa CelineTRANSCRIPT
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Ana Isabel Salvado de S
Traduzir Mea Culpa ao ritmo de
Louis-Ferdinand Cline
Trabalho de projecto do Mestrado em Traduo, na rea de especializao em Francs, orientado pela Doutora Maria
de Jesus Quintas Reis Cabral, e apresentado Seco de Traduo da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
2014
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Faculdade de Letras
Traduzir Mea Culpa ao ritmo de
Louis-Ferdinand Cline
Ficha Tcnica: Tipo de trabalho Trabalho de projecto
Ttulo TRADUZIR MEA CULPA AO RITMO DE
LOUIS -FERDINAND CLINE
Autora Ana S
Orientador a
Jri
Maria de Jesus Cabral
Presidente: Doutora Cornelia Plag
Vogais:
1. Doutora Maria de Jesus Cabral
2. Doutora Marta Teixeira Anacleto
Identificao do Curso 2 Ciclo em Traduo
rea cientfica Traduo
Especialidade Francs Portugus
Data da defesa
Classificao
Imagem capa
29-10-2014
19 valores
Ph. Coll. Archives Larbor
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Ana Isabel Salvado de S
TRADUZIR MEA CULPA AO RITMO DE
LOUIS-FERDINAND CLINE
Projecto de Traduo do Mestrado em Traduo
apresentado Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra,
sob a orientao da Professora Doutora Maria de Jesus Quintas Reis Cabral
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
2014
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memria de Louis-Ferdinand Cline.
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Agradecimentos
Gostaria, em primeiro lugar, de agradecer minha orientadora, Professora Doutora
Maria de Jesus Reis Cabral no s por toda a confiana e apoio demonstrados, tornando este
projecto possvel, como tambm pela disponibilidade demonstrada em todas as fases deste
trabalho.
Um agradecimento especial dirige-se, tambm, Professora Doutora Cornelia Plag, por
toda a sua orientao e energia, assim como aos restantes professores do Mestrado em Traduo
da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, por todo um leque de competncias e
conhecimentos transmitidos ao longo de dois anos.
Estou, tambm, imensamente grata tradutora eslovaca de Cline, Katarna Bednrov,
pelos seus preciosos consignes, a Sofia Chatzipetrou, que gentilmente me disponibilizou uma
cpia da primeira edio do texto Mea Culpa (1937), e ao escritor Alberto Velho Nogueira,
pela troca de ideias.
Por ltimo, mas nunca em menor escala de importncia, quero agradecer minha
famlia, especialmente minha me, ao meu namorado, aos meus colegas e aos meus amigos,
em particular Ana, pela ajuda na reviso e na formatao, e ao Pedro, com quem sempre um
prazer partilhar ideias de ndole poltico-
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ndice
Introduo .............................................................................................................................. 1
1. Descobrir Louis-Ferdinand Cline .................................................................................... 3
2. Mea Culpa anlise do texto original ............................................................................... 9
2.1 Consideraes gerais .................................................................................................... 9
2.2 Caractersticas formais ............................................................................................... 10
2.2.1 O panfleto como gnero textual .......................................................................... 10
2.2.2 O estilo de Cline a petite musique .................................................................. 11
2.3 Aspectos temticos .................................................................................................... 12
3. Reflexes tericas: do encontro improvvel entre a hermenutica e o ritmo .................. 14
3.1 Primeiros pontos de reflexo ..................................................................................... 14
3.2 Da desestabilizao .................................................................................................... 16
3.3 Da leitura .................................................................................................................... 18
3.3.1 Estrato fonolgico ............................................................................................... 18
3.3.1.1 O ritmo enquanto princpio semntico ............................................................. 19
3.3.2 Estrato lexical ...................................................................................................... 20
3.3.3 Estrato sintctico ................................................................................................. 21
3.3.4 Estrato semntico ................................................................................................ 23
3.3.5 Estrato cultural .................................................................................................... 24
3.3.6 Estrato pragmtico............................................................................................... 25
3.3.7 Traduzir Cline? Ou traduzir com Cline? .......................................................... 26
3.4 Da primeira verso verso definitiva ...................................................................... 28
4. Traduo de Mea Culpa .................................................................................................. 30
5. Comentrio da tipologia dos problemas relativos traduo de Mea Culpa .................. 44
5.1 Estrato fonolgico ...................................................................................................... 46
5.1.1 Incipit .................................................................................................................. 46
5.1.2 Aliteraes e anforas ......................................................................................... 48
5.1.3 Rimas ................................................................................................................... 49
5.1.4 Pontuao ............................................................................................................ 50
5.2 Estrato lexical ............................................................................................................ 52
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5.2.1 Argot e calo........................................................................................................ 53
5.2.2 Interjeies .......................................................................................................... 55
5.2.3 Neologismos ........................................................................................................ 56
5.2.4 Nomes prprios ................................................................................................... 58
5.2.5 Expresses idiomticas ....................................................................................... 60
5.3 Estrato sintctico ........................................................................................................ 61
5.4 Estrato semntico ....................................................................................................... 63
Consideraes finais ............................................................................................................ 67
Referncias bibliogrficas ................................................................................................... 69
ANEXOS ................................................................................................................................ I
ANEXO 1 ......................................................................................................................... II
ANEXO 2 ........................................................................................................................ III
ANEXO 3 ........................................................................................................................ IV
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1
Introduo
Na origem do presente projecto de traduo est o reconhecimento de que a traduo
literria convoca um universo plural epistemolgico, o qual, se certo que advm de uma forma
de mediao riqussima entre duas lnguas e duas culturas, tambm ganha substncia se
contemplar uma reflexo sobre a linguagem humana. Referimo-nos, por outras palavras,
relao dinmica e complementar entre lngua e linguagem que, quando presente num processo
cognitivo to peculiar como o do tradutor literrio, culmina quase sempre numa recompensa
intelectual. De igual modo, num sentido mais prtico, uma aliana que permite identificar
uma tipologia de problemas de traduo diferente da convencional, ou seja, por se libertar um
pouco da metodologia estruturalista e por redimensionar as noes tradicionais da lingustica,
contempla outro tipo de questes pertinentes como a presena de sociolectos, ou a singularidade
discursiva de uma voz que nos fala atravs do texto literrio.
Partindo, assim, de uma frmula heurstica mais geral, o nosso quadro terico orienta-
-se por vrias leituras dialogsticas que, do discurso hermenutico de Schleirmacher (2004),
George Steiner (1998), ou Ricoeur (1984), teoria crtica do ritmo de Henri Meschonnic (1982
e 2002), se cristaliza num quadro de anlise textual estratificado. Proposto por Joo Barrento
ico, lexical, semntico, morfossintctico, semntico,
cultural e pragmtico revela-se eficaz por atender, em primeiro lugar, s caractersticas do texto
original e, posteriormente, aos recortes de anlise do texto traduzido. Neste sentido, ao
e prtico que implica traduzir um autor to peculiar quanto Louis-Ferdinand Cline e, em
particular, o seu panfleto anti-comunista de 1937 intitulado Mea Culpa1.
Se, de facto, ao fazermos referncia traduo tanto do autor quanto do texto,
justificamos, por um lado, a pertinncia da j mencionada relao entre lngua e linguagem
subjacente a este trabalho, por outro lado tambm clarificamos a razo principal que nos levou
a escolher este texto enquanto objecto de traduo: o tributo a um dos nossos autores de eleio.
A par desta, o relevo que a traduo assume para a consolidao dos textos foi outra razo que
contribuiu para a nossa escolha, pois, no mbito deste trabalho, -nos permitida a possibilidade
de oferecer ao mundo acadmico portugus, ou a outros possveis interessados, uma fonte
1 Cline, L.-F. Mea Culpa. Paris: Denel et Steele, 1937.
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primordial de conhecimento histrico, nomeadamente quando se trata de um texto polmico
que causa um certo desconforto s editoras. Na verdade, o facto de Mea Culpa (1937) j ter
sido traduzido h aproximadamente quinze anos, por Manuel Joo Gomes, mas ter-se cingido
somente a uma primeira edio, tambm contribuiu para a nossa vontade de relanar um
documento mpar sobre o Comunismo, o qual, alm de contemplar um sentido forte dos
problemas polticos, ganha uma fora suplementar devido s marcas de testemunho pessoal.
Outra das razes coaduna-se com o questionar da aplicao de metodologias herdeiras
do Estruturalismo quando traduzimos um escritor que , ele mesmo, um heterodoxo e um anti-
-acadmico levando, portanto, a ponderar a capacidade de resposta de um quadro terico
alternativo e satisfatrio. Por conseguinte, optmos por testar a viabilidade de um mtodo que,
privilegiando o ritmo discursivo enquanto princpio semntico, aponta no s para a tentativa
de manuteno de uma prosdia pessoal no texto traduzido, como tambm para inverter a ideia
da invisibilidade do tradutor, pois inevitvel que a sua voz no se (con)funda com a do autor
ao longo de todo o processo de descodificao que, iniciado com a leitura do texto original, se
reflectir, portanto, no texto traduzido.
Neste sentido, o presente projecto de traduo encontra-se dividido em cinco partes, as
quais tambm espelham as etapas por que fomos passando: numa primeira seco apresentamos
a biografia de Louis-Ferdinand Cline, essencial para lanar as bases hermenuticas subjacentes
ao nosso processo de traduo e para dar a conhecer ao leitor as caractersticas mais gerais que
perfazem a singularidade do autor; na segunda, ainda de carcter introdutrio, propomos uma
reflexo sobre a orgnica especfica do panfleto, assim como os seus principais aspectos
temticos; j num terceiro momento, ao analisarmos sobretudo os estratos que compem o texto
original, enveredamos pelo fio condutor relativo ao nosso enquadramento terico-metodolgico
culminando, assim, num quarto momento, o qual consiste na traduo integral de Mea Culpa
(1937); na quinta parte, retomamos o modelo dos diferentes estratos proposto por Joo Barrento
(2002), para, ento, identificarmos a tipologia de problemas encontrados durante a traduo e
problematizarmos os vrios recortes de anlise, bem como as opes tomadas. Finalmente,
completamos o trabalho com as ltimas consideraes tecidas aos mtodos aplicados e aos
resultados obtidos, esperando que os mesmos possam contribuir para a sempre inesgotvel
pesquisa efectuada pelos Estudos de Traduo.
