um reporter na china - flavio alcaraz gomes
DESCRIPTION
Flavio Alcaraz GomesTRANSCRIPT
-
UUMM RREEPPRRTTEERR NNAA CCHHIINNAA
FFLLVVIIOO AALLCCAARRAAZZ GGOOMMEESS 11997766
Sobre a Digitalizao desta Obra:
Esta obra foi digitalizada para proporcionar de maneira totalmente gratuita o benefcio de sua leitura queles que no podem compr-la ou queles que necessitam de meios eletrnicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-livro ou mesmo a sua troca por qualquer contraprestao totalmente condenvel em qualquer circunstncia.
A generosidade a marca da distribuio, portanto:
Distribua este livro livremente!
Se voc tirar algum proveito desta obra, considere seriamente a possibilidade de adquirir o original.
Incentive o autor e a publicao de novas obras!
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
A longa espera
Levei quatro anos para conseguir um visto de entrada para China - e ltima hora
quase no embarco devido sabotagem russa. De onde se depreende que a guerra fria entre
as duas superpotncias comunistas chega a diablicas e tentaculares mincias, como essa
de uma delas tentar impedir que um simples jornalista de uma Provncia do Brasil conhea
o territrio da outra.
Mas comecemos pelo princpio: em novembro de 1971, pouco depois de Nixon ter
anunciado sua visita Repblica Federal da China, e levando como garantia a palavra e o
telex do representante da France Press no Rio, monsieur Franois Lara, de que a sua
Agncia em Paris me obteria em 24 horas a autorizao de viajar para Pequim - me toquei
para a Frana. Ali, o diretor da F.P., para assuntos da sia, riu na, minha cara, disse que
monsieur Lara estava completement fou, completamente louco, que a China continuava
hermeticamente fechada por sua Cortina de Bambu - e que nem eles, jornalistas franceses,
cujo governo vivia bajulando Mao e Chou, podiam l entrar - quanto mais eu, que alm de
sul-americano, possua o agravante de ser brasileiro. Assim aconselhou-me que no
perdesse tempo e voltasse para o Brasil onde, na melhor das hipteses, poderia ainda tentar
cobrar as despesas da viagem do maluco do Lara. No desisti. Naquela mesma tarde entrei
na Embaixada da China, avenue George V com minha application para Pequim. Um
chins gordinho, vestido com um traje cinza, tipo Mao, me recebeu numa sala escura,
anotou minhas pretenses e endereo e me disse que estava bem, que eu esperasse.
- Onde?
- Onde quiser.
- Quanto tempo?
E ele, sem me olhar nos olhos, e muito lentamente:
- Trs dias, trs semanas, trs meses ou trs anos. . .
Ainda no desisti. No outro dia estava em Londres, tambm na Embaixada da
China, no me lembro do nome da rua, mas sei ir l, porque fica entre a BBC e a Oxford
Street. Ali havia mais luz na sala e o (tambm) chins que me atendeu, mais magro e mais
simptico do que o outro, mas vestindo idntica roupa, perguntou se aceitava um ch,
enquanto me estendia um cigarro, de evidente origem chinesa. Depois disse que estava um
lovely day, isn't indeed, que Londres era uma cidade muito bonita, imaginava que Porto
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
Alegre tambm deveria ser - e sempre desconversando com relao ao pedido que,
devidamente preenchido, desde o princpio, insistentemente, eu lhe estendia. Por fim, com
alguma repugnncia consentiu em agarr-lo; e continuou a falar sobre o clima da
Inglaterra, ah! como seria bom se um dia Brasil e China estabelecessem relaes
diplomticas e ele fosse trabalhar em Braslia. . .
- Mas e a application? Quando terei a resposta?
A ele repetiu o mesmo que o de Paris, s que em ingls e me fixando o olhar:
- Daqui a trs dias, trs semanas, trs meses ou trs anos. . .
Esfriei. Ele sorriu, disse que eu no desesperasse, que as coisas eram assim mesmo,
pediu que aguardasse s um momentinho, cruzou uma cortina atravs da qual em seguida
voltou, com um pequeno objeto na mo:
- Tome, leve, o livro vermelho com os pensamentos de nosso grande presidente e
lder Mao-Ts-Tung. No deixe de o ler sempre, que ele s lhe trar felicidade.
- Mas e a application camarada? Quando. . .
- J lhe disse: trs. . .
Apertei-lhe a mo mole e suada e dei o fora. No hotel, meti o livro vermelho no
meio das cuecas sujas, com medo da Polcia no Rio - e no outro dia voltei para o Brasil, via
Varig, naturalmente.
Aqui, ento, chegamos ao fim do primeiro captulo de minha, por enquanto,
desventurosa novela.
J no Segundo Captulo, ao voltar do Mxico, em maio de 1972, resolvi
interromper a viagem no Chile, para ver como iam as coisas com o camarada Allende.
Encontrei Santiago, outrora uma bela, limpa, rica e pacfica cidade, virada do avesso - tal
qual, alis, vem acontecendo com Lisboa nos ltimos tempos. Num bairro perdido nos
confins, localizei a embaixada da China. Mandei que o txi ficasse esperando, bati na
porta, espiaram pelo olho mgico, levaram um tempo para me atender e, para encurtar o
episdio, a conversa foi exatamente a mesma de Paris e Londres.
- Mas companheiro, acontece que j cruzei os tais trs dias, trs semanas e trs
meses que os camaradas mandaram. . .
E o chins muito srio, pausado e em espanhol:
- Pero le hace falta an esperar los tres aos, amigo. . .
A, sim - desisti. Decididamente, no tinha condies para enfrentar a pacincia
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
oriental. E Porto Alegre, outra vez.
Terceiro Capitulo. Estando eu inocentemente na Rdio Guaba, recebo a visita de
Hans Mller, representante da Air France em Porto Alegre:
- Tenho uma surpresa para voc!
Partindo tal frase do Mller, j me imaginei sem transio tomando meu kir na
gaiola envidraada de um caf do Boul' Mich fazendo hora para comer uns certos
escargots e um determinado cordeiro, que s naquele bistrozinho ao lado da Notre Dame
sabem preparar. . .
- Viagem a Paris vista, Mller?
- Que nada, ch. Convite para visitar a China no vo inaugural da Air France! . . .
Um estalo explodiu em minha cabea e tudo se fez claro e ofuscante como um
meio-dia de vero em pleno sol: eu havia superado a ltima das provaes chinesas. Os
trs anos tinham passado. . .
Isso o que eu pensava. O pior estava por acontecer.
Quarto Captulo. Na embaixada da China, em Braslia, foram todos muito cordiais
e amistosos. O mesmo ch, o mesmo cigarro, s que desta feita dois eram meus
interlocutores, ambos falando um portugus quase perfeito. Entreguei-lhes alguns
exemplares do Correio do Povo, da Folha da Tarde e da Folha da Manh, todos sorramos,
afinal era maio, o dia em Braslia estava lindo. . .
Tomaram umas quantas notas a meu respeito, aceitaram o passaporte, pediram mais
fotos e pouco tempo depois o documento me era remetido para Porto Alegre, com o sofrido
visto. Com um pequeno detalhe apenas: eu no poderia embarcar no vo inicial da Air
France, pois o grupo j estava preenchido, mas somente em fins de setembro, o que seria
melhor ainda, conforme me esclareceu o prestativo Mller, pois eu pegaria em Pequim as
comemoraes do l de outubro, data mxima chinesa - o fino em matria de reportagem.
Disse duas ou trs vezes obrigado, Mller, acompanhei-o at a porta do elevador e comecei
a me preparar para a aventura. Por descargo de conscincia e para me atualizar na
geografia, olhei o mapa. L estava, at ento impenetrvel e misteriosa para mim, a China
Vermelha. Mas, bem ali ao seu lado, a no menos enigmtica Rssia, alis, Unio
Sovitica, como dizem ser seu verdadeiro nome. E, no caminho entre Paris e Pequim -
Moscou.
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
Ento, quem sabe - e por que no? . .
Na mesma hora telefonei para o Mller:
- Posso interromper o vo em Moscou e ficar ali uns trs-quatro dias?
- No tem problema. S que precisas o visto sovitico.
- Bom, quanto a isso no vejo dificuldades. Os russos andam to liberais. . .
- Ok. Ento pede.
Pedi. E nesse momento tem incio o
Quinto Captulo.
Pelo malote da Caldas Jnior e com uma linda carta de recomendao de amigos
comuns, os diplomatas soviticos em Braslia receberam meu passaporte. Isto foi a 5 de
setembro, me lembro bem, porque o dia do aniversrio da minha filha. Acontece - e ali
que comea o drama - que o passaporte j estava carimbado com o visto da China e sua
data nica e autorizada para cruzar a fronteira: 26 de setembro. Com vinte dias pela frente,
nunca imaginei que pudesse haver qualquer complicao; e comecei a me preparar para
uma viagem que me proporcionaria uma viso das duas mes do comunismo internacional.
Pura ingenuidade, santa boa f. Os dias foram passando, e nada. J estava na antevspera
da data fatdica - e os russos, moita. Foi ento que, assustado com a demora, telefonei para
o Aldo Magalhes, nosso representante em Braslia, para que ele informasse embaixada
sovitica que eu tinha desistido de visitar a Rssia e que, pelo primeiro malote, mandasse
de volta meu passaporte. No dia seguinte o telex da Caldas Jnior taquetaqueou o seguinte:
- Aqui Aldo. Quero falar com Flvio.
- OK, pode falar.
- Olha, a coisa est difcil. Depois que comuniquei a deciso de no visitares a
Rssia, o Valentim no me permitiu mais contato com ele. No atende telefone e no me
recebeu em duas visitas que fiz embaixada, onde inclusive deixei um bilhete pessoal para
ele. Hoje enviei mensagem pelo telex e continuo insistindo pelo telefone. Estou apreensivo
com isso, pois entendo que deveria mandar-te o passaporte hoje.
- Tenho que viajar sexta-feira. Se no, perco o avio. Que diabo! Eles no tm o
direito de reter o meu passaporte!
- Eu tambm acho. Penso que seria interessante tu chamares agora o telex e reforar
meu pedido. Eu marquei, inclusive, quatro horas como limite para me colocarem o
passaporte disposio, e estou vendo a coisa preta.
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
- Ok. Vou passar o telex. Como , afinal, todo o nome desse Valentim?
