um projeto urbano com programa político municipal

81
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO ESCOLA POLITÉCNICA CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM ENGENHARIA URBANA MICHEL HOOG CHAUI DO VALE UM PROJETO URBANO COM PROGRAMA POLÍTICO MUNICIPAL: A Experiência do Arquiteto João Filgueiras Lima em Salvador na 1ª. Gestão Mário Kertész (1979-1981) Rio de Janeiro 2009

Upload: ngodien

Post on 07-Jan-2017

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: um projeto urbano com programa político municipal

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

ESCOLA POLITÉCNICA

CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM ENGENHARIA URBANA

MICHEL HOOG CHAUI DO VALE

UM PROJETO URBANO COM PROGRAMA POLÍTICO MUNICIPAL: A Experiência do Arquiteto João Filgueiras Lima em Salvador na

1ª. Gestão Mário Kertész (1979-1981)

Rio de Janeiro 2009

Page 2: um projeto urbano com programa político municipal

MICHEL HOOG CHAUI DO VALE

UM PROJETO URBANO COM PROGRAMA POLÍTICO MUNICIPAL: A Experiência do Arquiteto João Filgueiras Lima em Salvador na

1ª. Gestão Mário Kertész (1979-1981)

Trabalho de Conclusão apresentado ao CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM ENGENHARIA URBANA, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Especialista em Engenharia Urbana.

Orientador: Peter José Schweizer

Rio de Janeiro 2009

Page 3: um projeto urbano com programa político municipal

Ficha Catalográfica

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escola Politécnica. Curso de Especialização em Engenharia Urbana

Um projeto urbano com programa político municipal: a experiência do

arquiteto João Filgueiras Lima em Salvador na 1ª. gestão Mário Kertész (1979-1981) / Michel Hoog Chaui do Vale – Rio de Janeiro, 2009

79 páginas. Trabalho de Conclusão – 2009

1. Projetos urbanos 2. Programa político municipal 3. João Filgueiras Lima,

Lelé I. Título

Page 4: um projeto urbano com programa político municipal

MICHEL HOOG CHAUI DO VALE

UM PROJETO URBANO COM PROGRAMA POLÍTICO MUNICIPAL: a experiência do arquiteto João Filgueiras Lima em Salvador na 1ª. gestão Mário Kertész (1979-1981)

Rio de Janeiro, 02 de julho de 2009.

___________________________________ Peter José Schweizer, D. Sc., UFRJ

___________________________________ Rosane Martins Alves, D. Sc., UFRJ

Page 5: um projeto urbano com programa político municipal

A Pedro e Clarice, Arthur e Ana Julia,

Gabriel, Afonso;

por um futuro mais equânime para todos.

À minha terra natal, Salvador, Cidade da Bahia.

Page 6: um projeto urbano com programa político municipal

AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Prof. Dr. Peter José Schweizer, cujo envolvimento e intimidade com os temas do planejamento me estimularam a propor esse estudo de caso.

À Prof. Dra. Rosane Martins Alves, pelo cuidado e dedicação na condução cotidiana do Curso de Engenharia Urbana. Aos demais professores: Ângela Maria Gabriella Rossi e Fernando Rodrigues Lima, pela empenho na criação e coordenação do curso.

À Biblioteca da FAU USP, pelo acesso ao material bibliográfico de forma flexível e compreensiva.

Aos funcionários da Fundação Gregório de Matos, do Arquivo Municipal de Salvador pela atenção e gentileza no acesso ao material bibliográfico; aos funcionários da RENURB, pela disposição e receptividade.

Ao Prof. Dr. Paulo Fábio Dantas Neto, pelo material bibliográfico disponibilizado.

Aos colegas, profissionais da área, pelo estímulo constante no debate dos temas caros a esse trabalho, em especial à amiga Camila Gui Rosatti, por expressar as questões pertinentes de maneira tão vigorosa e apaixonada; e Fernanda Gibertoni Carneiro, pelo cuidado exemplar na condução do serviço público e dos princípios de seu desenvolvimento.

À Diana Souza, pela carinho e disponibilidade em todos os momentos de apoio à pesquisa em Salvador.

À Lara Melo Souza, pela atenção e esmero na finalização da edição do trabalho.

Aos colegas da turma, especialmente Vanessa Rocha Siqueira, por tudo – pela amizade e companheirismo na perseverança para levar adiante o curso no Rio de Janeiro.

A Roberto Pinho, pela disponibilidade e abertura para clarear questões centrais da pesquisa.

A Lelé, pela atenção e generosidade com que me recebeu em Salvador e por sua dedicação e postura exemplares.

À Cynthia Regina L. Neves, pela continuidade no suporte e no fortalecimento dos propósitos de minha alma.

Aos meus amigos e minha família, especialmente meus pais, Julia e Remark, pelo apoio, presença, estímulo e amor irrestritos.

Page 7: um projeto urbano com programa político municipal

RESUMO

VALE, Michel Hoog Chaui do. Um projeto urbano com programa político municipal: a experiência do arquiteto João Filgueiras Lima em Salvador na 1ª. gestão Mário Kertész (1979-1981). Rio de Janeiro, 2009. Monografia (Especialização em Engenharia Urbana) - Escola Politécnica, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

Estudo de uma gestão municipal em Salvador (1979-81), no período que precede a democratização e traz em seu bojo a experiência de integrar de forma direta os projetos urbanos a partir de um programa político bem definido. É identificado um conjunto de antecedentes modernizantes na cidade que contribuem para a implantação do programa coordenado pelo antropólogo Roberto Pinho e pelo arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé. Diferenciação do programa implantado em relação a outras políticas pelo reconhecimento das demandas populares e utilização sistêmica da tecnologia desenvolvida por Lelé de pré-fabricação em concreto armado e argamassa armada nas diversas intervenções programadas e realizadas. Análise da conjuntura que possibilitou a experiência, dos princípios de planejamento e da definição do programa político com vistas ao alargamento das práticas de intervenção urbanas socialmente embasadas, com respaldo técnico e político.

Page 8: um projeto urbano com programa político municipal

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 01 Centro Administrativo da Bahia. Fonte: KERTÉSZ, 1974. p. 23

Figura 02 Obras de construção do Centro Administrativo da Bahia. Fonte: KERTÉSZ, 1974.

p. 26

Figura 03 Ordem de conclusão das diversas unidades. Fonte: KERTÉSZ, 1974. p. 28

Figura 04 Edifício do Centro Administrativo da Bahia. Michel VALE, 2001. p. 29

Figura 05 Edifício do Centro Administrativo da Bahia. Michel VALE, 2001. p. 30

Figura 06 Edifício do Centro Administrativo da Bahia. Michel VALE, 2001. p. 33

Figura 07 Canais de drenagem. Fonte: SALVADOR, 1981. p. 50

Figura 08 Escadarias e muros drenantes. Fonte: SALVADOR, 1981 p. 50

Figura 09 Muros de arrimo. Fonte: SALVADOR, 1981 p. 51

Figura 10 Muros de arrimo – esquema de execução. Fonte: SALVADOR, 1981. p. 54

Figura 11 Rampas e escadarias drenantes – vias de pedestre. Fonte: SALVADOR, 1981.

p. 54

Figura 12 Canais retangulares de argamassa armada. Fonte: SALVADOR, 1981. p. 54

Figura 13 Maquete da Estação da Lapa. Fonte: SALVADOR, 1981 p. 56

Figura 14 Corredor Aquidabá - Sete Portas. Fonte: SALVADOR, 1981 p. 58

Figura 15 Estação de transbordo da rodoviária. Fonte: CONDER/PMS (arquivo), 1981.

p. 58

Figura 16 Corredor França – Mares, etapa IIIA: Terminal de Bairro. Fonte: CONDER/PMS (arquivo), 1981.

p. 58

Figura 17 Renurb - linha de materiais pré-moldados. SALVADOR, 1981. p. 58

Figura 18 Estacionamento de Água de Meninos. SALVADOR, 1981. p. 59

Figura 19 Bacias hidráulicas de Salvador. Plano de identificação das bacias prioritárias para receber investimentos de saneamento. Salvador, 1980.

p. 60

Figura 20 Projeto Vale do Camurujipe.PMS (folheto), 1983. p. 60

Figura 21 Peças pré-moldadas – galerias drenantes. SALVADOR, 1981. p. 61

Figura 22 Transporte manual – peso máximo 45kg. SALVADOR, 1981. p. 61

Figura 23 Via de pedestres – trecho em construção. SALVADOR, 1981. p. 61

Figura 24 Via de pedestres – utilização pela comunidade. SALVADOR, 1981. p. 61

Figura 25 Canais retangulares. SALVADOR, 1981. p. 62

Page 9: um projeto urbano com programa político municipal

Figura 26 Canais retangulares. SALVADOR, 1981. p. 62

Figura 27 Montagem na obra – encaixe das peças. SALVADOR, 1981. p. 62

Figura 28 Tranporte manual – peso máximo 90kg. SALVADOR, 1981. p. 62

Figura 29 Viga de coroamento – concreto moldado no local. SALVADOR, 1981. p. 62

Figura 30 Abrigos. SALVADOR, 1981. p. 63

Figura 31 Abrigos. SALVADOR, 1981. p. 63

Figura 32 Cabine telefônica e posto policial. SALVADOR, 1981 p. 63

Figura 33 Bancos para praça. SALVADOR, 1981. p. 63

Figura 34 Jardineiras. SALVADOR, 1981. p. 63

Figura 35 Ao centro, Kertész (E) e Lelé, apresentando maquete da Central de Delegacias. SALVADOR, 1981

p. 64

Page 10: um projeto urbano com programa político municipal

LISTA DE ABREVIATURAS

ACM Antônio Carlos Magalhães

BID Banco Interamericano de Desenvolvimento

BNDE Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico

BNH Banco Nacional de Habitação

CAB Centro Administrativo da Bahia

CDS Coordenação de Desenvolvimento Social

CIA Centro Industrial de Aratu

CONDER Conselho de Desenvolvimento do Recôncavo/ Companhia de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Salvador

EBTU Empresa Brasileira de Transportes Urbanos

EPUCS Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador

EUST Estudo do Uso do Solo e Transporte

FMDU Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano

GEIPOT Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes

IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

OCEPLAN Orgão Central de Planejamento

PDDI Planos Diretores de Desenvolvimento Integrado

PDTU Plano Diretor de Transportes Urbanos

PLANDURB Plano de Desenvolvimento Urbano de Salvador

PMS Prefeitura Municipal de Salvador

PND Plano Nacional de desenvolvimento

RENURB Companhia de Renovação Urbana de Salvador

RMS Região Metropolitana de Salvador

TRANSCOL Plano de Melhorias do Transporte Coletivo

TRANSUR Companhia de Transportes Urbanos de Salvador

TRENSURB Estudo de Trens Urbanos

UITP União Internacional de Transportes Públicos

UnB Universidade de Brasília

USP Universidade de São Paulo

Page 11: um projeto urbano com programa político municipal

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 10

INTRODUÇÃO 14

1 ANTECEDENTES 16

1.1 Contexto e quadro precedente à experiência de Kertész/ Pinho/ Lelé 16

1.1.1 Um parêntesis histórico sobre a modernização da cidade 19

1.1.2 A identificação de um padrão de intervenção 21

1.1.3 A figura política concentradora 24

1.2 Ambiente técnico e político convergente 25

1.3 Desenvolvimento técnico-metodológico em Lelé 28

2 A EXPERIÊNCIA DA 1a. GESTÃO – projeto no papel, canteiro na fábrica e obras na cidade

33

2.1 Preexistência de projetos para a cidade 34

2.2 Programa de Governo e a constituição de um ‘núcleo estratégico’ na Administração

37

2.2.1 O ‘núcleo estratégico’ da Administração 40

2.3 O papel da circulação nos projetos 44

2.4 Projeto e produção: a RENURB 47

2.4.1 A Usina, o papel da tecnologia e seu princípio sistêmico 52

3 ANÁLISE GERAL E RESULTADOS: BALANÇO DA GESTÃO 56

3.1 Os projetos e as obras 56

3.2 O espaço da Administração e o ambiente político e social 64

3.3 Análises da negociação e implementação da política urbana 68

CONCLUSÕES 73

Esboço de uma organização metodológico-administrativa e projetual na gestão municipal

74

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 78

Page 12: um projeto urbano com programa político municipal

10

APRESENTAÇÃO

O presente trabalho se propõe realizar uma análise da integração entre

projeto urbano e programa político, entendidos nesses termos como,

respectivamente, a intenção de intervenção na cidade de maneira ordenada e

sistêmica, em que concorrem técnica e estética no desenvolvimento de espaços e

equipamentos públicos e de infraestrutura que qualifiquem a cidade para os seus

habitantes em um determinado horizonte de tempo; e o conjunto de diretrizes

administrativas que combinem proposição, negociação e implantação de um

conjunto de diretrizes através de programas e projetos específicos respaldados pela

comunidade, devidamente representada pelo governo local, protagonista de suas

decisões e fiscal de sua implementação.

Devido à amplitude que esses conceitos possam chegar a ter e à diversidade

de cenários possíveis para sua articulação, reconheceu-se a necessidade de se

estabelecer um caso específico para esse estudo, a fim de que se localizasse no

tempo e no espaço o conjunto de questões que essa articulação envolve e para que

se tornasse mais clara a identificação dos elementos que afetam essa relação, a

destacar: a tecnologia e a técnica; a política; a cultura; e a conjuntura histórica, que

possibilita a integração desses vários elementos.

Essas indagações surgiram a partir de um programa de estudo de Engenharia

Urbana, onde a combinação de diversas disciplinas de intervenção urbana –

infraestrutura (drenagem, transportes, habitação social, etc.) e gestão - está sempre

subordinada à decisão pela adoção desses parâmetros técnicos para a implantação

de um programa urbano; ou seja, a qualidade técnica dos projetos urbanos não

escapa ao ambiente político que negocia e decide pela sua implementação, o que,

Page 13: um projeto urbano com programa político municipal

11

por isso, torna o programa urbano diretamente dependente da qualidade do

ambiente político em que se realiza. A efetividade ensejada pelos projetos está

vinculada às circunstâncias políticas que concorrem em variados graus pela sua

execução. A crise gerada ao longo desse estudo, por conta da constatação contínua

dos entraves à implementação de bons programas de política pública urbana se

apoiavam principalmente nesse tópico: a freqüente divergência entre as opções

técnicas vislumbradas e as decisões políticas vigentes – sem, no entanto,

desconsiderar o cenário brasileiro onde na maioria das cidades inexiste estrutura

administrativa que contemple quadros técnicos mínimos para as demandas urbanas,

além da falta crônica de projetos e de uma cultura de planejamento que

retroalimente a administração pública.

Faz-se aqui um parêntesis para contextualizar o sentido da expressão

“opções técnicas”, onde aglutinamos diretrizes técnicas essencialmente combinadas

a paradigmas recentes de sustentabilidade social e ambiental, focadas no

atendimento das expectativas das pessoas1. Diferentemente das imposições

mercadológicas, essas opções buscam ao máximo a universalização do

atendimento das expectativas básicas humanas, distinta da exclusão competitiva,

injusta e insustentável de opções setorizadas em poucas classes ou pequenos

grupos sociais. Note-se ainda que esse conceito não exclui a definição do técnico

enquanto sujeito político e imbuído de viés ideológico, por não se tratá-lo como

agente autômato e descomprometido da sua realidade. Antes, explicita-se sua

condição política para que, tanto quanto os demais elementos das políticas

produzidas e das propostas elaboradas, seja ele também objeto de debate e análise

enquadrada no seu contexto.

