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TRÊS NOTAS SOBRE A IDENTIDADE DO SISTEMA JURISDICIONAL DA UNIÃO EUROPEIA * Nuno Piçarra ** I. INTRODUÇÃO 1. Na sua versão originária, o Tratado de Roma, então denominado Tratado da Comunidade Económica Europeia (TCEE) e hoje, Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), previa a criação de um único órgão jurisdicional – o Tribunal de Justiça (TJ) 1 – investido nas competências de atribuição atualmente sintetizadas pelo artigo 19.º, n.º 3, do Tratado da União Europeia (TUE) e especificadas pelos artigos 251.º e seguintes do primeiro tratado (constantes da Parte VI, relativa às disposições institucionais e financeiras), a que acresce o artigo 344.º, inserido na Parte VII (sobre disposições gerais e finais). Tais competências tendem, no essencial, à garantia do “respeito do direito” na interpretação e aplicação daqueles Tratados, o que fala por si acerca do papel que os seus autores entenderam conferir à jurisdictio no projeto europeu desde as suas origens, pondo-a a salvo da influência dos Estados-Membros – decisiva, em compensação, no sistema de gubernaculum instituído pelos mesmos tratados 2 . Tendo em conta que o antecessor do TJ (criado, como se recordou, pelo TCECA) começou a funcionar em 10 de dezembro de 1952, conclui-se que esta situação de “órgão jurisdicional único” no quadro institucional das então três Comunidades * A escolha, para homenagear Miguel Galvão Teles, de um tema que não se enquadra nos seus interesses jurídico-científicos mais diretos, é ocasião privilegiada para recordar o brilho e a profundidade das páginas que, mesmo assim, já dedicou a temas relacionados com a construção europeia. Por isso, não passará seguramente despercebido ao Ilustre Jurista, nesta fase de crise aguda e sem fim à vista por que passa a União Europeia, o contributo decisivo para a efetividade e a coerência do seu direito dado pelo original sistema jurisdicional de que foi dotada – e cuja identidade tem sido, no essencial, preservada ao longo de quase seis décadas de existência. ** Professor associado da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. 1 Era o que previam também, por um lado, o outro tratado assinado em Roma em 25 de março de 1957, que criou a Comunidade Europeia da Energia Atómica (TCEEA), e, por outro lado, o Tratado assinado em Paris em 18 de abril de 1951, que criou a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (TCECA). Em convenção igualmente celebrada em 25 de março de 1957, relativa a certas instituições comuns às Comunidades Europeias (artigos 3.º e 4.º), ficou estabelecido que as competências que os dois tratados da mesma data atribuíam ao respetivo tribunal seriam exercidas por um tribunal único, o qual, por sua vez, substituiria o tribunal criado pelo TCECA. 2 Como observou recentemente Jean-Louis Quermonne, “La «Fédération d’États Nations»: concept ou contradiction?”, in Revue française de Droit constitutionnel, n.º 84, 2010, pp. 685-686, “o projeto de integração europeia fez emergir um modo específico de federalismo que confere aos governos nacionais um lugar preponderante num novo equilíbrio fundado no exercício em comum das soberanias”.

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TRÊS NOTAS SOBRE A IDENTIDADE DO SISTEMA

JURISDICIONAL DA UNIÃO EUROPEIA*

Nuno Piçarra**

I. INTRODUÇÃO

1. Na sua versão originária, o Tratado de Roma, então denominado Tratado da

Comunidade Económica Europeia (TCEE) e hoje, Tratado sobre o Funcionamento da

União Europeia (TFUE), previa a criação de um único órgão jurisdicional – o Tribunal

de Justiça (TJ)1 – investido nas competências de atribuição atualmente sintetizadas pelo

artigo 19.º, n.º 3, do Tratado da União Europeia (TUE) e especificadas pelos artigos

251.º e seguintes do primeiro tratado (constantes da Parte VI, relativa às disposições

institucionais e financeiras), a que acresce o artigo 344.º, inserido na Parte VII (sobre

disposições gerais e finais). Tais competências tendem, no essencial, à garantia do

“respeito do direito” na interpretação e aplicação daqueles Tratados, o que fala por si

acerca do papel que os seus autores entenderam conferir à jurisdictio no projeto europeu

desde as suas origens, pondo-a a salvo da influência dos Estados-Membros – decisiva,

em compensação, no sistema de gubernaculum instituído pelos mesmos tratados2.

Tendo em conta que o antecessor do TJ (criado, como se recordou, pelo

TCECA) começou a funcionar em 10 de dezembro de 1952, conclui-se que esta situação

de “órgão jurisdicional único” no quadro institucional das então três Comunidades

* A escolha, para homenagear Miguel Galvão Teles, de um tema que não se enquadra nos seus interesses jurídico-científicos mais diretos, é ocasião privilegiada para recordar o brilho e a profundidade das páginas que, mesmo assim, já dedicou a temas relacionados com a construção europeia. Por isso, não passará seguramente despercebido ao Ilustre Jurista, nesta fase de crise aguda e sem fim à vista por que passa a União Europeia, o contributo decisivo para a efetividade e a coerência do seu direito dado pelo original sistema jurisdicional de que foi dotada – e cuja identidade tem sido, no essencial, preservada ao longo de quase seis décadas de existência. ** Professor associado da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. 1 Era o que previam também, por um lado, o outro tratado assinado em Roma em 25 de março de 1957, que criou a Comunidade Europeia da Energia Atómica (TCEEA), e, por outro lado, o Tratado assinado em Paris em 18 de abril de 1951, que criou a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (TCECA). Em convenção igualmente celebrada em 25 de março de 1957, relativa a certas instituições comuns às Comunidades Europeias (artigos 3.º e 4.º), ficou estabelecido que as competências que os dois tratados da mesma data atribuíam ao respetivo tribunal seriam exercidas por um tribunal único, o qual, por sua vez, substituiria o tribunal criado pelo TCECA. 2 Como observou recentemente Jean-Louis Quermonne, “La «Fédération d’États Nations»: concept ou contradiction?”, in Revue française de Droit constitutionnel, n.º 84, 2010, pp. 685-686, “o projeto de integração europeia fez emergir um modo específico de federalismo que confere aos governos nacionais um lugar preponderante num novo equilíbrio fundado no exercício em comum das soberanias”.

Europeias viria a manter-se por quase trinta e sete anos. Com efeito, foi o Ato Único

Europeu que introduziu no ainda TCEE uma nova disposição – o então artigo 168.º-A,

n.º 13 – nos termos da qual poderia ser “associada ao Tribunal de Justiça uma jurisdição

encarregada de conhecer em primeira instância, sem prejuízo de recurso para o Tribunal

de Justiça limitado às questões de direito (…), de certas categorias de ações propostas

por pessoas singulares ou coletivas. Essa jurisdição não ter[ia] competência para

conhecer de processos instaurados por Estados-Membros ou por instituições

comunitárias, nem de questões prejudiciais submetidas nos termos do artigo 177.º”, hoje

267.º do TFUE.

Este novo órgão jurisdicional – denominado Tribunal de Primeira Instância

(TPI) – foi criado por decisão do Conselho de 24 de outubro de 1988. Na exposição de

motivos invocou-se, por um lado, a necessidade de melhorar a proteção jurisdicional

dos particulares criando “um segundo tribunal” competente para julgar “ações que

exijam um exame aprofundado de factos complexos” e, por outro lado, razões de boa

administração da justiça, principalmente relacionadas com a necessidade de aliviar o

volume de processos que crescentemente afluía ao TJ4. O TPI, que iniciou funções em

setembro de 1989, deveria permitir que o TJ se concentrasse na missão essencial de

garantir a interpretação e a aplicação uniformes do direito comunitário no conjunto dos

territórios dos Estados-Membros, descentralizadamente levadas a cabo, em medida

decisiva, pelos respetivos tribunais. A missão do TJ deveria ser desempenhada em

estreita cooperação com estes tribunais, principalmente no quadro do processo de

questões prejudiciais5.

3 Reproduzido nos artigos 140.º-A do TCEEA e 32.º-D do TCECA. 4 A Decisão do Conselho 88/591/CECA, CEE, Euratom, na sua versão retificada, encontra-se publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias C 215/1, de 21.8.1989. Só a Decisão do Conselho de 93/350/Euratom, CECA, de 8 de Junho de 1993, que a reviu pela primeira vez, se refere expressamente ao princípio do duplo grau de jurisdição a propósito da criação do TPI. 5 Recorde-se que, desde a entrada em vigor do Tratado de Roma, os tribunais dos Estados-Membros ficaram obrigados a aplicar diretamente os regulamentos e as decisões comunitárias (por força do então artigo 189.º, hoje 288.º) e que, na sequência do acórdão prejudicial do TJ de 5 de fevereiro de 1963, Van Gend & Loos, 26/62, passaram a dever buscar também nas disposições claras, precisas e incondicionais daquele Tratado critérios de solução aplicáveis aos casos concretos perante si pendentes. Como o próprio TJ teve ocasião de clarificar, a sua função no quadro do processo prejudicial “confirma que os Estados-Membros reconheceram ao direito comunitário uma autoridade suscetível de ser invocada perante aqueles tribunais”. Com o acórdão prejudicial de 15 de julho de 1964, Costa/ENEL, 6/64, os mesmos tribunais ficaram vinculados a preferir esses critérios de solução aos critérios colidentes resultantes do direito nacional. “O efeito direto de toda uma série de disposições” de fonte europeia, aplicáveis também aos próprios nacionais dos Estados-Membros, e o primado dessas disposições “relativamente aos direitos dos Estados-Membros” são “as características essenciais da nova ordem jurídica da União assim constituída”, a favor da qual aqueles “limitaram, em domínios cada vez mais amplos, os seus direitos soberanos”. Ver por último o Parecer 1/09 do TJ de 8 de março de 2011, n.º 65, analisado infra, II.