De referir ainda que o presente projecto de traduo no se encontra escrito ao abrigo
do Novo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa.
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3
1. Descobrir Louis-Ferdinand Cline
Cline a des choses nous apprendre.2
Nascido em Courbevoie, Paris, a 27 de Maio de 18943 no ambiente mpar fin de sicle,
Louis-Ferdinand Cline, pseudnimo de Louis-Ferdinand Destouches, sem dvida uma das
personalidades mais controversas do panorama literrio e poltico-ideolgico francs de boa
parte do sculo XX, assim como um dos escritores franceses mais singulares do sculo passado.
Proveniente de uma famlia de classe mdia baixa, ainda em criana que conhece a
dura realidade social e econmica de Paris ao acompanhar o quotidiano da me na loja de objets
de curiosit no centro da capital. Aos 16 anos, aps ter feito os estudos numa escola catlica,
torna-se aprendiz de comerciante de tecidos e, mais tarde, de joalheiro. Relatos deste perodo
algo turbulento da sua vida, da infncia adolescncia, encontram-se descritos com traos de
ironia e comicidade, embora custicos e imbudos de registo popular, na sua segunda obra, Mort
crdit (1937).
Em 1912, inicia o servio militar no 12 regimento da cavalaria, o que potencia a sua
participao na primeira Guerra Mundial, um dos tpicos da sua obra mais conhecida, Voyage
au bout de la nuit (1932). Devido a um ferimento no brao direito e a um tmpano lesado, so-
-lhe atribudas duas medalhas, sendo uma delas a da Cruz de Guerra. Entretanto, considerado
invlido, enviado para Londres onde vai exercer funes no Consulado Geral de Frana e
onde se casa com Suzanne Nebout, divorciando-se pouco tempo depois. Em 1916 vai para os
Camares supervisionar plantaes, mas no ano seguinte adoece e regressa a Paris. Em 1918
integra uma campanha contra a tuberculose, organizada pela Fundao Rockfeller. Aps ter
concludo o ensino secundrio, em 1920, ao lado de dith Follet, sua segunda esposa e me
da sua filha, que inicia os seus estudos de Medicina, concluindo-os com uma tese intitulada
La (1924), posteriormente considerada a sua
primeira obra literria e publicada juntamente com o panfleto Mea Culpa, em 1937.
2 Godard, Henri. Cline scandale. Paris: Gallimard, 2011, p. 14.
3 Le Magazine Littraire, n 317, Janeiro de 1994, pp. 18-22.
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Uma vez mais empenhado nas causas da Fundao Rockfeller, convidado pela Liga das
Naes, deixa a famlia em Rennes e viaja pela Europa, Estados-Unidos e frica, integrando
equipas mdicas em variadas misses. Repleto de experincias pessoais e profissionais,
novamente divorciado, com uma nova e fulgurante paixo na sua vida a danarina norte-
-americana Elizabeth Craig, a quem dedica Voyage au bout de la nuit , comea a dedicar-se
escrita e a construir a sua identidade literria. Antes da redaco do clebre Voyage chega a
enveredar pelo teatro, escrevendo uma pea em 1926, ou a redigir artigos de ndole
mdica, entre os quais La Sant publique en France (1930). Por esta altura, exerce em Paris e
comea, finalmente, a trabalhar na sua obra-prima, a qual publicada em 1932 pelas edies
Denol et Steele.
Inspirado pelas vrias etapas da sua vida (a guerra, a frica colonizada, a Amrica
taylorista ou a vida em Paris) e pelas histrias trgicas dos seus pacientes, Cline, atravs do
seu anti-heri e alter-ego contre-socit,
na qual muitos so explorados, maltratados ou mortos. Temas existencialistas e niilistas como
a podrido do ser humano, a alienao, o absurdo da vida e da guerra, ou a errncia fsica e
metafsica, esto patentes por todo o romance, suscitando no pblico leitor um confronto directo
com o mal-estar caracterstico do sculo XX, com a nusea sartriana, com o lado mais obscuro
da Frana at aos anos 30. Como assinalou o escritor e crtico Gatan Picon, citado por Maxime
Rovere, Voyage au bout de la nuit
(Rovere, 2011: 49).
No que diz respeito ao plano poltico-ideolgico, Voyage au bout de la nuit suscitou,
assim, reaces diversas, do desconcerto ao entusiasmo. Cline, at ento desconhecido, surgia
aos olhos do pblico leitor maioritariamente como um autor revolucionrio, como um moralista
de esquerda e inimigo do sistema. Quanto ao plano literrio, o gnio ex nihilo do autor
consubstancia-s
popular, inventa e reinventa a lngua francesa, oferecendo-lhe um ritmo particular (a sua
comummente designada petite musique4) e impregnando-a de vida e de obscenidades. A
consequncia resulta numa intensa polmica e numa reaco feroz por entre os crculos
acadmicos e por entre os puristas, que consideram a escrita de Cline uma provocao, alm
de um atentado contra os cdigos do bon usage literrio5. No entanto, apesar de todo este
4 Segundo a designao do prprio autor, retomada pelos seus crticos e bigrafos.
5 Para um maior aprofundamento no respeitante recepo de Voyage au bout de nuit em Frana, ver Pierre-
- Le Magazine Littraire, n 317, Janeiro de
1994, pp. 41-43.
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5
aparato, Cline ganha o prmio Renaudot com a obra que revolucionou esttica e
estilisticamente a histria da literatura francesa.
No ano seguinte, em 1933 e j sem Elizabeth Craig, comea a escrever Mort crdit,
romance autobiogrfico no qual, como referido anteriormente, relata as suas turbulentas
memrias de infncia e adolescncia. Publicado em Maio de 1936 pelas edies Denol et
Steele, os leitores so convidados a acompanhar as suas peripcias numa diegese similar quela
da Voyage, quer pelo tom niilista, quer pelos registos de linguagem, embora a escolha vocabular
seja ainda mais crua, ou, se tivermos em linha de conta que Cline vai afirmando o seu estilo,
mais apurada.
J depois de Voyage au bout de la nuit ter sido traduzido para o russo6, Cline, no Vero
desse mesmo ano, parte numa viagem URSS (Unio das Repblicas Socialistas Soviticas)
para finalizar negociaes quanto aos direitos de autor. Embora a obra tenha sido recebida
calorosamente, a ideia que se fizera deste autor no tarda a desvanecer-se, pois, ainda em 1936,
Cline compila as suas desagradveis impresses de Leninegrado e do regime comunista no
panfleto intitulado Mea Culpa. Como refere Anbal Fernandes, no prefcio da traduo
portuguesa de Voyage au bout de la nuit, C
7. No entanto, Mea Culpa um mal menor relativamente ao perodo que se segue,
dado que o escritor comea a frequentar meios de extrema-direita francesa e, aquando da
ocupao alem, assume-se como colaboracionista. Assim, em 1937 e em 1938 so publicados,
respectivamente, Bagatelles pour un massacre e furiosos e, certamente,
polmicos panfletos anti-semitas cuja reedio ainda hoje proibida em Frana e noutros
pases.
Toda a polmica e retrica anti-Cline por parte da imprensa, a par de acusaes de
difamao dirigidas tanto ao autor como aos editores, ou do decreto Marchandeau que
condenava o antissemitismo, no foram suficientes para impedir o autor de, em 1939, comear
a redigir o seu terceiro e ltimo panfleto, Les Beaux Draps, ainda publicado em 1941 pelas
edies Denol et Steele, mas interdito na zona francesa que no estava ocupada.
Em 1944 e com o Dia D a despontar no horizonte, editado , que anuncia
o regresso s vivncias do anti-heri de Cline, Ferdinand, por terras anglo-saxnicas durante
a I Guerra Mundial, sem contudo apaziguar a crtica.
6 A traduo de Elsa Triolet.
7 Cline, L.-F. Viagem ao Fim da Noite. Traduo, prefcio e notas de Anbal Fernandes. Lisboa: Babel, 2010, p. 9.
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Pouco dias aps o desembarque das tropas na Normandia, Cline e sua companheira,
receosos, pensam em fugir para a Dinamarca, mas so retidos em Baden-Baden, na Alemanha.
Na impossibilidade de obterem vistos, so transferidos para Krnzlin e, posteriormente, para
Sigmaringen onde Cline trabalha como mdico ao servio de elementos do governo de Vichy.
Os momentos vividos sob grande tenso nestas duas cidades em chamas e beira de runas so
relatados, respectivamente, em Nord e em , obras que fazem parte da
chamada trilogia alem8.
Finalmente, em Maro de 1945, chegam a Copenhaga mas, no ms seguinte, so
acusados de traio e detidos. No entanto, enquanto Lucette, a sua companheira, rapidamente
posta em liberdade, Cline permanece preso por mais um ano e meio. Em 1948, o casal vai
morar para Klarskovgaard, onde o autor mantm uma interessante correspondncia com um
jovem norte-americano de origem judaica e professor de literatura, Milton Hindus. Este ltimo,
motivado por questes relativas ao judasmo e movido pela urgncia de conhecer pessoalmente
Cline, decide ir Dinamarca. Posteriormente, publica as suas impresses num livro intitulado
The Crippled Giant9, no qual Hindus, embora neutro, deixa transparecer uma decepo que est
ao mesmo nvel da admirao que nutre pelo escritor anti-semita.
Em 1950, Cline, por deciso judicial, alm de ter de pagar cinquenta mil francos e de
grande parte dos seus bens serem confiscados, condenado a mais um ano de priso. Por fim,
cumprida a pena, -lhe concedida a amnistia e volta para Frana com Lucette, mais
precisamente para Nice e, depois, Meudon, onde residir at falecer. Entretanto, ao tomar
conhecimento que o seu editor, Denol, tinha sido assassinado em Paris, assina um contrato
com a editora Gallimard, que implica no s a reedio das suas obras em 1952, como Voyage
au bout de la nuit ou Mort crdit, mas tambm a publicao do primeiro volume de Ferie
pour une autre fois, livro em que relata os seus momentos lcidos de isolamento e de solido,
no obstante pautados por delrios, quando esteve preso na Dinamarca.
O perodo final da vida de Cline, mais sereno e durante o qual tambm volta a exercer
medicina, revela-se muito frtil no respeitante criao artstica: em 1954 so publicados o
segundo volume de Ferie pour une autre fois, intitulado Normande e Entretiens avec le
professeur Y, pequeno livro em que o autor, em tom de confisso mas com toques de
comicidade, auxiliado por um jornalista imaginrio na apresentao das suas ideias quanto
8 No respeitante a esta trilogia foram publicados, at data, Castelos Perigosos (2008) e Norte (2009) pela
editora Ulisseia. As tradues so de Clara Alvarez.