- Valentim Aleshim. Olha, ele me disse que sexta-feira estaria a em Porto
Alegre, mas ponderei-lhe que no poderamos esperar at l. E nunca mais consegui falar
com o homem.
- Grato, Aldo. Vou agir.
Agi. Em seguida, desci para o telex e liguei para Braslia:
- Ateno, Aldo. Acabei de falar com o senhor Valentim pelo telefone. Ele me
prometeu que vai devolver o passaporte. bom que fiques de olho nisso, caso contrrio
capaz de haver extravio ou coisa que o valha, tu sabes como so esses caras, o peito deles,
tentarem fazer isso com um brasileiro; e no Brasil. Imagina s o que no praticam l na
democracia deles. Vou ficar aguardando o resultado das tuas gestes aqui mesmo no telex.
Passam cinco minutos. Dez. Uma hora. Tudo mais longo, arrastado e agoniante do
que os trs dias, etc. dos chineses. Mas, de repente, a mquina estala e comea a
escrever o - uff! - happy end desta edificante novela de pacincia asitica, suspense,
emoo, persistncia, dio entre as grandes potncias comunistas e, afinal, triunfo do
mocinho:
- Amigo Flvio, mais uma vitria da democracia! O Valentim recuou em sua
prfida atitude e teu passaporte acaba de ser posto em nosso malote, seguindo hoje noite
para Porto Alegre. Boa viagem! . . .
E foi assim que, apesar de toda a solerte obstaculizao do social-comunismo revi
sionista da Unio Sovitica, estou agora apertando os cintos e no fumando, enquanto o
Boeing da Companhia de Aviao Civil da China se prepara para aterrar no aeroporto
deserto de Shangai, nesta noite crivada de estrelas vermelhas de 26 de setembro de 1975. . .
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
Shangai
No ltimo degrau da escada do avio, bem naquele que fica junto ao solo, fao uma
operao de troca-de-passo e acabo pisando com o p direito em territrio chins. So sete
e meia da noite e um calor opressivo me agride, enquanto sigo para a Polcia e para a
Alfndega. Olho em todas as direes e, na pista do aeroporto, alm do nosso, s vejo um
outro avio - um Trident de fabricao inglesa. Minha primeira impresso da China de
que estou numa terra quente, muito pouco iluminada e num aeroporto interditado. Entro no saguo do prdio, cujas caractersticas, do lado de fora, mal posso distinguir. A direita, por
detrs de um balco alto, de quase dois metros, sobressaem as cabeas - apenas - de dois rapazes. De seus
trajes, s percebo os bons verdes, com uma desproporcional estrela de plstico vermelho ao centro. Entrego-
lhes a declarao especificada de todo o dinheiro que levo, uma relao dos gravadores e mquina
fotogrfica, nmero de fitas e filmes, e o passaporte. Este somente me seria devolvido em Kwelin quase duas
semanas mais tarde, j s vsperas de deixarmos a China. Na Alfndega o exame da bagagem rpido, corts
e sumrios.
nesse momento que somos apresentados a dois dos scorts que nos acompanhariam durante todo o
tempo: o senhor Li, que mais tarde concluimos ser uma espcie de comissrio do povo, e o senhor Mi, este
falando um portugus quase perfeito s que com indisfarvel sotaque alemo. O senhor Li se manifestava
apenas em chins mas irradiava bonomia, dentro dos seus setenta quilos, socados em metro e sessenta de
altura. J o senhorr Mi era alto e esguio, e nas maneiras, na postura das mos e no ar encabulado, com que
coava os cabelos, quando se via embaraado com alguma pergunta - dava a perfeita impresso de um
seminarista dos bons tempos.
ele quem traduz as primeiras palavras - formuladas atravs de discurso solene e
secundadas por palmas dos viajantes - que o senhor Li nos desfere textualmente: - Somos
representantes da Luching-She, que a Agncia Geral de Turismo na China e queremos
dar boas vindas aos amigos brasileiros. Entre os povos do Brasil e da China existe uma
amizade tradicional, sobretudo depois do estabelecimento das relaes diplomticas entre
nossos pases, o que abriu uma nova pgina em nossa histria. Os amigos atravessaram
oceanos e montanhas e percorreram uma longa distncia para chegar China e por isso nos
sentimos muito felizes e alegres com sua presena. Estamos convencidos de que a vossa
visita vai contribuir desta feita para a promoo da amizade entre o povo brasileiro e o
chins. A cidade de Shangai que a primeira que visitaro, se localiza na zona subtropical.
Em agosto faz calor e em janeiro frio. A temperatura mdia anual de 15 graus. Shangai
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
o centro da indstria pesada chinesa, fica na confluncia dos rios Huang-Pu e Su-Zhov e
tem 11 milhes de habitantes, numa rea de 145 quilmetros quadrados. Em qualquer
momento, se tiverem alguma critica a nos fazer, que a formulem, pois nosso objetivo v-
los felizes.
Nossas malas j foram embarcadas no porta-bagagem de um nibus cinza e dentro
dele, com o motorista a buzinar incessantemente, percorremos os vinte mal iluminados
quilmetros que separam o Aeroporto de Shangai do Grande Hotel, onde ficaremos
hospedados.
O calor aumenta medida em que nos aproximamos da cidade. Ao cruzarmos os
primeiros subrbios, ele se torna gelatinoso, mido, gosmento. Diante de casas pobres e
cinzentas, gente pobre e cinzenta senta em cadeiras de vime, as mulheres com tnica e
calas compridas e os homens, em sua maioria, de short e camiseta de fsica.
Carroas transbordando de verdura e puxadas por magros cavalos desfilam nossa
frente, o motorista do nibus a buzinar cada vez mais freneticamente. Ciclistas, s
centenas, e logo aos milhares, apenas com muita relutncia, cedem passagem ao carro, que
meia hora depois nos despeja no ptio interno e despersonificado do Hotel Shangai. Um
imponente prdio de tijolos vitorianos e aparentes, construdo pelos ingleses no incio do
sculo e que foi um dos mais famosos da China, servindo de motivos a romnticas histrias
de Vicki Baun.
Shangai, desde meados do sculo passado, quando submetida fora de
canhonaos pelo imperialismo britnico, foi a grande cidade porturia e cosmopolita da
China e ainda hoje guarda traos desse seu status.
J no dia seguinte, luz do sol, vamos concluir que ela possui muito mais
caractersticas europias do que propriamente chinesa. Mas por enquanto estamos no velho
hotel, os quartos so distribudos no saguo, ns subimos primeiro, as malas vo depois.
No nos do chaves. Estas ficam em mos de vigias, um em cada andar. O meu o oitavo,
apartamento 820, com as janelas da direita para o rio Huang-Pu e as da esquerda para a
Chuan Lu, uma das mais movimentadas ruas da cidade. um quarto enorme e obsoleto, o
p direito com cerca de quatro metros de altura e com uma rea de pelo mnimo trinta
metros quadrados, o mau gosto megalmano ingls at hoje pre-Hente na China. .. As
janelas so protegidas por telas e vidro e este, mesmo fechado, no consegue deter a
infernal barulheira que vem l de baixo, seja a da buzina dos nibus (pois automveis at
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
ento no vira nenhum), seja a dos alto-falantes dos barcos que sobem e descem o rio num
desfilar intermitente de procisso. Um descomunal radiador de calefao revela que deve
fazer frio no inverno, mas em compensao, contra o calor s posso contar com um
pequeno ventilador de fabricao chinesa, sobre a mesinha de cabeceira, entre as duas
camas de solteiro postadas no quarto. Alm destas, o parco mobilirio se constitui de uma
cmoda, to fora de moda quanto os britnicos que a utilizaram; e uma secretaria. Sobre
ela, dois vidros de tinta e - o que faz com que me transporte em transio para os distantes
tempos do ginsio do Rosrio
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
Pequim noite.
Pela amostra, e se os dias subseqentes forem mantidos nesse ritmo, tenho a
impresso de que acabarei desistindo pelo caminho, falta de resistncia fsica, ou ento
tomando um verdadeiro cursilho de China. Como se ver mais adiante, temo ter sido a
segunda hiptese a que aconteceu. . .
O jantar simples, mas chins e abundante: arroz sem sal em tigelas, naturalmente,
camaro ensopado, uma espcie suspeita de nabo cozido, galinha com pimento e porco
com abacaxi. A cozinha de Shangai no das mais reputadas na China, cuja tradio de
gourmandise se concentra em Pequim e em Canto, conforme o guloso leitor ter a
oportunidade de degustar mais tarde, ao longo dessas andanas que recm iniciamos. A
ceia termina com seu prato de encerramento que, na China, sempre constitudo por uma
sopa de massa ou legumes.
Sobremesas, sentiam muito mas estavam em falta, caf no se aprecia na China,
em compensao nos servem ch verde, o primeiro de uma srie intermitente que s se
encerraria ao final da viagem. A ento, mesmo os que fumam se levantam apressadamente
para conhecer a Loja da Amizade, que fica logo ali, cruzando a ponte e o Parque e onde se
vendem artigos exclusivamente para os amigos visitantes estrangeiros, como ns.
So onze da noite e estamos voltando da Loja da Amizade, um prdio de trs
andares, sem elevador, tipo grande magazine, s que em termos modestos e chineses. Ali
h o essencial em matria de vesturio, algo de sapatos e sandlias e muito de
quinquilharias, todas de mau gosto. As antigidades dos Ming ficam para mais tarde e so
vendidas em casas especializadas, tudo sempre controlado pelo estado. na Loja da
Amizade que trocamos nossos primeiros dlares, na base de um dlar = 1,90 yuans. O
yuan, por sua vez, dividido em 100 jiaos. Um jovem operrio em incio de carreira ganha
35 yuans mensais, que o menor dos oito nveis de salrio, dentro dos quais se enquadram
todos os chineses. Importante salientar que o que mais ganha no pode ultrapassar em oito
e no mximo dez vezes o nvel do menor salrio. No h, assim, diferenas flagrantes entre
ricos (que no existem) e os pobres (que no so miserveis).
A revoluo de Mao realizou, de fato, uma igualdade que, em parte alguma do
mundo, o socialismo conseguiu. S que o nivelamento muito por baixo. Em
compensao, como se ver mais adiante, quando nos embrenharmos nos caminhos da
economia chinesa, no h desemprego, ningum passa fome e mesmo quem percebe o
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
salrio mnimo de 35 yuans (que equivale a mais ou menos Cr$ 150,00 pelo cmbio atual)
pode levar uma vida modesta, mas decente, comendo trs vezes por dia, comprando dois
traje mao por ano e indo ao seu cineminha ou sua operazinha. Nesses, bem como atravs
de todo e qualquer meio de comunicao por ele tentacularmente controlado, o governo lhe
aplica sua doutrinao poltica, subliminar ou escancaradamente.
