um defeito de cor de ana maria gonçalves o romance escrito em primeira pessoa faz com que a certa...
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A busca pelo resgate identitário e histórico em Um defeito de cor de Ana Maria
Gonçalves
Renata de Paula Ferreira (UEL)
Resumo: Um defeito de cor (2010) obra de Ana Maria Gonçalves subverte a ordem usual da
narrativa histórica ao dar voz à personagem-narradora, Kehinde, ex-escrava que através de
rememorações de sua vida, eleva o romance histórico a uma perspectiva histórica não mais das
classes de elite, da casa grande, mas, sim, da visão do negro, da senzala. Ao lugar do discurso
do vencedor tem-se a tentativa do resgate histórico não mais visto unilateralmente. Pretende-
se com este trabalho refletir sobre o esquecimento, o apagamento da memória impingido aos
escravizados e a busca pela memória e identidade, além de apontar para a questão dos traumas
deixados pelo sistema escravocrata. Para tal, faz-se necessário as elucidações de Márcio
Seligmann-Silva (2003) em relação à narração do trauma e, também da importância do
romance enquanto uma narrativa que volta o olhar a temas usualmente colocados à margem
como a revolta dos Malês (1835) da qual a personagem-narradora fez parte, desmistificando o
mito da docilidade e passividade do escravo africano como aponta Zila Bernd (2012). É por
meio da busca do resgate de fatos históricos que Ana Maria Gonçalves traz à luz fatos apagados
da historiografia oficial.
Palavras-chave: Memória. Trauma. Revolta do Malês. Narrativa histórica.
Abstract: Um defeito de cor (2010) by Ana Maria Gonçalves subverses the usual order of
historical narrative by giving voice to the narrator-character, Kehinde, a former slave that
through remembrances of her life, elevates the historical novel to a historical perspective no
longer of the elite classes of the great house, but, rather, of the vision of blacks of the senzala
(slave quarters). To the place of the winner's speech there is the attempt of the historical rescue
no longer seen unilaterally. This paper aims to reflect on forgetfulness the erasure of the
memory impinged on the enslaved and the search for memory and identity, and also to reflect
on the question of the traumas left by the slave system. For this, it is necessary the explanations
of Márcio Seligmann-Silva (2003) about the narration of the trauma and also the importance
of the novel as a narrative that turns the look to themes usually placed at the margin as the
example of Revolta do Malês(1835), of which the narrator-character was part, demystifying
the myth of docility and passivity of the African slave as says Zila Bernd (2012). It is through
the attempt to rescue historical facts that Ana Maria Gonçalves brings to light deleted facts of
official historiography.
Keywords: Memory. Trauma. Revolta do Malês. Historical narrative.
Introdução
Atualmente o Brasil avança para uma reformulação de valores e modificações de
estereótipos em relação ao negro e seu papel na sociedade vem se modificando, ou pelo menos
há uma grande força para isso. Se durantes séculos a imagem do negro foi construída pelas
lentes dos brancos que em sua maioria eram senhores e donos não só dos escravos, mas de
todas as ideologias vigoradas na sociedade, ideologias essas que primando pelo apagamento de
qualquer manifestação cultural, artística, religiosa vindas dos negros, fez com que se
mantivessem num lugar inferior e sempre determinado pelos brancos, assim permaneceram
na esfera da sociedade que sofrendo um processo de apagamento através da tão trabalhada e
sedimentada ideia da supremacia branca, o que se vê hoje é uma tentativa de revalorização, de
uma nova forma de se pensar a História, agora não mais vista unicamente pela voz do branco
que modelou toda a vivência até aqui. Se a ideia de extinção e negação da cultura do negro, se
a imposição a uma nova cultura dada aos escravos pode vigorar durante séculos, faz-se
necessária uma reflexão acerca das justificativas que alicerçaram o domínio hegemônico
branco. Uma das justificativas pretende dar a escravidão fontes de cunho biológico. O amparo
da literatura que pôde relegar ao negro o papel quase sempre secundário e inferiorizado. Além
disso, outro fator de estrema importância para a validação e amplificação da escravidão foi o
tipo de configuração social a qual estava fundada no Brasil.