2

O Tratado de Nice reviu a repartição de competências entre o TJ e o TPI e veio

permitir a criação de “câmaras jurisdicionais adstritas ao TPI, encarregadas de conhecer

em primeira instância de certas categorias de recursos em matérias específicas”. Por

decisão de 2 de novembro de 2004, o Conselho criou o Tribunal da Função Pública da

União Europeia (TFPUE), cujo primeiro acórdão foi proferido em 26 de abril de 2006.

Com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, em 1 de dezembro de 2009, o

artigo 19.º, n.º 1, do TUE adotou a designação “Tribunal de Justiça da União Europeia”

para aquele conjunto, denominando-se agora o primeiro dos três órgãos jurisdicionais

simplesmente Tribunal de Justiça6. O TPI, por seu lado, passou a denominar-se

Tribunal Geral (TG). As câmaras jurisdicionais denominam-se agora tribunais

especializados, ainda não tendo sido criado entretanto mais nenhum para além do

TFPUE7.

As regras fundamentais sobre a repartição de competências entre aqueles

tribunais constam dos artigos 256.º e 257.º do TFUE e do artigo 51.º do Estatuto do

Tribunal de Justiça da União Europeia (ETJUE). Delas resultam que apenas em dois

aspetos se evoluiu em relação ao comando do citado artigo 168.º-A, n.º 1, in fine: (i)

uma parte das “categorias de ações propostas por pessoas singulares ou coletivas”

passou a ser da competência de um terceiro tribunal – o TFPUE – e (ii) o TG adquiriu

competência para conhecer de certas categorias de “processos instaurados por Estados-

Membros”. O TJ continua, portanto, a dispor de competência exclusiva para conhecer

de “processos instaurados por instituições da União” e de questões prejudiciais nos

termos do artigo 267.º do TFUE8.

2. No que respeita aos tribunais nacionais, a única evolução a registar desde as

origens da construção europeia prende-se com o aprofundamento do seu insubstituível

papel de “tribunais de direito comum da União” e, portanto, do caráter essencialmente

descentralizado do sistema jurisdicional em presença – mas exclusivo, em termos de

operadores, no que respeita à interpretação e aplicação do direito da União. A estes dois

traços identificadores do sistema jurisdicional da UE, junta-se a sua autodefinição como

6 Considerando esta nomenclatura “inelegant”, Paul Craig, The Lisbon Treaty. Law, Politics and Treaty Reform, Oxford, 2010, p. 123. 7 Para Paul Craig, op. cit. na nota anterior, pp. 134 e 154, é de lamentar que a arquitetura global deste sistema não tenha sido repensada por ocasião de nenhuma revisão dos Tratados da UE. 8 Apesar de o artigo 256.º, n.º 3, do TFUE também atribuir ao TG competência para conhecer de questões prejudiciais em matérias específicas determinadas pelo ETJUE, este ainda não procedeu a tal determinação.

3

“sistema completo de vias de recurso e de meios processuais destinado a garantir a

fiscalização da legalidade dos atos da União”9 – onde, porém, (ainda) são detetáveis

“incompletudes” que o Tratado de Lisboa atenuou mas não suprimiu totalmente.

São estes três elementos identificadores do sistema jurisdicional da UE,

aparentemente menos percetíveis como tal, que o presente estudo tem por objeto, à luz

do mais recente acervo jurisprudencial produzido no seu âmbito.

II. O PAPEL FULCRAL DOS TRIBUNAIS DOS ESTADOS-MEMBROS

3. Como se salientou liminarmente, nem mesmo a mais sumária das abordagens

ao sistema jurisdicional da UE dispensa uma referência, para além dos próprios

tribunais orgânico-institucionalmente pertencentes àquela (TJ, TG e TFP), todos eles

especializados, à sua outra componente essencial constituída pelos tribunais dos

Estados-Membros ou, na denominação dos próprios Tratados da UE – que a eles se

referem muito discretamente –, os “órgãos jurisdicionais nacionais”. Estes

desempenham, com efeito, um papel fulcral no sistema jurisdicional em análise,

enquanto tribunais comuns da UE, sem no entanto perderem a sua qualidade primordial

de tribunais nacionais. Por outras palavras, cada juiz nacional é também juiz da UE e,

em certo sentido, mais naturalmente do que o TJ, o TG e o TFP, cuja competência é

somente de atribuição10, passando a acumular com a qualidade de tribunais

encarregados da aplicação do respetivo direito nacional a qualidade de tribunais

encarregados de aplicar comummente o direito da UE.

Isto significa portanto que, a nível jurisdicional – e, paralelamente, a nível

administrativo –, a UE organizou-se, desde as suas origens comunitárias, de acordo com

a ideia de subsidiariedade, levando na devida conta que todos os Estados-Membros

dispunham de organizações judiciárias (e de administrações públicas) perfeitamente

estruturadas, operacionais e naturalmente mais próximas dos cidadãos. Por isso mesmo,

renunciou-se à criação de um sistema de tribunais próprios, destinados a aplicar

especificamente o direito de fonte europeia no território dos Estados-Membros. Só

ficaram reservadas aos tribunais orgânico-institucionalmente pertencentes à União as

competências insuscetíveis de serem atribuídas aos tribunais nacionais, por só poderem

9 Ver por último o Parecer 1/09, cit., n.º 70. 10 Assim, Robert Lecourt, L’Europe des juges, Bruxelas, 1976, pp. 8-9. Para maiores desenvolvimentos, ver por exemplo Olivier Dubos, Les juridictions nationales: juge communautaire, Paris, 2001.

4

ser exercidas em termos adequados a nível daquela – em conformidade, precisamente,

com uma lógica de subsidiariedade.

No exercício dessa competência comum descentralizada para aplicar o direito da

UE (o qual, longe de constituir apenas mais um ramo específico do direito, impregna

atualmente, em maior ou menor escala, todos os ramos e sub-ramos do direito

identificáveis nos ordenamentos dos Estados-Membros), os tribunais nacionais não

estão totalmente entregues a si próprios, estabelecendo, a montante das suas próprias

decisões, relações de cooperação com o TJ, através do já referido processo previsto

pelos artigos 19.º, n.º 3, alínea b), do TUE e 267.º do TFUE – comummente

denominado reenvio prejudicial –, por forma a garantir que o direito da União seja por

eles uniformemente interpretado e aplicado11.

Para responder a essa “exigência existencial” sem a qual não se estaria sequer

em presença de um verdadeiro ordenamento jurídico, os Tratados da UE não se

inspiraram em modelos federais. Por isso, as relações entre o TJ e os tribunais nacionais

não são de hierarquia, mas de cooperação, característica que permaneceu inalterada até

aos dias de hoje.

4. O papel que os tribunais nacionais desempenham no exercício da função

jurisdicional multinivelada da UE não pode, de todo, ser considerado separadamente em

relação ao método de cooperação entre juízes, assente na distinção algo artificial entre

interpretação e aplicação do direito12. Na realidade, sem prejuízo de encontrar a sua

base normativa primordial no princípio da cooperação leal – que vincula a União e os

Estados-Membros a respeitarem-se e assistirem-se mutuamente “no cumprimento das

missões decorrentes dos Tratados”, consagrado no artigo 4.º, n.º 3, do TUE13 –, esse

11 Dos artigos 19.º, n.º 3, alínea b), do TUE e 267.º do TFUE, conjugados com o artigo 256.º, n.º 3 (ver supra, nota 8), resulta que o TJ decide “a título prejudicial, a pedido dos órgãos jurisdicionais nacionais, sobre a interpretação do direito da União ou sobre a validade dos atos adotados pelas instituições”. Para um comentário àqueles dois artigos, ver por ultimo J. N. Cunha Rodrigues/A. J. Robalo Cordeiro e Maria Eugénia Martins Ribeiro, in Manuel Lopes Porto e Gonçalo Anastácio (coord.), Tratado de Lisboa Anotado e Comentado, Coimbra, 2012, pp. 97-100 e 962-966. 12 Para maiores desenvolvimentos ver por exemplo A. Castanheira Neves, Metodologia Jurídica. Problemas fundamentais, Coimbra, 1993, especialmente pp. 83 segs. Aí se salienta que “o problema jurídico-normativo da interpretação não é o de determinar a significação, ainda que significação jurídica, que exprimam as leis ou quaisquer normas jurídicas, mas o de obter dessas leis ou normas um critério prático normativo adequado de decisão de casos concretos” (ênfase no original) e que “a norma só vem a ser interpretativamente determinada através da concreta resolução dos problemas jurídicos que nela se fundamente ou que a invoque como seu critério” 13 Daí resulta, também para os tribunais dos Estados-Membros, o dever de tomar “todas as medidas gerais ou específicas adequadas para garantir a execução das obrigações decorrentes dos Tratados ou resultantes

5

papel ou “mandato europeu” dos juízes nacionais é essencialmente de fonte

jurisprudencial, isto é, encontra-se definido na jurisprudência proferida pelo TJ em

resposta às questões prejudiciais que lhe são colocadas por aqueles tribunais – e assim

influenciam também o conteúdo desse mandato14. Fala por si a simples releitura, sob

este prisma, do citado acórdão Van Gend & Loos, “pedra basilar” da arquitetura desse

mandato.