Embolso os 190 yuans que me deram pelos cem dlares que troquei e compro por
16 um mao azul acompanhado do respectivo bon, duas camisas e dois pares de meia de
algodo. Alpargatas ou tnis (que eu precisava, pois s tinha levado roupas e calados de
inverno) que no consigo. Os chineses, inclusive os homens e mesmo depois da
revoluo cultural, continuam com ps incrivelmente pequenos, e nmeros acima de 40 so
fabricados quase que exclusivamente para os amigos visitantes estrangeiros, cujo ltimo
grupo, constitudo de hordas blgaras, havia levado justamente o meu nmero.
Entre o Parque da Loja da Amizade e o Hotel h uma ponte de ferro sobre o
Huang-Pu. So quase onze da noite, mas apesar do chins, de uma maneira geral dormir
cedo, h ainda muito movimento, principalmente de ciclistas. Sobre o balaustre da ponte,
esquerda de quem vai para o hotel, vislumbro, em meio ao escurinho, trs casais jovens,
mais agarrados um ao outro do que em suas bicicletas, postas ao lado. Mi e Li desviam
abruptamente os olhos da terrvel cena. que o sexo uma das coisas mais proibidas na
China. Ele deve ser refreado pela mulher at os 25 anos e, pelo homem at os 30, sob pena
de um ou outro ser considerado revisionista e, como tal, sofrer as respectivas sanes.
Todos os autores que eu li, todos os estrangeiros que visitaram ou que moram na China,
com os quais conversei so unnimes a esse respeito. O chins, tanto o homem como a
mulher, aparenta guardar a castidade at o casamento; e s se casa com licena das
autoridades competentes - no caso o Comit Revolucionrio - depois de ter cruzado a idade
mnima limite. At l, deve manter-se assexuado. Isso motivado pelo verdadeiro pavor do
governo ante a exploso demogrfica, pavor to flagrante que o obriga a uma (tambm
aparente) poltica de avestruz, a ponto de ter realizado o ltimo recenseamento do pas em
1953 e de no saber (pelo menos oficialmente) quantos habitantes tem a China. Sinlogos
criteriosos, contudo, estimam que a populao da nao chinesa, neste quase final de 1975
anda por volta dos 860-940 milhes de habitantes e que, apesar de todos os empecilhos
interpostos entre os sexos ditos opostos, o ndice de crescimento demo grfico se mantm
na assustadora ordem dos 2% anuais. A plula anticoncepcional fabricada e distribuda
macia e gratuitamente. Rdio, TV, jornais impressos ou murais, alto-falantes e Comits
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
Revolucionrios pregam violentamente o controle da natalidade (que eufemisticamente
denominam planejamento familiar). Mas assim mesmo inmeros casos de rebeldia se
verificam no s nas cidades como, principalmente, nos campos.
- O campons o principal problema - me confiou ao longo da viagem um dos
amigos chineses. E explicou:
- que eles, por uma tradio instilada pelo maldito Confcio, no param de
procriar enquanto no lhes vem um filho varo. E h casos de encontrarmos nas comunas
famlias com oito, dez e at mesmo doze filhos.
O aborto livre, estimulado e praticado gratuitamente e com anestesia acupuntural.
Apesar de tudo isso (e esta observao pessoal minha), nunca vi tanta criana em
parte alguma do mundo como na China - seja nas cidade, seja nos campos. O governo
insiste e muitas vezes apela para sanes mais ou menos violentas. Nas universidades,
quando se manifesta algum caso de amor (ou mesmo tentativa de namoro) entre dois
jovens, eles so denunciados ao Comit Revolucionrio (porque ali como em toda a China
reina o regime da vigilncia recproca - ou do dedo-duro, para falarmos bem claro) e os
responsveis, seja por mozinhas-dadas, seja por olhares furtivos, so levados ao Conselho
de Disciplina, diante do qual, se no se retratarem e prometerem nunca mais olhar um para
o outro (e muito menos se tocarem) at completar (ele) 30 anos e (ela) 25 - sero punidos
com a expulso e imediata transferncia para longnquas e separadas provncias. . . Sob o ponto de vista sexual, a China vive sob um verdadeiro regime de terror, iniciado com a
reeducao das prostitutas e dos homossexuais, que ou se converteram ou foram eliminados fisicamente; e
que prossegue ainda hoje, com interferncias, at na vida do casal j legitimamente constitudo dentro dos
mais rgidos pensamentos de Mao-Ts-Tung. Este, para ter um terceiro filho deve pedir licena ao Comit
Revolucionrio, o qual normalmente nega sua autorizao. Se o casal desobedecer a ordem, o aborto
sugerido e se no for realizado e a criana nascer, a mulher ou o homem so automaticamente separados, um
ou outro transferido para um local distante e inacessvel, somente lhes sendo concedida autorizao para se
visitarem de ano em ano, assim mesmo com a especfica e determinante ordem de no procriar.
No sexo, como em muitas coisas mais, a China contraria a natureza humana. Mas,
apesar de todo o terror repressivo, casaizinhos se tocam e se amam nessa noite clida de
Shangai, sobre a ponte de ferro do Huang-Pu, luz do luar. . .
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
Acupuntura
De repente, me dou conta e comeo rir sozinho: h quanto tempo eu no vivia essa
situao - comear a engatinhar numa terra estranha. . . So cinco da madrugada de sbado,
27 de setembro e cansei de me revirar na cama molhada de suor. Mesmo com o ventilador
virado em minha direo, sinto muito calor. H ainda o toe-toe-toe incessante dos barcos
subindo e descendo o Huang-Pu, os seus condutores berrando pelos alto-falantes portteis
presumveis ordens de afastem-se do caminho. Meto-me debaixo da ducha fria,
cuidando para no escorregar dentro da banheira suja e encardida, esfrego-me
violentamente com a toalha tambm suspeita, visto minhas blue-jeans e uma camisa de
algodo que comprei ontem por dois dlares na Loja da Amizade, em cuja frente est
escrito despudoradamente Shangai, em vermelho. Sento numa das duas poltronas do
quarto, ao lado de uma mesinha, onde abro a trmica azul decorada com motivos florais
horrorosos e despejo a gua quente num cilindro de loua, dentro do qual botei antes duas
colheres de ch de jasmim que vspera o camareiro ali havia deixado numa caixinha de
lata. Enquanto as folhas de ch vo decantando, comea a clarear. E em seguida tudo
inundado por uma das constante infernais que deveria me acompanhar por quase toda a
China: o buzinar dos nibus. Chego at um dos janeles do quarto e, o sol j despontando,
vislumbro uma cena inacreditvel. Por toda a parte, minha frente, desde a calada
defronte ao hotel at o parque do outro lado do rio, centenas, seno milhares de criaturas -
homens, mulheres e crianas - postam-se nas mais variadas posies, praticando bizarros
movimentos com as mos, os ps e os troncos. a calistenia chinesa, a ginstica praticada
diariamente - e durante um perodo que vai de meia a uma hora - pela imensa maioria da
populao, seguindo, naturalmente, os pensamentos de Mao-Ts-Tung. O curioso que
ningum os comanda, cada um improvisa ou cria seus prprios gestos - o que no deixa de
ser confortador entre um povo altamente disciplinado e certo, que no deve fazer outra
coisa seno cumprir a rigidez fsica e moral programada por seus chefes. Fico mais de hora
a assistir ao fenmeno, at telefonarem que o caf est na mesa. E quando pego o elevador
para o refeitrio do primeiro andar, no chego ainda a concluir se estou vivendo em
Esparta ou num disciplinado Colgio Jesuta dos inquisitoriais tempos. . .
O caf tipo ocidental, composto do propriamente dito ou de ch, acompanhado de
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
torradas, gelias e ovos de pato fritos com fatias de bacon. Sorvo-o sem muita gana, pois
j havia tomado trs xcaras de ch de jasmim, mas, nesse comeo de dia, no deixo de
sentir-me feliz, contente, e de certo modo integrado no pas que to gentilmente me recebe.
que poucos minutos antes, quando me preparava para descer, uma mosca (evidentemente
revisionista) entrou pela janela, fez vrias piruetas e pousou em meu nariz. No tive a
menor hesitao nem a mnima dvida me assaltou, em minha consciente e convicta
determinao - e com violenta bofetada esfacelei o repugnante inseto contra a prpria
epiderme. Ora, eu sabia que, de acordo com a severa instruo do presidente Mao, cada
chins tinha a obrigao de matar pelo menos dez deles por dia. Assim eu, mesmo como
amigo estrangeiro comeava bem o dia, com aquela morte modesta, mas sincera
homenagem Revoluo Cultural.
Cheguei mesmo a revelar o episdio a Mi, que com amplo (e amarelo) sorriso
aprovou minha colaborao e, at mesmo, a comunicou ao comissrio Li, o qual fez-me (e
Mi pressurosamente traduziu) um pequeno, porm belo, discurso de agradecimento. Dito o
que, pegamos o nibus e - ousados navegantes em meio a um mar de ciclistas rumamos
para o Hospital Hu-Chan, anexo n. 1 do Instituto de Medicina de Shangai. Depois do ch
inicial, na sala de visitas e das explicaes que sempre muito gentilmente nos ministraram
genericamente - em Shangai h 430 hospitais, com 50.000 leitos, atendidos por 13.000
mdicos - passaram a particularizar sua situao. O Hu-Chan uma das casas de sade
mais sofisticadas da cidade, especializada em neurologia, cirurgia em geral,
endocrinologia, dermatologia, alm de praticar a medicina tradicional chinesa, seja pura
seja em combinao com a ocidental. 200 mdicos e 700 funcionrios ali trabalham, mas
no em carter permanente, j que, devido a outro pensamento do presidente Mao, o centro
de gravidade da medicina deve situar-se no campo. Assim sendo, o Hospital mantm
permanentemente cerca de 25% de seu efetivo fora dos centros urbanos, atendendo os
camponeses e, inclusive, cultivando ervas que a medicina tradicional chinesa emprega com
tanta abundncia e, ao que parece, com muito bons resultados. Como h cinco mdicos
brasileiros em nosso grupo, as perguntas descem a mincias, mas quando se tornam
incmodas, geralmente so respondidas por um ah! isso ns no sabemos. No sabiam,
pois, qual a doena que mais afeta a populao, ignoravam o ndice de enfermidades
mentais, desconheciam o grau de anemia da populao e as endemias mais presentes no
pas.