O movimento de mudança que se empreende agora, incluindo a literatura, pretende uma
reelaboração, um novo modo de pensar sobre o lugar imposto ao negro. Neste sentido, a
literatura pode corroborar na reelaboração e reabilitação da imagem do negro. A literatura
afro-brasileira tem um valioso papel ao empregar temáticas pouco, ou nada, tratadas
anteriormente. Ao trazer questões como a diáspora, a escravidão, na visão do escravizado e não
mais apenas pelo olhar elitizado do branco, gera-se um processo de reelaboração de todo o
trauma provocado e vivido. Esse processo vem crescendo ao longo das últimas décadas calcado
na necessidade de que se promova algum tipo de mudança diante do modo como é encarado a
identidade do brasileiro e suas relações. A literatura, com sua narrativa que pode, embrenhar-
se no desenvolvimento do humano e na relação com o histórico, como um meio de refacção,
(re)construção de identidade e cultura do povo africano escravizado. Pretende-se com este
trabalho elaborar uma inicial reflexão acerca da obra de Ana Maria Gonçalves Um defeito de
cor (2010) e dos traumas vividos pelo povo africano escravizado usando como aportes teóricos
que tratem do trauma e sua relação com a literatura.
Um defeito de cor
Ana Maria Gonçalves em sua obra Um defeito de cor (2010) traz uma inovação na produção
da literatura afro-brasileira, além da trajetória de reconstrução histórica de um novo enfoque
sobre o tema tratado e o uso da verossimilhança, além disso, deve-se ressaltar o fato de ser um
romance, gênero não tão comum na literatura afro-brasileira como corrobora Jean-Yes Mérian
(2007) “Contudo a produção de romances tem sido, até agora, muito limitada, não se reverte
tão facilmente uma situação consolidada desde meados do século XIX.”
Embora a temática da escravidão e do negro já tenham figurado inúmeras vezes na
literatura, em sua maior parte o negro foi tratado como objeto de observação e não agente, essa
situação foi corroborada pelo mito da superioridade da raça branca em detrimento as demais.
Inúmeras são as possibilidades de exemplificação destes fatos na literatura como a obra de
Bernardo Guimarães A escrava Isaura (1875) O Mulato (1881), O cortiço (1890) ambos escritos
por Aluísio Azevedo ou até mesmo em obras de Jorge Amado. Pode-se dizer que em muitas
obras há um posicionamento contrário à escravidão, além do detalhamento e alargamento das
dores vividas pelos escravos, mas pelo viés externo. A exterioridade do olhar traz, por vezes
uma imagem do negro caricata, deixando afastado o interesse pelo legado cultural. Na medida
em que a quase totalidade das obras até então com a temática do negro relegavam qualquer
função de figuração enquanto sujeito, corroborando, assim, para a sedimentação da imagem do
negro como a do ser oprimido, pacato e carente de amparo. Tais obras contribuíram para a
disseminação do ideal de branqueamento, que é visto até os dias de hoje no Brasil, e por se
esquivarem de tratar o tema pela perspectiva da necessidade de protagonismo, de reabilitação
do negro como agente produtivo, ajudaram a consolidar vários estereótipos relacionados ao
negro, o que levou a produção de raízes profundas que demandarão grande esforço para serem
cessadas.
Ao contrário do que foi promovido pela literatura ao longo dos séculos, no romance de
Ana Maria Gonçalves tem o negro no lugar de protagonismo, por meio da trajetória de Kehinde,
uma menina de oito anos retirada brutalmente com outros capturados de Uidá no Dahomé, em
1810, mesmo antes da captura os processos de dor e trauma são abertos pela invasão de
guerreiros africanos numa terrível cena de estupro coletivo onde sangue e lágrimas se misturam
e findam com a morte da mãe e do irmão da protagonista. Kehinde permanece apenas com a
avó e a irmã gêmea e essas duas personagens que embora também tenham sido capturadas não
conseguem sobreviver à viagem desumana que passam ao virem para o Brasil.
Ao chegarem ao Brasil, Kehinde e os capturados que sobreviveram são vendidos como
escravos. É por meio das narrativas de Luísa, nome católico de Kehinde, que o romance é
delineado, revelando desde o processo de desumanização vivido na captura em África até as
dores e abusos ocorridos no Brasil. Kehinde passa a ser escrava de companhia da filha do
fazendeiro que a compra e é acompanhando a sinhazinha que aprende a ler e escrever, pois
tinha mais interesse do que ela. Kehinde tem seu primeiro filho fruto do estupro de seu senhor.
