um defeito de cor de ana maria gonçalves o romance escrito em primeira pessoa faz com que a certa...

14
A busca pelo resgate identitário e histórico em Um defeito de cor de Ana Maria Gonçalves Renata de Paula Ferreira (UEL) Resumo: Um defeito de cor (2010) obra de Ana Maria Gonçalves subverte a ordem usual da narrativa histórica ao dar voz à personagem-narradora, Kehinde, ex-escrava que através de rememorações de sua vida, eleva o romance histórico a uma perspectiva histórica não mais das classes de elite, da casa grande, mas, sim, da visão do negro, da senzala. Ao lugar do discurso do vencedor tem-se a tentativa do resgate histórico não mais visto unilateralmente. Pretende- se com este trabalho refletir sobre o esquecimento, o apagamento da memória impingido aos escravizados e a busca pela memória e identidade, além de apontar para a questão dos traumas deixados pelo sistema escravocrata. Para tal, faz-se necessário as elucidações de Márcio Seligmann-Silva (2003) em relação à narração do trauma e, também da importância do romance enquanto uma narrativa que volta o olhar a temas usualmente colocados à margem como a revolta dos Malês (1835) da qual a personagem-narradora fez parte, desmistificando o mito da docilidade e passividade do escravo africano como aponta Zila Bernd (2012). É por meio da busca do resgate de fatos históricos que Ana Maria Gonçalves traz à luz fatos apagados da historiografia oficial. Palavras-chave: Memória. Trauma. Revolta do Malês. Narrativa histórica. Abstract: Um defeito de cor (2010) by Ana Maria Gonçalves subverses the usual order of historical narrative by giving voice to the narrator-character, Kehinde, a former slave that through remembrances of her life, elevates the historical novel to a historical perspective no longer of the elite classes of the great house, but, rather, of the vision of blacks of the senzala (slave quarters). To the place of the winner's speech there is the attempt of the historical rescue no longer seen unilaterally. This paper aims to reflect on forgetfulness the erasure of the memory impinged on the enslaved and the search for memory and identity, and also to reflect on the question of the traumas left by the slave system. For this, it is necessary the explanations of Márcio Seligmann-Silva (2003) about the narration of the trauma and also the importance of the novel as a narrative that turns the look to themes usually placed at the margin as the example of Revolta do Malês(1835), of which the narrator-character was part, demystifying the myth of docility and passivity of the African slave as says Zila Bernd (2012). It is through the attempt to rescue historical facts that Ana Maria Gonçalves brings to light deleted facts of official historiography. Keywords: Memory. Trauma. Revolta do Malês. Historical narrative. Introdução Atualmente o Brasil avança para uma reformulação de valores e modificações de estereótipos em relação ao negro e seu papel na sociedade vem se modificando, ou pelo menos há uma grande força para isso. Se durantes séculos a imagem do negro foi construída pelas lentes dos brancos que em sua maioria eram senhores e donos não só dos escravos, mas de

Upload: phamquynh

Post on 11-Nov-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

A busca pelo resgate identitário e histórico em Um defeito de cor de Ana Maria

Gonçalves

Renata de Paula Ferreira (UEL)

Resumo: Um defeito de cor (2010) obra de Ana Maria Gonçalves subverte a ordem usual da

narrativa histórica ao dar voz à personagem-narradora, Kehinde, ex-escrava que através de

rememorações de sua vida, eleva o romance histórico a uma perspectiva histórica não mais das

classes de elite, da casa grande, mas, sim, da visão do negro, da senzala. Ao lugar do discurso

do vencedor tem-se a tentativa do resgate histórico não mais visto unilateralmente. Pretende-

se com este trabalho refletir sobre o esquecimento, o apagamento da memória impingido aos

escravizados e a busca pela memória e identidade, além de apontar para a questão dos traumas

deixados pelo sistema escravocrata. Para tal, faz-se necessário as elucidações de Márcio

Seligmann-Silva (2003) em relação à narração do trauma e, também da importância do

romance enquanto uma narrativa que volta o olhar a temas usualmente colocados à margem

como a revolta dos Malês (1835) da qual a personagem-narradora fez parte, desmistificando o

mito da docilidade e passividade do escravo africano como aponta Zila Bernd (2012). É por

meio da busca do resgate de fatos históricos que Ana Maria Gonçalves traz à luz fatos apagados

da historiografia oficial.

Palavras-chave: Memória. Trauma. Revolta do Malês. Narrativa histórica.