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
Mas a respeito de acupuntura, sabiam quase tudo, menos, claro - e isso ningum
sabe - como funcionava, qual seu embasamento cientfico. Mas que ela agia com eficincia
pragmtica, isso logo em seguida pudemos ver, ao alto de um salo de cujo piso
sobressaiam, a uma distncia de dez metros e separadas por uma porta aberta, duas cpulas
de vidro. L em baixo, duas operaes se desenrolavam. Uma de extirpao de tumor na
tireide de uma moa de 25 anos de idade e, na outra sala, a de extrao de outro tumor, s
que no crebro de um homem gordo, cuja fisionomia no vimos, percebemos apenas sua
cabea raspada, britada por brocas e serras, at o tampo sseo cerebral ser retirado. A
menina tinha duas agulhas cravadas nas mos e era tudo. Estava descontrada, olhava para
cima, para ns; e sorria. O homem parecia um porco em matadouro, branco e flcido - e tal
impresso se acentuou ainda mais, quando, retirada parte de sua caixa craniana, uma
sangeira medonha cobriu suas feies. No pude (e muito menos os mdicos brasileiros),
perceber se ele estava dormindo ou acordado. Alguns, os mais cticos, disseram que
forosamente estava anestesiado ocidental. Mas, a no ser a pequena caixinha que
transmite uma corrente de eletricidade s agulhas acupunturais, nenhuma engenhoca
anestsica estava presente nas imediaes. No me lembro bem com quantas agulhas o
operado-cerebral ora insensibilizado, parece-me que com cinco. Ficamos ali por volta mais
de hora e no pudemos assistir o resultado das operaes. Mas, segundo nos afirmaram os
mdicos chineses (e muitos autores ocidentais confirmam), o xito da anestesia
acupuntural pelo menos igual - e em muitos casos superior - ao obtido pela anestesia
clssica praticada no Ocidente. E h, sobretudo, a grande vantagem da eliminao
completa dos acidentes operatrios e ps-operatrios provocados pela ingesto de drogas
insensibilizantes. A acupuntura, que os chineses j praticavam h mais de 4.000 anos, foi
desenvolvida depois que os comunistas tomaram conta do poder na China e tem sido um
dos fatores que mais contriburam para o desenvolvimento da medicina num pas pobre
que, graas a ela, pode mandar seus mdicos realizar operaes nas regies mais
desprovidas de recursos, usando apenas um punhado de agulhas pouco diferentes das que
os ocidentais empregam para aplicar injeo. Como esse assunto sempre me fascinou e
como j tinha lido muita coisa a respeito, crivei os mdicos chineses com o mesmo nmero
de perguntas que lhes formularam seus colegas brasileiros. De suas respostas, os leitores
podero, certamente, tirar suas prprias e- quem sabe? - definitivas concluses.
Dizem que nos confins da histria, um guerreiro que sofria de dores atrozes nas
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
costas, levou um flechao na perna e ficou com a ponta da arma ali cravada sem poder
retir-la. Quando voltou para o acampamento, a perna doa, sim, mas a dor lombar que h
tantos anos o atormentava, havia desaparecido por completo. Especulao vai, especulao
vem, sculo chega, sculo passa (nunca nos esquecendo que estamos na China, onde o
tempo no conta) e os curandeiros da poca acabaram por concluir que uma picada, numa
determinada parte do corpo podia fazer eliminar a dor em outra regio. E assim, sempre
numa evoluo muito lenta e paciente, foram substituindo as agulhas de slex pelas de
osso, mais tarde pelas de bronze, ferro - at chegarmos ao estgio atual das de ao. As
quais, mais recentemente ainda, passaram a ter a cabea cobreada. que as agulhas de
acupuntura para anestesiar, devem ser constantemente viradas, durante todo o tempo da
operao. Para evitar tal trabalheira, os modernos cientistas chineses decidiram aplicar em
cada agulha uma diminuta corrente eltrica contnua, fornecida por quatro pilhas comuns,
dessas que se usam em rdios transistores, passando a eletricidade a fazer o mesmo efeito
da anterior manipulao. Assim, com um custo praticamente zero, a medicina chinesa
anestesia pacientes das mais melindrosas operaes, inclusive as de corao extra
corpreas. Para um pas pobre e doente, fcil depreender-se o benefcio que tal
proporcionou. Desde a Revoluo de 1949 para c (e essa estatstica, sim, eles sabem e
revelam), mais de um milho de operaes por acupuntura foram realizadas com sucesso
superior a 90%. Quase todas as partes do corpo humano podem ser insensibilizadas, com
exceo de algumas zonas no ventre profundo. Assim mesmo todas as intervenes
ginecolgicas so realizadas com acupuntura, sem que a paciente sinta qualquer espcie de
dor. A acupuntura (do latim acus = agulha; punctura = picada) - que como quase toda a
medicina tradicional foi semi-esquecida desde que os ocidentais comearam a dominar a
China - foi revivida por Mao-Ts-Tung e seus companheiros, durante a guerra que
moveram a Chiang Kai-Shek, por razes principalmente objetivas e pragmticas.
Escondendo-se nas montanhas, sem recursos, sem medicamentos e sem anestsicos, e com
centenas e s vezes milhares de soldados feridos, Mao vislumbrou na acupuntura e nas
ervas o nico remdio para os males fsicos de seus guerreiros.
E a cincia (ou arte? ou mistrio? ou bruxaria?) da acupuntura, juntamente com o
tambm ressuscitado emprego das ervas medicinais para a cura de doenas e de feridas,
desempenhou um papel muito mais importante do que se possa imaginar para a vitria
militar do comunismo na China.
Atualmente (e sempre por ordem do governo) a acupuntura uma das pesquisas
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
mdicas prioritrias na China. S que at agora, ningum sabe como funciona. Mas
funciona.
Por enquanto (e sabe l Deus at quando) h apenas teorias sobre a maneira como
as agulhas inibem a dor no corpo humano. Dessas, a em maior voga de que o homem
(como de resto todo o universo) regido por dois princpios, um passivo e outro ativo. O
ativo o Yang, que representa o dia, a luz, o vero, o calor, o seco, o exterior, o homem e o
trabalho. O outro, o passivo, o Yin, que traduz a noite, a escurido, o inverno, o frio, a
umidade, o interior, a mulher e o descanso. O rompimento do equilbrio entre o Yang e o
Yin, no caso especfico do corpo humano, que provoca as doenas. Essas, sempre
segundo os filsofos acupunturistas chineses, podem ser combatidas (como a medicina
ocidental o faz), com drogas; mas a os mdicos apenas estaro destruindo
momentaneamente um hspede indesejvel (no caso um vrus, um micrbio ou um bacilo),
ao passo que a porta de entrada para tais inimigos - com o rompimento entre nossos
princpios ativos e passivos - continua aberta e qualquer um deles,- mais cedo ou mais
tarde, por ali poder entrar. .. Ora, a acupuntura restabelece (eles no sabem como) o to
desejado equilbrio, fazendo com que novamente o Yang e o Yin se reconciliem e o ser
humano se livre de seus males. . .
- Isso no est parecendo um pouco demais conto da Carochinha, Mi?
Mi no sabe traduzir a Carochinha, mas transmite ao mdico- o significado da
pergunta. Samos agora da sala das cpulas sob as quais as operaes prosseguem e
estamos tomando ch (de jasmim), fumando cigarros chineses conversando com trs
mdicos, mais dois membros do Comit Revolucionrio do Hospital, tudo supervisionado
pelo delegado do Comit do Partido Comunista.
Os mdicos respondem que, incrementado como foi pelo governo, o estudo da
acupuntura progrediu muito, mas sempre no terreno emprico. Atualmente j foram
detectados, catalogados e so manipulados 361 pontos nevrlgicos, cada um
insensibilizando uma regio do organismo. Em casos de emergncia (como o o da
preparao dos mdicos de ps-descalos - que por sinal, juntamente com a medicina
tradicional chinesa, merecero um captulo parte nessas histrias) pode-se formar um
acupunturista em at cem dias, em cujo perodo ele chega a conhecer os pontos
elementares. Como regra geral, o estudo e a preparao de um acupunturista competente
pode estender-se de um a dez anos. As primeiras lies so de anatomia-neurolgica em
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
bonecos, onde os pontos so assinalados em preto e vermelho, dependendo de sua
importncia. Depois, nas experincias prticas, o manequim coberto de cera e o estudante
deve aplicar as agulhas exatamente nos locais que lhe forem sendo indicados. A percia dos
acupunturistas diablica e dificilmente erram a pontaria. Uma vez espetadas as agulhas,
quinze minutos mais tarde, a rea dolorida (ou a ser insensibilizada) est completamente
isolada. A prova disso eu fui ter mais tarde quando, no Hospital da cidade de Chang-Sha,
juntamente com um mdico brasileiro fui crivado de agulhas, as quais, se bem que
doessem em sua aplicao, eliminaram por completo no s as dores que me afligiam (ah!
quase todas!) bem como uma insnia que me perseguia desde que desembarquei na China.
- Mas isso no se trata de sugesto, doutor? - quer saber um dos Santos Toms
brasileiros. Ou, quem sabe, de hipnose?
A pergunta feita em francs que o chins entende e responde sem hesitar:
- No acredito. verdade que o paciente preparado psicologicamente antes da
operao, ficando convicto de que todo o receio de dor do qual ele possa ser tomado (e que
no fundo no passa de mero sentimento burgus) no o deve perturbar. Que ele deve
confiar nos pensamentos do nosso grande presidente Mao-Ts-Tung e que no sentir
absolutamente nada.
- Eu no te disse que era coisa de chins; e de chins comunista? - me sussurra um
mdico do grupo, do qual j comeo a aprender o nome e a cincia.
- Olha, no sei no. Pelo que eu estou informado, eles operam criancinhas com
meses de idade e at mesmo animais - e ambos pelo que me consta (e at prova em
contrrio) ainda no esto influenciados pelo livrinho vermelho do grande lder. . .
