uma canção de amor

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Nina achou que este seria seu último e mais tranquilo ano no Ensino Médio, e que finalmente daria algum descanso para a dedicada e idosa avó. Mas o que ela jamais imaginaria é que este ano seria tudo, menos tranquilo. Aos dezoito anos, sem grandes expectativas e com um futuro incerto Nina se ve numa intrincada trama quando se apaixona pelo estranho e solitário Daniel. Portador da sindrome de Asperger, Daniel é um jovem muito habilidoso com números e palavras, mas quase inacessivel aos estranhos. Calado, sincero e com dificuldade de se relacionar com as pessoas, vai descobrir que não apenas é dotado de grande sensibilidade, mas também de um talento único para a música. Numa história em que a mocinha é a garota mais encrenqueira e o vilão é o cara mais bonito da escola, vamos conhecer uma linda e emocionante história de amor. E o que Nina e Daniel vão descobrir nessa aventura? Um grande amor pela música e uma paixão avassaladora um pelo outro.

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Page 1: Uma Canção de Amor
Page 2: Uma Canção de Amor

Copyright © 2014 Graci Rocha

Capa: Jéssica Gomes

Revisão, Copidesque e diagramação: Graci Rocha

Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com pessoas ou acontecimentos reais é mera coincidência.

Esta obra segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.

Todos os direitos reservados pela Biblioteca Nacional.

É proibido o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte dessa obra, através de quaisquer meios sem o consentimento por escrito da

autora.

Criado no Brasil.

Page 3: Uma Canção de Amor

Uma canção de Amor

Graci Rocha

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A música está ao nosso redor. O que você precisa fazer é escutar.

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(August Rush – O som do coração)

Prólogo

Os olhos dele estavam secos. Não por falta de vontade de chorar, mas por trancarem dentro de si uma dor que ele jamais seria capaz de explicar.

Ver o caixão baixando, pouco a pouco, para dentro daquele buraco quadrado de terra, era insuportável.

A mãe, com os lindos olhos verdes envoltos por um círculo grosso vermelho e inchado, não parava de soluçar, enquanto o pai, com os cabelos castanhos desgrenhados e os olhos marejados, tentava inutilmente consolar a esposa.

Perder a vida é uma coisa aceitável, inevitável, mas perder a vida de alguém que se ama pode ser impossível de suportar.

Tanta gente em volta, amigos, parentes, desconhecidos, testemunhando a dor da família. Gente que talvez nunca tenha ouvido a linda voz de Isabela e que jamais conheceria verdadeiramente o seu temperamento rabugento. Gente que nunca faria guerra de almofadas com ela, ou ganharia um cafuné de suas mãos pequenas. Gente que nunca saberia o quanto ela podia ser impertinente quando queria alguma coisa, ou o quanto poderia ser a melhor amiga nos dias difíceis. Gente que nunca escutaria seu riso alto e desajeitado ao se entupir de brigadeiro, ou ouviria seu choro lamurioso quando ele tinha uma crise. Gente que nunca saberia quem ela realmente era. Mas todos estavam ali, prestando suas condolências e dando adeus.

Com esse pensamento perturbando sua cabeça ele tampou os ouvidos. Se ao menos pudesse deixar de ouvir a voz melodiosa da irmã cantando, talvez pudesse afastar aquela dor horrível que invadia seu peito. Mas a voz não sumia, e o canto adocicado dela ia ficando mais e mais alto. Com desespero ele começou a balançar o corpo para frente e para trás, aumentando a força sobre os ouvidos e gritando uma mistura de não com um urro animalesco.

O pai imediatamente, ao ver a crise do filho mais velho, correu para envolve-lo nos braços. Com palavras de conforto o apertou junto ao peito, deixando que sua cabeça pendesse, a testa encostasse nos botões da camisa e suas lagrimas a encharcassem. Os dois choraram juntos, pela primeira e última vez na vida.

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Um ano Depois

Um

Olhos violetas, confusão e chute bem naquele lugar = Primeiro dia de aula.

Ele tem olhos cor de violeta, num tom de lavanda brilhante que simplesmente me hipnotizaram desde o momento em que cruzaram com os meus. É claro que eu já vi esse tipo de olho antes, na televisão, no cinema com beldades que já nem sei mais se ainda estão vivas. E também, já li livros com personagens cujos olhos são violetas. Mas ver assim, cara a cara, olho no olho, é simplesmente sufocante. Aquele olhar penetrou em mim e se amarrou nas minhas entranhas. Não consigo parar de olhar.

Não, ele não disse nada, é claro. E nem eu. Mas o que eu deveria dizer? “Oi, você é novo aqui? Ah! Lindos olhos por sinal” Argh! A coisa ficou apenas no olhar, e arrisco dizer que por um segundo flamejante. Depois ele pisca uma ou duas vezes e eu posso, então, sentir o ar entrar em meus pulmões novamente, invadindo meu peito e gelando o fogo que por instantes ardeu dentro de mim. Tudo isso por causa daqueles estranhos olhos cor de lavanda brilhante. Aos poucos consigo me dar conta de tudo a minha volta. Como se os meus sentidos fossem voltando a ocupar seus lugares de direito.

Um murmúrio agitado chama minha atenção.

