três tipos de ambiguidade linguística

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I.1. Três Tipos de Ambigüidade Lingüística [ publicado em Anais de Filosofia da FUNREI. São João del-Rei, julho de 2000 ] Compreendida como duplicidade ou n-plicidade de sentido, a ambigüidade costuma ser tratada como um fenômeno estritamente lingüístico e caracteristicamente semântico. Além disso, no contexto da filosofia analítica, recebe uma valoração negativa à medida mesma que - juntamente com a vaguidade - é considerada um dos piores defeitos da linguagem comum. Costuma ser admitido que tais imperfeições podem ser corrigidas em linguagens formais construídas com símbolos especiais destinadas a usos bastante restritos, porém desprovidas de qualquer pretensão de substituir a linguagem usada por todos nós basicamente como instru-mento de comunicação. O quadro sucintamente esboçado acima é passível de algumas imprescindíveis ressal-vas: Em primeiro lugar, importa ressaltar que a ambigüidade não é em si mesma um defeito ou uma imprecisão da linguagem natural, ou seja: da linguagem comum pensada em contraposição às linguagens artificiais da lógica e da informática. Não há dúvida de que, se a nossa atenção está voltada para a constituição de um discurso objetivo e informativo - não importando se é o caso do discurso do senso comum, da filosofia ou da ciência - a ambigüidade deve ser elimina-da e a vaguidade atenuada, porquanto ambas prejudicam a boa transmissão de informações e geram embaraços para a clareza e a precisão na comunicação de idéias. Contudo, se nossa atenção converge para a constituição de um discurso sugestivo e provocador - o da literatura, da publicidade ou o do humorismo - não podemos mais fazer a afirmação feita acima, pois a ambigüidade é um importante recurso retórico para poetas, publicitários e humoristas. Estes e outros usuários da linguagem - diferentemente dos

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I.1. Trs Tipos de Ambigidade Lingstica

[ publicado em Anais de Filosofia da FUNREI.

So Joo del-Rei, julho de 2000 ]Compreendida como duplicidade ou n-plicidade de sentido, a ambigidade costuma ser tratada como um fenmeno estritamente lingstico e caracteristicamente semntico. Alm disso, no contexto da filosofia analtica, recebe uma valorao negativa medida mesma que - juntamente com a vaguidade - considerada um dos piores defeitos da linguagem comum. Costuma ser admitido que tais imperfeies podem ser corrigidas em linguagens formais construdas com smbolos especiais destinadas a usos bastante restritos, porm desprovidas de qualquer pretenso de substituir a linguagem usada por todos ns basicamente como instru-mento de comunicao.

O quadro sucintamente esboado acima passvel de algumas imprescindveis ressal-vas: Em primeiro lugar, importa ressaltar que a ambigidade no em si mesma um defeito ou uma impreciso da linguagem natural, ou seja: da linguagem comum pensada em contraposio s linguagens artificiais da lgica e da informtica. No h dvida de que, se a nossa ateno est voltada para a constituio de um discurso objetivo e informativo - no importando se o caso do discurso do senso comum, da filosofia ou da cincia - a ambigidade deve ser elimina-da e a vaguidade atenuada, porquanto ambas prejudicam a boa transmisso de informaes e geram embaraos para a clareza e a preciso na comunicao de idias.

Contudo, se nossa ateno converge para a constituio de um discurso sugestivo e provocador - o da literatura, da publicidade ou o do humorismo - no podemos mais fazer a afirmao feita acima, pois a ambigidade um importante recurso retrico para poetas, publicitrios e humoristas. Estes e outros usurios da linguagem - diferentemente dos cientistas preocupados com o rigor metodolgico e daquele tipo de filsofo amante da clareza, coisa que nem todos so - no costumam empregar a linguagem para a transmisso de conceitos bem elaborados, para formular hipteses e teorias, porm para estimular a imaginao, provocar e seduzir os espritos.

Desse modo, o que um detestvel vcio para determinado ponto de vista, passa a ser uma admirvel virtude para outro; o que deve ser erradicado ou minimizado em funo de um determinado uso da linguagem dentro de um tipo de discurso, pode ser seriamente cultivado no contexto de outro uso da linguagem dentro de outro tipo de discurso. Passamos a compreender melhor a partir da a razo pela qual, na dcada de trinta, enquanto R. Carnap (1934) apresentava a estrutura de uma linguagem lgica supostamente perfeita, em que no havia terreno para o crescimento das ervas daninhas da vaguidade e da ambigidade, W. Emp-son (1930) se dedicava caracterizao de sete tipos de ambigidade e procurava mostrar sua importncia para a expresso e para a recepo de obras literrias.

Em segundo lugar, no verdade que a ambigidade um fenmeno estritamente lingstico, embora tanto os filsofos analticos como os lingistas tenham involuntariamente contribudo para gerar a impresso de que assim era. Debruados de diferentes maneiras so-bre o estudo da linguagem comum, ambos restringiram seus interesses tericos em funo do objeto eleito e passaram a investigar a ambigidade como uma caracterstica peculiar a palavras, frases e sentenas, como se o fenmeno em jogo se circunscrevesse a uma apenas das suas formas gerais: a ambigidade da linguagem verbal (Rosier, 1988).

No obstante, tem pleno cabimento falar em diferentes tipos de ambigidade no-ver-bal encontrveis em gestos, atitudes e padres visuais. O dedo indicador em riste comporta diferentes usos, seja para denunciar algum, fazer uma forte advertncia, amaldioar ou simplesmente fazer uma definio ostensiva. H contextos comunicativos em que a inteno do autor do referido gesto mostra-se com bastante clareza, porm h contextos em que ele se presta a diferentes interpretaes, e quando estes se configuram podemos dizer que se trata de um gesto ambguo.