Abstract: Um defeito de cor (2010) by Ana Maria Gonçalves subverses the usual order of

historical narrative by giving voice to the narrator-character, Kehinde, a former slave that

through remembrances of her life, elevates the historical novel to a historical perspective no

longer of the elite classes of the great house, but, rather, of the vision of blacks of the senzala

(slave quarters). To the place of the winner's speech there is the attempt of the historical rescue

no longer seen unilaterally. This paper aims to reflect on forgetfulness the erasure of the

memory impinged on the enslaved and the search for memory and identity, and also to reflect

on the question of the traumas left by the slave system. For this, it is necessary the explanations

of Márcio Seligmann-Silva (2003) about the narration of the trauma and also the importance

of the novel as a narrative that turns the look to themes usually placed at the margin as the

example of Revolta do Malês(1835), of which the narrator-character was part, demystifying

the myth of docility and passivity of the African slave as says Zila Bernd (2012). It is through

the attempt to rescue historical facts that Ana Maria Gonçalves brings to light deleted facts of

official historiography.

Keywords: Memory. Trauma. Revolta do Malês. Historical narrative.

Introdução

Atualmente o Brasil avança para uma reformulação de valores e modificações de

estereótipos em relação ao negro e seu papel na sociedade vem se modificando, ou pelo menos

há uma grande força para isso. Se durantes séculos a imagem do negro foi construída pelas

lentes dos brancos que em sua maioria eram senhores e donos não só dos escravos, mas de

todas as ideologias vigoradas na sociedade, ideologias essas que primando pelo apagamento de

qualquer manifestação cultural, artística, religiosa vindas dos negros, fez com que se

mantivessem num lugar inferior e sempre determinado pelos brancos, assim permaneceram

na esfera da sociedade que sofrendo um processo de apagamento através da tão trabalhada e

sedimentada ideia da supremacia branca, o que se vê hoje é uma tentativa de revalorização, de

uma nova forma de se pensar a História, agora não mais vista unicamente pela voz do branco

que modelou toda a vivência até aqui. Se a ideia de extinção e negação da cultura do negro, se

a imposição a uma nova cultura dada aos escravos pode vigorar durante séculos, faz-se

necessária uma reflexão acerca das justificativas que alicerçaram o domínio hegemônico

branco. Uma das justificativas pretende dar a escravidão fontes de cunho biológico. O amparo

da literatura que pôde relegar ao negro o papel quase sempre secundário e inferiorizado. Além

disso, outro fator de estrema importância para a validação e amplificação da escravidão foi o

tipo de configuração social a qual estava fundada no Brasil.

O movimento de mudança que se empreende agora, incluindo a literatura, pretende uma

reelaboração, um novo modo de pensar sobre o lugar imposto ao negro. Neste sentido, a

literatura pode corroborar na reelaboração e reabilitação da imagem do negro. A literatura

afro-brasileira tem um valioso papel ao empregar temáticas pouco, ou nada, tratadas

anteriormente. Ao trazer questões como a diáspora, a escravidão, na visão do escravizado e não

mais apenas pelo olhar elitizado do branco, gera-se um processo de reelaboração de todo o

trauma provocado e vivido. Esse processo vem crescendo ao longo das últimas décadas calcado

na necessidade de que se promova algum tipo de mudança diante do modo como é encarado a

identidade do brasileiro e suas relações. A literatura, com sua narrativa que pode, embrenhar-

se no desenvolvimento do humano e na relação com o histórico, como um meio de refacção,

(re)construção de identidade e cultura do povo africano escravizado. Pretende-se com este

trabalho elaborar uma inicial reflexão acerca da obra de Ana Maria Gonçalves Um defeito de

cor (2010) e dos traumas vividos pelo povo africano escravizado usando como aportes teóricos

que tratem do trauma e sua relação com a literatura.

Um defeito de cor

Ana Maria Gonçalves em sua obra Um defeito de cor (2010) traz uma inovação na produção

da literatura afro-brasileira, além da trajetória de reconstrução histórica de um novo enfoque

sobre o tema tratado e o uso da verossimilhança, além disso, deve-se ressaltar o fato de ser um

romance, gênero não tão comum na literatura afro-brasileira como corrobora Jean-Yes Mérian

(2007) “Contudo a produção de romances tem sido, até agora, muito limitada, não se reverte

tão facilmente uma situação consolidada desde meados do século XIX.”

Embora a temática da escravidão e do negro já tenham figurado inúmeras vezes na

literatura, em sua maior parte o negro foi tratado como objeto de observação e não agente, essa

situação foi corroborada pelo mito da superioridade da raça branca em detrimento as demais.