O mdico brasileiro no se conforma:
- Doutor, a partir de que idade um ser humano pode ser sensibilizado pela
acupuntura? H, na China, casos de realizarem operaes com agulhas em animais sem
que esses sintam dor?
- Em princpio, temos operado crianas com apenas trs meses sem nenhuma
manifestao dolorosa por parte delas. E em laboratrios, ces e gatos so acupunturados e
depois at mesmo dissecados sem que demonstrem qualquer sensao.
O ch termina, a conversa tambm.
sada, o mdico carioca pede a Mi que o leve a uma farmcia e ali compra por
menos de 30 dlares, um equipamento completo de acupuntura, inclusive a caixa eltrica e
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
dez jogos com os nove tipos de agulha empregados na anestesia chinesa. Eu, mais modesto
e menos mdico, compro apenas um boneco com os 361 pontos, mais um jogo de nove
agulhas.
Total, nunca vi feitiaria sem feiticeiro - nem feiticeiro sem aprendiz. . .
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
pera de Pequim
Durante os quinze dias em que visitei a China, no tive um nico perodo de
descanso nem de intimidade comigo mesmo - ou um dia livre para compras, como as
agncias de turismo fazem constar em seus tentadores, mas nem sempre realistas,
prospectos de viagem. De manhzinha cedo at noite o bate-bate era incessante e
ininterrupto - e a ordem de nosso programa, determinada com antecedncia, foi
rigorosamente cumprida. Assim, sem percebermos, fomos sendo sub-repticiamente
minados pela mesma espcie de lavagem cerebral que dia e noite transmitida a
novecentos milhes de chineses, por todos os meios de comunicao existentes e que, sem
exceo, so manipulados pelo governo. Os veculos empregados para nos ministrar esse
verdadeiro cursilho de China eram constitudos por nosso guias, primordialmente, e em
poes menos macias, pelos livretos, catlogos e revistas que nos forneciam. Havia,
tambm, uma certa dose de udio-visual, esta felizmente de curta durao, como foi o caso
da pera de Pequim, a que assistimos na noite imediata nossa chegada no principal
Teatro de Shangai. Nenhum de nosso grupo se surpreendeu, portanto, quando certa altura
da viagem passamos a nos referir a Mao-Ts-Tung como o presidente Mao (alguns, mais
sensveis chegaram a dizer o nosso grande presidente Mao) e a Chou-en-Lai como o
camarada Chou, ou ento o glorioso Primeiro Ministro Chou. . .
Passamos a abominar os soviticos como membros da camarilha revisionista
chefiada pelo abjecto Brejnev; Kruchev se tornou sinnimo de traidor abominvel da
causa das massas socialistas, o social imperialismo russo nos pareceu muito mais
solerte e perigoso do que o imperialismo americano, este afinal em melanclico recuo no
mundo inteiro, desde que foi aplastado pelo herico povo do Vietn do Norte, nosso
amigo e nosso irmo.
Ao fim da primeira semana de viagem, muitos achavam at agradvel o zurrar dos
alto-falantes que subiam aos nossos quartos, outros acreditavam cmodo, espartano e
edificante no ter nenhuma bebida gelada ou ar condicionado e dormir imersos em nuvens
de mosquito. Mas vi a coisa ficar feia mesmo e que estava na hora de acordar quando,
depois de uma visita a uma fbrica, e sabedor que os chefes de servio pediam que seus
salrios fossem rebaixados e se igualassem aos dos subalternos para apressarmos o
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
socialismo e diminuirmos a diferena entre as classes - um bem sucedido corretor de
imveis no Rio de Janeiro, tido at ento como o mais reacionrio dentre ns, disse que
estava certo, que era aquilo mesmo e que, quando chegssemos ao Brasil, deveramos
proceder da mesma forma.
- Mas qual a tua Michel? ests ficando louco? - atirei-lhe com veemncia e cheio
de medo que sua argumentao alucinada chegasse aos ouvidos do meu patro, l na
longnqua Porto Alegre. . .
- Louco nada, seu. V s quem mais feliz: eles ou ns? Todos certinhos,
vestidinhos iguais, comendo a mesma coisa, lendo o mesmo livrinho vermelhinho,
ganhando parelho, dormindo e acordando hora exata, sem ter que gastar com psicanalista
(que aqui no h), sem se preocupar em pagar imposto de renda (que aqui no existe), sem
se importar com o aumento da gasolina (que todos andam de bicicleta), sem temer
resfriado (que aqui no tem gelo), sem ter ressaca (que no se encontra usque nem de
contrabando), sem ter que fazer dieta (que a comida toda contadinha), sem. .. A esta
altura e j cercado por um considervel grupo de patrcios, felizmente ofendidos e
despertados de sua prpria lavagem cerebral pela sbita catarse do companheiro, Michel
salvo seguramente de um linchamento (ou tentativa de) por Mi, que se embrenhou em
nosso meio para dizer-nos, com seu inconfundvel sotaque sino-germnico, que senhorres
est na horra de irr para a perra de Pequim.
A pera de Pequim, bem como todas as representaes teatrais e televisionadas,
faz parte da bateria de instrumentos de que o governo se vale para lavar o crebro do povo.
Todas as exibies, todos os temas, todas as canes so de fundo poltico. De um lado, os
bandidos, representados pelos imperialistas, que ora tiram o plo dos japoneses, ora dos
americanos e ultimamente muito mais dos russos; e do outro os mocinhos, tendo frente
um heri legendrio do exrcito vermelho, no caso o camarada-soldado Ta-Chun, que
acaba salvando os aldees ou a mocinha, perseguidos e espoliados, matando os inimigos
das massas ou, na melhor ou mais caridosa das hipteses, aplicando-lhes um tratamento de
reeducao anti-revisionista.
Entramos no recinto com o espetculo j comeado, justamente numa dessas partes
crticas. Nosso nibus tinha atrasado, to grande a multido que o cercara momentos antes
para ver os amigos estrangeiros. A custo abrimos alas e entramos numa platia formada
por mais de duas mil pessoas, em sua quase totalidade chineses. As nicas excees
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
ramos ns, um grupo de blgaros e outro que me pareceu de escandinavos. Aquela noite,
como reforo para ajudar a Mi e Li, tinha chegado de Pequim uma nova intrprete: Lu,
moa baixinha e gordinha que falava portugus quase to bem como ns (e, para ser
franco, melhor do que muitos do grupo) e que sentada em nosso meio ia traduzindo as
cantorias.
L no palco, a mocinha, vtima das perseguies imperialista chorava, cantava e
contava em tons agudos a sua histria:
_ Sou filha de um caador que fugiu diante da perseguio dos bandidos
imperialistas e espoliadores (choro). Papai jogou-se num abismo e mame e eu nos
escondemos nessas matas. Desde ento fingi de muda e s ando com roupas de rapaz.
(choro e gestos). Espero que agora com tua presena e a do Exrcito Libertador, oh! Ta-
Chun, o sol ilumine de novo nossas montanhas, os bandidos revisionistas (e imperialistas)
sejam eliminados e eu possa me vestir de moa outra vez e voar para o alto, afim de ver o
extermnio dos inimigos das massas. (A platia explode em aplausos. Ns tambm).
Ta-Chun responde em cantos e gestos hericos, o fuzil na mo:
(Novos e histricos aplausos no princpio, meio e fim)
- Oh! pequena e desamparada Tchau-Pao! Cada uma de tuas palavras me despertou
grande indignao. Neste mundo os oprimidos tm um registro com dvidas e com saldo
(positivo). Devemos nos vingar! A dvida de sangue deve ser eliminada com sangue!
Vamos matar esses abutres e o povo se libertar, levantar a cabea e o sol aparecer por
sobre essa montanha encoberta. (hurras chineses entre os assistentes).
Daqui em diante sigamos o salvador, que o nosso grande presidente Mao, seu
Livro Vermelho e o invencvel Partido Comunista da China, esmagando os vermes scio-
imperial-capitalistas e mudando a fisionomia desses lugares. Ento os bonitos dias sero
mais bonitos ainda.
Dito o que, Ta-Chun e seus soldados saem em perseguio da camarilha
revisionista inimiga que debanda desordenadamente, deixando mortos e feridos a estertorar
pelo palco inteiro. No deu para ver se Ta-Chun chegou a casar com Tchau-Pao porque o
entusiasmo foi to grande na platia, toda ela de p, batendo palmas e vibrando gritos de
aplauso - que perdi a viso do palco e dos acontecimentos. Mas tudo me leva a crer que
sim, que se casaram e que foram felizes para sempre, mesmo porque Tchau-Pao aparentava
muito mais do que vinte e cinco anos e Ta-Chun tinha ares de quarento, o que, de acordo
com o pensamento do grande presidente Mao autorizaria o enlace. Desde que, claro,
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
prometessem no procriar mais do que dois filhos.
Aquela noite assistimos a um pot-pourri dos principais trechos das sete peras,
bals e representaes teatrais exibidas na China. Sim, porque todo o repertrio de bal,
pera e teatro chins se resume a este nmero: sete. Assim, a China que, antes da
Revoluo Cultural possua um repertrio autorizado de 50.000 ttulos de obras de teatro,
bal e pera, viu esse nmero reduzido para 35 em 1964 e posteriormente para sete.
Apenas sete. Esses dados so confirmados pelo parlamentar e escritor francs Alain
Peyrefitte em seu livro Quand la Chine S'veillera, aos quais acrescenta que em Shangai
no so oferecidos ao Pblico mais do que cinco peas, interpretadas ou filmadas, nos
ltimos trs anos. A assistncia aos espetculos tida como ato poltico, portanto como
uma obrigao. A quase totalidade dos filmes anteriores Revoluo Cultural foi proibida.
A criao pessoal foi abolida, pois denotava a busca de renome. As nicas sete peas de
teatro, bal ou pera admitidas na China so obras de equipe, sob a direo da camarada
Chian Ching, mulher do presidente Mao.
O povo reeducou os lderes do trabalho literrio e artstico e reorganizou os quadros
de escritores e de artistas. O nmero total desses, antes da Revoluo Cultural, se elevava a
duzentos mil.
De onde se depreende que, de fato, se tratou de uma revoluo cultural. Sem dvida
nenhuma.