1 A partir de Peter SCHWEIZER, “Uma nova arquitetura das organizações para o século XXI”, cópia digital, s/d.

Page 14: um projeto urbano com programa político municipal

12

Dentro desse quadro de questões e premissas, pode-se estabelecer o tema

específico desse trabalho: o esboço de uma política urbana a partir da experiência

do Arquiteto João Filgueiras Lima, Lelé, em Salvador, na 1ª. gestão do Prefeito

Mário de Melo Kertész (1979-81). A opção por este caso baseia-se, entre outros

aspectos a serem tratados ao longo do estudo, no avanço da pesquisa técnológica

que transpassa os projetos desenvolvidos pelo escritório público coordenado pelo

arquiteto e no entendimento do entrelaçamento de técnica com visão sistêmica no

trato com o espaço urbano, conforme também será demonstrado adiante. De pano

de fundo para esses dois fundamentos que sustentaram essa experiência está o

respaldo ideológico, pelo embasamento intelectual que posiciona o conjunto de

intervenções propostas no entendimento específico do papel da cultura de forma

abrangente e enquanto função integradora do sentido cotidiano e da elaboração

histórica da sociedade. Ou seja, uma leitura das proposições para a cidade a partir

de sua(s) cultura(s) e da combinação dos sentidos que sua consolidação no tempo e

desdobramento nas práticas cotidianas assumem para a construção do ambiente

contemporâneo urbano.

Nesse contexto, o foco do trabalho dar-se-á principalmente na 1ª. gestão,

tanto pelo caráter inovador dessa experiência, quanto pela tentativa de

implementação de um programa fruto de um planejamento prévio e do

desenvolvimento do seu projeto naquele momento, que caracterizaria uma ampla

intervenção na cidade, alinhada com o pensamento que a orientava.

Buscar-se-á analisar a concepção e implementação do programa, o arranjo

político que viabilizou dentro dos limites sua elaboração e o levantamento de

hipóteses para seu sucesso parcial e inconclusão das propostas iniciadas. A partir

daí deverão ser indicados alguns elementos básicos que orientem a coadunação de

Page 15: um projeto urbano com programa político municipal

13

projetos urbanos com programas políticos, cuja urgência se faz ainda maior com a

crescente urbanização do país, o estabelecimento de novos marcos legais para a

intervenção na cidade, o reconhecimento de novos limites ambientais e a

consagração da função social da cidade.

Page 16: um projeto urbano com programa político municipal

14

INTRODUÇÃO

O estudo inicia-se com a identificação do contexto que precedeu a gestão em

questão – principalmente do padrão de desenvolvimento da cidade e de sua

modernização – e ainda o começo da carreira de Mário Kertész, quando se viabiliza

a primeira intervenção do arquiteto João Filgueiras Lima – o Lelé – na Bahia. Essa

experiência inicial traz no seu bojo alguns elementos que são desenvolvidos ao

longo de toda a carreira de Lelé, incluindo aí suas experiências posteriores no setor

público em Salvador.

Em seguida é tratada a administração de Kertész à frente da Prefeitura

Municipal de Salvador (PMS), através do contexto favorável para o desenvolvimento

de peças de planejamento e da configuração de um núcleo articulado de gestão e

integração das políticas públicas. São expostas as estratégias do governo, suas

diretrizes, os objetivos, planos e projetos, coordenados sob uma ótica muito

específica de entendimento da cidade enquanto artefato cultural e da priorização dos

investimentos nas demandas reprimidas de infraestrutura e integração espacial.

Destaca-se o papel central da tecnologia construtiva na coordenação de toda a

política urbana e, por fim, faz-se um levantamento sintético dos projetos realizados,

do seu sentido específico e sua articulação com o todo – e se busca analisar

sucintamente o quadro social e político que levou àquela experiência.

A conclusão se faz a partir de um resumo dessa experiência cotejado com

algumas orientações gerais de implementação de processos de planejamento. Esse

rebatimento metodológico é feito com o intuito de explicitar a coerência e as

inovações apontadas por aquela gestão municipal, onde, dentro dos limites daquele

contexto, se equilibram as três plataformas principais da administração municipal: a

Page 17: um projeto urbano com programa político municipal

15

negociação política, o embasamento teórico e o desenvolvimento projetual.

Evidencia-se a capacidade de síntese desses preceitos pela aplicação prática da

pesquisa em arquitetura e urbanismo, balizada por uma construção teórico-crítica da

cidade e da sociedade, para a qual coube à articulação política viabilizar sua

pactuação e implantação.

Page 18: um projeto urbano com programa político municipal

16

1 ANTECEDENTES

Convém analisar o quadro precedente da 1a. gestão de Mário Kertész para o

entendimento das políticas desenvolvidas. Tal cenário concentra dois grupos de

experiências: a experiência inicial da parceria de Kertész e do arquiteto João

Filgueiras Lima, o Lelé, na construção do Centro Administrativo da Bahia (CAB),

quando foram utilizadas algumas propostas de implantação e edificação

embrionárias da tecnologia pesquisada por Lelé; e o desenvolvimento do

pensamento tecnológico e intelectual do grupo encabeçado pelo arquiteto e pelo

antropólogo Roberto Pinho. Em essência, esses dois tópicos fazem parte de uma

mesma linha histórica de relações, que abrange os pontos de contato entre aqueles

agentes que conceberiam os princípios teóricos, tecnológicos e políticos do sistema

de intervenções planejadas para a cidade de Salvador no período estudado e o

arranjo político-administrativo, configurado em uma conjuntura sóciopolítica da

capital baiana que permitiu essa situação.

1.1 Contexto e quadro precedente à experiência de Kertész/Pinho/Lelé

Primeiramente, o quadro da 1a. gestão arranja-se a partir da prefiguração do

prefeito indicado, Mário Kertész, no quadro político da época. Mário iniciara sua

carreira política muito jovem, aos 26 anos, como Secretário de Planejamento da 1ª.

Page 19: um projeto urbano com programa político municipal

17

gestão do Governador Antônio Carlos Magalhães2, quando esteve sob sua

responsabilidade a implantação do CAB3. Tomou posse como prefeito em 1979,

(...) quando era um quadro em ascensão na tecnocracia carlista. Afinando, como o próprio ACM, um discurso populista com a atmosfera política, já de transição democrática, Kertész asumiu uma atitude ofensiva e audaciosa (…). Sob o slogan deixe o coração mandar, procurou uma comunicação direta com o povo, sem fazer defesa do regime militar, embora enaltecendo sempre a figura do seu delegado a nível estadual.4

Em termos administrativos, privilegiou no seu governo o fazer, a execução de

obras, antes de uma continuidade no processo ordenador da gestão anterior (Jorge

Hage), que buscava modernizar a gestão e fazer a prefeitura assumir o papel de

planejar e controlar o desenvolvimento urbano e a acumulação imobiliária5. Nesse

sentido, sua gestão apoiou-se na existência de planos elaborados em nível federal –

que à época concentrava os projetos de planejamento e desenvolvimento urbano, a

exemplo das diretrizes dadas pelo II PND e do financiamento sistemático da

elaboração dos Planos Diretores de Desenvolvimento Integrado (PDDIs) país afora.

O discurso desenvolvimentista baseado no planejamento, concentrado pelo

governo federal, foi uma das marcas do período da ditadura militar, mas dava

prosseguimento ao aspecto modernizador da linha política vigente no país desde

pelo menos meados dos anos 1950. A matriz da modernização se dava pelo

processo de urbanização, alavancada pela estruturação da indústria no país e

especificamente em território baiano:

Aquém ou além do mito, a modernização soteropolitana processa-se desde os anos 50 e foi marcada por circunstâncias derivadas do golpe militar de 1964. Urbanização sem indústria e via migrações, desde os anos 40; industrialização transplantada, desde a chegada da Petrobrás à região, nos anos 50; estruturação técnica e planificação da administração estadual, a partir do governo Balbino (1955-59) e um ensaio de autonomização política da

2 Que conduzia a montagem de sua equipe de governo ressaltando critérios de competência técnica a la Médici..., cf. Paulo Fábio DANTAS NETO, “Autonomia política, governabilidade e governança em Salvador. Gênese da modernidade soteropolitana: realidade e mito de uma hegemonia”, in: Anete IVO, O Poder da Cidade: limites da governança urbana. Salvador, EDUFBA, 1999, p. 15. 3 M. Kertész ainda acompanharia ACM quando este exerceu o cargo federal de presidente da Eletrobrás, no intervalo em que ACM esteve afastado do poder estadual, anterior à sua indicação para prefeito. Idem, p. 20. 4 Ibidem, p.20. 5 Ibidem, p. 21.

Page 20: um projeto urbano com programa político municipal

18

capital, com a eleição e gestão de Hélio Machado (1954-59) foram eixos fundadores dessa modernização.6

As ideias desenvolvidas a partir das diretrizes centrais de planejamento

urbano compunham-se, portanto, com as ideias de modernização já elaboradas

anteriormente, desdobradas desde os ideais pregressos de higienização e

ordenamento e adiante, pela combinação de crescimento urbano, populacional e

desenvolvimento técnico que caracterizaria o século XX desde seu princípio, no que

tange a infraestrutura urbana. Para tanto, basta verificar que o grande símbolo da

modernidade urbana da capital baiana coincide com a implantação de um sistema

viário baseado em vias expressas construídas em vales saneados, cuja execução foi

iniciada por ACM quando governador (junto com Clériston Andrade, prefeito indicado

pelo próprio ACM), mas remonta a projeto preexistente, da década de 19407 (dentro

de um pacote de obras modernas que inclui ainda uma escola-parque, o Teatro

Castro Alves, o Hotel da Bahia, penitenciária, remoção de favelas e criação de

parques) e faz parte do desdobramento do crescimento da cidade e da costura de

sua articulação intra-urbana, insinuado desde meados do século XIX, principalmente

entre 1870 e 19008.

6 Anete IVO, op. cit., p. 13. 7 O projeto, desenvolvido pelo Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador – EPUCS, apresentava propostas para a solução de problemas em diversas áreas. Tinha a sua coordenação realizada pelo Engenheiro-geógrafo Mario Leal Ferreira, seguido pelo Arquiteto Diógenes Rebouças, e corpo técnico multidisciplinar, no período de 1943-49. Cf. “Mário Leal Ferreira: Um pioneiro do planejamento”, Revista Bahia Invest, versão digital do sitio eletrônico http://seplan.ba.gov.br/bahiainvest/port/perfil.php?find=versao002, visitado em 21-04-2009, 01h35. 8 Cf. periodização e investigação histórica de Consuelo Novais SAMPAIO, 50 anos de urbanização: Salvador da Bahia no século XIX, Rio de Janeiro, Versal, 2005 – donde “chega a ser surpreendente o esforço feito pelo Governo, em aliança com o empresariado, para deslanchar o processo de urbanização que se desenvolveu nessa segunda metade do século [XIX] - exigência da expansão do capitalismo comercial, da nova fase de industrialização que se inaugurava na Inglaterra e do próprio crescimento populacional da Província (…)”, p. 20.

Page 21: um projeto urbano com programa político municipal

19

1.1.1 Um parêntesis histórico sobre a modernização da cidade

O reconhecimento da gênese do planejamento ou mesmo a reconstituição do

processo histórico que levou a cidade a esboçar suas feições atuais remetem

principalmente ao papel político da capital no contexto mais amplo de sua integração

no cenário da Colônia e do Império e, posteriormente, da República. Esse

entendimento contextualizado não será aprofundado, mas percebido como central,

entre outros, das funções que a cidade assume ao longo de sua história. A

sobreposição e alternância das atividades administrativas e comerciais, refletidas na

ocupação simultânea dos seus dois principais pólos de expansão – a cidade alta e a

cidade baixa – expressam o processo de ascensão e decadência da capital baiana.

A informação desse processo é crucial para o entendimento do programa de

intervenção recente na cidade, principalmente naquele contemplado nos projetos

aqui estudados, dada a relação intrínseca estabelecida entre a cidade

contemporânea e a cidade histórica, através dos projetos propostos.

De fato, as alterações funcionais da cidade, a abertura dos portos com a

vinda da família real em 1808 e o desenvolvimento agrícola e comercial de Salvador

e seu Recôncavo, costuram-se conjuntamente através do crescimento da cidade e

da realização de obras públicas não apenas de traçado urbano, mas também de

infraestrutura, educação, cultura e paisagismo. Sob esse aspecto, destacam-se três

ciclos administrativos no século XIX: o governo do Conde dos Arcos (1811-1818) –

quando se faz o aterro da região do Comércio na Cidade Baixa e se propõe pela

primeira vez a mudança do Centro Administrativo da cidade, da Praça Tomé de

Souza para Itapagipe; o governo de Francisco Soares de Andrea (1844-1846) – com

grandes obras de urbanização em Itapagipe, contenção de encostas no Centro e

Page 22: um projeto urbano com programa político municipal

20

construção de ladeiras entre a Cidade Alta e a Cidade Baixa; e os governos de

Gonçalves Martins (1848-1852 e 1868-1871) – com abertura de vias na Cidade

Baixa, melhoramentos na Cidade Alta, a primeira avenida de vale, chamada Rua da

Vala (atual Baixa dos Sapateiros) entre outros melhoramentos. Nessa época foram

introduzidas também as primeiras linhas de bonde puxados a burro9.

Os preâmbulos do crescimento da cidade no século XIX e a enunciação de

obras de maior envergadura nesses três momentos atingem um ápice na

intervenção urbana do início do século XX nos governos de J.J. Seabra (1912-1916

e 1920-1924). É aí que se realizam obras pautadas principalmente em saneamento,

abastecimento e circulação viária que configuram um entendimento modernizador da

cidade para o século XX. É também o impacto dessas intervenções no tecido

histórico da cidade que vai recolocar os limites do desenvolvimento urbano para

além da paisagem consolidada do Centro da década de 1940 em diante. Isso porque

é nesse momento em que a afirmação do desenvolvimento urbano baseado na

abertura de espaços de circulação sobre o conjunto construído implica na demolição

de um grande conjunto de imóveis históricos, a destacar Catedral da Sé para a

abertura do Terminal de bondes no Centro, dentre diversos outros exemplos10. A

complexidade desse tipo de intervenção, com resistências variáveis, mas não nulas

na sociedade da época, dirige o crescimento da cidade na direção norte. É ainda

pelo sentido de incapacidade de o espaço urbano existente abrigar o funcionamento

da cidade moderna – mais do que isso, da região metropolitana em gestação –, com

suas demandas e escalas/intensidade de uso, a decadência das construções e a

substituição da população mais abastada por outra mais pobre nos bairros mais

9 Cf. Sylvia Maria Sant'Anna LUZ, Evolução Urbana da Cidade de Salvador, trabalho de graduação interdisciplinar, São Paulo, FAU USP, 1976, pp. 2-9. 10 Cf. Fernando da Rocha PERES, Memória da Sé, Rio de Janeiro, Ed. Macunaíma, 1974.

Page 23: um projeto urbano com programa político municipal

21

antigos que se busca deslocar a concentração das atividades urbanas, a

administração, os serviços e a avolumada demanda por habitação na direção de

áreas ainda não ocupadas ou de ocupação rarefeita, tanto no litoral quanto no miolo

da cidade, na porção centro-norte.

1.1.2 A identificação de um padrão de intervenção

Pode-se identificar, portanto, uma repetição da temática da modernização do

espaço urbano nos diversos níveis de poder e instâncias de planejamento –

municipal, estadual e federal – coerentemente alinhadas com as demandas do

capital, dos interesses de investimento e abertura para fluxo de mercadorias e

investimentos de economias centrais e de oligarquias locais, engajadas nesse

conjunto de interesses. Vale notar o papel central das atividades econômicas

estabelecidas em Salvador e como as suas transformações baseiam-se nessas

atividades. Isso porque o pequeno lastro industrial parece influir menos na

configuração espacial da cidade, em vista da incipiente industrialização do século

XIX, concentrada principalmente em Itapagipe, mas é tanto maior quando da

implantação, em meados do século XX, das industrias no Centro Industrial de Aratu

(CIA) e Pólo Petroquímico de Camaçari, já fora da cidade – mas dentro da nova

região constelar da cidade de Salvador: sua região metropolitana, definida em

meados dos anos 1970. Ou ainda, como a cidade se organiza no espaço intra-

urbano em função das atividades de comércio e serviços, além da habitação e

articula-se em relações de produção que extrapolam seu limite político-

administrativo em função das atividades industriais externas ao município – mas que

Page 24: um projeto urbano com programa político municipal

22

definem os limites metropolitanos dos quais é sede e orientam seu crescimento e

modernização a partir desse patamar de escala regional.