Inúmeras são as possibilidades de exemplificação destes fatos na literatura como a obra de

Bernardo Guimarães A escrava Isaura (1875) O Mulato (1881), O cortiço (1890) ambos escritos

por Aluísio Azevedo ou até mesmo em obras de Jorge Amado. Pode-se dizer que em muitas

obras há um posicionamento contrário à escravidão, além do detalhamento e alargamento das

dores vividas pelos escravos, mas pelo viés externo. A exterioridade do olhar traz, por vezes

uma imagem do negro caricata, deixando afastado o interesse pelo legado cultural. Na medida

em que a quase totalidade das obras até então com a temática do negro relegavam qualquer

função de figuração enquanto sujeito, corroborando, assim, para a sedimentação da imagem do

negro como a do ser oprimido, pacato e carente de amparo. Tais obras contribuíram para a

disseminação do ideal de branqueamento, que é visto até os dias de hoje no Brasil, e por se

esquivarem de tratar o tema pela perspectiva da necessidade de protagonismo, de reabilitação

do negro como agente produtivo, ajudaram a consolidar vários estereótipos relacionados ao

negro, o que levou a produção de raízes profundas que demandarão grande esforço para serem

cessadas.

Ao contrário do que foi promovido pela literatura ao longo dos séculos, no romance de

Ana Maria Gonçalves tem o negro no lugar de protagonismo, por meio da trajetória de Kehinde,

uma menina de oito anos retirada brutalmente com outros capturados de Uidá no Dahomé, em

1810, mesmo antes da captura os processos de dor e trauma são abertos pela invasão de

guerreiros africanos numa terrível cena de estupro coletivo onde sangue e lágrimas se misturam

e findam com a morte da mãe e do irmão da protagonista. Kehinde permanece apenas com a

avó e a irmã gêmea e essas duas personagens que embora também tenham sido capturadas não

conseguem sobreviver à viagem desumana que passam ao virem para o Brasil.

Ao chegarem ao Brasil, Kehinde e os capturados que sobreviveram são vendidos como

escravos. É por meio das narrativas de Luísa, nome católico de Kehinde, que o romance é

delineado, revelando desde o processo de desumanização vivido na captura em África até as

dores e abusos ocorridos no Brasil. Kehinde passa a ser escrava de companhia da filha do

fazendeiro que a compra e é acompanhando a sinhazinha que aprende a ler e escrever, pois

tinha mais interesse do que ela. Kehinde tem seu primeiro filho fruto do estupro de seu senhor.

Após a morte do Senhor, a família vende a fazenda e passam a morar na cidade de Salvador.

A partir daí Kehinde é alugada como escrava para uma família inglesa onde aprende

inglês e absorve muito da cultura, torna-se escrava de ganho e com uma receita vinda da casa

dos ingleses passa a vender cookies, com o passar do um tempo consegue sua alforria e a de

seu filho. A vida de empreendedora da personagem principal tem uma crescente abissal ao

longo da narrativa, inicialmente casa-se com Alberto, homem branco, pai de seu segundo filho,

é com ele que monta e supervisiona uma padaria, posteriormente gerencia a fabricação e venda

de charutos. Quando descobre que Alberto por conta das dívidas de jogo e pelos vícios, havia

vendido seu filho como escravo embrenha-se numa busca incessante. É pela ânsia de encontrar

seu filho que Kehinde retorna à África e na viagem de ida conhece John, um negro a serviço

dos ingleses, que vem a ser posteriormente o pai de seus filhos gêmeos. Os dois passam a

compartilhar a vida e os negócios, exploram o comércio de armas que gera muito ganhos e abre

possibilidade para empreendimento mais lucrativo de Kehinde; uma construtora que usa os

modelos das brasileiras . Após os filhos gêmeos crescidos e casados, já no fim de sua vida,

cega e praticamente sozinha, volta ao Brasil na esperança de encontrar o filho que ficou

desaparecido.

Além de toda a denúncia dos traumas vividos pela escravidão e da busca pela identidade

e o romance escrito em primeira pessoa faz com que a certa altura o leitor percebe que o

romance é uma rememoração epistolar de toda vida da narradora, numa tentativa de fazer com

que o filho soubesse de sua trajetória e se tornasse mais próximo através da escrita de suas

memórias.

