um sÉculo de sabedoria
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Aos 109 anos, a pianista Alice Herz-Sommer é testemunha viva de todo o século passado e da primeira década deste século. Ela viu de tudo: sobreviveu ao campo de concentração de Theresienstadt, esteve presente ao julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém e, ao longo de sua vida, teve contato com algumas das figuras históricas mais fascinantes de nossa época.TRANSCRIPT
UM SÉCULO DESABEDORIA
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Alice Herz, Praga, por volta de 1924
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CAROLINE STOESSINGER
PREFÁCIO DE VÁCLAV HAVEL
UM SÉCULO DE SABEDORIA
Lições da vida de Alice Herz-Sommer,a mulher que sobreviveu ao Holocausto,
cruzou as décadas e as fronteiras nacionaispara desafi ar a morte e inspirar a todos nós
Tradução:MARTHA ARGEL
HUMBERTO MOURA NETO
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Título original: A Century of Wisdom – Lessons from the Life of Alice Herz-Sommer, the World’s Oldest Living Holocaust Survivor.
Copyright © 2012 Caroline Stoessinger.Prefácio: Copyright © 2012 Espólio de Václav Havel.Publicado mediante acordo com Spiegel & Grau, um selo da The Random House Publishing Group, uma divisão da Random House, Inc.Copyright da edição brasileira © 2013 Editora Pensamento-Cultrix Ltda.Fotografi as, exceto a do frontispício, de Yuri Dojc, reproduzidas com permissão do fotógrafo.
Texto revisto segundo o novo acordo ortográfi co da língua portuguesa.
1a edição 2013.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou usada de qual-quer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópias, grava ções ou sistema de armazenamento em banco de dados, sem permissão por escrito, exceto nos casos de trechos curtos citados em resenhas críticas ou artigos de revistas.
A Editora Seoman não se responsabiliza por eventuais mudanças ocorridas nos endereços convencionais ou eletrônicos citados neste livro.
Editor: Adilson Silva RamachandraEditora de texto: Denise de C. Rocha DelelaCoordenação editorial: Roseli de S. FerrazPreparação de originais: Roseli de S. FerrazProdução editorial: Indiara Faria KayoAssistente de produção editorial: Estela A. MinasRevisão: Liliane S. M. Cajado e Vivian Miwa MatsushitaEditoração Eletrônica: Join Bureau
Seoman é um selo editorial da Pensamento-Cultrix.Direitos de tradução para o Brasil adquiridos com exclusividade pelaEDITORA PENSAMENTO-CULTRIX LTDA que se reserva apropriedade literária desta tradução.Rua Dr. Mário Vicente, 368 – 04270-000 – São Paulo – SPFone: (11) 2066-9000 – Fax: (11) 2066-9008E-mail: [email protected]://www.editoraseoman.com.brFoi feito o depósito legal.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Índices para catálogo sistemático:1. Judeus sobreviventes do Holocausto : Biografi a 940.5318092
Stoessinger, Caroline Um século de sabedoria: lições da vida de Alice Herz-Sommer, a mulher que sobreviveu aoHolocausto, cruzou as décadas e as fronteiras nacionais para desafi ar a morte e inspirar a todos nós / Caroline Stoessinger; prefácio de Václav Havel; tradução Martha Argel, Humberto Moura Neto. — São Paulo: Seoman, 2013.
Título original: A Century of Wisdom: lessons from the life of Alice Herz-Sommer, the world’s oldest living Holocaust suvivor. Bibliografi a. ISBN 978-85-98903-59-0
1. Herz-Sommer, Alice, 1903. 2. Holocausto – Judeus (1939-1945) – República Checa 3. Holo-causto – Sobreviventes – Israel – Biografi a 4. Holocausto – Sobreviventes – Londres – Biografi a5. Mulheres pianistas – Biografi a 6. Theresienstadt (Campo de concentração) I. Havel, Václav.II. Título.
12-14183 CDD-940.5318092
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Para Anna
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No longer forward nor behindI look in hope or fear,
But, grateful, take the good I fi nd,The best of now and here.
(Não mais, para diante ou para trás,Olho com esperança ou medo,
Mas, agradecido, aceito o que encontrar,O melhor do aqui e agora.)