Desponta nesse processo o papel da intervenção urbana na adequação dos

espaços da cidade às suas funções administrativas e econômicas, e mais ainda da

primeira em função da segunda, do sentido de qualificação dos espaços públicos –

mesmo quando há participação do capital privado – para o incremento da circulação

e da ocupação desses espaços, pela ampliação dos mercados, e entre eles, o

próprio mercado de terras – a construção da localização dessas propriedades. É a

repetição de um processo vivido de diversas maneiras e com diferentes

condicionantes em outras capitais brasileiras: a orientação do crescimento da cidade

muito em função da ampliação do mercado da propriedade fundiária (e da

habitação)11. Sutilmente, mas não despercebido, ocorre o processo de crescimento

conforme vemos, atrelado às demandas modernas da cidade e à própria construção

do mercado de localização da propriedade urbana no século XX.

No caso, na segunda metade da década de 1960 e nos anos seguintes o

governo da Bahia voltou-se para o desenvolvimento de uma região por urbanizar: o

eixo Iguatemi-CAB, através de grandes investimentos. A ideia de modernização e

expansão urbana estava atrelada à criação de uma nova centralidade, um pólo de

negócios, que, ser por um lado tinha a intenção de abrir novas frentes de

investimento e atuação do mercado imobiliário, por outro se colocava como

alternativa de descongestionamento do centro tradicional, porém com a contribuição

colateral de seu esvaziamento funcional e aceleração de sua deterioração12.

11 Cf. Flávio VILLAÇA, Espaço intra-urbano no Brasil, São Paulo, Nobel e Lincoln Institute, 1998. 12 Cf. Paulo ORMINDO (org.), “Análise de Salvador segundo los três ejes tematicos”, relatório para o IV Seminário SIRCHAL – Sitio Internacional sobre La Revitalizacion de Centros Historicos de Ciudades de America Latina e del Caribe, Salvador, 2000, versão digital do sitio eletrônico: http://www.archi.fr/SIRCHAL/seminair/sirchal4/DIAGeixo3.htm, visitado em 21-04-09, 01h39.

Page 25: um projeto urbano com programa político municipal

23

As transformações mais recentes da metrópole evidenciam a concentração de funções em espaços urbanos cada vez mais reduzidos, e mais em espaços alternativos ao da formação histórica de Salvador. Disso decorre a concentração de pressões sobre a dotação de infra-estrutura de serviços urbanos, concomitante ao envelhecimento técnico e habitacional da própria cidade, em relação com as funções que lhe são atribuídas e que deve cumprir.13

Figura 01: Centro Administrativo da Bahia. Fonte: KERTÉSZ, 1974.

A percepção do processo histórico permite ainda outra leitura, condizente com

o real abandono do centro histórico e com a concentração de grupos sociais

marginalizados no seu perímetro14. Nessa interpretação, a opção por uma nova

urbanização não traz em seu bojo a integração com a cidade antiga; pretende antes

afastar-se dela e recomeçar o processo de urbanização “do zero”, ao gosto de um

ideário modernista planificador e tecnicista, alinhado – apesar de variados graus de

13 BAHIA (ESTADO), Plano Metropolitano de Desenvolvimento – PMD 1982, Secretaria do Planejamento, Ciência e Tecnologia (SEPLANTEC) e Companhia de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Salvador (CONDER), Salvador, 1982, p. 277. 14 Cf. Mônica WIPFLI, Intervenções urbanas em centros históricos: Estudo de caso cidade do Salvador, São Paulo, FAU USP, dissertação de mestrado, 2002, p.32.

Page 26: um projeto urbano com programa político municipal

24

divergência e incoerência – com o regime vigente. Em sentido oposto se dará a

atuação da Prefeitura no período imediatamente posterior – fim da década de 1970 e

1980 – com o foco na reestruturação, restauração e articulação do centro histórico

com a cidade contemporânea – a cidade moderna e a cidade real, periférica e

precária – através da recuperação de algumas de suas funções tradicionais e da

acessibilidade.

Se por um lado, o que se pretendia, como afirma o próprio Kertész:

não é a construção de uma nova cidade mas, através da influência polarizadora do Centro Administrativo, orientar e disciplinar a expansão urbana em escala metropolitana (…), resguardando para o presente e o futuro, o riquíssimo acervo histórico e artístico da primeira Capital brasileira;15

por outro lado, o que se efetivou foi a desarticulação entre Salvador e o seu

Recôncavo, baseada em outras relações econômicas, pela configuração urbano-

espacial das novas relações em estabelecimento por uma região metropolitana

nascente. Nessa conjuntura, o centro da cidade perde importância e sobrevive de

maneira instável apenas enquanto capital simbólico daquelas relações econômicas

(e culturais) em apagamento. Oficialmente, contemplavam a importância do seu

simbolismo; na prática, abandonou-se o seu conjunto em nome de uma nova

articulação urbana (e metropolitana) que se forjava.

1.1.3 A figura política concentradora

Esboçado esse quadro, compreende-se a concentração do ideário político de

modernização no sucesso da pessoa do prefeito e posteriormente governador

Antônio Carlos Magalhães; ele vai encarnar na segunda metade do século XX o

papel do administrador público que dá prosseguimento à modernização da cidade e

15 Cf. Mario KERTÉSZ, Centro Administrativo da Bahia, Estado da Bahia, 2a. edição, 1974, p. 03.

Page 27: um projeto urbano com programa político municipal

25

da tentativa de incluí-la em um circuito econômico amplificado através das

intervenções realizadas. Mais ainda: tentará, à sua maneira, fazer voltar em alguma

medida o prestígio e a importância pretérita da cidade no cenário nacional, na

maneira como caracteriza o conjunto de suas obras e de como negocia a atração de

investimento federal, disputado no páreo acirrado com cidades de destaque do

Sudeste ou mesmo do Nordeste16.

Sua postura é caracterizada como truculenta e carismática17, porém seguida

de pessoas com perfis menos exacerbados, como o do seu assessor – e sucessor –

Mário Kertész, que o acompanhara desde sua assunção como governador pela

primeira vez, em 1971. Compreende-se o caráter tecnocrático – e o sentido de

competência - que assinala as opções de coadjuvação ao perfil concentrador e

personalista de ACM. Daí a importância da seleção de quadros com perfil executivo

nas secretarias, a fim de levarem a cabo os ambiciosos projetos que o governador

encabeçava. Dentre eles, e ao lado do principal projeto – o plano de avenidas de

vale em execução – estava a elaboração e construção do Centro Administrativo da

Bahia (1973).

1.2 Ambiente técnico e político convergente

O projeto do CAB da maneira como foi realizado estava condicionado a

algumas circunstâncias. A definição do partido adotado e a consecução da técnica

empregada remontam ao encontro entre o Secretário de Estado de Planejamento – 16 Vale citar a facilidade de trânsito de ACM no meio militar da época da ditadura, onde não só cativou uma posição de destaque no âmbito estadual, como também pôde a partir daí incursionar em disputas com cidades do Sudeste pela atração de investimentos como o do Pólo Petroquímico de Camaçari, cf. Antônio RISÉRIO, Uma história da Cidade da Bahia, Rio de Janeiro, Versal, 2004, pp. 538-554, passim. 17 Cf. Ângela Ma. de A. FRANCO, “Não só de referência cultural (sobre)vive o centro de Salvador”, Pelo Pelô: história, cultura e cidade, Salvador, Edufba, 1995, in: P. F. DANTAS NETO, op. cit., p. 13.  

Page 28: um projeto urbano com programa político municipal

26

o próprio Mário Kertész –, Roberto Pinho, articulador e idealizador de diversos

programas posteriores das gestões de Kertész e Lelé.

Figura 02: Obras de construção do Centro Administrativo da Bahia. Fonte: KERTÉSZ, 1974.

Essas relações baseiam-se tanto no acaso do encontro dessas

personalidades quanto no quadro mais geral de desenvolvimento intelectual e

político do país. Isso porque a conexão entre Kertész e Pinho vinha da infância de

ambos, quando Pinho fora colega do irmão mais velho de Mário, Eduardo Kertész,

então pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Pinho, por

sua vez, conhecera Lelé depois de sua ida para a UnB, em Brasília, onde

desenvolveu atividades de pesquisa em Antropologia e teve contato com alguns dos

principais realizadores da iniciativa de construir e implantar uma universidade na

nascente capital do Brasil. Desse encontro, surgiram parcerias duradouras entre

Roberto Pinho, que, enquanto antropólogo, conceituaria e orientaria a elaboração de

políticas públicas e culturais; Alex Chacon, desenhista industrial; Darcy Ribeiro, que

concentrou a concepção da própria universidade, entre diversas outras atividades

intelectuais e políticas; e Lelé – que havia ido trabalhar na construção de Brasília e

já se engajara no desenvolvimento de diversos outros projetos para a capital, vários

deles em parceria com Oscar Niemeyer, com uma pesquisa intensa em pré-

Page 29: um projeto urbano com programa político municipal

27

fabricação, culminando com o próprio projeto da universidade e sua atividade como

professor18.

O reencontro entre Kertész e Pinho se dera ao acaso, no retorno deste à

Bahia para a realização de um trabalho na área de cultura e patrimônio histórico19. A

relação entre Kertész e Lelé no desenvolvimento do projeto do CAB está ligada

ainda ao urbanista Lúcio Costa, autor do plano urbanístico sobre o qual seriam

implantados os edifícios projetados por Lelé e com quem este já havia trabalhado

em Brasília. Dessa maneira, um grupo de importantes pesquisadores e profissionais

articulava-se no cenário de desenvolvimento da capital do país e de alguns

rebatimentos de modernização que ocorriam em outras capitais, como Salvador. A

ocorrência desse núcleo de excelência, próximo ao poder central – que se

desdobrava já naquele período em regime militar – permitia esse ponto de contato

constituído pelo desenvolvimento, pela urbanização centralizada, pela crença

modernista na planificação totalizante20 e na ideia de construção de um país novo.

18 Lelé fora demitido da UnB em 1965; entre esse ano e 1970 trabalhou como autônomo, principalmente em obra, até conseguir superar as dificuldades e a falta de projetos para então montar seu escritório, que duraria até 1979: “Não fui banido, não fui preso, mas fiz parte de um grupo que foi meio marginalizado no período posterior ao de Castello Branco” - João Filgueiras LIMA (depoimento a Cynara Menezes), Memórias profissionais de Lelé, Rio de Janeiro/São Paulo, Record, 2004, p. 63. 19 Roberto Pinho havia saído de Salvador em 1961 para trabalhar junto a Agostinho da Silva na Universidade de Brasília. Já havia desenvolvido estudos de Antropologia e trabalhos nessa área e em Patrimônio Histórico, com o citado professor e Vivaldo da Costa Lima, com quem trabalha no inventário da cidade de Cachoeira para o IPAC-BA (Instituto de Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia). Cf. depoimento dado ao autor, em 12 de dezembro de 2008, em São Paulo. 20 As leituras sobre o caráter do plano de Brasília pendulam entre a não hierarquização e o autoritarismo, possibilidades do lugar da tábula rasa, essencial na proposição da nova capital, que caracterizariam a construção de novas relações espaciais, sentidos típicos do modernismo, cf. Guilherme WISNIK, “Modernidade congênita”, in: Arquitetura Moderna Brasileira, Londres, Phaidon, 2004; essa perspectiva do moderno repete-se na concepção do projeto do CAB (1973), mas a partir de sua leitura poderá se diferenciar a experiência posterior, foco deste trabalho, pela relação novo-antigo estabelecida nos projetos a serem tratados adiante e pela consciência de processo histórico em Salvador, conectando sempre o moderno ao passado. É, alias, simbólico que o reencontro entre Roberto Pinho e Mário Kertész se dê justamente quando o primeiro realiza um trabalho de levantamento de patrimônio histórico colonial e o segundo incumbe-se da gestão de um centro administrativo moderno para a capital baiana – e que por fim Pinho encabece um projeto mais amplo de articulação dessas duas facetas da cidade de Salvador nas gestões de Kertész como prefeito.

Page 30: um projeto urbano com programa político municipal

28

1.3 Desenvolvimento técnico-metodológico em Lelé

Nesse contexto, Lelé desenvolve o partido arquitetônico para o conjunto de

edifícios do CAB21, pelo exame do programa e interpretação do Plano Urbanístico

desenvolvido com base no estudo inicial de Lúcio Costa. A análise das

condicionantes de localização (limitantes de gabarito, relevo acidentado,

necessidade de grandes estacionamentos) orienta a implantação.

Figura 03: Ordem de conclusão das diversas unidades. Fonte: KERTÉSZ, 1974.

A generalidade dos programas e a diversificação dos setores da

administração pública somam-se para a determinação da extensibilidade dos

edifícios, que podem ser ampliados ou multiplicados a partir de um plano prévio.

Considera ainda o período disponível para execução das obras (18 meses) para 21 Os edifícios do CAB projetados por Lelé são os seguintes: Secretarias de Saúde, do Trabalho e Bem-Estar Social, da Segurança Pública, da Justiça, da Educação e Cultura, Igreja, Tribunal de Contas, Procuradoria Geral, Vice-Governadoria e Departamentos de Administração Geral, das Municipalidades e de Edificações Públicas. Outras edificações foram projetadas pela equipe de arquitetos da própria Secretaria de Planejamento, cf. Mário KERTÉSZ, Centro Administrativo, op. cit., cap. 9.

Page 31: um projeto urbano com programa político municipal

29

optar pela repetição de elementos construtivos através de um sistema de pré-

fabricação, com vantagens econômicas e de prazo. Por conta desses mesmos

requisitos opta por um sistema estrutural que favorece a flexibilidade das

instalações, com vistas ao incremento crescente de novas tecnologias de

comunicação, automação e ampliação de instalações. Por fim, antevê a variedade

de implantação dos edifícios na topografia acidentada local e propõe um sistema de

fachadas que valoriza a proteção das aberturas e a ventilação natural22.

Figura 04: Edifício do Centro Administrativo da Bahia. Michel VALE, 2001.

Elementos valorizados na determinação do partido:

- Implantação;

- Extensibilidade;

- Curto prazo para execução das obras;

- Flexibilidade das instalações;

- Proteção das fachadas e ventilação natural.

A partir dessas premissas estabelecidas, Lelé elabora um projeto

arquitetônico composto por:

- plataforma de concreto fundida no local;

22 Cf. Mário KERTÉSZ, idem, cap. 5.

Page 32: um projeto urbano com programa político municipal

30

- sistema pré-fabricado apoiado sobre as plataformas, formando pavimentos livres,

flexíveis e extensíveis;

- sistema de lajes penduradas na plataforma;

- sistema estrutural independente;

- sistema de vedação, ventilação e proteção térmica.

Figura 05: Edifício do Centro Administrativo da Bahia. Michel VALE, 2001.

Os edifícios acompanhariam aproximadamente as curvas de nível do terreno,

elevando-os sobre o sítio, liberando o solo e a paisagem, através de uma estrutura

com cargas concentradas e grandes vãos. Os eixos dos prédios teriam os pilares

alinhados com uma grande viga central que acumularia a função de dispor das

instalações com possibilidade de visitação e flexibilidade para alterações ou

acréscimos futuros. Dessa grande viga sairiam vigas transversais em balanço, onde

se apoiariam os elementos de vedação pré-moldados, que completariam o sistema

estrutural de apoio das lajes.