Ana Maria Gonçalves constrói Kehinde é uma personagem distante dos estereótipos

que ao longo de muitos anos foram conferidos aos negros. Ao conferir a personagem principal

traços distintos dos usuais às escravas como, por exemplo, o mais comuns da mulher descrita

como a negra sedutora, ou fogosa que encanta pelos atributos físicos ao contrário, o texto re-

elabora o olhar do negro e sobre o negro, o que tem-se, então, é uma personagem-principal

que desempenha sua força e sua capacidade intelectual na tentativa de subverter a ordem dada

como natural ao negro e escravo de que deveria ser passivo e não buscar qualquer tipo de

desenvolvimento muito menos o intelectual. É nessa seara de reelaboração da figura do negro

que o romance oferece uma escrava leitora e poliglota. O desenvolvimento intelectual de

Kehinde pode ter sido resultado de seu trânsito no núcleo dos escravos mulçumanos que eram

extremamente intelectualizados e faziam tarefas como as de ensinar aos brancos, fato pouco

lembrado em um Brasil onde a maioria era analfabeta:

À noite, antes de irem dormir, o Ajahi, o bilal Sali, o José da Costa e Benguê

conversavam muito sobre política, e foi prestando atenção às conversas, que

misturavam um pouco de inglês e de português, que fiquei sabendo que os

ingleses eram contra a escravatura. (GONÇALVES, 2012, p.219).

A escrita fora uma aquisição muito válida para Kehinde, além de ser um instrumento

de luxo tanto para brancos da época e, sobretudo, para negros:

Eu e a sinhazinha passávamos a maior parte do tempo no quarto, ela fingindo

estudar e eu estudando de fato, com os livros que não estavam em uso. Um

dia antes da chegada do padre Notório, pedi ao Fatumbi que escrevesse para

eu copiar o Pai-Nosso e a Ave-Maria, que achei muito mais fáceis de rezar

depois de ler e entender. Mostrei para a Esméria e ela disse que nunca poderia

imaginar que ali, naquele monte de tracinhos que não diziam nada, pelo

menos para ela, estavam orações tão bonitas. (GONÇALVES, 2012, p. 93).

Memória

É através da escrita que Kehinde consegue legar ao filho toda sua história de vida. Nessa

tentativa de rememoração através da narrativa, há uma busca para que o filho desaparecido

entenda, através da escrita que, possivelmente, um dia lerá, sobre a afetividade materna e laços

que não puderam ser feitos e principalmente para que o filho pudesse entender toda a trajetória

da mãe e sua busca por ele. O legado passa a ser sua memória e essa se desenvolve quase como

uma metáfora do povo escravizado que nunca pôde ver sua história escrita. A voz em primeira

pessoa da personagem esconde atrás de si a voz de muitos outros que sofreram um apagamento.

A trajetória de Kehinde remete a uma busca incessante por identidade, e de significação

enquanto sujeito de uma sociedade que a tornava invisível. Nessa busca por um lugar, tanto

físico como simbólico, ela traz consigo todos os elementos da memória de seus ancestrais, pois

sua memória de não é apenas sua e, sim, de um povo e de um continente. Distante da tradição

oral de África e de seu filho, ela se vê na necessidade de transmitir seu legado:

Mas na época não me animava a escrevê-la, como Kuanza me pediu, porque

os africanos não gostam de pôr histórias no papel, o branco é que gosta. Você

pode dizer que estou fazendo isto agora, deixando tudo escrito para você, mas

esta é uma história que eu teria te contado aos poucos, noite após noite, até

que você dormisse. E só faço assim por escrito, porque sei que já não tenho

mais esse tempo. Já não tenho mais quase tempo algum, a não ser o que já

passou e que eu gostaria de te deixar como herança. (GONÇALVES, 2012,

p. 617).

Ao narrar suas memórias, quase sempre permeadas por muita dor e cisão, vê-se também

a tentativa de sobrevivência, pois a trajetória da personagem-narradora é marcada por inúmeras

tragédias, já no primeiro capítulo ainda em África, a cena de estupro e morte com a invasão da

casa de Kehinde por guerreiros africanos são impactantes:

Ele disso que queria se deitar com minha mãe e ela cuspiu na cara dele. O

kokumo chutava o ar, querendo se soltar para nos defender, pois tinha sangue

de guerreiro, e foi o primeiro a ser morto. Um dos guerreiros, que até então

tinha ficado apenas olhando e sorrindo, chegou bem perto de Kokumo e

enfiou a lança na barriga dele. Eu me lembro do sangue que saiu da boca do

meu irmão e espirrou na roupa do guerreiro, e continuou a escorrer mesmo

depois que o jogaram no chão, com a cara virada para baixo. O sangue

imediatamente formou um riozinho, daqueles turvos e de água espessa, como

os que recebem muita água de chuva na cabeceira. (GONÇALVES, 2012, p.

22-23).