Por sua vez, a psicologia gestaltista chamou a ateno para um tipo especial de confi-gurao em que diferentes figuras se constituem alternadamente quando da percepo de um mesmo padro visual. Se o enfocarmos de determinado modo, captaremos a figura de uma velha; porm se o enfocarmos de outro, perceberemos a de uma jovem. A velha-jovem, o pa-to-coelho e outras configuraes do mesmo tipo foram chamados de padres ambguos (Gurwitsch, 1964). R. Arnheim, (1973) extraiu da importantes conseqncias para a percepo esttica e T. Kuhn (1964) para a epistemologia e histria da cincia.

sabido que a palavra metfora , ela mesma, metafrica [em grego, metaphora tinha o sentido primrio e literal de transposio (de um objeto no espao), transferncia e transporte (veculo) e adquiriu o sentido figurado de transposio de sentido]. Mas ser a noo de ambigidade ela mesma uma noo ambgua? Em outras palavras: nos usos lingsticos de ambigidade de uma palavra (de uma frase, de uma sentena), ambigidade de um gesto (de uma atitude) e ambigidade de um padro visual, devemos assumir que a palavra ambigidade apresenta o mesmo sentido ou sentidos diferentes?

Caso levemos em considerao as relevantes diferenas ontolgicas e epistemolgicas dos domnios lingstico [em que se encontram palavras, frases e sentenas] e extralingstico [em que se encontram padres visuais], teremos um background relevante para o levantamen-to da hiptese de que nossos usos lingsticos de ambguo e ambigidade so ambguos. Supondo que assim fosse, o procedimento metodolgico correto consistiria em buscar um conceito preciso de ambigidade e verificar se ele permaneceria constante em todos os usos ou se modificaria na passagem de um para outro. Todavia, preferimos trabalhar com outra hiptese: a de que a palavra ambigidade no possui um sentido unvoco nem equvoco (ambguo), porm anlogo, ou seja: apesar das suas diferentes acepes, elas giram em torno de um ncleo significativo comum (Guerreiro, 1989, pp.122-136).

Antes de quaisquer consideraes sobre o referido ncleo, devemos antecipar que no abordaremos aqui qualquer tipo de ambigidade no-verbal. Limitar-nos-emos investigao da ambigidade lingstica. No entanto, isto no quer dizer que ficaremos circunscritos jurisdio da semntica, tal como entendida por Ch. Morris (1938) como o domnio das rela-es dos sinais com os objetos a que estes se aplicam. E isto, porque mostraremos que, alm da assim chamada ambigidade semntica, h tambm ambigidades sinttica e pragmti-ca. Reconhecidas estas trs formas de ambigidade estritamente lingstica, nossa investigao procurar caracteriz-las de modo bastante sucinto. Tentaremos mostrar que, ao menos no que diz respeito a um tipo de ambigidade, a sinttica, cabe fazer uma comparao com uma for-ma de ambigidade no-lingstica: a dos padres visuais ambguos apresentados pelo gestal-tismo.

Pensamos que esta uma possvel passagem de uma abordagem lingstica para uma abordagem no-lingstica do fenmeno da ambigidade, que, como j dissemos, foi tematiza-do por um psiclogo interessado na percepo esttica (R. Arnheim) e por um historiador e terico da cincia (T. Kuhn) que se serviu dos padres ambguos apresentados pelo gestaltis-mo para explicar aquilo que ele mesmo chamou de Gestalt switch quando da sua investigao da mudana de um paradigma para outro na histria da cincia. No dispomos de espao para um aprofundamento deste tpico, mas acreditamos que a simples analogia da expresso verbal com a visual serve para abrir um caminho para uma abordagem interdisciplinar do fenmeno da ambigidade.

Na referida caracterizao, todo o nosso interesse terico restringir-se- ao discurso objetivo e informativo do senso comum, da filosofia e da cincia, para o qual a ambigidade s pode ser concebida como um grave defeito da linguagem comum devendo ser esclarecido de um ponto de vista metalingstico e devendo ser evitado de um ponto de vista lingstico, ao menos por todo aquele que esteja preocupado com a clareza de expresso e com a preciso conceitual [coisa que no se deve exigir do poeta, do humorista ou do publicitrio, porm se deve exigir do filsofo e do cientista].

Se dissermos que um padro visual ambguo, estaremos usando a linguagem para falar de um objeto extralingstico. Porm, se dissermos que uma palavra (frase ou sentena) ambgua, estaremos usando a linguagem para falar da prpria linguagem. Neste caso, nossa assero assume um carter metalingstico, e o predicado ambguo passa a ser usado para fazer referncia a uma propriedade lingstica, ou seja: uma propriedade da linguagem, no desta ou daquela coisa. Tal como aglutinante, possui declinaes, etc., ambguo- qua predicado metalingstico - s pode ser dito de lnguas, mais precisamente de partes constituin-tes das lnguas, tais como palavras, frases e sentenas.

A palavra manga, por exemplo, pode ser usada para fazer referncia a coisas marcadamente distintas: (1) uma fruta tropical, (2) uma parte de uma camisa e (3) um tipo de canal. A frase o livro de Pedro pode ser usada para fazer referncia a (1) um livro possudo por Pedro, (2) um livro escrito por Pedro e (3) um livro encomendado por Pedro a um livreiro. A sentena Joo disse que os advogados vieram ontem pode dar a entender que ontem se refere a (1) o tempo em que vieram os advogados ou (2) o tempo em que Joo disse que os advogados vieram. Diante disto, parece ter cabimento falar em ambigidade de palavras, frases ou sentenas.