O sistema prefigurava a separação entre uma central de fabricação e a

montagem do sistema pré-fabricado, a partir de um planejamento prévio de projeto e

obra23. Esse projeto revisita algumas diretrizes testadas no Hospital de Taguatinga

(1968), com participação de Niemeyer, que já visava à flexibilidade e extensibilidade

23 Cf. Giancarlo LATORRACA, (org.), João Filgueiras Lima-Lelé, São Paulo, Lisboa, Blau, 2000, pp. 55-63.

Page 33: um projeto urbano com programa político municipal

31

da construção, o uso do escalonamento com previsão de acréscimos futuros, a pré-

fabricação e a facilidade das instalações, entre outros. Os desenhos do projeto e as

ilustrações das montagens revelam com mais contundência a experiência sobre a

qual se desenvolveu o projeto do CAB, a base sobre a qual seriam feitos os avanços

específicos que o contexto da obra na Bahia viria a exigir.

A experiência inaugural da parceria entre Lelé e Kertész já trazia em seu bojo

alguns dos principais elementos da atuação posterior, no que se refere ao

atendimento do programa no curto prazo que o agente político determinava, na

maneira de expressar formalmente um partido coerente com o processo

manufaturado de produção dos componentes, e a atenção para a implantação e a

interface do edifício com o entorno, na maneira como ambos se afetam mutuamente,

no binômio composição com a paisagem-conforto ambiental do edifício. Esse

sentido da relação do edifício com o a área envoltória – o ambiente – será ampliado

com a introdução de intervenções no tecido existente da cidade e não mais em uma

área de expansão urbana apartada da cidade consolidada.

A realização do CAB expressa no contexto baiano o sucesso da pesquisa

desenvolvida na atividade projetiva e construtiva de Lelé, levada a cabo nas

construções em Brasília. A obstinação com que problematizava as questões

técnicas envolvidas no desenvolvimento dos projetos a partir da conjuntura dada – e

dos ideais de racionalização, funcionalidade e produtividade – ia de encontro à

exigência da execução em prazos reduzidos e resultaram com grande efetividade

em um método de trabalho – e uma expressão tecnológica e plástica – coerente

com seus propósitos. A disciplina na elaboração de alternativas eficazes e respostas

apropriadas para os problemas dos programas dados, a destacar as grandes

escalas de projeto e construção que as intervenções em Brasília (e posteriormente

Page 34: um projeto urbano com programa político municipal

32

em Salvador) exigiram, levou à racionalização da produção dos elementos

construídos e ao sentido da industrialização na agilização da construção civil e na

contextualização da arquitetura no ambiente tropical – pela consideração dos

quesitos de conforto térmico, mesmo em situações de programas de uso flexíveis e

variáveis. Esses princípios serão integralmente mantidos quando efetivamente se

mudar o foco das intervenções para contextos de áreas já ocupadas, seja por

construções precárias, seja pelos conjuntos históricos, ambos ambientes mais

delicados para a inserção de obras novas – pelas dificuldades práticas ou

conceituais que ambas as situações colocarão.

Assim, a intensiva experiência e aprofundada pesquisa de Lelé desenvolvida

nos anos em Brasília lastreia sua atuação inaugural em Salvador e pavimenta, por

assim dizer, o desenvolvimento sequencial do pré-fabricado para a argamassa

armada e a expansão de suas técnicas de industrialização da construção. O

racionalismo dos projetos e a modulação das suas propostas serão resultados da

complexidade que sua pesquisa assume no cerne de um pensamento

desenvolvimentista e voltado, por isso mesmo, para o atendimento das demandas

específicas do país. Seu desenvolvimento se dá através de uma resposta calcada

na economia de escala, nas possibilidades de crescimento oportuno e na coerência

do desenho industrial aplicado na construção civil24.

24 É necessário apontar nesse momento a coadunação desse pensamento com os ideais de intervenção do Estado, a inspiração dessas técnicas em países socialistas e o desinteresse do empresariado nacional no investimento na industrialização desse processo, já que a lucratividade estava – como ainda está, em grande escala – atrelada mais a exploração extensiva de mão-de-obra desqualifacada, abundante e barata do que a um processo racionalizado e enxuto, que demandaria interesse, investimento e pesquisa; processo restrito, portanto, ao círculo acadêmico e às brechas de oportunidade no poder público.

Page 35: um projeto urbano com programa político municipal

33

2 A EXPERIÊNCIA DA 1a. GESTÃO – projeto no papel, canteiro na fábrica e

obras na cidade

Nos anos seguintes à experiência inaugural de Lelé em Salvador, o arquiteto

chegou a desenvolver outros projetos na capital federal que deram continuidade a

sua investigação do uso do concreto, da pré-fabricação, da racionalização do

programa e da obra e no cuidado com o conforto ambiental ao longo do período em

que manteve seu escritório como autônomo. Apesar das dificuldades após a

demissão da UnB em 1965, conseguiu viabilizar projetos para particulares – a

exemplo das concessionárias de automóveis em Brasília; o Hospital de Taguatinga,

em 1968; o próprio projeto do CAB (incluindo aí o projeto do centro de exposições e

da igreja do CAB, de 1974 e 1975, respectivamente); projetos para a Camargo

Corrêa em 1974 (que tentou atraí-lo para a iniciativa privada, sem sucesso), o

projeto do primeiro Hospital do Aparelho Locomotor da futura Rede Sarah25 em

1976, entre outros. Sua fase como autônomo em seu escritório particular teve fim

com o retorno ao poder Executivo, com a posse de Mário Kertész como prefeito

indicado pelo então governador Antônio Carlos Magalhães.

Figura 06: Edifício do Centro Administrativo da Bahia. Michel VALE, 2001.

25 Por intermédio e ação direta de Eduardo Kertész, especialista do IPEA, foi criada em 1976 a rede Sarah com o nome de Subsistema de Saúde na área do Aparelho Locomotor, juntamente com seu o médico Aloysio Campos da Paz. Esse projeto contou com a participação do arquiteto Alex Chacon e do antropólogo Roberto Pinho, contratados pelo escritório de Lelé em 1976 especificamente para este projeto.

Page 36: um projeto urbano com programa político municipal

34

Nessa gestão, conforme dito anteriormente, sua atuação se daria como um

prolongamento, ou uma retomada, do traço realizador das gestões de ACM na

Prefeitura e no Governo do Estado. A característica mais evidente da administração

de Kertész talvez seja o impulso materializador de programas urbanos, apoiado

sobre o cenário pregresso de produção de peças de planejamento – através do

financiamento de Planos Diretores (PDDIs) e da realização de planos de circulação

e transporte – centralizadas no Governo Federal e com ramificações na estrutura

estadual e municipal – mas com vistas nas demandas da sociedade civil,

engendradas no âmbito de um Estado mais tolerante com a ideia de

redemocratização através das diretrizes de abertura traçadas pelo presidente

Figueiredo.

2.1 Preexistência de projetos para a cidade

Os projetos relacionados à expansão urbana e da infraestrutura de Salvador

baseiam-se em alguns precedentes paradigmáticos. A experiência do EPUCS nos

anos 1940 e o legado dos projetos de avenidas de vale, entre diversos

equipamentos culturais, educacionais, de lazer e turismo, condicionou um conjunto

de intervenções viárias e saneadoras que persistem até a atualidade. Projetos da

Secretaria de Estado de Planejamento e do órgão municipal de planejamento –

OCEPLAN – além da estrutura metropolitana: Conselho de Desenvolvimento do

Recôncavo e posteriormente Cia. de Desenvolvimento da Região Metropolitana de

Salvador, ambos sob a mesma sigla: CONDER26, além da Empresa Brasileira de

26 A alteração do Conselho para Companhia revela a mudança institucional do entendimento da região adjacente ao município de Salvador. Uma compreensão histórico-cultural tradicional revela a unidade da região costeira do Recôncavo e do seu correspondente interior – sua interlândia, nas palavras de Antonio Risério, in: Uma história da Cidade da Bahia, Salvador, Versal, p.512 e idem, “Uma teoria da cultura baiana”, in: Antonio

Page 37: um projeto urbano com programa político municipal

35

Planejamento de Transportes (GEIPOT) deram sequência a essa linha de

pensamento27, condicionando e dirigindo o crescimento da cidade e orientando

(inclusive nas suas omissões) o uso e ocupação do solo.

Antes dos projetos e obras, havia um entendimento da condição urbana

sendo sedimentado, que tratava a cidade existente – o seu núcleo histórico e demais

centros consolidados – e os eixos de crescimento – vazios urbanos, vias expressas

projetadas e territórios previstos para serem ocupados – de maneira distinta. Nesta

perspectiva, onde a condição de crescimento era a superação do atravancamento

da cidade histórica e em relação a qual uma nascente ocupação planejada se

opunha, o problema da mobilidade e da construção de uma nova localização eram

centrais para o sucesso da empreitada de modernização da cidade.

O papel econômico consolidado da cidade de Salvador, onde se destacava o

setor de comércio e serviços – visto que as produções agrícola e industrial não

vingaram no município, nem nos idos coloniais tardios, nem em tempos recentes –

demandava com crescente urgência a ampliação da capacidade de circulação e de

transportes para a efetividade dessas funções. Os limites condicionados pela cidade

colonial são pouco transfigurados ao longo do século XIX e início do XX na

configuração urbana e na disponibilidade de vias de circulação, no que pesem as

intervenções citadas anteriormente, relativizadas em função do não atendimento das

exigências básicas do quadro moderno de funcionamento da cidade, dentro da

RISÉRIO E Gilberto GIL, O poético e o político e outros escritos. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, pp. 155-163, passim. A cultura secular em torno dessa região, principalmente em função das relações estabelecidas com a capital no contexto colonial e de estagnação que sucedeu o deslocamento da capital para o Rio de Janeiro, é desarticulada com a proposição da Região Metropolitana de Salvador – RMS. O estabelecimento de políticas econômicas específicas estimularam a relação de Salvador com municípios mais ao norte, principalmente no estabelecimento do Pólo Petroquímico de Camaçari, e contribuíram para o apagamento das expressões tradicionais que caracterizavam essa região. Essa política faz-se coerente com a modernização da cidade e a cisão entre esse novo processo de urbanização e a cidade histórica. 27 Wellington Correia de FIGUEIREDO e Richard George WALZ apresentam as instituições com projetos sobre essa temática em seminário no Simpósio Internacional de Transportes Públicos, de 1974, organizado pelo Metrô de São Paulo e UITP – União Internacional de Transportes Públicos, in: “Medidas a favor da circulação de ônibus de Salvador”, documento mimeografado, 1874.

Page 38: um projeto urbano com programa político municipal

36

demanda crescente dada. As reformas realizadas e o tratamento estético da cidade

consolidada não abarcavam as novas escalas de uso e os crescimentos

populacionais. Portanto, o conflito estabelecido entre esse entendimento da

funcionalidade da cidade moderna capitalista periférica e do cenário urbano histórico

da Bahia se expressará nas alternativas dadas para esses problemas. Não só os

projetos do EPUCS, como também diversas outras propostas da época discutem e

exprimem algumas respostas à circulação urbana no cenário dado.

De maneira resumida, os planos que se seguiram ao Plano Urbanístico do

EPUCS, no que tange ao transporte coletivo foram: a Adequação da rede urbana de

Transporte Público ao novo sistema viário urbano (PMS, 1973); o Estudo do Uso do

Solo e Transporte da Região Metropolitana (EUST - GEIPOT/CONDER/OCEPLAN,

1975-77); o Plano de Melhorias do Transporte Coletivo (TRANSCOL -

GEIPOT/CONDER/PMS, 1977); o Estudo de Trens Urbanos (TRENSURB -

GEIPOT/RFFSA, 1976); o Plano de Desenvolvimento Urbano de Salvador

(PLANDURB - OCEPLAN/PMS, 1976-78); o Plano Setorial de Transportes

(GEIPOT/CONDER, 1978-79); e o Plano Diretor de Transportes Urbanos (PDTU -

PMS, 1978-80).

Esse conjunto de estudos e planos, destacadamente concentrados na década

de 1970, evidencia o papel da circulação no crescimento da cidade. Esse material

abrangente e aprofundado sobre a realidade urbana de Salvador vai servir em larga

medida para o desenvolvimento de projetos na gestão de Mário Kertész, com

destaque para o EUST, o TRANSCOL e o PLANDURB, porém com a marca do

tratamento dos planos setoriais de transporte largamente imbricado com a

infraestrutura de outras ordens e o entralaçamento do foco no Centro com as

ocupações precárias com maior demanda. Assim, as prioridades do Plano de

Page 39: um projeto urbano com programa político municipal

37

Governo deveriam se coadunar com as demandas sociais e serem viabilizadas e

ratificadas pelos estudos prévios disponíveis – aplicados a partir desse

entendimento crítico, enquanto decisão política e não apenas determinação

técnicista.

2.2 Programa de Governo e a constituição de um ‘núcleo estratégico’ na

Administração

Tão logo o governo é iniciado, a parceria entre seus principais protagonistas –

o prefeito escolhido, o idealizador e coordenador do programa e o arquiteto

responsável pelo conjunto dos projetos e pela pesquisa tecnológica: Kertész, Pinho

e Lelé – já está estabelecida. A combinação do entendimento político, conceitual e

técnico refletiu-se na extrema coerência entre as diversas etapas da metodologia de

intervenção na cidade explicitada no Relatório de Governo. Foi elaborada uma

sequência de análises e proposições que comporiam o Programa de Governo de

Mário Kertész à frente da PMS, refletindo nas ações o entendimento da cidade e de

seus problemas.

Primeiramente foi explicitado um entendimento histórico-cultural da cidade

que seria a linha-guia para toda a metodologia de análise. Foi a partir daí que se

reconheceram as características daquele momento, balizado pelos períodos

históricos anteriores. Assim, foi possível estabelecer um diagnóstico da cidade

baseado nas evidências circunstanciais, também entendidas como resultado de

processos históricos.

A partir do diagnóstico – mormente identificado pela situação de crise e

desordem no crescimento; falta de manutenção da cidade pela baixa qualidade na

Page 40: um projeto urbano com programa político municipal

38

oferta de serviços; vigência de um modelo perverso de desenvolvimento, que gera

mais exclusão e concentração; falta de recursos; e população majoritária miserável –

que no seu conjunto parecia comprometer o forte caráter cultural da cidade e a sua

própria identidade, foram estabelecidos objetivos e diretrizes, formuladas estratégias

e concebidos programas e projetos.

Essa foi a conclusão mais importante do diagnóstico, determinante na formulação de uma estratégia política e administrativa que poderia sintetizar-se da seguinte forma: o objetivo de refletir Salvador para reposicioná-la perante a si própria, perante o Estado da Bahia e o País, é uma tarefa que implica em retomar a consciência de sua própria identidade, dos seus valores e do seu destino (...)28

Definiu-se então a meta principal: elevação da qualidade nos serviços

públicos – limpeza, transportes e conservação, através da oferta de um alto padrão

dos serviços e sua fiscalização29. A partir dessa meta, e com o foco da

administração voltado para a recuperação da importância histórico-cultural da

cidade, os objetivos vincularam-se à requalificação da cidade, recuperando a

qualidade dos espaços consolidados e dotando de infraestrutura e equipamentos

aquelas áreas – onde se concentrava a maior parte da população – precárias,

insalubres e desarticuladas. A integração dessas regiões se daria através da

reestruturação da circulação urbana.

Identificados os objetivos e as diretrizes e formulada a estratégia, concebemos um conjunto de programas e projetos articulados entre si e a metas prioritárias que, no seu todo, seriam capazes de provocar uma intervenção com a profundidade e o impacto desejados.30

Em síntese, objetivou-se concentrar os investimentos nas demandas da

maioria da população, em situação de miséria e historicamente desatendida – e no

limite do risco da perda de sua identidade cultural; espacialmente, os objetivos do

governo voltavam-se para a qualificação e requalificação dos espaços urbanos que

28 SALVADOR, Mensagem enviada à Câmara Municipal pelo Prefeito Mário Kertész – Março/81, PMS, Salvador, 1981, p. XIV. 29 Ibidem, p. XVIII 30 Ibidem, p. XV.