Entre o vasto elenco de “prerrogativas e obrigações europeias”, para os tribunais

nacionais enquanto tribunais comuns da UE, criativamente extraídas sobretudo do

Tratado de Roma, avulta a de, no âmbito das suas competências, aplicarem

integralmente o direito da União e protegerem os direitos que este confere aos

particulares, fazendo tudo o que for necessário para garantir a sua plena eficácia. Com

essa finalidade, os tribunais nacionais podem inclusive exercer competências que não

lhes são reconhecidas pelas ordens jurídicas estaduais em que se integram e ver até

reforçado o seu estatuto constitucional perante outros poderes do Estado,

designadamente o legislador. É a este propósito que se fala de um “empowerment” dos

juízes nacionais, determinado pelo “empowering effect” do direito da UE15.

Como exemplo mais significativo disso mesmo, é normalmente referida a

competência reconhecida pelo TJ a qualquer tribunal nacional de, com vista a garantir a

plena eficácia do direito da UE, desaplicar se necessário, por sua própria autoridade,

qualquer disposição contrária de direito nacional, anterior ou posterior, sem ter que

requerer ou aguardar a prévia eliminação dela por via legislativa ou por qualquer outro

processo constitucional16 – competência essa de que, fora de tal contexto, a

generalidade dos tribunais dos Estados-Membros não dispõe17. Mas pode citar-se

também a competência para suspender, nas mesmas condições, a título de medida

provisória ou providência cautelar, a aplicação de uma lei nacional, até o TJ, em decisão

prejudicial, lhe fornecer elementos de interpretação do direito da UE que lhe permitam

dos atos das instituições da União” e de se abster “de qualquer medida suscetível de pôr em perigo a realização dos objetivos da União”. 14 Neste sentido, ver Sacha Prechal, “National Courts in EU Judicial Structures”, in Yearbook of European Law, n.º 25, 2006, p. 433, que se refere expressamente ao mandato dos juízes nacionais como “a matter of case law”, em coerência, de resto, com a característica fundamental do direito da União, “much more oriented to case law”. 15 Para maiores desenvolvimentos, remete-se para Nuno Piçarra e Francisco Pereira Coutinho, “The Europeanization of the Portuguese Courts”, in Nuno Severiano Teixeira e António Costa Pinto, The Europeanization of Portuguese Democracy, Nova Iorque, 2012, pp. 111 segs e bibliografia aí citada. 16 Ver o acórdão do TJ de 9-3-1978, Simmenthal, 106/77, n.º 24. 17 Uma das exceções é Portugal, onde, graças à componente difusa do sistema de fiscalização de constitucionalidade em vigor, “nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam a Constituição ou os princípios nela consignados” (artigo 204.º da Constituição de 76).

6

concluir definitivamente pela incompatibilidade, ou não, da lei suspensa com o direito

prevalecente18.

O artigo 19.º, n.º 1, segundo parágrafo, do TUE, ao impor aos Estados-Membros

a obrigação, originariamente também de fonte pretoriana, de estabelecerem nos

respetivos ordenamentos jurídicos “as vias de recurso necessárias para assegurar uma

tutela jurisdicional efetiva nos domínios abrangidos pelo direito da União”19, confirma e

reforça o papel fulcral dos tribunais nacionais no sistema jurisdicional da UE.

5. Recentemente, foi o próprio TJ a recordar o lugar e o papel dos tribunais dos

Estados-Membros no sistema jurisdicional da UE – para os considerar parte integrante

da identidade deste sistema e, nessa medida, inalterável por ato de direito internacional

público convencional, ou sequer por revisão dos próprios Tratados da UE. Fê-lo em

aplicação do artigo 218.º, n.º 11, do TFUE, que lhe confere competência para, a pedido

de qualquer Estado-Membro, do Parlamento Europeu, do Conselho ou da Comissão,

emitir parecer sobre a compatibilidade com os Tratados da UE de um projeto de acordo

de direito internacional em que esta seja parte. O referido preceito é interpretado pelo TJ

como tendo por objetivo “evitar as complicações que resultariam de impugnações

judiciais relativas à compatibilidade com aqueles Tratados de acordos internacionais

que vinculam a União (…), o que não deixaria de criar não só a nível da União, mas

também a nível das relações internacionais, sérias dificuldades e correria o risco de

provocar prejuízos a todas as partes interessadas, incluindo os Estados terceiros”20.

Se o parecer for negativo, o acordo projetado não pode entrar em vigor, salvo

alteração, ou então salvo revisão dos Tratados da UE – mas só na medida em que as

disposições em causa destes últimos não sejam materialmente irrevisíveis,

designadamente por estabelecerem, como o próprio TJ já esclareceu a propósito do

sistema jurisdicional da União, os elementos estruturantes desse sistema21.

6. O projeto de acordo objeto de parecer negativo do TJ (que vincularia a União

e os Estados-Membros, por um lado, e um conjunto Estados terceiros, por outro) criava

18 Ver o acórdão do TJ de 19-6-1990, Factortame, C-213/89, n.º 21. 19 Ver o acórdão do TJ de 25-2-2002, Unión de Pequeños Agricultores contra Conselho, C-50/00 P, n.º 41. 20 Cf. os n.ºs 47-48 do Parecer 1/09, cit. 21 Para maiores desenvolvimentos, ver J. L. Cruz Vilaça e Nuno Piçarra, Are There Material Limits to the Revision of the Treaties of the European Union?, publicação do Zentrum für Europäisches Wirtschaftsrecht da Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität de Bona, n.º 46, 1995.

7

um sistema unificado de resolução de litígios em matéria de patentes, designado por

Tribunal de Patentes Europeias e Comunitárias (TP)22. Tal como o TJ fez notar, tratava-

se, “no essencial, de uma nova estrutura jurisdicional”, situada “fora do quadro

institucional e jurisdicional da União” – não fazendo, portanto, “parte do sistema

jurisdicional previsto no artigo 19.º, n.º 1, do TUE” –, dotada de competência exclusiva

relativamente a um número importante de ações intentadas por particulares no domínio

das patentes – e designadamente no domínio da futura patente comunitária23. A

compatibilidade com os Tratados da UE desta última competência exclusiva do TP é

que constituía a questão central formulada no pedido de parecer24.

Organicamente, o TP seria composto por um tribunal de primeira instância,

compreendendo uma divisão central e divisões locais e regionais, bem como por um

tribunal de recurso. As competências territoriais das diferentes divisões do tribunal de

primeira instância eram delimitadas nos termos do artigo 15.º do projeto de acordo. Os

tribunais dos Estados contratantes (Estados-Membros da UE e Estados terceiros) só

seriam “competentes para conhecer das ações relacionadas com patentes comunitárias e

patentes europeias que não sejam da competência exclusiva do TP”.

As características elencadas da nova estrutura jurisdicional bastam para levar à

conclusão de que ela se distingue substancialmente do sistema jurisdicional da UE. Ao

contrário deste, trata-se de uma estrutura basicamente centralizada (embora com

desconcentração territorial ao nível do tribunal de primeira instância), onde os tribunais

nacionais desempenham, portanto, um papel meramente residual. Esta última

22 Recorde-se que, segundo a Declaração n.º 17, aprovada aquando da assinatura do Tratado de Nice, relativa ao então artigo 229.º-A e atual artigo 262.º do Tratado de Roma, sobre a eventual competência de um tribunal da União para “decidir sobre litígios ligados à aplicação dos atos adotados com base no presente tratado que criem títulos comunitários de propriedade industrial”, tal disposição não condicionava “a escolha do quadro jurisdicional eventualmente a criar para o tratamento [deste] contencioso”. 23 A futura patente comunitária deverá ter carácter unitário e autónomo e produzir os mesmos efeitos em toda a UE, só podendo ser concedida, transmitida, declarada nula ou extinta com efeitos relativamente a todo este espaço territorial. Nisto se distinguirá substancialmente da patente europeia, concedida nos termos da Convenção homónima, assinada em Munique em 5 de outubro de 1973, na qual são partes contratantes trinta e oito Estados, entre os quais todos os Estados-Membros da UE, mas não esta última. Com efeito, apesar de a patente europeia ser concedida pelo Instituto Europeu de Patentes (criado por aquela convenção), através de um procedimento único, ela divide-se num conjunto de patentes nacionais, cada uma regulada pelo direito interno dos Estados designados pelo titular e apenas produzindo efeitos no respetivo território. Para maiores desenvolvimentos, ver por último Alberto Francisco Ribeiro de Almeida em comentário ao artigo 262.º do TFUE, in Tratado de Lisboa Anotado e Comentado, cit., pp. 942-943. 24 Cf. os n.ºs 64, 71-72 e 59 do Parecer 1/09. O TJ precisa neste contexto que, por força do acordo projetado, o órgão jurisdicional nele previsto – TP – disporia de competência para interpretar e aplicar não só as disposições do referido acordo, mas também o futuro regulamento sobre a patente comunitária e outros instrumentos de direito da União com os quais o referido regulamento deve, eventualmente, ser lido em conjugação: disposições relativas a outros regimes de propriedade intelectual e regras do TFUE relativas ao mercado interno e ao direito da concorrência (n.º 78).