— John Greenleaf Whittier, 1859
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Sumário
Prefácio de Václav Havel ....................................................... 11
Prelúdio ............................................................................. 13
CAPÍTULO 1: Alice e Franz Kafka ......................................... 23
Interlúdio: Um anel de esmeralda ........................................ 31
CAPÍTULO 2: Um coração tolerante ...................................... 33
CAPÍTULO 3: Descascando batatas ........................................ 45
Interlúdio: Sonhando .......................................................... 55
CAPÍTULO 4: Aulas de piano ................................................. 57
Interlúdio: Fogo.................................................................. 63
CAPÍTULO 5: Começando de novo ........................................ 65
CAPÍTULO 6: A colher de estanho ......................................... 77
CAPÍTULO 7: Nunca se é velho demais ................................. 85
Interlúdio: Sopa de galinha ................................................. 93
CAPÍTULO 8: A música era nosso alimento ........................... 99
CAPÍTULO 9: O Führer dá uma cidade aos judeus ................. 111
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CAPÍTULO 10: Instantâneos .................................................. 117
Interlúdio: Velhice .............................................................. 125
CAPÍTULO 11: O homem na cabine de vidro ........................ 129
CAPÍTULO 12: Nem uma palavra áspera ............................... 137
CAPÍTULO 13: Primeiro voo .................................................. 147
CAPÍTULO 14: Alice, a professora ......................................... 153
Interlúdio: A senhora do número seis ................................... 167
CAPÍTULO 15: Círculo de amigos ......................................... 171
Coda: Alice hoje ................................................................. 183
Nas palavras de Alice ............................................................ 193
Agradecimentos .................................................................... 197
Notas .................................................................................... 199
Bibliografi a ............................................................................ 209
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Prefácio
Václav Havel
U m Século de Sabedoria é o relato profundamente comovente
da jornada épica de uma mulher que cruzou as décadas e as
fronteiras nacionais para desafi ar a morte e inspirar a todos
nós. Tendo como pano de fundo tanto a beleza de nossa cultura
centro-europeia quanto os trágicos eventos do século XX que iso-
laram a Tchecoslováquia* do resto do mundo por quase cinquenta
anos, a vida de Alice Herz-Sommer ilustra uma profunda força ética
e espiritual. Suas memórias são nossas memórias. Por meio de seu
sofrimento recordamos nossas horas mais negras. Por seu exemplo
erguemo-nos para encontrar o melhor que temos em nós.
Aos 108 anos de idade, Alice conta com prazer histórias da vida
de grandes pensadores – de Gustav Mahler a Sigmund Freud e
Viktor Frankl, de Martin Buber a Leo Baeck – que deixaram uma
impressão indelével. Com sua música, tanto como pianista de con-
certo quanto como professora, ela infl uenciou incontáveis alunos,
seus fi lhos e seus netos, da mesma maneira como reconfortou, com
seu talento, os demais prisioneiros do campo de concentração de
* A Tchecoslováquia existiu como país desde 1918, quando declarou sua inde-pendência do Império Austro-Húngaro, até 1992. Em 1993, foi dividida, pacifi ca-mente, em dois países, a República Tcheca e a Eslováquia. [N. dos T.]
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Theresienstadt. Desde a guerra, Alice tem sido professora e aluna
em partes iguais; toda a sua vida foi dedicada à busca incansável
do conhecimento e do entendimento de quem somos como seres
humanos, como uma comunidade e como indivíduos.
Alice afi rmou: “Nunca desisto da esperança.” Em mim, esse
sentimento ressoa com grande força, pois considero que a espe-
rança está relacionada ao próprio sentimento de que a vida tem
sentido, e que, desde que acreditemos nisso, temos um motivo para
viver. O otimismo irreprimível de Alice me inspira.
Ela sobreviveu, creio eu, para que o mundo pudesse conhecer
sua história, nossa história, de verdade e beleza diante do mal. Não
apenas podemos aprender com Alice nos dias de hoje, mas também
as futuras gerações podem obter sabedoria e esperança a partir da
rica tessitura de sua vida.
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Prelúdio
C om 108 anos de idade, Alice é a sobrevivente do Holocausto
de mais idade em todo o mundo, bem como a mais idosa
pianista de concerto. Testemunha ocular de todo o século
passado e da primeira década do atual, ela viu de tudo – o melhor
e o pior da humanidade. Ela teve uma vida pautada pelo bem em
meio ao caos do mal, mas ainda costuma jogar a cabeça para trás
ao rir, com o mesmo otimismo que tinha quando criança.
