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C A P I T U L O I.

A C O M A D R E E 3 1 E X E R C Í C I O .

Os le i to res d e v e m es ta r l e m b r a d o s de q u e o nosso an t igo conhec ido , d e q u e m por a lgum t e m p o nos t emos e squec ido , o L e o n a r d o - P a t a c a , a p e r t á r a - s e em laços a m o r o s o s com a f i lha da c o m a d r e , e q u e com ella vivia e m san ta e hones t a paz. Po i s es te vi-ver s a n t o e hones to deu em t e m p o o p p o r t u n o o seu r e su l t ado . C h i q u i n h a (era es te o n o m e da filha da c o m a d r e ) a chou - se de esperanças e p r o m p t a a d a r á luz . J á veem os le i tores q u e a raça dos L e o n a r d o s nâo se ha de e x t i n g u i r com fac i l idade . L e o n a r d o -Pa taca não perd ia por m o d o a l g u m a q u e l l e s h á b i t o s de t e r n u r a com q u e s e m p r e o c o n h e c e m o s , e nas ac tuaes c i r c u m s t a n c i a s , q u a n d o el le via ás por t a s da

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vida u m f ruc to do seu de r r ade i ro a m o r , crescia-lhe n ' a i m a aquel la violenta c h a m m a do cos tume ; o po-b r e h o m e m ardia todo por den t ro e por t o r a , e des-fazia-se cm ca r inhos pa ra com sua companhe i r a .

Chegou f ina lmente o dia de appa rece r o desejado r e s u l t a d o : ao a m a n h e c e r man i f e s t a r a os pr imeiros s y m p t o m a s . Leona rdo levantou logo u m a poeira em casa : andava d,e den t ro para fóra p re t endendo fazer mi l cousas, e sem fazer cousa a l g u m a , a t r apa lhado e t o n t o . Mandou c h a m a r a c o m a d r e , q u e p rompta acud iu ao c h a m a d o , e começarão-se a a r r a n j a r os p repara t ivos . Talvez a lguns leitores t e n h ã o idéa do m u n d o inf ini to de a r r a n j o s q u e naque l le t e m p o se punha em gyro em seme lhan te s occasiões. A pr i -me i r a cousa a q u e o Leonard o - P a ta.ca providenciou foi a q u e se mandassem d a r as nove bada ladas no s ino g r a n d e da Sé. Es ta pra t ica só cos tumava ter logar q u a n d o a pa r tu r i en t e se achava em perigo, p o r é m elle quiz p reven i r tudo a tempos e a horas . Mandou-se depois pedi r á viz inha, pois por u m des-cu ido imperdoáve l não havia em casa , um r amo de pa lha b e n t a ; a c o m a d r e t rouxe um par de bent i -nhos da Senho ra do Monte do C a r m o q u e t inhão g r a n d e repu tação de mi lagrosos , e o lançou ao pes-coço da Ch iqu inha . Poz a pa lha benta ao lado da c a b e c e i r a ; na sala improvisou-se u m ora to r io com u m a t o a l h a , u m copo com a r r u d a e u m a imagem de Nossa Senhora da Conceição de louça , enfe i tada com cordões de o u r o . C h i q u i n h a , para nada esque-cer das regras es tabelecidas , a m a r r o u á cabeça um lenço b ranco , met teu-se e m b a i x o dos lençóes, e co-meçou a rezar ao san to de sua devoção. A comadre assen tou-se aos pés da cama em u m a b a n q u i n h a , e desunhava t a m b é m em u m grande rosár io , obser-

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vando e n t r e t a n t o a C h i q u i n h a , e i n t e r r o m p e n d o - s e a cada i n s t an t e p a r a d a r o r d e n s a o L e o n a r d o - P a -taca, e r e s p o n d e r ao q u é fo ra do q u a r t o se d iz ia .

L e o n a r d o - P a t a c a , depo is de t u d o a r r a n j a d o , q u a n d o viu q u e a ún ica cousa q u e res tava e ra espe-rar a natureza, c o m o dizia a c o m a d r e , poz-se em m e n o r e s , q u e r o d ize r , despiu os calções e o co l le te , ficou em seroulas e ch ine l l a s , a m a r r o u á cabeça , segundo u m an t igo cos tume , u m lenço i n c a r n a d o , e poz-se a passear na sala de u m lado pa ra o u t r o , com u m a cara de fazer dó : pa rec ia q u e e ra òlte e não C h i q u i n h a q u e m se a c h a v a com dôres de p a r t o . De vez em q u a n d o pa rava á po r t a do q u a r t o q u e se achava c e r r a d a , lançava p a r a d e n t r o u m o l h a r de cu r io s idade e m e d o , e a b a n a n d o a cabeça m u r m u -

<i« jtf n'-í í.ü. i- • iK í''í i ; Uuív.U mu* r a v a : _

— Não s i rvo pa ra i s t o . . . . es tas cousas nao se d a o com o meu gênio . . . . E s t o u a t r e m e r c o m o se fosse o

• ' • ' . i ' negocio c o m i g o . . . .

E r e a l m e n t e a cada g e m i d o f o r t e q u e p a r t i a d o q u a r t o o h o m e m es t r emec ia e fazia-se de mi l cores .

D e n t r o d o q u a r t o a c o m a d r e e x h o r t a v a a pade -cen te , pouco ma i s ou menos nestes t e r m o s :

— Não vos façais de c r i a n ç a , m e n i n a . . . . i sso não é n a d a . . . . é u m páo por u m o lho . . . . Não t a r d a ah i um B e m d i t o , e estais já l iv re . Es ta s cousas na mi -n h a m ã o a n d ã o depres sa . V e r d a d e seja q u e é o pr i -m e i r o , e isto causa seu m e d o , mas não é cousa q u e valha es tares agora tão d e s a n i m a d a ; é preciso t a m -b é m a j u d a r a na tu reza . « Faze da tua pa r t e q u e eu t e a j u d a r e i ! » São pa lavras de Jesus Chr i s to .

A padecen te es lava po rém a m o r r e r de sus ? o : nem se moveu á e x h o r t a ç a ó da c o m a d r e . E n t r e t a n t o o t e m p o ia p a s s a n d o , e a p o b r e r a p a r i g a a s o í f r e r ;

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j á lhe t i nha a c o m a d r e a r r a n j a d o de u m modo di-verso os ben t inhos no pe i to , j á t inha incl inado mais sob re a cama a palma ben ta , e a inda nada de novo. O Leona rdo -Pa t aca começava a impac i en t a r - s e ; de vez e m q u a n d o chegava á por ta do q u a r t o , e per-guntava com voz e s m o r e c i d a :

— E n t ã o ? . . . — C o m p a d r e , respondia a c o m a d r e , já lhe disse

q u e nao é b o m a q u e m está neste es tado es tar ou-v indo voz de h o m e m : esteja ca lado e espere lá.

Cont inuava o t e m p o a p a s s a r : a c o m a d r e sahiu do q u a r t o e veiu acender u m a nova vela ben t a a Nossa S e n h o r a , e depois de uma breve oração vol-tou ao seu posto . T i rou en tão do bolso da saia uma fita azul compr ida e passou-a em roda da c intura da C h i q u i n h a ; era u m a medida de Nossa Senhora do Par to . Depois disse com a r de t r i u m p h o :

— O r a agora vamos a ver , p o r q u e isto já não vai d o meu a g r a d o . . . . Mas a culpa t a m b é m é sua, m e n i n a , já lhe disse q u e é preciso a j u d a r a na tu -reza . Passou-se a inda a lgum t e m p o . De r e p e n t e a c o m a d r e gr i tou para fó ra :

— O ' c o m a d r e , dê cá lá u m a g a r r a f a . . . . O L e o n a r d o - P a t a c a obedeceu p r o m p t a m e n t e . Ou-

viu-se en tão d e n t r o do q u a r t o o som que produzir ia u m a boca h u m a n a a sopra r com toda a forca dent ro d e a l g u m a cousa . E r a Ch iqu inha que por o rdem da c o m a d r e soprava a m o r r e r de cansaço den t ro da g a r r a f a q u e esta m a n d á r a vir.

— Com força , m e n i n a , com bem fo rça , e Nossa S e n h o r a não desampara os fieis. A n i m o , a n i m o ; isto o mais q u e succede é uma vez por anno . Desde q u e nossa mãi Eva comeu aquel la ma ld i t a f ru t a fi-

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cámos nós su j e i t a s a i s to . « E u mul t ip l i ca re i os t r a -balhos de teu p a r t o . » S ã o pa l av ras de J e s u s C h r i s t o !

J á se vè q u e a c o m a d r e e ra f o r t e e m h i s to r i a sa -

grada. B Ao L e o n a r d o - P a t a c a t r e m i ã o - l h e cá fora t a n t o as pernas , q u e não p u d e r a m a i s c o n t i n u a r no passeio , e achava-se sen tado a u m c a n t o com os dedos nos ou vícios»

— S o p r a i , m e n i n a , c o n t i n u a v a s e m p r e d e n t r o a

c o m a d r e , soprai com Nossa S e n h o r a , s o p r a i com S . J o ã o B a p t i s t a , sopra i com os Aposto los P e d r o e P a u l o , sopra i com os A n j o s e S e r a f i n s da Cor te Ce-leste, com todos os S a n t o s do para í so , sopra i com o P a d r e , com o F i l h o e com o E s p i r i t o S a n t o .

H o u v e finalmente u m in s t an t e de s i lencio, q u e foi i n t e r r o m p i d o pelo c h o r o de u m a c r i ança .

— O r a lá vai o m á o t e m p o , e x c l a m o u a c o m a -d r e ; b e m dizia eu q u e is to não era ma i s do q u e u m páo po r u m o l h o . . . . A h ! S r . c o m p a d r e , c h e g u e , q u e é agora a sua vez, v e n h a ver a sua p e c u r r u c h a . . . .

E ' u m a p e c u r r u c h a ! . . . e x c l a m o u o L e o n a r d o -P a t a c a f o r a d e s i ; ora is to é de b o m a g o u r o , p o r -q u e com o o u t r o q u e sah iu m a c h o nao lui leliz.

R e s c e n d e u en t ão pela casa u m agradave l che i ro de a l f a z e m a ; a c o m a d r e ve iu á sa la , apagou as ve-las q u e es tavão acesas a Nossa S e n h o r a ; ioi depo is de sa t a r a fita da c i n t u r a da C h i q u i n h a e t i r a r - l h e do pescoço os b e n t i n h o s . .

A r ecem-nasc ida , e n f r a l d a d a , e n c o e i r a d a , enc in -t e i r a d a , e n t o u c a d a e com u m m ó l h o de t igas e me ias luas , s ignos d e S a l o m ã o e ou t ros p rese rva t ivos d e máos -o lhados presos ao c in t e i ro , passava das m a o s de C h i q u i n h a p a r a as do L e o n a r d o - P a t a c a , q u e n a o cab ia em si de con ten tamen to - , e ra u m a i o r m o s a

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criancinha, em tudo o opposto de seu irmão paterno o nosso amigo L e o n a r d o , mansa e r i sonha .

O Leonardo-Pa taca recor reu i m m e d i a t a m e n t e á toluinha para ver que nome trazia a menina; po-rem como este lhe não agradasse, travou logo com

Í F I D R QUESTA~°A RESPEIT° F — R -A comadre aproveitou-se disso para dar conta

dos últimos arranjos, e depois envergou a mantilha e sahiu para acudi r a ou t r a s necessi tadas.

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V JLPITUIÍ© II

T R A M A . C A

C o m o esta scena q u e a c a b a m o s d e p i n t a r t i n h a a c o m a d r e m u i t a s o u t r a s todos os d ias , p o r q u e e ra u m a das p a r t e i r a s mais p r o c u r a d a s da c idade ; go-z a v a g r a n d e r e p u t a ç ã o de m u i t o e n t e n d i d a , e a i n d a nos casos ma i s graves e ra s e m p r e a escolhida com os seus mi lagrosos b e n t i n h o s , a p a l m a b e n t a , a m e d i d a de Nossa S e n h o r a , a g a r r a f a s o p r a d a , e com a invo-cação de todas as legiões de s an tos , de s e r a p h i n s e de a n j o s l ivrava-se el la dos ma io re s ape r to s . E n i n -guém lhe fosse d a r r e g r a s , q u e as não o u v i a , n e m do p h y s i c o - m ó r , se nisso se m e t t e s s e : e r a so o liar p a r a u m a m u l h e r d e esperanças, e d iz ia - lhe logo sem g r a n d e t r a b a l h o o sexo , o t a m a n h o do filho q u e t raz ia na s e n t r a n h a s , e com u m a p o n t u a l i d a d e m i r a -culosa o d ia e h o r a em q u e t e r i a de ver-se d e s e m -b a r a ç a d a ; a t é ás vezes, po r cer tos s ignaes q u e só el la conhec i a , chegava a dizer q u a l s e r i a o g e m o e as

inc l inações do en te q u e ia ver a luz. J á se ve q u e esta v ida e ra t r a b a l h o s a e d e m a n d a v a sér ios cu ida -d o s ; p o r é m a c o m a d r e d i s p u n h a de u m a g r a n d e

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somma de actividade; e, apezar de gastar muito tempo nos deveres do oílicio e na igreja, sempre lhe sobrara algum para empregar em outras cousas. C o m o dissemos, ella havia tomado a peito a causa d o s amores de Leonardo com Luizinha, e jurara pôr J o s e Manoel, o novo candidato, fora da chapa.

Começou pois a occupar o seu tempo disponível nesse grave negocio, e movia uma intriga surdís-sima e constante contra o rival de seu afilhado. Go-zando da intimidade e do credito de D. Maria, não perdia junto delia occasião de desconceituar José Manoel, o que era-lhe tanto mais fácil quanto elle prestava-se a isso, e D. Maria, de espirito deman-dista echicane.ro, dava o cavaco por um mexerico l^s-aqui uma das que ella armou ao adversario.

lodos sabem nesta cidade onde é o Oratorio de l e d r a ; mas o que todos talvez não s . ibão é para que serviu elle em outros tempos. Sem duvida na-quelle oratorio havia a imagem de algum santo, e o povo devoto ia ali rezar? Exactamente. Mas por-que e que hoje não continua essa pratica, porque apenas se conserva sobre a parede aquella especie de guarita de pedra, sem imagem alguma, sem luz a noite, e diante da qual passão todos irreverente-mente sem tirar o chapéo e curvar o joelho? Pri-meiro que tudo extinguiu-se isso pela razão porque se extinguirão muitas cousas boas daquelle bom empo ; começarão todos a aborrecer-se de acha-las

i)oas, e acabarão com ellas. Depois houve a respeito

do Oratorio de Pedra muito boas razões policiaes para que elle deixasse de ser o que era.

O leitor, que sem duvida sabe muito bem de quanto erao nossos pais crentes, devotos e tementes a Deus, se admirará talvez de ler que houve razões

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policiaes pa ra a ex t incção d e u m o ra to r io . E n t r e -t an to é isso u m a v e r d a d e , e se fosse a i n d a vivo o nosso a m i g o Vid iga l , de q u e m j á t ivemos occas ião de f a l l a r em a lguns cap í tu los desta h i s to r i e t a , po-der ia dizer q u a n t o ga ro to p i l hou e m flagrante de -l i d o , ali m e s m o aos pés d o o r a t o r i o , a j o e l h a d o , c o n t r i c t o e bea to .

Q u a n d o passava a V i a - S a c r a e q u e se a c e n d i a a l ampada do o r a t o r i o , o pai de famil ia q u e m o r a v a ali pelas v iz inhanças t o m a v a o capo te , c h a m a v a t o d a a gente de casa , filhos, filhas, escravos e cr ias , e ião fazer o ração a joe lhando - se en t r e o povo d i a n t e d o ora to r io . Mas se acontec ia q u e o i n c a u t o d e v o t o se esquecia da filha ma i s ve lha q u e se a j o e l h a v a u m p o u c o ma i s a t r á s e e m b e b i d o e m suas o r ações não estava á l e r t a , succed ia - lhe ás vezes vo l t a r pa ra casa com a fami l ia d i z i m a d a : a m e n i n a ap rove i t ava - se d o ense jo , e s o r r a t e i r a m e n t e escapava-se em c o m -panh ia d e u m devoto q u e se a j o e l h á r a ali p e r t o , e m b r u l h a d o n o seu capo te , e q u e inda ha dous m i -nu tos todos t i n h ã o visto e n t r e g u e f e r v o r o s a m e n t e as suas suppl icas a Deus .

Aqu i l i o e ra a e x e c u ç ã o d o p l a n o c o n c e r t a d o na vespera ao c a h i r d e Ave-Mar ias , a t r avés dos post igos da r o t u l a . O u t r a s vezes, q u a n d o es tavão todos os c i r c u m s t a n t e s e n t r e g u e s á devoção , e q u e a l a d a i n h a en toada a c o m p a s s o e n c h i a a q u e l l e c i r cu i to de c o n -t r icção , ouv ia - se u m gr i to a g u d o e do loroso q u e i n t e r r o m p i a o h y m n o ; co r r i ão todos pa ra o l oga r d o n d e p a r t i r a , e a c h a v ã o u m h o m e m e s t e n d i d o n o c h ã o com u m a ou d u a s facadas .

Não levamos a inda e m con ta as i nnocen te s ca -çoadas q u e a todo o i n s t an t e faz ião os ga ia tos . E i s -aqu i pois p o r q u e , a l é m d e o u t r o s mo t ivos , d i s semos

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que t i n h ã o havido razões policiaes para que se aca-basse com as piedosas p ra t i cas do Ora to r io de Ped ra .

No t empo em que se passavão as scenas q u e te-mos na r r ado a inda o O r a t o r i o de Pedra estava no ga la r im. Um ou dous dias depois do nasc imento do s e g u n d o f i lho de L e o n a r d o - P a t a c a correu pela ci-dade a noticia de um grande escandalo que se pas-sara nesse jogar clássico dos e scanda los : u m a moça, q u e vivia em companh ia de sua mãi , velha, rica e devo ta , i n d o . c o m elIa rezar j u n t o ao O r a t o r i o , na ocçasião da passagam da Via-Sacra , fug i r a , tendo levado comsigo um pó de meia preta con tendo uma boa porção de peças de ouro . Fa l l ava - se mu i to no caso, não porque fosse naque l le t empo cousa de es-l r anha r - s e , mas p o r q u e havia um mysler io no suc-ç e s s o : n i n g u é m sabia com q u e m t inha fug ido a m o ç a .

D. Mar ia , c o m o todos, estava anciosa por ver des l indada a ques tão , q u a n d o lhe appareceu em

comadre q u e a v inha visi tar . D. Maria estava sentada na sua b a n q u i n h a , t endo

d i a n t e de si uma e n o r m e a lmofada de renda car-regada com seis ou sete dúzias de bi lros, e esme-rava-se em fazer um largo pegamen to . A seu lado, sentada em uma es te i ra , cercada por u m a porção de neg r inhas , cr ias de D. Maria , estava Luiz inha t a m -bém occupada em fazer r e n d a .

Q u a n d o a c o m a d r e en t rou , D. Maria largou im-m e d i a t a m e n t e a a lmofada do col io , t i rou do nar iz e pôz na testa um par de oculos de áros de p ra t a com q u e t r a b a l h a v a , e começou logo por t oca r no caso que a p reoccupava . A c o m a d r e fez signa! q u e

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mandasse r e t i r a r L u i z i n h a e as ma i s c r i a n ç a s ; e a conversa c a m i n h o u l i v r emen te .

— E n t ã o q u e m e diz , s e n h o r a , da desgraça da pobre v e l h a ? Cr i a r a gen te u m a r apa r iga com todo o c a r i n h o , e n o fim t e r aque l la r e c o m p e n s a ! . . . no meu t e m p o não se vião cousas des t a s . . .

— Q u e q u e r , S e n h o r a ? respondeu a c o m a d r e ; pois foi a l i , nas b a r b a s de todos . Não hav ia u m ins -t a n t e q u e ella havia c h e g a d o com a ve lha , e q u e se tinfaão todas d u a s a j o e l h a d o ao pé de m i m . . .

— A o pé da c o m a d r e ? Pois a c o m a d r e es tava l á ? . . .

— E s t a v a . . . q u e an t e s não es t ivesse . . . — Mas o d i a b o , s e n h o r a , accrescen tou D. Mar i a ,

é n inguém s a b e r q u e m foi o ma ld i t o q u e f u g i u com e l l a . . .

— A c o m a d r e i n t e r r o m p e u , dandQ u m a r i s ad i -nha s a r d ó n i c a .

— T e n h o p e r g u n t a d o a t o d o s , e n i n g u é m sabe d izer -me.

— É p o r q u e todos es tavão cegos . . . — C o m o ? — Mas não o es tava e u , p o r mal de m e u s pec-

cados , q u e an t e s es t ivesse . . . — P o i s viu e sabe com q u e m fo i . . . .d i sse D. M a r i a ,

r emexendo - se de p r a z e r em c i m a da b a n q u i n h a . A idéa de p o d e r s a b e r de u m a n o v i d a d e q u e

todos ignoravão e n c h e u - a de c o n t e n t a m e n t o . — Mas en t ão q u e m fo i , v a m o s ; q u e r o s a b e r

q u e m foi o l ad rão da moça e do d i n h e i r o . . . . — Só lhe d i r e i , r e spondeu a c o m a d r e depois de

a l g u m a hes i t ação , se m e p r o m e t t e r d e s g u a r d a r t o d o o seg redo , q u e o caso é m u i t o ser io .

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— Ora bem sabe q u e e u . . . é o mesmo q u e cahir n ' u m poço.

Apezar de es ta rem sós, a c o m a d r e incl inou-se ao ouv ido de D. Mar ia , e disse- lhe o mais ba ix inho q u e p ô d e :

— Foi o nosso g rande c a m a r a d a . . . a boa peça do José Manoe l . . . .

— O q u e é que diz, c o m a d r e ? — Vi , respondeu esta, a r r ega l ando com dous

dedos os olhos, com estes que a t e r ra ha d e comer . . . Se el les estavão ao pé de m i m . . .

D. Maria ficou por a lgum t e m p o m u d a de estu-pefacção.

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D E R R O T A .

Aquel las u l t i m a s pa l av ras da c o m a d r e p roduz i r ão sob re D. Maria o effei to de u m r a i o : a velha r e m e -xeu-se na b a n q u i n h a , t o m a d a d o m a i o r d e s a p o n -t a m e n t o .

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— O r a , c o m a d r e , e x c l a m o u depois da p r i m e i r a emoção , esta não l e m b r a ao d i a b o . . . p o r isso eu sigo a regra an t i ga de m e não fiar em cousa q u e traz ca lções . . . S a f a . . . q u e es ta pôz-me sal na m o -leira .

A c o m a d r e , vendo es tas boas disposições, a p r o -veitava-se del ias p a r a fazer m e l h o r o seu pape i , e r e s p o n d e u :

— Pois t a m b é m o q u e se hav i a de e s p e r a r de u m sugei to c o m o a q u e l l e ? . . . u m h o m e m q u e não a b r e a boca q u e não m i n t a . . . q u e t em u m a l íngua de L ú c i f e r ? . . . Q u e m contasse com aqu i í l o e r a m e s m o para se p e r d e r .

— É verdade , s e n h o r a ; nunca vi m e n t i r o s o , n e m mald izen te m a i o r

Nunca D. Maria a té en t ão t i n h a e n c o n t r a d o e m TOM. II. 2

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J o s é Manoel as qua l idades que agora Ibe descobria t a n t o em re levo.

— Se eu fosse pa ren te da rapar iga havia pôr u m a demanda ao tal d i a b o que o havia ens inar P o r isso é que elle m e não apparec ia por cá ha t a n t o t e m p o andava cu idando nos seus a r r an jos .

Mal t inha D. Maria acabado de p r o n u n c i a r estas u l t imas palavras q u a n d o se ouviu ba te r á por ta , e a voz de José Manoel pedir licença.

— Ahi es tá el le . . . segredo. . . não q u e r o q u e se sa iba q u e fu i eu, disse a c o m a d r e apressada .

— O r a , respondeu D. Mar ia , eu cá para isso sou boa .

José Manoel e n t r o u . D. Mar ia , que não costu-mava g u a r d a r o que sent ia , recebeu-o f r i a m e n t e ; a c o m a d r e porém fez-lhe um rasgado c u m p r i m e n t o .

— Seja bem apparec ido , disse, bons olhos o vejão.

— T e n h o a n d a d o ahi occupado com alguns a r -r a n j o s

— Ar ran jos . . . disse D. Maria t rocando com a co-m a d r e um o lhar significativo.

J o s é Manoel , innocente em t u d o , ficou pasmo, sem entender o que quer ia aqui l lo d i z e r ; en t r e t an -to , segundo o cos tume, não perdeu occasião de a r -m a r u m a peta .

— S i m , uns a r r a n j o s , a cc r e scen tou ; houve um negocio mu i to serio em que estive mett i í lo , e que m e ia d a n d o bem que f a z e r ; s into não lhe poder con ta r , porque é segredo.

A c o m a d r e fez um gesto, como q u e m quer ia dizer — ahi vem uma p e t a ; D. Maria , p o r é m , que estava preoccupada pela conversa que ha pouco ti-vera , en tendeu que José Manoel se refer ia ao r o u b o

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da moça ; e abanando a cabeça, disse por entre os d e n t e s :

— H u m . . . e n t e n d o . . . A c o m a d r e es t r emeceu t e m e n d o q u e D . Mar ia não

desse com a l ingua nos den te s , e q u e a ques t ão d o r o u b o da moça t ivesse de ser ave r iguada em sua p r e s e n ç a ; p o r q u e nesse caso seria ella a p a n h a d a e m f lagran te m e n t i r a , e es tava t u d o pe rd ido . Começou p o r t a n t o a p rovoca r a J o s é Manoel a q u e dec la rasse qual e ra o negocio sér io em q u e est ivera m e t t i d o ; contava com a l g u m a s das pe tas c o n t i n u a d a s , e as-sim se desv ia r ia a conversa d o pon to q u e el la não q u e r i a ver t r a t ado em sua p resença .

De ixemo- la nesse e m p e n h o l u t a r com as negaças e fingidos mys te r ios de José Manoel .

Desde o dia em q u e L e o n a r d o fizera a sua dec la -ração a m o r o s a , u m a m u d a n ç a notável se começou a ope ra r em L u i z i n h a , a cada h o r a se t o r n a v a ma i s sensível a d i f ferença t a n t o do seu physico c o m o d o seu mora l . Seus con to rnos começavão a r e d o n d a r - s e ; seus b raços , a té ali finos e s e m p r e cah idos , e n g r o s - ' savão-se e t o rnavão- se ma i s áge i s ; suas faces m a g r a s e pa l l idas , ench i ão - se e t o m a v ã o essa c ô r q u e s ó sabe t e r o ros to da m u l h e r em cer ta época da v i d a ; a cabeça , q u e t raz ia h a b i t u a l m e n t e b a i x a , e rgu ia - se agora g r a c i o s a m e n t e ; os o lhos , a t é aqu i amortecido^, começavão a despedi r l ampe jos b r i l h a n t e s ; f a l l a v a , m o v i a - s e , ag i tava-se .

A o r d e m de suas idéas a l t e rava - se t a m b é m ; o seu m u n d o in t e r i o r , a t é e n t ã o a c a n h a d o , e s t r e i to , es-cu ro , despovoado , começava a a l a r g a r os hor i zon tes , a i l l u m i n a r - s e , a povoar -se de m i l h õ e s de imagens , ora a m e n a s , ora melancó l i cas , s e m p r e p o r é m bel las .

A té en tão i nd i f f e r en t e ao q u e se passava ~m t o r n o

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de si, parecia agora participar da vida, de tudo que a cercava; gastava horas inteiras a contemplar o céo, como se só agora tivesse reparado que elle era azul e bello, que o sol o illuminava de dia, que se recamava deestrellas á noite.

Tudo isto dava em resultado, pelo que diz res-peito ao nosso amigo Leonardo, um augmento con-siderável de amor; também elle foi o primeiro que deu fé daquellas mudanças em Luizinha. Entre-tanto, apezar de lhe crescer o amor nem por isso lhe nascião mais esperanças.

Depois da declaração não se tinha adiantado nem mais uma pollegada, e a única cousa talvez que o alentava, era um certo rubor que subito subia ás faces de Luizinha quando acontecia (raras vezes) que se encontrassem os olhos delia com os seus. A somma total destas addições era uma raiva que lhe crescia n'aima, augmentando todos os dias de in-tensidade contra José Manoel, a quem em seus cál-culos attribuia todo o seu alrazo.

Dadas estas explicações, voltemos a dar conta do resto da scena que deixámos suspensa.

A' força de instancias a comadre conseguiu que José Manoel referisse qual o negocio de alto segredo em que se tinha achado envolvido.

— Pois bem, disse elle finalmente, se promet-tem toda a discrição, contarei.

— Ora, nem tem que recommendar isso. Comas negaças emysterios que linha guardado até

então, José Manoel não fizera mais do que ganhar tempo para imaginar a mentira que havia de pregar : a comadre contava com isso.

Elie começou :

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- Saibão Vms. que fui um destes dias chamado a palacio«..

— Ui ! exclamou a comadre. -— Ahi está o resultado, disse D. Maria 5 mas não

se pagão na outra vida, ó mesmo nesta. — Resultado de que? perguntou José Manoel

sor prendido. — De nada; continue. José Manoel enfiou então tomando por thema

aqueUas primeiras palavras que lhe tinhão vindo á boca, uma mentira muito sem sabor, que nós pou-pamos aos leitores. Não forão porém satisfeitas as vistas da comadre, que queria desviar a conversa do furto da moça.

Terminada a historia, José Manoel começou a ins-tar com D. Maria para que lhe desse explicação das palavras duvidosas que ha pouco havia dito a seu respeito. A comadre, assim que viu o negocio neste pé, foi tratando de retirar-se, depois de trocar com D. Maria um olhar que queria dizer: — não me comprometia.

D. Maria a principio quiz sustentar o segredo; aíinal não se pôde conter, e soltou contra José Ma-noel uma grande alicantina, dizendo que toda a cidade estava cheia do horroroso escandalo que elle acabava de commetter roubando uma filha familia.

O homem foi ás nuvens, e jurou e tresjurou que estava innocente em tudo aquillo. Nada porém lhe valeu.

D. Maria foi inflexível. Protestou de novo que se ella fosse parenta da

moça o Snr. José Manoel se havia de ver em calças pardas com o negocio; e terminou por dar-lhe a

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entender que elle era um homem muito perigoso para ser admittido em uma casa de familia.

José Manoel sahiu completamente corrido e scis-mando em quem poderia ter sido o autor de seme-lhante intriga.

Quanto a D. Maria, ficou muito satisfeita, pois tendo no seu caracter um grande fundo de hones-tidade, julgava ter feito uma boa acção rompendo com José Manoel, que íicára com effeito, como o calculara a comadre, perdendo muito no seu con-ceito.

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C A P I T U L O I V .

O M E S T R E D E R E Z A .