8

característica coloca a nova estrutura nos antípodas do sistema jurisdicional da UE, em

que os tribunais dos Estados-Membros estão na primeira linha, enquanto tribunais de

direito comum. Noutra perspetiva, a lógica subjacente à nova estrutura jurisdicional

opõe-se frontalmente à do sistema jurisdicional da União, ao traduzir-se na criação de

um sistema de tribunais próprios, destinados a aplicar especificamente, em termos quase

exclusivos, o direito das patentes, incluindo aquele cuja fonte é a UE.

Na ausência dessa nova estrutura jurisdicional, o direito das patentes adotado no

âmbito da UE seria em primeira linha aplicado pelos tribunais dos Estados-Membros

em cooperação com o TJ no quadro do reenvio prejudicial, com vista a evitar

divergências na interpretação do direito da UE. É de salientar a este respeito que o

artigo 48.º do projeto de acordo estabelecia uma relação de cooperação entre o TP e o

TJ que evoca manifestamente a estabelecida entre este último e os tribunais dos

Estados-Membros, nos termos do artigo 267.º do TFUE.

Com efeito, nos termos do n.º 1 do artigo 48.º, se o Tribunal de Primeira

Instância depara com uma questão de interpretação do TFUE ou sobre a validade ou

interpretação de um ato da União, esse tribunal “pode, se o considerar necessário para

poder proferir uma decisão, solicitar uma decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça

(…). Se tal questão for levantada perante o Tribunal de Recurso, este solicita

[obrigatoriamente] uma decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça”. Nos termos do n.º 2

do mesmo artigo, as decisões do TJ sobre a interpretação do TFUE e a validade ou

interpretação de atos da UE são vinculativas para o Tribunal de Primeira Instância e

para o Tribunal de Recurso25.

7. O caráter residual da competência dos tribunais dos Estados-Membros no

sistema unificado de resolução de litígios em matéria de patentes, previsto pelo projeto

de acordo, foi o primeiro fundamento avançado pelo TJ para se pronunciar pela sua

incompatibilidade com os Tratados da UE e, concretamente, com o disposto no artigo

19.º do TFUE, interpretado no sentido de que os órgãos jurisdicionais nacionais

desempenham, em colaboração com o TJ, uma função que lhes é “atribuída em comum

para assegurar o respeito do direito na interpretação e aplicação dos Tratados da UE” e

que é, do mesmo passo, essencial para a preservação da própria natureza do direito da

União, concretamente, da sua força e efetividade. Isto porque, por um lado, as violações

desse direito pelos tribunais nacionais são suscetíveis de obrigar o respetivo Estado- 25 Cf. o n.º 12 do Parecer 1/09.

9

Membro a reparar os danos daí resultantes para os particulares e, por outro lado, porque

quando um órgão jurisdicional nacional viola o direito da União, os artigos 258.º a 260.º

do TFUE prevêem a possibilidade de recorrer ao TJ para que seja declarado esse

incumprimento em relação ao Estado-Membro em causa26. Ora, “uma decisão do TP

que viole o direito da União não pode ser objeto de uma ação por incumprimento, nem

dar origem a qualquer responsabilidade patrimonial por parte de um ou vários Estados-

Membros”27.

Em conclusão, os Tratados da UE são irremediavelmente incompatíveis com

qualquer estrutura jurisdicional paralela que vote os tribunais nacionais a um papel

residual no que toca a interpretar e aplicar o direito da UE, privando-os da sua

“qualidade de juízes de «direito comum» no ordenamento da União e, assim, da

faculdade prevista no artigo 267.º do TFUE, ou mesmo, eventualmente, da obrigação de

reenvio prejudicial no domínio em questão” 28. O facto de o projeto de acordo prever,

como se referiu, um mecanismo prejudicial idêntico ao do artigo 267.º do TFUE,

aplicável, nos mesmos termos, às instâncias que compõem o TP não basta para colmatar

a brecha na identidade do sistema jurisdicional da UE, provocada pela retirada aos

tribunais nacionais da competência para aplicar em primeira linha o direito da União e

pela conversão, nesse âmbito, do TP “no interlocutor jurisdicional único” do TJ, em

detrimento daqueles.

A alteração do projeto de acordo por forma a atribuir aos tribunais nacionais um

papel idêntico ao que desempenham no sistema jurisdicional da UE privaria a “nova

estrutura jurisdicional” de todo o seu sentido e coerência, não cabendo sequer examinar

neste contexto a possibilidade de tornar extensivo ao TP o regime do processo por

incumprimento ou da responsabilidade extracontratual por violação do direito da União.

Estes regimes só fazem, de resto, sentido quando os seus destinatários são os tribunais

dos Estados-Membros. Por seu lado, a revisão dos Tratados de modo a compatibilizá-

26 A este propósito, é interessante notar que o acórdão do TJ a que o Parecer em análise se refere, de 9 de dezembro de 2003, Comissão contra Itália, C-129/00, como exemplo de uma declaração de incumprimento de Estado por facto imputável a um seu tribunal, na realidade condena formalmente o Estado-Membro em causa pelo facto de não ter sido alterado, pelo legislador, um preceito legal interpretado e aplicado em contradição com o direito da União “pela Administração e por uma parte significativa dos órgãos jurisdicionais, incluindo a Corte suprema di cassazione”. Seja como for, desde o acórdão de 5 de maio de 1970, Comissão contra Bélgica, 77/69, n.º 5, o incumprimento de um Estado-Membro pode, em princípio, ser declarado qualquer que seja o órgão cuja acção ou omissão esteja na origem do incumprimento, inclusive, portanto, um órgão constitucionalmente independente, como os tribunais. 27 Cf. os n.ºs 69 e 85 a 88 do Parecer 1/09. 28 Cf. o n.º 80 do Parecer 1/09.

10

los com o projeto de acordo implicaria a mudança de identidade do sistema jurisdicional

da UE, tornando-se eo ipso ilícita.

III. O MONOPÓLIO DE COMPETÊNCIA PARA INTERPRETAR E APLICAR

O DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA

8. O próprio texto do artigo 19.º, n.º 1, do TUE, na parte em que atribui ao

conjunto de tribunais da UE, tal como identificados acima, a missão de garantir o

respeito do direito na interpretação e aplicação dos Tratados – e que remonta ao artigo

31.º do TCECA, retomado pelo artigo 162.º do TCEE – aponta decisivamente no

sentido de que se trata de uma competência exclusiva. Foi sempre esse o entendimento

do TJ – como o comprova, por último, o Parecer 1/09 supra-analisado –, que igualmente

reivindica a sua competência de última instância a esse respeito e, portanto, a última

palavra na definição do próprio âmbito de aplicação do direito da UE, a começar pelo

juízo de validade sobre o direito derivado29.

No mesmo sentido aponta expressamente, embora de modo menos genérico,

outra disposição que remonta também à versão originária do Tratado de Roma (artigo

219.º) e hoje consta do já mencionado artigo 344.º do TFUE, nos termos do qual “os

Estados-Membros comprometem-se a não submeter qualquer diferendo relativo à

interpretação ou aplicação do Tratados a um modo de resolução diverso dos que neles

estão previstos” 30.

Porventura porque os próprios Estados-Membros tomaram a sério o comando

deste artigo, sobretudo a partir do momento em que o TJ, logo em 1964, baseando-se

nele, afastou categoricamente do âmbito de aplicação dos Tratados a regra inadimplenti

29 O artigo 41.º do TCECA era, aliás, expresso a este respeito:”Só o Tribunal [de Justiça] é competente para decidir, a título prejudicial, sobre a validade das deliberações da Alta Autoridade e do Conselho, se, em litígio submetido a um tribunal nacional, esta validade for posta em causa”. No âmbito do Tratado de Roma, o leading case na matéria é o acórdão de 22 de outubro de 1987, Foto-Frost, 314/85, n.ºs 15 a 18, que autores como Joseph Weiler, “The Transformation of Europe”, in The Yale Law Journal, 1991, pp. 2414-2415, lêem como a reivindicação por parte do TJ da Kompetenz-Kompetenz para a definição do âmbito de aplicação do direito da UE. Para maiores desenvolvimentos sobre este conceito, ver Miguel Galvão Teles, “A competência da competência do Tribunal Constitucional”, in AA VV, Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional – Colóquio no 10.º Aniversário do Tribunal Constitucional, Coimbra, 1995, pp. 105 segs. Sobre os aspetos controversos da competência do TJ na sua relação com os tribunais nacionais, ver por último na doutrina portuguesa Patrícia Fragoso Martins, “Um «Supremo Tribunal» para a União? Reflexões sobre o lugar do TJCE na arquitectura judiciária europeia”, in Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes, vol. III, Lisboa, 2011, pp. 99 segs. 30 Sobre este artigo, ver o comentário de Maria João Duarte e bibliografia aí citada, in Tratado de Lisboa Anotado e Comentado, cit., pp. 1207-1211.

11

non est adimplendum31, foi preciso esperar mais de quarenta anos para o mesmo

tribunal voltar a interpretar e aplicar o preceito em análise, então constante do artigo

292.º do Tratado de Roma32. Só, portanto, de uma perspetiva exclusivamente

jurisprudencial se pode afirmar com segurança que o disposto no atual artigo 344.º do

TFUE tem desempenhado um papel secundário, tratando-se de afirmar o monopólio de

interpretação e aplicação do direito da UE por parte do correspondente sistema

jurisdicional.