Mas devemos considerar que uma palavra pode ser considerada ambgua fora de qualquer contexto frasal ou sentencial ou que s pode s-la dentro deste ou daquele contexto determinado? A palavra ontem aparentemente no-ambgua, porm sua posio no final de uma sentena, como a do exemplo acima, faz com que ela se torne irremediavelmente ambgua [coisa que no ocorreria, caso este advrbio de tempo fosse deslocado para o incio da sentena]. Contudo, devemos lembrar que ontem- cujo sentido literal invariavelmente no dia anterior a este- passa a variar de sentido quando empregado em um sentido figurado com a acepo de no passado. Por exemplo: Ontem era a mquina de escrever, hoje o computa-dor; Ontem era a guerra fria, hoje a globalizao da economia.

No podemos dizer que, nas sentenas acima, ontem e hoje sejam palavras amb-guas, tampouco podemos dizer que as prprias sentenas sejam. No podemos dizer que Ontem Joo disse que os advogados vieram seja uma sentena ambgua, mas a transposio do advrbio de tempo para o final da sentena faz dela uma sentena decididamente ambgua. Admitindo que a ambigidade produzida no interior da prpria sentena, apenas mediante uma troca de posio, no tem o menor cabimento, neste contexto, falar em ambigidade semntica, porm em ambigidade sinttica.

Deixemos momentaneamente de lado a ambigidade emergente da construo de fra-ses e sentenas e passemos a examinar o caso da possvel ambigidade de uma palavra. Costuma-se entender que palavras tais como manga, cabo e folha so ambguas, porque elas podem adquirir diferentes acepes em frases distintas. Disto, estamos seguros. Mas no estamos to seguros quanto possibilidade de uma palavra se mostrar ambgua no interior de uma frase determinada. Dizer que uma palavra pode adquirir diferentes sentidos em diferentes frases aludir a uma ambigidade potencial desta mesma palavra tomada fora de qualquer contexto frasal - desta palavra como um verbete de dicionrio, por exemplo. Mas considere-mos as seguintes frases:

(1) manga suculenta

(2) manga rasgada

(3) manga amarela

Aparentemente, (1), (2) e (3) so frases unvocas. Embora no tenhamos nenhuma dvida desta qualificao no que concerne a (1) e (2), no podemos aceit-la no que concerne a (3). Com um pequeno esforo de imaginao, poderemos nos dar conta de que o adjetivo a-marelo tanto pode ser empregado para falar da qualidade de (1) uma manga (fruta tropical) como da qualidade de uma manga (parte de uma camisa). Diante disto, cabe indagar: Como pode o falante comum de uma lngua - que, por suposio nada entende de lingstica, tam-pouco de filosofia da linguagem - ser capaz de efetuar um reconhecimento e uma distino dessa natureza?

Respeitando o carter espontneo das inferncias necessariamente envolvidas com os referidos reconhecimento e distino, podemos encaminhar uma hiptese nos seguintes ter-mos: um falante comum - desde que no seja um oligofrnico nem padea de qualquer outra deficincia mental - costuma apresentar uma especial sensibilidade em relao ao uso da sua prpria lngua, de tal modo que capaz de surpreender sem grande esforo adequaes e inadequaes no tocante a atribuies de qualidades s coisas. Assim sendo, ele reconhece que suculento uma qualidade apropriada a determinadas coisas tais como frutas tropicais, porm totalmente desapropriada a determinadas coisas tais como tecidos e pedras. Por sua vez rasgado uma qualidade apropriada a coisas tais como papis e tecidos, porm notadamente desapropriada a coisas tais como pedras e frutas. Finalmente, amarelo se destaca por ser apropriado a um grande nmero de coisas, independentemente dos seus tamanhos, formas e texturas.

interessante observar que palavras de grande potencial de ambigidade tornam-se no-ambguas antes mesmo de se contextualizarem em contextos sentenciais. Consideremos as mais comuns acepes da palavra cabo:

cabo 1 = df. acidente geogrfico

cabo 2 = df. posto na hierarquia militar

cabo 3 = df. extremidade de alguns objetos

(faca, espada, guarda-chuva, etc.)

cabo 4 = df. amarra, corda grossa

Consideremos agora esta mesma palavra em diferentes contextos frasais:

(1) cabo e sargento

(2) de ponta a cabo

(3) cabo elegante

(4) praia do cabo

(5) praia do capito

At onde nos pode levar nossa capacidade de imaginao conceitual, temos razes para acreditar que (1), (2) e (5) so frases unvocas, apesar de o reconhecimento da no-ambigidade de cada qual ser feito por distintos fatores. Por exemplo: em (1) a palavra sargento adicionada a cabo remete qualquer falante da lngua a uma classificao ou a um tpico metalingsticos: postos na hierarquia militar ou dois militares de diferentes postos na hierarquia. Consideremos outro exemplo do mesmo tipo: cravo pode ser considerada uma palavra ambgua, mas h contextos frasais em que ela desambiguada [disambiguated - data maxima venia dos puristas pelo neologismo!] : o cravo e a rosa, Gabriela, Cravo e Cane-la, nem cravo, nem espinha, o som do cravo de Scarlatti, os cravos das mos de Cris-to, cravo e injeto(com agulha descartvel), etc.