T u d o q u e u l t i m a m e n t e se passara em casa d e D. Maria havia posto a andar à roda a cabeça de José Manoel ; conheceu que t inha ali in imigo, fosse quem fosse, pois que aqui l lo não passava ce r ta -men te de intr iga que lhe t i nhão a rmado . Res tava-lhe porém saber quem seria esse in imigo ; e por mais que désse voltas ao miolo não at inava com elle. Pelo genero da intr iga conheceu que a causa do que lhe fazião era seguramente a sua pre tenção a respei to de Lu iz inha , que sem duvida t inha sido p e r c e b i d a ; começou a suspei tar que t inha de h a -ver-se com um r ival . Na roda que f requen tava a casa de D. Maria n inguém via que lhe parecesse poder es tar nesse caso : passou-lhe mui tas vezes pela l embrança o moço Leonardo ; porém achava-o in-capaz de se me t t e r nessas cousas.

Assim são os ve lhacos! ! Quan t a s vezes estão to -cando o in imigo com as mãos , e não o vêem, e não o sentem 1

Part isse porém donde part isse o golpe que o fe-r i ra , o caso é que fôra dado cer te i ro , e a duas mãos .

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D. M a n a , ex t remosa em suas aífeiçoes, como em seus odios , consent i r ia com immensa di í l iculdade na r ehab i li tação de José M a n o e l ; e n t r e t a n t o elle não es f r iou por isso, e pôz mãos á ob ra . P o r u m a sin-gu l a r idade , assim como L e o n a r d o l inha achado na c o m a d r e u m a protec tora á sua causa , t a m b é m José Manoel achou um procurador para a sua.

V a m o s já dizer aos lei tores q u e m e r a o procu-r a d o r de José Manoel .

Havia no t e m p o em q u e se passão estas scenas instituições m u i t o curiosas no Rio de J a n e i r o ; al-gumas erão notáveis por seu Hm, ou t ras por seus meios . L n t r e essas umas havia de que a inda em nossa infancia t ivemos occasião de ver a lguns des-troços, era a inst i tuição dos mestres de reza.

O mes t re de reza era tão aca tado e venerado naque l l e t e m p o como o propr io mes t re de e sco la ; a l em do respei to o r d i n a r i a m e n t e t r i b u t a d o aos pre-ceptores , dava-se uma circurnstancia m u i t o notável , e vem a ser que os mestres de reza e rão s empre velhos e cegos. Não erão em g rande n u m e r o , por isso m e s m o vivião por tan to em g r a n d e ac t iv idade , e ganha vão s o f r i v e l m e n t e . Andavão pelas casas a en-s inar a rezar aos fi lhos, cr ias e escravos de ambos os sexos.

O mes t re de reza não t inha t r a j e espec ia l : vestia-se como todos, e só o que o d is t inguia era ver-se- lhe cons t an t emen te fora de h u m dos bolsos o cabo de u m a t r e m e n d a pa lma tó r i a , de que andava a r m a d o , c o m p e n d i o único por onde ensinava a seus discí-pulos .

Assim que en t ravão para a ücão reunia em um semi-c i rcu lo d ian te de si todos os d i sc ípu los ; pu-xava do bolso a t r emenda f é ru l a , collocava-a no

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oravão d u r a n t e m u i t o t empo . Este acto, que satis-fazia a devoção dos carolas , dava pasto e occasião a quanta sor te de zombar ia e de i m m o r a l i d a d e lem-brava aos rapazes daquel la época, que são os velhos de hoje , e q u e t a n t o c lamão cont ra o desrespei to dos moços de agora . C a m i n h a v ã o eiles em charo la a t rás da procissão, i n t e r r o m p e n d o a cantor ia com dicter ios em voz a l t a , ora s imp lesmen te engraçados , ora pouco decentes ; leva vão longos fios de b a r b a n t e , em cu ja e x t r e m i d a d e ião penduradas grossas bolas de cera . Se ia por ali ao seu alcance a lgum infeliz, a q u e m os annos tivessem despido a cabeça dos ca-beJíos, collocavão-se em distancia conveniente , e escondidos por t rás de um ou de o u t r o , arremessa-vão o projéc t i l q u e ia ba te r cm che io sobre a calva do devoto ; puxavão r a p i d a m e n t e o b a r b a n t e , e n i n -guém podia sabe r donde t inha par t ido o golpe. Estas e ou t ras scenas excita vão vozeria e garga lhadas na mul t idão .

Era a isto que naquel les devotos t empos se cha-mava cor re r a Via-Sacra .

O men ino , c o m o j á d i s semos , es t remecera de prazer ao ver app rox imar - se a procissão. Desceu s o r r a t e i r a m e n t e a sole i ra , e sem ser visto pelo pa-d r i n h o collocou-se un ido á parede e n t r e as duas portas da loja , levantando-se na ponta dos pés para ver mais a seu gosto.

Vinha approx imando-se o a c o m p a n h a m e n t o , e o menino palpi tava de prazer . Chegou m e s m o d e f r o n t e da p o r t a ; teve elle en tão um pensamento que o fez e s t r e m e c e r ; tornou-se a l e m b r a r das palavras do p a d r i n h o : « farte-se de t ravessuras ; » espiou para den t ro da lo ja , viu-o en t r e t i do , deu um sal to do logar onde es tava , mis turou-se com a mul t idão , e lá

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consequência um dos mais p r o c u r a d o s ; nesse t empo exigia-se antes de t u d o essa qua l idade . T i n h a tam-bém o u t r o m é r i t o : cor r ia a seu respei to a fama de b o m a r r a n j a d o r d e casamentos .

E is -ab i o p rocu rado r de José Manoel . Jo sé Manoel já antes o t i nha posto de mão, e

agora q u e se viu em perigo recorreu a e l l e ; expôz-Ihe o caso, c o m m u n i c o u - l h e suas intenções, e pe-d iu - lhe a sua cooperação . Fez - lhe sent i r sobre tudo q u e havia um rival a comba te r , e mui to temível , pois q u e não era conhec ido . O velho começou então a t o m a r as mais minuciosas in fo rmações , e depois de calcular por a lgum t empo disse :

— J á sei com quem m e tenho que have r . . . — E n t ã o com quem é ? . . . acudiu José Manoel

ap ressado . — Vá descansado, não se i m p o r t e com o res to . — Mas, h o m e m , olhe que é preciso m u i t o cui-

d a d o ; p o r q u e , q u e m q u e r que é , é fino como os t rezentos

— Ora qua l . . . h is tor ias . . . desses a r r an jos entendo eu d o r m i n d o , e vejo nisso, sendo cego, me lhor do que mui tos com seus olhos perfe i tos .

— É u m a cousa que m e põe á roda o mio lo não pode r descobr i r quem se i n t r o m e t t e nos meus ne-gocios . . . o lhe q u e a tal ent rega do f u r t o da moça foi de m e s t r e .

— Eu t a m b é m sou mes t re , e veremos q u e m en-sina m e l h o r .

F i c á r ã o os dous nisto; e o cego pôz mãos á obra . Devemos prevenir ao lei tor q u e a causa em se-

m e l h a n t e s mãos, se não se podia dizer decidida-m e n t e ganha , pelo menos ficava a r r i s c a d a ; e o que vale é q u e do ou t ro lado estava a comadre .

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O velho começou o seu t r aba lho em r e g r a : logo na pr imei ra noite que foi da r lição á casa de D. Maria começou por fazer cah i r a conversa a res-peito do roubo da moça, e deu a en tender que sabia do caso e conhecia per fe i t amente quem t inha sido o autor delle. 1). Maria disse l ambem que sabia q u e m era, e que a té o conhecia mui to . O velho sor r iu - se , deixando apenas escapar em tom de duv ida um si-g n i f i c a t i v o — Q u a l . . . . — O . Maria f ranziu o sobr olho, levantou os oculos e e x c l a m o u :

— Pois então pensa que eu ando alrazada nes tas cousas?... Ora deixe-se. . . Sei quem foi, e sei mui to e mui to bem. É um pedaço de mariola com cara d e sonso, que só me ha de mora r em casa se eu a l g u m dia f ô r carcere i ra .

— É isso tudo , mas a Sra . D. Maria não conhece o h o m e m , d igo- lhe eu , que t a m b é m ando ao facto deste negocio todo.

— Bem sei, bem sei . . . mas olhe que eu t a m b é m soube de par te mu i to cer ta . . . e não ha nada mais fácil do que ver quem está enganado . . . Diga lá o senhor quem foi .

— O h ! n ã o ! isso nunca , exc l amou apressada-mente o velho pondo-se em pé-, nada , eu cá não quebro segredo de n inguém.

D. Maria r emexeu-se toda de aff i icção; e po r mais que instasse nada pôde a r r a n c a r do velho que , para fazer me lhor o seu papel, foi-se logo re t i r ando , dando assim a en tender que quer ia cor ta r a conversa naquel le ponto .

Q u a n d o mais não tivesse conseguido, o velho t inha ao menos lançado a duvida no espir i to de D. Maria a respeito do facto , que era para ella a pedra e escandalo contra José Manoel .

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C A P I T U L O V.

T R A N S T O R N O .

E m q u a n t o todas es tas cousas se passavão , u m triste successo, e da m a i s a l ta i m p o r t a n c i a , veiu a l -terar a vida de L e o n a r d o , ou t r a n s t o r n a - l a m e s m o : o c o m p a d r e cah iu g r a v e m e n t e e n f e r m o . A p r inc ip io a molés t ia pareceu cousa de pouca m o n t a , e a co-madre , q u e foi a p r i m e i r a c h a m a d a , p re t endeu q u e todo o i n c o m m o d o desapparece r i a d e n t r o de dous dias, t o m a n d o o doen te a lguns b a n h o s de a l e c r i m . Nada po rém se conseguiu com a recei ta ; o mal c o n -t inuou. R e c o r r e r ã o en t ão a um bo t icá r io conhec ido da c o m a d r e , q u e j u n t a r a ao seu mi s t e r , não s a b e m o s se com permissão das leis ou sem e l la , o mis te r d e medico.

E r a u m ve lho , filho do P o r t o , q u e aqu i se viera estabelecer ha m u i t o s a n n o s , e q u e a j u n t a r a no o f -ficio boas pa tacas . Apenas chegou e viu o d o e n t e declarou que em poucos dias o poria de p é ; bas tava que elle tomasse u m a s pí lulas q u e lhe ia m a n d a r da sua b o t i c a : e r ão u m san to r e m e d i o , s egundo diz ia , mas cus tavão u m b o c a d i n h o ca ro , p o r é m val ia

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a vida de um h o m e m . A c o m a d r e q u a n d o ouviu fal-l a r e m pílulas f ranziu a testa.

— P i ro la s , disse coms igo ; então o negocio é s é r i o ; e e u , que t e n h o m á fé com pirolas-, ainda não vi uma só pessoa que as tomasse que escapasse.

E ave rmelhá rão- se - lhe i m m e d i a t a m e n t e os olhos. O bot icár io re t i rou-se levando comsigo o Leonar-

do, q u e t rouxe as pílulas. A c o m a d r e , o lhando para ellas, abanou a cabeça.

— O r a , disse, eu pensei q u e elle lhe mandasse d a r a lguns b a n h o s ; cá por mim com alecrim havia d e p o l - o b o m .

A c o m a d r e t inha razão a té certo ponto , pois que no fim de t rês d ias , depois de fei tos todos os pre-paros rel igiosos, o c o m p a d r e deu | a lma a Deus .

D. Maria t inha sido c h a m a d a nesse mesmo dia , e compareceu com Luiz inha e com todo o seu batalhão de c r i a s ; t i nhão vindo t a m b é m a lgumas ou t ras pes-soas da v iz inhança .

Es ta vão todos sentados em u m grande canapé , na v a r a n d a , e conversavão mu i to en t re t idos sobre os objectos mais d ive r sos ; a lgumas acha vão mesmo na conversação mot ivo para boas r i sadas ; de repente ab r iu - se a porta do q u a r t o , e a comadre sahiu de den t ro com o lenço nos olhos, soluçando desabrida-m e n t e e repe t indo em altos g r i tos :

— Bem dizia eu que t inha pouca fé nas p i ro las ; es tá para ser o p r imei ro que eu as veja t omar e q u e e s c a p e . . . Coi tado do c o m p a d r e . . . tão boa crea-t u r a . . . nunca m e constou que fizesse mal a n inguém. . .

Estas pa lavras da comadre forão o signal de re-ba te dado á dôr dos q u e s e a c h a v ã o presentes ; desatou t u d o a c h o r a r , e cada qual o mais al to que podia. O Leona rdo soffreu um grande choque , e no meio

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d o seu a t o r d o a m e n t o enco lheu-se em cima d o c a n a p é com a cabeça sobre os joe lhos , chegando-se , natu-ralmente sem o q u e r e r , p o r q u e a dor o p e r t u r b a v a , o mais pe r to possível de Lu iz inha . C o n t i n u á r ã o as mais n o seu côro de p r a n t o d i r ig idos pela c o m a d r e ; mas não se con ten t avão só com o p r a n t o , sol tavão t ambém a l g u m a s vezes exc lamações em h o n r a d o d e f u n t o .

— S e m p r e foi m u i t o b o m viz inho, nunca t ive es-cândalos deí le , dizia u m a .

Era a v i z i n h a q u e augurava m á o fim ao L e o n a r d o , e com q u e m o c o m p a d r e br igára por es te m o t i v o umas poucas de vezes.

— Boa a l m a , dizia D. M a r i a , boa a l m a havia de ser c o m o el le q u e m quizesse t e r boa a l m a .

— E u que lidei com el le , dizia a c o m a d r e , é q u e sei o que elle v a l i a ; era u m a a l m a de s a n t o n u m corpo de peccador .

— B o m a m i g o . . . — E m u i t o t e m e n t e a Deus . . . P r o l o n g a d a esta scena po r a l g u m t e m p o , despe-

dirão-se a l g u m a s pessoas, o u t r a s ficarão a inda . F o i serenando o p r a n t o , e dah i a pouco 1). Mar ia , e n x u -gando a inda os o lhos , expl icava d e t a l h a d a m e n t e a u m a ou t r a s enhora q u e se achava j u n t o delia a his-toria genealógica de cada u m a de suas c r ias q u e se achavão presentes .

F i n a l m e n t e r e t i r á rão - se t odos , excep to D. Mar i a , a sua gente e a c o m a d r e , q u e es tava desde q u e o c o m p a d r e adoecera t o m a n d o conta da casa.

A p p r o x i m o u - s e a n o i t e ; acenderão-se velas j u n t o do d e f u n t o ; í izerão-se todos os m a i s a r r a n j o s do cos tume.

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D. Maria e a comadre começarão a conversar , po-r é m b a i x i n h o .

— E n t ã o , s enho ra , pr incipiou D. Maria , este ho-m e m não havia m o r r e r assim sem te r fei to seu tes-t a m e n t o ; pois elle não havia de que re r de ixar no m u n d o o a f i lhado ao desamparo para os ausentes se gozarem do que a elle lhe custou t an to t raba lho .

— A m i m , respondeu a comadre , nunca m e fal-sou em semelhan te cousa ; mas emf im , como isso são :á negocios de segredo. . . talvez.

— Seria bom p r o c u r a r - s e ; talvez em a lguma ga-veta por abi se a c h e ; é impossível que o defunto não dispuzes.se sua vida ; bem vezes lhe aconse-lhei eu seme lhan te cousa.

— T e m razão, D. Mar ia , eu acho t a m b é m que deve haver a lguma cousa.

E fo rão as duas t r a t a r de p r o c u r a r o tes tamento nas gavetas de u m a g r a n d e com moda que havia no q u a r t o do d e f u n t o . E m q u a n t o nisso se occupavão, Luiz inha e Leona rdo conversavão, ou an t e s cochi-chavão , como se diz vu lga rmen te . O que elles se dizião não posso dizel-o ao lei tor , po rque o não se i ; sem duvida a rapar iga consolava o rapaz da perda q u e acabava de soff rer na pessoa do seu a m a d o pa-d r i n h o .

F i n a l m e n t e as duas aebárão com effeito um tes-t a m e n t o , e ficárão com isso mui to sa t i s fe i tas .

Vol tá rão á varanda e so rp rende rão os dous no m e l h o r da sua conversa . A comadre vendo-os sor-r iu - se , e D. Mar ia , fazendo sem duvida a respeito do q u e estavão elles f a l l ando o mesmo ju izo que nós, disse en te rnec ida :

— Ella tem mui to b o m coração!

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N p ÍN \ )

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E o del le não é pe io r , r e spondeu a c o m a d r e . E acc rescen tou com in tenção : — Estava um bom casai .

O h ! s e n h o r a , disse D. Mar ia c o m ingenu i -dade, de ixe a m e n i n a , q u e a inda é m u i t o cedo. . . .

— T a m b é m não digo j á , mas a seu t e m p o . D. Maria sor r iu -se com u m sorr iso dé q u e a coma-

dre não desgos tou . Muda rão de conversa . Passou-se a no i t e ; no o u t r o dia sah iu o e n t e r r o

com todas as f o r m a l i d a d e s do es tylo . Depois diss t ra tou-se d e resolver u m a i m p o r t a n t e q u e s t ã o : p a r a a c o m p a n h i a d e q u e m iria o L e o n a r d o ? A a b e r t u r a do t e s t a m e n t o fe i ta nesre m e s m o dia resolveu a questão. O c o m p a d r e havia ins t i tu ido a L e o n a r d o por seu universa l he rde i ro . A c o m a d r e i n f o r m o u de s eme lhan t e cousa ao L e o n a r d o - P a t a c a , e es te a p r e -sentou-se para t o m a r con ta de seu filho. Não pare -ceu o r a p a z m u i t o sa t i s fe i to com a g r a ç a : não sei como ve iu - lhe á idéa aque l l e terr ível pon t apé q u e o fizera f u g i r de casa ; a l é m disso ra r í s s imas vezes vira depois disso a seu pa i , e es tava c o m p l e t a m e n t e des-acos tumado del le . Não hav ia po rém o u t r o r e m e d i o ; foi preciso obedecer e a c o m p a n h a l - o para casa , o n d e encon t rou sua p e q u e n a i r m ã , e q u e m a puzera no m u n d o .

O L e o n a r d o - P a t a c a começou a cu ida r no tes ta -mento c o m o h o m e m e n t e n d i d o na m a t é r i a , e e m pouco t e m p o deu volta a t u d o aqu i l l o .

C u m p r e n o t a r q u e se em vida d o c o m p a d r e cor -rião boatos q u e pa rec ião exage rados a respe i to d o q u e elle possuia , q u a n d o m o r r e u pôde ver-se q u e esses boatos t i n h ã o a inda ficado m u i t o á q u e m da ve rdade , pois de ixá r a elle um b o m par de mil c r u -zados e m especie . E n t r e g u e s a l g u n s legados de pouca

T O M . i i . 3

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m o n t a , e tc . t u d o o mais veiu a cah i r nas mãos do Leonardo-Pa taca corno herança de seu filho.

Nos pr imei ros dias t u d o forão flôres por casa de Leona rdo -Pa t aca , ainda que , para fol iar a verdade, desde a pr imei ra vista não sympa th i sá ra mui to o m o ç o L e o n a r d o com a cara do objec to dos novos e ú l t imos cu idados de seu pai .

A comadre assentou que devia subs t i t u i r ao com-padre no a m o r pelo a f i lhado , e de te rminou-se a vir m o r a r com elle em casa de L e o n a r d o - P a t a c a ; assim ficava t ambém reunida á sua l i iha, e á sua neta . O L e o n a r d o - P a t a c a , que era condescendente , esteve pelo caso, e reun iu-se desse modo á famí l ia toda .

T u d o fo rão flôres a p r inc ip io , como dissemos-, o moço L e o n a r d o e a c o m a d r e con t inuarão as suas vi-sitas por casa de í). M a r i a ; e d i g a m o l - o j á , o rapaz e a rapar iga ião pondo as mangas d e f ó r a ; verdade seja que José Manoel t raba lhava a j u d a d o do seu cego mest re-de-reza , e não perdia t a m b é m as esperanças.

Pouco t empo d u r o u o socego em casa de Leonar-do-Pa taca ; C h i q u i n h a (tal era o n o m e da filha da comadre) começou a e m b i r r a r com o seu filho ado-p t i v o ; este que , como dissemos, não sympath isára mui to com ei la, começou uma ba lbúrd ia de todos os peccados Todos os dias t ravavão-se por qua lquer pon ta , e lá ia tudo pelos ares. O Leonardo-Pa taca c a c o m a d r e fazião o papel de conci l iadores , mas os dous erão a m b o s a l tanad iss imos , e mu i t a s vezes o conci l iador sahia mal servido, porque aquel le a q u e m não dava razão se revol tava con t r a elle. Se e r a por exemplo a c o m a d r e , e dava razão a Leonar-

d o , acodia a filha que ixando-se de que sua mãi ;a abandonava para t o m a r o pa r t ido do a f i l hado : se pelo con t ra r io dava razão a C h i q u i n h a , acudia o

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Leona rdo q u e i x a n d o - s e de q u e desg raçado e r a o f i l h o sem m ã i , pois nunca achava q u e m lhe désse r azão . O u t r o t a n t o acontecia ao L e o n a r d o - P a t a c a q u a n d o se met t ia a apaz igua r os d o u s .

Os negocios assim ião m a l , pois mais dia m e n o s dia have r i a g r a n d e b a r u l h o e m casa.

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Ú

C A P I T U L O VI.

P E I O R T R A N S T O R N O .

Um dia o Leonardo recolbêra-se para casa mnito mortificado, pois que tendo ido visitar D. Maria es-tivera com eila longo tempo sem que Luizinha lhe tivesse apparecido; de maneira que lhe fora for-çoso no fim de algumas horas retirar-se sem vê-la. Quem já teve um namoro, por menos serio que seja, e que levou um logro destes; quem se viu obrigado a aturar por muito tempo a conversação de uma velha, tendo de concordar com cila em tudo e por tudo para não incorrer-lhe no desagrado, só com o fim de trocar com alguém um olhar rápido, um sorriso disfarçado ou outra cousa assim, e que por fim de contas nem isso mesmo conseguiu, ha de concordar que o Leonardo tinha toda a razão de estar ardendo com o que lhe succedêra, e o descul-paria de qualquer arrebatamento que na occasiao o acommettesse. Ha espíritos porém de tal maneira serrazinas, que se divertem em augmentar a irrita-ção alheia, e que quanto mais enfiado pilhão um in-feliz, tanto mais gostão de atirar-lhe alfinetadas.

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C h i q u i n h a , a a m a n t e de L e o n a r d o - P a t a c a , era de u m génio assim 5 e depois que moravão todos j u n -tos, não perdia u m a só dessas occasiões em v i r tude da an t ipa th ia que t inha ao rapaz , para fus t igar de l ingua ao pobre L e o n a r d o . Es te , de u m génio «0-lerico e pouco acos tumado a ser con t ra r i ado , ia ás nuvens com seme lhan t e c o u s a ; e se em occasiões o rd ina r i a s em que estava de bom h u m o r erão cons-t an tes as br igas em casa, calcule-se o q u e não faria nas occasiões como naquel la a que nos r e f e r imos , q u e estivesse cheio de razões, e en tão por que mo-t i v o ! V e n d o C h i q u i n h a e n t r a r o L e o n a r d o pela por ta den t ro de cara a m a r r a d a e sem dar — Deus te salve—a n i n g u é m , so r r iu - se com mal ign idade e concer tou a gargan te , d izendo en t r e d e n t e s :

— Melhor cara t raga o dia de a m a n h ã . L e o n a r d o , q u e percebera o q u e aqui l lo quer ia

dizer , fez u m gesto a r r e b a t a d o sentando-se e m u m a cadei ra , po rém com tan ta infe l ic idade , q u e a t i rou ao chão u m a a l m o f a d a de renda que se achava j u n t o d e l l e : com a quéda reben tá rão- se os tios, e u m a porção de bi l ros ro lou pela ca„sa. P o r ma io r infel i -c idade a inda a a lmofada era de C h i q u i n h a , e C h i -q u i n h a t inha g r a n d e s c iúmes pela sua a l m o f a d a . Levan tou- se el la do seu logar j á f e rvendo de r a i v a ; poz as mãos nas cadeiras , e ba lançando a cabeça á m e d i d a que fa l t ava , e x c l a m o u :

—• O r a dá-se u m desa fo ro do t a m a n h a gran-d e z a ? . . . vir da r u a com os seus azeites, todo esfo-gue teado , e de p ropos i to , e mui to de propos i to , f aze r -me o que estão vendo, só para me des fe i tea r , c o m o se fosse aqui u m dono de casa que pudesse desfe i tear a q u a l q u e r sem q u e nem para q u e ! • • • #

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L e o n a r d o ouviu t u d o sem i n t e r r o m p e r , procu-rando sopear a raiva ; e e m q u a n l o C h i q u i n h a tomava folego, r e spondeu com voz t r e m u l a e i n t e r -c o r t a d a :

— Não se me t t a com a m i n h a v ida , p o r q u e eu t a m b é m não m e i m p o r t o com a s u a ; se es tou com os aze i tes . . . .

V » A

— Ah b o m covado e m e i o ! a t a lhou C h i q u i -nha , ah b o r d o da n á o l . . . ah m a j o r V i d i g a l ! . . .

— J á lhe d i sse . . . . —- Qua l j á lhe disse, nem meio já l he disse ! . . .

n a m o r a d o sem v e n t u r a . . . . Es ta s pa lavras fizerão o ef fe i to de u m a faísca em

um bar r i l de polvora . Avançou o L e o n a r d o p a r a C h i q u i n h a com os p u n h o s ce r rados e e s p u m a n d o de cólera .

— Se m e diz mais meia p a l a v r a . . . . pe rco - lhe o respei to . . . . eu nunca lhe dei c o n f i a n ç a ; e apezar de ser a s enhora lá o q u e r q u e é de meu p a i . . . . p e r co -lhe o respe i to . . . .

— Você s e m p r e most ra q u e t e m raça de sa lo io , disse C h i q u i n h a e m p e r t i g a n d o - s e e sem r e c u a r um passo.

O L e o n a r d o - P a t a c a , q u e es tava n o i n t e r i o r da casa, acudiu ap ressado ao b a r u l h o , e veiu a c h a r os dous a inda em a t t i t u d e h o s t i l ; vendo o filho quasi não quas i a des fe i t ea r o a d o r a d o ob jec to de seus de r r ade i ro s af fec tos , não t r e p i d o u em d e s b a r a t a r com elle.

— Pedaço de mar io l a . . . . pensas que isto aqu i ó como a casa de teu p a d r i n h o donde sah i s t e . . . . q u e r o aqui m u i t o respe i to a t odos . . . . d o c o n t r a r i o . . . . se já u m a vez te dei u m p o n t a p é q u e t e fiz a n d a r m u i t o s

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a n n o s por fó ra , dou - t e agora out ro q u e te ponha longe daqu i para s e m p r e . . . .

— Nunca pensei , i n t e r rompeu Chiqu inha diri-gindo-se ao L e o n a r d o - P a t a c a , que rendo a fea r mais o caso ; nunca pensei q u e na sua companh ia se viesse a soff rer s eme lhan te cousa . . . .

— Não faças caso, m e n i n a , isto é u m pedaço de mar io la a quem hei de e n s i n a r ; por causa de nin-guém d o u - l h e eu uma rodada , se não por tua causa. . .

— P o r causa d e l i a ! . . . a ta lhou o r apaz ; t inha q u e v e r ! ha de lhe d a r bom p a g o ; tão bom como a c igana . . . .

— Mas nunca Ihé hei de d a r , acud iu Chiqu inha e n f u r e c i d a com este in su l to ; nunca lhe hei de da r o q u e lhe deu lua m ã i . . . .

Com isto o Leona rdo -Pa t aca desacoroçôou com-p l e t a m e n t e ; q u e d i luv io de a m a r g a s recordações não fizerão tão poucas palavras cahi r sobre sua ca-beça !

— Espera , m a l t r a p i l h o , espera que te ensino, exc lamou ve rme lho de cólera ; espera que te en-s ino . . . .

E e n t r a n d o r e p e n t i n a m e n t e no q u a r t o da sala, sahiu de lá a r m a d o com o espadim do u n i f o r m e , e investiu para o filho. Convém dizer q u e o espadim ia e m b a i n h a d o .

— Não se ponha a perder por m i n h a causa, ex-c lamou Ch iqu inha agga r rando-o pela camisola de chi ta com que elle estava vestido.

Era inútil po rém o medo de C h i q u i n h a , por-q u e o rapaz , vendo que o negocio ia-se to rnando fe io , t e n d o - l h e ficado u m te r ro r instictivo do pai depois daque l l e pontapé que nunca lhe sabi ra da

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m e m o r i a , t i nha - se pos to ao f resco na r u a , f e c h a n d o a ro tu la s o b r e s i .

— A h ! m a r o t o , disse a inda o L e o n a r d o - P a t a c a , que te havia d e s a n c a r . . . .

O L e o n a r d o q u e fug ia po r u m lado e a c o m a d r e que en t r ava po r o u t r o , pois est ivera ausen te d u -r an t e toda a scena. Apenas foi l a r g a n d o a m a n t i l h a e viu os dous ac to res q u e t i n h ã o f icado em scena ainda nas posições do u l t i m o q u a d r o , t r a tou de in -dagar qua l fô ra o d r a m a q u e se acabava de r e p r e -sen ta r .

— O r a foi u m a das c o s t u m a d a s d o a f i l h a d o dos seus a m o r e s , r e spondeu C h i q u i n h a , a inda n ã o so-cegada.

— P o r é m ia - lhe s a h i n d o cara desta vez, a cud iu L e o n a r d o - P a t a c a .

— Pois deveras , a t a l h o u a c o m a d r e i nd ignada ; pois devé ras o c o m p a d r e estava a r m a d o de espada para d a r no r a p a z ?

— Olá ! q u e levava tão d u r o c o m o o s s o ! Mas e n t ã o p o r q u e ? q u a n t a s mor t e s fez elle d e

u m a vez? onde é q u e pôz fogo na c a s a ? T r i s t e cousa é u m f i lho sem mãi ! . . . Aposto q u e se eu cá estivesse nada havia de s u c c e d e r ? . . .

— S i m , respondeu C h i q u i n h a , p o r q u e logo havia de t o m a r as dôres por e l le , s egundo é seu c o s t u m e . Ahi e s t á ; m u i t o s filhos teem m ã i , e e n t r e t a n t o ellas s e rvem- lhes para i s t o : t o m ã o as dores po r ou t ro s , e de ixão-nos de b a n d a .

— Q u a l ! h i s t o r i a s ! é q u e t u d o leva seu bocado de máo c a m i n h o .

— O h ! s enhora ! a t a lhou L e o n a r d o - P a t a c a , se is to vai ass im, não ha um m o m e n t o de socego nesta c a s a ; a c a b a d a u m a , começa o u t r a ; o q u e não ha

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C A P I T U I I O VII.

R E M E D I O A O S M A L E S .