A despeito dos anos que passou prisioneira no campo de con-
centração de Theresienstadt, e dos assassinatos da mãe, do marido
e de amigos pelos nazistas, Alice é vitoriosa em sua habilidade de
seguir em frente e viver cada dia no presente. Ela não perdeu
tempo com amarguras contra seus opressores e os carrascos de sua
família. Ciente de que o ódio devora a alma de quem odeia e não
de quem é odiado, Alice pondera, “Ainda agradeço pela vida. A
vida é um presente”. Um Século de Sabedoria fala da determinação
de uma mulher em, ao longo de toda a sua vida, trazer o bem ao
mundo, mesmo diante dos piores sofrimentos e pesares. Na histó-
ria de Alice, podemos encontrar lições para nossa própria vida
neste século XXI. Este é o presente que Alice nos dá.
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∗ ∗ ∗
Seu sobrenome, Herz-Sommer, signifi ca “coração do verão”, em-
bora ela tenha nascido em um dia de frio cortante, a 26 de no-
vembro de 1903, em Praga. Seus pais, Friedrich e Sofi e Herz,
batizaram-na de Alice, que signifi ca “de nobre estirpe”. O pai era
um comerciante bem-sucedido; a mãe tinha uma educação refi nada
e frequentava os círculos de artistas e escritores bem conhecidos,
incluindo Gustav Mahler, Rainer Maria Rilke, Thomas Mann, Ste-
fan Zweig e Franz Kafka.
Alice cresceu num ambiente seguro e tranquilo, em que a leitura
e a ida a concertos eram as principais formas de entretenimento; os
vizinhos ajudavam uns aos outros em caso de doença; as famílias
podiam calcular seus rendimentos e aposentadorias com muitos
anos de antecedência. Antes da Segunda Guerra Mundial, Alice
estava bem encaminhada para uma carreira proeminente como pia-
nista de concerto. O profundo amor e o enorme conhecimento
musical da mãe, assim como sua amizade com Mahler, inspiraram
Alice, que ainda muito jovem decidiu ser pianista. Alice recorda-se
de haver acompanhado a mãe numa viagem de trem até Viena, dois
dias antes de seu quarto aniversário, para ouvir Mahler na apresen-
tação de despedida de sua Segunda Sinfonia, com a Orquestra
Hofoper, em 24 de novembro de 1907. Alice contou que, após o
concerto, sua mãe conversou com o compositor e, depois, “falei um
pouquinho com Gustav Mahler”. Ela contrai os lábios e ergue os
ombros expressando seu assombro por aquele momento na pre-
sença de um gênio. É muito provável que Alice estivesse com sua
mãe quando Sofi e, juntamente com Arnold Schoenberg,* juntou-se
* Arnold Schoenberg (1874-1951), compositor austríaco considerado um dos mais importantes do século XX. Inicialmente ligado ao expressionismo alemão, criou a música dodecafônica. Denunciado pelos nazistas por sua “música degene-rada”, emigrou para os Estados Unidos em 1934. [N. dos T.]
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à multidão na estação ferroviária para acenar enquanto o trem de
Mahler lentamente deixava Viena na manhã seguinte ao concerto.
Anos mais tarde, depois de uma audição para Artur Schnabel,*
ela se convenceu de que a carreira de pianista estava a seu alcance.
Apresentou-se com frequência como solista com a Filarmônica
Tcheca, e realizou diversas gravações comerciais, recebendo rese-
nhas calorosas no Prager Tagblatt, o jornal alemão de Praga, de
Max Brod, amigo e biógrafo de Kafka.
Mas o mundo ao redor de Alice havia enlouquecido. As leis
tchecas foram abolidas. A cidade foi inundada com bandeiras na-
zistas. Alice tirou uma foto de seu fi lho aos 3 anos de idade, de pé
diante de um letreiro que dizia JUDEN EINTRITT VERBOTEN (entrada
proibida aos judeus) e impedia a entrada dele em seu parque favo-
rito. Depois da Anschluss,** em março de 1938, as irmãs de Alice e
suas famílias começaram os preparativos frenéticos para imigrar
para a Palestina; Alice e seu marido decidiram permanecer, com
seu fi lho pequeno, para cuidar da mãe já idosa, que seria uma das
primeiras pessoas a ser mandada a Theresienstadt. Instintivamente,
Alice compreendeu que nunca voltaria a ver a mãe de novo, ao
vê-la entrar, carregando com difi culdade uma mochila pesada, no
enorme edifício que os nazistas haviam confi scado para usar como
centro de recolhimento de pessoas. “Aqueles que queimam livros1
terminarão queimando também pessoas”, alertara Heinrich Heine***
um século antes. Mas a maioria das pessoas não deu crédito às
predições sombrias.