9 Para um maior aprofundamento ver Switalski, John. Chigago Review, vol. 5, n 1, 1951, pp. 44-46. Disponvel
em http://www.jstor.org/discover/10.2307/25292885?uid=3738880&uid=2&uid=4&sid=21104309095103.
http://www.jstor.org/discover/10.2307/25292885?uid=3738880&uid=2&uid=4&sid=21104309095103 -
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literatura ou controvrsia em torno do seu estilo, nomeadamente os artefactos literrios que
utiliza, como o caso do constante emprego de reticncias. Em 1956, Cline grava um disco
com a participao de Arletty e Michel Simon que lem passagens de Voyage au bout de la nuit
(1932) ou Mort crdit (1936). Por ltimo, em 1957 publicado o primeiro livro da j referida
trilogia alem, , momento que se faz acompanhar de alguma polmica
devido entrevista que o autor d, em Junho do mesmo ano, ao jornal 10. Em 1960,
aquando da publicao do segundo volume, Nord, Cline pensa numa adaptao cinematogrfica
de Voyage. No dia 1 de Julho de 1961, aps a reviso do terceiro volume da trilogia, Rigodon,
que tinha feito na vspera, Cline conhece a morte sob forma de um aneurisma e morre em sua
casa, em Meudon. Conforme escreve David Alliot, no dia do funeral un seul journaliste est
prsent ime demeure (Alliot,
2011: 55).
Para a posterioridade fica, assim, uma personalidade peculiar e inovadora, controversa
e polmica; um escritor que fez das suas palavras o reflexo da pardia amarga e desconcertante
que foi o sculo XX, nomeadamente as duas guerras mundiais, e que ofereceu lngua francesa
uma nova identidade; um perturbador de conscincias; um ser humano, afinal, incompreendido
e que deixou de crer na humanidade. O escritor francs Mikal Hirsch refere esta
incompreenso por parte do pblico, aspecto que influencia, ainda hoje, a recepo e a imagem
de Cline:
populaire contre le peuple, crivain du peuple face populace : cette image dmesure
et confuse,
relgation. (Hirsch, 2011: 50)
Como tambm refere Henri Godard, um dos principais estudiosos de Cline, a maior
parte das opinies, quer do pblico em geral, quer dos crticos, oscila
apenas a ordem de associao. Na imprensa, o cenrio no difere: o The New York Times Review
of Books ou Le Figaro Magazine, citados tambm por Godard, adjectivam Cline,
respectivamente, de idem: 19).
10 Entrevista de Cline com Madeleine Chapsal, 14/06/1957. Pode ser consultada online em
http://www.lexpress.fr/culture/livre/voyage-au-bout-de-la-haine-avec-louis-ferdinand-celine_821737.html
http://www.lexpress.fr/culture/livre/voyage-au-bout-de-la-haine-avec-louis-ferdinand-celine_821737.html -
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Em Portugal, as recenses e crticas relativamente s obras de Cline so escassas e,
grosso modo, gravitam em torno da sua obra mais popular, Viagem ao Fim da Noite, traduzida
por Anbal Fernandes. No que diz respeito a outras tradues, apenas seis obras esto
disponveis para o pblico leitor portugus, pouco familiarizado com Cline. Contudo, conta-
-se entre os seus maiores admiradores o tambm mdico e escritor portugus Antnio Lobo
Antunes, que at evoca a resposta de Cline a uma carta que lhe tinha endereado.11
Em relao a outros pases, a sua obra conhece especial fortuna em Itlia, em Inglaterra
ou nos Estados-Unidos e a sua influncia visvel, por exemplo, nos escritores da beat
generation, nomeadamente Jack Kerouac, que a refere no clebre On the Road, Charles
Bukowski, Henry Miller, Jorge Luis Borges, Michel Houellebecq, ou Milan Kundera que,
inclusivamente, financiou as despesas necessrias s tradues de Cline na Repblica Checa.
Louis-Ferdinand Cline e, sobretudo, a sua obra tm interessado tambm colquios,
artigos e dissertaes, principalmente em Frana, onde o seu nome continua a ser sinnimo quer
de seduo, quer de repulsa. Reconhece-se em Cline um gnio que reflectiu (no duplo sentido
da palavra) com implacvel lucidez fragmentos da conscincia colectiva da primeira metade do
sculo XX, atravs de um manejamento sui speciei da lngua e da linguagem.
11 Relativamente a esta carta, leiam-se as palavras do prprio Antnio Lobo Antunes numa entrevista publicada
no suplemento psilon, do Jornal Pblico, a 19 de Maro de 2010, ou online em
http://blogues.publico.pt/ciberescritas/2010/03/23/quando-lobo-antunes-escreveu-a-celine/.
http://blogues.publico.pt/ciberescritas/2010/03/23/quando-lobo-antunes-escreveu-a-celine/ -
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2. Mea Culpa anlise do texto original
terrible Mea Culpa) comme pour les gaullistes, Cline est
mort et enterr.12
2.1 Consideraes gerais
O texto em anlise, Mea Culpa (1937)13, foi redigido por Louis-Ferdinand Cline em
1936 e publicado no ano seguinte pelas edies Denol et Steele14 que, alis, publicaram parte
das suas obras, como a incontornvel Voyage au bout de la nuit (1932) ou os quatro polmicos
panfletos anti-semitas.
Numa perspectiva cronolgica, este texto revela-se essencial para compreender o
percurso literrio e poltico-ideolgico do autor, na medida em que no s foi a sua primeira
incurso no gnero panfletrio, tornando-se modelo para os que se seguiram15, como tambm,
ao denunciar o sistema comunista implantado na URSS, marcou a sua ruptura com uma prvia
conjectura de esquerda.
Na verdade, contrariamente ao impacto que tivera na ex-Unio Sovitica e registando
um considervel nmero de vendas em Frana, Mea Culpa quase passou despercebido na
imprensa francesa, sendo tambm, de todos os panfletos, aquele que menor polmica gerou.
Em Portugal, Mea Culpa foi editado pela Antgona em 1989 com traduo de Manuel
Joo Gomes (1948-2007), reconhecido tradutor e crtico de teatro, embora no tenha sido
reeditado e, no mercado, se encontre esgotado. Por conseguinte, o bref e terrible panfleto
tornou-se um pequeno tesouro nas mos de alfarrabistas ou biblifilos.
12 Sollers, Philippe. Cline. Paris: criture, 2009, p. 23.
13 Doravante, sempre que aludirmos ao texto Mea Culpa, seguiremos esta edio.
14 A ditions Denel et Steele, fundada em 1930 com o objectivo de lanar jovens escritores franceses, regista
um fraco nmero de vendas at Voyage au bout de la nuit ser, em 1932, galardoado com o prmio Renaudot. Desde
1946 faz parte da ditions Gallimard.
15 Respectivamente Bagatelles pour un massacre (1937), (1938) e Les Beaux Draps (1941),
todos publicados pelas edies Denol et Steele.
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2.2 Caractersticas formais
2.2.1 O panfleto como gnero textual16
Do latim pamphilus ao ingls pamphlet, este conceito definido no Dicionrio da
Lngua Portuguesa Contempornea Academia das Cincias de Lisboa (2011) como um
Sapiro refere que o seu entendimento, na altura, comp
.
A partir do sculo XX, mais precisamente no rescaldo da II Guerra Mundial e devido a
todo o rol de envolvncias com a Alemanha nazi por parte dos colaboracionistas, urge uma
estratgia para ilibar os escritores que alegou-se , como Cline ou Rebabet, tinham redigido
panfletos puramente literrios para a imprensa colaboracionista. Assim, aps terem repensado
a natureza do panfleto, os membros da defesa conseguem, com sucesso, validar a distino entre
produes de teor poltico, com vista propaganda, e produes de teor meramente literrio.
Estas ltimas, no entanto, como sublinha Sapiro, nunca deixaram de ser tidas em conta e
avaliadas com particular ateno nos tribunais, nomeadamente no respeitante forma, ao estilo
e ao gnero, pois
rapproche de la figure du
stylistique qui caractrise le polmiste. (idem: 592)
Desenham-se, deste modo, duas figuras distintas: a do pensador, ou do filsofo que
escreve tratados ou ensaios, e a do polmiste, que escreve panfletos ou artigos de jornal.
Contudo, devido ao reconhecimento do cunho literrio que o panfleto conhecera com Lon
Bloy, e particularmente com Louis-Ferdinand Cline, esta distino reveste-se ainda de uma
complexidade maior. O lado da acusao, todavia, no deixa de considerar o panfleto, ainda
que inscrito na tradio das humanidades e enquanto gnero literrio, ou confessional, violento
e ao servio do inimigo, sem tambm ponderar que muitos poderiam ter sido publicados apenas
com o intuito de documentar um perodo histrico (idem, ibidem).
16 Por uma questo de
-
11
Antes do perodo ps-guerra e consequentes avaliaes em matria do gnero
panfletrio, este j tinha sido renovado por Cline. O autor, algo desiludido com a recepo dos
seus dois primeiros livros, Voyage au bout de la nuit (1932) e Mort Crdit (1936), e
partilhando a repulsa sentida pelo povo no que diz respeito a injustias ou classe da burguesia,
reorienta a sua veia literria para o panfleto, redigindo, em 1937, Mea Culpa. Naturalmente,
este primeiro panfleto, publicado antes da II Guerra Mundial, no se inscreve na polmica que
circunscreve os panfletos anti-semitas que viria a escrever, embora sirva um campo literrio
que j comeava a politizar-se e que se tornaria propenso a toda uma propaganda de teor
colaboracionista (idem: 603).
2.2.2 O estilo de Cline a petite musique
Numa entrevista concedida revista online Salon Littraire17, o autor e crtico belga
Frdric Saenen, a propsito do seu Dictionnaire du pamphlet18, relembra que, na maior parte
dos casos, um panfleto, enquanto gnero, escrito por algum no s com slidas referncias
histricas e ideolgicas, mas tambm que pertence a um crculo acadmico ou literrio. Por
conseguinte, o estilo do autor, cristalizado com o tom utilizado, revela-se de capital importncia
para a anlise de um panfleto.