O que acontece na pera, se repete na televiso (que opera geralmente apenas trs
horas por dia, das 18,30 s 21,30h), com exceo dos domingos, quando h um horrio
infantil matutino. Os mesmos temas, as mesmas histrias, as mesmas mensagens. H casos
de certos filmes ou tapes que so repetidos, durante mais de ano, semanalmente e no
mesmo horrio - e que, por incrvel que parea, continuam atraindo os telespectadores que
se concentram diante dos 250.000 aparelhos de TV, que existem em todo o territrio
chins. A quase totalidade desses televisores pertence a organizaes, cooperativas ou
grupos de famlias que moram no mesmo edifcio e que os postam em sala comum.
Noticirio no h, o que existe apenas um que outro documentrio sobre os fatos do
governo. TV a cores no vi nenhuma, a no ser na Feira Permanente de Shangai, onde
alguns prottipos nos foram exibidos.
Comecei a falar sobre os temas das peras e quase me perco no meio do assunto,
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
mas podem crer que h fundadas razes para tal. que depois da pequena e desamparada
Tchau-Pao ter sido salva pelo herico e intimorato Ta-Chau, representaram ainda a
Engenhosa Conquista da Montanha do Tigre, Nas Comunas, Graas ao Pensamento de
Mao a Primavera Chega Mais Cedo, a. . . Bem, para ser absolutamente veraz, devo
confessar que a essa altura adormeci profundamente (numa imperdovel e tpica atitude de
pequeno burgus-revisionista) e somente fui acordado pelo barulho obsceno de meus
prprios roncos, conforme est documentado em gravao que simultaneamente eu ia
fazendo, mas que de jeito nenhum botarei no ar para no ofender os amigos chineses. Os
quais, como se viu, tm grande considerao por sua pera e um enorme respeito e
obedincia pelas mensagens que ela, to artstica e engenhosamente pode, deve e sabe
transmitir.
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
Crtica e Autocrtica
Pela primeira vez, nessa madrugada de domingo, 28 de setembro, comeo a sentir
que, de fato, estou na China - e ignoro por qu. Shangai, tirando sua populao (mas o que
seria de uma cidade sem seus habitantes?) no tem muitas caractersticas asiticas. No
mximo poderia ser uma cpia amarela de muito mau gosto de uma Londres, como a
quiseram e em grande parte a construram os britnicos em fins do sculo passado e no
comeo deste.
Acordei, como na vspera, s cinco, quando o dia j se ia desenhando em meio a
cmulos cor-de-cinza. Tomei meu ch, assisti ginstica do povo l em baixo nas
caladas, jardins e no prprio leito da rua semi deserta de nibus e fiquei percorrendo o
dial de meu radiozinho de pilha, na v esperana de captar algo em ingls. A maioria dos
broadcastings emitia palavras, das quais volta e meia - e nica e exclusivamente - eu
pescava apenas um que outro som semelhante a Mao-Ts-Tung. As emisses de msica
eram raras, e ou orquestradas ou cantadas dentro do montono ritmo chins. Numa rdio
captei algo parecido com um som de ginstica, comandada ao piano, e foi tudo. Perto das
seis o sol venceu as nuvens e apareceu, e fiquei fazendo hora para o caf que abria somente
s sete. Foi a que me senti no em Shangai, mas na China; e no na China como outro pas
a conhecer, mas como uma concepo de vida e de filosofia completamente estranhas a
tudo o que eu poderia imaginar por mais que tivesse lido e ouvido falar a respeito. E passei
a imaginar que emoes no me aguardariam ainda nos quatorze dias restantes quando, a
ento, mergulharia no miolo e nas profundezas do pas. Hoje, por exemplo, devemos seguir
para Pequim, logo depois de visitarmos a Feira Industrial da Cidade, da qual iremos direto
para o aeroporto. E em Pequim, to logo desembarcarmos j nos aguarda um novo e, pelo
jeito, mais intensivo programa. s 6h30min ponho a mala no corredor, defronte porta do
quarto, como me haviam mandado, e, diante da chatice da programao das rdios, no
tenho outro recurso do que me quedar sentado a ler o Livrinho Vermelho, numa edificante
e chinesa atitude de fazer o tempo passar proveitosa e respeitosamente. . .
Num megatrio construdo pelos russos que o denominaram (antes da briga)
Palcio da Amizade Sino-Sovitico e que (depois da briga) foi rebatizado como Feira
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
Industrial Permanente de Shangai, os chineses exibem o que de melhor produzem o
artesanato e as indstrias leves e pesadas instaladas na regio. Na verdade, e pelo que vi-
mos durante quase trs horas de caminhada por seus pavilhes, h ali quase tudo que a
moderna tcnica produz, desde aparelhos eletrnicos altamente miniaturizados, at
gigantescas turbinas hidrulicas ou trmicas. Em salas que se sucedem, num crescendo de
valorizao do material apresentado, vimos trabalhos incrivelmente meticulosos em
enormes peas de marfim e de jade, brinquedos que no perdem para os japoneses e
bonecas no menos belas e perfeitas do que as espanholas. H uma seo dedicada
medicina com especial nfase acupuntura (e ali) projetam uma operao extracorprea de
corao, com anestesia feita exclusivamente pelas agulhas); outra aparelhagem cirrgica
e odontolgica, outra ainda ao equipamento pesado de rdio e TV (muito semelhante -
seno cpia - dos modelos RCA), alm de exposio de tratores, caminhes e dos dois
modelos de automvel fabricados no pas: o Shangai, calcado no Cadillac, modelo dos
anos 50 e o Bandeira Vermelha, hbrido do nosso Opala com o Dodge.
Pela manh a Feira permanece aberta s para os estrangeiros, cabendo a parte da
tarde ao povo. O recinto limpo, arejado e muito claro. Esttuas em corpo inteiro de Mao
(algumas com mais de trs metros de altura e quase todas brancas) nos acenam por toda a
parte, com seu brao direito levantado, inclusive na sala final, dedicada como sempre ao
ch e aos cigarros, onde em companhia do Mi e do comissrio Li me sento agora para a
indefectvel sesso de crtica e auto crtica. Espiando Mao (e com certeza nos espionando),
retratos de Stalin e Lenin se alam ao alto das paredes.
Como fiz durante todas as visitas que realizei na China, levei o gravador comigo. E
registrei no s a maioria das explicaes de nossos guias, durante a caminhada pela
Exposio, como tambm a conversa que, naquele momento, tive com Mi e com Li. Duas
semanas mais tarde, j s vsperas de deixar a China, quando voltvamos os trs de uma
visita principal comuna de Canto, Li disse para Mi e este me traduziu o pensamento do
chefe: o de que eu no deveria utilizar a conversa que tivramos ao final da nossa recorrida
pela Feira de Shangai. - Pode dizer a ele que no tem perigo, Mi. S a usarei para
apontamentos. Precisa e literariamente como passo a fazer agora:
- Aceita ch? - pergunta Mi.
- Obrigado. Aceito. de jasmim?
- . E cigarros?
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
Em todos os recintos de conversa h, sobre as mesas, latinhas redondas contendo
cigarros de fabricao chinesa, seja de fumo claro, seja de tabaco negro. No so maus,
apenas um pouco doces e meio enjoativos, semelhantes aos ingleses.
- No. Obrigado, Mi. Prefiro os meus, so americanos. Li, pressuroso acende o meu
e depois o seu.
- Olhe - digo eu, iniciando a crtica e autocrtica - sabe que eu acho que vocs
fumam demais? . . .
Sorrisos de ambos (depois da traduo). Ainda eu:
- Quantos cigarros fumam por dia? Quarenta? Sessenta?
- Nem tanto. Mas bastante.
- O presidente Mao fuma?
Mi hesita, consulta Li e depois responde bem baixinho:
- Sim.
- Onde vocs cultivam o tabaco?
- Em quase todas as provncias.
- Quanto custa o mao?
- Mais ou menos 50 centavos. ( caro, se levarmos em conta o baixo nvel salarial
da China, cujo mnimo no ultrapassa 35 yuans). H inmeras marcas de cigarro chins,
todas elas produzidas e comercializadas pelo Estado. Mas voltemos conversa:
- A Revoluo Cultural foi em 1966, no foi?
- Foi.
- Quantos anos durou?
Mi traduz para Li, ambos riem:
- Ainda continua. . .
- Mas aquela histria dos guardas-vermelhos ainda no acabou?
- No. At hoje existe. S que os guardas-vermelhos continuam a exercer suas
atividades nas escolas.
- Ainda h revisionistas na China?
- Sim. Mas agora ns realizamos campanhas de crtica para prevenir o
revisionismo, pois como o presidente Mao falou, temos que lutar no uma vez, no
algumas vezes, mas dezenas de vezes para manter a revoluo proletria na China. No
passado conseguimos algum progresso, mas na verdade estamos ainda na via do
desenvolvimento. Conquistamos o princpio de autonomia e de independncia, mas ao
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
mesmo tempo precisamos aproveitar as tcnicas avanadas do mundo.
- Ainda existem classes na sociedade?
- Existem classes.
- Que espcie de classes?
- Existe ainda a burguesia proletria.
E eu, em sincero tom de surpresa:
- Ainda existe? . . .
- Burgueses ainda existem. Vivem.
- Burgueses do passado, com certeza. . .
- Mas tambm nascem novos burgueses.
A o que que vocs fazem?
- Fortalecemos a ditadura do proletariado, efetuando a sua reeducao. A luta entre
o proletariado e a burguesia vai durar longo tempo, estendendo-se por todo o perodo do
socialismo.
J estamos no terceiro cilindro de ch (e como deveria eu denominar algo que no
xcara nem caneca?) e minha inquisio segue firme, Mi s respondendo depois de
consultar Li.
- Como encaram vocs a Unio Sovitica?
- Hoje em dia a Unio Sovitica j um pas social-imperialista. Antigamente era
socialista sob a direo de Lenin. Quando o elemento revi sionista e traidor Kruchev subiu
ao palco do poder, ele a transformou em uma nao imperialista e revisionista.
- E Brejnev tambm?
- Tem razo.
- Quem o mais perigoso para a China: o imperialismo dos Estados Unidos ou o
imperialismo da Rssia?
- Ns encaramos o problema no apenas da posio da China. Qualquer pas
imperialista sempre oprime e explora outros pases do terceiro mundo. Por isso, uma
nao, seja social-imperialista ou imperialista, sempre perigosa para os outros povos.
Encaro o comissrio Li e digo-lhe em portugus:
- Muito inteligente a sua resposta.