É o acórdão de 30 de maio de 2006 que a seguir se examina a respeito de tal

monopólio. Mas não sem antes referir que, no Parecer 1/09, em resposta à alegação de

um Estado-Membro, segundo a qual o projeto de acordo em causa violava também o

artigo 344.º – na medida em que prejudicava o monopólio de jurisdição da UE para

conhecer dos litígios envolvendo o direito da União –, o TJ pronunciou-se pela

inaplicabilidade do mesmo artigo a um sistema de resolução de litígios de direito da UE

entre particulares (no caso, o direito das patentes), criado à margem do sistema

jurisdicional da União. Interpretou-o literalmente no sentido de que “se limita a proibir

os Estados-Membros de submeter um diferendo relativo à interpretação ou à aplicação

dos Tratados a um meio de resolução diferente do previsto nestes” (ênfase

acrescentada)33.

9. Foi o desencadear, por parte da Irlanda, de um processo de resolução de

conflitos contra o Reino Unido perante um tribunal arbitral, no quadro da Convenção

das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (na qual a UE e os Estados-Membros são

partes) que levou a Comissão Europeia a acusá-la, num processo por incumprimento, de

violar nomeadamente o artigo 344.º. Isto porque, segundo a Comissão, o diferendo em

matéria de proteção ambiental submetido pela Irlanda ao tribunal arbitral estava

31 Ver o acórdão de 13 de novembro de 1964, Comissão contra Bélgica e Luxemburgo, 90 e 91/63, no qual o TJ declarou que, estabelecendo os Tratados os processos necessários para verificar e sancionar qualquer eventual violação do direito da UE, os Estados-Membros não podem fazer-se justiça a si próprios, nem responder a uma violação dos Tratados por parte dos restantes Estados-Membros com outra violação. 32 Não é por isso exata a afirmação constante do ponto 1 das conclusões do advogado-geral Miguel Poiares Maduro apresentadas em 18 de janeiro de 2006 no processo Comissão contra Irlanda, C-459/03, que culminou com o acórdão de 30 de maio de 2006, segundo a qual o TJ foi pela primeira vez chamado neste processo a pronunciar-se sobre uma alegada violação do atual artigo 344.º cometida por um Estado-Membro. 33 Cf. os n.ºs 22 e 63 do Parecer 1/09, cit. Interpretando-o, porém, no sentido de que o TJ nele se pronuncia no sentido de que “a criação do Tribunal de Patentes Europeias e Comunitárias violaria o disposto no artigo 344.º do TFUE, uma vez que este tribunal seria competente para interpretar e aplicar disposições do direito da UE”, ver Maria João Duarte, loc. cit., p. 1211.

12

abrangido pelo direito da UE, devendo por conseguinte ser julgado no âmbito do

sistema jurisdicional desta.

O TJ começou por recordar, por um lado, que, na qualidade de acordo misto,

aquela convenção goza, no ordenamento da União, do mesmo estatuto que os acordos

exclusivos da UE, no que respeita às disposições nela contidas que relevam da

competência da União e, por outro lado, que as matérias abrangidas pelas disposições da

convenção invocadas pela Irlanda perante o tribunal arbitral encontram-se amplamente

regulamentadas pelo direito da UE34. Fazendo, assim, essas disposições da convenção

parte integrante do ordenamento da UE, o TJ torna-se eo ipso competente para conhecer

dos diferendos relativos à interpretação e à aplicação delas, bem como para julgar da

observância das mesmas por parte de um Estado-Membro e ainda para identificar os

elementos do diferendo que dizem respeito a disposições do acordo internacional não

abrangidas pela sua competência.

A exclusividade dessa competência, corolário da competência para garantir o

respeito do direito na interpretação e aplicação dos Tratados da UE, cometida ao sistema

jurisdicional da União no seu conjunto – e que nenhum acordo de direito internacional

pode infringir –, resulta do artigo 19.º, n.º 1, do TUE e é confirmada pelo artigo 344.º do

TFUE. Este, por sua vez, constitui “uma manifestação específica do dever mais geral de

lealdade” decorrente do fulcral artigo 4.º, n.º 3, do TUE35.

Foram precisamente estes artigos que o TJ entendeu obstarem a que a Irlanda

recorresse a um tribunal arbitral para a resolução do diferendo com o Reino Unido,

impondo-lhe, antes, a obrigação de recorrer ao sistema jurisdicional da UE e de

respeitar a competência exclusiva do TJ, “que dele constitui um elemento fundamental”,

lançando mão designadamente da ação por incumprimento prevista pelo artigo 259.º do

TFUE, para obter uma declaração de que as disposições de direito europeu aplicáveis

foram violadas pelo segundo Estado-Membro36. Por não o ter feito, o TJ imputou à

34 Cf. n.ºs 84, 110 e 95 do acórdão do TJ de 30 de maio de 2006, cit. 35 Cf. n.ºs 121, 123, 132, 135 e 169 do acórdão cit. 36 Conhecida a sistemática relutância manifestada pelos Estados-Membros em intentarem ações por incumprimento ao abrigo do atual artigo 259.º do TFUE, deixando normalmente o encargo à Comissão, ao abrigo do artigo 258.º, a sugestão expressa do TJ no sentido de que o Estado-Membro em causa lançasse mão daquele meio processual pode ser vista como um convite genérico no sentido da sua mais frequente utilização. Para dados concretos sobre a aplicação do artigo 259.º, ver a nota 4 das citadas conclusões do advogado-geral Miguel Maduro e, por último, Gonçalo Braga da Cruz, em comentário aos artigos 258.º e 259.º do TFUE, in Tratado de Lisboa Anotado e Comentado, cit., p. 933.

13

demandada o incumprimento das obrigações que lhe incumbem por força dos artigos

4.º, n.º 3, do TUE e 344.º do TFUE37.

IV. AS INCOMPLETUDES SUBSISTENTES NUM SISTEMA JURISDICIONAL

QUE SE AUTODEFINE COMO “SISTEMA COMPLETO DE FISCALIZAÇÃO

DA LEGALIDADE DOS ATOS DA UNIÃO”

10. Foi a partir da interpretação do Tratado de Roma, ainda na sua versão

anterior ao Ato Único Europeu, que o TJ chegou à conclusão de que nele se estabelece

“um sistema completo de vias de recurso e de processos destinado a confiar-lhe o

controlo da legalidade dos atos das instituições” das então Comunidades. Em

complemento disso, declarou o Tratado de Roma a “carta constitucional de uma

Comunidade de Direito”, no sentido de que nem esta nem os Estados-Membros se

subtraem ao controlo jurisdicional da conformidade dos respetivos atos com tal

instrumento jurídico38.

Todavia, à data, o “sistema de vias de recurso e de processos” estabelecido pelo

Tratado de Roma evidenciava lacunas a esse nível que impediam de considerá-lo, em

rigor, completo. Basta comparar o disposto no então artigo 173.º, tanto a nível da

legitimidade ativa e passiva das instituições comunitárias, em cujo elenco o Parlamento

Europeu não figurava, como a nível do conceito de ato recorrível, com o que hoje

dispõe o artigo 263.º do TFUE, para se chegar sem dificuldade a uma conclusão

contrária à do TJ. A sua constatação, muito menos do que refletir a verdadeira situação

jurídica do Tratado de Roma a esse respeito, traduzia-se antes numa espécie de “plano

de ação”, orientado pelo princípio do Estado de direito e destinado a suprir as lacunas

então verificáveis a respeito da fiscalização da legalidade dos atos da UE – programa

esse que o TJ logo levou à prática no caso concreto, ao declarar recorríveis, sem

qualquer base legal expressa no Tratado de Roma, determinados atos do Parlamento

Europeu que qualificou como “atos destinados a produzir efeitos jurídicos em relação a

terceiros”.

37 Cf. os n.º 152 e a parte dispositiva do acórdão cit. 38 Ver o acórdão do TJ de 23 de abril de 1986, Partido Ecologista “Os Verdes” contra Parlamento Europeu, 294/83, n.º 23.

14

11. Não cabe recordar aqui as outras etapas da ação do TJ na matéria. Mas em

abono da imparcialidade, importa salientar que há pelo menos um aspeto em que este

tribunal não foi inteiramente coerente com o seu “plano de ação” tendente a converter o

sistema jurisdicional da UE no proclamado “sistema completo de vias de recurso e de

meios processuais destinado a garantir a fiscalização da legalidade dos atos da União”.

Trata-se da interpretação que sempre deu ao disposto nos anteriores artigos 173.º e

230.º, quarto parágrafo, do Tratado de Roma – nos termos do qual qualquer pessoa

singular ou coletiva pode interpor recurso de anulação “das decisões que, embora

tomadas sob a forma de regulamento ou de decisão dirigida a outra pessoa, lhe digam

direta e individualmente respeito”.

Ao interpretar esta norma no sentido de que, para serem recorríveis, tais decisões

devem afetar a pessoa singular ou coletiva “em razão de determinadas qualidades que

lhe são específicas ou em razão de uma situação de facto que a caracteriza em relação a

qualquer outra pessoa e, por isso, a individualiza de modo análogo ao do destinatário” –

exigindo, portanto, “uma afetação radicalmente distinta da de todos os outros”39 – o TJ

tornou praticamente impossível aos particulares a interposição de recurso de atos

normativos self executing, junto do competente tribunal da União. No entanto, tais atos

normativos, sem necessitarem de quaisquer atos administrativos individuais e concretos

de execução, são suscetíveis de afectar, de forma certa, substancial e actual, a situação

jurídica dos particulares, restringindo os seus direitos ou impondo-lhes obrigações.