O p o b r e r a p a z s a b i r a , c o m o d i s semos , pela p o r t a f o r a , e c a m i n h a n d o a p r e s s a d a m e n t e o lhava de vez em q u a n d o pa ra t r á s , pois ju lgava ve r a inda enr i s -t ado con t r a si o e spad im com q u e o pai o a m e a ç a r a , que parec ia com elle q u e r e r a c a b a r a o b r a q u e com um p o n t a p é c o m e ç á r a . A n d o u a b o m a n d a r por la rgo t e m p o , e foi d a r comsigo lá p a r a as b a n d a s dos C a j u e i r o s : cansado , o f fegan te , s e n t o u - s e s o b r e u m a s ped ra s , e q u e m o visse com a r t r i s t o n h o e pensat ivo j u lga r i a ta lvez q u e elle scismava na sua posição e no c a m i n h o q u e hav i a t o m a r . Pois e n g a -nava-se r e d o n d a m e n t e q u e m tal j u lgas se : pensava em cousa m u i t o ma i s a g r a d a v e l ; pensava em Lu iz i -n h a . P o u s a n d o ne l la não pod ia , é ve rdade , abs t e r - se de ver su rg i r d i a n t e dos o lhos o ter r ível J o s é Ma-noe l ; e isto expl icava ce r tos m o v i m e n t o s de i m p a -ciência q u e d e vez em q u a n d o se l he podião obser -var . T i n h a gasto l a rgo t e m p o nesta med i t ação , q u a n d o foi r e p e n t i n a m e n t e a c o r d a d o po r u m a s pou-cas de ga rga lhadas pa r t i da s de t r á s de u m a s m o i t a s

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vizinhas . Es t remeceu da cabeça aos p é s ; pareceu-lhe que lhe t i nhão lido os pensamen tos que lhe pas-sa vão pela men te e q u e se r i ão del le . Voltou-se, nada v i u ; guiado por u m r u m o r q u e ouv ia , co-meçou a p r o c u r a r , e sem g rande t r a b a l h o viu, atrás de u m a s moi tas um pouco a l tas , uns poucos de ra-pazes e r apa r igas , q u e , assentados em u m a esteira en t r e os restos de um j a n t a r , debruçavão-se curiosos sob re dous parceiros q u e , com um ba ra lho de cartas a m a r r o t a d o e su jo , desencabeçavão u m a int r incada pa r t ida de b i sca i As ga rga lhadas q u e ouvira ha pouco t inhão sido a consequência de um capote que u m delles acabava de levar . tV vista daquel les restos de um j a n t a r , q u e , se não parecia t e r s ido abun-d a n t e , fez- lhe l e m b r a r q u e sahi ra de casa na occa-sião de pôr-se a mesa , d e u - l h e e n t ã o o estomago u m a s fo rmidáve is bada ladas . T e n t o u en t re t an to vol ta r , po rque não se quer ia me t t e r em festa alheia, q u a n d o , l evan tando um dos jogadores a cabeça, conheceu nelle um seu an t igo c a m a r a d a , o menino q u e fôra sacr is tão da Sé. Ainda que apezar disso se quizesse r e t i r a r , j á era t a r d e , po rque com o movi-m e n t o q u e fizera, o j o g a d o r , d a n d o com elle, o havia t a m b é m conhec ido .

— Olá L e o n a r d o ! po rque carga d ' agua vieste p a r a r a estas a l tu ras ? Pensei q u e te t inha j á o d iabo l a m b i d o os ossos, pois depois daquel le ma ld i t o dia em que nos vimos em pancas por causa do mes t re de ce remonias , nunca mais te puz a vista em cima.

L e o n a r d o chegou-se ao r ancho , e t rocados os c o m p r i m e n t e s com o seu an t igo c a m a r a d a , foi con-v idado a serVir-se de a lguma cousa d o que a inda ha-via. Quiz fazer ce r emon ia , mas não estava em cir-c u n s t a n c i a s d i s so : u m a das moças serviu-o, e em-

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q u a n t o con t i nuava a b isca , c o m e u elle a b a r r e t e fóra.

— Escor rop icha essa g a r r a f a q u e ah i res ta , disse-lhe o a m i g o , e vê se o v inho tem o m e s m o gosto daquel le q u e em o u t r o t e m p o e s c o r r o p i c h a v a m o s jun tos das ga lhe tas da Sé , com desespero de meu pai e f u r o r d o m e s t r e - d e - c e r e m o n i a s .

Q u a n d o L e o n a r d o acabou d e c o m e r , a c a b a r ã o t a m b é m os d o u s pa rce i ros de j o g a r ; c h a m o u en tão o amigo á p a r t e , e p e r g u n t o u - l h e :

— E n t ã o q u e gen te ó es ta com q u e t e a c h a s a q u i de suc ia ?

— E m i n h a gente . — T u a g e n t e ? — S i m , pois não vês aque l la moça m o r e n a q u e

ali e s t á ? — S i m , e e n t ã o ? —- O r a ! . . . — P o i s tu casas te? — N ã o . . . m a s q u e t e m isso? — A h ! . . . es tás de m o ç a ! — E t u ? — E u . . . o ra n e m t e d i g o . . . m o r r e u m e u p a d r i -

nho . — S i m , ouv i d i ze r . — F u i pa ra a casa d e m e u p a i . . . e de r e p e n t e ,

ho je m e s m o , b r igo lá com a cuja to l i e ; el le c o r r e de espada a t r á s de m i m , e eu s a f o - m e . P a r e i ali a d i a n -te , e as ga rga lhadas q u e vocês a q u i d a v ã o

— Sei d o r e s t o . . . E agora tu não t en s pa ra onde i r ?

— H o m e m , eu ia v e r . . . — V e r o q u e ? — V e r po r a h i . . .

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— Por ah i , por o n d e ? — Nem mesmo eu sei . . . . E desa tarão os dous a r i r . Q u a n d o temos apenas

1 8 a 2 0 annos sob re os h o m b r o s , o que ó um peso a inda mui to leve, desprezamos o passado, r imo-nos do presente , e entrega mo-nos descuidados a essa confiança cega no dia de a m a n h ã a , que é o melhor apanagio da mocidade .

— Sabes que m a i s ? cont inuou o amigo do Leo-na rdo , vem comnosco, e não te has de arrepender .

— Mas com vocês, para onde? — Para o n d e ? Sem duvida a lgum par t ido me-

lho r tens a escolher? queres fazer ce remonias? Começava a cah i r a noi te . — Vamos levantar a sucia, minha gente , disse

u m dos convivas. — S i m , vamos. — Nada , inda n ã o : Vid inha vai can ta r uma mo-

d inha . — S i m , s im, u m a modinha p r i m e i r o ; aqueHa: « Se os meus suspiros pudessem. » — Não, essa não , cante antes a q u e l l a : « Quando

as glorias q u e eu gozei. » — Vamos lá, decidão, respondeu uma voz de

moça af lautada e languida. Vidinha era uma mula t inha de 1 8 a 2 0 annos, de

a l tura r e g u l a r , h o m b r o s largos, pei to a l teado, cin-t u r a fina e pés p e q u e n i n o s ; t inha os olhos muito pre tos e mu i to vivos, os lábios grossos e húmidos, os dentes alvíssimos, a falia era um pouco descan-sada , doce e a f inada .

Cada phrase q u e profer ia era in te r rompida com u m a r isada prolongada e sonora , e com um certo ca-

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hido de cabeça pa ra t r á s , talvez gracioso s e n ã o t i -vesse m u i t o de a f e c t a d o .

Assentou-se finalmente q u e ella can ta r i a a mo-dinha : « Se os meus suspiros pudessem. »

T o m o u V i d i n h a u m a viola , e can tou a c o m p a n h a n -do-se e m uma toada ins íp ida ho je , porém de g r a n d e acei tação n a q u e l l e t e m p o , o s e g u i n t e :

Se os m e u s susp i ros p u d e s s e m A o s t eus ouv idos c h e g a r , Ve r i a s q u e u m a pa ixão T e m p o d e r de assass ina r .

N ã o são de zelos Os m e u s q u e i x u m e s , N e m de c i ú m e A b r a z a d o r ; S ã o d a s s a u d a d e s Q u e m e a t b r m e n t ã o N a d u r a a u s ê n c i a De m e u a m o r .

N i " *l * *| ' . v •

O L e o n a r d o , q u e talvez h e r e d i t a r i a m e n t e t i n h a quéda pa ra aquei las cousas , ouviu b o q u i a b e r t o a m o d i n h a , e ta l impressão lhe causou , q u e depois disso n u n c a ma i s t i rou os o lhos de cima da c a n t o r a . A m o d i n h a foi a p p l a u d i d a c o m o c u m p r i a . L e v a n -tárão-se en t ão , a r r u m a r ã o tudo o q u e t i n h ã o levado em cestos, e puzerão-se a c a m i n h o , a c o m p a n h a n d o o L e o n a r d o o f a r r a n c h o .

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C A P I T U L O VIII.

N O V O S A M O R E S .

Chega rão todos depois de longo c a m i n h a r , e q u a n -do já b r i l hava nos céos um desses lua res magní f icos que só fazem n o Bio de J a n e i r o , a u m a casa da r u a da Va l i a . Naque l l e s t e m p o s u m a noi te de lua r e r a mui to a p r o v e i t a d a , n i n g u é m ficava em casa ; os que não sah ião a passeio sen tavão-se em es te i ras ás por tas , e ali passavão longas h o r a s em descanses , em cêas , em conversas , m u i t o s d o r m i ã o a no i t e in~ teira ao r e l e n t o .

C o m o os nossos conhec idos já t i n h ã o d a d o u m grande passeio, a d o p t á r ã o o e x p e d i e n t e das es te i ras á po r t a , e c o n t i n u á r ã o assim pela no i t e em d i a n t e a sucia e m q u e hav i ão gas to o d i a , pois aqu i l lo q u e Leona rdo vira nos Ca jue i ro s , e e m q u e t a m b é m to-m á r a pa r t e , e r a o final de u m a pa tuscada q u e hav ia começado ao a m a n h e c e r , d e u m a dessas r o m a r i a s consagradas ao p raze r , q u e e rão en t ão tão c o m m u n s e t ão e s t imadas .

Agora devemos d a r ao le i tor c o n h e c i m e n t o d a nova gen te , no me io da qua l se a e h a o nosso Leo-

TOM. II . 4

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nardo . Se nos pudessemos soccorrer aqui do amigo José Manoel , sem duvida nos desfolhar ia elle toda a a rvore genealógica dessa famíl ia a quem o amigo do Leona rdo chamava a sua çjente: porém contentem-se os lei tores com o presente sem indagar o passado. Sa ibão pois que a famíl ia era composta de duas ir-mãs , ambas viuvas, ou que pelo menos dizião sel-o, u m a com tres filhos e ou t ra com tres filhas; pas-sando qua lque r das duas dos seus quaren ta e tantos; a m b a s gordas e excessivamente parecidas. Os tres filhos da pr imei ra erão tres formidáveis rapagões de 2 0 annos para c ima, empregados lodos no T r e m : as t res filhas da segunda erão Ires rapar igas desempe-nadas , orçando pela mesma idade dos pr imos, e bo-ni tas cada uma no seu genero. Uma delias já os lei tores conhecem ; é Vid inha , a cantora de modi-n h a s ; era solteira como uma de suas i r m ã s ; a ul-t ima era t a m b é m sol te i ra , porém não como estas duas . O amigo do Leonardo que expl ique o que isso quer dizer , e expl icando dará t a m b é m a conhe-cer o que era elle p ropr io na f amí l i a . Os mais que se achavão presentes erão pela ma io r par te vizinhos que se reunião para aquel las sucias, que erão tradi-cionaes na famí l ia .

Q u a n d o chegarão á casa, o amigo do Leonardo tomou as duas velhas de pa r te , e começou a conver-sar com ellas, sem duvida a respei to do Leonardo, pois que o olhavão todos tres d u r a n t e a conversa ; e m e s m o quem tivesse o ouvido at i lado teria escutado ás velhas estas p a l a v r a s :

— Coi tado do m o ç o ! . . . — Ora vejão que pai de más e n t r a n h a s ! . . . O u t r o qua lque r que tivesse mais idade, ou antes,

falia tido claro, mais juizo e out ra educação, enver-

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gonhar - se -h ia ta lvez m u i t o d e acha r - s e na posição em q u e se a c h a v a o L e o n a r d o , p o r é m elle nem nisso pensava , e o q u e ó mais , n e m m a i s pensava naqui l lo que a t é en t ão lhe não sahia da cabeça , islo é, e m Luizinha d e u m lado e Jo sé Manoel d o o u t r o : agora não via senão os o lhos negros e b r i l h a n t e s , e os alvos dentes d e V i d i n h a ; não ouvia senão o éco da m o -dinha q u e el la can tá ra . Es tava pois e m b e b i d o n ' u m extas i c o n t e m p l a t i v o .

No m a i s pensa r i a q u a n d o lhe res tasse t e m p o . Mal se hav i ão todos s e n t a d o em u m a larga es te i ra

jun to á so le i ra da po r t a sob re a ca lçada , o L e o n a r d o propoz logo q u e se can tasse u m a nova m o d i n h a .

— Q u a l . . . r e spondeu V i d i n h a a c o m p a n h a n d o este qual da sua c o s t u m a d a r i sada 5 es tou j á tão cansa-d a . . . q u e nem posso!

-— O r a . . . o r a . . . d isserão u m a s poucas d e vezes. Além do cos tume das r i sadas t i n h a V i d i n h a u m o u t r o , e e ra o de começar s e m p r e t u d o q u e l i n h a a dizer por u m qual m u i t o a c c e n t u a d o ; r e s p o n d e u a inda p o r t a n t o :

— Q u a l . . . pois se eu t a m b é m j á can te i t udo q u e sabia . Q u a l , meu D e o s ! nem eu posso m a i s !

—• Ainda não c a n t o u a m i n h a f avo r i t a , d i sse u m dos presentes ,

— Nem a m i n h a , disse ou t ro . — E u t a m b é m , acc rescen tou o u t r o , a i n d a não lhe

pedi aque l la cá do pei to . — Q u a l , m e u D e o s ! onde é q u e isto vai p a r a r ! , — O r a , m a n a , não se faça de boa. •— Ai , c r e a t u r a , d isse u m a das velhas, quere i s q u e

vos reze um responso para can t a rdes u m a m o d i n h a ? L e o n a r d o , vendo a sua causa advogada por tan tas

vozes, conservou-se ca l ado . T e n t a d o s ma i s a lguns

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eidos, toda a his tor ia dos infelizes amores do Leo-na rdo com a Maria , todas as d i a b r u r a s do menino que ella de ixara e de que o p a d r i n h o tomara c o n t a : passou depois a r e la ta r todo o occorr ido com a c i -g a n a , e voltou de novo á his toria da pr isão, q u e con tou e recon tou vinte vezes, sem lhe escapar a mais pequenina c i r cums tanc ia . No fim tornou a f a z e r o seu pedido , a que o velho p rome t t eu sa t i s fazer , e en tão sab iu ella recebendo no saguão mui tos com-p r imen tos e sorr isos maliciosos. Na poria por onde sab iu es lava encos tado u m cadele q u e lhe d i s se :

— E s t i m o q u e fosse feliz-, no dia do bapt i sado não se esqueça da gente .

— Ar renego ! foi a única resposta que ella d e u , e passou.

C o m o o velho tenente-coronel conhecia a coma-d r e e o L e o n a r d o , e po rque se interessava por elle, o le i tor saberá mais para d ian te .

Esse conhec imen to era ant igo , e o L e o n a r d o ape-nas se achou na cadêa l embrou se d;s protecção que o velho lhe podia p res ta r em s e m e l h a n t e a p e r t o ; m a n d o u por um collega c h a m a r a c o m a d r e , e a en-carregou da missão de ir ter com elle, missão q u e ella acei tou de bom grado , e que d e s e m p e n h o u , se-g u n d o v imos , s a t i s f ac to r i amen te .

O ve lho , apenas a c o m a d r e sab iu , tomou o cha-péu a r m a d o , poz a espada á cinta e sab iu , depois de ter con tado aos companhe i ro s o que succede a quem vai t o m a r f o r t u n a . Um delles, q u e era c rédulo a té ao en thus i a smo a respeito de fei t içar ias , ficou m u i t o ind ignado com o caso, e p rome t t eu t a m b é m empe-nhar-se pelo Leona rdo .

J á vê pois o lei tor q u e o negocio não estava mal p a r a d o , e em breve saberá o resu l tado de. t udo isto.

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na rdo t o m a r a conta de un ia das p r i m a s , e q u e deste modo v inha a haver t r e s p r imos para d u a s p r i m a s , isto é , o excesso de u m p r i m o . A vista d is to o nego-cio já se t o r n a ma i s compl i cado . Pois p a r a e n c u r t a r razão, sa iba-se q u e hav ião dous p r imos p re t enden te s a uma só p r i m a , e essa e ra V i d i n h a , a ma i s bon i ta de t o d a s ; sa iba-se ma i s q u e u m era a t t e n d i d o e ou -t r o d e s p r e z a d o : logo, o amigo L e o n a r d o terá des ta vez de l u t a r com d u a s con t r a r i edades em vez de u m a .

Mas p o r o ra d e nada sabia el le, e en t regava-se t r a n q u i l l o ás suas emoções sem se l e m b r a r d o q u e qua lque r se l e m b r a r i a , q u e e n t r e p r i m o s e p r i m a s ha assim u m ce r to d i r e i t o m u t u o e m negoc io de a m o r , que m u i t o p re jud ica a q u a l q u e r p r e t enden t e e x t e r n o .

Gas t á r ão g r a n d e pa r t e da noi te ali s en tados , e t r a -tá rão d e r eco lhe r - se já m u i t o t a r d e .

/

O a m i g o do L e o n a r d o , a q u e m daqu i e m d i a n t e t r a t a r e m o s pelo seu p r o p r i o n o m e d e T h o m a z com o a p p e l l i d o — d a S é — a m b o s h e r d a d o s d e seu pa i , dec la rou q u e o s e u a m i g o ficava ali p o r a q u e l l a n o i t e , por j á ser m u i t o t a r d e ; qu iz ass im p o u p a r - l h e u m v e x a m e , e mos t rou n is to ser b o m a m i g o .

Agora q u e o nosso L e o n a r d o es tá ins ta l lado em quar te l s eguro , vamos occupa r -nos d e a l g u m a cousa de i m p o r t a n t e q u e h a v í a m o s de ixado suspensa .

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J O S É M A N O E L T R I U M P H À .

A c o m a d r e co r r ê r a t o d a a c i d a d e , e em p a r t e a lguma e n c o n t r a r a o L e o n a r d o ; e m q u a n t o cançava -se assim a p r o c u r a l - o , estava el le t r a n q u i l l o e des -cansado m i r a u d o - s e nos o lhos de V i d i n h a , r e g a -lando-se a ouv i r m o d i n h a s , c o m o s a b e m os le i tores , sem se l e m b r a r do q u e ia pelo m u n d o .

A p o b r e m u l h e r , depo is de m u i t o c a n ç a d a , foi ter á casa de D. Mar i a . E r a j á no i t e f e chada .

Q u a n d o el la en t r ava s ah i a o mes t re -de - reza q u e acabava de d a r a sua l ição ás c r ias de casa . A co-m a d r e ha a l g u m t e m p o q u e andava desconf iada d o m e s t r e - d e - r e z a ; c o m b i n a n d o o q u e p o r abi se dizia do seu c red i to com cer tas cousas q u e t i v e r a occa-sião de p r e senc i a r , es tava quas i a conc lu i r q u e e ra elle emissá r io de José Manoel j u n t o á cô r t e d e 1>. Mar i a . Não gostou p o r t a n t o d o e n c o n t r o , e doeu -Ihe o cabel lo vê-lo s a h i r áquel la h o r a , pois q u e de o r d i n á r i o as lições não se d e m o r a vão a té tão t a r d e 5 e pa ra m e t t ê l - o á b u l h a d i s s e - l h e :

C A P I I l l I O I X

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-—A lição hoje foi compr ida , devo to . . . as rapa-rigas parece que gostão mais da cambetice do que da reza.

— Não, respondeu o velho com sua voz fanhosa , ellas não vão ma l , empacão em a lguns logares, mas s e m p r e vão i n d o ; bem sabe t ambém que sempre t rago comigo o santo remedio .

E afagou o cabo da palmatór ia com que sempre andava a r m a d o .

— A h ! então esteve o devoto de conversa ; gosta t a m b é m de d a r á l ingua . . .

Não desgos to ; mas t a m b é m não digo senão aqui l lo que sei, isto é , aqui l lo que o u ç o ; os outros gaslão o seu t empo a ver c a ouv i r ; eu , corno não posso senão ouv i r , emprego a f a liar o que os mais empregão a v e r ; fal lo, e failo m u i t o ; mas que que r se m e sobra t empo para isso; e demais , bem sabe q u e não é t r aba lho que cance . Meus pais erão Al-garves, e eu não que ro desment i r a minha pater-n idade .

— Então já sei que ho je desen te r rá rão-se mortos e en te r rá rão-se vivos; pois eu não posso fazer ou t ro t a n t o , porque vou aqui mui to e mui to zangada de minha vida. Se o devoto, como é homem que mui to gyra por toda esta c idade , souber por ahi noticias de meu af i lhado Leonardo , queira vir da r -me par te , pois sah iu -nos elle hoje de casa lá por causa de u m a s his tor ias , e não sei por onde andará dando com os ossos. *

—- O r a , isto fica por minha conta ; n ã o ha nada ma i s fácil do que d a r com elle.

E aqui t e rminou esta conversa que t inha Jogar na porta da rua , e com a qual não ficára a comadre m u i t o contente . D. Maria , que ouvira tudo , veiu ao

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encont ro da c o m a d r e , e fo i - lhe logo d izendo an t e s de de lhe d a r t e m p o de t i r a r a m a n t i l h a :

— E n t ã o já o rapaz não está em casa? S e n h o r a , aqui l lo é gênio , nasceu com elle, e com elle h« de ir á s e p u l t u r a . B e m m e dizião o q u e elle e r a , e apezar d o seu a r sonso nunca lhe fiz fé .

— Adeus q u e m e está a s e n h o r a a pô r cu lpas em q u e m não as t em ; o r apaz desta vez t em toda a razão

— O r a , h i s to r i a s da vida ; isso diz você p o r q u e o es t ima c o m o se fosse sua mãi ; m a s vá com esta que eu lhe d i g o : os rapazes de agora a n d ã o de ca-beça l evan tada . . . Miis o d e f u n t o p a d r i n h o — D e u s lhe fa l le n ' a i m a , — foi o p rop r io que leve culpa de tudo isso com aque l l a s f u m a ç a s de C o i m b r a q u e lhe m e t t e u na cabeca . . .

— Mas, senhora de Deus , se o b r u t o do pai a té chegou a co r rê - lo de espada na mão . . .

— Q u e tal não far ia e l l e ! mas q u e t inha isso? o pai não o havia e s q u a r t e j a r . . . po r c e r t o , q u e eu bem lhe conheço o g ê n i o ; aqu i l lo e ra r a i v a , e havia d e p a s s a r ; devia e l le s u j e i t a r - s e . . . s e m p r e é seu pa i .

— Com a Vi rgem San ta ! pois se t u d o isso foi por u m a cousa de n a d a , por causa de u m a a l m o -fada de r enda . . . I s to é cousa em q u e se creia ? ! . . . E agora pa ra o n d e é q u e ha de i r aque l l e c o i t a d o ? . . .

—- Ha de e s t a r por abi m e l t i d o em a lgum f a d o de c i g a n o s ; não se l e m b r a d o q u e elle fez q u a n d o o p a d r i n h o e ra v i v o ?

— O r a , cr iançadas . .* pa ra q u e fa l l a r n isso ? Es t e d ia logo ia c o n t i n u a n d o in t e rmináve l s o b r e

o m e s m o a s s u m p t o , q u a n d o D. Mar i a , m u d a n d o re -p e n t i n a m e n t e d e conversa , d i sse á c o m a d r e :

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— Ora é verdade , sente-se para cá que temos contas q u e a j u s t a r . . .

— C o n t a s ! . . . ~ E mui to compr idas , começo por dizer , accres-

centou D. Maria , que não parecia estar nesta occa-sião de mu i to bom h u m o r ; começo por dizer-lhe m e s m o na bochecha que q u a n d o f ô r á confissão este anno t r a t e de desobr igar-se de um grande pec-cado que c o m m e t t e u .

— E eu q u e já não t enho poucos : más então o q u e é ?

— É um aleive, s enhora , u m aleive mu i to grande que levantou a pessoa que tal não merec ia .

A comadre não precisou de mais nada para co-nhecer onde é que tudo equi l lo ia p a r a r ; o aleive mais moderno de q u e a accusava. a sua consciência bem sabia ella qual era . Começou a ver t udo claro como o d i a ; viu José Manoel just i f icado comple-t a m e n t e aos olhos de 1). Maria a respeito da historia do r o u b o da moça no Ora to r io de Ped ra , e viu t a m -bém como mediane i ro dessa . just if icação o cego mes t re -de- reza . F icou pois visivelmente incommo-d a d a ; volvia-se de um para ou t ro lado, como se estivesse cheia de espinhos a banqu inha em que es-tava sentada , e teve um for te accesso de tosse quando D. Maria acabou de p ronunc ia r aquellas u l t imas palavras .

— T u d o q u a n t o m e disse a respeito de José Ma-noel naquel la his toria do roubo da moça, cont inuou 1). Maria fazendo-se v e r m e l h a , o que era nella máo s ignal , é falso, e mu i to falso. Sei isto de parte mui to ce r t a . . .

Novo accesso de tosse acommet teu a comadre .

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— Pois o lhe , p roseguiu D. Mar i a , t i n h a eu d a d o todo o c red i to , t a n t o q u e havia r o m p i d o jtor u m excesso com o p o b r e d o h o m e m , m a s n ã o cáio n ' ou t r a ; esta me serviu de e m e n d a .

A c o m a d r e v iu q u e o v e n t o se l he ia t o r n a n d o a b s o l u t a m e n t e c o n t r a r i o ; c o m p r e h e n d e u q u e D. Maria es tava m u i t o bem i n f o r m a d a , e q u e inut i l seria q u a l q u e r sus t en tação q u e p re tendesse fazer de tudo q u a n t o havia a v a n ç a d o ; isso só servi r ia p a r a a g g r a v a r - l h e a posição.

F o r j o u pois r e p e n t i n a m e n t e u m novo p i a n o e disse:

— Não m e dá nada de novo , s enhora ; sei m u i t o bem d e t u d o ; o h o m e m está nesse negocio c o m o P i l a tos no Credo .

— Mas l embre - se q u e m e hav ia d i to q u e t i n h a visto com seus p ropr ios o lhos .

— A h ! s e n h o r a , e ra o d i a b o p o r e l l e ; n u n c a vi cousa ass im tão p a r e c i d a . O u t r o dia p o r é m s o u b e de t u d o , e agora estou a r r e p e n d i d a .

— Mandei po r isso c h a m a r o pobre h o m e m , con-t i n u o u D. Mar ia , q u e de o f f e n d i d o q u e es tava com o m o d o por q u e eu o t r a t ava cus tou m u i t o a v i r , e a b r i - m e aqu i com el le .

E u m a cousa lhe d igo , é q u e a c o m a d r e não es tá b e m n o n e g o c i o ; el le e x p o z - m e cer tas cousas . . . a que eu e m t i m não qu iz d a r c red i to .

— Po i s e n t ã o a s e n h o r a d isse- lhe q u e eu é q u e . . . — - N ã o fu i eu q u e m lhe disse ; e l le j á o s a b i a , e

não e r a possível n e g a r - I h ' o . F o i en t ão q u e el le m e quiz a b r i r os o lhos sob re o u t r o s p o n t o s . . .

A c o m a d r e , q u e via todo o ca ldo e n t o r n a d o n a -quel les outros pontos, t r a t ava de desv ia r a conve r -

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sação, fazendo que não dera a t tenção a essas ullU mas palavras .

— Mas então , pe rgun tou , por quem foi que soube como t inha sido o negocio? que ro ver se combina cá com o que sei.

— Ainda ha pouco acabou de sahi r daqui q u e m m e pôz o negocio todo em pratos l impos.

— A h ! disse a comadre . E mordeu os beiços, fazendo um gesto que quer ia

d i z e r : « nunca me e n g a n e i ! » D. Maria proseguiu contando á c o m a d r e que

tendo falindo em semelhan te negocio ao mest re-de-reza, elle lhe havia negado tudo q u a n t o esta lhe dissera a respeito de José Manoel ; que mui to t empo lu tara com o velho para que lhe dissesse o que sabia a respei to e em que fundava a denegação que f az i a ; que finalmente, depois de g rande resis tência, t i n h a - l h e elle t razido á casa, mesmo no dia antece-den te , o pai da moça, que tudo confessára , decla-r a n d o a té o nome da pessoa com quem se achava sua í i l ha , q u e elle j á conhecia , e com q u e m t inha fe i to as pazes.

— E exac tamen te o que eu sabia , disse a coma-dre no fim da narração-, foi tudo assim mesmo. Veja , s enho ra , a que está suje i ta a gente nesta v ida : a levantar falsos aos mais .

Agora i n f o r m e m o s ao lei tor que tudo que se aca-bava de passar t inha s ido com effeilo obra do mes-t re-de-reza . Pouco a pouco se t inha ins t ru ído do que se passava em casa de D. Maria a respeito do seu cl iente José Manoel ; t inha conseguido saber quem havia a r m a d o a i n t r i ga ; indagou t ambém o que se passava em casa de Leonardo-Pa taca ; e como lá se foliava um pouco al to a respeito das pretenções de

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Leonardo, combinando umas cousas com ou t ra s , chegarão á conclusão cert íssima daqui l lo que com effeilo se passara .

D. Maria pareceu da r credi to ao a r r epend imen to da comadre , e começou- lhe a ap lacar o h u m o r um pouco desabr ido em que se achava.

Vol tarão á questão da sabida do Leonardo de casa, e desta vez já I). Maria não se most rou tão inflexível para com o rapaz. Ent re tan to á comadre não lhe sah i rão da cabeça aquellas palavras de D. Mar ia : « abriu-me, os olhos sobre outros pontos; » e depois que viu D. Maria mais apaziguada, tentou c h a m a r de novo a conversa para esse ponto, e como que pedir explicações. Ella previa a significação daquel las palavras , sem duvida n e n h u m a que se re fe r ião ás suas pretenções ou ás de seu af i lhado sobre Lu iz inha , porém quer ia saber as côres corn que esse negocio t inha sido pintado a D. Maria por José Manoel .