Temos em (2) o caso de uma expresso idiomtica tendo o sentido de do princpio ao fim. Tal expresso costuma ser empregada no sentido figurado. Comparemos com from top to bottom [literalmente: do topo ao fundo, mas idiomaticamente: da cabea aos ps] e com au fur et mesure. De acordo com o Larousse Classique (1957, p.491), a palavra fur vem do latim forum, mas no tem nenhum significado tomada isoladamente e s o tem na expresso acima que significa sucessivement; en proportion.

Diferentemente de (1) e (2), (3) no promove uma desambiguao de cabo, pois somos levados a supor que o adjetivo elegante tanto pode estar qualificando um cabo de bengala [que nada tem a ver com o tigre de Bengala], um cabo de guarda-chuva ou um cabo de infantaria. Em (4), tudo leva a crer que est em jogo o acidente geogrfico cabo, porm no nenhum despropsito supor que fosse o caso de cabo no sentido de amarra, uma vez que ambos esto subsumidos pelo tpico: coisas do mar e de navios. Apesar deste tpico subsumir tambm (5), a frase expressa em (5) no ambgua.

Ao que tudo indica, o tpico fundamental para promover a desambiguao de uma palavra em um contexto frasal (por exemplo: cabo e sargento, cravo e canela), mas isto no quer dizer que a promova necessariamente, pois a frase pode se deixar subsumir a dois ou mais tpicos distintos (por exemplo: em cabo elegante no sabemos se o tpico coisas da vida militar ou artesanato fino). O tpico est envolvido com uma difcil questo de com-gruncia ou incongruncia.

Na frase manga suculenta congruente entender que suculento est qualificando uma conhecida fruta, algo possuidor de suco. Porm incongruente entender que esteja qualificando uma parte de uma camisa, algo que no tem nem pode gerar suco. O falante da lngua mostra-se sensvel s congruncias e incongruncias das frases e basicamente a partir do reconhecimento destas mesmas que ele levado a interpretar seus sentidos. Mas que dizer de frases incongruentes tais como:

(1) chupando uma manga rasgada

(2) suculenta manga da camisa de Pedro (?!)

Aparentemente, no h em (1) e (2) o que se poderia chamar de contradictio in adjecto [como por exemplo em superfcie tridimensional, solteiro divorciado, etc.] nem o que se poderia chamar de category-mistake [por exemplo: mesa mltiplo de 3, nmero gordo], que pode ser considerado um tipo especial de contradio em termos, pois no se d entre termos do mesmo nvel, porm entre um termo de primeira ordem [mesa referindo-se a um objeto fsico] e outro de segunda [mltiplo de 3 referindo-se a uma propriedade no-fsica] ou entre um termo de segunda ordem [nmero referindo-se a um objeto lgico] e outro de primeira [ gordo referindo-se a uma propriedade fsica].

H razes para se pensar que o carter autocontraditrio de uma contradictio in ad-jecto captado intuitivamente pelo usurio de uma lngua. Qualquer falante da lngua portu-guesa - que, por suposio, entende o significado de solteiro - sabe que a um solteiro no pode ser aplicado divorciado, pois, para adquirir este estado civil, tem-se que antes deixar de ser solteiro. Mas poderamos atribuir a qualquer usurio da lngua o conhecimento do significa-do preciso de termos tais como superfcie e tridimensional? Qualquer estudante universi-trio entende a expresso na superfcie da terra, mas devemos assumir o pressuposto de que qualquer um sabe que a superfcie de uma figura geomtrica no pode ser, por definio, tridimensional? Ser que termos tais como superfcie e tridimensional so encontrveis no repertrio lxico do pipoqueiro da esquina da minha rua, assim como certamente o so o mi-lho, o sal e a pipoca?

Tocamos aqui em uma questo que tem atormentado os filsofos da linguagem. No temos nenhuma pretenso de abord-la neste contexto: Limitar-nos-emos a enunci-la. O que sabe um falante pelo mero fato de saber falar sua lngua? No h dvida de que ele sabe uma srie de coisas decorrentes do uso do seu instrumento bsico de comunicao. Por exemplo: qualquer falante da lngua sabe que rasgado aplicvel a coisas tais como tecidos, folhas de papel e cdulas e que no aplicvel a coisas liqidas e gasosas, tampouco a coisas slidas que podem se partir, se dissolver, se quebrar, mas no se rasgar.

Tal conhecimento no pressupe nenhuma experincia especial e nenhuma informao especializada: pressupe to-somente um conhecimento do significado de palavras comuns e a posse de experincias comuns a todos os indivduos humanos. E esta a razo pela qual expresses tais como viva que no tinha se casado, noite ensolarada, etc. [ tomadas no seu sentido literal] so reconhecidas como instncias de contradictio in adjecto, mesmo por quem no sabe latim nem conta com qualquer tipo de conhecimento especializado. Todavia, no podemos sustentar que o reconhecimento de uma expresso autocontraditria dependa sempre to-somente do conhecimento possudo pelo falante em virtude de ele saber falar uma lngua.

Uma das expresses mais freqentes no vocabulrio do jargo dos polticos justia social. Quando um poltico a emprega em um discurso produz um efeito retrico positivo no seu auditrio. Provavelmente, nem ele nem seu auditrio levantam a menor suspeita de que essa expresso uma contradictio in adjecto tal como cego de aguada percepo visual ou calor glacial. No entanto, F. Hayek (1960) - grande expoente da Escola Austraca e prmio Nobel de economia - fez uma anlise criteriosa dessa expresso em que ele mostra se tratar de uma autntica contradictio in adjecto, pois a sociedade no um agente social tal como uma pessoa fsica ou jurdica e, por isto mesmo, no pode praticar atos passveis de receber as qualificaes de justos ou injustos, a no ser dentro de uma viso marcadamen-te antropomorfizante.