A situação de trauma ainda se alarga e a protagonista sofre com a violência dentro e

fora de seu país de origem com nuances distintas. No Brasil, com sua condição de escrava, a

violência vem muitas vezes associada a uma desumanização, a uma condição de objeto que lhe

foi imposta da qual ela não consegue se desvencilhar, como fica claro em:

Eu queria morrer, mas continuava mais viva que nunca, sentindo a dor do

corte da boca, o peso do corpo do sinhô José Carlos sobre o meu e os

movimentos do membro dele dentro da minha racha, que mais pareciam

chibatadas. Eu queria morrer e sair correndo, dançando e cantando, como

minha mãe havia feito. Era assim que eu imaginava os minutos seguintes, e

pode ser por isso, por causa do delírio, que durante muito tempo duvidei do

que meus olhos viram em seguida. Só acreditei de verdade alguns anos

depois, quando reencontrei o Lourenço e, de certo modo, como podia, ele me

confirmou tudo. (GONÇALVES, 2012, p. 171).

O texto acima citado encontra-se num subcapítulo intitulado A posse, trata-se da descrição de

um estrupo por parte do dono da fazenda e também dono de Kehinde, e a solidificação do

descaso em relação ao humano, como evidenciado pelo uso do termo posse, já que era comum

aos donos de escravo o chamado direito à primeira relação sexual com as escravas, mesmo

sendo crianças. A dor da personagem segue:

A última coisa que eu ouvi antes de sumir de mim foi o sinhô comentando

que aquilo não era nada, que Lourenço ia sobreviver e que no tempo do pai

dele era muito comum ter escravos capados, que os próprios pretos faziam

isso em África, onde alguns homens eram capados para que ficassem mais

dóceis e delicados para as tarefas de casa. E o pior é que sei que isso é verdade,

pois muitas vezes em África, principalmente em Abomé, vi e ouvi os tais

capados, os únicos homens que podiam entrar nas dependências destinadas às

esposas de um rei. (GONÇALVES, 2012, p. 172).

A violência percebida nas citações referidas, vem associada a uma fala do branco que

tenta de justificar seus atos, sinhô José Carlos diz que todo o episódio de barbárie ocorrido,

tratar-se de “correções” necessárias aos que não se aplicavam às normas. Exemplo de tais

“correções” foram as sofridas por Lourenço que sendo noivo de Kehinde aguardava o

casamento para depois manter relações sexuais com a noiva, virgem. Mas sabendo do

prenúncio do casamento, sinhô José Carlos arma uma tocaia para o estupro e com a tentativa

de Lourenço de barrá-lo, este acaba sendo violentado e capado. Diante de tanta dor Kehinde

parece não acreditar nos fatos vividos e deseja até mesmo a morte. Essa situação tão traumática

e de extrema violência é recorrente na história da escravidão, ao pensar-se sobre o trauma faz-

se relevante uma reflexão a cerca do que é dito por Ricardo André Ferreira Martins:

A experiência do trauma, então, é transmitida geração após geração, entre

sujeitos, famílias e sociedades inteiras, acionada através da memória que, a

todo momento, enquanto não é extravasada através de uma narrativa que

exerça o efeito catártico sobre a condição pós traumática, atormenta os

indivíduos com as consequências das experiências pós-traumáticas, mesmo

entre aqueles que herdam o poder dos que originam o trauma. Desta forma,

ocorre uma transferência de fatos traumáticos entre gerações, grupos e

indivíduos, adquirindo, portanto, dimensões tanto singulares quanto culturais,

cujos sintomas são expressos nas produções culturais e artísticas de uma

nação. (MARTINS, 2013, p.323-324).

O que se vê com a literatura em questão é uma tentativa de expurgar esses sintomas

referidos que mesmo transferidos de gerações para gerações parecem, só agora, constituir um

corpus quem vêm ganhando atenção do grande público e do meio acadêmico. A narrativa dos

traumas narrados em Um defeito de cor parece passar por esse processo que tenta extravasar

os traumas vividos por muitos e que ainda não teve seu fim. Além da trajetória bastante peculiar

da personagem-narradora, há também a singularidade de uma história contada a partir do ponto

de vista de uma mulher negra e escrava, fazendo, assim, com que a visão em relação aos fatos

históricos volte-se para um modo não mais unilateral e, sim, uma visão vinda das camadas da

sociedade que sofreram os atos narrados. O discurso histórico do romance não trata da visão

do vencedor, a voz não vem das grandes elites dominantes, mas da senzala, do negro

escravizado. Como corrobora Seligmann sobre a literatura de testemunho:

[...] – e a literatura de testemunho de um modo geral- desconstrói a

historiografia tradicional (e também os tradicionais gêneros literários) ao

incorporar elementos antes ligados “ficção”. A leitura estética do passado

opõe-se à “musealização” do ocorrido: ela está vinculada a uma modalidade

da memória que quer manter o passado ativo no presente. (SELIGMANN,

2003, p.57).