Isso foi - lhe porém fa ta l , porque soube (o que lhe não foi nada agradavel) que o negocio estava mui to mal parado a respeito do seu a f i lhado , e pelo contrar io mui to ad ian tado a favor do seu adversá-rio. D. Maria, depois de declarar que José Manoel se t inha que ixado da comadre , a t t r ibn indo- lhe tudo que se havia passado, que não era mais do que u m a intriga urdida com o lim de o apa r t a r de sua casa, porque t i nhão sobre elle cahido suspeitas, que con-fessava jus tas , accrescentou f inalmente que José Manoel, comple tamente just i f icado, graças á in ter-venção do mestre-de-reza, acabára por Mie d a r a en-t ende r a lguma cousa a respeito de Luiz inha , o que D. Maria confessou não lhe ter sido to ta lmente des-agradavel , porque e m f i m , segundo al legava, José

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Manoel era um h o m e m sisudo e de juizo, t inha cor-r ido m u n d o , e não era n e n h u m a criançola (esta palavra doeu á comadre ) que não fosse capaz de t r a t a r bem de u m a moça . A comadre descoroçoou comple tamen te com estas u l t imas dec la rações ; po-rém o que fazer na occasião? Ella mesma t inha ha pouco confessado o risco q u e se está a cada mo-m e n t o de ser in jus to com o p rox imo , e não podia sem risco aven tu r a r , pelo menos naquel la occasião, a lguma cousa contra José Manoel , t an to mais que tão mal se havia sahido da pr imei ra intr iga que ar-m á r a . Contentou-se pois com repet i r uma observa-ção que I). Maria mesma lhe havia feito ha pouco t empo , e disse, re fer indo-se a L u i z i n h a :

— Gen te , pois aquel la criança já está para e s sas ! . . .

— S im, respondeu D. Maria , está a inda verdezi-f iba , mas t ambém isso não é sangria desatada.

A comadre respi rou , pois viu que ainda havia t empo a g a n h a r .

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C A F I T U I I O X. • I - ' ~ • V ? - < • EEÍ V * V

0 A G G R E G A D O

Passá rão-se ass im a l g u m a s s e m a n a s : L e o n a r d o , depois de a c a b a d a s todas as ce remonias , foi dec la -r a d o aggregado á casa de T h o m a z da S é , e ab i con t inuou c o n v e n i e n t e m e n t e a r r a n j a d o . N i n g u é m se a d m i r e da f ac i l idade com q u e se fazião s e m e l h a n -tes c o u s a s ; no t e m p o em q u e se passavão os factos q u e vamos n a r r a n d o nada havia mais c o m m u m do q u e t e r cada casa u m , d o u s , e ás vezes ma i s agg re -gados.

E m cer tas casas os aggregados e rão m u i t o ú te is , po rque a f amí l i a t i rava g r a n d e provei to de seus serviços, e já t i vemos occasião de d a r e x e m p l o disso q u a n d o c o n t á m o s a h is tor ia do finado p a d r i n h o de L e o n a r d o ; o u t r a s vezes p o r é m , e es tas e r ão em ma io r n u m e r o , o agg regado , r e f i nado vad io , e ra u m a ve rdade i ra paras i ta q u e se p r e n d i a á a rvo re f a m i l i a r , q u e lhe par t ic ipava da seiva sem a j u d a l - a a d a r os f r u c t o s , e o q u e é ma i s a inda- chegava m e s m o a d a r c a b o de l i a . E o caso é q u e , apeza r d e t u d o , se na p r i m e i r a hypo these o e smagavão com o

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peso de mil exigencias, se lhe bat ião a cada passo com os favores na ca ra , se o f i lho mais velho da casa, por exemplo , o tomava por seu diver t imento, e á menor e mais justa queixa sal tavão-lhe os pais em cima tomando o par t ido de seu filho, no segundo a tu ravão q u a n t o desconcer to havia com paciência de m a r t y r , o aggregado tornava-se quasi rei em casa, p u n h a , d i spunha , castigava os escravos, ra-lhava com os (ilhos, in te rv inha em fim nos mais par t icu la res negócios.

Em qual dos do is casos estava ou viria es ta r em breve o nosso amigo Leona rdo? O leitor q u e o de-cida pelo que se vai passar.

Pr inc ip iemos por dec la rar que as duas velhas i rmãs t inhão concebido desde o p r imei ro momento uma decidida sympath ia por el le, e era esse o único ponto por onde o podemos ju lgar um pouco feliz: se a cada passo encontrava conl rar iedades e ant ipa-th i a s , t a m b é m lhe não falta vão por cont raba lanço sympa lh i a s e favores. Isto já era meio caminho andado para q u a l q u e r pro jec to que elle formasse , qua lque r in tenção que tivesse ou desejo q u e se lhe despertasse. Mas note-se que para não f a lha r a lei das compensações , que pesava cons tan temente sobre el le, logo o projecto, a intenção e desejo que teve succedeu ser a respeito de uma cousa que já t inha desper tado igual projecto, intenção c desejo em duas ou t r a s pessoas, o que equivale a dizer-se, como já o f izemos, que t inha elle de lu ta r com duas difficul-dades .

* • ' . • * •

Vidinha era uma rapar iga que t inha tan to de bo-ni ta como de movediça e leve : um soprozinho, por b r ando que fosse, a fazia voar , o u t r o de igual natu-reza a fazia revoar , c voava-e revoava na direcção de

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quan tos sopros por ella passassem ; isto q u e r dizer , em l inguagem chã e despida dos t re je i tos da r h e t o -r ica , que ella era u m a formidável n a m o r a d e i r a , como ho je se diz, para não dizer l a m b e t a , como se dizia n a q u e l l e t empo . P o r t a n t o não fo rão de modo a l g u m mal recebidas as p r ime i r a s finezas do L e o n a r d o , q u e desta vez se t o rnou mu i to mais d e s e m b a r a ç a d o , q u e r po rque j á o negocio com Luiz inha o tivesse desas-nado , q u e r p o r q u e agora fosse a pa ixão mais f o r t e , e m b o r a esta u l t ima bypo these vá de e n c o n t r o á opi -n ião dos u l t r a - r o m a n t i c o s , que poem todos os bofes pela boca pelo tal — p r i m e i r o a m o r : — no e x e m -plo q u e nos dá o L e o n a r d o a p r e n d ã o o q u a n t o elle tem de d u r a d o u r o . Se u m dos p r imos de V i d i n h a , que d i s semos ser o a t t e n d i d o naque l la occas ião , teve m o t i v o pa ra l evan ta r - se cont ra o L e o n a r d o c o m o seu r iva l , o o u t r o p r imo , q u e d issemos ser o desa t -t end ido , teve d o b r a d a razão para isso, p o r q u e a i é m do i r m ã o ap resen tava - se o L e o n a r d o c o m o s e g u n d o c o n c u r r e n t e , e o f u r o r de q u e m se d e f e n d e con t r a dous é , ou deve ser sem d u v i d a , m u i t o m a i o r d o que o de q u e m se de fende cont ra u m . Dec la rou-se p o r t a n t o , desde q u e começarão a appa reçe r os symp-t o m a s do q u e r q u e fosse en t r e V i d i n h a e o nosso hospede , gue r ra d e dous con t ra u m , ou de u m con-t r a dous . A pr inc ip io foi ei la su rda e m u d a ; e r a g u e r r a de o lha re s , de gestos, de desfe i tas , de m á s caras , de máos modos d e uns para com os o u t r o s ; depois , segu indo o a d i a n t a m e n t o do L e o n a r d o , pas-sou a d i c t e r i o s , a chasques , a r emoques . Um dia fi-n a l m e n t e desandou em descompos tu ra c e r r a d a , e m ameaças do t a m a n h o da t o r r e de Babe l , e foi causa d is to t e r u m dos p r imos p i lhado o feliz L e o n a r d o

tom. li. °

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em f lagrante gozo de u m a pr imíc ia amorosa , um abraço que no quintal trocava elle com Vidinha,

— Abi es tá , minha lia, dissera enfurec ido o ra-paz di r ig indo-se á mãi de Vidinha ; ahi está o lucro que se tira de met ter -se para den t ro de casa um par de pernas que não per tence á f a m í l i a . . . .

— Onde é, onde é que está pegando fogo? disse a velha em tom de escarneo, suppondo ser alguma asneira do rapaz , que era em tudo mui to exagerado.

— Fogo, repiicou e s t e ; se ali pegar fogo não ha-verá agua que o apague . . . e o lhe o que lhe digo, se não está pegando fogo . . . está-se a j u n t a n d o l enha para isso.

V id inha , que vinha chegando nessa occasião, to-mou a palavra e fallou d u r a n t e meia hora sem in-te r rupção , sol tando contra os dous pr imos (pois que o out ro já l inha t a m b é m inlervindo) uma t remenda cat i i inaria em que a p a l a v r a — q u a l — foi repelida e n o r m e n u m e r o de vezes. Leonardo teve t ambém de defender -se , c fallou pelos cotovellos. As duas ve-lhas acorri pan há rã o aos qua t ro seguidas das outras d u a s moças , que met t ião t ambém de vez em quando a sua co lherada .

Ser ia inútil a tenta t iva de quere rmos repet ir as pa lavras textuaes de cada um dós f a l l ado re s ; isso seria cousa pouco mais ou menos semelhan te a que-rer contar -se n ' uma tempes tade os pingos de chuva q u e c a b e m . Só quem já teve occasião de assistir pôde bem aval iar o que era e lalvez ainda é uma dessas brigas no inter ior de uma famí l ia . Todos fal-lão a um t empo , esforçando-se cada um por fallar ma i s a l to do que todos os o u t r o s ; n inguém parece a t t ende r ás desculpas que se apresen tão , nem ás re-cr iminações que se fazem, e en t re tan to de minuto

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em m i n u t o cada q u a l , t o m a n d o m a i s ca lo r , se ju lga d o b r a d a m e n t e o l f e n d i d o ; as j u r a s se c r u z ã o , as ameaças se c h o c ã o ; não liça no d icc ionar io termozi-nbo de escolha q u e não sáia á f r e n t e ; urnas ques tões t razem ou l r a s , es tas a inda o u t r a s ; recorre-se ás o f -fensas passadas , presentes e f u t u r a s para fazer-se carga aos adve r sa r io s . T u d o e m t i m se diz , e nada se consegue ; a briga d u r a mu i t a s horas , ao t e r m o das quaes os con t endo re s , fitigdtis se d non sucia tis, a b a u d o n ã o o c a m p o , ficando mais encarn içados uns con t ra os ou t ros do q u e o es tavão a p r inc ip io . E se por acaso, t o c a n d o já em r e t i r ada , a lgum ousa a inda so l ta r u m a d e r r a d e i r a i m p r e c a ç ã o , pega de novo a cousa , e d u r a a inda bom pedaço. As mais das vezes fica t u d o e m palavras .

Desta vez po rém não succedeu ass im : u m dos p r i m o s , q u e era esqueiitudete, avançou para o Leo-n a r d o depois de lhe l e r m a n d a d o , c o m o b a t e d o r , u m a g rande i n j u r i a , e d e u - l h e d o u s s a f a n õ e s , a g a r r a n d o - o pela golla da camisa . L e o n a r d o , que neste m u n d o Só t inha m e d o do pa i , r eag iu con t r a o a g g r e s s o r ; as duas velhas e V i d i n h a , t e n t a n d o apa r t a - lo s , não fazião mais do q u e r o m p e r - l h e s a roupa e a u g m e n t a r - l h e s a ra iva ; as d e m a i s pessoas occupavão-se em b a t e r nas pa redes e c h a m a r os viz inhos. L u t á r ã o os dous por a lgum t e m p o sem q u e disso resu l tasse acc iden te grave pa ra n e n h u m del les , e afinal apa r t á r ão - se . L e o n a r d o , a p e n a s se viu l ivre do seu adver sa r io , fo i q u e r e n d o pôr - se no a n d a r da r u a : pesava sobre o in fe l i z desde c r iança u m a especie de s ina de J u d e u E r r a n t e . As ve lha s , q u e em todo o b a r u l h o t i n h ã o t o m a d o o p a r t i d o del le , não consen t i rão porém nisso ; a l l egárão q u e es tavão e m sua casa , e pod ião m a n d a r c o m o qu izessem. L e o n a r d o ins i s t iu apezar disso e

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apezar dos rogos de V i d i n h a ; po rém n o momento em que tentava ab r i r a porta da rua , en t rou por ella a comadre .

— O r a graças que o encont ro , senhor doudo de pedras . . . .

O Leona rdo recuou dous passos : naquel le mo-mento , assim como lhe aconteceu desde que sahiu de casa de seu pai , nem lhe passava pela idéa que tivesse no m u n d o uma m a d r i n h a , um pa i , ou qual-q u e r paren te que fosse. Houve em todos um movi-m e n t o de admiração e cur ios idade, pois n inguém na casa conhecia a comadre .

Tan tas cousas havia feito a boa mu lhe r , q u e afinal soubera do n inho a que se acolhera o af i lhado, e i m m e d i a t a m e n t e para lá se d i r ig i ra . T e n d o ent rado e d i to aquel las p r imei ras palavras, quer ia logo de-pois seguir com u m a grande e sho r t ação ao sobr inho, quando , lendo visto as duas velhas, assentou que era me lhor dir igir-se a ellas em p r ime i ro logar. Com effeito dir igiu-se, e en t rá rão as t res em conferencia .

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C A F I T U J L O 3 L 1

MÀLSINAÇAO.

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As t r e s ve lhas conver sa rão po r l a rgo t e m p o , não p o r q u e m u i t a s cousas se t ivessem a dizer a r e spe i to do q u e se acabava de passar , po rém p o r q u e a co-m a d r e , r e m o n t a n d o ao ma i s r e m o t o passado , en -tendera q u e pa ra dizer que m u i t o se in teressava pela vol ta do a f i lhado para casa era mis t e r c o n t a r desde sua o r igem a vida in te i ra des te , de sua m ã í , de seu pa i , e a sua p r ó p r i a , q u e fo r a mais c o m p r i d a de todas , e p o r q u e as d u a s velhas e n t e n d e r ã o q u e p a r a d izerem q u e o L e o n a r d o estava ali m u i t o b e m , e q u e não consen t i r i ão q u e elle sahisse, e n t e n d e r ã o ser prec iso fazer o q u e havia fe i to a c o m a d r e — con ta r a sua vida e de toda a fami l ia desde as é ras p r imi t i va s . — O r a , c o m o todas essas h i s to r ias con-t a d a s de p a r t e a pa r t e e rão cheias de ep isodios , j á s e n t i m e n t a e s , j á tocantes , já a legres , acon teceu q u e e n t r e mu i t a ga rga lhada co r r e r ão t a m b é m a l g u m a s l ag r imas d u r a n t e a conver sação . Não ha nada q u e mais sirva para fazer nascer e firmar a amizade , e m e s m o a i n t i m i d a d e , d o q u e seja o r iso e as lagr i -

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m a s : aquelles que se r i r ão , e p r inc ipa lmente aquel-les que uma vez chorarão juntos , teem muita faci-l idade em fazerem-se amigos. Com effei to, no fim da conversa, as tres velhas eslimavão-se mutuamen-te de uma maneira incrível.

Se esta facil idade de expansão não fosse acompa-nhada da grande dií í iculdade de rompimen tos e de in t r igas , ser ia uma das grandes vir tudes daquel le t empo. Po rém as sympa th ias que se creavão em u m a hora de conversa t rans formavão-se em odio n ' u m m i n u t o de desavença.

E m q u a n l o as velhas conversa vão, os contendores aca lmárão-se , passou a t o rmen ta , e se tudo não fi-cou logo acabado , ficou pelo menos esquecido por a lgum t empo . Leonardo achava-se já disposto a at-t ende r ás suppl icas de Vidinha e das outras moças que o não quer ião por modo algum fóra de casa : os dous rivaes der ro tados parecião resignar-se.

Q u a n d o te rminou a conferencia das tres, a co-m a d r e entendeu que era chegado o momen to de começar a prégação ao Leonardo , e começou nestes t e r m o s :

— Rapaz dos trezentos demos, va 'hão- te os sera-fins... tu tens nessa cabeça pedras em vez de mio-l o s ; o sol não cobre crea tura mais renegada do que t u . É s um vi ra-mundo/ : andas feito um valdevinos, sem eira nem beira nem r amo de figueira, sem oííi-cio nem beneficio, sendo pesado a todos nesta vida. . .

— Se é cá comnosco que fal ia , acudiu uma das velhas , de ixe-o estar aonde está que está mui to bem.

— Q u a l ! s enhora , pois se vem levantar poeira na casa a l h e i a ! é um gallo de br igas .

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— O r a isso é lá cousa e n t r e r apazes e r a p a r i g a s ; de ixa- los que elles se a r r a n j a r ã o , r eda rgu iu a ve lha .

I n g e n u i d a d e in fan t i l das velhas daque l l e t e m p o ! A c o m a d r e ia p rosegu i r ; p o r é m sendo a cada

passo i n t e r r o m p i d a , t o m o u po r seu b a r a t o d a r a cousa po r f i nda . Re t i r ou - se , i icando convenc ionado que L e o n a r d o pe rmanece r i a onde e s t ava .

Vid inha ficou conten l i s s ima com s e m e l h a n t e r e -I " J • % i

s u l t a d o ; os p r i m o s po rém fizerão má ca ra , p o r q u e tal não esperavão . Desde que v i rão q u e t u d o ia con-t i n u a r no m e s m o pé, renasceu- lhes o despe i to . At i -ra rão a l g u m a s ind i rec tas , com as q u a e s ia t u d o pegando fogo n o v a m e n t e ; po rém con t ive rão- se a in -d a ; um del les c h a m o u o o u t r o em p a r t i c u l a r , e co-meçárão por seu t u r n o a c o n f e r e n c i a r , po rém e m segredo . Não havia nada mais n a t u r a l : o i n imigo era c o i n m u m , j u n t a v ã o - s e para a t aca - lo ; depois q u e elle fosse d e r r o t a d o , a ques tão se dec id i r ia en t ão e n t r e os dons .

Depois desta u l t i m a confe renc ia se renou t u d o d e f i n i t i v a m e n t e ; cada qua l reco lheu-se a seu pos to , e passárão-se m u i t o s dias cm san t a paz. D u r a n t e esses d ias mais so e s t r e i t á rão os laços en t r e o L e o -na rdo e V i d i n h a . É s e m p r e assim q u e s u c c e d e : q u e -reis q u e nos l iguemos e s t r e i t amen te a u m a cousa? Faze i -nos so f f r e r por e l la . Os dous t i n b ã o so f f r ido u m pelo o u t r o , e era is to u m a f o r t e razão p a r a se a m a r e m cada vez mais .

A c o m a d r e vinha r e g u l a r m e n t e ve r o a f i l h a d o e vis i tar suas novas a m i g a s .

T u d o parec ia em fim nos seus e ixos p o r é m os dous p r imos t r a m a v ã o , e t r a m a v ã o l a r -g a m e n t e . N i n g u é m e n t r e t a n t o a t i n a v a com o q u e ser ia .

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L e o n a r d o passava vida comple ta de vadio, met-t ido em casa todo o san to dia , sem lhe da r o menor aba lo o que se passava lá (ora pelo m u n d o . O seu m u n d o consistia u n i c a m e n t e nos o lhos , nos sorrisos e nos r equebros de Vid inha .

Um dia fo r j a rão uma patuscada semelhan te á que dera or igem ao conhec imen to do Leonardo com a f a m i l i a . Devião sah i r de madrugada da c idade e passa rem fora o d ia . P reparou-se t u d o : cestos de comida , es te i ras e mais a r r an jos . Vid inha mandou encordoar de novo sua v io l a ; avisárão-se os convi-vas do cos tume.

A ' hora aprazada pa r t i r ão . Q u e m estivesse menos d is t rah ido pelo prazer da

pa tuscada do que estava qua lque r dos suciantes , no-tar ia que os dons pr imos de ixavão-se de vez em q u a n d o ficar a t r á s , e coch ichavão como se t ramas-sem uma conspiração. Ninguém porém dera at tenção a seme lhan te cousa.

Chegá rão ao logar de t e rminado ao r o m p e r do dia . Apenas começavão a p repara r - se para o a lmoço, v i rão su rd i r , n inguém soube bem de onde , a figura a l t a , magra , severa e sarcaslica do nosso celebre m a j o r Vidigal . Correu por todos um signal de pouco c o n t e n t a m e n t o , excepto pelos p r imos , que trocarão en t re si um o lha r de intel l igencia e t r i u m p h o .

Os olhos de Vid inha di r ig i rão-se ins t inc t ivamente pa ra Leonardo .

O m a j o r Vidigal deixou passar o p r ime i ro mo-m e n t o de sorpreza , e depois , sor r indo-se , disse, como cos tumava , com sua voz descansada :

— Não t e n h ã o medo de m i m , que não sou ne-n h u m papa-cr ianças , nem eu venho desmancha r

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prazeres de n inguém. Q u e r o só saber quem é aqui o amigo Leonardo .

Vidinha fez logo cara de choro . Leonardo levan-tou-se sem saber como, e disse todo t r emulo :

— Sou eu . . . . — Ora vejao, respondeu o Vidigal em tom de

m o f a , eu não s a b i a ! . . . Pois , meus amigos , não se assustem que o caso não foi para t a n t o : um sucio de menos n ' u m a patuscada não faz falta n e n h u m a . Este amigo vai comnosco. Se elle puder , vol tará em b reve . . . . mas creio que já não chegará a t empo pa ra acabar a patuscada.

— Qua l , meu Deus! mas porque é en tão is to? que mal é que elle fez?

— El le não fez nem faz nada; mas é mesmo po r não fazer nada que isto lhe succede. Leva, g rana-deiro.

E um dos granadei ros com que viera o ma jo r a companhado foi t r a t ando de conduzi r o Leonardo .

O Vidigal seguiu-os t r anqu i i l amen te , sem a l te ra r o passo, e dizendo po l idamen te :

— Adeus, minha gente. Vid inha desatou a c h o r a r , e x c l a m a n d o : — Foi malsinação ! — Foi malsinação ! r epe t i rão todos, menos os

dous pr imos. A sucia levantou-se.

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C A P I T U L O XII

T R I Ü M P H O C O M P L E T O D E J O S É M A N O E L .

E r a u m sabbado de t a r d e ; em casa de D. M a n a havia um lu fa lu fa i m m e n s o ; andavão as cr ias e mais escravos de den t ro para f o r a ; espanava-se a s a l a ; a r rumavão-se as cade i r a s ; corr ia-se , fa l lava-se, gr i tava-se .

A dona da casa t r a j a v a , fóra do ord inár io , um rico vestido de cassa bo rdado de p ra ta , de corpi-nho mu i to cur to e mangas de um volume e n o r m e . Seja d i to de passagem que a pra ta do bordado es-tava já m a r e a d a , e o mais do vestido um pouco encard ido . Trazia a inda D. Maria u m penteado de desmedida a l t u r a , um formidável pa r de rodel las de crysol i tas nas ore lhas , e dez ou doze anneis de diversos t a m a n h o s e feit ios nos dedos.

Luiz inha t ra java l ambem um vest ido que qual -q u e r menos entendido na matér ia desconfiar ia que era filho legi t imo do de sua t i a ; trazia um toucado de plumas brancas na cabeça e um rosário de ouro de contas mui grossas na c in tu ra .

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Acabavão de sah i r as duas assim preparadas do q u a r t o de vest i r , q u a n d o sent iu-se rodar u m a car-ruagem e p a r a r na porta da casa. Luiz inha es t reme-ceu ; D. Maria levou o lenço aos olhos, e t i rou-o em pouco t e m p o m o l h a d o de l ag r imas .

—• Está abi a c a r r u a g e m , gr i tou u m a das crias que estava de sentinel la á j ane l la .

A ca r ruagem era um fo rmidáve l , um monstruoso m a c h i n i s m o de couro , ba lançando-se pesadamente sob re q u a t r o desmesuradas rodas . Não parecia cousa m u i t o nova ; e com mais dez annos de vida poderia m u i t o bem e n t r a r no n u m e r o dos restos infelizes do t e r r e m o t o , de que falia o poeta .

Mal t inha este t r em parado á por ta , sent iu-se o r o d a r de o u t r o q u e ve«u pa ra r j u n t o del le . O que dissemos a respeito dos vestidos de D. Maria e sua sob r inha pôde p e r f e i t a m e n t e appl icar-se aos dous t r e n s ; o segundo parecia íilho legi t imo d o pri-me i ro .

D o u l t i m o q u e chegára apeou-se Jo sé Manoel , e en t rou em casa de D. Maria , que o veiu receber á p o r t a .

E inút i l obse rvar que a vizinhança estava toda á j ane l la , e via todo aquel le m o v i m e n t o com olhos rega lados pela mais desabr ida cur ios idade.

José Manoel t ra java casaca de seda pre ta , calções da mesma fazenda e c o r ; trazia meias t a m b é m pre-tas e sapatos de en t r ada b a i x a , ornados com enor-mes fivellas de p ra t a , espadim e chapéo de pasta .

Acompanhavão-o dous amigos vestidos pelo mes-m o t h e o r .

Jo sé Manoel estava ccfm um ar en t re compun-gido e t r i u m p h a n t e , e desfazia-se em misuras á D. Mar ia .

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Depois de tudo is to q u e r a inda o le i tor q u e íhe dec la remos q u e a s o b r i n h a de D. Mar ia casava-se naquel la t a rde com José Manoel ?

Chegou o m o m e n t o da p a r t i d a . L u i z i n h a , c o n d u -zida po r 1). Mar i a , que lhe ia serv i r de m a d r i n h a , e m b a r c o u n ' u m dos des t roços da arca de Noé , a q u e c h a m a m o s c a r r u a g e m ; José Manoel , a c o m p a n h a d o por q u e m lhe ia serv i r de p a d r i n h o , fez o u t r o t a n t o , e pa r t i r ão depressa pa ra a igreja . F i ze rão bem em pa r t i r depressa , p o r q u e se se demoras sem a lguns m i n u t o s , cor r ião o risco de se rem devorados pelos olhos dos vizinhos.

Apenas cessou a b u l h a das c a r r u a g e n s , começa-rão estes ú l t imos em conversa r e n h i d a , de q u e d a -mos aqui urna pequena a m o s t r a .

— S e n h o r a , dizia u m a sugei ta q u e m o r a v a j u n t o de D. Mar ia para ou t r a q u e morava d e f r o n t e , o ta! noivo poderá ser cousa boa , m a s não dou n a d a pela ca ra de l le .

—• E a n o i v a ? . . . r espondia a o u t r a ; a r r e n e g o t a m b é m da l ambisgó ia . . . .

—• E o f i lho do L e o n a r d o ficou vendo es t re l l as? . . . -— P o r f o r ç a : venceu este p o r q u e é u m f inor io

d e con ta . — S e a velha d e i x a r t u d o á s o b r i n h a , não é m á o

a r r a n j o . . . . — De ce r to . Pois não sabe q u e o seu d e f u n t o

m a r i d o era u m h o m e m q u e v ia java pa ra a í n d i a ? Nes te t o m c o n t i n u á r ã o a té a vol ta das c a r r u a -

gens . Agora demos ao le i tor

pe i to do t r iu

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bi l i tára-se comple t amen te j u n t o a D. Maria ; tor-nara a f r equen t a r a casa, e foi pouco a pouco pondo bo r ro á sua parede. Um suçcesso inesperado veiu a j u d a l - o com a maior eííicacia. O tes tamente i ro do li nado i rmão de D. Mar ia , do pai de Lu iz inbâ , que já t inha t ido com !>. Maria , c o m o talvez não este-jão esquecidos os le i tores , u m a demanda por causa desta u l t i m a , su rd iu de repente com «ma nova pre-benda relat iva a uma pon t inha de tes tamento, e D. Maria teve de e n t r a r de novo com eile em uma luta jud ic i a r i a . Is to coincidiu com a mor t e inesperada do p r o c u r a d o r de D. Mar ia . José Manoel offe-receu-se para cu ida r da c a u s a ; e com tan to geito a r r a n j o u t udo , q u e em mu i to pouco t e m p o , cousa q u e p r o c u r a d o r n e n h u m ter ia fei to, venceu a de-m a n d a em favor de í). Maria.

O r a , os leitores hão de estar l embrados da mania que t inha D. Maria por u m a demandaz inha ; atira-va-se a ella corn vontade , e tal era o e m p e n h o que empregava na mais ins ignif icante ques tão judic iar ia , que em taes casos parecia ter em jogo sua vida. Da-qui se poderá concluir a sa t i s fação que teria eüa no dia em q u e se achava vencedora , e como s e n ã o ju lgar ia obr igada a q u e m lhe proporcionasse a Vic-to r ia .

Jo sé Manoel aprovei tou-se dis to ; e no dia em que veiu ler a D. Maria a sentença final que resolvia a pendencia em seu favor , ped iu- lhe a mão da sobri-nha , a qual lhe foi p rome t t i da sem grandes es-crúpulos .

Luiz inha estava nesta occasião em um daquelles per íodos de a b a t i m e n t o que se cos tumão produzir nos moços, e p r inc ipa lmen te nas moças que ainda m a r c h â o por aquel ta es t rada florida que leva dos

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1 3 aos 2 5 annos , q u a n d o as o p p r i m e o isola-mento .

O r a , c o m o sabem todos os q u e m e leem, o Leo-nardo t i n h a a b a n d o n a d o Lu iz inha ; elia ace i tou por -t a n t o i n d i f f e r e n t e m e n t e a p ropos t a de sua tia,

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CAPITUII© XIII»

E S C A P U L A .

Deixemos aos noivos o gozo t r a n q n i l l o da sua lua d e mel ; de ixemos 1). Maria des fazer -se em c a r i n h o s e conse lhos á sua s o b r i n h a , q u e os recebia i n d i f e -r e n t e m e n t e , e em a t tenções para com J o s é Manoel , cuja cabeça se t i n h a t o r n a d o r e p e n t i n a m e n t e u m a a r i t h m e t i c a c o m p l e t a , toda a lga r i smos , toda cá l -culos, toda m u l t i p l i c a ç õ e s ; e vo l temos a sabe r o que foi fe i to do L e o n a r d o , a q u e m d e i x á m o s na oc-casião em q u e fo ra a r r a n c a d o pelo Vidigal dos b r a -ços do a m o r e da fol ia .

O Vidigal t i n h a - o pos to d i a n t e de si , ao l ado d e u m g r a n a d e i r o , e m a r c h a v a poucos passos a t r á s . E m q u a n t o c a m i n h a v ã o o g r a n a d e i r o p re t endeu d a r -lhe conversa ; m a s el le a nada r e spond ia , pa r ecendo abso r to e m grave cogi tação .

Q u e m estivesse m u i t o a t t e n t o havia de n o t a r q u e a l g u m a s vezes o L e o n a r d o pa rec i a , a inda q u e m u i t o l i g e i r a m e n t e , apressa r o passo, q u e ou t r a s vezes o r e t a r d a v a , q u e seu o l h a r e sua cabeça vol tavão-se de vez e m q u a n d o , quasi i m p e r c e p t i v e l m e n l e , p a r a a

TOM. II . $

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esquerda ou para a d i re i ta . O Vid iga l , a quem nada d is to escapava, achava em todas estas occasiões pre-textos para d a r s ignaes de s i ; tossia, pisava mais fo r te , a r ras tava no chão o chapéo de sol que sem-pre trazia na m ã o , como quem quer ia dizer ao Leo-na rdo , respondendo aos seus pensamentos Ín t imos: — Cu idado ! eu aqui estou. — E o Leona rdo en-tendia tudo aqui l lo ás mil ma rav i lha s ; contrahia os lábios de raiva e de impaciência . En t r e t an to nem por isso abandonava a sua idéa : quer ia fugi r . Des-confiava que ia para a Casa da G u a r d a , e pedia in-t e r i o r m e n t e aos seus deuses que alongassem de mu i t a s léguas as ruas que t inha de percorrer . Q u a n d o via de longe uma esquina dizia coms igo : —- E' agora ; q u e b r o po r ali fó ra , e ba to pernas"— P o r é m ao chegar pe r lo da esquina, o Vidigal achava a lguma cousa que- dizer ao g ranade i ro , e passava-se a esqu ina . Se lhe apparec ia á dire i ta ou á esquerda um cor redor abe r to , pensava comsigo : — E m b a r a -fus to por ali a den t ro , e s u m o - m e . — Mas no mo-m e n t o em q u e ia t o m a r a u l t ima decisão, parecia- lhe sen t i r a m ã o do Vidigal que o agarrava pela golla da j a q u e t a , e es f r iava . Não erão os granadeiros que lhe me t t i ão m e d o ; nunca em todos os planos de f u g i r q u e lhe passavão naquel la occasião pela cabeça con tou u m a só vez com e l l cs ; mas o Vidigal, o cruel m a j o r , era a q u a n t i d a d e cons tan te de seus cálculos.

