trecho do livro "ditadura à brasileira"
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O Brasil não é um país para principiantes.
Tom Jobim
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apresentação
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Em 1964 o Brasil era um país politicamente repartido. Dividido e
paralisado. Crise econômica, movimentos grevistas, ameaças de gol-
pe militar, marasmo administrativo. A situação era muito tensa.
O clima de radicalização era agravado por velhos adversários da
democracia. A direita brasileira tinha uma relação de incompatibili-
dade com as urnas. A União Democrática Nacional nunca havia as-
similado as derrotas nas eleições presidenciais de 1945, 1950 e 1955 –
a vitória de Jânio Quadros em 1960 foi pessoal e não pode ser
atribuída a nenhum partido da sua coligação. O ódio a Getúlio Var-
gas fizera com que ela construísse seus mitos. A derrubada de Vargas,
em outubro de 1945, foi transformada em momento máximo da re-
democratização, isso quando tal fato somente possibilitou que o Pa-
lácio do Catete fosse ocupado por um general (Gaspar Dutra) ou por
um brigadeiro (Eduardo Gomes). Anos depois, Dutra era transfor-
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mado em símbolo dos valores republicanos, no maior defensor da
Constituição, embora tenha sido simpatizante dos nazistas e come-
morado efusivamente, em sua própria casa, a queda de Paris em 1940.
A direita não conseguia conviver com uma democracia de mas-
sas em um momento da nossa história de profundas transformações
econômicas e sociais, graças ao rápido processo de industrialização
e à crescente urbanização. Temerosa do novo, ela buscava um anti-
go recurso: arrastar as Forças Armadas para o centro da luta políti-
ca, dentro da velha tradição inaugurada pela República, que já ha-
via nascido com um golpe de Estado.
A esquerda comunista não ficava atrás. Também sempre esti-
vera nas vizinhanças dos quartéis, como em 1935, quando tentou
depor Vargas por meio de uma quartelada. Depois de 1945, buscou
incessantemente o apoio dos militares, alcunhando alguns de “ge-
nerais e almirantes do povo”. Ser “do povo” era comungar com a
política do Partido Comunista Brasileiro e estar pronto para aten-
der ao chamado do partido em uma eventual aventura golpista. As
células clandestinas do PCB nas Forças Armadas eram apresentadas
como uma demonstração de força política.
À esquerda do PCB, havia os adeptos da guerrilha. O Partido
Comunista do Brasil era um deles. Queria logo iniciar a luta armada,
tanto que enviou, em março de 1964, o primeiro grupo de guerrilhei-
ros para treinar na Academia Militar de Pequim. As Ligas Campo-
nesas – que desejavam a reforma agrária “na lei ou na marra” – or-
ganizaram campos de treinamento guerrilheiro no país ainda em
1962: com militantes presos foram encontrados documentos que
vinculavam a guerrilha a Cuba.
Já os adeptos de Leonel Brizola, principalmente após a criação
do Grupo dos Onze – embrião do que consideravam um partido
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revolucionário –, julgavam que tinham ampla base militar entre sol-
dados, marinheiros, cabos e sargentos.
Assim, numa conjuntura radicalizada, esperava-se do presiden-
te da República um ponto de equilíbrio político. Ledo engano. João
Goulart articulava sua permanência na presidência – a reeleição era
proibida – e para isso necessitava emendar a Constituição. Sinaliza-
va que tinha apoio nos quartéis para, se necessário, impor pela for-
ça a reeleição. Organizou um “dispositivo militar” que “cortaria a
cabeça” da direita. Insistia a todo momento que não podia governar
com um Congresso Nacional conservador, apesar de o seu partido,
o PTB, ter a maior bancada na Câmara após o retorno do presiden-
cialismo e não ter encaminhado à Casa os projetos de lei para via-
bilizar as reformas de base.
Em meio ao golpismo, o regime democrático sobrevivia aos
trambolhões. Defendê-lo era, segundo a esquerda golpista/revolu-
cionária, comungar com o desprezível liberalismo burguês, ou, de
acordo com a direita, com o odiado populismo varguista. Atacada
por todos os flancos, a democracia acabaria sendo destruída, abrin-
do as portas para duas décadas de arbítrios e violências.