Page 41: um projeto urbano com programa político municipal

39

concentravam a habitação e o trabalho de grande parte da população, equipando-a

e fornecendo infraestrutura, ao mesmo tempo em que reestruturava a conexão entre

essas regiões, refazendo a circulação e restabelecendo a acessibilidade de forma

estrutural na cidade.

As diretrizes estabelecidas a partir desse entendimento estão relacionadas

tanto ao entendimento da cidade a partir de sua composição sociogeográfica – que

diferenciava três subáreas principais: Centro Histórico, orla marítima e

assentamentos de baixa renda – como também à estruturação da Administração

baseada em planos setoriais. A identificação dos três padrões espaciais propiciou o

estabelecimento de uma política espacialmente determinada, porém cruzada – e

sobreposta – pelas políticas setoriais: transporte, habitação, saneamento,

conservação e manutenção, cultura e revitalização dos espaços e educação e

cultura. A visão de conjunto e a ideia de cidade fundadora do programa de governo

davam o sentido global e não-fragmentado dos programas e projetos que viriam a

ser propostos, para os quais uma linha de intervenção, metodológica e

esteticamente unificada viria a atender. O entendimento complexo e cruzado de

leituras urbanas, históricas e sociais, sobrepostas e entrelaçadas pelas disciplinas –

ou setores – do programa de intervenções estava para dar uma resposta, viabilizada

na estrutura administrativa, de um partido projetual unificado para o conjunto da

cidade e de seus desafios.

De um modo geral, os fatores de desagregação determinantes nas três áreas-alvo eram os mesmos. Fatores de ordem estrutural, como crescimento demográfico, política de uso do solo, renda e emprego, e fatores de ordem conjuntural, como a decadência dos serviços públicos e a ausência de uma firme política de desenvolvimento urbano a nível municipal. E, ainda, a descaracterização do Poder Municipal no espaço da Cidade, a ausência de planos e projetos realistas, adequados e exeqüíveis. Acrescidos da incapacidade da Administração Municipal para captar e aplicar recursos.31

31 SALVADOR, op.cit., p. XVII.

Page 42: um projeto urbano com programa político municipal

40

2.2.1 O ‘núcleo estratégico’ da Administração

Dentro desse resumo do diagnóstico e do programa de governo esboçado,

pode-se identificar no nível da administração qual estrutura poderia dar conta dessas

propostas. Para além da organização tradicional das secretarias da administração

municipal, parecia que o entendimento dos problemas urbanos pelo seu

entrelaçamento – e pelas respostas integradas que os programas e projetos

específicos deveriam dar – não poderia ser resolvido de forma isolada por cada um

desses setores. Desse ponto, ficou estabelecido o papel de coordenação e

administração político-operacional da Secretaria da Casa Civil:

À Casa Civil cabe um trabalho de coordenação e formulação político-operacional das atividades da Administração Municipal, para garantir a execução do programa de governo estabelecido pelo Prefeito. Isso determina uma atuação em muitas frentes-de-atividade e exige, por conseqüência, um grau de eficiência que só uma estrutura flexível e dinâmica, que permita rápida adaptação a situações novas e a novas exigências, pode propiciar.

Dessa maneira, junto ao Gabinete do Prefeito funcionava a Secretaria da

Casa Civil e através dessa, vinculavam-se alguns órgãos estratégicos para o

desenvolvimento dos programas e projetos prioritários do governo. Entre eles,

destacavam-se o Órgão Central de Planejamento (OCEPLAN), a Coordenação de

Desenvolvimento Social (CDS), o Núcleo de Transportes e junto a este, a

Companhia de Transportes Urbanos de Salvador (TRANSUR), além da Companhia

de Renovação Urbana de Salvador (RENURB).

Essa organização desde o início pretendeu concentrar a coordenação e

agilizar programas e projetos sem, contudo, criar uma “estrutura paralela ao aparato

administrativo tradicional”32. Nessa lógica, as secretarias tradicionais desenvolviam

seus trabalhos enquanto esses órgãos ligados mais diretamente ao gabinete do

32 SALVADOR, op. cit., p. 11.

Page 43: um projeto urbano com programa político municipal

41

poder Executivo desenvolviam estratégias e planos que articulavam os diversos

setores da administração de forma mais integrada e coesa. Os trabalhos

desenvolvidos podem ser estruturados da maneira a seguir:

a. o OCEPLAN assessorou o prefeito através da ênfase no Programa de

Habitação da PMS, tanto na diretriz de implantação de lotes urbanizáveis,

como no seu principal foco, a consolidação de áreas subnormais. Os

trabalhos voltavam-se para a regularização fundiária e implantação de

infraestrutura, coordenadas e organizadas prioritariamente a partir da

identificação das áreas mais críticas e/ou mais populosas. Definiram-se seis

áreas prioritárias e foram elaboradas propostas específicas para cada uma

delas, de acordo com as suas características principais. Paralelos ao trabalho

específico de projeto para as áreas mais carentes, foram realizados estudos e

elaborada proposta para revisão da Lei de Uso do Solo. Tal projeto baseou-se

no plano diretor da cidade de 1979, com vistas à estruturação do seu

desenvolvimento espacial e de uma política de terras: diretrizes específicas

para a área da orla marítima e das regiões com população de baixa renda,

entre outras especificidades;

b. A CDS, a partir do princípio de participação das comunidades nas decisões

governamentais, orientou seus trabalhos principalmente em função do

Programa Prefeitura nos Bairros; estruturou-se através de uma Coordenação

Geral e outra específica do programa. Além das coordenações, criou dois

setores: Apoio Administrativo e de Informações; e grupos de trabalho

divididos em: Apoio Técnico, Apoio às Reivindicações e Desapropriações e

Page 44: um projeto urbano com programa político municipal

42

de Supervisão. Sua estrutura estava definida em função da estratégia de

aproximar a população, principalmente a mais carente, da Administração,

tanto para consolidar as diretrizes e ações de governo quanto para fortalecer

o trabalho de fiscalização da qualidade dos serviços públicos prestados;

c. o Núcleo de Transportes foi criado com o objetivo de desenvolver um eficiente

sistema de operação dos transportes, de maneira que complementasse a

implantação da infraestrutura física iniciada com o TRANSCOL. O Núcleo

estava ligado ao Departamento de Transportes da Secretaria de Serviços

Públicos, dispondo de mais agilidade e instrumentos de ação para

desenvolver atividades e estudos voltados para a operação do sistema. O

Núcleo contou com a Empresa de Transportes Urbanos de Salvador,

TRANSUR, empresa municipal de transporte coletivo (ônibus) que funcionou

como reguladora do sistema, servindo de parâmetro ao funcionamento das

demais empresas do sistema, todas da iniciativa privada. A empresa era

responsável ainda pelos estacionamentos rotativos, elevadores e planos

inclinados. Destacou-se no Núcleo o Programa Emergencial de Prioridade

para o Transporte Público, que abarcava os objetivos de controle,

fiscalização, planejamento e assistência ao usuário, dentre outras diretrizes

gerais de racionalização e melhoria do sistema viário, renovação da frota,

etc.;

d. a RENURB desenvolveu um papel crucial dentre os órgãos diretamente

ligados ao gabinete do Prefeito através da Casa Civil porque combinava o

desenvolvimento conceitual e de projeto (básico e executivo) dos principais

Page 45: um projeto urbano com programa político municipal

43

programas elaborados pelo núcleo estratégico da Administração. Organizou-

se em duas unidades funcionais: o Escritório de Projetos e a Usina de Pré-

moldados. Teve a função de, à conta do Fundo Municipal de

Desenvolvimento Urbano (FMDU), desenvolver programas de expansão e

renovação urbana, infraestrutura e equipamentos urbanos e aplicar seus

recursos nessas atividades. Sua estruturação interna, através de gerências,

baseava-se nas fontes dos recursos, cabendo a cada uma desenvolver

programas e projetos eventualmente intersetoriais, mas que atendessem às

demandas da fonte financiadora, sendo responsável pela compatibilização

entre os objetivos estabelecidos por cada financiamento e as prioridades

estabelecidas pela Administração. Devido ao seu caráter especial na

articulação e desenvolvimento das políticas prioritárias da gestão, sua

atuação vai ser investigada com mais detalhe, após o entendimento da

função dos transportes no projeto político do governo.

De forma sintética, a organização desses núcleos, entre outros, junto à Casa

Civil e ao gabinete do Prefeito, facilitariam o desenvolvimento integrado dos

principais programas do governo, de maneira que o planejamento, os estudos e

análises, a definição das proposições, a organização em programas específicos e o

desenvolvimento de projetos pudessem ser estruturados conjuntamente antes de

serem aprofundados e encaminhados para implementação e execução por cada

secretaria de governo. A criação desse núcleo estratégico parece ter sido uma peça

fundamental para que o desenvolvimento desses projetos pudessem se dar de

maneira dinâmica e em tempo reduzido para a escala de intervenção abarcada. Tais

projetos estavam, portanto, respaldados pela coerência entre os diversos setores da

Page 46: um projeto urbano com programa político municipal

44

administração, tanto pelo entendimento pactuado entre as demandas da população

quanto em função da prioridade estabelecida face à restrição orçamentária do

cenário de crise financeira.

2.3 O papel da circulação nos projetos

Ainda que houvesse uma presença constante e crescente da figura do

automóvel na cidade e nos projetos de intervenção urbana, diversas propostas

expressavam a priorização do transporte coletivo. A questão do transporte e da

circulação é central porque ela é, em grande parte, o elemento transfigurador da

cidade e a justificativa no campo da infraestrutura para o direcionamento da

ocupação urbana. Antes, é o elemento facilitador da ampliação dos limites urbanos e

justifica também a opção por determinado modelo de crescimento.

Entre os estudos já citados, o trabalho do GEIPOT destacou-se pela

abrangência e profundidade com que tratou o tema dos transportes, no

prosseguimento da política urbana em andamento de reconfiguração da cidade

baseada no sistema de avenidas de vale, mas não resumido apenas a tal sistema. O

TRANSCOL se utilizaria da infraestrutura viária para priorizar e racionalizar a

circulação de ônibus de forma hierarquizada.

A postura tecnicista do governo federal reproduz no nível estadual e municipal

estruturas responsáveis pelos estudos e pela implementação desses planos. Há, em

um certo sentido, um desdobramento dessas estruturas responsáveis pelo

planejamento através do desenvolvimento de alguns trabalhos de envergadura. A

administração de Kertész reconhece a disponibilidade desses projetos para compor

Page 47: um projeto urbano com programa político municipal

45

um plano e uma tática de intervenção urbana adequada ao seu programa de

governo.

“No espaço urbano, só em período mais recente o programa TRANSCOL

expressou um propósito consciente de deter e reverter o processo de

envelhecimento do sistema de transportes de Salvador.”33 A 1a. gestão de Kertész à

frente da PMS incorpora o TRANSCOL, não só pela sua função de oxigenar a

circulação urbana como também pelo resultado direto que ele poderia proporcionar

na qualidade do espaço urbano legado ao Centro Histórico, deteriorado pelas

condições extenuantes da circulação viária na época:

Assim, dentro do Programa de Transportes, enfeixado no TRANSCOL, as intervenções se destinam a retirar do Centro a grande massa de veículos que por ele circula e que se constitui num dos fatores mais sérios de sua deterioração (...) No Centro, será desestimulado o uso dos automóveis, que contribuem, de forma tão determinante, para os engarrafamentos monstruosos e a ambiência desagradável, conturbada e neurotizante que tomou conta desse que deveria ser o espaço de encontro da população de Salvador.34

Por outro lado, a administração reconhece a prioridade dos investimentos

para a população de baixa renda, no fornecimento de infraestrutura, urbanização e

acessibilidade. O estabelecimento desses dois focos complementares (o Centro

Histórico e os assentamentos precários)35 permite a concepção de uma política de

intervenção urbana baseada na rearticulação da circulação urbana. Isso porque é a

partir da reforma e redefinição dos eixos de circulação e da priorização do transporte

coletivo que poderá se implantar conjuntamente os demais melhoramentos urbanos.

Em outras palavras, não seria possível a execução de obras de transporte sem a

execução de uma série de melhoramentos de infraestrutura, a destacar a macro e

33 BAHIA (ESTADO), Plano Metropolitano de Desenvolvimento, op. cit., p. 277. 34 SALVADOR, Mensagem enviada à Câmara Municipal pelo Prefeito Mário Kertész – Março/81, PMS, Salvador, 1981, p. 4. 35 Esses dois elementos estruturadores da política daquela gestão são complementados por um terceiro elemento: a orla da cidade. A orla é entendida como grande espaço de lazer da cidade, importante para a caracterização do turismo de Salvador, mas, antes disso, para a configuração do espaço de fruição da população, buscando através dos projetos da RENURB, integrá-la à cidade para que fosse “absorvida” por todos, reconhecida pela “identidade coletiva”. Cf. SALVADOR, op.cit., p. 6.

Page 48: um projeto urbano com programa político municipal

46

microdrenagem, contenção de encostas, escadas drenantes, iluminação,

abastecimento de água, equipamentos comunitários, entre outros36. É a partir desse

princípio que se articulam as propostas da prefeitura, encabeçadas pela RENURB.

O Programa previa a implantação de quatro corredores de ônibus exclusivos

entre os bairros e o Centro, articulados através de quatro estações de transbordo,

sendo que as estações próximas ao Centro permitiriam a integração com o sistema

circular do Centro – sendo este provavelmente realizado no trecho Campo

Grande/Sé através de bonde.

Ao Núcleo de Transportes Urbanos, criado oportunamente, está reservada uma tarefa especial em toda a estratégia montada, uma vez que o desempenho satisfatório dos transportes coletivos é um fator determinante do sucesso de todo o plano. (...) O Programa de Transportes Urbanos alcançará toda a cidade, porém seu impacto mais contundente será na área central.37

Se no âmbito do Estado é a CONDER que assumiria o desenvolvimento do

projeto do TRANSCOL, na Prefeitura, a coordenação de sua implementação ficaria a

cargo da Secretaria da Casa Civil e dos órgãos RENURB e Núcleo de Transportes

Urbanos.

Nesse momento, a parceria de Lelé e Roberto Pinho – com quem já havia

retomado contato profissional na elaboração do EquipHos em 1976 – mostra-se

aprofundada, desde a ascensão daquele ao cargo de Secretário da Casa Civil e, em

seguida, ao comando da RENURB. Seu crescimento no governo é proporcional a

sua participação na concepção de diversos programas aqui citados, e, além dos

programas, nos conceitos, na tese-fundamento do governo de Kertész, qual seja o

entendimento antropológico da cidade – produto de sua cultura e ela mesma

promotora das transformações urbanas e espaciais necessárias para a amplificação

de sua expressão. No mesmo sentido, “a Prefeitura de Salvador pôde, durante 1980,

36 SALVADOR, Op. cit.,p.. 5. 37 Ibidem, p. XXIII

Page 49: um projeto urbano com programa político municipal

47

desenvolver todos os projetos dentro de uma mesma busca para integrar a cidade,

fazê-la um todo bem articulado entre as partes”38. Alinhado com o entendimento dos

programas de circulação da cidade, estava o conjunto de atividades costurado pelas

políticas urbanas em execução:

Em outras palavras: através de obras oportunas, indiscutivelmente necessárias, executadas dentro de altos padrões de exigência técnica e de evidentes benefícios para a população, e complementadas por uma prestação de serviços públicos essenciais, (…) haveríamos de provocar um impacto na cidade. (…) Mesmo no caso dos planos setoriais, como o de transportes, ou o de saneamento, a visão evidentemente é a do conjunto, dado que a compreensão do processo de formação e crescimento da Cidade, suas peculiaridades físicas e topográficas e as projeções futuras são fatores imprescindíveis na concepção dos projetos.39

2.4 Projeto e produção: a RENURB

A construção teórico-metodológica de um princípio de intervenção urbana

com foco na circulação e na acessibilidade foi possível somente através de um

entendimento integrado da cidade, tanto dos seus aspectos históricos quanto dos

aspectos geográficos, sociais e econômicos. Concebeu-se uma política de

intervenção que articulava a partir da espinha dorsal da acessibilidade uma série de

outras políticas setoriais. A concepção dessa política integrada foi a tática adotada

pela administração para estruturar uma sequência de intervenções necessárias, das

quais a urgência generalizada dificultava o estabelecimento linear de prioridades

para sua execução. Porém, além da síntese conceitual de entendimento da cidade,

foi necessária a concepção de um sistema objetivo, tecnológico-construtivo para

lastrear as intervenções pretendidas, viabilizando-as materialmente.