Em princípios de 1939, o que ainda restava do exército e do
governo tchecos, juntamente com o presidente do país, Edvard
* Artur Schnabel (1882-1951), austríaco, um dos mais respeitados pianistas do mundo no século XX. [N. dos T.]
** Anschluss, em alemão, “anexação”. Termo pelo qual fi cou conhecida a ocupação da Áustria pela Alemanha nazista. [N. dos T.]
*** Um dos principais poetas alemães do século XIX. Vários de seus poemas líricos foram musicados por Schubert e Schumann. [N. dos T.]
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Beneš, haviam fugido para a Inglaterra, para onde partiram trens
repletos de crianças etiquetadas com seus nomes, enviadas para
morar com desconhecidos. Todas as portas para o mundo de-
mocrático estavam sendo cerradas. A embaixada britânica estava
sendo fechada, e os estadunidenses também partiriam. Soldados
nazistas armados com metralhadoras patrulhavam as ruas. O
último trem para Londres, levando mais de trezentas crianças ju-
dias, nunca deixou a estação; a maioria dessas crianças desapare-
ceu para sempre.
Em julho de 1943, Alice e seu marido, o empresário e violinista
amador Leopold Sommer, e seu fi lho de 6 anos de idade, Raphaël,
ou Rafi ,2 foram notifi cados de que eles também estavam sendo
deportados para Theresienstadt. Alice teve a esperança de que, ali,
encontraria, Sofi e, sua mãe, mas ela já havia sido mandada mais
para o leste, muito provavelmente para Treblinka.
Theresienstadt não era um campo de concentração comum. De
fora, parecia uma pequena cidade superpovoada, onde milhares de
pessoas circulavam e onde a música era ouvida com frequência: era
a máquina de propaganda de Hitler em ação. O Führer exibia The-
resienstadt como o local onde renomados músicos, escritores e
artistas judeus, bem como os idosos, fi cariam a salvo da guerra. A
verdade era que o campo era um gueto mantido sob pesada guarda,
uma estação de passagem para Auschwitz e outros campos de ex-
termínio nazistas situados no leste europeu. No interior de seus
muros, os talentos e a elite cultural da Tchecoslováquia, Áustria,
Holanda, Dinamarca e Alemanha suportavam a fome e o frio cons-
tantes, doenças infecciosas, torturas e a morte. Dos 156.000 judeus
aprisionados em Theresienstadt, meros 17.500 sobreviveriam. En-
tre 1942 e 1945, mais de 15.000 crianças judias foram arrebanhadas
e despachadas para lá. Cerca de 100 sobreviveram, entre elas Rafi .
No entanto, ao contrário de outros campos, em Theresienstadt
havia uma pátina de vida normal. A despeito do terror e das pri-
vações, músicos ensaiavam, atores atuavam, professores davam
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conferências, artistas desenhavam em pedaços de papel e até
mesmo piadas eram contadas entre amigos. Ocasionalmente os
nazistas exigiam apresentações para fi ns de propaganda. O que eles
não perceberam foi que tais concertos ajudariam tanto os ouvintes
quanto os concertistas a sobreviver.
Foi assim para Alice Herz-Sommer, que apresentou mais de
cem programas para seus companheiros de prisão, e conseguiu
secretamente dar aulas de piano para crianças do campo.
Quando o exército soviético libertou Theresienstadt, em 8 de maio
de 1945, Alice e Rafi retornaram a Praga, e descobriram que des-
conhecidos estavam morando em seu apartamento. Dispondo de
poucos recursos, e não encontrando quase ninguém de seu pas-
sado, em 1949 Alice tomou a decisão de imigrar para Israel, onde
iria reunir-se com as irmãs e suas famílias, e com seus amigos,
incluindo Max Brod. Ela foi em frente para construir uma nova
vida, e aos 45 anos de idade, Alice aprendeu hebraico. Ela sus-
tentava a si e a Rafi dando aulas no Conservatório da Academia de
Música de Jerusalém (mais tarde rebatizada como Academia
de Música Rubin), mas apesar de prosseguir apresentando-se em
Israel, e depois, mas com pouca frequência, na Europa, Alice nunca
reviveu sua carreira internacional. Os anos perdidos no campo de
concentração, combinados com a necessidade de ganhar a vida e
cuidar do fi lho, consumiram seu tempo e energia.
Rafi tornou-se um violoncelista de sucesso e, aos 83 anos de
idade, Alice mudou outra vez de país, imigrando para Londres para
estar perto do fi lho. Sua perda mais dolorosa sobreveio alguns anos
depois, com a morte súbita dele, aos 65 anos de idade.