Do ponto de vista do contedo, a anlise de Hayek suscita uma reflexo sobre a pesa-da carga de antropomorfismo no contexto das cincias humanas; mas do ponto de vista da forma, ela mostra que nem todos os casos de contradictio in adjecto so to aparentemente bvios e reconhecveis por qualquer pessoa, como, por exemplo: surdo dotado de penetrante ouvido musical. No difcil mostrar a razo pela qual frases tais como nmero gordo e mesa mltiplo de 3 so erros de categoria produtores de expresses autocontraditrias. Consideremos por exemplo a descrio:

Existe x, tal que x um objeto lgico e x tem propriedades fsicas.

Qualquer que seja x, x no pode ter a descrita conjuno de atributos, ou seja: no pode ser um objeto lgico [que, por definio, s pode ter propriedades lgicas] e ao mesmo tempo ter propriedades fsicas [que, por definio, s so propriedades de objetos fsicos]. Mutatis mutandis, o mesmo se aplica a mesa mltiplo de 3. Temos razes para acreditar que (1) chupando uma manga rasgada e (2) suculenta manga da camisa de Pedro- caso submetidas a uma anlise mais acurada - revelar-se-iam como casos de autocontradio. Mas que dizer de expresses tais como:

(3) fazer das tripas corao

(4) tirar leite das pedras

Tomadas no seu sentido literal, (3) e (4) so do mesmo tipo de (1) e (2). Contudo, h uma importante diferena entre estes pares de frases: (1) e (2) so expresses autocontradit-rias no sentido literal e dificilmente se prestam para um criativo emprego no sentido figurado, ao passo que (3) e (4) so autocontraditrias no sentido literal, mas tm sentido e so bastante expressivas quando tomadas no figurado. E justamente neste sentido que o usurio costuma proferi-las com a inteno de expressar enfaticamente as idias de desempenhar um grande esforo em (3) e extrair com dificuldade algo precioso de algo sem valor em (4).

Constitui um erro pensar que o sentido figurado uma peculiaridade da linguagem lite-rria. Metforas, metonmias e outras figuras de estilo so facilmente encontrveis na lingua-gem cotidiana. Algumas destas expresses j esto incorporadas aos modos usuais de expresso [as assim chamadas metforas mortas]; outras so produtos da criatividade lingstica de determinados usurios, no necessariamente poetas [as assim chamadas metforas vivas]. Assim sendo, no de surpreender que uma investigao voltada para a linguagem comum - que no tem o menor interesse pela expresso literria - tenha de levar em considerao no s o uso literal como tambm o figurado.

Frases aparentemente no-ambguas podem se revelar ambguas quando vislumbrados alguns dos seus usos possveis. Em alguns casos, esta descoberta envolve to-somente usos literais, porm em outros envolve uma passagem do literal ao figurado. Consideremos as seguintes frases:

(1) folha verde

(2) cabo grosso

(3) pena leve

Aparentemente (1), (2) e (3) so frases no-ambguas. No entanto, todas as trs so ambguas por diferentes razes. Em (1) verde tanto pode estar qualificando folha de rvore como folha de papel. Em (2) o sentido da frase depende de se tomamos grosso no sentido literal de espesso ou no sentido figurado de grosseiro. No primeiro sentido, o adjetivo aplicvel a uma corda; no segundo, a um ocupante de um cargo na hierarquia militar, que no se destaca pela finura moral e espiritual.

Em (3), se entendermos que est em jogo o sentido literal de leve, teremos um estilisticamente indesejvel pleonasmo [ penas de pssaros ou a pena que mais poderosa do que a espada (The pen is mightier than the sword, como disse o Coringa no filme do Batman, ao atirar em algum uma pena-dardo envenenada) ambas possuem a insustentvel leveza do ser]. Porm, se entendermos que em (3) est em jogo a pena que um ru foi sentenciado a cumprir, (3) deixar de ser um pleonasmo e passar a ser - ao menos do ponto de vista de um ru condenado - o menos ruim dos piores mundos possveis.

Cabe colocar agora uma questo filosfica crucial: Quais as condies de possibilidade de uma frase (sentena) ser ambgua?

De sada, estas expresses tm de satisfazer um critrio puramente sinttico, pois elas tm de ser expresses bem-formadas. Como j insinuamos, h um tipo de ambigidade distin-to da semntica, que a ambigidade sinttica. Porm, este tipo no decorre de qualquer fator relacionado com a m-formao de uma frase ou de uma sentena. Ao contrrio, para que ele venha a ocorrer necessrio que a sentena em jogo no seja mal-formada. Supondo que no seja, a ambigidade sinttica tem a ver basicamente com a ordem da(s) palavra(s) na(s) senten-a(s) e com a pontuao, como veremos mais adiante.

Suponhamos, no entanto, que no h nenhum problema relacionado com os dois fato-res acima apontados. Admitindo que uma sentena bem-formada, ela tem de satisfazer dois critrios semnticos em que a satisfao de um condio de possibilidade da do outro. Em primeiro lugar, ela tem de possuir sentido (Sinn). Sentenas tais como Verdes idias incolores dormem profundamente[ exemplo de absurdo semntico dado por Chomsky ], A quadrupli-cidade bebe procrastinao [exemplo do mesmo tipo dado por Russell] ou O Nada nadifica [exemplo dado, malgr lui, por Heidegger] tm de ser excludas, porque no fazem sentido, e no o fazem porque so autocontraditrias. Supondo, no entanto, que uma sentena seja bem-formada [critrio sinttico] e possuidora de sentido [primeiro critrio semntico], ela tem de satisfazer um segundo critrio semntico: no pode ser usada para fazer uma referncia (be-deutung) bem-sucedida.