O então TPI pretendeu, é certo, suprir esta incompletude do sistema,

considerando não haver “razões imperiosas para entender que o conceito de pessoa a

quem um ato diz individualmente respeito, na aceção do artigo 230.º, quarto parágrafo,

CE, pressupõe que o particular que pretenda impugnar uma medida de caráter geral

deve ser individualizado de modo análogo ao de um destinatário” e declarando, ao

arrepio da interpretação restritiva do TJ, que “uma disposição comunitária de caráter

geral que diz diretamente respeito a uma pessoa singular ou coletiva lhe diz

individualmente respeito, se afetar, de forma certa e atual, a sua situação jurídica,

restringindo os seus direitos ou impondo-lhe obrigações” – e é, portanto, recorrível por

essa pessoa40.

39 A expressão é de Rui Manuel Moura Ramos, “O acesso dos particulares aos tribunais europeus”, in Alessandra Silveira (coord.) 50 Anos do Tratado de Roma, Lisboa, 2007, pp. 255-256; ver também Carlos Botelho Moniz e Mariana de Sousa e Alvim, “Apontamentos sobre o sistema judicial da Comunidade Europeia”, loc. cit., p. 273. 40 Ver o acórdão do TPI de 3 de maio de 2002, Jégo-Quéré contra Comissão, T-177/01, n.ºs 49-51.

15

Porém, mesmo antes de o acórdão do TPI ter sido reapreciado em recurso para o

TJ, este reiterou a sua jurisprudência que exige ao particular que pretenda recorrer de

um ato de caráter geral self executing a prova da sua individualização análoga à de um

destinatário perante esse ato, fazendo depender o abandono dessa jurisprudência de uma

revisão dos Tratados41.

O contributo do Tratado de Lisboa para superar esta incompletude do sistema

jurisdicional da UE – obstinadamente mantida pelo próprio TJ, aparentemente a título

de autoproteção contra um suposto afluxo maciço de recursos de anulação interpostos

por particulares – pode não ser suficiente. Com efeito, de acordo com a nova redação do

artigo 263.º, quarto parágrafo, do TFUE, “qualquer pessoa singular ou coletiva pode

interpor recurso (…) contra os atos regulamentares que lhe digam diretamente respeito e

não necessitem de medidas de execução”. Se se entender que o termo “ato

regulamentar” não coincide com “regulamento” – o típico ato de alcance geral, que

tanto pode assumir natureza legislativa como infralegislativa ou regulamentar42 – e que,

por conseguinte, só os regulamentos self executing adotados em procedimento não

legislativo podem ser objeto de recurso de anulação interposto por particulares, ter-se-á

feito pouco para resolver os anteriores problemas relativos à legitimidade ativa destes

recorrentes não privilegiados, desde logo porque não são de todo em todo de excluir

atos jurídicos self executing adotados por processo legislativo, suscetíveis de afetar, de

forma certa, substancial e atual, a situação jurídica dos particulares, restringindo os seus

direitos ou impondo-lhe obrigações 43.

O facto de mais de dois anos e meio depois da entrada em vigor do Tratado de

Lisboa o TJ ainda não ter tido ocasião de esclarecer em última instância esta questão

crucial prova de algum modo que, afinal, não era tão sério o risco de interposição

maciça de recursos contenciosos contra atos de caráter geral self executing da UE, eles

próprios seguramente não maioritários enquanto espécie do género mais vasto ato

normativo. Seja como for, tendo em conta os antecedentes, é legítima a interrogação

sobre se o TJ manterá neste contexto a sua tendência para interpretações estritas ou

restritivas. 41 Ver os acórdãos do TJ de 25 de julho de 2002, Unión de Pequeños Agricultores, cit., n.ºs 36 e 44-45 e de 1 de abril de 2004, Comissão contra Jégo-Quéré, C-236/02 P, n.º 45. 42 Recorde-se que de acordo com o artigo 289.º, n.º 3, do TFUE, atos legislativos são os atos jurídicos adotados por processo legislativo, sendo portanto meramente procedimental o que os distingue dos atos não legislativos (delegados e regulamentares). 43 Neste sentido, ver Paul Craig, The Lisbon Treaty…, cit, p. 131, para quem seria lamentável dar ao termo “ato regulamentar” um sentido restritivo. Ver também Carlos Botelho Moniz, em comentário ao artigo 263.º, in Tratado de Lisboa Anotado e Comentado, cit., p. 950.

16

12. Se se recuar até à entrada em vigor do TUE, com a sua estruturação da União

em pilares, a conclusão só pode ser a de que tal contribuiu significativamente para

tornar ainda mais afastada da realidade a ideia de que o sistema jurisdicional em análise

é constituído por um “sistema completo de vias de recurso e de meios processuais

destinado a garantir a fiscalização dos atos da União”.

A este respeito, o artigo L da versão originária daquele tratado fala por si, ao

excluir do controlo dos tribunais da UE todos os atos adotados no âmbito da Política

Externa e de Segurança Comum (PESC) e no da Cooperação nos domínios da Justiça e

dos Assuntos internos (CJAI), respetivamente o Segundo e o Terceiro Pilar da União,

com a única exceção, no âmbito deste último, da competência do TJ para interpretar

prejudicialmente as convenções que a previssem e para decidir sobre todos os

diferendos relativos à aplicação dessas convenções, de acordo com as modalidades por

elas eventualmente especificadas [artigo K.3, n.º 2, alínea c), terceiro parágrafo].

Em compensação, o artigo L, ao conferir ao TJ competência para interpretar e

aplicar o artigo M – nos termos do qual “nenhuma disposição do presente Tratado afeta

os Tratados das Comunidades Europeias (…)” –, habilitava aquele tribunal a fiscalizar

e, sendo caso disso, a anular os atos adotados no âmbito da PESC ou da CJAI que

invadissem ou usurpassem a competência das Comunidades, então Primeiro Pilar da

UE44.

O que se seguiu, com vista a ultrapassar esta situação altamente criticável do

ponto de vista do princípio do Estado de direito, ilustra bem o famoso “método dos

pequenos passos” inerente à construção europeia. A primeira revisão de que o TUE foi

objeto – pelo Tratado de Amesterdão – manteve a estruturação da União em pilares,

mas alargou consideravelmente a competência do TJ para fiscalizar os atos adotados no

âmbito do Terceiro Pilar, ao mesmo tempo que transferiu uma parte da competência

originariamente afetada a esse Pilar para a Comunidade Europeia, criando para o efeito

44 Ver o acórdão de 12 de maio de 1998, Comissão contra Conselho, C-170/96, n.ºs 16-17, em que o TJ se declarou competente para apreciar a delimitação de competências entre os pilares da UE e para anular atos relevando da CJAI que, em violação do artigo M, invadissem a competência da Comunidade. Posteriormente, já na vigência da “versão Nice” do TUE, quando o artigo M tinha passado a ser o artigo 47.º, foram dois os acórdãos em que o TJ anulou com fundamento em violação deste preceito atos adotados no âmbito da CJAI (de 13 de setembro de 2005, Comissão contra Conselho, C-176/03, e de 23 de outubro de 2007, Comissão contra Conselho, C-440/05), e um em que anulou com idêntico fundamento uma decisão adotada no âmbito do Segundo Pilar (acórdão de 20 de maio de 2008, Comissão contra Conselho, C-91/05). Para maiores desenvolvimentos, ver por último Miguel de Serpa Soares em comentário ao artigo 40.º do TFUE (infra-analisado), in Tratado de Lisboa Anotado e Comentado, cit., p. 154.

17

um novo título (o Título IV) na Parte III do Tratado de Roma. Porém, por força do

artigo 68.º aí inserido, a fiscalização dos atos adotados no âmbito desse título conhecia

algumas limitações em comparação com a fiscalização jurisdicional a que estavam

sujeitos os restantes atos adotados ao abrigo do mesmo Tratado. Por outro lado, eram

muito mais intensas, por força do então artigo 35.º do TUE, as limitações à fiscalização

jurisdicional dos atos adotados no âmbito do Terceiro Pilar, desde logo por não estarem

previstas vias de recurso como a ação por incumprimento, a ação por omissão ou a ação

de indemnização45. Os próprios tribunais da UE viram-se forçados a constatar isso

mesmo46.

Quanto ao Tratado de Nice, na parte em que reviu pela segunda vez o TUE, a

alteração mais digna de nota, orientada pelo princípio do Estado de direito e, portanto,

pelo reforço do controlo da legalidade dos atos da UE, traduziu-se na atribuição ao TJ

de competência para fiscalizar a observância das disposições processuais – e apenas

essas – aplicáveis às decisões do Conselho tomadas ao abrigo do artigo 7.º (introduzido,

sem essa garantia, pelo Tratado de Amesterdão), (i) verificando a existência de um risco

manifesto de violação grave, por um Estado-Membro, dos princípios da liberdade, da

democracia, do respeito pelos direitos do Homem e pelas liberdades fundamentais, ou

do Estado de direito; (ii) verificando a existência de uma violação grave e persistente de

alguns desses princípios por um Estado-Membro. E isto unicamente “a pedido do

Estado-Membro em questão, no prazo de um mês a contar da data da constatação do

Conselho a que se refere esse artigo” [artigo 46.º, alínea e)].