Ao abrir as chagas de sua vida, Kehinde relembra suas inúmeras passagens de dor,

violação e da dificuldade e necessidade de se inserir em uma cultura totalmente distinta e que

primava por negar qualquer manifestação identitária do povo africano e especificamente ao

tratar-se da condição dos escravizados, da dor, da solidão e de todos os traumas vividos, essa

literatura pode ser interpretada como uma busca pela identidade e por um resgate da voz dos

negros há tanto apagada e diminuída.

Revolta dos Malês

Ao deslocar o romance da forma histórica oficial, Ana Maria Gonçalves instaura uma

subversão de lugares de fala e retoma temas que foram por muito esquecidos ou

propositalmente apagados como a Revolta do Malês (1835), revolta da qual Kehinde faz parte,

ratificando não só a revolta e força dos povos escravizados, mas ainda, e, sobretudo da mulher

negra e escrava.

O fato de a Revolta dos Malês ser pouco conhecida e de ser raro ponto de discussão em

livros didáticos, mostra que embora a historiografia oficial não tenha dado ênfase às

manifestações contrárias à escravidão, elas existiram. No prólogo da obra a autora se questiona

sobre o esquecimento da revolta por parte dos historiadores e de um constante esquecimento

do povo e da revolta:

Durante quase um ano, por meio da Internet, de telefonemas para a Bahia, de

buscas em livrarias, bibliotecas, sebos, e de material emprestado, pesquisei

sobre os malês, escravos mulçumanos, bravos, inteligentes, e que realmente

tinham sido banidos da história. Até então eu nunca tinha ouvido falar deles.

(GONÇALVES, p.11).

Seria difícil acreditar que não houve revolta ao se pensar em todo o processo da

escravidão que separou famílias, fez fenecer de forma brutal a dignidade humana dos

envolvidos e estilhaçou propositadamente suas identidades. Como aponta para reflexão Zilá

Bernd em seu artigo Em busca dos rastros perdidos da memória ancestral: um estudo de Um

defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves:

Ao escrever as longas cartas dirigidas ao filho ausente, onde tudo é registrado,

a narradora ganha forças para superar situações de extrema adversidade,

rememorando os atos de bravura e heroísmo ocorridos durante as rebeliões de

escravos, outro tabu de nossa historiografa, que tratou de construir o mito da

docilidade do escravo africano e de sua aceitação da escravidão,

diferentemente do índio, que não se deixou escravizar.(BERND, 2012, p.32).

A Revolta dos Malês ocorreu na noite do dia 24 de janeiro para o dia 25 na cidade de

Salvador. O termo Malês tem origem na língua iorubá e significa mulçumano. O romance trata

com detalhes a vivência daqueles que foram escravizados e suas multiplicidades inclusive de

origem:

A nação malê não era apenas a mais culta entre quantas forneceram

mercadoria humana para o tráfico repugnante, em verdade os escravos

provindos dessa nação alcançavam os preços mais altos, sendo não só os mais

caros, também os mais disputados. Serviam de professores para os filhos de

colonos, estabeleciam as contas dos senhores, escreviam as cartas das iaiás,

intelectualmente estavam bem acima da parca instrução dos lusos condes e

barões assinalados e analfabetos ou da malta de bandidos degredados da

longínqua colônia. O mais culto dos malês era Alufá Licutâ. (GONÇALVES,

2012, p.10-11).

A revolta dos Malês foi liderada pelos escravos mulçumanos e objetivava a libertação

de outros escravos e a tomada do governo. Por meio das rememorações de Kehinde denota-se

através do uso da verossimilhança os anseios e buscas envolvendo a revolta. Havia muitas

expectativas e uma crescente insatisfação por parte dos mulçumanos pela condição em que

viviam, sobretudo pela impossibilidade de manifestarem ou exercerem sua religião. Entende-

se, então que todo o processo da escravidão que buscou o apagamento da identidade e

esfacelamento cultural dos escravizados culminou na revolta.

Eu estava muito confiante, como todas as pessoas dentro da loja, e só esperava

não ter que matar ninguém, o que seria difícil, pois a ordem era acabar com

qualquer pessoa que tentasse nos impedir de seguir adiante, fosse ela branca,

preta, liberta, escrava, mulata, homem, mulher, velho ou criança. Quem não

estava a favor da rebelião estava contra, e por isso não merecia viver as

conquistas que ela nos proporcionaria. (GONÇALVES, 2012, p.521).

A narrativa continua com a descrição detalhada de todos os acontecimentos da revolta

que inicialmente parece se desenvolver bem na visão de Kehinde:

Quando saímos para o corredor, tendo o Manoel Calafate à frente, o Mussé

atirou e matou um dos policiais. Do lado de fora da loja, na rua, já estavam

os homens que tinham pulado o muro do quintal, e logo dominaram o restante

da patrulha, formada por quatro oficiais e um e alguns paisanos.