Veio 1964. E de novo foram construídas interpretações para
uso político, mas distantes da história. A associação do regime mi-
litar brasileiro com as ditaduras do Cone Sul (Argentina, Uruguai,
Chile e Paraguai) foi a principal delas. Nada mais falso. O autorita-
rismo aqui faz parte de uma tradição antidemocrática solidamente
enraizada e que nasceu com o Positivismo, no final do Império. O
desprezo pela democracia foi um espectro que rondou o nosso país
durante cem anos de República. Tanto os setores conservadores como
os chamados progressistas transformaram a democracia em um obs-
táculo à solução dos graves problemas nacionais, especialmente nos
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momentos de crise política. Como se a ampla discussão dos proble-
mas fosse um entrave à ação.
O regime militar brasileiro não foi uma ditadura de 21 anos.
Não é possível chamar de ditadura o período 1964-1968 (até o AI-5),
com toda a movimentação político-cultural que havia no país. Mui-
to menos os anos 1979-1985, com a aprovação da Lei de Anistia e
as eleições diretas para os governos estaduais em 1982. Que ditadu-
ra no mundo foi assim?
Nos últimos anos se consolidou a versão de que os militantes da
luta armada combateram a ditadura em defesa da liberdade. E que os
militares teriam voltado para os quartéis graças às suas heroicas ações.
Em um país sem memória, é muito fácil reescrever a história. A luta
armada não passou de ações isoladas de assaltos a bancos, sequestros,
ataques a instalações militares e só. Apoio popular? Nenhum.
Argumenta-se que não havia outro meio de resistir à ditadura
a não ser pela força. Mais um grave equívoco: muitos desses grupos
existiam antes de 1964 e outros foram criados pouco depois, quan-
do ainda havia espaço democrático (basta ver a ampla atividade cul-
tural de 1964-1968). Ou seja, a opção pela luta armada, o despre-
zo pela luta política e pela participação no sistema político, e a
simpatia pelo foquismo guevarista antecederam o AI-5 (dezembro
de 1968), quando, de fato, houve o fechamento do regime.
O terrorismo desses pequenos grupos deu munição (sem tro-
cadilho) para o terrorismo de Estado, e acabou sendo usado pela ex-
trema direita como pretexto para justificar o injustificável: a barbá-
rie repressiva.
A luta pela democracia foi travada politicamente pelos movi-
mentos populares, pela defesa da anistia, no movimento estudantil
e nos sindicatos. Teve em amplos setores da Igreja Católica impor-
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tantes aliados, assim como entre os intelectuais, que protestavam
contra a censura. E o MDB, nada fez? E seus militantes e parlamen-
tares que foram perseguidos? E os cassados?
Os militantes dos grupos de luta armada construíram um dis-
curso eficaz. Quem os questiona é tachado de adepto da ditadura.
Assim, ficam protegidos de qualquer crítica e evitam o que tanto te-
mem: o debate, a divergência, a pluralidade, enfim, a democracia.
Mais: transformam a discussão política em questão pessoal, como
se a discordância fosse uma espécie de desqualificação dos sofrimen-
tos da prisão. Não há relação entre uma coisa e outra: criticar a luta
armada não legitima o terrorismo de Estado.
Este livro refuta as versões falaciosas. Deseja romper o círculo
de ferro construído, ainda em 1964, pelos adversários da democra-
cia, tanto à esquerda como à direita. Não podemos ser reféns, his-
toricamente falando, daqueles que transformaram o antagonista em
inimigo; o espaço da política, em espaço de guerra.
A análise do longo regime militar começa com a crise final da
presidência de João Goulart. Depois são estudadas, em linhas gerais,
todas as gestões presidenciais, inclusive da Junta Militar, sem receio
de apontar pontos positivos (como o crescimento econômico entre
1968-1978) e colocar o dedo nas feridas da legislação autoritária e na
ação dos órgãos de repressão. O governo João Figueiredo mereceu
dois capítulos para melhor se compreender o processo de derrocada
do regime e a dinâmica dos diversos atores políticos. Ao final, há um
balanço reafirmando as peculiaridades dos governos militares, e como
tivemos uma ditadura à brasileira entre os anos 1964-1985.
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