Diferentemente dos casos de contradictio in adjecto e category-mistake, expresses ambguas no pecam por carncia, porm por excesso de sentido, se que podemos dizer assim. Palavras que tem ao menos quatro acepes distintas [como cabo e cravo] podem constituir problemas em contextos frasais ou sentenciais, justamente quando no sabemos de-terminar qual dos seus diversos sentidos est em jogo. No podendo determinar isto, podemos alegar que entendemos perfeitamente cada um dos seus possveis sentidos, mas no podemos alegar que entendemos o sentido da expresso, porquanto no sabemos qual precisamente o pretendido.

[Em um bom dicionrio grego-portugus ou grego-ingls (francs, alemo, etc.) o verbete logos costuma ocupar no mnimo duas pginas inteiras, tamanha a polissemia dessa palavra e de outras palavras gregas. Mas como devemos encarar casos de fortssima polissemia? Depende do ponto de vista filosfico acalentado por aquele que a considera. Para um filsofo analtico, trata-se de algo simplesmente lamentvel, porquanto fator produtor de fortssima ambigidade prejudicando a clareza e a preciso da expresso do pensamento].

Porm para Heidegger, seus aclitos e proslitos, uma diversidade evidenciando a grande riqueza do idioma de Herclito e Plato e justificando a idia de que o grego, juntamen-te com o alemo, uma lngua forte apta para expressar a essncia do ser (a expresso do prprio Heidegger), ao passo que as milhares de lnguas restantes so lnguas fracas e inaptas para expressar a essncia do ser, apesar de renomados lingistas como E. Sapir (1949) terem mostrado que a dicotomia lngua forte/ lngua fraca no passa de um grosseiro equvoco. Mas como diz o arguto dito popular: O que d pra rir d pra chorar, questo de peso e de medi-da, problema de hora e de lugar].

Contudo, como j vimos, a ambigidade de uma palavra uma forma de ambigida-de potencial, pois - dependo do contexto frasal em que a palavra se encontra - a ambigidade tanto pode se atualizar (por exemplo: manga amarela, cabo elegante) como se desfazer (por exemplo: manga suculenta, cabo e sargento). Levando isto em considerao, diversos lingistas e filsofos da linguagem passaram a sustentar firmemente o ponto de vista de que, tomadas isoladamente, palavras no podem ser consideradas unvocas nem ambguas.

S cabe falar da ambigidade de uma palavra no interior de uma frase ou de uma sen-tena. Se os dicionrios fizeram e fazem listas das diversas acepes de uma determinada pala-vra, isto s foi possvel porque os dicionaristas levaram em considerao diversos usos desta mesma palavra em diversos contextos frasais e sentenciais surpreendidos na dinmica dos usos da linguagem. Admitindo que o que est realmente em jogo uma diversidade de usos lingsticos manifestando-se em contextos comunicacionais, no seria plausvel inferir da que a questo da ambigidade no uma questo de natureza sinttica nem semntica, porm pragmtica? Temos boas razes para pensar, no entanto, que essa inferncia improcedente.

Em primeiro lugar, porque nem todas as palavras de uma lngua so potencialmente ambguas. Supondo que fossem, no poderamos desfazer a ambigidade de uma palavra pela mera adio de outra em que a outra no potencialmente ambgua [por exemplo: cabo e sargento]. Em segundo lugar, porque h caractersticas prprias bem definidas para distinguir: (1) ambigidade sinttica [basicamente relacionada com a ordem das palavras e com a pontuao], (2) ambigidade semntica [basicamente relacionada com a duplicidade ou n-plicidade de sentido de uma palavra ou de uma frase] e (3) ambigidade pragmtica [basica-mente relacionada com a duplicidade ou n-plicidade de possveis intenes ilocucionrias de um proferidor]. Consideremos dois exemplos do primeiro tipo de ambigidade:

(1.a.) Joo disse que os advogados vieram ontem

Como j vimos, a palavra ontem semanticamente ambgua, pois tem ao menos dois sentidos: (a) no dia anterior a este e (b) no passado. No entanto, podemos assumir intuitivamente que em (1.a.) o que est em jogo a acepo (a), no a (b). Mas justamente com esta acepo que ela torna (1.a.) uma sentena ambgua, no em virtude do significado de (a), mas por sua posio na sentena. Basta deslocarmos (a) para outras posies e a ambigi-dade desfar-se-.

(1.a.) Joo disse, ontem, que os advogados vieram

(1.a.) Ontem, Joo disse que os advogados vieram

Ou ento, basta passar da ordem direta para a indireta colocando a modalidade temporal expressa pelo advrbio como modalidade de dicto ou de re respectivamente:

(1.a.) Ontem Joo disse: Os advogados vieram

(1.a.) Joo disse: Ontem os advogados vieram

Consideremos agora uma pequena histria que se non vera, bene trovata. Conta-se que Napoleo, tendo recebido um pedido de indulto de um soldado, escreveu uma sentena em uma folha de papel e disse para o soldado levar a folha, devidamente assinada e carimbada por ele (Napoleo), para um tribunal militar. A sentena, tal como estava escrita, sem nenhum sinal de pontuao, era:

(b) Se o tribunal condenar eu no apelo

Ao se deparar com o que estava escrito, o soldado sentiu um calafrio na espinha, pois ele a leu como se estivesse pontuada assim:

(b) Se o tribunal condenar, eu no apelo.