Após a morte do Senhor, a família vende a fazenda e passam a morar na cidade de Salvador.
A partir daí Kehinde é alugada como escrava para uma família inglesa onde aprende
inglês e absorve muito da cultura, torna-se escrava de ganho e com uma receita vinda da casa
dos ingleses passa a vender cookies, com o passar do um tempo consegue sua alforria e a de
seu filho. A vida de empreendedora da personagem principal tem uma crescente abissal ao
longo da narrativa, inicialmente casa-se com Alberto, homem branco, pai de seu segundo filho,
é com ele que monta e supervisiona uma padaria, posteriormente gerencia a fabricação e venda
de charutos. Quando descobre que Alberto por conta das dívidas de jogo e pelos vícios, havia
vendido seu filho como escravo embrenha-se numa busca incessante. É pela ânsia de encontrar
seu filho que Kehinde retorna à África e na viagem de ida conhece John, um negro a serviço
dos ingleses, que vem a ser posteriormente o pai de seus filhos gêmeos. Os dois passam a
compartilhar a vida e os negócios, exploram o comércio de armas que gera muito ganhos e abre
possibilidade para empreendimento mais lucrativo de Kehinde; uma construtora que usa os
modelos das brasileiras . Após os filhos gêmeos crescidos e casados, já no fim de sua vida,
cega e praticamente sozinha, volta ao Brasil na esperança de encontrar o filho que ficou
desaparecido.
Além de toda a denúncia dos traumas vividos pela escravidão e da busca pela identidade
e o romance escrito em primeira pessoa faz com que a certa altura o leitor percebe que o
romance é uma rememoração epistolar de toda vida da narradora, numa tentativa de fazer com
que o filho soubesse de sua trajetória e se tornasse mais próximo através da escrita de suas
memórias.
Ana Maria Gonçalves constrói Kehinde é uma personagem distante dos estereótipos
que ao longo de muitos anos foram conferidos aos negros. Ao conferir a personagem principal
traços distintos dos usuais às escravas como, por exemplo, o mais comuns da mulher descrita
como a negra sedutora, ou fogosa que encanta pelos atributos físicos ao contrário, o texto re-
elabora o olhar do negro e sobre o negro, o que tem-se, então, é uma personagem-principal
que desempenha sua força e sua capacidade intelectual na tentativa de subverter a ordem dada
como natural ao negro e escravo de que deveria ser passivo e não buscar qualquer tipo de
desenvolvimento muito menos o intelectual. É nessa seara de reelaboração da figura do negro
que o romance oferece uma escrava leitora e poliglota. O desenvolvimento intelectual de
Kehinde pode ter sido resultado de seu trânsito no núcleo dos escravos mulçumanos que eram
extremamente intelectualizados e faziam tarefas como as de ensinar aos brancos, fato pouco
lembrado em um Brasil onde a maioria era analfabeta:
À noite, antes de irem dormir, o Ajahi, o bilal Sali, o José da Costa e Benguê
conversavam muito sobre política, e foi prestando atenção às conversas, que
misturavam um pouco de inglês e de português, que fiquei sabendo que os
ingleses eram contra a escravatura. (GONÇALVES, 2012, p.219).
A escrita fora uma aquisição muito válida para Kehinde, além de ser um instrumento
de luxo tanto para brancos da época e, sobretudo, para negros:
Eu e a sinhazinha passávamos a maior parte do tempo no quarto, ela fingindo
estudar e eu estudando de fato, com os livros que não estavam em uso. Um
dia antes da chegada do padre Notório, pedi ao Fatumbi que escrevesse para
eu copiar o Pai-Nosso e a Ave-Maria, que achei muito mais fáceis de rezar
depois de ler e entender. Mostrei para a Esméria e ela disse que nunca poderia
imaginar que ali, naquele monte de tracinhos que não diziam nada, pelo
menos para ela, estavam orações tão bonitas. (GONÇALVES, 2012, p. 93).