Encontrei Alice pela primeira vez em sua casa em Londres, quando
começava um documentário sobre sua vida. Havia anos que eu
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estava mergulhada na música do Holocausto, e sobretudo na mú-
sica do gueto de Theresienstadt, onde meu marido perdera seus
avós. Como alguém conseguia apresentar concertos ou compor
músicas em semelhantes condições? Eu ouvira falar de Alice nos
contatos com outros sobreviventes de Theresienstadt e nas longas
conversas com Joža Karas, um músico tcheco emigrado que gra-
vara muitas horas de entrevistas com Alice na década de 1970.
Em resposta ao atentado de 11 de setembro de 2001, Alice
disse-me: “Sem dúvida foi terrível, mas por que você está tão cho-
cada? O bem e o mal existem desde os tempos pré-históricos. É o
modo como lidamos com ele, a forma como respondemos, que é
importante.” Alice riu e, por mais desconcertante que aquilo fosse
para mim no momento, logo descobri que aquela risada em parti-
cular era seu modo de enfatizar a importância de suas palavras.
Repreendendo-me com suavidade, ela continuou: “Não é maravi-
lhoso? Você tomou um avião e veio até Londres em poucas horas.
Podemos, as duas, sentar e conversar. Estamos vivas. Temos a mú-
sica. Você é tão rica quanto eu porque é pianista. Ninguém pode
jamais destruir essa fortuna.” Então ela me fez lembrar de algo que
Leonard Bernstein disse depois do assassinato do presidente John
F. Kennedy. “Esta é nossa resposta à violência,3 vamos fazer música
com mais beleza, mais premência e mais paixão do que antes.”
Apesar de não ter se apresentado em público no último quarto
de século, Alice segue fi el a seu compromisso, praticando Bach e
Beethoven, Chopin e Schubert – todos de memória – ao menos
três horas por dia. Com frequência ela toca música de câmara em
casa, à noite, com os profi ssionais que vêm visitá-la. Alice troca
de idioma com facilidade e fl uência. O alemão foi sua primeira
língua e o tcheco, a segunda, e ela é articulada ainda em inglês,
francês e hebraico.
Ela vive sozinha, mas não é solitária. Ela tem tudo e nada –
tudo espiritual, mas nada material. O saldo bancário de sua mente
é inestimável. Suas posses materiais incluem apenas roupas muito
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velhas, um televisor antigo e um videocassete bem usado, algumas
fotografi as e seu indispensável piano vertical.
Apesar da face enrugada, maculada pelas manchas de idade
causadas por anos do sol de Jerusalém, o sorriso é a característica
física mais notável de Alice. Gerado em algum lugar dentro dela,
ele se irradia e explode em cálida e acolhedora alegria. O riso de
Alice é, ao mesmo tempo, inquisitivo e despido de julgamento,
refl etindo um mundo de lembranças colorido pelo amor que nasce
de anos de compreensão.
Alice se exercita diariamente com longas caminhadas, usando
tênis e movendo-se devagar e com cuidado, para evitar quedas; ela
recusa andador ou aparelho auditivo. Até recentemente, estudava
história e fi losofi a na Universidade da Terceira Idade. Ela admite
que tudo isso “parece um milagre”.
Um Século de Sabedoria é baseado nas lembranças de Alice, da
forma como ela me relatou ao longo de incontáveis horas de con-
versas e de entrevistas fi lmadas, entre 2004 e 2011.
Conhecer Alice é rever o mundo através dos olhos de uma
mulher que viveu por mais de um século. Ainda independente
atualmente, Alice tem um otimismo supremo, numa idade que
excede em muito a norma. Sua curiosidade e energia emocional
inspiram-nos a todos que temos a felicidade de conviver com ela.
Estudiosa da fi losofi a, ela tem praticado o que os fi lósofos ensina-
ram. Para ela, é de particular importância Epíteto, fi lósofo estoico
da Antiga Grécia que escreveu:“É sábio aquele4 que não se lamenta
pelas coisas que não tem, mas que se rejubila pelas que tem.”
Aprendi muito com Alice, que vê nossas fraquezas e triunfos
humanos com equanimidade e uma clareza única, a partir do ponto
privilegiado da idade avançada. O otimismo e os profundos valores
humanos que ela aprendeu na infância, e que governam o ritmo
de sua existência, nunca a abandonaram em mais de um século.
Sua história poderia ser nosso manual para uma vida muito mais
rica. Com certeza é a chave para manter a juventude.
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