É porém controversa, do ponto de vista do princípio do Estado de direito, a

limitação da fiscalização da legalidade destes atos aos seus aspetos adjetivos, com

exclusão, portanto, dos importantes aspetos substantivos que os rodeiam e que não

parecem bastar-se com o controlo essencialmente “value-free” para que aponta o

preceito em questão47. Seja como for, o disposto no artigo analisado transitou para o

artigo 269.º do TFUE, que lhe adita a obrigação para o TJ de se pronunciar no prazo de

um mês a contar da data do pedido48.

45 Para maiores desenvolvimentos, remete-se para Nuno Piçarra, “O Tratado de Amesterdão e as novas competências do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, Working Paper 1/01, in http://www.fd.unl.pt/Anexos/Downloads/218.pdf e bibliografia aí citada. 46 Ver o despacho do TPI de 7 de junho de 2004, Segi contra Conselho, T-338/02, n.ºs 34 e 38, e o acórdão do TJ de 27 de fevereiro de 2007, Segi contra Conselho, C-355/04 P, n.º 50. 47 Para uma crítica fundada desta solução, ver Maria Luísa Duarte, União Europeia e Direitos Fundamentais. No espaço da internormatividade, Lisboa, 2006, p. 200. 48 Para um comentário ao artigo 269.º, ver J. L. Caramelo Gomes, in Tratado de Lisboa Anotado e Comentado, cit., pp. 969 segs. O autor vê “com alguma dificuldade” a utilização deste artigo “para a

18

É de recordar ainda, neste contexto, o contributo no sentido da superação das

incompletudes do sistema jurisdicional da UE, dado pelo próprio TJ, ao interpretar

extensivamente o já citado artigo 35.º do TUE (revogado pelo Tratado de Lisboa),

declarando-se competente para fiscalizar, no quadro de um reenvio prejudicial mas não

de um recurso de anulação interposto pelo particular direta e individualmente afetado, a

legalidade de uma posição comum do Conselho, literalmente subtraída a essa

competência49, “que tenha, por força do seu conteúdo, um alcance que ultrapasse o

fixado pelo Tratado UE para esse tipo de ato”, ou seja, “que se destine a produzir efeitos

jurídicos perante terceiros”50.

13. Poder-se-ia pensar que a substituição e sucessão da UE à Comunidade

Europeia, determinada pelo artigo 1.º, terceiro parágrafo, in fine, do TUE na sua “versão

Lisboa”, com a “despilarização” que isso implicou, determinasse também a

generalização do sistema jurisdicional – até então, como se viu, exclusivo da

Comunidade Europeia –, a todo o âmbito de competências da nova UE “despilarizada”

e, consequentemente, a sujeição de todos os seus atos ao proclamado “sistema completo

de vias de recurso e de meios processuais destinado a garantir a fiscalização da

legalidade” desses atos.

Mas não: no que respeita à PESC, fica-se a saber pelo artigo 24.º, n.º 1, in fine,

do TUE que o TJUE não dispõe de competência nessa matéria, “com exceção da

competência para verificar a observância do artigo 40.º do presente Tratado e fiscalizar

a legalidade de determinadas decisões a que se refere o segundo parágrafo do artigo

275.º” do TFUE. Em contrapartida, no respeitante aos antigos domínios do Terceiro

Pilar, a regra é, por força do artigo 276.º do TFUE, a sujeição global desses domínios ao

sistema jurisdicional da UE, e as exceções, apenas as previstas por este mesmo artigo.

impugnação de uma recomendação adotada nos termos do atual art. 7.º, n.º 1, do TUE, pela exclusão expressa das recomendações enquanto objeto do recurso de anulação nos termos do artigo 263.º do TFUE” (ênfase no original). Mas tal observação implica a não consideração, para além do caráter de norma especial do artigo 269.º relativamente ao artigo 263.º, de uma jurisprudência constante do TJ, já evocada, que sujeita à fiscalização da legalidade “todas as disposições, quaisquer que sejam a respetiva natureza ou forma, que se destinem a produzir efeitos jurídicos perante terceiros”. 49 O texto relevante do artigo 35.º, n.º 6, era o seguinte: “O Tribunal de Justiça é competente para fiscalizar a legalidade das decisões-quadro e das decisões no âmbito dos recursos (…) interpostos por um Estado-Membro ou pela Comissão” (ênfase acrescentada). 50 Ver o acórdão do TJ de 27 de fevereiro de 2007, C-355/04 P, cit., n.ºs 53-54. Para maiores desenvolvimentos ver Nuno Piçarra, “Terrorismo e direitos fundamentais: as smart sanctions na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia e no Tratado de Lisboa”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor José Joaquim Gomes Canotilho, Coimbra, 2012, pp. 731 segs.

19

Começando por indagar o significado do artigo 40.º do TUE, sucessor do artigo

47.º, para o sistema de fiscalização da legalidade dos atos da União, pode dizer-se que,

com o parágrafo que lhe foi acrescentado, ele atribui uma dupla função ao TJUE: (i)

defesa do núcleo de competências correspondente ao “acervo comunitário” das

“investidas intergovernamentais” agora só da PESC (única função do anterior artigo

47.º), permitindo-lhe anular os atos da UE que extravasem este âmbito e (ii) defesa do

âmbito a que devem aplicar-se as regras e os procedimentos próprios da PESC, perante

as tentativas de o reduzir em benefício de atos adotados de acordo com o “método

comunitário” que, com o Tratado de Lisboa, se generalizou na UE51.

Até à data o TJUE não teve oportunidade de interpretar e aplicar o artigo 40.º,

não parecendo assim confirmarem-se as previsões no sentido de uma intensificação de

conflitos desta natureza no período inicial de aplicação do Tratado de Lisboa. E isto sem

prejuízo de os regimes jurídicos aplicáveis à PESC, baseada no Título V do TUE, e à

ação externa da UE, baseada na Parte V do TFUE, serem diferentes e de a linha de

fronteira entre os dois domínios nem sempre ser fácil de traçar.

14. Quanto ao artigo 275.º, ele apenas exceciona da regra que enuncia – nos

termos da qual o TJUE não dispõe de competência no que diz respeito à PESC –, para

além do artigo 40.º do TUE já analisado, os recursos de anulação interpostos por

particulares, relativos à fiscalização da legalidade das decisões que estabeleçam

medidas restritivas contra pessoas singulares ou coletivas, adotadas pelo Conselho em

execução da PESC, ao abrigo do Capítulo 2 do Título V do TUE.

Se a regra enunciada não é facilmente conciliável com os princípios

proclamados no artigo 2.º do TUE e confirma que o sistema jurisdicional da União

(ainda) não é, afinal, “constituído por um sistema completo de vias de recurso e de

meios processuais destinado a garantir a fiscalização da legalidade dos atos das

instituições”52, a não previsão sobretudo da última exceção torná-lo-ia

irremediavelmente incompatível com os princípios fundamentais proclamados no artigo

2.º do TUE, tendo em conta a particular suscetibilidade das medidas restritivas em causa

para vulnerar tais princípios. Uma das mais comuns é, com efeito, o congelamento de 51 Em sentido semelhante, ver Miguel de Serpa Soares, op. cit., p. 155. 52 Como notam Carlos Botelho Moniz e Mariana de Sousa e Alvim, op. cit., p. 260, “a concepção que tem prevalecido, que não está isenta de crítica, é a de que os atos que as instituições da União adotam no domínio [da PESC] são atos de cariz essencialmente político, que não se destinam, eles próprios, a criar direitos ou a impor obrigações, e que, pela sua própria natureza, não devem ser submetidos a controlo jurisdicional” (ênfase acrescentada).

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fundos, outros ativos financeiros ou recursos económicos dos destinatários, os quais são

em regra incluídos nominativamente em listas públicas organizadas para o efeito53.

Na sequência de uma decisão desta natureza aprovada no âmbito da PESC, o

Conselho pode completá-la adotando, sob proposta conjunta da Comissão e do Alto

Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, um

regulamento baseado no artigo 215.º, n.º 2, do TFUE, contendo, em conformidade com

o n.º 3, “as disposições necessárias em matéria de garantias jurídicas”. Tal como o TJ

esclareceu recentemente, o artigo 215.º, n.º 2, só pode ser utilizado como base jurídica

quando uma decisão tomada no âmbito da PESC preveja a adoção de “medidas

restritivas relativamente a pessoas singulares ou coletivas, a grupos ou a entidades não

estatais”, não tendo estas medidas que se limitar ao combate ao terrorismo, nem que se

reportar unicamente aos movimentos de capitais e pagamentos.

A outra base jurídica do TFUE ao abrigo do qual a UE também pode adotar

medidas restritivas do mesmo tipo – o artigo 75.º do TFUE, incluído no título dedicado

à importante política interna da União cujo antecessor foi a CJAI e que dá pelo nome de

espaço de liberdade, segurança e justiça (ELSJ) – distingue-se do artigo 215.º n.º 2,

precisamente porque “não estabelece nenhum vínculo com as decisões adotadas no

âmbito da PESC” e se circunscreve “à prevenção do terrorismo e das atividades com ele

relacionadas” e “aos movimentos de capitais e aos pagamentos”54.