Assim, a componente essencial a ter em linha de conta no que concerne a Mea Culpa
prende-se com a sistematicidade, ou lealdade, com que o estilo de Cline, qual leitmotiv, est
patente na totalidade da sua produo literria, quer esta se apresente sob a forma de romance
autobiogrfico, quer sob a forma de panfleto.
Ora este estilo literrio, designado metaforicamente de petite musique pelo prprio
autor, encontra a sua maior fora expressiva no ritmo que, embora invisvel, apresenta e
representa a oralidade da linguagem no texto escrito, incitando a uma reflexo sobre as
caractersticas da prosdia e a um levantamento de aspectos que priorizem a lgica desta
estratgica estilstica. Deste modo, visando sobretudo dar energia ao discurso e, ao mesmo
tempo, revitalizar a lngua escrita, observam-se como principais estratgias o emprego
exaustivo de reticncias, de variadssimas expresses idiomticas, neologismos, calo e argot,
de elipses, de ambiguidades sintcticas e de onomatopeias, todas contribuindo para o efeito
esttico do texto no seu todo.
17 A entrevista pode ser consultada online em http://salon-litteraire.com/fr/frederic-saenen/content/1807818-
frederic-saenen-pamphlets-polemiques-et-autre-disputatio.
18 Saenen, Frdric. Dictionnaire du pamphlet. Gollion: Infolio, 2010.
http://salon-litteraire.com/fr/frederic-saenen/content/1807818-frederic-saenen-pamphlets-polemiques-et-autre-disputatiohttp://salon-litteraire.com/fr/frederic-saenen/content/1807818-frederic-saenen-pamphlets-polemiques-et-autre-disputatio -
12
Naturalmente, e se se pensar nas caractersticas textuais de Proust, enquanto cnone, o
mal-crire volontaire (Meizoz, 1996: 105) de Cline incita a reaces negativas por entre
os puristas, que entendem a sua escrita como uma violao do francs padro. Repensar a
identidade de uma lngua atravs do corpus literrio de Cline, o qual marcou uma importante
ruptura esttica no panorama da linguagem, lngua e literatura francesas do sculo XX, ainda
se entende como um atentado feroz. Tal como referiu recentemente Hirsch:
- -ce
que la langue sans littrature
problmatique volontairement carte, avec tout ce que cela comporte de paradoxe,
(Hirsch, 2011: 53)
2.3 Aspectos temticos
Apesar de no haver quaisquer referncias, por parte de Cline ou pelos crticos
literrios, quanto aos motivos que justificam a escolha do latinismo Mea Culpa para ttulo do
panfleto, sugere-se apenas que possam ter estado associados a uma necessidade de confisso,
ou um pedido de perdo do autor por ter afirmado uma poltica de esquerda, em 1932, com
Voyage au bout de la nuit19 (Merlin, 1979: 129).
Ora, quatro anos depois, e precisamente por razes que se prendiam com os direitos de
autor do seu magnum opus, Cline faz uma viagem a Leninegrado. Quando regressa, desiludido
e revoltado, decide compilar as suas impresses sobre a cidade, a URSS e, em particular, sobre
o sistema comunista vigente.
Mea Culpa, uma descida aos Infernos do niilismo moderno (Pags, 2010: 279), oferece-
-nos, por isso, alm de uma viso geral
ab irato e em
primeira mo sobre o comunismo, uma denncia de um sistema poltico carregado de iluses e
recheado de hipocrisias pois, em vez de suprimir as desigualdades, acentua-as ainda mais, ao
mesmo tempo que invoca, subtilmente, o materialismo. A traio dos verdadeiros ideais
comunistas, mesmo que tericos, pelos soviticos, tambm est presente no texto, logo nas suas
primeiras linhas
19 Cf. Thomas, Merlin. Louis-Ferdinand Cline. New York: New Directions, 1979, p. 129.
-
13
No curso da sua leitura, facilmente se depreende uma vocao que comea a ganhar
forma relativamente redaco de panfletos: poucos meses depois, Cline escreve um segundo,
Bagatelles pour un massacre, no qual, entrelaado j com outros temas, como os ataques aos
judeus, volta a afirmar-se a sua antipatia ideolgica quanto ao comunismo e a denncia de um
sistema que no funciona na prtica.
-
14
3. Reflexes tericas: do encontro
improvvel entre a hermenutica e o ritmo
3.1 Primeiros pontos de reflexo
Inscrita numa tradio milenar, a traduo de literatura tem sido uma das condies sine
qua non para saciar a curiosidade intelectual do ser humano em relao ao mundo que,
composto por uma diversidade de lnguas e culturas, oferece um considervel e riqussimo
patrimnio lingustico e artstico-literrio.
De facto, a noo de diversidade, ou at de diffrance20, para aludir a Jacques Derrida,
um dos factores que mais suscita o simples desejo de ler para obter conhecimento ou, num
definir ou eliminar fronteiras, de estabelecer pontes, de comunicar e compreender, em suma.
Entende-se assim que, actualmente, numa era em que a comunicao se apresenta em
larga escala facilitada, a traduo desempenhe um papel influente ao permitir uma maior
difuso de obras literrias e ao colmatar um maior nmero de barreiras lingustico-culturais. De
igual modo, num momento em que as Humanidades enfrentam uma crise de identidade21,
sobretudo depois do final do sculo XX, o contributo da investigao no campo da traduo
apresenta-se como uma mais-valia para todo o interrogar caracterstico da Literatura Comparada.
Os Estudos de Traduo, alis, parecem ocupar um lugar pioneiro nas questes rizomticas que
ocupam a Literatura Comparada. Como afirma e enfatiza Susan Bassnet
upon translation studies as the principal discipline from now on, with comparative literature as
a valu (Bassnett, 1993: 161).
Por conseguinte, devido a toda a sua importncia e proliferao, os textos literrios
traduzidos tm sido, tambm desde tempos remotos, objecto das mais variadas crticas e
20 O neologismo diffrance, cunhado por Derrida, evoca parmetros espaciais e temporais, em que a noo de
. Para um maior aprofundamento, ver a entrada diffrance
no Dictionnaire historique de la langue franaise, dirigido por Alain Rey, Paris: Dictionnaires Le Robert, 1992,
pp. 602-603.
21 Ver um dos ecos desta crise em Tzvetan Todorov. La Littrature en pril, Paris: Flammarion, 2007.
-
15
reflexes, a par, naturalmente, da figura do tradutor e da prpria actividade ou ofcio de traduzir,
o que contribui para a consolidao de vrios files tericos. No entanto, plausvel afirmar
que, de Ccero era da traduo automtica, o vasto universo da teoria da traduo, no que
concerne literatura, ainda continua escasso em reflexes e orientaes prticas. Nas palavras
de Bassnett:
Although there is a large body of work debating the issues that surround the translation of
poetry, far less time has been spent studying the specific problems of translating literary
prose. One explanation for this could be the higher status that poetry holds, but it is more
probably due to the widespread erroneous notion that a novel is somehow a simpler
structure than a poem and is consequently easier to translate. (Bassnett, 2002: 114)
Independentemente da tipologia textual que adopte, a literatura per se, enquanto
manifestao lingustica, cultural e artstica revestida de subjectividade, implica e exige uma
anlise complexa. A prosa, tambm na medida em que compreende no s o romance ou o
conto, mas a autobiografia, a epstola, a crnica, o ensaio ou o panfleto, pode condensar em si
uma variedade de campos do saber, como a Histria ou a Filosofia, invocando uma dinmica
e prosa enquanto
clture estrutural, paralisando-o. Significa,
tambm, uma no-ramificao do pensamento quando est em causa a singularidade de cada
texto e de cada autor.
Sublinhamos, portanto, que necessrio ter em linha de conta que a anlise da estrutura
de um texto apenas o primeiro passo de uma operao elaborada e minuciosa. Ademais, por
nele tambm se inclurem vrios nveis de lngua, o processo de traduo apela reconstituio
no apenas do que est (Barrento, 2012: 17),
que compreendem, por exemplo, o ritmo ou as aluses. Neste sentido, e na medida em que a
traduo, posto de observao das estratgias da linguagem (Meschonnic, 2012: 15), incita a
pensar o fenmeno lingustico, cultural e literrio, a reflexo do tradutor que se debrua sobre
o texto literrio congruentemente tender a um processo de desvelamento interpretativo do
mesmo.
Com efeito, a questo retrica colocada por Schleiermacher
frequentemente obrigados a comear por traduzir o discurso de algum que, sendo em tudo
(Schleiermacher, 2004: 25) sublinha claramente a noo da diferena, a importncia de se
considerar a presena de idiolectos na tessitura da linguagem que, consequentemente, se
-
16
enrazam numa produo literria. Tambm George Steiner, influenciado pela abordagem
hermenutica de Friedrich Schleiermacher, afirma:
Each
of us inevitably qualifies the definitions, connotations, semantic moves current in public
discourse. The concept of a normal or standard idiom is a statistically-based fictio
The element of privacy in language makes possible a crucial, though little understood,
linguistic function. Its importance relates a study of translation to a theory of language
as such. (Steiner, 1998: 47)
Deste modo, a ideia de que cada indivduo tem uma discursividade nica, inseparvel
de uma subjectividade, o ponto de partida para a dimenso hermenutica subjacente a este
projecto de traduo. Trata-se, efectivamente, como lembra Henri Meschonnic na sua definio
Meschonnic, 1982: 91).
3.2 Da desestabilizao
Embora colocando entraves etapa de definir um modus operandi mais prtico e
aplicvel traduo de textos literrios, o desvio de uma abordagem hermenutica, enquanto
regozijo e desafio maior deste trabalho, em direco a um optimismo estrutural significaria o
no reconhecimento da singularidade discursiva do autor, a aceitao da sua morte. Por outas
palavras, desviarmo-
ipso facto,
est subjacente leitura e, posteriormente, reescrita22 de um autor como Louis-Ferdinand
Cline.
Neste sentido, a observao de Henri Godard extremamente elucidativa:
itudes de toujours. Pour jouir de
ce que nous apporte cette criture il faut commencer par . Que
veulent dire, exactement23, ? Ce pronom
renvoie-t-il ceci ou cela ? (Godard, 2011: 21)
22
enquanto um novo texto que, no continuum da actividade do discurso humano, continua o texto original.