(GONÇALVES,2012, p.525).

O fim da revolta dos Malês acaba com muitas mortes e prisões, sem que os objetivos

de tomada do governo ou libertação de outros escravos fossem alcançados. A ideia de

subjugar o negro de todas as formas possíveis vem associada à dominação imposta pelo branco,

e nesse termo trata-se não só somente a dominação física, mas a dominação ideológica, que

busca exterminar qualquer manifestação de ancestralidade ou de lembrança de África, o que

reafirma uma tentativa de domínio de todo o ser, da extinção do ser escravizado como

indivíduo. O que fica evidenciado na fala de Kehinde relatando acontecimentos relativos à

revolta dos Malês quando muitos dos participantes já tinham sido presos ou mortos:

Eles diziam que os pretos queriam roubar o Brasil dos brasileiros, profanar os

templos católicos e incendiar as propriedades, o que em parte era verdade,

mas também era verdade que eles vinham fazendo isso com os pretos havia

muitos anos. Eles nos tiravam do nosso país e das nossas propriedades, faziam

nossos batismos na religião deles, mudavam nossos nomes e diziam que

precisávamos honrar outros deuses. O argumento usado pelos advogados ou

pelos réus que faziam a própria defesa era que os pretos tinham seguido à

risca todas as vontades dos brancos, tinham passado a gostar da nova terra,

dos donos e dos seus santos, e que, portanto mereciam continuar fazendo parte

da sociedade. Era assim que eles eram instruídos por seus senhores, que os

queriam de volta. Alguns pretos não aceitavam e permaneciam fiéis às suas

crenças, não se dobravam aos brancos, assumindo a participação na revolta e

negando conhecer os companheiros, para não comprometê-los.

(GONÇALVES, p.541).

A impossibilidade de assimilação de todas as atrocidades projeta a literatura afro-

brasileira para um lugar de expurgação, fazendo da narrativa o preenchimento e resgate do

apagamento do negro;

O trabalho da história e da memória deve levar em conta tanto a necessidade

de se “trabalhar” o passado, pois as nossas identidades dependem disso, como

também o quanto esse confronto com o passado é difícil. (SELIGMANN,

2003, p.77).

Em Um defeito de cor, literatura e História se entrelaçam, a narrativa que propõe uma

visão sobre o sistema escravocrata brasileiro, põe seus personagens na esteira da

verossimilhança ao sugerir que Kehinde pudesse ser Luísa Mahin, e seu filho, Luís Gama,

assim o testemunho torna-se mais palpável e coadunado com a realidade. A vida não está

distante dessa literatura e tampouco pretende poupar o leitor da cruel realidade e dos traumas

que vigoram até hoje.

Busca pela identidade, religiosidade

A religião é um tema bastante recorrente ao longo do romance, no caso dos negros

escravizados, além de manter um elo com a terra de origem é também, quase que

exclusivamente, a mais legítima tentativa de solidificação de identidade. Pela sabida

importância da religião como mantenedora da cultura e da identidade dos escravos, essa foi

veementemente proibida no Brasil. As interdições que se refém aos escravos não são apenas

geográficas, mas também interdições de ideias e de religiosidade. Ana Maria Gonçalves

desenvolve toda a trama da personagem Kehinde alicerçadas pela importância da religião, ora

a vemos fugindo do batismo católico, como maneira de preservar suas origens e resistir à

assimilação ao povo que a escravizou, ora a vemos utilizando da igreja católica e de seus

preceitos como forma de defesa e segurança. Kehinde embrenha uma luta para conseguir

manter os princípios religiosos vindos de seus ancestrais em África e dessa forma resgatar sua

identidade e sua significação ao perpetuar a memória e ensinamentos religiosos.

Em todo o processo de transformação da protagonista há que se atentar para a

valorização da cultura africana que se dá através da rememoração constante da importância dos

ensinamentos passados pelos mais velhos. É pelo uso da memória que Kehinde se força a

lembrar de suas origens e da necessidade de perpetuar e transmitir sua identidade através da

religião retomando, assim o laço familiar:

[...]enquanto eu refletia se estava mesmo fazendo a coisa certa, se ele teria

uma cerimônia como aquela se minha avó estivesse viva. Mas, no caso, era

aquela ou nenhuma, e de certa forma eu já estava bastante familiarizada com

a religião dos orixás, além de querer dar ao meu filho mais alguns laços de

parentesco, pois éramos os únicos no mundo ligados pelo sangue. Entre os

iorubás, uma cerimônia de nome também significa que a criança está sendo

apresentada aos orixás e os amigos, que a partir de então, formam uma grande

família. (GONÇALVES, 2012, p.204).