Memória
É através da escrita que Kehinde consegue legar ao filho toda sua história de vida. Nessa
tentativa de rememoração através da narrativa, há uma busca para que o filho desaparecido
entenda, através da escrita que, possivelmente, um dia lerá, sobre a afetividade materna e laços
que não puderam ser feitos e principalmente para que o filho pudesse entender toda a trajetória
da mãe e sua busca por ele. O legado passa a ser sua memória e essa se desenvolve quase como
uma metáfora do povo escravizado que nunca pôde ver sua história escrita. A voz em primeira
pessoa da personagem esconde atrás de si a voz de muitos outros que sofreram um apagamento.
A trajetória de Kehinde remete a uma busca incessante por identidade, e de significação
enquanto sujeito de uma sociedade que a tornava invisível. Nessa busca por um lugar, tanto
físico como simbólico, ela traz consigo todos os elementos da memória de seus ancestrais, pois
sua memória de não é apenas sua e, sim, de um povo e de um continente. Distante da tradição
oral de África e de seu filho, ela se vê na necessidade de transmitir seu legado:
Mas na época não me animava a escrevê-la, como Kuanza me pediu, porque
os africanos não gostam de pôr histórias no papel, o branco é que gosta. Você
pode dizer que estou fazendo isto agora, deixando tudo escrito para você, mas
esta é uma história que eu teria te contado aos poucos, noite após noite, até
que você dormisse. E só faço assim por escrito, porque sei que já não tenho
mais esse tempo. Já não tenho mais quase tempo algum, a não ser o que já
passou e que eu gostaria de te deixar como herança. (GONÇALVES, 2012,
p. 617).
Ao narrar suas memórias, quase sempre permeadas por muita dor e cisão, vê-se também
a tentativa de sobrevivência, pois a trajetória da personagem-narradora é marcada por inúmeras
tragédias, já no primeiro capítulo ainda em África, a cena de estupro e morte com a invasão da
casa de Kehinde por guerreiros africanos são impactantes:
Ele disso que queria se deitar com minha mãe e ela cuspiu na cara dele. O
kokumo chutava o ar, querendo se soltar para nos defender, pois tinha sangue
de guerreiro, e foi o primeiro a ser morto. Um dos guerreiros, que até então
tinha ficado apenas olhando e sorrindo, chegou bem perto de Kokumo e
enfiou a lança na barriga dele. Eu me lembro do sangue que saiu da boca do
meu irmão e espirrou na roupa do guerreiro, e continuou a escorrer mesmo
depois que o jogaram no chão, com a cara virada para baixo. O sangue
imediatamente formou um riozinho, daqueles turvos e de água espessa, como
os que recebem muita água de chuva na cabeceira. (GONÇALVES, 2012, p.
22-23).
A situação de trauma ainda se alarga e a protagonista sofre com a violência dentro e
fora de seu país de origem com nuances distintas. No Brasil, com sua condição de escrava, a
violência vem muitas vezes associada a uma desumanização, a uma condição de objeto que lhe
foi imposta da qual ela não consegue se desvencilhar, como fica claro em:
Eu queria morrer, mas continuava mais viva que nunca, sentindo a dor do
corte da boca, o peso do corpo do sinhô José Carlos sobre o meu e os
movimentos do membro dele dentro da minha racha, que mais pareciam
chibatadas. Eu queria morrer e sair correndo, dançando e cantando, como
minha mãe havia feito. Era assim que eu imaginava os minutos seguintes, e
pode ser por isso, por causa do delírio, que durante muito tempo duvidei do
que meus olhos viram em seguida. Só acreditei de verdade alguns anos
depois, quando reencontrei o Lourenço e, de certo modo, como podia, ele me
confirmou tudo. (GONÇALVES, 2012, p. 171).
O texto acima citado encontra-se num subcapítulo intitulado A posse, trata-se da descrição de
um estrupo por parte do dono da fazenda e também dono de Kehinde, e a solidificação do
descaso em relação ao humano, como evidenciado pelo uso do termo posse, já que era comum
aos donos de escravo o chamado direito à primeira relação sexual com as escravas, mesmo
sendo crianças. A dor da personagem segue:
A última coisa que eu ouvi antes de sumir de mim foi o sinhô comentando
que aquilo não era nada, que Lourenço ia sobreviver e que no tempo do pai
dele era muito comum ter escravos capados, que os próprios pretos faziam
isso em África, onde alguns homens eram capados para que ficassem mais
dóceis e delicados para as tarefas de casa. E o pior é que sei que isso é verdade,
pois muitas vezes em África, principalmente em Abomé, vi e ouvi os tais
capados, os únicos homens que podiam entrar nas dependências destinadas às
esposas de um rei. (GONÇALVES, 2012, p. 172).