23 Sublinhados nossos.
-
17
Efectivamente, se so os leitores nativos da lngua francesa quem, em primeiro lugar,
(con)sente e experiencia desestabilizao pela leitura dos textos de Cline, faz sentido que o
nvel do desafio implcito nas suas tradues se revele algo audaz. Por outras palavras, o
processo de traduo de Mea Culpa funciona na base de um pressuposto: aceitar a
desestabilizao inerente ao discurso do autor.
Ora, na origem deste desassossego est, precisamente, a rdua aceitao de uma
linguagem que emerge da oposio entre a lngua literria francesa (clara, correcta e lgica,
como se l na literatura clssica) e a lngua oral transposta para a escrita. Importa tambm
salientar que a noo de oralidade na literatura francesa se desenvolve nos anos 30-40 do sculo
passado, incitando os linguistas a intensos e acesos debates acerca da sua plausibilidade na escrita.
Naturalmente, a obra Voyage au bout de la nuit (1932), de Louis-Ferdinand Cline, ilustra a
discusso: aceitar o registo familiar e a oralidade num texto literrio, no s no plano do
narrador, como tambm na sua totalidade, ter-se-ia revelado bastante audacioso, pois o nico
enquanto modesto recurso ao servio da caracterizao de personagens.
No entanto, o valor da oralidade ao transpor para o texto a expresso de sentimentos
e impresses, ao deformar a sintaxe e ao transcrever o vocabulrio tal como na realidade,
transmitindo, assim, o no seno atravs da lngua escrita e literria que
se concretiza, tornando-se visvel, audvel e quase palpvel.24 So, afinal, caractersticas de uma
linguagem to particular como a de Cline que, qual antema no sistema lingustico-
-literrio francs, exalta o primado da lngua oral.
Porm, exactamente o uso que cada autor faz no s da lngua, como tambm da
linguagem, que revela, em maior ou menor intensidade, a sua personalidade. Uma produo
literria no apenas o reflexo cultural do padro de determinada comunidade lingustica, mas
os seus desvios, muitas vezes materializados no carcter individual do autor, nas suas
137), voz essa que fala ao tradutor-leitor e comea
por ser percepcionada no acto de leitura, etapa imprescindvel ao processo de traduo.
24 As consideraes relativas lngua oral, nomeadamente quanto aos debates nos crculos acadmicos, foram
discutidas com a tradutora eslovaca de Cline, Katarna Bednrov, a quem agradeo a partilha de informaes.
-
18
3.3 Da leitura
Translation is the most intimate act of reading.25
A leitura prvia do texto original, aconselhada por um vasto leque de tericos da
traduo como Gayatri Spivak (2009), Joo Barrento (2002), George Steiner (1998) ou Peter
Newmark (1988), nem sempre encarada com a devida ou merecida seriedade. Embora no
sendo uma leitura ingnua, nem individual, mas crtica e a duas vozes, esta etapa no s
fundamental anlise hermenutica como tambm aquela que convida o tradutor a entrar no
50).
Ainda segundo este autor (idem: 24), a leitura essencial para a identificao dos quatro estratos
seguintes, que nos propomos a desenvolver:
- o fonolgico, o lexical e o morfossintctico;
- o semntico;
- o cultural;
- o pragmtico.
3.3.1 Estrato fonolgico
responsvel pela pretensa intraduzibilidade de idem, ibidem), constitui um dos
desafios maiores relativamente reescrita de Mea Culpa no sistema lingustico do portugus.
O desejo de respeitar e manter a petite musique do autor, que joga com os ritmos e as
sonoridades, nasce, por um lado, da vontade de seguir o conselho dado pelo prprio Cline a
John Marks26, primeiro tradutor ingls de Voyage au bout de la nuit
dans le rythme toujours dans (Ifri, 2011: 70). Por outro lado, na esteira de Henri
Meschonnic, entendemos que aquilo que se traduz no campo literrio ultrapassa as palavras,
unidades lingusticas estticas limitadas e analisveis luz da conveno saussuriana
significado-significante. O que se traduz so, por sua vez, discursos que, caracterizados pela
singularidade expressiva de uma voz inscrita historicamente, so os verdadeiros portadores das
25 Outside in the Teaching Machine. London and New York:
Routledge, 2009, p. 398.
26 Cline, L.-F. Journey to the End of the Night. Translated by John. H. P. Marks. Boston: Little Brown and
London: Chatto & Windus, 1934.
-
19
subjectivaes de quem as profere27. Deste modo, mesmo considerando a traduo de palavras,
estas nunca se (re)conheceriam no dicionrio, mas sim no efeito que produzido no ouvido.
Ora a voz, o ritmo e o discurso, comeam precisamente por ser detectados na etapa que diz
respeito leitura.
Por este motivo, propomos uma reflexo mais atenta primazia do ritmo subjacente a
todo o processo de traduo de Mea Culpa.
3.3.1.1 O ritmo enquanto princpio semntico
De acordo com Henri Meschonnic, pensa-se a linguagem no atravs da lngua (com as
suas categorias lexicais, morfolgicas e semnticas), mas atravs do discurso, compreendendo
ns le langage, avec
sa physique
comunicao cinsica, leva-nos, em primeiro lugar, ao encontro das palavras do encenador
Antoine Vitez28 que, numa conversa com Meschonnic, refere o seguinte quanto voz de Cline:
quelle pourrait tre la voix de L.-F. Cline. Je leur demandais de lire les textes de Cline
quoi tait faite cette voix, la voix qui parle dans les textes de Cline. Certains lments
de
choses de la conduite politique et morale de Cline. (Vitez, 1982: 29)
De facto, e rejeitando estratgias de leitura mecanicamente estruturalistas, aquela que
evocada por Vitez parece adequar-se perfeitamente ao enriquecimento do processo de traduo.
Tal como os actores de teatro, enquanto tradutores-leitores, beneficiaremos se imaginarmos o
tom de Cline, se lhe dermos voz, se ouvirmos o ritmo original de Mea Culpa.
Com efeito, aps uma leitura oral, a voz angustiada de Cline parece despertar,
encaminhando-se, assim, para um novo discurso, o que, em segundo lugar, nos leva ao encontro
27 Lembramos este passo fundamental de Critique du rythme. Anthropologie historique du langage, que retoma
In Critique du rythme. Anthropologie historique du langage.
Lagrasse: Verdier, 2009, p 71.
28 Antoine Vitez (1930-1990) foi actor, encenador e director do Teatro Nacional de Chaillot. Ver a entrevista de
Vitez a Meschonnic em Vitez, Antoine. Entretien avec H.
Langue franaise, n 56, 1982, pp. 24-34.
-
20
de Meschonnic (2002) na verdade, fazendo jus etimologia do
, da continuidade dos textos num outro tempo e numa outra lngua,
pois, ainda de acordo com Meschonnic (2002), traduzir continuar as subjectivaes do autor
no continuum do discurso humano. Por outras palavras, no se traduz a lngua, mas o discurso.
Desta particularidade, embora bastante contestvel nos crculos de traduo, deriva
essencialmente a ideia de que, no texto de origem, h mais do que palavras inscritas num
sistema lingustico, h um discurso que, portador de voz, modela um modo de pensar nico.
Neste sentido, interessa-nos particularmente a noo de ritmo enquanto princpio semntico que
importa transportar para um outro discurso. Continu-lo. Por conseguinte, um dos objectivos
que se espera alcanar na traduo de Mea Culpa que esta no sofra de arritmias.
Em suma, dar voz a Cline atravs de uma leitura em voz alta permite libertar no s a
espontaneidade do seu discurso, caracterizado, por exemplo, pelas repeties, como tambm a
respirao do texto, pautada pelo uso frequente de reticncias, ambas ilustrando um rol de
emoes muito singular, que no ser percepcionado se no ouvirmos o ritmo do texto. Afinal,
como observa
infini de mondes possibles , dont participe aussi ce qui ne se voit pas du discours. Le silence
Proust, le magntisme de Pessoa. (Cabral, 2014: 13)
3.3.2 Estrato lexical
Entre o material da linguagem em aco (Foucault, 2005: 161) encontram-se as palavras
que, quer consideradas unidades elementares, quer complexas, nos interessam particularmente
enquanto designaes de conceitos. No entanto, encaradas na iluso da autonomia, podem
muitas vezes ser opressivas para o processo de traduo, se se considerar que o simples recurso
a dicionrios monolingues ou bilingues resolve a questo da equivalncia lexical. Afinal, estas
unidades lingusticas so inseparveis da subjectividade, ou personalidade do autor (Baker,
1992: 12), o que relativiza, assim, a sua significao lingustica.
De facto, e numa linha de pensamento hermenutico, as aporias inerentes ao problema
do espelhamento linguagem-realidade condicionam o reconhecimento legtimo destas
unidades-mensagem presentes no texto original, nomeadamente devido a questes pragmticas
e culturais, coordenadas sincrnicas e diacrnicas, ou simplesmente devido interveno
imaginativa do autor ao criar ambiguidades lexicais ou neologismos.
No que diz respeito ao texto em anlise, as aporias so uma constante. A linguagem
cliniana, tour de force da criatividade e inovao lingustica do autor, ao recorrer a analogias
-
21
pitorescas ou a neologismos ad hoc, convida, sem dvida, a um investimento mais criativo do
que terico durante o processo de traduo. Tambm a presena de um tipo de sociolecto muito
particular, designado de argot, constitui um dos desafios maiores na traduo de Mea Culpa,
pois remete para vrias questes, a saber, a da traduo intralingustica, a da equivalncia
cultural e a das variaes lingusticas.
Embora definido pelo dicionrio Larousse tions ou
-
-lingustico designado de argot no de fcil interpretao, nomeadamente quando se manifesta
num corpus literrio especfico como o de Louis-Ferdinand Cline. Oscilando entre uma
caracterstica estilstica e uma determinao em contrariar a lgica da linguagem literria, o
argot cliniano resulta numa osmose entre um inteligente jogo de palavras, o vocabulrio de
especialidade mdica, o patois e a linguagem popular falada nas regies mais pobres de Paris,
com conotaes escatolgicas ou sexuais. Deste modo, no s estamos perante um exerccio de
criatividade que imprime peculiar identidade escrita do autor, como tambm lidamos com um
conjunto de particularidades discursivas inscritas numa linguagem codificada.