Kehinde tenta de toda forma manter a memória de sua família, de preservar e vivificar

seus ancestrais, esse entrelace entre a cultura, a família perdida se dá através de um elo trançado

pela religião, em meio a tantos traumas as memórias se mesclam ao esquecimento “ Quando

eu ficava muito triste, eu começava a cantar coisas que nem sabia que me lembrava, as canções

que a minha avó tinha cantado para o Kokumo e para a minha mãe, antes de sairmos de Savalu.

(GONÇALVES, 2012, p.624)

Os momentos de ligação com a avó e a irmã gêmea, ambas mortas antes mesmo de

chegarem ao Brasil, se dá enquanto Kehinde dorme e sonha com a avó e a irmã que mandam

mensagem. Essas mensagens podem expressar reprovação sobre algo da vida de Kehinde ou

indicam acontecimentos futuros e, além disso, lembram de oferendas ou a necessidade de se

praticar a religião da família africana, que aqui funciona como uma maneira de prolongamento

de identidade e origem.

Mesmo quando Kehinde não tinha alforria, usava de todos os meios que podia para

cumprir os ritos necessários à religião essa preocupação fez com que ela tivesse atenção

redobrada para o tratamento dos filhos de acordo com a religião participando de cerimônias de

iniciações e de oferendas;

Isso fez com que eu não conseguisse prestar muita atenção às palavras do

Ifasen, que falava da bênção que um filho representa para a mãe e para toda

a família, porque ele herda e perpetua a história e a memória.

(GONÇALVES, 2012, p.207 ).

Muito embora as raízes de Kehinde sejam estreitamente definidas e inicialmente há uma

recusa em participar de batismo quando chega ao Brasil, ela consegue escapar da nomeação

que era dada aos escravos assim que embarcavam e acaba escolhendo posteriormente o nome

Luísa para se dizer assimilada. Mesmo com forte desejo de perpetuar a religião de sua família

em África, Kehinde não deixa de perceber as mudanças a sua volta e quando já adulta depois

de ter filhos, volta à África e é vista pelos nativos como brasileira e não mais africana pois

absorvera hábitos e costumes que ela considera mais refinados do que o dos africanos, em

África Kehinde se depara com uma realidade de extrema pobreza e violência, vendo que muitos

africanos gostariam de ir para o Brasil pois consideravam a vida de escravo melhor do que a

deles tomando por base o estado que voltavam os africanos escravizados vindos do Brasil. É

neste meio que Kehinde consegue novamente observar as pessoas, as demandas do lugar, faz

amizades importantes propositalmente e enriquece muito.

Considerações finais

Kehinde é uma personagem que consegue se adaptar ao seu tempo, seja ele qual for.

Seu extinto de sobrevivência fez-se mais forte do que sua dor. Ela percebe desde quando

desembarca no Brasil e é exposta à venda no mercado de escravos que teria que se mover para

não morrer, e é esse movimento constante dentro do romance que a leva a mudar de cidade, de

produto de venda, que a faz se ariscar dizendo vender biscoitos em nome de uma sinhá que não

existia tudo isso para permanecer viva. Seus elos com a vida dos antepassados são feitos pelas

lembranças das memórias dos que já se foram, mas se fazem sempre constantes. A personagem

ter um percurso distinto e embora não tenha encontrado o filho, ela termina como sendo uma

mulher de negócios das mais ricas e bem sucedidas. Kehinde abre espaço para um novo tipo

de personagem, a da mulher negra que consolida o poder, que se desfaz das amarras e consegue

ser sua própria dona. Todo esse processo não se concluiu de forma fácil e banal, e nem poderia

ser, mas há de se atentar para o desnudamento de forças, de saberes e de uma nova regulação

de valores trazidos por este romance por uma perspectiva que revisita os fatos históricos.

Referências

BERND, Zilá. Em busca dos rastros perdidos da memória ancestral: um estudo de Um

defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. Estudos de literatura brasileira contemporânea, n.40,

p.29-42, 2012.

GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Record, 2012.

MARTINS, Ricardo André Ferreira(org.). Ensaios (In) Conjuntos. Jundiaí: Paco Editorial,

2013.

MÈRIAN, Jean-Yves. Memoire, histoire et mythes afro brasilieasn dans “ Um defeito de cor”

de Ana Maria Gonçalves. In: Atas do V Congresso Europeu CEISAR de Latino-

americanistas, Bruxelas, 2007.

REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil - A história do levante dos Malês em 1835.

São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, memória, literatura: o testemunho na era das

catástrofes. Campinas: Unicamp, 2003.