I O pobre rapaz , d u r a n t e aquelles combates Ínti-

mos,, suava mais do que no dia em que fez a pri-meira declaração de a m o r a Lu i z inha . Só havia na sua vida um t ranse a que assemelhava , aquel le em q u e en tão se achava , era o que se havia passado, q u a n d o c r iança , naque l le meio segundo que levára

/ •

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a pe rco r r e r o espaço nas azas do t r e m e n d o pon tapé q u e lhe d e r a seu pa i .

R e p e n t i n a m e n t e u m a c i r c u m s t a n c i a ve iu f avo re -cê- lo . Não s a b e m o s po r q u e causa ouv iu-se u m g r a n -de a la r ido na r u a : g r i tos , assovios e ca r re i r a s . O L e o n a r d o teve u m a especie de v e r t i g e m : zun i r ão -Ihe os ouvidos , escurecêrão-se - lhe os o lhos , e . . . d a n d o u m e n c o n t r ã o no g r a n a d e i r o q u e estava per to de l le , desa tou a c o r r e r . O Vidigal deu um sa l to , e es tendeu o braço pa ra o a g a r r a r ; m a s apenas ro-ç o u - l h e com a ponta dos dedos pelas costas . O rapaz t i n h a ca lcu lado bem : o Vidigal d i s t r a h i u - s e com o r u i d o q u e se fizera na r u a , e aprove i tou a occas ião . O Vidiga l e os g ranade i ros so l tá rão-se i m m e d i a t a -m e n t e em seu a l c a n c e : o L e o n a r d o e m b a r a s f u s t o u pelo p r i m e i r o c o r r e d o r q u e achou a b e r t o ; os seus pe r segu idores e n t r a r ã o i n c o n t i n e n t e a t r á s de l le , e su-b i r ã o e m t ropel o p r ime i ro lance da escada . Apenas o havião d o b r a d o , e sub ião o s egundo , a b r i i ã o - s e as co r t inas de u m a c a d e i r i n h a que se achava na e n t r a d a , e pela qua l t i n h ã o clles p a s s a d o , s a h e del ia L e o n a r d o ,

e d e u m pu lo g a n h a a r u a . Ao e n t r a r , t e n d o d a d o com a q u e l l e r e f u g i o , me t í ê ra - se d e n t r o ; os g r ana -de i ros e o Vidigal não hav ião r e p a r a d o em tal com a p r ec ip i t ação c o m q u e e n t r á r ã o , e isso lhe va leu .

É impossível descrever o que sent iu o q u a n d o po r e n t r e as co r t i na s da c a d e i r i n h a v iu -os passa r e s u b i r a escada . Fo i u m a r a p i d a a l t e rna t i va de f r i o e de ca lo r , de t r e m o r e de i m m o b i l i d a d e , de m e d o e de c o r a g e m ; veiu lhe o u t r a vez á l e m -brança o pon t apé p a t e r n o : era o t e r m o cons tan te de comparação para todos os seus so f f r imen tos .

E m q u a n t o o Vidigal e os g ranade i ros va re javão a casa em q u e havião e n t r a d o , L e o n a r d o p u n h a - s e

i

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S à

longe, e em q u a t r o pulos achava-se em casa de Vi-d i n h a , que o recebeu com um abraço , e x c l a m a n d o :

— Qua l 1 abi está e l le ! Um raio do alegria i l luminou todos os semblan-

tes , menos o dos dons i rmãos rivaes, que licárão ho r r i ve lmen te desapontados . As duas velhas t i rarão da cabeça as mant i lhas que j á havião tomado para da r providencias sobre o caso. A presença do Leo-na rdo foi uma iura bemfazeja que espalhou as nu-vens de uma grossa t o r m e n t a , que tendo começado a roncar quando Leonardo foi preso com aquel las palavras — foi malsinação — viera desabar de todo em casa, e promet t ia d u r a r mui to tempo.

Vid inha, tendo a principio t rocado com os pri-mos a lgumas indirectas a respeito da prisão de Leo-n a r d o , ju lgara conveniente deixar-se de pannOs quen tes , e fôra di re i to a elles, como se diz, com q u a t r o pedras na mão, a t t r ibu indo- lhes o que aca-bava de succeder .

Elles denegarão, e t ravárão-se com ella de razões. A pr incipio as duas velhas estavão ambas da par te de Vid inha , porém tendo esta a t i rado tres ou qua-t ro di tos fortes de mais aos pr imos , a tia oífendeu-se, e tomou o par t ido dos dous filhos: a out ra ve-l h a , mãi de Vidinha, protesta contra a parcia l idade de sua i rmã , e reforça a inda mais, acompanhada dos que resta vão, o par t ido de Vidinha. Divididos e ex t remados assim os dous campos , com terríveis campeões de lado a lado, fácil é prever-se o que te-r ia succedido se o Leonardo não viesse tão a tempo para aca lmar tudo.

T o m a d o pelo prazer de ver-se l ivre, nem teve elle t e m p o de fazer recr iminações aos seus inimi-g o s : j á sabia com certeza quem fôra a causa do que

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acabava de so í f r e r , pois q u e o t inha perceb ido pela conversa q u e com elle t en ta ra t r ava r o g r a n a d e i r o .

O m a j o r Vidigal fôra ás nuvens com o ca so : nunca u m só g a r o t o , a q u e m u m a vez tivesse pos to a mão , lhe havia pod ido e s c a p a r ; e e n t r e t a n t o aque l l e lhe viera pôr sal na m o l e i r a ; of fendc- lo e m sua va idade de b o m c o m m a n d a n t e de pol icia , e de -g rada - lo d i a n t e dos g r anade i ro s . Q u e m pregava ao m a j o r Vidigal u m logro , fosse qua l fosse a sua na -t u r e z a , f icava- lhe sob a pro tecção , e t i nha -o c o m -sigo em todas as occásiões. Se o L e o n a r d o não t i -vesse fug ido , e a r r a n j a s s e depois a so l tura por q u a l -q u e r meio , o Vidigal era a té capaz, por t im de con-t a s , de se r seu a m i g o ; mas t endo-o de ixado m a l , t i n h a - o por seu in imigo i r reconci l iável e m q u a n t o não lhe désse des fo r r a comple t a .

J á se vê pois q u e as f o r t u n a s do L e o n a r d o re -d u n d a v ã o - l h e s e m p r e em m a l ; era r e a l m e n t e u m mal naque l l e t e m p o t e r por in imigo o m a j o r Vid i -ga l , p r i n c i p a l m e n t e q u a n d o se t i n h a , c o m o o Leo- 1

n a r d o , u m a vida tão regular e t ão licita. V e r e m o s a g o r a o q u e se passou na casa e m q u e

e n t r a r a o Vidiga l com os g ranade i ros em p rocu ra «do Leonardo .

%

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v - ft V * J . . . ' l • . • . • V

C A P I T C I O XIV. 1 •

• ' • . / • i t -

O V I D I G A L D E S A P O N T A D O .

O m a j o r Vid iga l , vendo-se log rado , deu u r r o s ; e , c o m o já fizemos s e n t i r aos le i tores , p r o m e l t e u a si m e s m o t o m a r séria v ingança do L e o n a r d o .

—• O r a , dizia e l le coinsigo, gas tar m e u t e m p o nesta v ida , gas tar os meus miolos a pensar nos meios d e d a r caça a q u a n t o v a g a b u n d o gyra por esta ci-dade , consegu i r , á custa de m u i t o s dias d e f ad iga , de m u i t a s noi tes passadas sem p rega r o lho , d e m u i t a c a r r e i r a , de m u i t o t r a b a l h o , f a z e r - m e t i m i d o , r e s -pe i t ado po r aquel les q u e a n i n g u é m t e m e m e respei-t ão , os vadios e p e r a l t a s ; e agora no fim de con tas vir u m m e l q u e t r e f e z i n h o p ò r - m e sal na m o l e i r a , e n v e r g o n h a r - m e d i a n t e destes so ldados e de t o d a esta g e n t e ! A g o r a , não ha ga ro to por a h i q u e , sa-b e n d o dis to , não se es te ja a r i r de m i m , e não con te j á com a poss ib i l idade de m e p r e g a r u m se-g u n d o m o n o como este ! . . .

O m a j o r t i n h a r a z ã o : r ião-se com effei to del le ; e os p r i m e i r o s q u e o fazião e rão os g r anade i ro s . Apezar de que , escravos da d i sc ip l ina , e m p r e g a v ã o

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os mais s inceros esforços para c o a d j u v a - l o ; e ape-zar l a m b e m de q u e revertia para elles a lguma glorie das façanhas do m a j o r , não pude rão en t re t an to dei-x a r de a c h a r graça no que acabava d e s u c c e d e r , pois conhec ião a presumpção do Vidigal , e repararão na cara desapon tada com q u e e í l e havia ficado. Depois, apenas o m a j o r poz pé fora da soleira da casa onde lhe t i n h a escapado Leona rdo , uma mul t idão im-mensa que t u d o havia presenciado desa tou a rir e s t rondosamen te .

— E n t ã o , S r . m a j o r , dizia- lhe u m dos da turba , desta vez

P a s s a r i n h o foi-se e m b o r a , B t i x o u - m e as p e n n a s na m ã o .

* t •

— S r . m a j o r , dizia o u t r o , p rocure nos bolsos. — Dent ro da ba r r e t i na , emendava ou t ro . — Atrás da po r t a , replicava aquel le . E um côro de r isadas acompanhava cada u m des-

tes conselhos. —- Lá está o bicho d e n t r o da cade i r inha ! gri lou

u m r e p e n t i n a m e n t e . O Vidigal, como que ins t inc t ivamente , cor reu á

cade i r inha e ab r iu - l he as cort inas. Nessa occasião as r isadas forão h o m é r i c a s : o ma-

j o r comptvhendeu então qual íôra o meio p o r q u e lhe escapára o Leona rdo , e soltou um — a h ! — prolongadíss imo. Emf im re t i rou-se a c a b r u n h a d o , e r u m i n a n d o projectos para sua tahabililação.

— Se aquel les rapazes da Conceição, dizia com-sigo o Vidigal , q u e m e forão levar a nota do tal m a l a n d r o , m e tivessem avisado q u e elle era desta l a i s , m não teria passado po r esta immetisa ver-gonha .

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P o r estas pa lavras veem os le i tores q u e as i m p u -tações da Vid inha con t ra os p r i m o s l i nhào mais que m u i t o f u n d a m e n t o . Com e í fe i to , o que se aca-bava de passar não era senão o resu l tado do a j u s t e que no dia da g r a n d e b r iga , por aque l i e mot ivo q u e o le i to r bum sabe , havião fei to os dons r i v a e s : t i-nha o elles m a l s i n a d o ao Leonardo . F o r a o ter com o Vid iga l , e sem precisar m e n t i r a r m a r ã o ao L e o n a r d o u m a cama m u i t o b e m feita : era um h o m e m sem officio n e m benef ic io , v ivendo á custa a lhe i a , e n -chendo de pernas a casa de duas m u l h e r e s ve lhas , a quem não t inha ap rove i t ado a expe r i enc i a , e , o q u e é ma i s , r o u b a n d o aos p r imos o a m o r d e sua p r i m a .

O Vidigal rega la ra os o lhos o u v i n d o a n a r r a ç ã o , e ficara mu to a g r a d e c i d o aos dons rapazes pela nova q u e lhe levarão : era ma i s um pendão que ia j u n t a r aos louros d e suas f açanhas pol ic iaes . A p r ime i r a t en ta t iva c u s t o u - l h e p o r é m bem ca ro .

E i s -aqn i pouco mais ou menos as ref lexões em q u e o m a j o r ia e n g o l f a d o : — Nada lhe seria mais agradável d o q u e dia mais dia menos , ; q u a n d o n in -guém pensasse em ta l , a c o m p a n h a d o de u m a escolta de g r a n a d e i r o s , d i r ig i r - se á casa das d u a s ve lhas , ce rca - l a , e p i lha r o L e o n a r d o sem q u e lhe pudesse escapar . I s to porém repugnava ao seu o r g u l h o of fen-d ido . Mui tas vezes se t i n h a , é ve rdade , serv ido desse meio , p o r é m fô ra isso pa ra poder p i l h a r a c a p a d ó -cios de longa d a t a , t idos e havidos como taes , e ve-lhos no oííicio. Não quer ia pois servi r -se do m e s m o me io para a g a r r a r u m recru ta no oíí icio, q u e a inda agora começava . N a d a , tal não fazia ; não havia fa -zer cerco , e o q u e é mais , não que r i a de m o d o a l -g u m o a d j u t o r i o dos g ranade i ros ; j u r a v a a si m e s m o

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q u e elle sozinho, sem o apoio de n inguém, havia de pôr a m ã o no Leonardo .

Ia o Vidigal e n t r a n d o na Casa da Guarda , para onde se d i r ig ia , depois da de r ro t a , quando sentiu-se r e p e n t i n a m e n t e aga r rado pelas pernas , e viu a seus pés u m a m u l h e r de m a n t i l h a , que chorava, solu-çando m u i t o , com o lenço no rosto.

— Q u e é isto, senhora ? Deixe-me. Ora isto hoje é dia de má s ina .

Con t inua rão os soluços por única resposta . — S e n h o r a , de ixa-me ou não as p e r n a s ? Eu não

gosto de carp ide i ras . . . . e n t e n d e ? Soluços a inda. — O r a não está má es ta . . . . Se lhe mor reu al-

g u é m , vá chora r na c a m a , q u e é logar quente . R e d o b r o u o pran to . V a l h ã o - m e t rezentos d i a b o s ! . . . . Q u a n d o é que

isto terá f i m ? . . . . Es ta m u l h e r acaba por a t i ra r -me no chão . . . .

Estava já mu i t a gente j un t a na p o r t a . Passado finalmente um pouco de tempo em silen-

cio, q u a n d o j á o m a j o r estava disposto a empregar a l guma med ida de r igor para ver-se l ivre da carpi-de i r a , esta ergueu a cabeça, e t i r ando o lenço da cara exc lamou en t r e l a g r i m a s :

—- Sr . m a j o r , solte, solte po r quem é meu afi-lhado , sol te , solte o pobre r a p a z ; elle é um doudo, é verdade , mas . . . .

E os soluços lhe e m b a r g a r ã o mu i to a proposito a voz.

E r a a comadre que , tendo sabido da prisão do a f i lhado , viera fazer em seu favor aquel la chora-de i ra , ignorando que elle se tivesse evadido. A. scena produziu o eífei to esperado. Os granadeiros , d é c a d a

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vez q u e a c o m a d r e dizia — sol te , so l te — desatavão a r i r ; t e n d o po r boca p e q u e n a exp l icado t u d o aos demais e i r c u m s t a n t e s r e s t e s os a c o m p a n h a v ã o .

O m a j o r t o m o u t u d o aqu i l lo c o m o u m esca rneo que o gênio da vadiação e d o ga ro t i smo lhe fazia : era mis t e r q u e e l le , p a r a v e r - s e l ivre da c o m a d r e , que não lhe la rgava os joe lhos , dec larasse po r sua p rópr ia boca , d i a n t e de t o d a aque l la gen te , q u e o L e o n a r d o havia fug ido 1 D e c l a r o u - o , e fug iu de t o -dos aque l l e s o l h a r e s , em cada u m dos quaes via u m insul to .

A c o m a d r e , apenas ouviu a dec l a r ação , t r a t o u de r e t i r a r - s e , e não pôde t a m b é m d e i x a r de a c h a r graça no caso.

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M P i x r a o x v .

CA.LDO E N T O R N A D O .

A c o m a d r e , t e n d o d e i x a d o o m a j o r e n t r e g o e á sua ve rgonha , d i r ig i r a - se im media ta m e n t e pa ra a casa o n d e se achava L e o n a r d o para fel ici ta- lo e con t a r - l he o desespero em q u e a sua fuga l inha posto o Vidigal . O L e o n a r d o contava com isso, e não se a d m i r o u ; Vid inha p o r é m e as d u a s ve lhas , por e n t r e mu i t a p raga e e s c o n j u r i o , de rão grandes r isadas á custa do m a j o r A c o m a d r e , segundo seu cos tume , ap rove i tou o ense jo , e depois q u e se a b o r -receu de f a l l a r no m a j o r desenro lou um s e r m ã o ao Leona rdo , no q u a l , a l g u m a s exagerações de p a r t e , havia g r a n d e f u n d o de jus t iça ; e t a n t o q u e a té a p rópr ia Vid inha chegou a d a r - l h e in te i ra razão q u a n t o a a lguns t r echos . O Ibema do s e r m ã o foi a necessidade de busca r o L e o n a r d o urna o c e u p a ç ã o , de a b a n d o n a r a vida q u e levava, gostosa s i m , po-rém su je i t a a cmergene ia s taes c o m o a q u e acabava de dar - se . A saneção de todas as leis q u e a p r éga -dora i m p u n h a ao seu o u v i n t e e r ão as ga r ras d o

Vidigal .

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— Haveis de afinal cah i r - lbe nas unhas , dizia ella no fim de cada per iodo ; e então o covado e meio te cabi rá l a m b e m nas costas.

Esta idéa do covado e meio fez brecha no espi-r i to do L e o n a r d o : ser soldado era naquel le tempo, e a inda hoje talvez, a peior cousa que podia succe-d e r a um h o m e m . P rome t t eu pois s inceramente

«emenda r - s e e t r a t a r de ver um a r r a n j o em que es-tivesse ao abr igo de q u a l q u e r capr icho policial do terr ível m a j o r . Achar po rém occupação para quem

" nunca cuidou nella a té certa idade, e assim de pé para mão , não era das cousas mais fáceis.

E n t r e t a n t o o zelo da comadre poz-se em activi-d a d e , e poucos d ias depois ent rou ella mui to con-ten te , c veiu par t i c ipar ao Leonardo que lhe tinha achado um excel lente a r r a n j o que o hab i l i t ava , se-gundo pensava, a um g rande f u t u r o , e o p u n h a per-f e i t a m e n t e a cober to das iras do Vid iga l ; era o a r r a n j o de serv idor na uchar ia real . De ixando de par to o subs tan t ivo uchar ia , e a t t endendo só ao ad-jectivo rea l , todos os interessados e o p r o p r i a Leo-na rdo rega la rão os olhos com o achado da comadre. E m p r e g a d o da casa r e a l ? ! oh ! isso não era cousa q u e se r ecusasse ; c então empregado na ucha r i a ! essa mina inexgotavel , tão far ta e tão r i ca ! . . . A proposta da c o m a d r e foi acei ta sem u m a só reflexão c o n t r a , da pa r t e de quem quer que fosse.

Gomo a comadre pudera a r r a n j a r semelhante cousa pa ra o a f i lhado , ó isso que pouco nos deve • importar .

D e n t r o de poucos dias achou-se o Leonardo ins-ta l l ado no seu posto , mui to cheio e contente de si.

O m a j o r , que o não perd ia de vista , soube-lhe dos passos, e mordeu os beiços de raiva quando o

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viu ião bem a q u n r t e l l a d o ; só de ixando a vida q u e levava podia o L e o n a r d o c o r t a r ao m a j o r p re t ex tos para p ô r - l h e a u n h a mais dia menos dia .

— Se elíe se e m e n d a ? ! dizia pezaroso o m a j o r ; se e l íe se e m e n d a perco eu a m i n h a v i n g a n ç a . . . . M a s . . . . (e esta esperança o a len tava) elíe não t e m cara d e q u e m nasceu para e m e n d a s .

O m a j o r t i nha r a z ã o : o Leona rdo não parec ia ter nasc ido pa ra emendas . D u r a n t e os p r ime i ros t e m -pos de serviço t u d o co r r eu ás mil m a r a v i l h a s ; só a lgum mal in t enc ionado poder ia no ta r em casa de V i d i n h a u m a cer ta f a r t u r a desusada na d e s p e n s a ; mas isso não era cousa em q u e a l g u é m fizesse con ta .

O L e o n a r d o po rém parece q u e recebera de seu pai a f a t a l i dade de lhe p rov i rem s e m p r e os i n f o r t ú -nios dos devaneios d o coração.

D e n t r o do páleo da ucha r i a morava u m torna-largura em c o m p a n h i a de u m a moça que lhe cui-dava na casa ; a moça era bon i t a , e o toma-largura um machacaz t a lhado pelo molde ma i s grotesco ; a moça fazia pena a q u e m a via nas máos de tal pos-s u i d o r .

O L e o n a r d o , cu jo coração era compadec ido , teve, como todos , pena da moça ; e ap ressemo-nos a d izer , era tão s incero esse s e n t i m e n t o q u e não pôde de ixa r de despe r t a r l a m b e m a mais s incera g ra t i dão ao ob -jec to del le . Q u e m pagou o r e s u l t a d o da pena de u m e S o l i d ã o da o u t r a foi o toma-largura.

Vid inha lá por casa começou a e s t r a n h a r a assi-du idade do novo e m p r e g a d o na sua r epa r t i ç ão , e a n o t a r o q u e r que fosse de e s m o r e c i m e n t o de sua pa r t e para com el la .

Um dia o toma-largura t inha s a b i d o em s e r v i ç o ; n i n g u é m esperava por elíe tão cedo : e rão 1 1 ho ra s

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da m a n h ã . O Leonardo , por um daqueües milhares de escaninhos que existem na u r b a n a , t inha ido ter á casa do toma-lnrynra. Ninguém porém pense que era para rnáos fins. Pelo con t ra r io era para o fim m u i t o louvável de levar á pobre moça uma tijella de caldo do que ha pouco 1'ôra m a n d a d o a e l - re i . . . . Obsequ io de empregado da uchar ia Não ha aqui-nada de censurável . Seria en t re tan to mui to digno de censura que q u e m recebia tal obsequio não o pro-curasse pagar com um e x t r e m o de c iv i l idade : a moça convidou pois ao Leonardo para a juda- la a t o m a r o caldo. E que grosseiro seria elle se não acei-tasse tão bel lo o Pe rec imen to? Aceitou.

De repente sente-se ab r i r u m a p o r t a : a moça, que t inha na mão a t i je l la , es t remece , e o caldo en-torna-se .

O tumaAarguta, que acabava de chegar inespe-r a d a m e n t e , fôra a causa de t udo isto. O Leonardo correu p rec ip i t adamente pelo caminho mais curto q u e e n c o n t r o u ; sem duvida em busca de out ro caldo, uma vez que o pr imei ro se t inha entornado. O toma-largut<r cor re - lhe l ambem ao alcance, sem duvida para ped i r - lhe que trouxesse desta vez q u a n -t idade que chegasse para um terceiro.

O caso foi que dahi a pouco ouviu-se lá por den-t ro b a r u l h o de pratos quebrados , de moveis at i rados ao chão , gr i tos , a l a r i d o ; viu-se depois o Leonardo a t ravessa r o páteo da uchar ia á c a r r e i r a , e o loma-tar guta vol tar com os galões da f a r d a a r rancados , e esta com u m a aba de menos .

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No dia seguin te o Leona rdo foi despedido da ucha r i a .

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C l P I T I J I i O X V I .

C I Ú M E S .

No dia segu in te já o Vidigal sabia de cór e sa l -t eado tudo q u a n t o bavia succed ido ao L e o n a r d o , e póz-se a l e r t a , po is q u e a occasião e ra o p p o r -t u n a .

O L e o n a r d o e n t r á r a p a r a a n c h a r i a c o m o pé e s q u e r d o : a t o r m e n t a por que bavia passado nada foi em c o m p a r a ç ã o da q u e lhe cahiu nas costas , q u a n d o em casa se soube da causa ve rdade i r a de sua s ab ida .

É u m a g r a n d e desgraça não co r r e sponde r a m u -lhe r a q u e m a m a m o s aos nossos a Afectos; po rém não é t a m b é m pequena desven tu ra o c a h i r m o s nas mãos d e u m a m u l h e r a q u e m deu na cabeça q u e -re r -nos bem devéras . O L e o n a r d o podia d a r a prova des ta u l t i m a ve rdade . V i d i n h a era c i u m e n t a a t é n ã o p o d e r m a i s : o r a , as m u l h e r e s teem u m a inf in i -dade de mane i ras de m a n i f e s t a r este s e n t i m e n t o . A u m a s d á - l h e para c h o r a r em um c a n t o , e chorão ah i em a r de graça di lúvios de l a g r i m a s : isto é m u i t o

TOM. I I . 1

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c o m m o d o para quem as tem de so í f rer . Ou t r a s recor-r e m ás represa lias, e nesse caso desbancão inconti-nente a q u e m q u e r q u e s e j a : esta manei ra é segu-r a m e n t e mu i to agradavel para elias própr ias . Outras não usão da mais leve represa l ia , não espremem uma l ag r ima , mas assim por um espaço de oi to ou quinze dias , desde que desponta a a u r o r a , a té que cabe a noite , r e smungão um calendar io de lamen-tações , em q u e en t r ão seu pai , sua mã i , seus pa-rentes e amigos, seu compadre , sua comadre , seu do te , seus filhos e filhas, e tudo por ahi a l é m ; isso sem cessar um só ins tante , sem um segundo de des> canso : de mane i ra a de ixa r na cabeça do misero q u e a escuta uma asuada e t e r n a , capaz de fazer amol lece r um cerebro de pedra . O u t r a s entendem q u e devem affectar desprezo e pouco caso: essas tor-não-se d iver t idas , e faz gosto vê-las. Ou t r a s emfim deixão-se t o m a r de um fu ro r desabrido*e irrepri-mível ; p rague jão , b l a sphemão , q u e b r ã o os trastes, r o m p e m a r o u p a , espancão os escravos e filhos, des-compõem os v iz inhos : esta é a peior de todas as mani fes tações , a mais desesperadora , a menos eco-nómica , e t a m b é m a mais i n f r u c t i f e r a . Vid inha era do n u m e r o destas u l t imas .

Apenas pois, como ha pouco d iz íamos , se veri-ficou a verdadeira causa da sabida do Leonardo , desabou um tempora l q u e só terá semelhan te no q u e ha de preceder ao a n i q u i l a m e n t o do globo. Depois de gr i ta r , c h o r a r , maldizer , b lasphemar , ameaça r , rasgar , q u e b r a r , d e s t r u i r , Vid inha parou u m ins tan te , concent rou-se , med i tou , e depois, como t o m a n d o uma g rande r e so lução :

— Minha mãi , disse d i r ig indo-se a u m a das ve-lhas, q u e r o a sua m a n t i l h a . . .

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F i l h a de Deus , acud iu a ve lha , q u e desa t ino é esse? onde é q u e ides agora de m a n t i l h a ? . . .

— E u cá sei onde \ o u . . . q u e r o a sua m a n t i l h a . . . t e n h o d i t o . . . q u e r o a sua m a n t i l h a . . .

F o r ã o todos r eun indo- se em roda de V i d i n h a , so rp rend idos por aque l l a r e so lução .

O L e o n a r d o eslava sen tado , ou an tes e n c o l h i d o a seu c a n t o , q u e d o e s i lencioso.

— Q u e r o a sua m a n t i l h a , m i n h a m ã i ; q u e r o , e q u e r o

— Mas pa ra o n d e ides , r a p a r i g a ? . . . O r a , m e u D e u s ! . . . isso foi cousa q u e vos fizerão...

— Q u e r o i r á u c h a r i a . . . J e s u s ! . . . Q u e r o i r . . . q u e m e i m p o r t a q u e se ja casa do

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r e i ? . . . Hei d e i r . . - hei de p r o c u r a r o tal toma-lar-gura... q u e r o f aze r - lhe cá duas p e r g u n t a s . . . e, ou o M e n i n o - J e s u s não é filho da V i r g e m , o u na t a l u c h a r i a não fica ho je cousa sob re cousa .

— Q u e l o u c u r a , r a p a r i g a . . . q u e d e s a t i n o ! . . . Os dous p r imos r ião-se i n t e r i o r m e n t e do q u e se

es tava passando . Não ha cousa mais e m i n e n t e m e n t e prosa ica d o

q u e u m a m u l h e r q u a n d o se e n f u r e c e T u d o q u a n t o em V i d i n h a havia de r e q u e b r o , d e l angu idez , de vo lup tuos idade t i n h a de sappa rec ido ; estava fe ia , e a té r e p u g n a n t e .

N i n g u é m h o u v e que a pudesse desviar do seu pro-posi to : el la foi t o m a n d o a m a n t i l h a e d i spondo-se a s ah i r ; rogos , choros , n a J a a pôde c o n t e r .

O L e o n a r d o viu q u e o caso estava mal p a r a d o , e t e n d o es tado a té e n t ã o ca lado , decid iu-se t a m b é m a ped i r a V id inha q u e não sahisse. F o i , como se-cos-t u m a d izer , peior a e m e n d a q u e o soneto .

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Qual ! . . . r e sponde V i d i n h a . . . . essa agora é que havia de ser b o n i t a . . . . Q u a l ! pois eu não hei de s a h i r ? . . . T i n h a q u e ver . . . . en tão por pedido do se-n h o r ? Ora q u a l . . . .

E foi s a h i n d o . Começava a anoi tecer .

_ A gente de casa ficou toda na ma io r afflicçao ; n i n g u é m sabia o que se havia de fazer . O Leonardo t o m o u a resolução de a c o m p a n h a r Vidinha a ver se a de t inha em c a m i n h o .

Vid inha caminhava tão depressa q u e a pr incipio o L e o n a r d o quasi que a perdia de vista ; f ina lmente conseguiu a lcança- la , e começou a ped i r - lhe que voltasse, fazendo as maiores promessas de comedi r -se dali em d i an t e , e de lhe não da r mais motivos de desgosto. V id inha po rém a nada a t t end ia , e cami-nhava s e m p r e . O L e o n a r d o r e c o r r e u a a m e a ç a s ; Vid inha r edob rou a passos : voltou de novo a roga-t i v a s ; Vid inha caminhava s empre .