A violência percebida nas citações referidas, vem associada a uma fala do branco que
tenta de justificar seus atos, sinhô José Carlos diz que todo o episódio de barbárie ocorrido,
tratar-se de “correções” necessárias aos que não se aplicavam às normas. Exemplo de tais
“correções” foram as sofridas por Lourenço que sendo noivo de Kehinde aguardava o
casamento para depois manter relações sexuais com a noiva, virgem. Mas sabendo do
prenúncio do casamento, sinhô José Carlos arma uma tocaia para o estupro e com a tentativa
de Lourenço de barrá-lo, este acaba sendo violentado e capado. Diante de tanta dor Kehinde
parece não acreditar nos fatos vividos e deseja até mesmo a morte. Essa situação tão traumática
e de extrema violência é recorrente na história da escravidão, ao pensar-se sobre o trauma faz-
se relevante uma reflexão a cerca do que é dito por Ricardo André Ferreira Martins:
A experiência do trauma, então, é transmitida geração após geração, entre
sujeitos, famílias e sociedades inteiras, acionada através da memória que, a
todo momento, enquanto não é extravasada através de uma narrativa que
exerça o efeito catártico sobre a condição pós traumática, atormenta os
indivíduos com as consequências das experiências pós-traumáticas, mesmo
entre aqueles que herdam o poder dos que originam o trauma. Desta forma,
ocorre uma transferência de fatos traumáticos entre gerações, grupos e
indivíduos, adquirindo, portanto, dimensões tanto singulares quanto culturais,
cujos sintomas são expressos nas produções culturais e artísticas de uma
nação. (MARTINS, 2013, p.323-324).
O que se vê com a literatura em questão é uma tentativa de expurgar esses sintomas
referidos que mesmo transferidos de gerações para gerações parecem, só agora, constituir um
corpus quem vêm ganhando atenção do grande público e do meio acadêmico. A narrativa dos
traumas narrados em Um defeito de cor parece passar por esse processo que tenta extravasar
os traumas vividos por muitos e que ainda não teve seu fim. Além da trajetória bastante peculiar
da personagem-narradora, há também a singularidade de uma história contada a partir do ponto
de vista de uma mulher negra e escrava, fazendo, assim, com que a visão em relação aos fatos
históricos volte-se para um modo não mais unilateral e, sim, uma visão vinda das camadas da
sociedade que sofreram os atos narrados. O discurso histórico do romance não trata da visão
do vencedor, a voz não vem das grandes elites dominantes, mas da senzala, do negro
escravizado. Como corrobora Seligmann sobre a literatura de testemunho:
[...] – e a literatura de testemunho de um modo geral- desconstrói a
historiografia tradicional (e também os tradicionais gêneros literários) ao
incorporar elementos antes ligados “ficção”. A leitura estética do passado
opõe-se à “musealização” do ocorrido: ela está vinculada a uma modalidade
da memória que quer manter o passado ativo no presente. (SELIGMANN,
2003, p.57).
Ao abrir as chagas de sua vida, Kehinde relembra suas inúmeras passagens de dor,
violação e da dificuldade e necessidade de se inserir em uma cultura totalmente distinta e que
primava por negar qualquer manifestação identitária do povo africano e especificamente ao
tratar-se da condição dos escravizados, da dor, da solidão e de todos os traumas vividos, essa
literatura pode ser interpretada como uma busca pela identidade e por um resgate da voz dos
negros há tanto apagada e diminuída.
Revolta dos Malês
Ao deslocar o romance da forma histórica oficial, Ana Maria Gonçalves instaura uma
subversão de lugares de fala e retoma temas que foram por muito esquecidos ou
propositalmente apagados como a Revolta do Malês (1835), revolta da qual Kehinde faz parte,
ratificando não só a revolta e força dos povos escravizados, mas ainda, e, sobretudo da mulher
negra e escrava.