Ele ri, dando-me a perfeita impresso de que compreendeu o que eu disse. Tempos
depois, ouvindo vrias vezes a gravao, passei a desconfiar de que Li (o qual, segundo fui
informado mais tarde, tinha j acompanhado cinco visitas de grupos estrangeiros China)
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
era bem capaz de entender ou at mesmo falar algo de portugus e, por convenincia,
fazia-se de sonso. Sabe-se l, enfim, o que passa pela cabea de um chins. . . Depois da
risada ele fala com Mi e este prossegue:
- Sem dvida, na etapa atual o social imperialismo da Unio Sovitica estende mais
as mos para todo o mundo, com mais ambio de ocupar e de explorar os outros povos.
Por isso, nos dias de hoje mais perigoso do que o norte-americano.
- Por que vocs permitem a existncia de colnias estrangeiras como Hong Kong e
Macau?
- Esse problema foi produzido no passado, quando o povo no tinha direitos e era
dominado pelos senhores feudais que assinaram tratados desiguais. Tanto Hong Kong
como Macau constituem territrios inalienveis da China. Quando e de que maneira vo
ser libertados isso depende da situao. . .
O ch termina e, momentaneamente, o assunto tambm. Os amigos brasileiros
aproximam-se de ns e Li diz que est na hora de seguirmos para o aeroporto.
Em hora e meia e num Boeing da CACC trocamos o calor pegajoso de Shangai
pelo friozinho seco, temperado e reconfortante de Pequim. Fazia muito calor quando
embarcamos e as aeromoas (todas de tranas, blusas brancas, com colarinho fechado e
calas azuis de boca larga) nos entregaram um objeto preto, retilneo e no identificado. Os
mais inteligentes descobriram, depois de meticuloso exame, que no era nada de comer,
mas sim uma ventarola, para fazer s vezes de ar condicionado que o avio no possua. . .
Campos quadriculados, reas cobertas de verde at o limite do horizonte, gua por
toda a parte, depois so as nuvens a encobrir o caminho e ento j o aeroporto de Pequim.
Esse sim moderno e movimentado, com indicadores de chegada e partida e enormes fotos e
esttuas de Mao, alm de suas citaes em vermelho sobre fundo branco, de um lado em
chins, do outro em ingls.
Embarcamos num nibus, as malas vo mais tarde em outro. Nosso objetivo
largar a bagagem de mo no Hotel e seguir imediatamente para o Estdio Operrio, onde
deveremos assistir a um desfile e o final do campeonato de futebol (!) da China. Por uma
alameda asfaltada, com rvores de sentinela ao longo de todos os seus trinta quilmetros,
rumamos para o centro de Pequim, que desde o primeiro momento nos parece ser
simptica e acolhedora. Ampla, ela de fato . Somente sua praa principal - a Tien An Men
- comportaria em seu interior e juntas, a Praa Vermelha de Moscou e a Concorde de Paris.
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
Suas avenidas sofrem (ou so beneficiadas) pelo mesmo gigantismo. So todas concretadas
e, diferena de Shangai, os ciclistas no so os nicos donos das ruas, estas tambm
compartilhadas por automveis.
O movimento enorme - e todo em sentido contrrio ao que seguimos. gente que
vai para o Estdio; e j vi que vamos chegar atrasados, o que de fato acaba por acontecer.
Quando ali entramos uma hora mais tarde, o desfile das bandas, que o que nos
interessava, j tinha terminado. Estavam em campo duas equipes de futebol, uma de blusa
amarela, como a da seleo do Brasil, a outra vermelha, como a do meu Internacional. A
primeira representando Canto e o colorado, Pequim
Mas o espetculo valeu sobretudo pelo colorido da platia, em grande parte tomada
por militares e, tambm, pela viso do estdio - to grande quanto o do Internacional -
completamente tomado por uma gente de fisionomia to estranha, mas naquele momento,
to parecida com a nossa, em seu entusiasmo e fanatismo.
E naquele fim de tarde de Pequim cheguei a me convencer de que na terra, bem no
fundo mesmo, todos os homens do mundo, se quisessem, poderiam ser amigos e - quem
sabe? - at mesmo ser irmos. Pelo menos em seu interesse pelo futebol. . .
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
A nobre arte da tortura
Depois do calor amaznico de Shangai, bom caminhar, agora que so quase dez
horas da noite e o frio ameno e amigo, pela avenida Fusin Men Wai, em direo praa
Tien An Men, ciclpico centro geogrfico de Pequim e do mundo chins. O movimento
discreto e silencioso. Mesmo os nibus so mais discretos e mais silenciosos que os de
Shangai, isto , no so tomados por aquela psicose da buzina, que desde a madrugada at
noite atordoa a cidade, que deixramos no princpio da tarde. Pequim, pelo menos em seu
centro, ampla, desafogada e limpa. Ciclistas deslizam, ora isolados, ora em grupos
compactos, ora aos casais. Todos vestem a mesma roupa Mao, diferente apenas na cor: o
azul, em Pequim, o mais presente do que o cinza. No somos olhados com a mesma
curiosidade de que ramos alvo em Shangai. Pequim muito mais cosmopolita e ali o
estrangeiro deixou de ser o bicho raro e escasso no mercado. H dezenas de embaixadas
dos mais desencontrados pases do mundo e uma mdia mensal de mil turistas visita a
capital. No vemos bares nem bbados. Nunca, nesses quinze dias de China, vimos
bbados. Mais tarde, descobrimos um que outro barzinho, o povo bebendo discretamente
sua cerveja morna - e foi s. Um par de tendas abertas, vendem frutas e sementes tostadas.
A avenida est profusamente iluminada, os gigantescos retratos de Mao, Stalin, Lenin, e do
Dr. Sun Yat-Sen, proclamador da Repblica (em 1912) e Pai da Ptria (at segunda
ordem), cercados de lampadazinhas multicores, como aquelas que antigamente iluminavam
Igrejas do Brasil por ocasio das festas de seus santos.
s dez horas, certamente desligadas por um comando nico, todas as luzes se
apagam, menos as das luminrias da avenida. Os ciclistas aceleram o pedal, os transeuntes
escasseiam - e voltamos proteo e ao abrigo do Hotel das Nacionalidades.
Administrativamente a China se divide em 21 provncias, cinco regies autnomas
e dois Distritos Federais: Pequim e Shangai.
A raa predominante a han (ou seja, os chineses), cujo nome oriundo da dinastia
do mesmo nome que existiu do sculo II Antes de Cristo ao sculo II de nossa era. Os han
falam o idioma oficial do pas, que o mandarim, e se constituem aproximadamente 95%
da populao. Apesar dessa esmagadora predominncia, a China um pas de minorias
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
nacionais, cujo Instituto - um prdio cinza claro, localizado no meio de um parque todo
arborizado, comeamos agora a visitar. Depois das clssicas apresentaes, a clssica sala
de ch. Este, ao contrrio do que nos serviam em Shangai no de jasmim, mas de folhas e
colorao verde. nessa ocasio que aprendo minha segunda palavra em chins (ou han):
tch) ou seja, o nosso ch. A primeira foi ontem, ainda no aeroporto, quando descobri no
sem surpresa que obrigado ch-chi, com acento agudssimo no i, para evitar qualquer
mal-entendido.
O Sr. R e a Senhora R, representando o Comit Revolucionrio e o Comit do
Partido, nos recebem muito amveis, cercados por um grupo de gente moa fantasiada de
trajes regionais. Uns representam a Monglia, outros o Tibet, a Coria, o Miao - num total
de 54 minorias, que somam em toda China cerca de 50 milhes de habitantes. Eles se
espalham por aproximadamente 60% do territrio chins e, diferentemente dos governos
anteriores, que sistematicamente os perseguiam, os minoritrios hoje so estimulados a
falar sua prpria lngua, preservar seus costumes e usar os trajes tpicos de cada uma de
suas regies. O Instituto das Nacionalidades procura ser uma demonstrao viva e prtica
dessas intenes. Estudam ali 1.500 alunos e alunas representando todas as minorias, desde
a de maior populao, que a T'chouang, que conta dez milhes de almas at a Razakh,
com menos de mil integrantes. A primeira se localiza na regio autnoma de Guang Xi,
nas imediaes do Vietn e a ltima na Manchria. Ao contrrio do que estabelece para a
maioria do povo chins, que por bem ou por mal obrigado a limitar a natalidade, a
poltica de Mao com relao s minorias oposta: elas so estimuladas a ter mais filhos,
afim de no correr o perigo de extino. Tal poltica parece que j funcionou, tanto que a
nacionalidade de Razakh, que em 1949 estava em vias de extino, praticamente dobrou
sua populao desde que os comunistas tomaram o poder. Por esse detalhe bem podemos
deduzir quo assustador seria ou ser o nmero de chineses, caso no sejam mantidas
enrgicas medidas governamentais de planejamento familiar.
Escoltados pelos camaradas R-R e cercados por um grupo colorido de rapazes e
moas trajando as mais bizarras vestes, comeamos a caminhar pelas dependncias do
Instituto. Ali, inteiramente subvencionados pelo governo, os jovens das minorias
(escolhidos e designados por suas coletividades no caso pelo Comit Revolucionrio e pelo
do Partido) cumprem um curso universitrio no qual especializam-se no idioma han, em
msica, belas artes ou bal, em histria e formao de lideranas. Em todo o momento e
por toda a parte os professores do Instituto lhes acenam com a tenebrosa lembrana do
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
passado pr-revolucionrio, quando as minorias eram massacradas pelos senhores feudais e
pelos imperialistas estrangeiros. H um Museu no Instituto, o qual passamos a visitar, que
pouco fica a dever (e talvez at mesmo supere) o pior dos filmes de horror. Ali esto,
cuidadosamente preservados dentro de vitrinas, crnios humanos de minorias perseguidas,
que seus opressores faziam com que elas (escravizadas) usassem como tigela, juntamente
com flautas feitas de ossos e tambores de pele humana. H a mmia enegrecida de um
escravo, localizada no Tibet, juntamente com milhares de outras e a explicao para sua
preservao simples: os Lamas empregavam os corpos (muitas vezes vivos) da minoria
tibetiana, para servir de alicerce a seus palcios. . . Tal sistema, segundo nos traduzem
nossos intrpretes, foi mantido pelo Dalai Lama at bem recentemente - at 1959. H mais
ainda: a fotografia de integrantes de minorias com o nariz, as orelhas e os dedos cortados, a
cena sendo impassivelmente assistida por um circunspecto cidado ingls, ao lado dos
mandarins detentores do poder - e h, sobretudo, uma certa tortura (os detalhes e as
imagens reproduzidas), que a todos apavorou. A vtima do castigo era amarrada diante de
um caldeiro com leo fervente. A ento comprimiam-lhe a parte superior da cabea com
um pesadssimo capacete de pedra, cuja presso fazia com que os olhos do infeliz
saltassem fora das rbitas. Os carrascos recolhiam numa espcie de colhero de sopa os
dois globos oculares, mergulhavam-nos imediatamente no azeite em ebulio e com uma
percia digna do melhor acupunturista, tornavam a botar os olhos fritos em suas respectivas
cavidades, para deter a hemorragia que havia comeado. . .