A parceria entre Roberto Pinho e Lelé evidencia-se aí da forma mais profícua:

enquanto o primeiro ascende na estrutura administrativa municipal, por encabeçar a

definição das intervenções e, antes dessas, o próprio conceito de cidade e cultura 38 SALVADOR, op.cit., p. 6. 39 Ibidem, p. XV.

Page 50: um projeto urbano com programa político municipal

48

que norteia o programa de governo, o segundo sintetiza materialmente esses

conceitos, transfigurando em projetos urbanos e arquitetônicos sistêmicos a ideia de

cidade que se pretende viabilizar. Pinho era o responsável pela coordenação

político-operacional das atividades estratégicas da Administração; Lelé era o

responsável pelo desenvolvimento conceitual e material dos sistemas e sua

execução dentro dos diversos programas em andamento.

A RENURB foi, nesse contexto, a materialização na estrutura da

administração da concepção integrada da cidade e do papel da cultura

contemporânea na solução dos problemas urbanos entendidos no encadeamento

histórico dos fatos.

Uma compreensão muito profunda da Cidade do Salvador – vale dizer, compreensão precisa de seu sítio urbano, de sua implantação tão peculiar, da sua arquitetura, do seu funcionamento, da sua estrutura social e da sua identidade cultural – está por trás de todo o trabalho desenvolvido pela RENURB, (…) com uma preocupação forte de qualidade e uma intenção de respeitar as características ambientais da cidade.40

A empresa foi responsável pela concepção e produção de um sistema

construtivo que atendia às diversas demandas de equipamentos públicos de forma

que toda a intervenção fosse lida pela população como o resultado dessa visão

integradora da cidade – dos núcleos históricos e das ocupações recentes, do miolo

da cidade e da orla marítima, de classes mais abastadas e das mais pobres. Para

tanto, a empresa foi concebida enquanto dois setores conjugados: o Escritório de

Projetos e a Usina de Pré-moldados.

Ao se subordinar a RENURB à Casa Civil, evidenciava-se a sua orientação

pela visão de cidade dada por Roberto Pinho, enquadrava-se sua produção no

contexto multidisciplinar e intersetorial das políticas estratégicas e costurava-se a

implantação de seus projetos pelos diversos ambientes da cidade, muito em

40 Ibidem, p. 13.

Page 51: um projeto urbano com programa político municipal

49

consequência da demanda identificada anteriormente. Os dois corpos da empresa

embasavam a concepção e a confecção do sistema em desenvolvimento. Ela foi

constituída em janeiro de 1980, com a função de:

(...) desenvolver atividades específicas na promoção, incorporação, implantação e operação de programas de expansão e renovação urbana, de infra-estrutura e de equipamentos urbanos e promover estudos e projetos relacionados aos referidos programas, bem como aplicar seus recursos nas mesmas finalidades ou em atividades que contribuam para o desenvolvimento do Município do Salvador.41

Dessa maneira, foi possível viabilizar em uma única estrutura administrativa o

papel de concepção, ao nível de projeto, de praticamente todas as obras físicas

levadas a efeito na cidade de Salvador, além da produção e do trabalho de pesquisa

realizado pela Usina para o desenvolvimento de mobiliário urbano e de um sistema

construtivo em pré-moldados leves, inclusive com a disposição de repasse da

tecnologia para a iniciativa privada, caso houvesse interesse.

O Escritório de Projetos é formado por uma grande equipe multiprofissional, o que favoreceu o mercado de trabalho da Cidade para arquitetos, desenhistas e outros profissionais, propiciando à Prefeitura uma grande agilidade e eficiência na captação dos reduzidos recursos na área federal e na área externa, em cujos organismos de financiamento nossos projetos são altamente considerados.42

A concepção do mobiliário produzido pela Usina levou em conta os dados

físicos e culturais da cidade. Procurou-se desenvolver uma tecnologia resistente ao

ambiente litorâneo de Salvador, além de se objetivar a produção das diversas peças

componíveis para micro e macrodrenagem em concreto leve e possíveis de serem

transportadas manualmente, em função das dificuldades de acesso na maioria dos

assentamentos de baixa renda. Ou seja, para a consolidação das ocupações de

baixa renda, era necessário combinar o desenho – e implantação – do saneamento,

da micro e macrodrenagem, da acessibilidade e do sistema viário de forma

encadeada e conjunta. A delicadeza do sistema de intervenções pautava-se 41 Ibidem, p. 45 42 Ibidem, p. XX

Page 52: um projeto urbano com programa político municipal

50

simultaneamente pela precariedade da situação e pelas restrições de se intervir nas

ocupações precárias sem desarticulá-las, evitando a remoção indiscriminada dos

moradores e pela impossibilidade de se entrar com grandes máquinas no interior

dessas comunidades.

A opção pela integração das soluções técnicas setoriais – transportes,

drenagem, habitação, saneamento, principalmente – em um programa conjunto

respondia não só à questão da combinação das prioridades sociais de infraestrutura,

mas também a uma metodologia de intervenção racional, a partir de entendimento

da interdependência dos diversos equipamentos e redes no contexto de sua

implantação. Por fim, essas intervenções deveriam se pautar pela economia de

recursos e escassez de tempo, em vistas da grande demanda e dos limites

específicos de uma administração. A competência da RENURB no núcleo

estratégico abarcava desde a concepção, o projeto e a viabilização técnica-

construtiva até o arranjo administrativo e a gestão financeira dos programas.

Figura 07: Canais de drenagem. Fonte: SALVADOR, 1981.

Figura 08: Escadarias e muros drenantes. Fonte: SALVADOR, 1981

Page 53: um projeto urbano com programa político municipal

51

Figura 09: Muros de arrimo. Fonte: SALVADOR, 1981

Coerente com esse arranjo metodológico, desenhou-se uma resposta

administrativa a uma questão fundamental: a fonte de recursos dos programas e

projetos. A administração, através da visão estratégica impressa pela Casa Civil,

combinou as diversas linhas financiadoras disponíveis ao elenco de prioridades da

Administração. Nesse sentido, a opção da estruturação das intervenções a partir dos

projetos de transportes foi decorrência da lógica intrínseca ao encadeamento das

intervenções, mas também do montante de financiamentos disponíveis,

principalmente a partir do empréstimo do BID para o projeto do TRANSCOL. Sob o

conjunto das obras para o sistema de transportes, abarcou-se também aquelas

obras fundamentais para sua implantação – as mesmas identificadas enquanto

soluções para saneamento, drenagem e urbanização das regiões atendidas pelo

projeto. Depois de impresso um ritmo e modelo de busca de fontes de

financiamentos pela Casa Civil, em estreita articulação com a RENURB, essa tarefa

foi repassada para a Secretaria de Finanças, como soma ao esforço bem sucedido

daquela secretaria na ampliação do caixa da Prefeitura, seja através da captação de

recursos externos, seja através da modernização e ampliaçãodo sistema de

arrecadação de tributos.

Page 54: um projeto urbano com programa político municipal

52

Essa lógica de combinação das fontes financiadoras e de seus projetos

específicos com os demais projetos da Administração evidenciou-se como uma das

estratégias principais da RENURB para a viabilização do conjunto de intervenções

na cidade de acordo com o programa de governo, em função das prioridades

identificadas e atualizadas a partir das demandas apresentadas pela população

através das Prefeituras nos Bairros – principalmente através dos escritórios técnicos

implantados nas comunidades participantes do programa. A estruturação interna da

Companhia baseava-se em gerências específicas para cada fonte financiadora, tais

como a EBTU, o BNH, o BNDE, Banco Mundial, porém em íntimo contato entre si e

dentro de uma estrutura pensada especificamente para a unificação dos programas

e projetos.

2.4.1 A Usina, o papel da tecnologia e seu princípio sistêmico

Um dos princípios do desenvolvimento das peças pré-moldadas pela Usina foi

o de reconstituir uma unidade plástica no conjunto urbanístico de Salvador43. A

possibilidade de produção em argamassa armada ou concreto leve em larga escala,

atendendo à grande demanda por equipamentos urbanos em curto prazo e com

custos reduzidos seria orientada pela concepção integrada dos diversos elementos.

A Usina constituiu-se, portanto, como uma iniciativa inovadora de produção

industrializada encampada pelo poder público para intervenções urbanas no Brasil.

Sua originalidade está ligada tanto à escala de produção, quanto ao caráter público

e ao conceito unificador das intervenções na paisagem cultural da cidade –

buscando através das intervenções contemporâneas integrar a cidade histórica e a

43 Ibidem, pp. XXI e XXII

Page 55: um projeto urbano com programa político municipal

53

cidade moderna. O conjunto do mobiliário e a concepção das obras do sistema de

circulação pautavam-se pela interação harmônica com o ambiente construído, com o

conjunto histórico e com uma leitura contemporânea do desenvolvimento dos

métodos construtivos tradicionais, fazendo uso do concreto enquanto tecnologia

análoga à cantaria da arquitetura colonial.

A partir do objetivo prioritário de implantação do TRANSCOL, desdobrou-se o

foco no atendimento de outras demandas paralelas, que requisitaram o

desenvolvimento da tecnologia da argamassa armada, mais complexa em quesitos

de formas metálicas, armadura, traço da composição e cura, por exemplo. A

ampliação das pesquisas da Usina foi possível graças ao desenvolvimento do

trabalho iniciado pelo engenheiro Frederico Schieel, da USP-São Carlos, chamado

para colaborar na RENURB. O objetivo era produzir uma família de equipamentos,

peças e mobiliários componíveis e complementares a serem aplicados nas mais

diversas situações, assegurando, porém, uma forte unidade conceitual a partir do

emprego em todos os casos da mesma tecnologia e da mesma matéria-prima.

O desenvolvimento e a produção de um conjunto de elementos – mais

‘pesados’ – ligados ao sistema de transportes – abrigos de ônibus, terminais e

estações – e outro mais ‘leve’, ligado ao sistema de drenagem – peças para

canalização de córregos, escadas drenantes e contenção de encostas – tiveram

desdobramento em diversos outros projetos setoriais: urbanização da orla, postos

policiais, sinalização, mobiliário urbano, etc.

Page 56: um projeto urbano com programa político municipal

54

Figura 10: Muros de arrimo – esquema de execução. Fonte: SALVADOR, 1981.

Figura 11: Rampas e escadarias drenantes – vias de pedestre. Fonte: SALVADOR, 1981.

Figura 12: Canais retangulares de argamassa armada. Fonte: SALVADOR, 1981.

Page 57: um projeto urbano com programa político municipal

55

Nesse sentido, a produção articula historicamente a técnica do concreto às

técnicas tradicionais, filiando-a por analogia às técnicas de pedra lavrada e pedra de

cantaria das construções tradicionais da cidade em períodos anteriores. O conceito

que embasa a adoção do sistema e da tecnologia do pré-moldado em concreto e

argamassa armada alinha-se ao princípio da atualização da técnica construtiva

vigente, pelo caráter de contemporaneidade que essa mesma técnica assume,

dentro do entendimento histórico da configuração material da cidade.

Em síntese, a recuperação da importância da cidade e a qualificação dos

seus espaços a partir da referência histórica de períodos passados são possíveis

através da coerência da técnica construtiva com a expressão mais avançada do

atual período, atribuída, no caso, ao pré-moldado. As intervenções contemporâneas

que expressem o emprego de uma técnica de ponta estariam assim compatíveis

com a excelência dos espaços construídos com o melhor da técnica que em épocas

anteriores atendia aos programas estabelecidos. Sob essa ótica, as obras

contemporâneas em Salvador poderiam se equiparar (e harmonizar),

proporcionalmente, ao esplendor e importância que a cidade teve no período

colonial e do Império.

Page 58: um projeto urbano com programa político municipal

56

3 RESULTADOS: ANÁLISE GERAL E BALANÇO DA GESTÃO

O impacto resultante da adoção de um programa de intervenção urbana como

aquele da Administração de Mário Kertész, no que tange a prioridade das

intervenções e articulação integrada dos programas setoriais, é tanto maior quanto a

coerência entre o diagnóstico realizado, a assertividade na definição das prioridades

e o respaldo técnico para as decisões políticas. Nesse sentido, o contexto do

Governo de Mário Kertész significou a confluência desses princípios de maneira

muito peculiar na realização de seu programa.

3.1 Os projetos e as obras

A partir do programa de transportes, foram estabelecidas as prioridades em

função do Centro Histórico, materializadas principalmente a partir da implantação da

Estação de Transbordo da Lapa.

(...) é importante destacar o projeto da Estação da Lapa, não só pelo seu porte e pela sua concepção arquitetônica (que sendo muito atual, integra-se harmoniosamente com a imagem mais antiga do sítio onde se implantará), mas também pela influência determinante que terá na conservação do Centro Histórico.44

Figura 13: Maquete da Estação da Lapa. Fonte: SALVADOR, 1981

44 SALVADOR, op. cit., pp. 15-16.

Page 59: um projeto urbano com programa político municipal

57

O rebatimento dessa intervenção nas áreas periféricas se dava primeiramente

pela necessidade de criação de corredores entre a região mais central e as regiões

mais afastadas, inicialmente pelo saneamento dos vales e implantação de avenidas

(com o cuidado de priorizar os corredores de ônibus), a exemplo do Corredor

Aquidabã-Sete Portas, articulado com a Estação de Transbordo do Aquidabã,

que viria a conectar as linhas originárias dos bairros com as linhas circulares do

Centro; a Estação de Transbordo da Rodoviária45 também se integraria ao

sistema, em posição menos central, mas de importância no sistema de integração

de linhas; o Plano Inclinado Liberdade-Calçada também funcionaria na conexão

com o sistema de transporte ao articular a zona populosa de baixa renda da

Liberdade à região da Calçada, que permitia uma integração com três importantes

linhas de ônibus para regiões de concentração de empregos. A implantação do

sistema multimodal completava-se ainda com a implantação de estacionamentos

periféricos, a exemplo do Estacionamento Periférico Água de Meninos, que

facilitaria a integração com transporte coletivo em pontos menos congestionados da

cidade. A implantação do sistema nos bairros mais distantes se deu através de 40

terminais de bairro (de um total de 85 terminais previstos), além da abertura e

pavimentação de vias de penetração, que conectavam o sistema viário principal ao

coração dos bairros, reconfigurando a acessibilidade nessas regiões, a exemplo da

Avenida Vale das Pedrinhas.

45 Este exemplo serve pra demonstrar o cuidado do projeto com os quesitos funcionais tanto para o sistema quanto para o usuário, uma vez que o projeto de implantação dos terminais baseavam-se no estudo do GEIPOT, mas atualizavam-no no sentido de compatibilizá-lo com as especificidades do local e as possibilidades de otimização do espaço urbano resultante para os usuários; cf. estudos de implantação in: Giancarlo LATORRACA (org.), João Filgueiras Lima, Lelé. São Paulo-Lisboa, Instituto Lina Bo e P.M. Bardi-Blau, 2000, PP. 100-101.

Page 60: um projeto urbano com programa político municipal

58

Figura 14: Corredor Aquidabá - Sete Portas. Fonte: SALVADOR, 1981.

Figura 15: Estação de transbordo da rodoviária. Fonte: CONDER/PMS (arquivo), 1981.