O fato de a Revolta dos Malês ser pouco conhecida e de ser raro ponto de discussão em
livros didáticos, mostra que embora a historiografia oficial não tenha dado ênfase às
manifestações contrárias à escravidão, elas existiram. No prólogo da obra a autora se questiona
sobre o esquecimento da revolta por parte dos historiadores e de um constante esquecimento
do povo e da revolta:
Durante quase um ano, por meio da Internet, de telefonemas para a Bahia, de
buscas em livrarias, bibliotecas, sebos, e de material emprestado, pesquisei
sobre os malês, escravos mulçumanos, bravos, inteligentes, e que realmente
tinham sido banidos da história. Até então eu nunca tinha ouvido falar deles.
(GONÇALVES, p.11).
Seria difícil acreditar que não houve revolta ao se pensar em todo o processo da
escravidão que separou famílias, fez fenecer de forma brutal a dignidade humana dos
envolvidos e estilhaçou propositadamente suas identidades. Como aponta para reflexão Zilá
Bernd em seu artigo Em busca dos rastros perdidos da memória ancestral: um estudo de Um
defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves:
Ao escrever as longas cartas dirigidas ao filho ausente, onde tudo é registrado,
a narradora ganha forças para superar situações de extrema adversidade,
rememorando os atos de bravura e heroísmo ocorridos durante as rebeliões de
escravos, outro tabu de nossa historiografa, que tratou de construir o mito da
docilidade do escravo africano e de sua aceitação da escravidão,
diferentemente do índio, que não se deixou escravizar.(BERND, 2012, p.32).
A Revolta dos Malês ocorreu na noite do dia 24 de janeiro para o dia 25 na cidade de
Salvador. O termo Malês tem origem na língua iorubá e significa mulçumano. O romance trata
com detalhes a vivência daqueles que foram escravizados e suas multiplicidades inclusive de
origem:
A nação malê não era apenas a mais culta entre quantas forneceram
mercadoria humana para o tráfico repugnante, em verdade os escravos
provindos dessa nação alcançavam os preços mais altos, sendo não só os mais
caros, também os mais disputados. Serviam de professores para os filhos de
colonos, estabeleciam as contas dos senhores, escreviam as cartas das iaiás,
intelectualmente estavam bem acima da parca instrução dos lusos condes e
barões assinalados e analfabetos ou da malta de bandidos degredados da
longínqua colônia. O mais culto dos malês era Alufá Licutâ. (GONÇALVES,
2012, p.10-11).
A revolta dos Malês foi liderada pelos escravos mulçumanos e objetivava a libertação
de outros escravos e a tomada do governo. Por meio das rememorações de Kehinde denota-se
através do uso da verossimilhança os anseios e buscas envolvendo a revolta. Havia muitas
expectativas e uma crescente insatisfação por parte dos mulçumanos pela condição em que
viviam, sobretudo pela impossibilidade de manifestarem ou exercerem sua religião. Entende-
se, então que todo o processo da escravidão que buscou o apagamento da identidade e
esfacelamento cultural dos escravizados culminou na revolta.
Eu estava muito confiante, como todas as pessoas dentro da loja, e só esperava
não ter que matar ninguém, o que seria difícil, pois a ordem era acabar com
qualquer pessoa que tentasse nos impedir de seguir adiante, fosse ela branca,
preta, liberta, escrava, mulata, homem, mulher, velho ou criança. Quem não
estava a favor da rebelião estava contra, e por isso não merecia viver as
conquistas que ela nos proporcionaria. (GONÇALVES, 2012, p.521).
A narrativa continua com a descrição detalhada de todos os acontecimentos da revolta
que inicialmente parece se desenvolver bem na visão de Kehinde:
Quando saímos para o corredor, tendo o Manoel Calafate à frente, o Mussé
atirou e matou um dos policiais. Do lado de fora da loja, na rua, já estavam
os homens que tinham pulado o muro do quintal, e logo dominaram o restante
da patrulha, formada por quatro oficiais e um e alguns paisanos.
(GONÇALVES,2012, p.525).