Assim sendo no de se estranhar que ns, no Ocidente, aliemos o termo tortura
aos seus mais habilidosos e tradicionais cultores: os chineses. Chegaram eles a tal requinte
que a transformaram em nobre e cultivada arte. Segundo Jacques Lavier *, professor do
Instituto de Acupuntura de Formosa, em todos os tempos, a tortura foi considerada uma
necessidade na China. As inquietudes sociais contnuas obrigaram os reis a pratic-la para
manter uma paz relativa em seus estados. Os carrascos se transformavam em verdadeiros
artistas e transmitiam seus segredos de pai para filho, professor a aluno. A arte atingiu a tal
estgio de perfeio, que a vtima a ser supliciada, quando se apresentava diante de seu
carrasco, fazia questo de agradecer com antecedncia (e com toda a etiqueta e cerimonial
da poca), pelos processos artsticos a que iria ser submetida, e cujo justo valor ela iria
certamente apreciar, se bem que fosse indigna de tamanha honra.
O carrasco protestava: no, muito pelo contrrio, ele que estava envergonhado de
(*) JACQUES LAVIER Lcunpucture chinoise Veyser, paris, 1974
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
possuir to escassa cincia a colocar disposio de to distinto cliente) ao qual pedia
perdo por suas possveis insuficincia. Naturalmente, ele se esforaria ao mximo para
propiciar ao seu paciente os sofrimentos os mais atrozes e o mais demoradamente possvel,
mas a ilustre condenado ficaria por certo decepcionado por seus miserveis talentos.
Cumpridas essas formalidades, passava-se aos atos - e o infeliz era minuciosamente
esfolada, eventrado e estripado: literalmente, era dissecado vivo, ele sempre agradecendo -
aos berros lancinantes - e o carrasco sempre se desculpando, com voz bondosa e humilde.
Mdicos assistiam cerimnia, seus bons cuidados eram requisitados, no para a
diminuio das dores do suplicado, mas para que esse permanecesse vivo; e bem
consciente. No era raro ver-se um infeliz ser submetida tortura durante vrias dias
seguidos antes de conseguir deixar este baixo mundo, as carrascos se superando em seus
refinamentos. . .
Depois da almoo (que quase ningum tocou, por bvias razes), fomos ao
Zoolgico ver o smbolo animal vivo da China, o urso panda, espcie em extino, que os
chineses tratam com um conforto que no tributado nem ao mais importante amigo
estrangeiro. Em enormes gaiolas de vidro, dotadas de ar condicionado (que no vi em
nenhuma parte do pas, a no ser em residncias de diplomatas estrangeiros, e em alguns
hospitais e museus) os pandas, que so de plo branco com patas pretas, parecidos com
botas e uma espcie de mscara, tambm negra, cercando seus olhos, dormitavam sua
sesta. Eram indiferentes as centenas de visitantes, especialmente soldados e crianas que,
de to entusiasmados ante sua viso, chegavam a aplaudi-los.
Volto para o hotel. segunda-feira, 29 de setembro, so 4 h da tarde. Depois de
complicados clculos, chego concluso de so 5 h da madrugada no Brasil: est, pois, na
hora de confirmar o circuita que havia pedido ontem noite para realizar o primeiro
broadcasting para a Rdio Guaba.
Ser a primeira vez que uma emissora do Brasil falar da China - e no nego que
me sinto assustado diante da responsabilidade.
Toca para a telefonista (que no entende nem sequer ingls) e depois de quase uma
hora de agonia, acaba ligando para o Mi.
- Que deseja senhorr Gomes?
- Ora, Mi: falar para o Brasil, como j te pedi anteontem. .
- Sem dvida.
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
Os minutos, logo os quartos-de-hora e ento as horas vo passando, eu
dependurado na linha, suando frio.
- Como Mi?
- Sem dvida.
Eram seis da tarde (j s 7 da manh no Brasil) - e ainda nada.
- P Mi: no agento mais essa agonia. Vai dar para falar ou no?
- Sem dvida, confie nos pensamentos do presidente Mao.
E desliga de novo.
E foi assim, tal qual fazem certos fanticas americanos e tal qual fazia o
carismtico Sinh Badar da Jorge Amado, os quais para inspirar qualquer deciso (ou
para dela saberem antecipadamente o resultado), abriam ao acaso uma pgina da Bblia -
foi assim, que tambm ao acaso abri o maldito Livrinho Vermelho. Ca no pensamento
final do Captulo XXI:
Na China antiga, havia uma fbula intitulada O Velho Bobo que removia
montanhas. Conta que, faz muito tempo, vivia no norte da pas um ancio conhecido como
o Velho Bobo das montanhas da norte. Sua casa dava para o sul, e sua frente, obstruindo
a vista, se elevavam grandes montanhas. O Velho Bobo resolveu levar seus filhos para l e
remover a montanha com enxadas. Outro ancio, conhecido como Velho Sbio, ao v-los
trabalhando, riu e disse:
- Que loucura! absolutamente impossvel que vocs, to pouca gente, consigam
remover montanhas to grandes! . . .
O Velho Bobo respondeu:.
- Depois que eu morrer, meus filhos continuaro. Quando eles morrerem, meus
netos continuaro; e depois seus filhos, os filhos de seus filhos e assim indefinidamente.
Embora muito altas, essas montanhas no crescem; e cada pedao que delas tiramos as
torna mais pequenas. Por que, pois, no poderemos remov-las?
Tendo refutado a idia errnea do Velho Sbio, o Velho Bobo continuou
escavando, dia aps dia, sem desistir de sua inteno. Deus, comovido, enviou a terra dois
anjos, que botaram as montanhas nas costas e as removeram. Hoje, sobre o povo chins,
pesam tambm duas grandes montanhas, uma que se chama imperialismo e a outra
feudalismo. Devemos elimin-las, e preservar em nossa deciso e trabalhar sem cessar:
tambm comoveremos a Deus. Nosso Deus no outro seno as massas populares e o
Partido Comunista da China. Se eles se levantam e cavam junto conosco - por que no
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
poderemos eliminar essas montanhas?
Fecho o Livrinho Vermelho, intrigado. No mesmo momento toca o telefone:
- Al Pequim? Al Pequim?
E de novo, mais alto e mais forte:
- Al Pequim? Al Pequim? Fala rapaz! Estamos ouvindo!...
Bendito Livro Vermelho! Sbio e herico Velho Bobo! Grande Presidente Mao!
Nobre e forte e positivo seu pensamento, que removeu montanhas de obstculos e oceanos
de empecilhos entre meu quarto de hotel em Pequim e nossos transmissores de Porto
Alegre.
No outro lado do mundo, a Rdio Guaba me ouvia com som local.
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
Revisionismo
Pequim, embandeirada e enretratada, aguarda a grande data nacional, que
transcorre amanh, 19 de outubro de 1975, assinalando o 269 aniversrio da vitria
comunista e instalao da Repblica Popular da China. Delegaes de todas as provncias e
dos mais longnquos pontos do mundo - especialmente do terceiro mundo - lotam as ruas,
os parques, as praas e os museus, com o colorido de seus trajes tpicos e a alegria, muitas
vezes espalhafatosa (como o caso das delegaes da Itlia e do Mxico), de seus gestos e
das suas discusses. Para decepo de muitos, no consta no programa nenhum desfile
armado, seja de mquinas, seja de homens. Apesar disso, Pequim est literalmente tomada
por soldados do Exrcito Vermelho, todos de aspecto saudvel, todos vestindo o mesmo
uniforme verde, com duas pequenas faixas encarnadas na gola. Rarssimo o que usa
sapatos. Nenhum com botas. Em sua imensa e quase inteira totalidade, calam tnis verdes
com bicos pretos. Nenhum usa gales ou qualquer coisa que possa distinguir o soldado do
oficial e este do do general. So quase todos jovens e no tem aparncia blica.
- No te iludas com a aparncia - me diz o dr. Ren. Foi por acreditar na mesma
aparncia ablica dos vietnamitas, que os americanos perderam a guerra na Indochina.
A despeito da presena militar macia, no h qualquer vestgio de opresso
militar, como sentem aqueles que j estiveram na Rssia. Ali, segundo concluso de todos
os meus amigos, o ambiente quase irrespirvel, no s devido grosseria dos militar,
como sua prepotncia. Na China no percebi nada disso - muito pelo contrrio. O
soldado parece brotar diretamente da massa popular; e, como ela, amvel, gentil e
atencioso para com o amigo estrangeiro.
Em todo o caso, l como c, aparncias h. . .
J disse em outro captulo, que minha primeira (porm sincera) homenagem
Revoluo Cultural chinesa aconteceu em Shangai, quando ali trucidei uma mosca que
escapara dos pensamentos de Mao-Ts-Tung. Pois, em Pequim aconteceu coisa
semelhante, s que em dimenses (e colaborao) mais avantajadas. Como devssemos
permanecer quatro dias na capital, resolvi despejar o contedo de minha mala e mandar
lavar a roupa suja. Que por sinal pouco adiantou, pois voltou da lavanderia quase nas
-
Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes
mesmas condies. Ao efetuar tal operao - oh! surpresa eis que emerge, do fundo da
valise, furiosa e tonta barata, de colorao visivelmente russa, que imediatamente ruma
para o banheiro. No meio do caminho, um certeiro e valente sapatao gacho cortou a sua
execrvel carreira, aplastando-a com um estalo. Orgulhoso da faanha acomodei o cadver
dentro de um mao de cigarros vazio e, pleno de jbilo, telefonei para Mi:
- Vem c que tenho uma surpresa para ti, camarada.
Asitico e comunista convicto, mas nem por isso menos curioso do que qualquer
vivente burgus, minutos depois Mi batia delicadamente porta:
- O senhorr Gomes me