Naturalmente, acresce tambm o facto de a utilizao do argot estar sempre associada
a um perodo preciso. Por ser geracional, o tipo de vocabulrio que mais rapidamente sofre
alteraes. Depreende-se, portanto, que o texto original, ao registar o argot em voga dos anos
30 aos anos 50 do sculo passado, comporta em si um leque de unidades lexicais que j no so
compreensveis hoje em dia para os nativos da lngua francesa.
Neste sentido, apesar de o recurso a dicionrios generalistas ou especializados em argot
ferramenta imprescindvel , colmatar um considervel nmero de problemas especficos, h
que rec -
(Steiner, 1998:29). Consequentemente, a desestabilizao insiste em permanecer, incitando a
um baloiar entre o contributo terico, minimum neste caso especfico, e a criatividade, entre
tradio e inovao.
3.3.3 Estrato sintctico
No que diz respeito ao quadro de anlise sintctico, o ponto de partida do nosso trabalho
assenta na ordem cannica da frase no sistema lingustico francs. Tal como outras lnguas
latinas, e em prol de uma lgica comunicativa, rege-se pelo padro sujeito verbo
complementos. No entanto, esta linearidade, ao contrrio das lnguas que apresentam uma
-
22
estrutura frsica relativamente livre, origina, no processo de traduo, uma tenso maior entre
sintaxe e funo comunicativa (Baker, 1992: 166).
Um dos factores que mais contribuem para a presena desta tenso exactamente o
facto de a traduo trabalhar com frases inscritas num cdigo semiolgico muito particular, a
escrita, que, ao contrrio da oralidade, exige o cumprimento de determinadas regras sintcticas.
De igual modo, e independentemente do grau de criatividade, o mesmo princpio ainda aplicado
em larga escala escrita literria.
Uma questo pertinente, nomeadamente para a anlise sintctica de Mea Culpa, a da
noo de frase enquanto portadora de uma ou vrias ideias que se finalizam graficamente com
pontuao, geralmente o ponto final. Neste sentido, a predominncia de reticncias no texto
indica que, para alm de manifestar traos prosdicos, boa parte das frases no est completa,
pelo que as precedentes registam, nalguns casos, solecismos. Mas o objectivo da sintaxe
cliniana, ao servio da transposio do registo oral para a escrita, precisamente o de libertar
o mago da linguagem e as emoes do cdigo normatizado e ressecado da escrita, deixando-
-as fluir no discurso tal como so experienciadas na realidade.
Leiam-se, sobre este assunto, as palavras do prprio autor numa carta endereada a
Milton Hindus29:
[I]l faut imprimer aux phrases, aux priodes une certaine dformation, un artifice tel que
lorsque vous lisez le livre [Voyage au bout de la nuit
Ou, num excerto de Entretiens avec le professeur Y30 (1954), j caracterstico da sua
praxis discursiva:
!... comme je vous le dis
vous jure en
crit parl it fime
!
Em suma, ao depararmo-nos no texto original com uma sintaxe voluntariamente
deformada, ou seja, que apresenta discrepncias entre a voz sinnimo de identidade e a
29 Etudes franaises, vol. 10, n 1, 1974, p. 18.
30 Cline, L.-F. Entretiens avec le professeur Y. Paris: Gallimard, 1955, p. 9.
-
23
gramtica, a tenso referida por Mona Baker (1992) alcana propores diferentes. De facto, se
o estranhamento se faz sentir desde o incio na lngua francesa, o problema ultrapassa
estratgias como a simples nominalizao ou a mudana de voz, incitando-nos a continuar, no
texto traduzido, essa mesma estranheza. Na verdade, no h como enveredar por um mtodo de
domesticao de Cline, pois a sua linguagem , semelhana do autor, fortemente heterodoxa.
3.3.4 Estrato semntico
Como bem lembra George Steiner (1998: 192), os tradutores de literatura tm vindo a
desde o Modernismo, nomeadamente a partir dos
escritos de Ortega y Gasset. Este perodo, contestatrio e marcado pela dissoluo de valores
filosficos e literrios at ento impostos, convida-nos a entrar num novo modo de sentir.
Atentemos s
become idiolect, when it seeks untranslata
(idem, ibidem)
A semntica, campo conceptual muito sensvel e terico por natureza, desempenha um
papel fundamental para a traduo de literatura. No entanto, transcende, por exemplo, questes
de ambiguidade lexical as quais podem sempre ser resolvidas pelo estudo do contexto, pelo
recurso a dicionrios ou simplesmente pelo facto de se dominar satisfatoriamente a lngua e
cultura do texto de origem e coloca outras incitadas pela hermenutica, logo mais complexas.
Se o sentido do texto reside nas palavras, isoladas, ou no texto, uma questo lingustico-
-semntica herdeira do Estruturalismo que no nos toma o interesse no presente trabalho.
Interessa-nos, sim, a expresso da singularidade de um autor. Partir do princpio que algum
dialoga connosco. Por outras palavras, convm movermo-nos da objectividade da anlise
lingustica para a subjectividade da hermenu
no passa de uma iluso, de um mito. O sentido, alis, no reside no texto per se,
antes constri-se na pluralidade de leituras. Como tal, estamos cientes de que a relao dialgica
que se instaura entre ns e o autor, ou seja, a nossa interpretao cognitiva de Mea Culpa,
desenha apenas uma alternativa, uma das variadas projeces da espiral interpretativa.
Voltando a G. Steiner:
interpretation so precisely exhaustive as to leave no single unit in the source-text
phonetic, grammatical, semantical, contextual
know that in practice this perfect fit is possible neither at the stage of the interpretation
nor at that of linguistic
-
24
theoretically conceivab
demonstrate the excellence, the exhaustiveness of an act of interpretation and/or
translation is to offer an alternative or an addendum. (Steiner, 1998: 428)
De facto, ao tentar continuar no texto traduzido a voz do autor, escutam-se e entrelaam-
-se vivncias nicas, as quais correm o risco de serem deformadas pela leitura e posterior
recontextualizao do discurso num outro tempo, num outro lugar e atravs de um outro sistema
lingustico. Contudo, precisamente devido aos variados focos da luz interpretativa sobre o
texto original que o exerccio da traduo, por natureza apelando a que se v mutatis mudandis,
sinnimo de dinamismo e nunca se esgota em si mesmo.
3.3.5 Estrato cultural
Porque os textos no nascem ex nihilo e porque traduzir no se limita apenas a operaes
lingusticas ou a incurses metafsicas, o reconhecimento da dimenso cultural presente no
texto de origem revela-se da maior importncia para o processo de traduo.
Enquanto espao de reflexo bastante alargado, interessa-nos, numa primeira ordem de
latu sensu
(Dicionrio da Lngua Portuguesa Contempornea Academia das Cincias de Lisboa, 2011).
No entanto, devido ao lugar de destaque que a linguagem ocupa neste trabalho, no ser
suficiente se ficarmos pelo minimalismo deste primeiro passo. Por conseguinte, a definio de
the way of life and its manifestations that are
peculiar to a community that uses a particular language as its means of expression (Newmark,
1988: 94), j sublinha no s as especificidades da linguagem ao servio de uma determinada
comunidade lingustica, como tambm a noo de que a linguagem , a priori, parte integrante
da cultura.
Naturalmente, no mbito de uma hiptese mais geral, impensvel no considerar o
imprint cultural francs no texto original. Mas, devido aos alicerces hermenuticos nos quais
este trabalho se apoia, tomamos sobretudo interesse pela anlise da inscrio do autor enquanto
sujeito histrico individual, a par da manifestao das imagens culturais, tambm elas inscritas
durante a etapa da leitura de Mea Culpa, essencial filtrar o desvio do autor da memria
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a 50 do sculo passado e reconhecer que o
que se manifesta a pertena a um grupo sociocultural e lingustico especfico e marginalizado.
Efectivamente, entender a cultura no singular, ou seja, enquanto expresso coesa de uma
comunidade de falantes, seria negar a dialctica inerente sua realidade. Como resultado, no
processo de traduo, o desafio ultrapassa a resoluo de questes como os topnimos ou as
expresses idiomticas. Uma vez mais, abrange a aura de singularidade e originalidade presente
no uso da lngua francesa por Cline, assim como o desafio de dar a conhecer aos leitores
portugueses uma realidade histrico-cultural e lingustica com toda a sua carga contraditria.
3.3.6 Estrato pragmtico
Numa perspectiva aristotlica, a fisionomia de um texto dificilmente se separa de uma
das realidades que mais o substancia e lhe d sentido, ou seja, o contexto. verdade que,
semelhana de um enunciado oral, tambm os textos evidenciam determinados traos e
expresses provenientes do uso da linguagem in loco e com coordenadas temporais definidas.
No entanto, devido ao absolutismo por que se rege o estudo da significao pragmtica31,
na medida em que contempla tanto textos jornalsticos como jurdicos ou textos literrios
nomeadamente quando estes envolvem a fico ou a filosofia parece-nos lcito contrariar este
princpio e defender uma viso mais elstica, pois tratamos de um texto literrio, cuja riqueza
contextual (cor)responde a uma actividade emprica mais dilatada.
Neste sentido, ultrapassado o bloqueio estrutural, adoptamos uma vez mais o ritmo
sinnimo da actividade discursiva inerente a Mea Culpa enquanto princpio de orientao
pragmtica. Deste modo, debruamo-nos no sobre a determinao dos actos ilocutrios,
passveis de vrias implicitaes, mas sobre o questionamento do valor dos mesmos, enquanto
presenas activas no discurso literrio. Michel de Fornel escreve precisamente:
dplacement fondamental par rapport aux approches smantiques traditionnelles qui ne
rel, calcul
(Fornel, 1982: 70)
Na verdade, o estudo da linguagem in loco dificilmente pode desobedecer a critrios
semnticos que no incluam o estudo da prosdia. Afinal, ouvir o ritmo do discurso permite
evidenciar a relao constante entre linguagem, histria e sociedade (Meschonnic, 2002). Neste
31 Referimo-nos, nomeadamente, classificao gramatical dos actos ilocutrios no mbito da Lingustica Textual.
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panorama e deste modo estabelecendo um ponto de encontro com o primeiro estrato, o
fonolgico , constatamos que a leitura em voz alta contribui, assim, para a reconstruo do
dilogo texto-contexto de Mea Culpa, que, alis, manifesta no s um ritmo prosdico, mas
tambm sintctico, devido ao constante emprego de reticncias.