No entanto, como o soldado era bastante perspicaz, ele se deu conta de que a sentena no estava pontuada e que aquilo que parecia ser um sinal da sua condenao era, na realidade, uma boa oportunidade para a sua salvao. Como? Apenas fazendo outra pontuao:

(b) Se o tribunal condenar, eu no: apelo!

Nem mesmo as linguagens formais da lgica e da matemtica esto livres desta segunda forma de ambigidade sinttica decorrente da pontuao. Consideremos que tivssemos de resolver uma equao bastante simples: 2x3+4= x. Do modo como ela est expressa, no podemos determinar o valor de x, pois no sabemos se est em jogo (2x3)+4=x [em que x 10] ou 2x(3+4)=x [em que x 14]. Suponhamos agora um terceiro caso em que a ambigidade sinttica no decorrente da pontuao, nem pode ser resolvida por uma mudana na ordem das palavras: Suponhamos que fssemos traduzir esta sentena:

(c ) Old men and women will be evacuated first

(Hankamer, 1968, p.261)Analisando (c), temos:

_________(c ) _________

FN + FV

______|____________ ____|_______________

|Old men and women| | will be evacuated first |No h nenhum problema na frase verbal (FV), mas h um problema na frase nominal (FN), que contamina toda a sentena. A ambigidade sinttica, neste caso, resulta de duas possveis ligaes entre unidades de FN. Podemos l-la com o paradigma old qualificando o sintagma men and women [ e neste caso a traduo : os velhos e as velhas], mas podemos l-la tambm com o paradigma old qualificando o paradigma men [e neste caso, a traduo passa a ser: os velhos e as mulheres]. No podemos deixar de assinalar a analogia entre essa forma de ambigidade sinttica e as chamadas figuras ambguas apresentadas pelos gestaltis-tas [ a velha-moa, o pato-coelho, o cubo de Necker, etc.], em que - dependendo de um modo ou outro de enfocar o padro visual - constituem-se alternativamente figuras distintas.

De modo a evitar mal-entendidos, tentaremos esclarecer brevemente a natureza da alegada analogia formal. Apesar do primeiro tipo de ambigidade ocorrer em um contexto lingstico e o segundo em um contexto extralingstico, o que est em jogo fundamentalmente uma mudana de arranjo nos elementos de uma estrutura. Nenhum elemento retirado e nenhum acrescentado, mas determinado modo de articulao substitudo por outro. Se olharmos de um modo, perceberemos um pato; se olharmos de outro, perceberemos um coelho. Se fizermos a ligao de um paradigma com um sintagma, teremos um sentido; se fi-zermos a de um paradigma com outro, teremos outro sentido. Se pontuarmos de um modo, teremos um sentido; se pontuarmos de outro modo, teremos outro.

No se trata de uma questo de modos de considerar as coisas [em que esto em jogo fatores subjetivos dependentes de interpretaes]. Em ambos os casos de ambigidade sinttica e de ambigidade gestltica, o que est em jogo no a possibilidade de diferentes pontos de vistas decorrentes de diversas consideraes subjetivas feitas pelos receptores de sentenas ou de padres visuais. Nos exemplos apresentados, tanto a estrutura lingstica como o padro visual impem-se de modo objetivo permitindo duas, e somente duas, leituras possveis, independentemente de quaisquer fatores relativos ao receptor da estrutura ou do padro. No h uma terceira leitura, nem as duas que h poderiam ser substitudas por outras.

Considerando que a ambigidade sinttica e a semntica esto ao menos brevemente caracterizadas, resta-nos examinar o caso da ambigidade pragmtica. Pensamos que este tipo de ambigidade pode ser assim chamado, porque est envolvido com emissores e receptores de enunciados, bem como com contextos de proferimento. Suponhamos que um motorista passa por uma rua em que h uma placa em que est escrito:

devagar

crianasNeste caso, o motorista entende perfeitamente que a mensagem est dirigida a ele: trata-se de uma advertncia para os motoristas, podendo ser transcrita mais ou menos assim: Dirija devagar, porque h crianas atravessando a rua. No entanto, a mensagem acima s no ambgua em virtude de um determinado contexto extralingstico, que desfaz sua possvel ambigidade. Poderamos l-la como se estivesse endereada s crianas, mas o contexto nos faz entender que no so as crianas que precisam atravessar a rua devagar, mas sim os motoristas que devem dirigir assim seus carros. Todo mundo sabe - at mesmo um ctico que alega nada saber nem poder definir - que no so os carros que correm o risco de serem atropelados pelas crianas.

Suponhamos, no entanto, uma outra placa com as mesmas palavras, porm situada em outro lugar. Aps algumas crianas terem levado tombos no corredor e se machucado, a diretora da escola resolveu colocar a placa na parede como uma advertncia feita s crianas. As palavras no se modificaram, porm a mudana de lugar gerou um outro contexto extralin-gstico em que a mensagem passou a ser dirigida a outros receptores. O ato ilocucionrio no se modificou: era e continuou sendo uma advertncia. Os advertidos que passaram a ser outros. Examinemos outro tipo de ambigidade pragmtica. Suponhamos que a diga para b:

(a) No aparea mais aqui

No h nenhuma ambigidade semntica nem sinttica em (1) cujo claro sentido No retorne a este lugar. Supondo que b tenha entendido o sentido da sentena proferida por a [coisa que, por suposio, qualquer falante da lngua portuguesa entenderia], b pode ficar em dvida quanto inteno significativa de a. Com que finalidade teria a dito o que disse? Evidentemente, a no se serviu de (1) para fazer uma assero, nem uma descrio, tampouco para fazer uma promessa. Na realidade, (1) s pode ser usada para fazer duas nicas coisas e b - assim como qualquer falante da lngua portuguesa sabe muito bem disto. Ele s no sabe qual das duas pretendera a. Diante deste dilema, b se volta para a e pergunta:

Isto uma advertncia ou uma ameaa?