Figura 16: Corredor França – Mares, etapa IIIA: Terminal de Bairro. Fonte: CONDER/PMS (arquivo), 1981.

Figura 17: Renurb - linha de materiais pré-moldados. SALVADOR, 1981.

Page 61: um projeto urbano com programa político municipal

59

Figura 18: Estacionamento de Água de Meninos. SALVADOR, 1981.

Dentro do sistema desenvolvido pela RENURB, destacam-se principalmente

os abrigos de ônibus implantados nesses terminais, que, junto com a urbanização

das áreas através da criação de praças e espaços de lazer, definiam e identificavam

os espaços públicos dos bairros, articulando-os física e esteticamente aos demais

bairros da cidade. Nesses espaços, a pavimentação, os abrigos e mobiliário

(constituído por bancos em argamassa armada, também pré-fabricados), o

paisagismo e o próprio agenciamento das funções configuravam o conjunto das

intervenções.

Às intervenções ligadas diretamente ao melhoramento do sistema de

transportes somavam-se às obras necessárias de drenagem, saneamento e

microacessibilidade, implantadas em conjunto com equipamentos de bairro, tais

como escolas e creches, além da ordenação da ocupação dos terrenos.

Estruturadas dentro do Programa de Habitação, a partir dos núcleos prioritários

identificados pelo OCEPLAN, foram realizadas obras de saneamento de vales

ocupados através da canalização de córregos, da contenção de taludes e encostas,

instalação de escadarias drenantes, vias de acesso, entre outros elementos.

Destaca-se a intervenção no Vale do Camurujipe, o principal rio de Salvador, com a

maior concentração de população de baixa renda em situação precária, com cerca

Page 62: um projeto urbano com programa político municipal

60

de 500 mil pessoas nessas condições, por onde se iniciou o que constituía o maior

programa habitacional da prefeitura.

Figura 19: Bacias hidráulicas de Salvador. Plano de identificação das bacias prioritárias para receber investimentos de saneamento. Salvador, 1980.

Figura 20: Projeto Vale do Camurujipe.PMS (folheto), 1983.

Esse programa baseava-se na identificação dos problemas típicos da

situação topográfica de Salvador, marcada pela sucessão de cumeadas separadas

por vales com cerca de 40m de profundidade. A ocupação inicial das cumeeiras por

construções e sistema viário foi sucedida pela ocupação das encostas e fundos de

vale por população mais pobre. Esse cenário de densidade populacional, falta de

Page 63: um projeto urbano com programa político municipal

61

infraestrutura e dificuldades de acesso orientou a solução adotada. Assim, o

conjunto de ações dos diversos bairros pobres localizados na Bacia do Camurujipe

baseava-se em oito pontos essenciais: legalização da posse da terra, saneamento

básico, estabilização das encostas, sistema viário para serviços básicos (transportes

e coleta de lixo), rede de água complementar, rede de energia elétrica

complementar, iluminação pública e equipamentos (saúde, educação, creche,

abastecimento alimentar, etc). Dessas ações, praticamente todas as intervenções

físicas contam com a contribuição da RENURB.

Figura 21: Peças pré-moldadas – galerias drenantes. SALVADOR, 1981.

Figura 22: Transporte manual – peso máximo 45kg. SALVADOR, 1981.

Figura 23: Via de pedestres – trecho em construção. SALVADOR, 1981.

Figura 24: Via de pedestres – utilização pela comunidade. SALVADOR, 1981.

Nesse conjunto, da mesma maneira com que se interveio no Nordeste de

Amaralina, foram utilizadas peças pré-moldadas em argamassa armada na

contenção de taludes e encostas, além de compor as seções dos canais dos

córregos afluentes do Rio Camurujipe. Compunha ainda a mesma família de peças

Page 64: um projeto urbano com programa político municipal

62

aquelas que constituíam as escadas drenantes, escadas que permitem, através de

canaletas no seu centro articuladas com fossas da parte residencial, o escoamento

das águas pluviais e de esgotamento sanitário, impedindo também que essas águas

penetrem no solo e concorram para o deslizamento de terras.

Figura 25 e 26: Canais retangulares. SALVADOR, 1981.

Figura 27: Montagem na obra – encaixe das peças. SALVADOR, 1981.

Figura 28: Tranporte manual – peso máximo 90kg. SALVADOR, 1981.

Figura 29: Viga de coroamento – concreto moldado no local. SALVADOR, 1981.

Page 65: um projeto urbano com programa político municipal

63

Compunha-se assim, a primeira linha de peças leves pré-moldadas em

concreto e argamassa armada, através de abrigos de ônibus (que, componíveis,

formavam os terminais de bairro); arrimos e contenção de taludes e encostas, dutos

para afastamento de lixo domestico até pontos de coleta nas vias de acesso dos

bairros, seções de canais, escadas drenantes, bancas de jornal, postos policiais,

guaritas, cabines telefônicas, bancos de praça com ou sem encosto, suporte para

sinalização urbana, jardineiras e lajotões para piso, entre os principais.

Figura 30: Abrigos. SALVADOR, 1981.

Figura 31: Abrigos. SALVADOR, 1981. Figura 32: Cabine telefônica e posto policial. SALVADOR, 1981.

Figura 33: Bancos para praça. SALVADOR, 1981.

Figura 34: Jardineiras. SALVADOR, 1981.

Page 66: um projeto urbano com programa político municipal

64

Vale dizer que mesmo os projetos específicos – tais como a Estação da Lapa,

a Central de Delegacias, o Plano Inclinado Liberdade-Calçada, entre outros –

também tiravam partido da mesma linguagem da pré-fabricação, utilizando-se de

peças produzidas na Usina, mesmo quando não eram apenas as peças da linha de

produção.

Figura 35: Ao centro, Kertész (E) e Lelé, apresentando maquete da Central de Delegacias. SALVADOR, 1981 .

3.2 O espaço da Administração e o ambiente político e social

A começar pelo cenário político mais geral, o contexto de redemocratização,

apesar de já estar iniciado, não estava totalmente configurado. A própria condição

de prefeito indicado, eleito indiretamente pela Assembléia Legislativa, restringe o

caráter de representatividade que a escolha direta poderia imprimir à sua gestão.

Ainda assim, dentro da linha carismática e bem articulada às demais instâncias de

poder vigente na figura de Antonio Carlos Magalhães, seu “padrinho” político na

época, Kertész viabiliza, no seu espaço político próprio, uma postura híbrida entre o

alinhamento direto com as orientações de seu predecessor, marcadamente

centralizadoras e autoritárias, com o ambiente de transição democrática que se

forjava.

Page 67: um projeto urbano com programa político municipal

65

Com esse pano de fundo, compreende-se o argumento reincidente no

discurso oficial de respaldar suas políticas na ratificação das prioridades pela

população e na diretriz de aproximação da prefeitura com as comunidades através

do Programa Prefeitura nos Bairros, da Coordenação de Desenvolvimento Social.

Ainda que essa iniciativa possa ser lida como um simulacro de descentralização

administrativa46, ela significa, concretamente, uma aproximação da estrutura

institucional pública daquelas comunidades onde de fato foram instalados escritórios

representantes da Administração.

Um aspecto relevante se trata do discurso social e cultural que transpassa o

programa de governo, integrando os diversos programas setoriais e a própria

intenção dos projetos implantados; nesse mesmo sentido, havia se dado o governo

anterior do Prefeito Jorge Hage, marcado ainda por seu viés tecnocrático (dentro de

um programa modernizador e, em um certo sentido, progressista, ao tentar fazer a

prefeitura assumir o papel de planejar e controlar o desenvolvimento urbano e a

acumulação imobiliária) mas intencionado em discuti-lo com a cidade, iniciativa

inviabilizada pela crise de credibilidade derivada do contexto autoritário47.

Tanto o governo de Hage quanto o de Kertész se configuram como

experiências “desviantes” por se caracterizarem como tentativas de restabelecer

uma conexão do governo pelo ‘poder local’ – ambas abortadas pela conjuntura

autoritária sobre a qual se deram. A divergência do primeiro, pelo intuito reformista

de seu governo, com os interesses imobiliários e comerciais, somados à ordem

autoritária e à influência das elites junto ao governo estadual levaram à sua

demissão; já o segundo, cuja atitude audaciosa na implementação de uma agenda

46 Cf. análise de Paulo Fábio DANTAS NETO, “Caminhos e atalhos: autonomia política, governabilidade e governança em Salvador”, op. cit., p. 20. Foram instaladas doze unidades do programa, de um total de 60 previstas, o que cobriria praticamente todas as áreas de baixa renda da cidade; cf. SALVADOR, Mensagem enviada..., op. cit., p. 20. 47 Cf. Paulo Fábio DANTAS NETO, op. cit., p. 19.

Page 68: um projeto urbano com programa político municipal

66

realizadora focada nas demandas reprimidas das classes de baixa renda, rendeu-lhe

popularidade e a expectativa de progressão política, teve desfecho com o primeiro

pretexto para sua demissão, pela sua insubmissão ao perfil concentrador de Antônio

Carlos, que o percebia como ameaça a sua precedência política48.

Kértesz se evidenciou (desde os tempos de Secretário de Estado do

Planejamento, aos 26 anos, e nessa experiência como prefeito oito anos depois)

como uma opção política no quadro tecnocrático que servia de base aos governos

de ACM, ao passo que seu descolamento da figura do governador (pela influência

direta das concepções e do ideário expresso por Pinho), a sua abertura a um

programa ideológico mais progressista e o vislumbre da oportunidade de uma

progressão na carreira política contribuíram de forma certeira para a sua demissão

do cargo. Mesmo realizando uma gestão marcada pelas intervenções urbanas, ao

gosto do então governador, o caráter “desviante” de sua Administração se dá pela

mudança de foco para o atendimento das demandas populares, que de fato,

constituiriam seu cacife político, alavancando a possibilidade de seu retorno à

administração da cidade49.

De qualquer maneira, sem entrar em uma análise do quadro político mais

amplo, qual seja o da modernização conservadora (carlista), é sintomático que a

agenda programática de Kertész, amplamente vinculada à estruturação do espaço

urbano focada nas demandas sociais e respaldada conceitual e tecnicamente,

corresponda a um fortalecimento da oposição, caracterizada pela mobilização da

48 Paulo Fabio DANTAS NETO, op. cit., p.19. 49 Mário Kertész viabiliza seu retorno ao poder municipal através do voto direto nas primeiras eleições municipais após o Regime Militar. Seu rompimento com ACM e sua aproximação ao Movimento Democrático na medida em que consolida sua popularidade fazem dele candidato vitorioso em 1985, a partir de quando, por quatro anos, leva mais adiante os projetos de Pinho e Lelé, através da Fábrica de Cidades, ou Fábrica de Equipamentos Comunitários (FAEC). O desenvolvimento dessa experiência para além das propostas iniciais merece um estudo mais aprofundado, pelo abarcamento de mais diretrizes e aumento da complexidade do sistema construtivo em virtude dos novos programas: creches, escolas, balneários, equipamentos do Transporte de Massa de Salvador, mercados, passarelas, etc., mas, em linhas gerais, pode ser entendido como o prolongamento dessa experiência inaugural em um ambiente político democrático.

Page 69: um projeto urbano com programa político municipal

67

sociedade civil. Estruturada na década de 1970 em três fases, desde os protestos

eleitorais e organizações populares e profissionais, com o destaque, não por acaso,

para a articulação de profissionais liberais organizada a partir da Semana do

Urbanismo, em 1973; a retomada das mobilizações de massa no movimento

estudantil; e a resposta propriamente dita da sociedade civil, com destaque para a

Federação das Associações de Bairro de Salvador e do Movimento Contra a

Carestia50; essas organizações vocalizavam a crescente pressão pela

democratização com a qual Kertész se alinha de forma clara, a partir do seu

programa de governo.

Tanto pelo quadro abrangente de democratização e abertura política, onde se

prefigurava a possibilidade de instauração do poder local autônomo em relação a

instâncias superiores, quanto pelo cenário instituído de crise e restrição

orçamentária da Administração Municipal, onde começava a sobressair a

característica mais geral de insuficiência e centralização fiscal, que em seguida

começaria a ser diluída – o governo de Kertész se destaca pelo foco específico na

adoção de políticas urbanas estreitamente articuladas que respondem no nível

social e administrativo com o sentido da modernização (na concepção da

infraestrutura e na sua espacialização, tanto quanto na agilidade e dinâmica da

gestão).

As definições estruturantes da sua administração tiram partido justamente do

caráter de transição e democratização (em função das crescentes manifestações

sociais e políticas), além do respaldo técnico incorporado pelo lastro planejador do

contexto imediatamente anterior (vista a disponibilidade de estudos e propostas que

orientaram suas intervenções). Nesse sentido, o caráter integrador e articulador que

50 Cf. Paulo Fabio DANTAS NETO, op. cit., p. 20.

Page 70: um projeto urbano com programa político municipal

68

seus projetos espacializam e dão forma é análogo ao clima de fortalecimento das

expressões políticas populares. Seu discurso humanista, imbuído da priorização das

demandas populares, do caráter cultural e de identidade em suas prioridades, ecoa

também da reorganização popular em torno da democratização.

Com essa marca da oportunidade, pela conjunção de um arranjo político que

possibilitou uma abertura progressista na definição do seu programa político, em

função do cenário de democratização e a despeito do contexto mais restrito do

centralismo autoritário que o engendrou, o governo em questão cercou-se tanto de

um discurso procedente sobre a urgência da valorização da identidade cultural da

cidade quanto da coerência entre essa fala e a proposição programática articuladora

dos seus elementos espaciais significativos. O encadeamento teórico-propositivo

entre os elementos culturais urbanos de forte apelo coletivo e as lacunas históricas

no atendimento da população em equipamentos, infraestrutura e, sobretudo, na sua

integração física e nominal à cidade formal viabilizou a proposição de um conjunto

de intervenções coerentes nas suas múltiplas combinações e marcadamente

contemporâneo, ainda que referenciados historicamente ao contexto urbano que

busca ressaltar.

3.3 Análises da negociação e implementação da política urbana

A circunstância possível naquele momento permitiu essa articulação

equilibrada entre oportunidade política, densidade e coerência conceitual no

entendimento dos processos urbanos e desenvoltura técnica na elaboração de um

conjunto de proposições que atendesse em nível de excelência tanto as demandas

políticas quantos as orientações conceituais. O tripé político-conceitual-propositivo é

Page 71: um projeto urbano com programa político municipal

69

a equação específica que pode viabilizar uma experiência abrangente e significativa

para o atendimento das expectativas populares ratificadas no programa de governo.

Nessas circunstâncias, a estruturação de um espaço dinâmico dentro da

estrutura da Administração, daquilo que foi chamado de núcleo estratégico, pode ser

fundamental para o sucesso da política urbana estabelecida. Deve se destacar

justamente nesse arranjo o papel articulador entre o político e o técnico,

personificado neste caso na figura de Roberto Pinho. Ele foi responsável tanto pela

conceituação e caracterização da cidade como, primordialmente, pela proposição de

uma concepção integrada de intervenção. A organização de um grupo próximo ao

gabinete do prefeito, através da Casa Civil, foi fundamental para a elaboração do

programa e seu desenvolvimento através de projetos específicos. A condição de

ligação direta entre os conceitos de cidade e a diretriz cultural norteadora das

intervenções e o desenvolvimento tecnológico-construtivo também responde pelo

caráter abrangente e efetividade da iniciativa.

É identificável o viés humanista na estruturação do rol de políticas públicas

encampadas pela gestão. Transparece na leitura urbana e social o profundo

conhecimento da composição histórica da sociedade baiana e soteropolitana, e, por

consequência o sentido da aplicação objetiva das disciplinas de ciências sociais.