O fim da revolta dos Malês acaba com muitas mortes e prisões, sem que os objetivos
de tomada do governo ou libertação de outros escravos fossem alcançados. A ideia de
subjugar o negro de todas as formas possíveis vem associada à dominação imposta pelo branco,
e nesse termo trata-se não só somente a dominação física, mas a dominação ideológica, que
busca exterminar qualquer manifestação de ancestralidade ou de lembrança de África, o que
reafirma uma tentativa de domínio de todo o ser, da extinção do ser escravizado como
indivíduo. O que fica evidenciado na fala de Kehinde relatando acontecimentos relativos à
revolta dos Malês quando muitos dos participantes já tinham sido presos ou mortos:
Eles diziam que os pretos queriam roubar o Brasil dos brasileiros, profanar os
templos católicos e incendiar as propriedades, o que em parte era verdade,
mas também era verdade que eles vinham fazendo isso com os pretos havia
muitos anos. Eles nos tiravam do nosso país e das nossas propriedades, faziam
nossos batismos na religião deles, mudavam nossos nomes e diziam que
precisávamos honrar outros deuses. O argumento usado pelos advogados ou
pelos réus que faziam a própria defesa era que os pretos tinham seguido à
risca todas as vontades dos brancos, tinham passado a gostar da nova terra,
dos donos e dos seus santos, e que, portanto mereciam continuar fazendo parte
da sociedade. Era assim que eles eram instruídos por seus senhores, que os
queriam de volta. Alguns pretos não aceitavam e permaneciam fiéis às suas
crenças, não se dobravam aos brancos, assumindo a participação na revolta e
negando conhecer os companheiros, para não comprometê-los.
(GONÇALVES, p.541).
A impossibilidade de assimilação de todas as atrocidades projeta a literatura afro-
brasileira para um lugar de expurgação, fazendo da narrativa o preenchimento e resgate do
apagamento do negro;
O trabalho da história e da memória deve levar em conta tanto a necessidade
de se “trabalhar” o passado, pois as nossas identidades dependem disso, como
também o quanto esse confronto com o passado é difícil. (SELIGMANN,
2003, p.77).
Em Um defeito de cor, literatura e História se entrelaçam, a narrativa que propõe uma
visão sobre o sistema escravocrata brasileiro, põe seus personagens na esteira da
verossimilhança ao sugerir que Kehinde pudesse ser Luísa Mahin, e seu filho, Luís Gama,
assim o testemunho torna-se mais palpável e coadunado com a realidade. A vida não está
distante dessa literatura e tampouco pretende poupar o leitor da cruel realidade e dos traumas
que vigoram até hoje.
Busca pela identidade, religiosidade
A religião é um tema bastante recorrente ao longo do romance, no caso dos negros
escravizados, além de manter um elo com a terra de origem é também, quase que
exclusivamente, a mais legítima tentativa de solidificação de identidade. Pela sabida
importância da religião como mantenedora da cultura e da identidade dos escravos, essa foi
veementemente proibida no Brasil. As interdições que se refém aos escravos não são apenas
geográficas, mas também interdições de ideias e de religiosidade. Ana Maria Gonçalves
desenvolve toda a trama da personagem Kehinde alicerçadas pela importância da religião, ora
a vemos fugindo do batismo católico, como maneira de preservar suas origens e resistir à
assimilação ao povo que a escravizou, ora a vemos utilizando da igreja católica e de seus
preceitos como forma de defesa e segurança. Kehinde embrenha uma luta para conseguir
manter os princípios religiosos vindos de seus ancestrais em África e dessa forma resgatar sua
identidade e sua significação ao perpetuar a memória e ensinamentos religiosos.
Em todo o processo de transformação da protagonista há que se atentar para a
valorização da cultura africana que se dá através da rememoração constante da importância dos
ensinamentos passados pelos mais velhos. É pelo uso da memória que Kehinde se força a
lembrar de suas origens e da necessidade de perpetuar e transmitir sua identidade através da
religião retomando, assim o laço familiar:
[...]enquanto eu refletia se estava mesmo fazendo a coisa certa, se ele teria
uma cerimônia como aquela se minha avó estivesse viva. Mas, no caso, era
aquela ou nenhuma, e de certa forma eu já estava bastante familiarizada com
a religião dos orixás, além de querer dar ao meu filho mais alguns laços de
parentesco, pois éramos os únicos no mundo ligados pelo sangue. Entre os
iorubás, uma cerimônia de nome também significa que a criança está sendo
apresentada aos orixás e os amigos, que a partir de então, formam uma grande
família. (GONÇALVES, 2012, p.204).
Kehinde tenta de toda forma manter a memória de sua família, de preservar e vivificar
seus ancestrais, esse entrelace entre a cultura, a família perdida se dá através de um elo trançado
pela religião, em meio a tantos traumas as memórias se mesclam ao esquecimento “ Quando
eu ficava muito triste, eu começava a cantar coisas que nem sabia que me lembrava, as canções
que a minha avó tinha cantado para o Kokumo e para a minha mãe, antes de sairmos de Savalu.