15. Por último, quanto ao artigo 276.º do TFUE, ele atesta que, no respeitante à

sujeição do ELSJ ao sistema jurisdicional da UE, o défice de fiscalização anteriormente

verificado, sobretudo no âmbito do Terceiro Pilar, foi no essencial suprido55. Como já

53 Para maiores desenvolvimentos sobre o tema remete-se para Nuno Piçarra, “Terrorismo e direitos fundamentais…”, cit. Para um comentário ao artigo 275.º ver Solange Leandro, in Tratado de Lisboa Anotado e Comentado, cit., pp. 989-991. 54 Ver o acórdão do TJ de 19 de julho de 2012, Parlamento Europeu contra Conselho, C-130/10, n.ºs 58-59 e 65. Aí se precisa também, discutivelmente, que “na medida em que os artigos 75.º e 215.º do TFUE são aplicáveis no âmbito de políticas da União diferentes, que prosseguem objetivos complementares mas que não têm o mesmo âmbito de aplicação, não se afigura possível considerar o artigo 75.º TFUE como uma base jurídica mais específica do que o artigo 215.º, n.º 2, TFUE”. Para um comentário a ambos os artigos, ver respetivamente Diana Alfafar e Victor Calvete, in Tratado de Lisboa Anotado e Comentado, cit., pp. 386-392 e pp. 825-827. 55 Note-se que, por força do disposto nos artigos 9.º e 10.º do Protocolo n.º 36, relativo às disposições transitórias, anexo ao TUE e ao TFUE, esse suprimento ficou adiado por um período transitório que pode ir até cinco anos a contar da data da entrada em vigor do Tratado de Lisboa. Por outro lado, os protocolos relativos aos opt-out negociados pela Dinamarca, pela Irlanda e pelo Reino Unido em relação ao ELSJ também restringem e perturbam, de algum modo, os progressos em termos de controlo jurisdicional trazidos a este domínio pelo Tratado de Lisboa. Para maiores desenvolvimentos, ver Nuno Piçarra, “O Tratado de Lisboa e o espaço de liberdade, segurança e justiça”, in Nuno Piçarra (coord.), A União Europeia segundo o Tratado de Lisboa. Aspectos centrais, Coimbra, 2011, pp. 127 segs.

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se referiu, a situação é exatamente a inversa da que se verifica em relação à PESC:

enquanto nesta a regra é a falta de competência fiscalizadora dos tribunais da UE, com

as duas exceções previstas pelo artigo 275.º, no ELSJ a regra é a competência

fiscalizadora daqueles tribunais, com as duas exceções previstas pelo artigo em análise.

Nos termos deste, nos domínios específicos da cooperação judiciária em matéria penal e

da cooperação policial (capítulos 4 e 5 do Título V da Parte III do TFUE), não estão

sujeitas ao controlo nem do TJ nem do TG (o que não significa que não possam estar

sujeitas ao controlo dos tribunais nacionais) (i) “a validade ou a proporcionalidade de

operações efetuadas pelos serviços de polícia ou outros serviços responsáveis pela

aplicação da lei num Estado-Membro” e (ii) “o exercício das responsabilidades que

incumbem aos Estados-Membros em matéria de manutenção da ordem pública e de

garantia da segurança interna”.

Ambas as exceções foram retomadas do anterior artigo 35.º, n.º 5, do TUE. Mas

é de notar que a segunda exceção também se aplicava aos restantes domínios materiais

do ELSJ que, ou relevaram desde as suas origens da competência da Comunidade

(como certos elementos da política de vistos de curta duração)56, ou foram

ulteriormente transferidas para ela, como as políticas de fronteiras, asilo e imigração,

assim como a cooperação judiciária em matéria civil57. A limitação de ambas as

exceções aos domínios da cooperação judiciária em matéria penal e da cooperação

policial leva à conclusão de que, com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, podem

ser jurisdicionalmente sindicadas, a nível da UE, quer “a validade e a proporcionalidade

das operações efetuadas pelos serviços de polícia ou outros serviços responsáveis pela

aplicação da lei num Estado-Membro”, quer “o exercício das responsabilidades que

incumbem aos Estados-Membros em matéria de manutenção da ordem pública e de

garantia da segurança nacional”, tratando-se designadamente da execução das regras de

fonte europeia em matéria de fronteiras, vistos, asilo, imigração e cooperação judiciária

civil. E isto, naturalmente, apenas no quadro das duas vias de recurso aplicáveis neste

contexto, em que se trata de sindicar atos dos Estados-Membros e não da UE: a ação por

incumprimento e o reenvio prejudicial de interpretação.

56 Ver o artigo 100.º-C, n.ºs 1, 3 e 5, do Tratado de Roma na “versão Maastricht”. 57 Ver o Título IV da Parte III do Tratado de Roma na “versão Amesterdão” e o anterior artigo 64.º n.º 1, do primeiro tratado.

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Sob este prisma, a exceção à fiscalização jurisdicional dos atos adotados no

âmbito do ELSJ, estabelecida pelo artigo 276.º, torna-se mais dificilmente justificável

perante os princípios do artigo 2.º do TUE58.

V. CONCLUSÃO

16. A opção dos autores do projeto de integração europeia pelo estabelecimento,

no quadro institucional e normativo criado para o efeito, da dualidade, que também é

por vezes tensão, entre gubernaculum e jurisdictio, para além de muito original para a

época, revelou-se decisiva para a manutenção e o desenvolvimento desse projeto num

plano porventura não concebível à data em que tudo começou.

Apesar dos pontos fracos, o sistema jurisdicional da UE, com os seus equilíbrios,

sinergias e por vezes também tensões e conflitos, até à data sempre criativos, entre

tribunais organicamente pertencentes à União e tribunais dos Estados-Membros,

enquanto tribunais funcionalmente adstritos àquela, tem-se revelado claramente o elo

mais forte do projeto europeu. Sem que caiba aqui discutir o bem fundado da crítica de

ativismo judicial de que por vezes foi alvo59, a verdade é que, graças a esse sistema

jurisdicional, o direito da UE adquiriu um impacto na vida dos cidadãos e uma

efetividade de que nunca disporia, não fora o grau de justiciabilidade que assim

alcançou, típica do direito interno e não do direito internacional.

Todavia, numa fase em que a União atravessa uma crise sem precedentes e sem

fim à vista, que torna real inclusive a possibilidade de um fracasso do projeto europeu60,

58 Para um comentário ao artigo 276.º, ver Alexandre Norinho de Oliveira, in Tratado de Lisboa Anotado e Comentado, cit., pp. 992-994. Ao contrário do que afirma o autor, o artigo 276.º não se reveste de qualquer “importância primordial no que concerne às competências do TJUE para apreciar os atos no âmbito da Europol e Eurojust”. Primeiro, porque o artigo 276.º se refere a competências operacionais dos “serviços responsáveis pela aplicação da lei” nos Estados-Membros, a começar pelas polícias, competências essas de que nem a Europol nem a Eurojust dispõem em termos comparáveis. Depois porque os “atos no âmbito da Europol e da Eurojust”, “enquanto órgãos ou organismos da União”, são desde logo sindicáveis nos termos do artigo 263.º, primeiro e quinto parágrafos, do TFUE. É por isso totalmente ociosa a operação linguística a que o autor se dedica no sentido de saber se a Europol pode, ou não, ser abrangida nas versões inglesa e francesa do artigo 276.º – cujo âmbito subjetivo de aplicação, repita-se, engloba unicamente os Estados-Membros. 59 Ver, por exemplo, Hjalte Rasmussen, On Law and Policy in the European Court of Justice. A Comparative Study in Judicial Policymaking, Dordrecht, 1986, e “Le pouvoir de décision politique du juge européen et ses limites”, in Revue française d’administration publique, n.º 63, 1992, pp. 413-423; Joseph H. H. Weiler, “The Court of Justice on Trial”, in Common Market Law Review, 1987, pp. 555-589, e “Journey to an Unknown Destination: A Retrospective and Prospective of the European Court of Justice in the Arena of Political Integration”, in Journal of Common Market Studies, vol. 31, 1993, pp. 417-446. 60 Assim, Jürgen Habermas, Um ensaio sobre a Constituição da Europa, tradução portuguesa, com prefácio de José Joaquim Gomes Canotilho, Lisboa, 2012, p. 10, também corroborado, no plano da

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não será razoável contar com o desempenho do sistema jurisdicional para suprir a

clamorosa falta de visão e de liderança política e a perturbante erosão do valor

solidariedade entre os Estados-Membros, que se manifestam do lado do gubernaculum

da UE, frequentemente o mais fraco do projeto europeu61. Mas é dele que, desta vez,

depende definitivamente a subsistência deste nobre e original projeto, globalmente

benéfico para os cidadãos, sem o qual a Europa dificilmente deixará de ficar, no

mínimo, votada à irrelevância política na comunidade internacional globalizada do

século XXI – e da qual nem as suas poucas potências de média dimensão poderão salvá-

la por si sós.

política ativa, por último pelo Primeiro-Ministro de Itália, em entrevista à revista alemã Der Spiegel, de 6 de agosto de 2012. 61 Cabe aqui recordar o diminuto, para não dizer nulo – mas premonitório – efeito que produziu na União Económica e Monetária o acórdão do TJ de 13 de julho de 2004, Comissão contra Conselho, C-27/04, que anulou as decisões do Conselho de 25 de novembro de 2003 (i) de suspender em relação à Alemanha e à França os procedimentos por défice excessivo instaurados ao abrigo do atual artigo 126.º do TFUE contra aqueles Estados-Membros e (ii) de alterar as recomendações dirigidas aos mesmos Estados-Membros, ao abrigo do n.º 6 daquele artigo, no sentido de pôr termo, no prazo fixado, aos défices excessivos neles efetivamente constatados.

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