Essa parece ser, tanto quanto o arranjo administrativo estratégico, outra grande

contribuição de Pinho. A atuação de Lelé nesse sentido é confluente com a leitura

marcadamente antropológica e social que o primeiro imprime na Administração. A

história do arquiteto confirma a sua contribuição afinada com os princípios dados

pelo governo. Sua pesquisa tecnológica e a investigação das possibilidades de os

elementos pré-fabricados atenderem às grandes demandas de forma racional e

econômica eram coerentes com as referências que buscou para essa tecnologia (em

Page 72: um projeto urbano com programa político municipal

70

países socialistas, por exemplo) e com o sentido político-ideológico que sua postura

profissional expressa.

Vale ressaltar a importância da coordenação desse núcleo propositivo da

gestão com a estrutura mais tradicional preexistente na administração municipal.

Posto que as atuações dessas duas partes – a estratégica e a setorial tradicional –

são praticamente coincidentes, é necessário diferenciar e estabelecer na prática

administrativa a colaboração entre o papel de conceituação e desenvolvimento

específico dos programas integrados, intersetoriais, por assim dizer: o

desenvolvimento intensivo do programa urbano, com o desenvolvimento das

análises urbanas, levantamento e identificação dos objetos das intervenções; e a

organização de sua implantação e efetiva aplicação dos projetos, aqui chamado

desenvolvimento extensivo do programa. Essa integração depende, entre diversos

fatores, da capacidade de orquestração entre níveis mais globais de gestão e

concepção estratégica do planejamento – vale ressaltar, de uma estrutura mais

dinâmica e circunstancial, específica de cada governo – e a estrutura mais

permanente e marcadamente setorial da administração municipal.

Deve ser ainda observado um aspecto aparentemente sutil, mas que pode

evidenciar com mais clareza a conjuntura da integração técnico-conceitual e política

específica dessa gestão: o entendimento de revisão da experiência inicial de Kertész

com a implantação do CAB (1971-72). Se naquele momento, a diretriz política ditava

um modelo específico de expansão urbana explicitamente tecnocrático – pela forma

com que a cidade é entendida e proposta a reorientação de seu crescimento – e

desprovido de uma contextualização histórico- cultural, a espinha dorsal do governo

municipal (1979-81) reorienta o modelo de intervenção, a partir do seu caráter

Page 73: um projeto urbano com programa político municipal

71

humanista (pela priorização dos aspectos sócio-culturais) na definição das políticas

urbanas.

Vale notar o curto espaço de tempo entre as duas intervenções e a

reincidência da figura política de Mário Kertész. Enquanto na experiência do CAB a

atuação de Lelé responde às demandas de racionalização e economia através de

um projeto em que se destaca a qualidade dos espaços, o cuidado na implantação e

na relação das edificações com a paisagem, além da pesquisa da tecnologia do

concreto pré-moldado, a experiência na PMS radicaliza a aplicação dos mesmos

princípios projetuais e da mesma linguagem técnica e arquitetônica através da

reorientação programática – voltando a atuação da Administração para o Centro da

cidade e suas áreas de ocupação precária.

Tal reorientação faz ressaltar não só a mudança paradigmática em si (um

‘retorno’ dialético do foco da intervenção modernizante para as regiões ocupadas da

cidade – seu Centro Histórico e seus bairros populares informais), como também

evidencia a falha estrutural do modelo de intervenção tecnocrático no atendimento

das demandas centrais da cidade naquele período. Enquanto a administração se

voltou para o ordenamento da cidade para atender ao desenvolvimento preconizado

pela industrialização e reorganização metropolitana, as pressões sociais de fato não

foram equacionadas, expressando-se na configuração desordenada e precária de

grandes áreas recém-ocupadas que não foram devidamente previstas e tratadas

pelos governos anteriores51; o desenvolvimento desse quadro de falta de

representatividade das classes sociais de baixa renda e a sua exclusão

51 É insinuada aqui uma leitura ideológica com significativas evidências das opções feitas nos períodos citados. As ideias modernizantes que priorizam a circulação de mercadorias e a ampliação do mercado de terras, a exemplo do programa urbano dos anos 1950-70 na Bahia, trazem intrinsecamente a exclusão das demandas sociais, mais especificamente de habitação e infraestrutura para camadas populares. Tal quadro chegou ao nível de extremo descontrole, principalmente pela dificuldade do acesso ao mercado formal de terra com a ausência de uma política efetiva de uso do solo, reflexo do histórico esforço concentrador das políticas públicas para as elites. É sobre esse cenário de crise e profunda cisão socioespacial que parece querer agir o programa de governo de Kertész-Pinho-Lelé.

Page 74: um projeto urbano com programa político municipal

72

programática confirma que “a carência material é a face externa da exclusão

política”52.

Esse aspecto de reorientação programática circunscrita à integração

socioespacial talvez seja a maior diferença entre as intervenções abordadas e

evidencie um caráter inovador na aplicação de uma agenda moderna menos

incoerente com o cenário arcaico persistente de carências sociais historicamente

ignoradas. Talvez demonstre ainda a abertura da figura política para uma agenda

programática extremamente comprometida em seus conceitos com as respostas

sócioespaciais demandadas pela cidade, sintetizada na elaboração de planos

coerentemente integrados e específicos para aquela dada realidade.

52 Pedro DEMO, “Pobreza e Política”, in: Papers, São Paulo, Fundação Konrad Adenauer-Stifung, 1993, apud Ermínia MARICATO, Metrópole na Periferia do Capitalismo, São Paulo, Hucitec, 1996.

Page 75: um projeto urbano com programa político municipal

73

CONCLUSÕES

Esboço de uma organização metodológico-administrativa e projetual na gestão

municipal

O resumo apresentado da 1ª. gestão de Kertész na PMS revela as

possibilidades reais de experimentação no cenário social dado da construção do

programa de governo em uma municipalidade. Pode-se cotejar os tópicos

apresentados da elaboração do programa de governo com as orientações práticas

para implementação53, nos dias atuais, da peça fundamental de planejamento

urbano que se dispõe: o Plano Diretor. Ainda que o cenário apresentado não fosse

já de democracia reinstituída, a conjuntura dada já mostrava fortes sinais de reação

popular, prefigurando o que ainda pode vir a ser um patamar mais pleno de

participação direta da população na definição das políticas urbanas viabilizadas

através dos instrumentos de planejamento.

Assim, primeiramente pelo interesse de legitimação do planejamento urbano

pela participação popular, principalmente frente às pressões políticas circunstanciais

que se opõem ao entendimento das demandas dadas pela visão de futuro, o quadro

da gestão de Mário Kertész primou pela capacidade de identificar os problemas de

forma objetiva. A evidenciação do cenário de crise, a constatação da situação de

miséria e informalidade da maior parte da população e a desestruturação da

administração municipal foram a base sobre a qual se desenvolveu todo o plano de

governo, ratificado pelas demandas populares através do Programa Prefeitura nos

Bairros – e confirmados pela popularidade do prefeito e suas bandeiras.

53 Os tópicos apresentados nessa sequência apresentam uma metodologia mais geral que foi sistematizada por Peter José SCHWEIZER, “Tirando o Plano Diretor da Gaveta”, in: Revista de Administração Municipal, Rio de Janeiro, IBAM, jan-mar 2008, no. 265.

Page 76: um projeto urbano com programa político municipal

74

A identificação desses problemas permitiu a análise das necessidades e

identificação dos problemas locais; tal análise se deu sobre um padrão de

espacialização dos principais problemas, caracterizado pela recorrência da

ocupação de um conjunto de morros e fundos de vale pela população carente; falta

de equipamentos e infraestrutura; abandono da região central e desarticulação

generalizada dos transportes.

A partir da identificação dos problemas e da análise das necessidades, foi

possível conceber uma coordenação política dos programas setoriais de maneira a

integrar recursos. Essa articulação se deu inicialmente pela Casa Civil e pela

RENURB e posteriormente pela Secretaria de Finanças, na captação de recursos e

sua distribuição entre os diversos programas e projetos, de maneira integrada entre

si. O trabalho de coordenação consistia na orquestração dos diversos recursos

captados segundo as prioridades reconhecidas no plano de governo, porém de

forma a manter a coerência com as diretrizes da fonte financiadora.

A capacidade de integração de recursos e do planejamento frente às

situações possíveis na implementação dos programas só foi possível graças à

capacidade de experimentar inovações que transformaram a realidade local: o

desenvolvimento tecnológico do pré-moldado em uma escala inédita na construção

civil e na promoção de infraestrutura pública no Brasil até então. Foi justamente a

tecnologia desenvolvida que possibilitou atender adequadamente ao conjunto de

problemas referentes à falta de infraestrutura e precariedade das ocupações nos

vales da cidade.

Por fim, ficou evidente a capacidade de buscar qualidade de vida e ambiental

adequada à população; o saneamento e implantação de infraestrutura básica nos

diversos núcleos carentes da cidade, integrados à ampliação de acessibilidade e do

Page 77: um projeto urbano com programa político municipal

75

número de equipamentos públicos contribuíram tanto para a qualidade de vida da

população quanto para o saneamento ambiental, principalmente pela diretriz de

consolidar as ocupações de baixa renda, qualificando-as, quanto pela possibilidade

de adensá-las enquanto se realizava uma maior fiscalização contra a ocupação de

áreas novas.

Ainda com vistas para a experiência de Salvador, vale ressaltar a importância

de se fomentar uma cultura do planejamento, constituída por uma prática constante

de estudos e proposições objetivas sobre a realidade espacial do município de

maneira que a Administração possua sempre um corpo atualizado de peças dessa

natureza que possa embasar programas e projetos urbanos – e que configurem para

a sociedade organizada um conjunto de reflexões sobre o qual se pode

sistematicamente negociar o desenvolvimento do município.

Constatado o cenário anterior à gestão de Kertész enquanto um momento

especificamente favorável ao desenvolvimento do planejamento, ao menos pelo viés

tecnicista dominante em nível federal, foi possível absorver orientações bem

embasadas sobre a implementação de programas setoriais específicos para a

cidade, com destaque para o Programa de Transporte Coletivo (TRANSCOL).

As diretrizes básicas para o planejamento indicam a necessidade de se atuar

prevendo cenários possíveis, com base em hipóteses de desenvolvimento e com o

compromisso de sugerir a continuidade do processo de planejamento e de

implementação de seus programas. Novamente, apenas a pactuação social e o

embasamento técnico e teórico podem contribuir para que tais objetivos aconteçam,

dentro de um cenário de participação, reivindicação popular e balizamento técnico

da gestão pública. Relativamente, essa conjuntura estava esboçada no processo de

democratização que se anunciava à época do 1º. Governo de Kertész.

Page 78: um projeto urbano com programa político municipal

76

Resumidamente, paralelo ao contexto de produção continuada de estudos e

propostas de planejamento e de constante estímulo à participação civil através de

canais de consulta e decisão, é importante ressaltar um esboço de metodologia para

proposição de políticas públicas locais baseadas nos seguintes princípios:

racionalidade das proposições, economia de recursos e pensamento voltado para o

futuro; coordenação sistemática dos recursos através do foco nos agentes das

intervenções e no modo de realização54. Por esse conjunto de aspectos, a

administração de Kertész abrange largamente em seus programas e projetos uma

visão sistêmica e integrada das intervenções, no que pesem a coordenação dos

recursos, os agentes e o modo de implementação, através dos projetos da

RENURB.

Atualizando os tópicos de metodologia de planejamento incorporadas ao

contexto contemporâneo, principalmente após a descentralização na distribuição de

recursos tributários e de poder político, com a promulgação da Constituição de 1988

e, posteriormente, com a criação do Estatuto das Cidades, em 2001, pode-se

reconhecer a ampliação dos instrumentos disponíveis. A implementação das

diretrizes identificadas de forma mais ou menos embrionária na gestão de Kertész

foi facilitada pela disponibilidade de um novo marco legal para o planejamento das

cidades. O legado da experiência do seu governo se constitui principalmente pela

simbiose em que se expressaram a elaboração técnica, através da atuação de

excelência na pesquisa de Lelé com pré-moldados e da concepção integrada de

sociedade e cultura explicitadas por Roberto Pinho. Ainda que a abertura de

possibilidades com os novos instrumentos possam ter tornado esse tipo de

experimentação mais complexo, a referência que essa gestão constitui inspira uma

54 Peter SCHWEIZER, op. cit., p. 2.

Page 79: um projeto urbano com programa político municipal

77

revisão contemporânea da superação de modelos estanques de planejamento e

intervenção e que se reconheça de forma mais contundente a necessidade de

integração e articulação administrativa, inclusive como símbolo da necessária

integração social que a sociedade brasileira ainda não viabilizou e da qual sua

criatividade e desenvolvimento cultural irrestrito são credoras.

Page 80: um projeto urbano com programa político municipal

78

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DANTAS NETO, Paulo Fábio. Autonomia política, governabilidade e governança em Salvador. Gênese da modernidade soteropolitana: realidade e mito de uma hegemonia. In: IVO, Anete. O Poder da Cidade: limites da governança urbana. Salvador: EDUFBA, 1999.

BAHIA (ESTADO). Plano Metropolitano de Desenvolvimento – PMD 1982. Salvador: Secretaria do Planejamento, Ciência e Tecnologia (SEPLANTEC)/ Companhia de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Salvador (CONDER), 1982.

BAHIA (ESTADO). “Mário Leal Ferreira: Um pioneiro do planejamento”, Revista Bahia Invest, Salvador, SEPLAN, versão digital, s/d.

FIGUEIREDO ,Wellington Correia; WALZ, Richard George. “Medidas a favor da circulação de ônibus de Salvador”, Simpósio Internacional de Transportes Públicos, Metrô de São Paulo/UITP, documento mimeografado, 1976.

FRANCO, Ângela Maria de A. Não só de referência cultural (sobre)vive o centro de Salvador, Pelo Pelô: história, cultura e cidade. Salvador: Edufba, 1995. GIL, Gilberto ; RISÉRIO, Antonio. O poético e o político e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

IVO, Anete (org.). O poder da Cidade: limites da governaça urbana. Salvador: EDUFBA,1999.

KERTÉSZ, Mario. Centro Administrativo da Bahia. Estado da Bahia, 2a. edição, 1974.

LATORRACA, Giancarlo (org.). João Filgueiras Lima-Lelé. São Paulo: Lisboa: Blau, 2000.

LIMA, João Filgueiras. O que é ser arquiteto: memórias profissionais de Lelé (João Filgueiras Lima), em depoimento a Cynara Menezes. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2004.

Page 81: um projeto urbano com programa político municipal

79

LUZ, Sylvia Maria Sant'Anna. Evolução Urbana da Cidade de Salvador. Trabalho de graduação interdisciplinar. São Paulo: FAU USP, 1976. MARICATO, Ermínia. Metrópole na Periferia do Capitalismo, São Paulo, Hucitec, 1996.

ORMINDO, Paulo (org.), “Análise de Salvador segundo los três ejes tematicos”, relatório para o IV Seminário SIRCHAL – Sitio Internacional sobre La Revitalizacion de Centros Historicos de Ciudades de America Latina e del Caribe, Salvador, versão digital, 2000.

RISÉRIO, Antônio. Uma história da Cidade da Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2004.

SALVADOR (cidade). Mensagem enviada à Câmara Municipal pelo Prefeito Mário Kertész – Março/81. Salvador: PMS, 1981.

SAMPAIO, Consuelo Novais. 50 anos de urbanização: Salvador da Bahia no século XIX. Rio de Janeiro: Versal, 2005.

SCHWEIZER, Peter José. “Tirando o Plano Diretor da Gaveta”, Revista de Administração Municipal. jan-mar 2008, nº 256.

______. “Uma nova arquitetura das organizações para o século XXI”, texto digital, s/d.

VILLAÇA, Flávio. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Nobel/ Lincoln Institute, 1998.

WIPFLI, Mônica. Intervenções urbanas em centros históricos: Estudo de caso cidade do Salvador. Dissertação de mestrado. São Paulo: FAU USP, 2002.

WISNIK, Guilherme. Modernidade congênita. In: Arquitetura Moderna Brasileira. Londres: Phaidon, 2004.