Os atos ilocucionrios de fazer uma advertncia ou uma ameaa so bastante diferentes, mas (1) tanto pode ser empregada para fazer uma coisa ou outra. E isto mostra que a pergunta de b tem sua razo de ser: ele no est pedindo qualquer esclarecimento quanto ao significado da sentena [sentence meaning], pois isto algo que ele j sabe; ele est pedindo um esclarecimento quanto ao significado do proferimento do falante [speakers utterance meaning ], pois isto algo que ele no sabe ou no est certo de que sabe. (Searle, 1969). A ambigidade encrostada na recepo do enunciado poderia ser desfeita de diversas maneiras relacionadas com fatores expressivos [a fisionomia do emissor, a inflexo da sua fala, etc.] ou fatores conceituais [um especial tipo de clusula cuja funo consiste em explicitar a natureza do ato ilocucionrio, de acordo com a inteno significativa do falante]. Consideremos:

(a) No aparea mais aqui [ porque se voc fizer isto,

vou chamar a polcia ]

(a) No aparea mais aqui [ porque justamente a-

qui que seus credores viro procur-lo ].

A emisso de (a) deixa claro que se trata de uma ameaa, ao passo que a emisso de (a) deixa claro que se trata de uma advertncia. Evidentemente, se havia alguma ambigidade, esta no estava no significado da sentena nem se apresentava para o emissor desta mesma, pois qualquer pessoa sabe quando est usando uma sentena para fazer uma ameaa ou uma advertncia. Se havia alguma ambigidade, esta se apresentava para o receptor da sentena, pois nem sempre a fisionomia, os gestos e a inflexo de voz do emissor oferecem ao receptor uma pista segura sobre a natureza da inteno significativa daquele que proferiu um enunciado.

Devemos considerar que h informaes disponveis para todo e qualquer falante de uma lngua. Pelo simples fato de um indivduo dominar um idioma qualquer, ele adquire importantes informaes a respeito de certas caractersticas bsicas de uma lngua humana em geral e da sua em particular. Este conhecimento no um conhecimento do tipo proposicio-nal, porm do tipo prtico. No se trata de um saber que (know that), porm de um saber como (know how), isto : um saber como realizar um determinado desempenho, ainda que no contando com a explicitao verbal de nenhuma regra.

H pessoas que se expressam corretamente, porque conhecem as regras da gramtica, mas h outras que assim o fazem, porque foram criadas em um meio lingstico em que os falantes se expressavam corretamente. As primeiras aprenderam mediante o conhecimento de regras, porm as segundas pela imitao de desempenhos alheios e pelas correes que estes lhes fizeram quando dos seus prprios desempenhos. Apesar da performance lingstica trazer muitas informaes para os falantes de uma lngua, h informaes disponveis para uns que no esto disponveis para outros. Por exemplo: cada um de ns goza de um acesso privilegiado intimidade da prpria conscincia, de tal modo que sempre conhece suas prprias intenes e finalidades, mas nem sempre chega a conhecer as dos outros.

escusado acrescentar que justamente a privacidade indevassvel da conscincia de um falante a responsvel pelas dificuldades e pelos mal-entendidos gerados quando da tentativa de compreenso das intenes significativas alheias. No dispomos de outro recurso seno interpretar sinais lingsticos e extralingsticos. Algumas vezes, somos bem-sucedidos na nossa tarefa, mas outras vezes fazemos inferncias equivocadas e estabelecemos falsos nexos causais.

Fernando Pessoa narrou um caso extremamente interessante. Contou ele que estava em uma estalagem quando determinado orador fez um discurso comovente a respeito das injustias e dos sofredores. O poeta disse que comeou a chorar e o orador foi at ele para abra-lo, julgando que se tratava de um simpatizante da sua causa. Porm este disse que mal estava ouvindo o que dizia o orador: estava totalmente ensimesmado e chorava porque se viu envolvido com suas prprias mgoas. Vale a pena reconstituir o raciocnio falacioso feito pelo mencionado orador:

(1) Estou dizendo coisas comoventes

(2) Coisas comoventes costumam produzir lgrimas

(3) Aquele indivduo est banhado em lgrimas

(4) Logo: aquele indivduo est chorando pelo que

eu estou dizendo

As premissas (1), (2) e (3) eram verdadeiras, porm a concluso (4) - segundo o prprio testemunho do poeta - era falsa, totalmente improcedente. Costuma haver nexo causal entre coisas comoventes e lgrimas, ou entre piadas engraadas e riso farto, mas o fato que no havia qualquer nexo causal entre as coisas comoventes dita pelo homem da estalagem e as lgrimas do poeta voltado para si prprio e entregue s suas prprias tristezas.

Lgrimas no rosto podem ser um sinal ambguo quando no sabemos se decorrem de um sofrimento real ou se no passam de lgrimas de crocodilo. No entanto, no era isto que estava em jogo no episdio narrado brevemente acima. O que estava em jogo era o estabeleci-mento de um falso nexo causal entre determinado efeito observvel e uma causa no-observvel. As lgrimas eram reais, sua causa que no era a pressuposta pelo observador, que poderia at ter sido bem-sucedido na sua inferncia, mas fracassou. Se ele tivesse um acesso privilegiado intimidade da conscincia alheia, no poderia cometer nenhum erro, mas tambm no precisaria fazer qualquer inferncia quando da interpretao de sinais lingsticos ou extralingsticos relacionados com expresses alheias.

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