J á estavão no largo do Paço : V i d i n h a , quasi a c o r r e r , de ixou o L e o n a r d o u m a s poucas de braças a t r á s de si , en t rou m u i t o ad ian te del le pelo por tão da uchar ia a d e n t r o , e desappareceu. O Leonardo parou um ins tan te a resolver-se se en t r a r i a t a m b é m ou não. F i n a l m e n t e decidiu-se a e n t r a r . No mo-m e n t o em q u e ia t r a n s p o n d o a soleira do po r t ão , vol tou r epen t inamen te , e ia d i spa rando u m a c a r r e i r a : u m a mão m a g r a , mas vigorosa, o deteve aga r r an -do -o pela gol la da j a q u e t a : era a mão do m a j o r Vi-d iga l , com quem elle havia e sba r r ado ao que re r e n t r a r , e de q u e m pre tendia fugir . Vendo q u e lhe seria inútil q u a l q u e r t en ta t iva , po rque ali per to hav ia g u a r d a , o Leonardo res ignou-se . O ma jo r o lhou para e l le so l t ando u m a r i sad inha mal igna .

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e disse- lhe apenas m u i t o pausada e des i ansada m e n t e :

Ora vamos . . • • •

O L e o n a r d o en t endeu b e m a significação d a -quel las d u a s pa l av ra s , e c a m i n h o u , ao l ado do m a j o r , na d i recção q u e este l he indicava .

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C A P I T U L O X V I I .

F O G O D E P A L H A . ...

• *

D e i x e m o s o L e o n a r d o seguindo seu des t ino a c o m -p a n h a d o do m a j o r Vid iga l , e vamos ver o q u e se passou na ucha r i a depois de sua pr isão . V id inha in -dagou a q u i , indagou al i , e lá e n t r o u como u m ra io pela casa do toma-largura. A moça do caldo, acbando- se nessa occasião d e s c u i d a d a , soff reu um g r a n d e sus to com a chegada de V i d i n h a , q u e , co-nhecendo por ins t inc to ser aquel la a causa de seus ma le s , foi l a r g a n d o a m a n t i l h a sob re u m a cadei ra e i nves t indo pa ra ella.

—- V e n h o a q u i , disse, pa ra lhe dizer m e s m o na cara q u e V m . é u m a c rea tu ra sem sen t imen tos . . . .

A m o ç a , não p o d e n d o a t i n a r com a s ignif icação d.aquilio, f icou pasma e sem saber o q u e hav i a de responder .

V i d i n h a p r o s e g u i u : — Não t e m sen t imentos , d igo - lh ' o , e n inguém m e

ha de desd izer . — V a m o s ver q u e d i a b o de h is tor ia é es ta , b ra -

dou u m a voz de es tentor .

j i r - r . ; -ki p V í . f í E t '•s , f * * . r^Xhi i '

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226

E r a o toma-largura q u e , achando-se em casa naque l la occasião, e tendo ouvido as duas pr imei ras apos t rophes de V i d i n h a , chegava para d a r fé do que se passava.

P o r mais a r rogan te que fosse a voz do toma-lar-gura:, e por mais ameaçadora q u e fosse a sua figura quasi he rcú lea , Vid inha não recuou um passo, não desfez uma ruga da tes ta , an tes pareceu mostrar q u e a sua presença ali favorecia suas intenções ; t a n t o q u e d i r ig indo-se a elle o foi logo apostro-p h a n d o t a m b é m pela seguinte m a n e i r a :

— E ' V m . um h o m e m que eu não sei pa ra que t raz ba rbas nessa ca ra . . . .

A sorpreza , e mesmo t a m b é m a figura de Vidi-n h a , decompos ta pela ra iva , desa rmárão -n 'o um p o u c o ; e respondeu mais m a n s a m e n t e :

— Então , men ina , veiu aqui só para dizer cousas assim tão b o n i t a s ? Q u e m a t r o u x e c á ?

- — O r a , quem m e havia de t r a z e r ? respondeu Vidinha em tom de m o f a , lançando para a terceira personagem desta scena u m o lha r s ign i f i ca t ivo ; ora , q u e m m e havia de t r a z e r ? . . . Q u a l ! . . . eu vim só v e r se podia t o m a r um caldo !...

S A moça do toma-largura empa l l ideceu , este re-galou os o lhos , e abanou com a cabeça como quem dizia — e n t e n d o , — e quiz ficar i m m e d i a t a m e n t e m u i t o zangado com a recordação daque l le facto, q u e a h u m i l d a d e de sua companhe i r a , e talvez m e s m o o seu h u m o r , t inha feito esquecer. Vidinha po rém para dizer aquel las u l t imas palavras t inha serenado um pouco o seu s emb lan t e , e ganhara m u i t o em seus encantos desf igurados a té então pela raiva ; a l ém disso, ao p r o n u n c i a r o — qual — do

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cos tume, descer ra ra u m l igeiro sor r i so , d e i x a n d o ver seus magní f icos den tes .

O toma-largiira parec ia pe r t ence r talvez á f a m í -lia dos L e o n a r d o s ; en t e rneceu - se i m m e d i a t a m e n t e , e não teve a n i m o senão de sor r i r - se e r e sponder e m t o m desconce r t ado :

— O r a ! . . . — O r a , rep l icou V i d i n h a ; e en t ão , elle não diz

— o r a ? — Qua l ! é preciso não t e r pinga de vergo-n h a : es tas duas c r ea tu ra s nascérão u m a para a o u t r a : Deus os fez e o D i a b o os a j u n t o u ; u m a t o m a caldo e o o u t r o diz — o ra . . . .

E foi t o m a n d o a m a n t i l h a e t r a t ando de sah i r . Dera t u d o e m fogo de p a l h a . Ella t i n h a e spe rado

a c h a r respostas energicas ás suas invect ivas , e nes te p r e suppos to conce r t á r a mil planos de a t a q u e s , de d e f e s a , de g r i t a r i a , de pancadas , de pr isões , etc. Nada dis to po rém t inha succed ido , e s e m saber po r -q u e , ella mesma se sent ia um pouco a l l iv iada , quas i a t é m e s m o sa t i s fe i ta . Deu ma i s r a j adas aos dous ; exp l i cou q u e m e r a , m a s não disse o q u e q u e r i a . Af ina l , sem nada t e r fe i to sah iu d izendo :

Ah ! pensavão q u e a cousa havia de ficar as-sim ? Disse- lhes poucas , p o r é m boas . . . .

O coração da m u l h e r é assim ; pa rece fe i to de pa-l h a , incendêa-se com fac i l idade , p roduz m u i t a f u -m a ç a , m a s e m cinco m i n u t o s é t u d o cinza q u e o ma i s leve sopro espa lha e desvanece .

O toma-largura, apenas a viu s a h i r , em vez d e p r o r o m p e r n u m a m a t i n a d a con t ra sua c o m p a n h e i r a , c o m o ella o esperava , pal l ida e t r e m u l a , mos t rou-se a t é t r a n q u i l l o , p re t ex tou u m a faze r , e sah iu t a m -b é m i m m e d i a t a m e n t e . A n d a v a - l h e na cabeça u m p lano cu j a real ização f a r i a , como se cos tuma dizer ,

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cahi r a sopa no mel . V id inha t i nha -o e n c a n t a d o ; o L e o n a r d o o havia of íendido ; conquis ta r a inda que fosse u m a d i m i n u t a parcel la do a m o r da Vid inha , ser ia ao mesmo t empo vingar-se do Leona rdo e al-cançar o t r i u m p h o de u m desejo . P o r mais impos-sível que lhe parecesse o negocio, nem por isso es-moreceu ; era tenaz e paciente.

Chegando ao por tão da ucha r i a indagou da sen-t inella a direcção que Vid inha t inha t o m a d o , seguiu po r e l la , e em breve alcançou-a : acornpanhou-a de longe para saber - lbo da m o r a d a , e viu-a en t ra r em casa .

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C A P I T U L O XVIII.

R E P R E S A L I A S .

Q u a n d o V i d i n h a chegou á casa achou a inda toda a f ami l i a no m a i o r sus to e c o n f u s ã o pelo desa t ino q u e ella acabava de p r a t i c a r : as d u a s ve lhas , ao vê- la e n t r a r , l ançá rão- se - lhe ao pescoço, e cob r i r ão -na de a b r a ç o s , de be i jos e de l ag r imas . El la es tava a inda po rém sob a inf luencia das emoções v io len tas po r q u e acabava de passar , e não pôde c o r r e s p o n d e r áquel las provas de a m i z a d e ; a t i rou - se s o b r e u m a b a n q u i n h a , e levou a lgum t e m p o ca lada , sem d a r a m e n o r respos ta ás mil pe rgun tas q u e lhe e rão d i -r ig idas . Esse s i lencio mais a u g m e n t a v a a a n c i e d a d e da f a m i l i a : finalmente resolveu-se ella a r o m p ê l - o ,

e x c l a m a n d o -— Pensavão q u e o caso hav ia de ficar a s s i m ? e n -

g a n á r ã o - s e . . . Q u a l ! . . . eu q u e r o que fiquem s a b e n d o p a r a q u a n t o p r e s t o . . .

— En tão , r a p a r i g a , fos te fazer a l g u m a a s n e i r a . . . — Asne i r a . . . q u a l . . . fiz o q u e faz q u a l q u e r m u -

lhe r q u e t em sangue na gue l r a . . . E agora venha elle pa ra c á , q u e t emos a inda contas a a j u s t a r . . .

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— E verdade , e elle que a inda não veiu . . . já t i-nha t e m p o de chegar , pois par t iu logo no vosso al-cance . . .

— E verdade . . . accrescentou Vid inha com certo s u s t o ; na tal cova da uchar ia não en t rou el le• e q u a n d o de lá sahi não o vi mais . . .

— Não lhe vá t e r s u c c e d i d o a lguma cousa! . . . O m a j o r o j u r o u ! . . .

— O m a j o r ! . . . r epe t i rão todas com os signaes do ma i s visivel sus to .

E levantou-se de novo em casa a confusão , por-q u e , como os leitores terão visto, apezar dos dissa-bores que o Leona rdo causava áquel la f amí l i a , todos a l i , excepto os dous p r imos r ivaes, quer ião- lhe m u i t o e m u i t o bem. F a l l a r a q u a l q u e r dos dous pri-mos pa ra que o fossem p rocura r , era cousa de que n i n g u é m se l e m b r a v a , tão certos es tavão que elles se havião recusa r . Ti verão pois de esperar q ue che-gasse da rua o ant igo sacristão da Sé para da rem as providencias precisas.

Os lei tores terão talvez e s t r a n h a d o que em tudo q u a n t o se t em passado em casa da famíl ia de Vidi-nha não t e n h a m o s fa l lado nesta u l t ima personagem; t emo- lo fe i to de propos i to , para d a r assim a en-t ende r q u e e m nada disso tem elle t o m a d o par te a l g u m a .

Causa r e m o t a e p r imord ia l de todos estes acon-t ec imen tos , pois foi em consequência de sua ami -zade q u e o L e o n a r d o se j un tou á famí l ia , por mui to fel iz se t em dado em que não t e n h ã o cah ido sobre elle inculpações de q u e com diff iculdade se poderia d e f e n d e r ; h o m e m de tacto, conservara uma posição a b s o l u t a m e n t e neu t ra l em todas aquel las lu tas . Eis-aqu i pois qua l a causa do nosso si lencio sob re elle.

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4 09

I n f e l i z m e n t e naqüe l l a no i t e r eco lheu-se ma i s tarde q u e de cos tume , e q u a n d o chegou já não e r a t empo de fazer cousa a l g u m a . T o d a a fami i ia passou a noi te na m a i o r anc i edade , desvanec idas de ce r t a hora em d i a n t e as esperanças de ver checa r o Leo-nardo a cada m o m e n t o . N i n g u é m duv idava ma i s que a l g u m a cousa tivesse succedido ao L e o n a r d o , e nos q u a d r o s m e d o n h o s q u e cada qua l i m a g i n a v a , a figura do m a j o r Vidiga l apparec ia s e m p r e e m p r i -mei ro p l a n o ; n i n g u é m t a m b é m d u v i d a v a q u e no que r q u e fosse q u e houvesse succedido ao L e o n a r d o , o m a j o r ter ia po r força p a r t e act iva e i m p o r t a n t e , senão p r i n c i p a l .

Assim ao a m a n h e c e r do d i a segu in te o p r i m e i r o logar o n d e m a n d á r â o s a b e r de l le foi na casa da g u a r d a . Mas, com sorpreza ge ra l , elle não se achava ne l l a , nem sab ião not ic ias s u a s ; p rocu rou - se em diversos ou t ros pon tos , e nada de novo , nem novas nem m a n d a d o s . P o r l e m b r a n ç a de V i d i n h a f o r ã o p r o c u r a r a c o m a d r e , e i n f o r m á r ã o - n a de todo o oc-c o r r i d o : a p o b r e m u l h e r , q u e t u d o ignorava , poz as mãos na c a b e ç a :

— Aque l l e rapaz nasceu em nino d ia , disse e l l a , ou en t ão aqu i i l o é cousa q u e lhe fizerão; do con-t r a r io não pôde s e r . . .

E pôz-se logo a c a m i n h o a p r o c u r a r o a f i l hado . Na c o m a d r e esta vão f u n d a d a s todas as e spe ran -

ças-, n inguém duv idava q u e apenas ella se puzesse na r u a p r o m p t a m e n t e se saber ia o des t ino do Leo-n a r d o . E n g a n á r ã o - s e todos , p o r q u e n e m a p róp r i a c o m a d r e foi capaz de d a r com elle, por t ão b o m c a m i n h o o t i n h a levado o m a j o r . Passa rão m u i t o s dias na ma i s c o m p l e t a ignoranc ia a r e spe i to d o seu fim: e começárão desde en t ão a appa reee r sus-

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pei tas de q u e elle p ropr io teria talvez interesse em occul tar -se , e de que era essa a causa p o r q u e ainda o não bavião descober to . Estas suspei tas tomarão vu l to , e uma certa indignação começou a apparecer em toda a famí l ia contra seme lhan te proceder . A ind ignação cresceu e t o m o u r epen t inamen te pro-porções de odio in tenso , a té da par le das próprias duas velhas .

Rea lmen te , a ser ve rdade o que pensavão, não have r i a ingra t idão mais negra do que a do Leonardo para com aquel la que tão ben ignamen te o acolhera. Nas invent ivas a cada m o m e n t o dir igidas contra e l le , Vid inha tomava sempre o p r imei ro Iogar, e t i n h a razão para isso; a lém de ter contra eíle as razões q u e t i n h ã o todos os ou t ros , t i n h a ainda o despei to do a m o r offendido. E m cer tos corações o a m o r é ass im, tudo q u a n t o t em de t e rno , de dedi-cado, de fiel, desapparece depois de cer tas provas, e t r a n s f o r m a - s e n u m incurável od io .

^ Uma cousa s ingular notara a Vid inha desde que fô ra á u c h a r i a , e é que não se passava depois disto um só dia em que eila não visse pelo menos duas ve-zes o toma-largura. T i n h a - o ella mos t rado á fami-l i a r já todos o conhecião . A pr incipio isso incommo-dou-a , e t an to mais que elie não passava uma só vez q u e lhe não tirasse o chapéo com ar r isonho : pa rec ia - lhe s e m e l h a n t e cousa u m a prova de des-a b r i d a fal ta de ve rgonha . Mais t a rde começou a suspei tar q u e aquel la passagem cons tan te e aquelles compr imen tos devião por força ter a lguma expli-cação.

Aconteceu q u e u m a das velhas , a mãi de Vidi-n h a , confessasse não ler achado o toma-larguni mal apessoado, e esta idéa passou a toda a família.

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Um dia u m a das velhas achando-se na janella com Vid inha , na occasião em que passava o toma-lar-aura, disse en t re dentes , e como que i n d i f e r e n -temente :

— Se fosse comigo, bem sabia eu cá o que havia de f aze r . . .

V i d i n h a , se bem que não pedisse explicação da-quelle d i to , não deixou comtudo de da r - l he aüenção e de sc ismar nelle por a lgum tempo.

No dia seguinte a mesma velha c h a m o u - a para a janella á hora do dia an tecedente ; e o toma-lar-gura passou como sempre , e fez o seu c u m p r i m e n t o . A velha disse nessa occasião, como comple tando o seu pensamento da vespera :

— O r a , eu pregava um mono ao tal Leonardo . . . . e então este que era bem pregado, por ser ao mesmo tempo aos dous, a elie e a ella.

L e n d o na i n t imidade do pensamento da velha, com a nossa l iberdade de con tador de historias, di-remos ao lei tor , que o não tiver ad iv inhado , que aquel le — e!la —• refer ia -se á moça do caldo.

Dada esta expl icação, os menos perspicazes en-tenderão sem duvida em que consistia o mono que a velha pregaria ao Leonardo .

V id inha , que nada t inha de pouco intel l igente , comprehendeu tudo ás mil maravi lhas , e com tanto mais faci l idade, d igamo-lo aos lei tores, quan to ta l -vez que o pensamento da velha correspondesse a seus proprios pensamentos. Repet i rão-se depois disto mais a lgumas indirectas da par te da velha , e Vidi-nha chegou f inalmente a explicações.

Pouparemos aos leitores certos de ta lhes , e dire-mos que o resul tado de tudo aqui!lo foi ver-se, pou-

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J 1-2

cos dias depois, o loma-largura em casa de Vidinha fazendo uma visita á famíl ia ! !...

As visitas cont inuarão , e pela vizinhança come-çou a ouvir-se um r u m o r que t inha tan to de malé-volo como de verdadeiro.

Estavão as cousas neste pé. A paz t inha sido res-t i tu ída á famí l ia . Não sei quem propoz que se solemnisasse o res tabelecimento do socego e as novas venturas com uma.sucia para fora da cidade. Effec-tuou-se seme lhan te pensamento . P o r uma s ingular i -dade escolherão para logar da patuscada os — Ca-jueiros, — onde a famíl ia t inha feito conhecimento com o Leonardo .

O toma-largura fôra convidado, nem podia dei-xar de sê-lo, porque era elle um dos motivos da festa, infe l izmente porém t inha elle um defei to : no estado ord inár io costumava beber soff r ivelmente ; q u a n d o t inha a lgum motivo de alegria cos tumava d o b r a r a dóse, e quando isto succedia dava- lhe para valentão e desordeiro. Disto resultou que no meio da sucia, na occasião de j a n t a r , deu-se por offen-dido, não sabemos porque, e começou por agar ra r nas pontas da esteira que servia de mesa, e fazer voar sobre a cabeça dos convivas pratos , ga r ra fas , copos e tudo o mais. Os dous pr imos quizerão con-te-lo, mas não o consegui rão: Vidinha chorava , as velhas se mald iz ião ; uns tenta vão restabelecer a paz, e outros augmentavão a desordem. Reinava por con-sequência u m a algazarra infernal .

Q u a n d o menos o esperavão, viu-se su rd i r d ' en t r e as moitas o ma jo r Vidigal fechando um circulo de granadeiros que par t ião de sua esquerda e de sua d i r e i t a , e que encerravão toda a sucia.

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— S e g u r a aque l l e h o m e m , g r a n a d e i r o , disse o ma jo r a um dos seus so ldados , a p o n t a n d o para o toma-largura q u e se achava em pé c a m b a l e a n d o , tendo n ' u m a m ã o u m ba la io em q u e viera a f a r i n h a , e na o u t r a u m a g a r r a f a com q u e ameaçava os c i r -cumstan tes .

tV o r d e m d o m a j o r o g r anade i ro hes i tou : t o d a a f amí l i a , r e u n i n d o - s e em um g r u p o , so l tou u m grito de e s p a n t o a p o n t a n d o pa ra o so ldado .

— E n t ã o ! rep l icou o m a j o r v e n d o aque l l a hesi-

tação. O g r a n a d e i r o deu um passo p a r a o toma-lnrgura. — Devagar com a louça , c a m a r a d a , b r adou e s t e ;

Jemhre-se que a i nda não a j u s t á m o s contas a respe i to daque l l e caldo....

O toma-largura acabava de r e c o n h e c e r n o g ra -n a d e i r o o nosso a m i g o L e o n a r d o , como toda a f a -mí l ia o t inha r econhec ido apenas elle appa receu .

E r a com effe i to elle.

ToM. II. 8

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C A P I T V L O X I X .

i m 0 G R A N A D E I R O .

Es tavão pois as contas a j u s t a d a s c o m p l e t a m e n t e en t r e o L e o n a r d o e o torna-largura; h a v i ã o - s ç v ingado u m do o u t r o : o u l t i m o go lpe na lu ta c o m -pel i ra ao L e o n a r d o : elle abençoou o acaso, e m e s m o o m a j o r Vid iga l , por l he t e r fo rnec ido occasião d e i r a r r a n c a r dos láb ios de seu r iva l a taça da ven-t u r a . Até quas i q u e e s t imou q u e lhe t ivessem sen-t ado p raça ; e b e m dissemos nós q u e p a r a elle não havia f o r t u n a q u e não se t r a n s f o r m a s s e e m desd i t a , e desdi ta d e q u e lhe não re su l t a s se f o r t u n a .

O toma-largura, c o m o d i s s e m o s , f ô r a l evado pelo L e o n a r d o ; e os le i to res , f ami l i a r i s ados com o des t ino q u e t i n h ã o todos os p r i s ione i ros d o m a j o r V id iga l , a d i v i n h ã o j á q u e lhe i n d i c á r ã o o c a m i n h o da casa da g u a r d a no largo da Sé . O es tado em q u e elle se a c h a v a n ã o p e r m i t t i u p o r é m q u e o levassem até lá . O s vapores q u e d o e s t o m a g o lhe t i n h ã o su-b i d o á cabeça forão-se pouco a p o u c o c o n d e n s a n d o ,

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e em meio do caminho pesavão-Ihe sobre o cerebro vinte a r robas ; a cabeça, não se podendo manter , abandonou-se ao t ronco, que , achando o peso exces-sivo, quiz appellar para as p e r n a s ; estas porém não erão mais fortes , e , curvando-se t remulas e bambas , derão com o valentão de a inda ha pouco est irado na calçada. Os soldados não o puderão levantar , por-que e ra , como dissemos a principio, de uma corpu-lência colossal. Foi mister pois abandonar a presa: o m a j o r não teve grande diíliculdade nisso, pr imeiro, pelo t raba lho que daria qua lquer outra resolução, segundo, po rque se bem que da ul t ima classe, sem-pre era o toma-h/rgura gente da casa real , e nesse tempo tal qua l idade trazia comsigo não pequenas immunidades .

O Leonardo tentou ainda alguns meios para que lhe não escapasse assim sem resultado mais estron-doso a pr imeira presa que fazia, pois era isto de máo agouro para o seu fu tu ro m i l i t a r ; mas t am-bém sua mais hella vingança estava tomada .

F icou pois o toma-largura abandonado na cal-çada.

Sat is façamos agora em poucas palavras a curiosi-dade que teem sem duvida os leitores de saber o como chegara o Leonardo á posição em que se achava. Agarrado pelo ma jo r na porta da uchar i a , como se sabe, fora por elle em pessoa conduzido a logar seguro , donde só sahira para sentar praça no Reg imen to Novo. Todos os batalhões q u e havia na cidade t inhão u m a companhia de granadei ros , e ha-vendo u m a vaga na companhia do Reg imento Novo, fôra o Leonardo escolhido para preenchê-la . Sabendo disto o ma jo r , reclamou-o para seu serviço (porque era dessas companhias de granadeiros que se t i ravão

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soldados pa ra o serviço pol ic ia l ) , pois c o m o h o m e m e x p e r i m e n t a d o naque l l a s cousas , p resent i ra q u e el le lhe seria u m valioso aux i l i a r . Até um ce r to p o n t o o m a j o r não se enganou . Com e í fe i to o L e o n a r d o , sendo n a t u r a l m e n t e a s t u t o , e t endo a lé ali vivido n ' u m a r ica escola de vadiação e p e r a l t i s m o , dever ia conhecer todas as m a n h a s do offieio. Havia p o r é m u m a c i r c u m s t a n c i a q u e o e m p e d i a de p r e s t a r bons serviços, e e ra q u e com el le p r o p r i o , com suas p ró -prias f a ç a n h a s , t i n h a m u i t a s vezes o m a j o r de gas ta r o t e m p o q u e lhe e ra preciso para o d e m a i s . O pode r dos h á b i t o s a d q u i r i d o s era nel le t a l , q u e nem m e s m o o r igor da disc ipl ina lhe servia de b a r r e i r a .

Con temos a p r ime i r a d i a b r u r a q u e lhe l e m b r o u p r a t i c a r depois q u e vestiu f a r d a , e q u e foi t a n t o ma i s sensível q u a n t o a p r inc ip io se m o s t r á r a u m so ldado po r tal m a n e i r a s isudo que ia quas i a d q u i -r i n d o r e p u t a ç ã o de r ígido.

Os gaia tos e suc ian tes da c idade , a q u e m o m a j o r Vidigal dava c o n s t a n t e m e n t e caça , l e m b r á r ã o - s e d e i m m o r t a l i s a r as suas f açanhas por q u a l q u e r meio , e i nven ta rão u m f a d o com o segu in te e s t r i b i l h o nas can t igas

Papai lêlê, seculorum.

Nesse f ado a p e r s o n a g e m p r inc ipa l r e p r e s e n t a v a o m a j o r q u e , figurado m o r t o , v inha e s t ende r - se a m o r t a l h a d o no m e i o da sala ; as demai s pe r sonagens can t avão - lhe em roda can t igas a l lus ivas , q u e t e r a i i -navão todas pelo e s t r i b i l ho q u e ac ima i n d i c á m o s .

O m a j o r , q u e d is to s o u b e r a , a n d a v a em busca d e u m a occasião o p p o r t u n a para t i r a r d e s f o r r a d e se -m e l h a n t e g race jo , q u e dava a e n t e n d e r qua l e r a , a seu respe i to , o dese jo dos q u e o t i n h ã o i n v e n t a d o .

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Teve um dia denuncia que n ' u m a casa do mor ro da Conceição se preparava para essa noi te um rigoroso — Papai lêlê, — e dispoz as cousas para pi lhar os da roda em flagrante.

A ' hora oppor tuna mandou dous ou tres grana-deiros adiante , cada um por sua vez, para examinar o que hav ia , t endo combinado p r ime i ramen te um signal positivo e ou t ro negativo para indicarem uns aos ou t ros se havia ou não occasião e mot ivo de dar o a s sa l to : estes signaes o g ranade i ro q u e devia ap-p rox imar - se mais da casa communica r i a ao que lhe ficasse i m m e d i a t o ; este passaria ad ian te , o outro far ia o mesmo até chegar ao logar em que estava o m a j o r ; era u m verdadei ro systema de senlinellas avançadas , como se se t ra tasse de uma grande cam-panha . No caso de ser dado o signa! positivo, mar-cha r i ão todos vagarosamente , e se reun i r ião para o a s sa l to ; dado o signal negat ivo, d i spersar -se-h iãoem si lencio, po rque um dos maiores capr ichos do major era nunca mos t ra r que havia sido logrado. Ao Leo-n a r d o coube a incumbência de ser a vedeta mais p róx ima ao in imigo, o de da r o p r ime i ro signal. Marchou pois ad ian te , e os companhe i ros postárão-se á espera. Espera rão por longo t empo , e cançárão de e s p e r a r ; f ina lmente , q u a n d o j á se ião d ispondo a cont ravi r ás ordens e a b a n d o n a r o posto para pro-cu ra r o Leona rdo , ouv i rão tres vezes seguidas um longo assovio, q u e era o signal negat ivo convencio-nado . E m vi r tude dis to dispersárão-se exasperados, e forão depois reuni r - se ao ma jo r e m b a i x o da la-de i ra , m o logar que dá para a en t rada do Al jube . Abi reunidos , esperárão mui to t empo pelo Leonardo sem que élle apparecesse. O m a j o r pr inc ip iou ascis-mar com o caso ; de novo e r epen t inamen te deu or-

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dem de s u b i r o m o r r o . S u b i r ã o com effei to , e m a r -chando desta vez o m a j o r ad i an t e , forão ter á casa ind icada . Com sorpreza de todos , apenas se fo r ão a p p r o x i m a n d o v i rão luzes e ouv i rão o z u m - z u m das violas e a toada das can t igas . F e r v i a d e n t r o o f a d o r igoroso . S e m necess i ta r g randes p recauções , p o r q u e todos pa rec ião en t r egues á m a i o r s e g u r a n ç a , cercou o m a j o r a casa , e a p a n h o u t u d o , como se c o s t u m a d izer , com a boca na bot i ja . Es tava-se e x a c t a m e n t e no pon to so lemne da c e r e m o n i a .

Achava-se a pe r sonagem que r ep re sen t ava o Papai a m o r t a l h a d o em u m lençol , com a cabeça cobe r t a , de i tado no chão , e a c h u s m a em roda a c a n t a r e a d a n s a r .

Q u a n d o o m a j o r b a t e u , e foi e n t r a n d o , a c o m p a -n h a d o da sua gente , ficou t u d o ge lado de m e d o : o suge i to q u e se achava a m o r t a l h a d o teve u m g r a n d e e s t r emeção , e ficou depois i m m o v e l , c o m o se fosse de p e d r a , r e p r e s e n t a n d o com mai s p r o p r i e d a d e d o q u e talvez desejasse o papel de m o r t o . S e g u n d o seu c o s t u m e , o m a j o r fez c o n t i n u a r po r u m p o u c o a h r i n c a d e i r a em sua presença . Depois c o m e ç o u a i n -dagação das occupaçÕes de cada u m , e, c o n f o r m e o q u e co lh ia , os foi m a n d a n d o e m b o r a , ou p o n d o d e p a r t e , pa ra lhes d a r m e l h o r des t ino . D u r a n t e t o d a esta scena , q u e levou seu t e m p o , o a m o r t a l h a d o de ixou-se ficar i m m o v e l , na m e s m a pos ição , com a cabeça c o b e r t a . Co r r i da toda a r o d a , d isse- lhe o m a j o r :

— O l á , c a m a r a d a da m o r t a l h a , en tão deveras você q u e r q u e o levem d a h i para a cova ?

N e m u m m o v i m e n t o em respos ta . — Ah 1 está mor to- , pe rdeu a f a l i a ; é n a t u r a l . Si lencio p r o f u n d o .

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O m a j o r fez signal a um dos granadei ros , que tocou no sugeito com a ponta do c a m a r ã o : nem as-s im porém elle sequer moveu-se. A um novo signal do m a j o r o g ranade i ro desandou- lhe uma t remenda l a m b a d a . Resusci tou com isso o mor to , e pôz-se de u m sal to em pé. Procurou porém evadir-se por uma jane l la , conservando sempre a cabeça cobe r t a : os granadeiros segurárão-no , e o m a j o r disse- lhe:

— H o m e m , voce por estar mor to não tenha t an ta pressa de ir para o i n f e r n o : fal le pr imei ro com a gente .

E t i rando- lhe o panno da cara accrescenlou: — Ora vamos ver a cara do d e f u n t o . . . . Um gri to de espanto , a c o m p a n h a d o de u m a gar-

galhada estrondosa dos granadeiros , in te r rompeu o ma jo r . Descoberta a cara do morto, reconheceu-se ser elle o nosso amigo L e o n a r d o ! . . .

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C 1 P I T I I I O X X .

N O V A S D I A B R U R A S .