Trata- ue implica,
em primeiro lugar, o reconhecimento de fronteiras no s cronolgicas, mas tambm
epistemolgicas (Anacleto, 2010: 47). Acresce, tambm, a conscincia da natureza dinmica e
dialctica resultante da fuso de duas vozes, assim como a noo de apropriao do sentido,
dimenses nunca limitadas, nomeadamente porque a forma de ouvir acarreta uma
multiplicidade de interpretaes, activadas por diferentes leituras.
, de facto, aqui que o desafio subjacente traduo de Mea Culpa torna a justificar-
-se, pois est sempre associado tentativa de fazer emergir, num sistema em aberto e de infinitas
possibilidades, um dos pontos de equilbrio na comunicao humana.
3.3.7 Traduzir Cline? Ou traduzir com Cline?
Apesar de nos termos debruado essencialmente sobre o texto original ao longo desta
primeira etapa, a sua leitura revelou-se, num primeiro momento, imprescindvel para
estabelecer um contacto ntimo com a singularidade da voz do autor, incitando, com particular
nfase na linha da hermenutica, reflexo sobre as transferncias e o modular de sentido,
abarcando, nomeadamente, a questo do ritmo e da prosdia pessoal. Ora esta primeira relao
dialogstica, que inclui as tentativas de compreenso e de interpretao do texto original,
precisamente aquela que nos encaminha para o incio do processo que envolve a reescrita do
texto original.
De igual modo, a identificao e anlise do terreno lingustico-gramatical, cultural e
literrio do texto original (Barrento, 2002: 22) lanou-nos na racionalizao do grau de
parentesco, ou espelhamento, a estabelecer com o texto traduzido. Se, alis, considerarmos que
o conjunto dos estratos analisados, no seu todo, produz no leitor um determinado efeito esttico,
far sentido que queiramos mant-lo no texto traduzido. De facto, como lembra Joo Barrento
(idem: 17), o importante ser manter a correspondncia no plano dos efeitos e envolvimentos
num novo contexto.
Numa segunda ordem de ideias, mas no germe da reflexo e definio de estratgias no
respeitante traduo de Mea Culpa, comemos a esboar a ideia central, parece-nos de
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Entendemo-lo, ao invs, enquanto modo de expresso genuno da personalidade do autor, a qual
combina caractersticas intelectuais com caractersticas culturais. Ou por outra, como dissera
M. de Buffon em 1753, 32.
Nestes moldes, consideramos especialmente pertinente questionar a sua articulao com
in the receptor language the closest natural equivalent of the source-language message, first in
numa escala hierrquica, assume uma funo subordinada, ou seja, na perspectiva de Nida, a
sua considerao vem em segundo lugar. No nosso entender, na medida em que o estilo vincula
a personalidade do autor, e aqui inclumos a sua voz, a sua linguagem e a sua fluncia
discursiva, julgamos ser apropriada uma deslocao de posies hierrquicas ou, na melhor das
hipteses, uma fuso que inclua estilo e sentido. Por outras palavras, se pensarmos num tipo de
equivalncia a privilegiar, certamente entendemos que o estilo desempenha uma funo de
-equivalncia , pois este o elemento essencial para o modo como lemos o texto, ou
seja, como apreendemos o seu sentido.
Na verdade, esta ideia do estilo enquanto denominador comum para o modo como lemos
e interpretamos os textos partilhada com uma rea especfica dos Estudos de Traduo33 que,
luz de correntes literrias e lingusticas (Boase-Beier, 2006: 7), se debrua particularmente
sobre o modo como o tradutor percepciona e trabalha as caractersticas estilsticas de um autor.
No nosso caso, ao entendermos o estilo de Cline como pura manifestao da sua
personalidade, da sua voz e da sua linguagem e que, portanto, marcado por escolhas
semnticas, vamos ao encontro das palavras de Boase-Beier:
Increasingly, style has ceased to be viewed only in terms of its linguistic features and
has come to include such issues as voice, otherness, foreignization, contextualization
and culturally-bound and universal ways of conceptualizing and expressing meaning.
To pay attention to style in translation study means to consider how all these factors are
reflected in the text and its translation. (Boase-Beier, 2006: 2)
32 Buffon, M. de. , p.
24. Disponvel online em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k937176g/f1.image.
33 Neste mbito, devido variedade de estudos que existem, optmos por destacar aquele que aborda a noo de
sencial para a traduo de literatura: Snell-Horby, Mary. Translation Studies: An Integrated
Approach. Amsterdam and Philadelphia: John Benjamins, 1988.
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k937176g/f1.image -
28
Efectivamente, se pretendemos imprimir as nuances estilsticas do autor num novo
contexto, participando de forma activa na construo de sentido, o processo de leitura do texto
original ter, necessariamente, de considerar o texto traduzido. A presena destes dois
horizontes est, alis, estabelecida a priori neste processo, o qual implica a transio da
apropriao do sentido original, ou seja, do mundo do autor, para a sua reconfigurao, ou
mimesis, na nossa mente e que se espelhar no texto traduzido34. Neste mbito, a prpria noo
sio ulterior at porque,
Em suma, os processos de leitura e de reescrita/recriao no so duas actividades
inscritas numa sequncia temporal, antes correspondem a uma fuso e no soma de duas
vozes. Esta fuso, portanto, que reconhecemos reger-se por dialcticas pragmticas ou culturais
e por bastantes turbilhes semnticos, precisamente a que permite (con)fundir o nosso estilo
com o estilo do autor no texto traduzido, visando, deste modo, contribuir para a proliferao do
rico catlogo de traduo literria, assim como para a dissoluo de barreiras lingustico-
-culturais.
3.4 Da primeira verso verso definitiva
Conforme tivemos oportunidade de mencionar, durante a etapa que compreendeu as
vrias leituras do texto original, fomos concluindo que este no fica imune presena, ainda
que nebulosa, do texto traduzido. Por outras palavras, mesmo partilhando a ideia de que o texto
original seja o nico horizonte estvel (Barrento, 2002: 47) durante boa parte do processo de
traduo, verificmos que o processo hermenutico que teve em conta a sua leitura fez-se
sempre acompanhar de uma tomada de conscincia activa da gama de problemas a resolver
durante a reescrita de Mea Culpa. De facto, conhecendo a priori a finalidade que circunscreve
este tipo de leitura, orientada para uma reescrita ou, para aludir a Meschonnic (2002), para um
fazer discursivo , deduzimos, portanto, que impossvel deixar de evidenciar as relaes
bvias entre os dois textos.
Deste modo, condicionado pela natureza to peculiar da voz de Cline, todo um leque
de decises e estratgias comeou a ganhar forma. Apoiados na sugesto de Joo Barrento
e no perdesse um nico
elemento lexical e de sentido, e at procurasse manter a ordem das palavras do
34 Time and
Narrative. Traduo de Kathleen McLaughlin e David Pellauer. Chicago: Chicago University Press, vol. 3, 1984.
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29
(Barrento, 2002: 41). Ora esta fase, na qual o recurso a ferramentas conceptuais como os
dicionrios bilingues, monolingues ou especializados em argot constituiu a maior demanda,
precisamente aquela que permite fazer, posteriormente, uma verso semntica que clarifique
(idem: ibidem).
Efectivamente, ao trabalharmos com um texto como Mea Culpa, grande parte das suas
palavras e expresses exigem no s uma parfrase interpretativa, como tambm um
significativo investimento criativo, colocando, por conseguinte, uma tipologia de problemas
muito especficos que nos propomos desenvolver na quinta parte deste projecto de traduo.
este um fenmeno que limita todo o processo de traduo. No entanto, preciso no esquecer
que no se traduz a lngua, mas o texto, o discurso enquanto lngua no acto. Para obter o mesmo
efeito do original necessrio encontrar um equilbrio entre os ganhos e as perdas para que se
oua, sobretudo, a voz original de Louis-Ferdinand Cline.
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30
4. Traduo de Mea Culpa
-
31
LOUIS-FERDINAND CLINE
MEA CULPA
Traduo
de
Ana S
-
32
Ainda me faltam alguns dios.
Tenho a certeza de que existem.
-
33
O que seduz no Comunismo, a enorme vantagem a bem dizer, que vai desmascarar o
Homem, finalmente! Livr-lo de desculpas. H sculos e sculos que ele nos engana, ele, os
seus instintos, os seus sofrimentos, as suas intenes Que nos pe a sonhar
Impossvel saber, o idiota, at que ponto nos pode mentir!... o grande mistrio.
Continua sempre longe da vista, cuidadosamente escondido, atrs do seu grande libi. A
Mrtir
do abominado sistema! Um verdadeiro Jesus!...
Eu sou! como tu s! ele ! ns somos explorados!
Vai acabar a impostura! Chega desta abominao! Rebenta com as correntes, Povinho!
Ergue-te, Dandin!... Isto no pode continuar sempre assim! A ver se te vemos finalmente! A
tua carinha laroca! Admiremos-te! Observemos-te! de cima a baixo!... Que descubramos a tua
poesia, que possamos finalmente amar-te vontade por aquilo que s! Ainda bem, porra! Ainda
bem! Quanto mais depressa melhor! Morte aos patres! Rpido! Essa escria podre! Em
conjunto ou em separado! Mas pronto! subito! recta! Nem mais um minuto de piedade! De
morte muito suave ou muito cruel! Estou-me nas tintas! Estou em pulgas! Nem mais um tosto
furado para safar a raa inteira! matana, chacais! Esgotos com eles! Porqu engonhar? J
alguma vez, eles, os animais, recusaram um nico msero refm ao rei Benefcio? Nicles!
Nicles! Bataticles! Vem algum ficar para trs?... cheir-los que os despachamos j! O que
tem de ser tem de ser! a luta!... Com rodeios? Que honra?... Eles nem sequer tm piada! So
sempre mais aselhas, mais estpidos por natureza! preciso vir-los do avesso para que faam
rir!...
-
34
Os privilegiados, pela parte que me toca, no vou, juro, deitar a mais pequena lgrima
pelas suas carcaas nojentas!... Ah! Nada de enganos! Esperar? Basta! Nenhum remorso!
Nenhuma lgrima! Nenhum suspiro! Uma cedilha! de graa! o Angelus! A agonia deles?
mel! Uma guloseima! Apetece-me! Confesso, estou completamente deliciado!...
Vou-te rebentar, carcaa! Uma dessas noites malvadas!
Vou-te pr as rbitas negras e esburacadas!