(GONÇALVES, 2012, p.624)
Os momentos de ligação com a avó e a irmã gêmea, ambas mortas antes mesmo de
chegarem ao Brasil, se dá enquanto Kehinde dorme e sonha com a avó e a irmã que mandam
mensagem. Essas mensagens podem expressar reprovação sobre algo da vida de Kehinde ou
indicam acontecimentos futuros e, além disso, lembram de oferendas ou a necessidade de se
praticar a religião da família africana, que aqui funciona como uma maneira de prolongamento
de identidade e origem.
Mesmo quando Kehinde não tinha alforria, usava de todos os meios que podia para
cumprir os ritos necessários à religião essa preocupação fez com que ela tivesse atenção
redobrada para o tratamento dos filhos de acordo com a religião participando de cerimônias de
iniciações e de oferendas;
Isso fez com que eu não conseguisse prestar muita atenção às palavras do
Ifasen, que falava da bênção que um filho representa para a mãe e para toda
a família, porque ele herda e perpetua a história e a memória.
(GONÇALVES, 2012, p.207 ).
Muito embora as raízes de Kehinde sejam estreitamente definidas e inicialmente há uma
recusa em participar de batismo quando chega ao Brasil, ela consegue escapar da nomeação
que era dada aos escravos assim que embarcavam e acaba escolhendo posteriormente o nome
Luísa para se dizer assimilada. Mesmo com forte desejo de perpetuar a religião de sua família
em África, Kehinde não deixa de perceber as mudanças a sua volta e quando já adulta depois
de ter filhos, volta à África e é vista pelos nativos como brasileira e não mais africana pois
absorvera hábitos e costumes que ela considera mais refinados do que o dos africanos, em
África Kehinde se depara com uma realidade de extrema pobreza e violência, vendo que muitos
africanos gostariam de ir para o Brasil pois consideravam a vida de escravo melhor do que a
deles tomando por base o estado que voltavam os africanos escravizados vindos do Brasil. É
neste meio que Kehinde consegue novamente observar as pessoas, as demandas do lugar, faz
amizades importantes propositalmente e enriquece muito.
Considerações finais
Kehinde é uma personagem que consegue se adaptar ao seu tempo, seja ele qual for.
Seu extinto de sobrevivência fez-se mais forte do que sua dor. Ela percebe desde quando
desembarca no Brasil e é exposta à venda no mercado de escravos que teria que se mover para
não morrer, e é esse movimento constante dentro do romance que a leva a mudar de cidade, de
produto de venda, que a faz se ariscar dizendo vender biscoitos em nome de uma sinhá que não
existia tudo isso para permanecer viva. Seus elos com a vida dos antepassados são feitos pelas
lembranças das memórias dos que já se foram, mas se fazem sempre constantes. A personagem
ter um percurso distinto e embora não tenha encontrado o filho, ela termina como sendo uma
mulher de negócios das mais ricas e bem sucedidas. Kehinde abre espaço para um novo tipo
de personagem, a da mulher negra que consolida o poder, que se desfaz das amarras e consegue
ser sua própria dona. Todo esse processo não se concluiu de forma fácil e banal, e nem poderia
ser, mas há de se atentar para o desnudamento de forças, de saberes e de uma nova regulação
de valores trazidos por este romance por uma perspectiva que revisita os fatos históricos.
Referências
BERND, Zilá. Em busca dos rastros perdidos da memória ancestral: um estudo de Um
defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. Estudos de literatura brasileira contemporânea, n.40,
p.29-42, 2012.
GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Record, 2012.
MARTINS, Ricardo André Ferreira(org.). Ensaios (In) Conjuntos. Jundiaí: Paco Editorial,
2013.
MÈRIAN, Jean-Yves. Memoire, histoire et mythes afro brasilieasn dans “ Um defeito de cor”
de Ana Maria Gonçalves. In: Atas do V Congresso Europeu CEISAR de Latino-
americanistas, Bruxelas, 2007.
REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil - A história do levante dos Malês em 1835.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, memória, literatura: o testemunho na era das
catástrofes. Campinas: Unicamp, 2003.