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Não sabemos se va leu ao L e o n a r d o ser aque l la a p r i m e i r a occasião em q u e incor r ia em cas t igo , t e n d o a té e n t ã o g u a r d a d o a mais r igorosa observanc ia de todos os seus deveres , ou se a m e s m a audac ia d o f ac to lhe g r a n g e á r a mais as s y m p a t h i a s do m a j o r ; o caso foi q u e a l ém das r i sadas , dos r e m o q u e s dos ca-m a r a d a s e dos t r anses da meia h o r a q u e es t ivera a m o r t a l h a d o , nada mais lhe succedeu , com espan to de todos , e p r i n c i p a l m e n t e del le m e s m o : o m a j o r dera d a q u e l l e m o d o u m a g r a n d e prova de desusada benevo l enc i a . A n d o u pois o L e o n a r d o po r a lguns dias cab i sba ixo e pensa t ivo , como e smagado ao peso de g randes r e m o r s o s ; os c a m a r a d a s t i r avão daqu i l l o u m p a r t i d o i m m e n s o pa ra m e t t e r e m - n o á b u l h a , e não o d e i x a v ã o p a r a r u m só i n s t an t e socegado na c o m p a n h i a .

— El ie a inda não es tá b e m re susc i t ado , dizia u m passando- lhe por pe r to .

— Q u a l ! dizia o u t r o , el le j á não é des te m u n d o .

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— Papai lê tê seculòrum, entoavao outros em co ro .

A n e n h u m a destas cousas dava elle a menor res-posta, e t inha nisso bom aviso, porque desse modo poupava aos desapiedados camaradas t h e m a para novos r emoques . Passados aquel les transes tudo foi esquecido, e as cousas en t r a r ão de novo em seus eixos o rd iná r ios .

Um dia o m a j o r annunc iou q u e t inha u m a grande e i m p o r t a n t e dil igencia a fazer.

Havia u m e n d i a b r a d o patusco que era o typo per-fe i to dos capadocios daquel le t empo , sobre quem ha mui tos mezes andava o m a j o r de olhos aber tos , sem q u e en t r e t an to tivesse achado occasião de pi-l h a - l o : suge i t inho cu ja occupação era u m a indeci-f rável ad iv inhação para mui ta gente, s e m p r e andava en t r e t an to mais ou menos apa t acado : t udo q u a n t o elle possuia de ma io r valor era um capote em que andava cons tan temen te e m b u ç a d o , e u m a viola que j a m a i s deixava. Gozava r epu tação de h o m e m mui to d ive r t ido , e não havia festa de q u a l q u e r g e n e r o p a r a a qua l não fosse convidado. E m sat isfazer a esses convites gastava todo o seu t empo. O r d i n a r i a m e n t e a m a n h e c i a n ' u m a ruc ia q u e começára na vespera, uns annos , por e x e m p l o ; ao sahi r dah i ia para um j a n t a r de bap t i s ado ; á noi te t i nha u m a ceia de casa-m e n t o . A f a m a q u e l inha de h o m e m diver t ido , e q u e lhe p roporc ionava tão bellos meios de passar o t e m p o , devia-a a c e r t a s hab i l idades , e p r i n c i p a l m e n t e a u m a na qua l não t i n h a rival . Tocava viola e can-tava mu i to bem mod inhas , dansava o fado com grande perfe ição , fal lava língua de negro, e nella cantava a d m i r a v e l m e n t e , f ingia-se a le i jado de q u a l q u e r par te do corpo com mui t a na tu ra l idade , a r r emedava per-

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f e i t a m e n t e a fal ia dos men inos da r o ç a , sabia m i l h a -res de ad iv inhações , e finalmente, — e i s - a q u i o seu mais r a r o t a l e n t o , — s a b i a com r a r a pe r fe ição fazer u m a va r i edade inf in i ta de ca re tas q u e n i n g u é m e ra capaz de i m i t a r . E r a po r consequênc ia as del ic ias das esp i r i tuosas sociedades em q u e se achava . Q u e m dava u m a sucia e m sua casa , e que r i a t e r g r a n d e roda e boa c o m p a n h i a , bastava somen te a n n u n c i a r aos conv idados q u e o T h e o t o n i o (era es te o seu nome)

se a c h a r i a p resen te . Agora q u a n t o á sua occupaçao ou me io de v ida ,

que pa ra mui tos e r a , como d issemos , i m p e n e t r á v e l segredo , o m a j o r Vidigal t a n t o fez q u e a d e s c o b r i u : em dias des ignados da s e m a n a reunia-se no sotão o n d e e l le morava ce r to n u m e r o de pessoas q u e leva-vão a té al ta noi te ab i m e t t i d a s : T h e o t o n i o e ra o ban -q u e i r o de u m a roda de jogo .

Nesta c o n f o r m i d a d e andava o m a j o r a q u e r e r pi-lha - lo e m f l a g r a n t e ; e c o m o ten tava isso desde m u i t o sem q u e o pudesse consegu i r , po r ser s e m p r e i l lu -d ida a sua vigi lancia pela t roca cons tan te q u e fazião os da roda dos seus d ias de r e u n i ã o , reso lveu pôr a m ã o no T h e o t o n i o na p r i m e i r a occasião, e se rv i r - se depois de l le pa ra a c a p t u r a dos ou t ros c o m p a n h e i r o s .

Como os le i tores es ta rão l e m b r a d o s , o L e o n a r d o -ve lho , isto é , o L e o n a r d o - P a t a c a , vivia com a filha da c o m a d r e ; del ia t i n h a u m descenden te , a c u j o nasc imen to nós os fizemos ass is t i r . Po i s apezar de h a v e r j á passado a lgum t e m p o , a c r i ança a inda não es tava bap t i sada . O L e o n a r d o - P a t a c a , a ins tanc ias da c o m a d r e , q u e m u i t o se affl igia com aque l l a de -m o r a , d e t e r m i n o u f i n a l m e n t e o dia q u e e l l a se devia fazer ch r i s t ã . S e g u n d o os háb i to s i m m u t a v e i s , hav ia sucia p o r essa occas i ão ; e , s egundo a m o d a , fo i o

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12/í

Theo ton io convidado. O ma jo r soubera de tudo, e era exac tamente ahi que o esperava, e t inha deter -minado pi lha- lo. Para isso dera aos seus soldados o aviso de que acima falíamos.

Era má sina do m;»jor ter sempre de anda r des-m a n c h a n d o prazeres a lhe ios ; e infel ic idade para nós que escrevemos estas l inhas estar cahindo na mono-tonia de repet i r quasi sempre as mesmas scenas com l igeiras va r ian tes : a fidelidade porém com que acom-p a n h a m o s a época, da qual pretendemos esboçar uma pa r t e dos cos tumes , a isso nos obr iga.

A ' hora a jus tada chegou o ma jo r á essa do Leo-na rdo-Pa taca ; como não havia o menor motivo para violências, porque tudo corria na mais perfe i ta paz, o ma jo r ent rou sozinho, com prévia permissão do Leonardo-Pa taca , e assistiu ao d iver t imento . Q u a n d o elle chegou estava exac tamente Theotonio em scena com as suas hab i l idades . T e n d o esgotado já todas ei Ias, ia recorrer á u l t ima , que era a das care tas . E ' preciso no ta r que elle não sabia só fazer care tas a capr icho , sabia-as t ambém fazer imi tando , pouco mais ou menos , esta ou aquella cara conhe-cida : era isso o que fazia m o r r e r de riso aos cir-cumstan tes .

Es tavão todos sentados , e o Theo ton io em pé no me io da sala olhava para u m , e apresentava u m a cara de v e l h o ; virava-se repen t inamente para ou t ro , e apresentava uma cara de tolo a r i r -se asnat ica-m e n t e ; e assim por mui to tempo most rando de cada vez um typo novo. F i n a l m e n t e , tendo j á esgotado toda a sua a r te , correu a um canto , collocou-se n ' u m a posição que pudesse ser visto por lodos ao mesmo t e m p o , e apresentou a sua u l t ima care ta . Todos des-

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a tá rão a r i r e s t r o n d o s a m e n t e a p o n t a n d o p a r a o m a j o r .

Acabava de i m i t a r com mui t a s e m e l h a n ç a a cara compr ida e c h u p a d a do Vidigal .

O m a j o r m o r d e u os beiços pe rcebendo a caçoada do T h e o t o n i o ; e se já t inha boas tenções a seu res-pei to , a inda as f o r m o u m e l h o r naquel la occas ião .

As r i sadas c o n t i n u a r ã o por mu i to t e m p o ; e e l le , não p o d e n d o a t f r o n l a - l a s impass íve l , e não h a v e n d o , c o m o j á fizemos s e n t i r , mo t ivo j u s t o para um r o m -p i m e n t o , a chou mais conven ien t e r e t i r a r - s e , e pondo - se em posição conven ien te , e s p e r a r q u e a sucia se debandasse , para en t ão c o n v i d a r o T h e o -ton io a ir f aze r a l g u m a s ca re tas aos g r anade i ro s na Casa da G u a r d a .

S a h i u pois c o m p l e t a m e n t e c o r r i d o . E n c o n t r a n d o os seus g ranade i ros q u e t i n h ã o fi-

cado a pouca d i s t anc ia , d i r ig iu - se ao Leona rdo , e fez- lhe s en t i r q u e q u e r e n d o a lodo o cus to naque l la no i t e s e g u r a r o T h e o t o n i o , t emia q u e os de casa desconf iassem disso e lhe dessem escapula po r q u a l -q u e r m e i o ; e r a - l h e pois mis t e r u m a pessoa q u e o fosse v ig ia r de per to sem q u e desper tasse suspe i t a s : essa pessoa d e v i a ser o L e o n a r d o .

— Sou mal visto em casa de meu pa i , r ep l i cou este á p ropos ta d o m a j o r .

— É ho j e u m b o m dia de c o n c i l i a ç ã o — — Talvez não que i r ão r e c e b e r - m e . . . — E sua m a d r i n h a q u e lá se a c h a ? . . . — Mas a filha q u e é u m a vibora con t r a m i m ? . . . — V í b o r a ou não, ha de i r ; q u e q u a n d o m a n d a

a d i s c i p l i n a . . . . Não q u e r o q u e a q u e l l e valdevinos a n d e t o m a n d o i m p u n e m e n t e a m i n h a cara para o r i -ginal d e ca re t a s .

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Os granadeiros , q u e conhecião o Theotonio e lhe sahião da habi l idade , comprehendèrão logo o que t inha succedido por aquel le dito do m a j o r , e des-a tárão por seu t u r n o a r i r . O Leona rdo , por aquelle appel lo á discipl ina, com a qual não se achava em mu i to bom pé de relações desde a noi te do papai-lêlc, venceu todas as diííiculdades e repugnancia que mani fes ta ra no desempenho da missão de que o encar regara o m a j o r , e pôz-se a caminho para a casa de seu pai .

Chegou e b a t e u : assim que de den t ro lhe perce-berão as cores da fa rda e ba r re t ina houve um gri to de medo , e por um movimento que parecia com-binado (o m a j o r l inha razão! ) forão r epen t inamen te apagadas todas as velas da sala, e começou a reinar uma confusão tal , que parecia haver-se t ravado u m a luta en t re todos.

O Leonardo viu nisso u m a pr imei ra contrar ie-d a d e , porém não deixou de achar graça no susto que causara . Resolveu então fa l lar da pa r t e de fora para t r anqu i l l i s a r aos medrosos.

— Bom modo de ser recebido um filho em casa de seu pai! Pa ra quar ta - fe i ra de trevas só lhe fa l tão as m a t r a c a s . . . .

A comadre , q u e ouvira e reconhecera a voz do a f i lhado , desatou a r i r , e x c l a m a n d o :

— Vejão que l og ro ! é o L e o n a r d o ; t ragão as velas, g e n t e : não ha novidade , que o cabo da guarda é nosso compadre .

— Aquel le breje i ro , resmoneou o Leonardo-ve-lho , sempre ha de andar a fazer das s u a s : vejão que susto causou a toda essa g e n t e . . . . O ' amigo Theo ton io , desça, que não ha nov idade . . . .

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À luz da p r i m e i r a vela que t raz ião v iu-se descer por u m a por ta o T h e o t o n i o do fo r ro do q u a r t o da sala o n d e se hav i a e scond ido .

Apenas pôz o pé em te r ra fez logo u m a ca re t a de m e d o , por tal f ô r m a expres s iva , q u e houve e m todos u m a t r e m e n d a explosão de h i l a r i d a d e . Come-çou a s u r d i r gen te de diversos can tos da casa , e e m presença do L e o n a r d o recomeçou a fo l i a .

A l g u m a s pessoas não de ixa rão de e s t r a n h a r e re -ceiar a presença do L e o n a r d o naque l l a occasião e naquel les t r a jes logo depois da sah ida do m a j o r ; po rém a c o m a d r e a todos t r a n q u i l l i s o u , d i zendo que t e n d o elle o b t i d o l icença no q u a r t e l , po r não es t a r de serviço naque l l e d i a , v iera assist ir ao b a p -t i sado de sua i r m ã .

— E l l e é meio d o u d o , r epe t i a ella a todos , mas é m u i t o a m o r o s o , e n u n c a se e squece da f a m i l i a .

L e o n a r d o con f i rmava esses p ro tes tos da c o m a -d r e , e ia e n t r e t a n t o t o m a n d o p a r t e na b r i n c a d e i r a , u m a vez q u e c o n t r a as suas esperanças todos o h a -vião r eceb ido b e m em casa . A' p r o p o r ç ã o q u e se ia e s q u e n t a n d o n o prazer do f a d o e das can t igas co-m e ç o u o L e o n a r d o a s en t i r r emor sos pelo papel de judas q u e ali estava r e p r e s e n t a n d o : q u a n d o o lhava pa ra o T h e o t o n i o , q u e desde q u e e n t r a r a lhe havia fe i to d a r t ão boas r i sadas , p u n g i a - l h e o coração l e m b r a n d o - s e q u e el le p r o p r i o o hav ia de e n t r e g a r ao m a j o r . Não poucas vezes lhe passou pe l a cabeça d a r - l h e escapula av i sando-o , p o r é m a d i sc ip l ina , o papai-lêU, v i n h ã o - l h e á i déa , e hes i t ava .

E m q u a n t o era assa l tado po r estes pensamen tos o lhava repe t idas vezes p a r a o T h e o t o n i o .

Es te , que nada t inha de to lo , desconfiou da cousa 5

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não sabemos por que ins t incto leu o q u e pensava o Leonardo , e pôz-se em g u a r d a .

O Leona rdo tomou r epen t inamen te sua resolução. — O r a , adeus discipl ina, disse c o m s i g o ; bei de

d a r escapula ao h o m e m , seja lá corno fô r . E do Jogar em que estava accrescentou a l t o : — A h ! S r . Theo ton io , que r sabe r uma c o u s a ?

Pois se puzer o pé daquel la porta para fo ra , o m a -jor põe - lhe a u n h a , que para isso está e l le á sua espera , e para aqui me m a n d o u . . . .

— O ' d i a b o ! exc lamarão todos. — Mas nada de sustos ; tudo se ha d e a r r a n j a r ,

que t enho eu boa vontade disto. — Mas não te c o m p r o m e t i a s , r apaz , accrescen-

tou a c o m a d r e ao ouvido do Leonardo ; o lha q u e o m a j o r não é de graças , e dahi te pôde vir m a l .

— O r a , t e n h o pena delle só p o r a q u e l l a s caretas . J u n t á r ã o - s e e n t ã o os dous, Leona rdo e Theo ton io ,

e j un tos concer ta rão o seu plano de modo que este escapasse ao m a j o r , e que aquel le não ficasse com-promet t ido .

Estava j á a noite mu i to ad ian tada , o r d e n á r ã o os dous que sahissem ao mesmo tempo mui tos convida-dos , e o Leonardo , pa r t indo ad ian te delles, foi cor-r e n d o ter com o m a j o r .

— A b i vem o b icho, Sr. m a j o r . — Cérca, cé rca ! disse o m a j o r . E cada um se dividiu para seu lado. O m a j o r colou-se á por ta de um cor redor , e pôz-se

de o lho a le r t a . Veiu-se à p p r o x i m a n d o ao m a j o r um vul to asso-

b i a n d o t r a n q u i l a m e n t e o es t r ib i lho de uma modinha . Q u a n d o se achou em pequena dis tancia o m a j o r deu u m sal to donde estava e segurou-o.

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129 I i ' ^

Um ai f r anz ino se fez o u v i r , a c o m p a n h a d o de u m : — Me l a r g u e ! Q u e é i s lo?

O m a j o r prestou a t t e n ç ã o , não l endo r econhec ido a voz do T h e o t o n i o , e viu q u e l inha s egu rado n ' u m pobre c o r c u n d a , a le i j ado , a inda em c i m a , da pe rna d i re i ta e do braço e sque rdo .

— Ora vá-se para o i n f e r n o , disse o m a j o r ; su-ma-se d a q u i . T a m b é m não sei o q u e a n d ã o fazendo a estas ho ra s pelas ruas estas figuras.

O a le i j ado s a fou - se a p r e s s a d a m e n t e l ivre do sus to , e lá foi c o n t i n u a n d o a assob ia r o seu es t r i -bi lho.

Fez-se depois d is to o mais p r o f u n d o s i lenc io , e o m a j o r não viu ma i s passar senão os conv idados da p a t u s c a d a , não vendo e n t r e elles o T h e o t o n i o .

E n t ã o a rdeu com o c a s o ; e r e u n i n d o os g r a n a -de i ros disse para L e o n a r d o :

— El ie não s a h i u . . . . — S a h i u , repl icou e s t e ; a t é de j a q u e t a b r anca e

c h a p é o de p a l h a : eu o vi t o m a r ali pa ra a por ia o n d e estava o Sr . m a j o r .

— De j a q u e t a b ranca e c h a p é o de p a l h a ? p e r g u n -tou o m a j o r .

— S i m , s e n h o r , e de calça pre ta : não o pegue i p o r q u e logo vi q u e não havia de escapar ao S r . m a -jo r . — A h ! p a t i f e , pa t i f e , r e s m u n g o u : des tas n u n c a levei . . . E r a o c o r c u n d a , o a le i jado

— Elie sabe fazer m u i t o bem de co rcunda e d e a l e i j ado , disse u m dos g r a n a d e i r o s ; j á o vi u m a vez fazer isso, q u e era m e s m o tal e qua l . . . .

Era com effe i lo o T h e o t o n i o o a l e i j ado q u e o m a j o r t i nha segurado .

• Q TOM. II . 9

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C l P I D l I I i O 1 L X X

D E S C O B E R T A .

É m u i t o an t igo dizer-se q u e ha u m a cousa a inda peior do q u e u m i n i m i g o , e 6 u m m á o amigo . Um dos conv idados do L e o n a r d o - P a t a c a dizia-se m u i t o a m i g o do T h e o t o n i o , e pelo e m p e n h o q u e o L e o n a r -do m o s t r á r a e m l ivra- lo das ga r ras do m a j o r , p ro tes -tára desde logo r e p a r t i r com elle pa r t e dessa amizade , sem q u e n e n h u m dos dous ficasse p r e jud i cado . P o u -cos ins tan tes depois desse p ro tes to deu logo a pr i -me i r a prova de q u e es tava d ispos to a c u m p r i - l o .

E m q u a n t o se psssavão as scenas que a c a b a m o s de desc rever t i n h a a m a n h e c i d o : o m a j o r e sua gen te punhão - se e m r e t i r a d a : a inda se a c h a v ã o porém nas i m m e d i a ç õ e s do logar onde se hav ia fe i to a t en ta t iva para p r e n d e r o T h e o t o n i o , q u a n d o o tal a m i g o a q u e nos r e f e r i m o s , q u e fôra u m dos ú l t imos a r e t i r a r - s e , e n c o n t r a n d o a p a t r u l h a , e vendo q u e o T h e o t o n i o não ia no m e i o de l ia , conc lu iu que os planos havião sor t ido bem, e q u e o m a j o r ficara des ta vez logrado . T e v e por isso u m accesso de alegria5 e esquecendo a

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132

presença do m a j o r , correu ao L e o n a r d o , ab raçou-o , e x c l a m a n d o com a r r e b a t a d o i m p e l o :

. — Bravo! como esta não fazes duas em toda a lua v i d a ; foi l i m p a ; d e ha de f icar- te obr igado para sempre , e eu com elle, po rque sou seu amigo e teu t a m b é m !

O Leona rdo ficou estát ico d ian te de seme lhan te imprudênc ia . O m a j o r , que ia cabisbaixo pensando no logro que acabara de levar , voltou-se repen t ina-m e n t e : a palavra eír, p rofer ida pelo terrível amigo , abr iu luz a seus olhos. O L e o n a r d o foi t i rado do to rpor em que se achava pela voz do m a j o r a dizer-lhe c o m p a s s a d a m e n t e :

— Recolha-se preso ao quar te l . A esta sentença o L e o n a r d o ergueu do fundo d ' a lma

tudo quant o havia abi de despei to , de r ancor , e lan-çou um o lha r sobre o i m p r u d e n t e que a havia provocado, e que ainda mui to s enhor de si ape r t ava -lhe desap i edadamen te a mão, que parecia não es ta r disposto a largar tão cedo.

Deixemos agora o Leonardo , v ic t ima de sua dedi -cação, c a m i n h a r preso para o qua r t e l , e passemos a ou t ras cousas Ha mui to t empo que não f a l l a m o s e m D. Maria e na sua gente. Sa ibão os leitores que , pas-sada a lua de mel , em que tudo fora o rosas, o nosso José Manoel puzera , como se cos tuma dizer , as man-gas de fora , e taes cousas fez, que em poucos mezes estava tudo em guer ra a b e r t a : t inha-se elle com sua m u l h e r Luizinha m u d a d o de casa de D. Maria , e por causa de do t e vai, dote vem, herança daqu i , herança dal i , hav ia - lhe D. Maria proposto urna acção por tal sor te compl icada , que era de desconf iar que não bas-tassem para ver- lhe o fim os dias q u e restavão de vida á pobre velha .

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m

T i n h a - s e José Manoel t o r n a d o pa ra L u i z i n h a u m verdade i ro m a r i d o - d r a g ã o , desses que só aquel le t e m p o os conta tão per fe i tos , q u e e rão um suppl ic io c o n s t a n t e para as mulheres . Depois q u e se hav ia m u d a d o de casa de I). Mar ia , nunca mais Lu iz inha vira o a r da rua senão ás f u r t a d e l l a s , pelas f res tas da r o t u l a : e n t ã o chorava elIa aquel la l i be rdade d e q u e gozava o u t r ' o r a ; aque l l e s passeios e aque l las pa-lestras á por ta em noi te de l u a r ; aque l les d o m i n g o s de missa na Sé , ao lado de sua tia com o seu r a n c h o de c r i o u l i n h a s a t r á s ; as visitas que receb ião , e o L e o n a r d o de q u e m t inha s audades , e t u d o aqu i l l o emí im a q u e não dava nesse t e m p o m u i t o apreço , mas que agora lhe parecia tão hei lo e tão agradave l . T e n d o - s e cagado com J o s é Manoel , para segu i r a v o n t a d e de D. Mar i a , votava a seu m a r i d o uma e n o r -m e indi f fe rença , q u e é ta lvez o peior de todos os odios .

Po i s a vida de L u i z i n h a , depois de casada , r e -presen tava com f ide l idade a vida do m a i o r n u m e r o das moças que en t ão se c a s a v ã o : era por isso q u e as Vid inhas não e rão r a ras , e que poucas famí l i as ha -vião q u e não tivessem a l a m e n t a r um desgos toz inho no gene ro do q u e sof f reu aque l l a p o b r e f a m í l i a , q u e indo ao O r a t o r i o de Pedra viera d i z i m a d a p a r a casa , e cuja his tor ia se rv iu de t h e m a ás in t r igas da c o m a d r e , q u a n d o quiz pôr a Jo sé Manoel f ó r a d o l ance .

O r a , é c l a r o q u e t e n d o D. Mar ia ficado u m pouco sér ia com a c o m a d r e por causa de toda aque l l a in -t r i ga q u e precedêra ao c a s a m e n t o de José Manoel c o m sua s o b r i n h a , a g o r a , q u e es tava com este d e candêas ás avessas , se r ea tas se o laço da a m i z a d e

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13 h

q u e por um pouco a f r o u x a r a : succedia assim com effei to.

Um dia as duas encon t rá rão-se na missa , to rna-rão-se a f a l l a r ; as desgraças do Leonardo , que fi-zerão t h e m a a essa conversação, en te rnece rão a D. Mar i a , que por seu t u r n o t a m b é m refer iu á coma-dre t u d o q u a n t o succedia agora á p o b r e Luiz inha .

— Ai , s e n h o r a ! dizia a c o m a d r e r e fe r indo-se a Jo sé Manoel , parece que me roncava cá o q u e r que seja q u a n d o via aque l l e m a J d i t o ; a r r enego do ho-m e m que é u m valdevinos ás d i re i tas . Aqui l io ha de levar a pobre m e n i n a á s epu l tu r a . Coi tada ! b e m cr iada e mal f a d a d a !

— Nunca pensei , c r ea tu ra , nunca pensei que succedesse t a l . . . Mas aqui l lo como era í inorio ! que pa lav r inhas doces ! que s an t idade aquel la ! Agora , s enho ra , agora sou eu capaz de ac red i t a r na his to-ria da moça fu r t ada no O r a t o r i o de P e d r a : el le tem bofes para t a l . . . Mas hei de me ver v i n g a d a , o h ! se hei d e ! tão cer to como es tar eu a q u i : os desem-bargadores lá es tão, q u e m e hão de da r esse gosto : espero isso em Deus.

Desta conversa , e do mais q u e se seguiu , nasceu a conci l iação das duas .

Q u a n d o cer tas amizades são u m a vez i n t e r r o m -pidas , tendo mesmo soff r ido um leve es t remec imen-to , é diííicil que vol tem depois ao es tado p r imi t ivo 5 com ou t ras amizades acontece porém o inverso ; os es t remec imentos aprovei tão, po rque é fácil a volta da paz, e parece que depois dis to se to rnão mais es t re i tas . A amizade q u e exist ia en t r e D. Maria e a comadre era deste u l t imo genero . P o r t a n t o depois daquel la conversa na missa, não só vol tá rão as re la-çoes en t re as duas ao seu p r imi t ivo es tado , como

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se t o r n á r a o ma i s q u e nunca sol idas . Dah i em d i a n t e não h o u v e u m só segredo e n t r e as d u a s q u e n ã o fosse m u t u a m e n t e c o m m u n i c a d o , e e l las f izerão pac to de se a j u d a r e m r e c i p r o c a m e n t e p a r a d a r r e -m e d i o , u m a aos males da s o b r i n h a , o u t r a ás d i a -b r u r a s d o a f i l h a d o .

O L e o n a r d o , c o m o dissemos, achava-se p reso 5 fizera disso sc ien te á m a d r i n h a , q u e se pôz logo e m a lvoro to , não só pelo fac to e m si , c o m o pelo gene-ro so m o t i v o que- o hav ia occas ionado . O p r i m e i r o passo pois q u e t i ve rão a d a r as d u a s , D. Mar ia e a c o m a d r e , e m v i r t u d e do seu pac to , foi t r a t a r d e a l cança r a so l tu ra do L e o n a r d o , e l ivra- lo do m a i s q u e (sabe Deus) l h e es tar ia p r e p a r a d o .

V a m o s ver como se h o u v e r ã o em s e m e l h a n t e e m p e n h o .

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CAPITUIIO 1 L 1 L I 1 .

E M P E N H O S .

O pr imei ro passo que deu a comadre foi d i r ig i r -se á casa do ma jo r a en terceder pelo L e o n a r d o ; o m a j o r porém most rou-se iní lexivel : o caso era gra-ve, já não era o p r i m e i r o ; a disciplina não podia ser i m p u n e m e n t e offendida mais de uma vez ; o castigo devia ser infallivel e g rande . A comadre , que fôra cheia de boas esperanças , soube pelo ma-j o r o que ignorava, o que nem mesmo s u p p u n h a : o Leona rdo não só ficaria por mais t empo preso, como teria de ser c h i b a t a d o . . . A pobre m u l h e r , apenas lhe declarou isto o m a j o r , cahiu de joelhos, chorou , l a m e n t o u - s e ; tudo porém debalde . Sahiu desesperada, e com a man t i lha cab ida , toda em desal inho, co r reu , voou á casa da D. Maria. Ao vê-la en t ra r naquel le es tado, I). Maria ergueu-se da sua b a n q u i n h a , e largou a a lmofada da renda .

— Que tendes, c r ea lu r a? que tendes? exc lamou. San to Chr i s to ! o que é? F a l l a i ! . . .

— Ai, S ra . D. Maria do meu coração! que des-graça ! respondeu a c o m a d r e : que m á sina de ra -

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nua a legr ia , r ia -se de t u d o , e de cada vez q u e se r ia faz ia -o por m u i t o t e m p o e com m u i t o g o s t o : dah i é q u e v inha o appe l l ido — regalada — q u e hav iao j u n t a d o ao seu n o m e .

I s to de appel l idos , era no t e m p o des ta h i s to r i a u m a cousa m u i t o c o m m u m ; não e s t r a n h e m pois os le i tores que m u i t a s das pe r sonagens q u e aqui figurão t e n h ã o esse append ice ao seu n o m e .

Dizem todos , e os poetas ju rão e t r e s j u r ã o , q u e o v e r d a d e i r o a m o r é o p r i m e i r o ; t e m o s e s t u d a d o a m a t é r i a , e a c r e d i t a m o s ho je q u e não ha q u e fiar em p o e t a s : chegámos po r nossas invest igações á conc lusão de q u e o ve rdade i ro a m o r , ou são todos ou é u m só, e nes te caso não é o p r i m e i r o , é o u l t i m o . O u l t i m o é q u e é o v e r d a d e i r o , p o r q u e é o ún ico q u e não m u d a . As le i toras q u e não con-c o r d a r e m com esta d o u t r i n a cònvenção -me do con-t r a r i o , se são disso capazes .

I s to t u d o vem para d izermos que M a r i a - R e g a -lada t i n h a u m ve rdade i ro a m o r ao m a j o r V i d i g a l ; o m a j o r p a g a v a - l h ' o na m e s m a m o e d a . O r a , D. Mar ia e r a u m a das c a m a r a d a s mais do coração d e Mar i a -Rega lada . E is -ah i p o r q u e f a l l ando delia D. Mar ia e a c o m a d r e se m o s t r á r ã o tão e s p e r a n -çadas a respe i to da sor te do L e o n a r d o .

J á n a q u e l l e t e m p o (e d izem que é de fe i to d o nosso) o e m p e n h o , o c o m p a d r e s c o , e rão u m a mola real de todo o m o v i m e n t o social .

— ' V a i m a n d a r a p r o m p t a r a c a d e i r i n h a , disse D. Mar ia a u m a de suas escravas .

— V a m o s , s e n h o r a , v a m o s ; q u e is to são os m e u s peccados v e l h o s .

D . Mar ia a p r o m p t o u - s e , me t t eu - se na sua cade i -

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i à l

— Veremos , ve remos . A Sra . c o m a d r e sabe lá o que são h o m e n s ? ! . . .

— D i g a - m e a m i m . . . s e s e i ! . . . a c u d i u e s t a p r o m p -ta m e n t e .