A tua alma de porca na dana! A dar um passo atrs!
Vers esta bela assistncia!...
No cemitrio dos Bons-Enfants!
Estes versos vivos danam-me na mona! Ofereo-os a todos de graa, com msica e
tudo! O Hino ao Matadouro!, melodia includa! Completo!...
Est tudo bem! Vai tudo correr bem!
Um j la vai! O belo um!
O segundo que a vem!...
E assim por diante cantavam em cadncia os nossos alegres pontoneiros de antigamente!
Pisemos! Pisemos! Espezinhemos com fora! Esta pertinente infeco! preciso voltar a passar
por cima de toda a ral! Nunca desde os tempos bblicos tinha cado sobre ns flagelo mais
hipcrita, mais obsceno, mais degradante na verdade, do que a viscosa garra burguesa. Classe
mais hipocritamente tirnica, gananciosa, rapace, tartufa ao mximo! Moralizante e aldrabona!
Impassvel e choramingas! Fria para com as desgraas. Mais insacivel? mais sugadora de
privilgios? No existe! Mais mesquinha? mais anemiante? mais esfomeada por riquezas mais
vazias? Enfim podrido perfeita.
Viva Pedro I! Viva Lus XIV! Viva Fouquet! Viva Gengis Khan! Viva Bonnot! o bando!
e todos os outros! Mas para Landru no h desculpas! Em qualquer burgus h um Landru!
isto que triste! irremedivel! 9335, c para mim, teve tudo a ver com os
textuais, lacaios no paleio! Lacaios de pluma que se apoderam uma noite do castelo, todos
loucos de cobia, delirantes, invejosos, pilham, matam, instalam-se e contam o acar e os
de parar. A
35 1893 diz respeito ao ano em que o reino do Havai foi derrubado por um pequeno grupo de comerciantes de
acar. Estes, auxiliados pelo exrcito norte-americano, condenaram um regime corrupto e reivindicaram os
direitos dos trabalhadores, conseguindo, assim, que a rainha Liliuokalani fosse deposta e que o Havai fosse anexado
pelos Estados-Unidos da Amrica. (N. da T.)
-
35
Vo contar acar at morte! Os torres, fascinados. Pode-se
limpar-lhes o sebo a todos ali sempre na cozinha. Nada a perder! So s
patacoadas os seus joguinhos de intelectuais, impressionistas confusionistas cheios de
tendncias, ora a mandar bocas esquerda, ora a mandar bocas direita, l no fundo da puta da
alma todos conservadores como o raio, doseadores de finas argcias; todos cheios de segundas
intenes. Basta verem o doce! Vo onde quisermos, atrs do cheiro da reles prebenda,
procura de um No podem ser eles a resgat-la a imbecilidade titnica, a porcaria
cromada do rebanho!... Esgoto pois com essa gentalha!... Que
ningum nos fale mais dela de maneira alguma!... Os outros em frente a mesma coisa,
compenetrados cavaleiros andantes a 75.000 francos por ano.
Mostrar-se ao lado do povo, nos tempos que correm, pescar um seguro-nougat.
Desde que nos sintamos um bocadinho judeus passa a seguro de vida. Tudo isto
perfeitamente compreensvel.
Que diferena, que no vejo, entre as Casas da Cultura e a Academia Francesa? Mesmo
narcisismo, mesma teimosia, mesma impotncia, mesmo paleio, mesmo vazio. Outros clichs,
apenas, s isso. Conformam-se, do graxa, repetem-se, num lado e no outro, tal e qual.
A grande limpeza? Questo de meses! Questo de dias! Ah! Sim! A coisa vai ser feita
em breve!... Alegremo-nos!... Bengalizemos!...36
fcil afinal a reviravolta! A matana de toda a classe! s arrombar portas abertas, e
como esto rodas do caruncho! Fuzilar os privilegiados mais fcil do que fazer mamadas!...
Tudo isto a glria natural! A desforra do mais pequeno! A recompensa mil vezes justa!
Todos os condenados a recuperar! O.K.!
Merda! Pode-se bem dizer! No demasiado cedo!... Tudo isto regulado at ao
sangue!...
Os ricos algum os balear!
Tra-tra-tra (sic)
Com trufas no rabo!
Viva o som do canho!
Bum!
36
espcie de fogo-de-artifcio que produz efeitos de vrias cores. (N. da T.)
-
36
Ora aqui est o principal finalmente! Ora aqui est uma coisa bem feita!... A est o
Proleta livre! para ele, infalvel, todos os instrumentos de que se fala, desde o pfaro at ao
tambor!... A bela fbrica! As min Bora l! E as vinhas! e o
chilindr tambm! Um golo de carrasco! Tudo escorrega bem! Estamos por nossa conta!
Coragem! O Proleta est agora encarregado de todas as fel
mina tua! Desce! Nunca mais fars greve! Nunca mais te queixars! Se ganhas apenas 15
francos sero pelo menos 15 francos teus!
De repente no h como neg-lo arma-se um banz. Ele tambm tresanda um bocado o
lacaio. Ele g -se resolver isso! Mas
oltam num
instantinho, esses larilas, em liberdade, ainda muito melhor do que nunca! Desconfiar!
Desconfiar!... Ser a grande vtima da Histria no quer dizer que se um anjo!... Era o que
faltava, homessa!... E portanto esse o preconceito, o maior, o melhor consolidado, slido como
ao!... O Homem exactamente aquilo que come! Engels tambm tinha descoberto isto, o
chico-esperto! a mentira colossal! O Homem outra coisa ainda, bem mais inquietante e mais
nojenta do que a questo de morfar. No chega ver-lhe s as tripas mas tambm o seu lindo
cerebrozinho!... No acabam as descobertas!... Para que ele mude seria preciso domestic-lo!
Ele domesticvel?... No um sistema que o vai domesticar! Ele arranjar quase sempre
maneira de se esquivar a todos os controlos!... Escapar-se com artimanhas? Como
especialista! Esperto aquele que o lixa com a boca na botija! E depois ao fim e ao cabo toda
a gente se est a cagar! A vida j demasiado curta! Pregar moral no garante nada! Pe um
homem a fazer boa figura, dissimula-o. Todos os bardamerdas so pregadores! Quanto mais
viciosos so mais falam! E bajuladores! Cada um por si!... O programa do Comunismo? apesar
dos desmentidos: totalmente materialista! Reivindicaes de um bruto para uso dos brutos!...
Morfar! Vejam o focinho gordo do Marx, inchado! E ainda se eles morfassem, mas
exactamente o contrrio que se passa! O povo Rei!... O Rei tem fome! Tem tudo! Falta-lhe a
camisa!... Falo da Rssia. Em Leninegrado, volta dos hotis, aos turistas, a quem vo
comprar dos ps cabea, da camisa ao chapu. Um individualismo entranhado que faz toda a
farsa, apesar de tudo, mina tudo, corrompe tudo. Um egosmo raivoso, amargo, rezingo,
invencvel, impregna, penetra, corrompe j esta misria atroz, pinga atravs dele adentro, torna-
-a ainda mais fedorenta. Uma molhada de individualismos, mas no desfeitos.
Se a existncia comunista a existncia em msica; mais resfolegante, zarolha e vadia,
mais traioeira como por aqui, ento preciso pr toda a gente a danar, e no ter coxos a
reboque.
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37
Quem no danar
Baixinho est a professar
o fim das vergonhas, do silncio, dos dios e das cleras surdas, uma dana para toda
a sociedade, absolutamente toda. Nem mais um nico enfermo social, nem mais um que ganhe
menos do que os outros, que no possa danar.
Para o esprito, para a alegria, na Rssia, h a mecnica. A descoberta providencial! A
verdadeira terra prometida! Salv! preciso ser um Intelectual perdido nas Belas-Artes,
envolvido h sculos, escondido, acolchoado, nos mais belos papis do mundo, pequena uva
frgil e madura ao sol das parreiras da funo pblica, fruto tenro das contribuies fiscais,
delirante de Irrealidade, para engendrar, no h como enganar, esta lria fenomenal! A verdade
que a mquina emporcalha, condena, mata tudo quanto dela se aproxima. Mas de bom-
-tom a Mquina! Faz proletrio, Isto salta aos
olhos das Exagera-
- Recomenda-se Eu estou! ns estamos na linha ! Viva a
grande Rendio! Nem uma cavilha nos falta! A ordem vem do fundo dos escritrios!
Mquinas a todo o gs! Todas as petas disponveis! Entretanto, eles no pensaro!...
Enquanto Ressurreio, isto est bonito!... A mquina a encarnao da infeco. A
derrota suprema! Que lata! Que balela! Nunca a mquina mais sofisticada salvou ningum.
Embrutece o Homem mais cruelmente e mais nada!... Fui mdico na Ford, sei do que falo.
Todos os Ford so parecidos, soviticos ou no!... Depender da mquina apenas mais uma
desculpa para continuar com essas patifarias. esquivar-se verdadeira questo, a nica, a
ntima, a suprema, a que est bem no fundo de cada indivduo, na sua carne mesmo, na sua
mona e em mais lado nenhum!... O verdadeiro desconhecido de todas as sociedades possveis
poltico!... o Tabu colossal!... A
questo ltima proibida! Mas quer esteja em p, de gatas, deitado, do avesso, o Homem nunca
teve, no cu ou na terra
esticar, tornando-se finalmente social.
H sculos que lhe do graxa, que lhe escondem o seu verdadeiro problema para logo a
ele quem incensamos e que
embebedamos violentamente com baboseiras. ele toda a igreja! No v forosamente com
mais clareza! choninhas! Engole tudo o que lhe dizem desde que sejam elogios! Ora duas
raas to distintas! Os patres? Os operrios? Artificial 100 por cento! uma questo de sorte
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38
e de heranas! aboli-las! Vero se no eram as voil havemos
A poltica corrompeu o Homem ainda mais profundamente nestes trs ltimos sculos
do que durante toda a Pr-histria. Estvamos na Idade Mdia mais perto de nos unir do que
em poesia, mais ntimas. J se acabou.
O Comunismo materialista antes de tudo a Matria e quando se trata de matria nunca
o melhor que triunfa, sempre o mais cnico, o mais manhoso, o mais abrupto. Vejam pois
como nessa U.R.S.S. a guita se refortaleceu depressa! Como o dinheiro recuperou imediatamente
toda a sua tirania! e ao c