* i .

— Mas en t ão , a t a lhou D. Mar ia , o negocio r e q u e r ioda a pressa , p o r q u e de um ins tan te para o u t r o po-dem chega r a f a r d a ao co rpo do p o b r e r apaz , e de -pois nem S . An ton io a t i ra .

— Não ha de haver n o v i d a d e ; a inda h a v e m o s c h e g a r a t e m p o , com a graça de Deus. Para m a i o r segurança vamos todas Ires daqu i á casa do m a j o r , e cada u m a po r nosso lado f a r e m o s t u d o para l ivrar o m o ç o .

Mar ia -Regn lada vest iu-se á pressa , t o m o u a sua m a n t i l h a , e ao lado da cade i r i nha em q u e ia D . M a r i a pa r t i r ão pa ra a casa do m a j o r .

I

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C A P l T U I i O X X I I I .

AS TRES EM COMMISSAO.

P a r t i r ã o po i s as t r e s p a r a a casa do m a j o r , q u e m o r a v a e n t ã o na r u a da Mise r icórd ia , u m a das mais an t igas da c idade . O m a j o r r ecebeu-as de r o d a q u e de ch i t a e t a m a n c o s , não t e n d o a p r inc ip io suppos to o q u i l a t e da visita ; apenas po rém reconheceu as t r e s , co r reu apressado á c a m a r i n h a v iz inha , e envergou o ma i s depressa q u e pôde a f a r d a ; como o t e m p o u r -g ia , e e ra u m a inc iv i l idade d e i x a r sós as s e n h o r a s , não comple tou o u n i f o r m e , e vo l tou de novo á sa la de f a r d a , calças de e n f i a r , t a m a n c o s , e u m lenço de Alcobaça s o b r e o h o m b r o , s egundo seu uso. A co-m a d r e , ao vê- lo a s s i m , apeza r da aí í l icção em q u e se a c h a v a , ma l pôde con te r u m a r i s ada q u e lhe ve iu aos lábios . Os c u m p r i m e n t o s da recepção passárão sem nov idade . Na a t rope l l ação em q u e e n t r a r a o m a j o r a c o m a d r e e n x e r g o u logo u m b o m a g o u r o para o r e s u l t a d o d o seu negocio . Accrescia a i n d a e m seu f avo r q u e o m a j o r g u a r d a v a na sua velhice doces recordações da m o c i d a d e , e apenas se via ce rcado por m u l h e r e s , se não e ra e m logar pub l i co e e m c i r -

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n i i

cu-mstancias em qne a discipl ina pudesse ficar lesada, tornava-se um bahõo , como só se poderia encon t ra r segundo no velho Leonardo , Se eslas lhe d a v ã o e n t ã o no f raco , se lhe íaziào um elogio, se lhe íaziào uma caricia por mais e s tup idamen te iingida que fosse, a r -r ancavão deile tudo q u a n t o q u e r i à o ; elle p ropr io es-p o n t a n e a m e n t e se o f f c e c i a para o que podiào dese-j a r , e a inda em cima ficava m u i t o obr igado . Com-tudo , posto que a c o m a d r e soubesse já desta cir-cums tanc ia com antecipação, ou o presentisse pelas apparenc ias , a gravidade do negocio ( Jeque se t r a -tava era lai , que nem isso bastou para t r a n q u i l i z a - l a . Dispôz-se para o a t aque , a judada por suas compa-nhe i ra s , que , apezar de mais e s t r anhas á sur te do L e o n a r d o , nem por isso se ligavào menos á sua causa . Houve um m o m e n t o de perp lex idade para decidir-se quem seria o o rador da commissão . O ma jo r perce-beu isto, e teve um lampejo de o rgu lho por ver assim t r e s mu lhe re s c o n f u n d i d a s e a t r apa lhadas d i an t e de sua al ta pessoa; fez um mov imen to como para ani-ma- l a s , a r r a s t ando sem que re r os t amancos .

— O h ! de tamancos e farda não está má Se-nho ra s donas , cousas de v e l h o ; no meu t empo não fazia eu destas

— D. Maria que o d iga , acudiu logo a comadre r e fe r indo-se a M a r i a - R e g a l a d a , e que rendo fazer brecha fosse por onde fosse : mas não impor ta- , o nesocio é o u t r o

— E' ve rdade , Sr m a j o r , o bom t e m p o já lá foi. — ft Deos perdoe a quem delle tem saudades , re-

to rqu iu o m a j o r r indo-se com um riso rugoso de yelha sensua l idade

— S i m , s i m , to rnou a M a r i a - R e g a l a d a ; mas de ixe essas cousas todas para logo . . . . .

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— Ai c r e a t u r a , acud iu D. Mar ia , q u e a té en t ão est ivera ca l ada , cançada ta lvez do n u m e r o prodi-gioso de m i s u r a s q u e f izera ao e n t r a r ; de ixa i cada um l e m b r a r - s e do seu t e m p o , is to consola ; eu cá gosto bem q u a n d o a c h o . . . . .

— K ' corno e u , r e s p o n d e u o m a j o r ; e m se m e tocando cá nas f e r idas an t i ga s

— Pois é m e s m o por m e l e m b r a r des tas f e r i da s ant igas , a t a l h o u a Mar ia~Regalada q u e v e n h o aqu i com estas s enhora s donas , q u e o S r . m a j o r b e m co-nhece ; e se não fo r ão ellas cá não v iera , pois o ne -gocio é sér io

A c o m a d r e a c h o u occasião bem a p a n h a d a , e fez com a cabeça u m s igna! d e app rovação .

— Y a m o s lá ver o q u e é o tal negoc io sér io , res-p o n d e u o m a j o r a t i n a n d o , peia presença da c o m a -d r e , p o u c o ma i s ou menos com o q u e e r a , e pelo q u e fez u m s ignal duv idoso com a c a b e ç a , ou p a r a fazer-se de b o m , ou p o r q u e r e a l m e n t e n ã o quizesse a b r i r la rgas e s p e r a n ç a s .

A in t e r locu to ra p r o s e g u i u : •— O seu g r a n a d e i r o L e o n a r d o é u m b o m rapaz . O m a j o r a r q u e o u f r a n z i n d o as sob rance lhas , e

r e p u x o u os beiços, c o m o q u e m não c o n c o r d a v a in totum com a q u i l l o . . .

— Não m e c o m e c e já com cousas , S r . m a j o r . Po i s é , s i m , s e n h o r , m u i t o b o m rapaz , e não ha razão pa ra ser cas t igado , por causa de u m a cousa n e n h u m a q u e f ez . . . Isso não é razão , n ã o , s enho r , para se m a n d a r toca r de c h i b a t a u m moço q u e não é n e n h u m v a l d e v i n o s ; pois o S r . m a j o r b e m sabe que o p a d r i n h o q u a n d o m o r r e u d e i x o u - l h e a l g u m a cousa , q u e bem lhe podia e s t a r j á nas m ã o s , e elle po r isso l ivre da mald i t a f a r d a , a q u e m s e m p r e

TOM . 1 0

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IZiG

t ive zanga (menos de u m a q u e bem se s a b e ) , se o pai q u e t e m . . . mas de ixemos o pai q u e não vem nada ao caso . . .

— J á sei de t udo , j á sei de tudo , a t a lhou o m a j o r . — Ainda não, Sr. m a j o r , observou a comadre ,

a inda não sabe do m e l h o r , e é que o que elle pra t i -cou naquel la occasião quasi q u e não estava nas suas mãos . Bem sabe que u m filho na casa de seu pa i . . .

— Mas u m filho q u a n d o é so ldado, r e to rqu iu o m a j o r com toda a g rav idade d i sc ip l inar . . .

— Nem por isso de ixa de ser filho, t o r n o u D. Mar ia .

— B e m sei, mas a l e i? — O r a , a l e i . . . o q u e é a l e i , se o S r . ma jo r

quizer ? . . . O m a j o r sor r iu -se com candida modés t ia . A dis-

cussão foi-se assim a n i m a n d o ; porém o m a j o r nada de ceder , a t é pelo con t ra r io parecia mais in-ilexivel do que n u n c a ; chegou mesmo a pôr-se em pé e a fa l la r m u i t o e x a l t a d a m e n t e contra o a t t en-t ado do Leona rdo , e a necessidade de um severo castigo. E r a engraçado vê-lo no bon i to u n i f o r m e q u e indicámos , de pé, fazendo u m sermão sobre a disc ipl ina , d ian te daquel las Ires ouvintes t ão in-crédulas q u e resist ião aos mais fo r tes a rgumen tos .

Ainda po rém não t inhão as tres esgotado contra elle o seu u l t imo recurso ; puzerão-no pois em acção.

Q u a n d o mais- inf iu ido estava o m a j o r , as t res , a um só t empo , e como de combinação , desa tárão a c h o r a r . . . O m a j o r p a r o u . . . encarou-as u m ins-t a n t e : seu s e m b l a n t e foi-se v is ive lmente en terne-cendo , en rugando , e por fim desatou t a m b é m a c h o r a r de en te rnec ido . Apenas as tres se aperce-bêrão deste t r i u m p h o car regárão sobre o in imigo.

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Foi e n t ã o u m a a lgaza r r a , u m a c h o r a d e i r a sem nome, capaz de m o v e r as p e d r a s .

O m a j o r d e en t e rnec ido foi pas sando a a t o r d o a d o , e como q u e ficou e n v e r g o n h a d o das l a g r i m a s q u e lhe corr ião pelas f a c e s : e n x u g o u - a s , e p r o c u r o u reas -sumi r toda a sua an t i ga g r a v i d a d e .

— Nada , disse d e s e m b a r a ç a n d o - s e das t r e s , e pas-se iando a passos largos pela s a l a ; nada : q u e hav ião dizer de m i m se m e vissem aqu i nes tas c h o r a m i n g a s de c r i ança? E u , o m a j o r , o Vid iga l , a c h o r a r n o me io de t res m u l h e r e s ! . . . S e n h o r a s d o n a s , o caso é grave , e não l h e vejo r e m e d i o ; o e x e m p l o , a disci-pl ina , as leis mi l i t a r e s n a d a , não pôde se r

E deu as costas ás t r e s , c o n t i n u a n d o a passe ia r e a fazer r e soa r com força os t a m a n c o s no a s soa lho .

M a r i a - R e g a l a d a disse b a i x o ás d u a s , e m cu jos s e m -blan tes já n e m t rans luz ia o mais p e q u e n o v i s l u m b r e de e s p e r a n ç a :

— Ainda não está t u d o pe rd ido E d i r ig indo-se ao m a j o r acc rescen tou : — B e m , S r . m a j o r ; aguas passadas não m o e m

m o i n h o — Qua l passadas , s e n h o r a d o n a ! m a s b e m vê q u e

o caso é grave — Se ja lá o q u e f ô r , s in to t e r pe rd ido m e u s pas-

sos, e não se rv i r a q u e m dese java ; ve rdade se ja q u e eu j á con tava com isso, e t a m b é m não p r o m e t t i Mas em u l t i m o logar q u e r o s e m p r e d i z e r - l h e u m a cousa, m a s ha de ser em p a r t i c u l a r

— V a m o s lá , es tou p r o m p t o . Q u e m t ivesse a l g u m a perspicacia conhece r i a , não

com g r a n d e f ac i l i dade , q u e o m a j o r estava ha m u i t o t e m p o d ispos to a ceder , p o r é m q u e que r i a fazer-se rogado .

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m

Maria-Regalada levou então o ma jo r para um canto da sala , e disse- lhe ao ouvido a lgumas palavras . O m a j o r , desanuviou o rosto, remexeu-se todo, coçou a cabeça, balançou com as pernas , mordeu os beiços.

— Ora e s t a ! disse em voz baixa á sua inter locu-t o r a ; pois era preciso fa l l a r n is to? E m f i m

— O r a , graças que se lhe acabarão os sestros, respondeu Maria-Regalada em voz a l t a :

— S im ? ! . . . exc lamarão as duas sor r indo de es-pe rança .

— Eu bem dizia que o Sr . m a j o r t inha bom co-racão

— E u nunca duvidei , apezar de tudo mas agora , o passado, passado 5 o caso era grave, como elle dizia, e foi um f a v o r !

— E n t ã o , D. Mar i a? Q u e m foi rei sempre teve mages tade

— Mages tade . . . . . qua l ! isso já não é para m i m O m a j o r a t a lhou esta explosão de gra t idão que

levava visos de i r longe. — Hão de ficar a inda mais contentes comigo

não lhes digo po rque , mas verão — E s t a agora é que é g r a n d e ; veremos o que será. . . — J á s e i : é — Ha de ser por força — Estou quasi ad iv inhando . — Sabem que mais? a ta lhou o m a j o r ; são horas

de urna diligencia a q u e não posso fa l t a r O rapaz está l ivre de t u d o ; com t a n t o que , accrescentou di-rigindo-se a Mar ia -Rega lada , o d i to , di to

-— E u nunca fal te i á m i n h a palavra , replicou esta. Re t i rá rão-se as t res cheias do maio r conten tamen-

to , e o m a j o r sahiu depois t a m b é m para cumpr i r a sua promessa .

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C A P I T U I i O X X I V .

%

A M O R T E É J U I Z .

D. Mar ia d i r ig iu - se i m m e d i a t a m e n t e pa ra casa na sua cade i r i nha . Ao chegar no tou g r a n d e r u m o r e a l -voroço , e t r a tou logo de indaga r a causa . Um es-cravo de sua s o b r i n h a a esperava com u m a c a r t a . Apenas a leu , D. Mar ia , não d i r e m o s q u e se en t r i s -t eceu , p o r é m m o s t r o u - s e m u i t o a t r a p a l h a d a .

— Não e n t r e m com a c a d e i r i n h a ; e spe rem lá , q u e t o r n o a s a h i r .

E com effei to me t t eu - se de novo ne l la , e m a n d o u q u e seguissem p a r a casa de sua s o b r i n h a .

O caso era o s e g u i n t e : J o s é Manoel e n t r á r a pa ra casa e m braços , t e n d o s ido a c o m m e t t i d o na r u a de um vio lento a t a q u e apop le t i co ao vo l t a r do c a r t o r i o , onde t ivera u m a g rave con tes t ação com o p r o c u r a d o r de D . Mar i a , po r causa da d e m a n d a q u e e n t r e t i n h a o . L u i z i n h a , a co i tada , vendo-se naquel les a p u r o s , s em saber o q u e fizesse, de spachá ra logo p o r t a d o r p a r a casa de sua t ia .

D. Mar ia apenas e n t r o u m a n d o u c h a m a r o l icen-c iado, q u e depois de e x a m i n a r o doen te dec la rou

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que era caso perdido. Fizerão-se e n t r e t a n t o a l g u m a s applicaçoes, que não t iverão resu l t ado a l g u m .

—i Estás v iuva , m e n i n a , disse D. Maria a l g u m a cousa compung ida com a declaração do medico.

L u i z i n h a pôz - sea c h o r a r , mas como chora r i a p o r q u a l q u e r vivente, porque t inha coração t e rno .

Estavão presentes a lgumas pessoas da viz inhança, e u m a delias disse ba ix inho á o u t r a , vendo o p ran to de L u i z i n h a :

— Não são l agr imas de viuva E não e rão , nós já o d issemos: o m u n d o faz disso

as ma i s das vezes u m cr ime. E os an teceden te s? P o r ven tu ra an te seu coração fô ra José Manoel mar ido de L u i z i n h a ? Nunca o fôra senão an te as conveniên-cias, e para as conveniências aquel las l ag r imas bas-tavão . Nem o medico nem D. Maria se havião enga-nado : á no i t inha José Manoel exp i rou .

No dia seguin te t izerão-se os p repara t ivos para o en ter ro . A c o m a d r e , i n f o r m a d a de t udo , compareceu pezarosa a pres tar seus bons of íc ios , suas consolações.

O en t e r ro sah iu a c o m p a n h a d o pela gente da ami -zade : os escravos da casa fizerão u m a a lgazar ra t r e -menda . A vizinhança pôz-se toda á j ane l l a , e t udo foi ana lysado, desde as argolas e galões do caixão até o n u m e r o e qua l idades dos conv idados ; e sobre cada u m desses pontos apparecêrão t res ou qua t ro opiniões diversas.

Naquel les t empos a inda se não usavão os discursos fúnebres , nem os necrologios, que ho je andão tan to em v o g a ; escapámos pois de mais essa. José Ma-noel d o r m e em paz no seu de r r ade i ro jazigo.

C o m o havia p rome t t i do a comadre , a lguém che-gou quasi ao anoi tecer . E r a o L e o n a r d o . Q u a n d o

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elle en t rou na sala D . Mar ia não pôde con te r u m gri to de so rp reza .

V i n h a e m comple to u n i f o r m e de sa rgen to da c o m -panh ia de g r a n a d e i r o s !

— C o m o l o l h e m o m a j o r . E e n t ã o ? ! — E ' ve rdade , s e n h o r a d o n a , r e spondeu o Leo-

n a r d o ; a elle t u d o devo. F o i aqu i l l o ob jec to de geral e s p a n t o . F i c a r i a o

todos m u i t o con ten te s com a s imples so l t u r a d o Leo-n a r d o ; e n ã o só elle apparec ia sol to e l ivre , c o m o a té e levado ao pos to de s a rgen to , o q u e já não é no exerc i to pouca cousa .

O L e o n a r d o começou a p r o c u r a r com os o lhos a l -g u m a cousa ou a lguém q u e t inha c u r i o s i d a d e de v e r ; deu com o q u e p r o c u r a v a : era L u i z i n h a . Ha m u i t o q u e os dous se não vião ; não p u d e r ã o pois o c c u l t a r o e m b a r a ç o de q u e se a c h á r ã o t o m a d o s . E foi t a n t o m a i o r essa e m o ç ã o , q u e a m b o s f icárão s o r p r e n d i d o s u m d o o u t r o . L u i z i n h a a c h o u L e o n a r d o u m g u a p o r a p a g ã o de b igodes e suissa ; e l egan te a t é o n d e pôde sê- lo , u m so ldado de g r a n a d e i r o s , com o seu u n i f o r -m e de sa rgen to bem assen te . L e o n a r d o a c h o u L u i -z inha u m a moça e sp igada , a i rosa m e s m o , o lhos e cabel los p re tos , t endo pe rd ido t o d o aque l l e a c a n h a -m e n t o phys ico de o u t r ' o r a . A lém disso seus o lhos , a v e r m e l h a d o s pelas l a g r i m a s , seu ros to e m p a l l i d e c i d o , se não v e r d a d e i r a m e n t e pelos desgostos d a q u e l l e d i a , s e g u r a m e n t e pelos an t eceden te s , t i n h ã o nessa occa-sião u m t o q u e de belleza melancó l ica , q u e em regra geral não devia p r ende r m u i t o a a t t enção de u m sa r -gen to de g ranade i ros , m a s q u e e n t e r n e c e u ao sa r -gento L e o n a r d o q u e , apezar de t u d o , não era u m sa r -gen to c o m o q u a l q u e r . E t a n t o a s s im , q u e d u r a n t e a scena m u d a q u e se passou , q u a n d o os dous d e r ã o

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com os olhos u m no o u t r o , passarão r a p i d a m e n t e pelo pensamento do L e o n a r d o os lanees de sua vida dc o u t r o r a , e r e m o n t a n d o de fac to em fac to , che-gou áquel la r idícula mas ingênua scena da sua de-claração de amor a Lu iz inha . Pa receu- lhe q u e t inha en tão escolhido mal a occasião, e q u e agora isso te r ia um logar mu i to mais acer tado .

A c o m a d r e , q u e dava uma perspicaz atteiição a t u d o o que se passava, como que leu na a lma do a f i lhado àquel les pensamen tos t odos ; fez um gesto quasi impercept ível de a l eg r i a : r a iava- lhe na m°ente a lguma idéa luminosa. Começou en tão a r e t r aça r u m an t igo p lano em cu ja execução por mu i to t empo t r aba lhava , e cu jas probabi l idades de êx i to lhe ha~ v!ão reapparec ido no q u e se acabava de passar.

Passada a pr imei ra emoção , Luiz inha e rgueu-se e lez ao L e o n a r d o um acanhado c u m p r i m e n t o : este co r re spondeu- lhe com a lguma cousa en t r e c u m p r i -m e n t o paisano e con t inênc ia mi l i t a r .

A c o m a d r e rompeu depois disto a conversa , p ro-c u r a n d o en t re t e r D. Maria , e de ixa r o s d o u s en t r e -

1 gues a si . — Diga-me , disse eila d i r ig indo-se a D. Maria , e

aquel la sua d e m a n d a com o d e f u n t o ? — A m o r t e foi desta vez juiz . Elie não tem her -

de i ro s ; era só no m u n d o Eu não levei a m i n h a avante, é verdade , porque em fim não posso dizer que venci ; mas l a m b e m não perdi . Agora s im, t e n h o mu i to gosto de en t r ega r tudo á men ina , mas não que r i a q u e me levassem as cousas senão por minha m u i t o livre vontade .

— Está b e m ; o passado já lá va i : Deus é ass im, escreve d i re i to por l inhas to r tas .

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E por abi a d i a n t e e m p e n h á r a o - S e na sua conversa-Os dous , depo is de a l g u m t e m p o de s i lencio, c o m o j á se t i n h ã o r e t i r ado todas as v is i tas , f o r ão pouco e pouco , de pa lavra e m pa lavra , t r a v a n d o d ia logo , e conversavão no fim de a l g u m t e m p o tão e m p e n h a d a -m e n t e c o m o a c o m a d r e e D. Mar ia , com a d l f fe rença q u e a conversa daque l l a s duas e ra a l t a , d e s e m b a r a -ç a d a ; a deli es b a i x a e r e s e rvada .

Não ha nada que i n t e r r o m p i d a ma i s depressa se r e a t e do q u e seja a f a m i l i a r i d a d e e m q ü e o coração é in te ressado . Não se e s t r a n h e pois q u e L u i z i n h a e L e o n a r d o a ella se e n t r e g a s s e m .

E q u e r e m ver u m a s i n g u l a r i d a d e q u e ás vezes se r e p e t e ? Depois q u e se fizera moça , e q u e t o m a r a es-t a d o , n u n c a L u i z i n h a t i n h a t ido m o m e n t o s de tão v e r d a d e i r o p raze r c o m o os q u e ali es tava gozando naque l l a c o n v e r s a , n ' u m dia de lu to , q u a n d o aca-bava de sah i r o cai xão que levara á s e p u l t u r a aque l l e q u e devia t e r fe i to a sua fe l ic idade . O L e o n a r d o t a m b é m por sua vez, n u n c a , no meio de todas as vi-cissi tudes de sua vida e x t r a v a g a n t e , t i n h a t ido ins-t a n t e s q u e tão r áp idos lhe cor ressem do q u e a q u e l l e s em q u e via o ob jec to de seus p r i m e i r o s a m o r e s sob o peso d o i n f o r t ú n i o em um dia de p r a n t o .

Po i s parece q u e estas m e s m a s c i r cums tanc ia s r ea -vivárão o p a s s a d o : a c o m a d r e folgava lá n o s e u l o g a r com t u d o aqu i l lo , e , pa r ecendo p res t a r toda a a t -tenção a D . Mar ia , não perd ia u m a só c i r c u m s t a n c i a .

F i n a l m e n t e chegou a ho ra da r e t i r a d a , não da co-m a d r e , q u e se offereceu para fazer c o m p a n h i a á v iuva , p o r é m de L e o n a r d o , a q u e m esperava o m a j o r , p o r q u e era dia de serviço, e a p e n a s t i n h a elle o b -t ido licença pa ra c u m p r i r o d u p l o dever de d a r os pezames a D . Mar ia , e ag radece r o in teresse q u e po r

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elle havia t omado , fazendo por in t e rmed io de Maria-Regalada q u e o m a j o r não só lhe alcançasse perdão do castigo que lhe era des t inado , como t a m b é m o accesso de posto q u e r e p e n t i n a m e n t e t ivera .

Lu iz inba i nvo lun t a r i amen te es tendeu á despidida a m ã o ao Leona rdo , q u e lh ' a aper tou com força.

O r a , isto naque l ie t e m p o era bas tan te para da r que fa l la r ao m u n d o i n t e i r o !

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C O N C L U S Ã O F E L I Z .

A c o m a d r e passou com a viuva e sua tia quas i t o d o o t e m p o d o n o j o , e a c o m p a n h o u - a s á missa do s e p t i m o d i a . O L e o n a r d o compareceu t a m b é m nessa occas ião , e levou a f a m i l i a á casa depois de a c a b a d o o sacr i f íc io .

Aque l l e a p e r t o de m ã o q u e no dia d o e n t e r r o de seu m a r i d o L u i z i n h a de ra ao L e o n a r d o não cah i r a no chão a D. Mar i a , ass im c o m o t a m b é m lhe não e scapá rão m u i t o s o u t r o s fac tos consecu t ivos a esse.

O caso é q u e não lhe pa rec ia e x t r a v a g a n t e ce r t a idéa q u e lhe a n d a v a na m e n t e .

Mui tas vezes, ao c a h i r de Ave-Mar ia , q u a n d o a boa da ve lha se sen tava a rezar na sua b a n q u i n h a e m u m c a n t o da sa la , e n t r e u m Pad re -Nosso e u m a Ave-Mar ia do seu b e m d i t o ro sá r io v i n h a - l h e á idéa casa r de novo a f r e sca v i u v i n h a , que co r r i a o r i sco de f icar de u m m o m e n t o p a r a o u t r o d e s a m p a -r a d a n ' u m m u n d o em q u e m a r i d o s , c o m o José Ma-noe l , não são difficeis de a p p a r e c e r , e spec i a lmen te a u m a v iuv inha a p a t a c a d a .

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t u d o , p o r é m , os dous a m a v ã o - s e s i n c e r a m e n t e ; e a idéa de u m a u n i ã o i l l eg i t ima lhes r e p u g n a v a .

O a m o r os insp i rava b e m . Esse me io de q u e f a l l á m o s , essa c a r i c a t u r a da

f a m i l i a , e n t ã o m u i t o em m o d a , é s e g u r a m e n t e u m a das causas q u e p roduz iu o t r i s t e e s t ado mora l da nossa sociedade.

Só essa diíFiculdade d e m o r a v a os d o u s . E n t r e -t a n t o o L e o n a r d o achou u m dia o s a lva t e r io , e veiu c o m m u n i c a r a L u i z i n h a o me io q u e t u d o r e m e -diava : podia ficar e l le sendo so ldado e casar , d a n d o ba ixa na t ropa de l i n h a , e passando-se no m e s m o posto pa ra as Milícias.

A diUiculdade , p o r é m , estava a inda e m a r r a n -j a r - s e essa ba ixa e essa p a s s a g e m : L u i z i n h a e n c a r -regou~se de vencer esse e m b a r a ç o .

L m d ia e m q u e estava sua tia a rezar no seu roza r io , j u s t a m e n t e n ' u m daque l l e s in te rva l los de F a d r e - N o s s o a Ave-Mar ia de q u e ac ima fa l l ámos , L u i z i n h a c h e g o u a e l l a , e c o m m u n i c o u - l h e com conf iança t u d o q u e hav ia , fazendo p recede r sua n a r -r ação da segu in te dec la ração , q u e cor tava a ques t ão pela r a i z : y

— P a r a lhe obedece r e fazer - lhe o gosto casei-m e u m a vez, e não f u i f e l i z ; q u e r o ve r a g o r a se ace r to m e l h o r , f azendo p o r m i m m e s m a nova es-co lha .

E m b r e v e , p o r é m , conheceu q u e fo r a inút i l sua p recaução , p o r q u e D. Maria confessou q u e de ha m u i t o r u m i n a v a a q u e l l e m e s m o p l ano .

C o m b i n á r ã o - s e pois as d u a s . A b o n d a d e do m a j o r insp i rava - lhes m u i t a con-

f iança , e l e m b r á r ã o - s e po r isso de r e c o r r e r a elle de novo.

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F o r a o ter com Maria-Regalada , que mesmo na vespera lhes t inha m a n d a d o dar par te que se m u -dara da P r a i n h a , e offerecia-lhes sua nova morada .

A comadre , de tudo in te i rada , fez par le da com-missão.

Q u a n d o en t ra rão em casa de Mar ia -Rega lada , a pr imeira pessoa que lhes appareceu foi o m a j o r Vidigal , e , o que é mais , o m a j o r Vidigal , em há-bi tos menores , de rodaque e tamancos .

— Ah ! disse a comadre em tom malicioso, ape-nas appareceu a Mar ia -Regalada , pelo que vejo isto por qu i vai bem. . .

— Não se l embra , respondeu Mar ia-Regalada , daque l le segredo com que obt ive o perdão do moço? Pois era i s t o ! . . .

A Maria-Regalada t inha por mu i to tempo resis-t ido aos desejos ardentes que nutr ia o ma jo r de que ei la viesse deíini ti vãmente m o r a r eir» sua compa-nh ia. Não a t t r i bu imos esla resistencia senão a c ã -pncho, para não fazermos máo juizo de ninguém ; o caso é que o m a j o r punha naqui l lo o ma io r em-p e n h o ; teria lá suas razões.

O segredo q u e a Mar ia-Regalada dissera ao ou-vido do m a j o r no dia em que fô ra , acompanhada por D. Maria e a c o m a d r e , pedir pelo Leonardo , foi a promessa de q u e , se fosse servida , cumpr i r i a o gosto do m a j a r .

Está pois expl icada a benevolencia deste para com o Leonardo , que fôra ao ponlo de, não só d is farçar e ob te r o perdão de todas as suas fa l tas , como de a lcançar - lhe aquel le rápido accesso de posto.

F ica t ambém explicada a presença do ma jo r em casa da Maria-Regalada.v

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Depois d is to e n t r a r ã o todos em c o n f e r e n c i a . O m a j o r des ta vez achoii o ped ido m u i t o j u s to , em consequênc ia do fim que se t i n h a em vista. C o m a sua in f luenc ia t u d o a lcançou ; e e m u m a s e m a n a e n -t r egou ao L e o n a r d o dous p a p e i s : — um era a sua ba ixa de t ropa de l i n h a ; o u t r o , sua n o m e a ç ã o de S a r g e n t o de Milícias.

Além dis lo r ecebeu o L e o n a r d o ao m e s m o t e m p o ca r t a de seu pa i , na qua l o c h a m a v a p a r a fazer - lhe en t r ega d o q u e l h e de ixa ra seu p a d r i n h o , q u e se achava r e l i g io samen te i n t a c t o .

Pas sado o t e m p o indispensável do lu to , o L e o -n a r d o , e m u n i f o r m e de S a r g e n t o de Mil íc ias , rece-b e u - s e na Sé com L u i z i n h a , ass i s t indo á c e r e m o n i a a f amí l i a em peso .

Daqu i em d i a n t e a p p a r e c e o reverso da m e d a l h a . Segu iu - se a m o r t e de D. M a r i a , a do L e o n a r d o - P a . t a c a , e u m a en í iada de acon tec imen tos t r i s tes q u e p o u p a r e m o s aos le i tores , f azendo aqui p o n t o f ina l -

BIO DE JANEIRO.—TYP. B R A S I L I E N S E — R U A DO SABAO, « 4

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