Com o encanto quebrado, posso rapidamente me situar. Pátio da escola, saída, primeiro dia de aula, tumulto e... Eles. Quem são eles? Os babacas dos amigos do meu ex-namorado. É sério, se existe gente mais idiota, acho que nunca serei capaz de achar. Eles são, simplesmente intragáveis e não sei como um dia, eu pude deixar aquele maníaco colocar as mãos grandes em mim. Argh! Lá estão, os mesmos de sempre, Toni, loiro de queixo grande, olhos claros e completamente sem noção; Duda, a ruiva anoréxica que se enrabichou no meu ex e nunca mais largou. Que faça bom proveito. E o Douglas, com seu óculos estiloso e seu corpo de atleta sempre bancando o charmoso para as meninas que quase nunca lhe dão atenção. Hoje em dia inteligência não é bem um adereço...

A questão não é quem são eles e sim o que estão fazendo. Como sempre, azucrinando algum aluno incapaz de se defender.

De qualquer forma preciso ficar na minha, causei confusões demais ano passado, me metendo nas investidas deles contra os alunos. Isso me causou um braço quebrado, e muitas horas na detenção. Não que um deles tenha batido em mim ou quebrado meu braço propositalmente porque antes de conseguirem eu teria quebrado o dobro. Só que são uns brutamontes tão grandes que fica impossível se chocar a qualquer um deles sem quebrar alguma coisa. Mas enfim, esse ano, prometi que não apronto mais, senão minha velha avó vai parar no hospital outra vez e isso me mataria.

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Cadu, o meu ex, é o tipo bonitão, que arranca suspiros por onde passa, olhos castanhos claros, num tom caramelo, barba cerradinha, queixo estilo Clarck Kent, e corpo de lutador de box. Mas ele é tão possessivo com tudo que se torna a pessoa mais feia do mundo. E estou falando sério, a carranca que ele está fazendo agorinha é a prova disso. Os olhos meio apertados, covinhas parecendo rugas em volta e no meio das sobrancelhas. Credo.

Dou alguns passos, olho ao redor tentando novamente esbarrar com aqueles olhos penetrantes, mas não vejo nada. Ele sumiu, evaporou. Melhor ir embora, antes que eu arrume dor de cabeça já no primeiro dia de aula do meu finalmente, último ano.

Penduro minha mochila surrada nas costas, começo a colocar meu fone de ouvido quando... ah! Uma espiadinha não vai me arranjar confusão. Prometi que não vou me meter. Só olhar.

Paro por alguns instantes para descobrir quem é a vítima desse ano. Ah! Não, ele não. Meu garoto de olhos lavanda, não. Droga.

Estranho como ele os observa, sem dizer nada, sem mover um musculo enquanto reviram sua mochila e jogam seus cadernos novinhos no chão. Todo ano é a mesma coisa, Cadu, precisa provar quem é o maioral da escola, humilhando e sacaneando os alunos novos.

Não que ele seja do tipo pequeno e indefeso, muito pelo contrário, ele tem praticamente a mesma altura e porte do Cadu. Isso nos leva a um cara de pelo menos 1,85 e um corpo quadrado de tirar o folego. Seus cabelos castanhos bagunçados caem sobre a testa em pontas que alcançam os lindos olhos violetas, formando um rosto tipo Ashton Kutcher, naquele filme Par Perfeito, onde todo mundo quer matar ele e a mulher, que por sinal passa a maior parte do tempo surtando. Bom, tirando os olhos violetas eu diria que ele é quase a imagem do Ashton. Não que eu seja fã dele, mas ninguém pode negar que é o tipo bonitão. O que nos leva ao que eu faço em seguida, sem pensar. Como sempre.

O Ashton de olhos violetas tenta pegar a mochila, das mãos do babaca do meu ex, os dois seguram firme, rapidamente transformando-a num cabo de guerra. Ao ver a confusão que está se formando, os alunos vão fazendo um círculo no entorno dos dois.

Eles nem piscam, mantendo um no campo de visão do olhar duro do outro. Não, não, não. Nem pense em se meter Nina. Não, não. Ok! Vamos acabar com essa palhaçada.

Passo pelos curiosos esbarrando e resmungando, entro no círculo e lanço um olhar furioso para o meu ex-babaca-namorado. Ele sorri charmoso e isso me dá ainda mais raiva.

— Cadu, será que você não pode passar um dia sem bancar o idiota? Larga a mochila dele.

— Ah! E você está preocupada com o esquisitão por quê? — Ele fala, especulativamente.

Page 8: Uma Canção de Amor

Dou de ombros.

— Larga a mochila. — Falo sentindo a raiva ferver dentro de mim.

— Não.

— Larga.

— Me faça largar.

Caminho na direção dele e seguro outra ponta da mochila, me tornando uma terceira ponta do cabo de guerra. Isso não poderia ficar pior.

Os olhos violetas se viram na minha direção e cintilam com o sol de final de tarde. Estremeço e engulo a saliva que desce quadrada pela minha garganta.

— Gata, acho melhor você sair fora, se não quiser que sobre pra você. — Cadu, fala, todo charme na minha direção.

Tenho vontade de lhe dar um chute bem naquele lugar, com tanta força que ele fale fininho por uma semana. Será que ele esquece quem sou eu e que esse tipo de charminho barato não cola pra cima de mim?

Enquanto fico viajando nos pensamentos loucos e tentando bolar alguma coisa que não faça muito estardalhaço e me mande pra detenção, sou pega de surpresa por um safanão na mochila. Cadu dá um puxão tão forte nela que me desequilibro e caio feito uma fruta passada, no chão. O garoto de olhos violetas reage imediatamente, dando um soco em cheio na cara do meu ex-babaca-de-nariz-quebrado-namorado. Cadu cambaleia pra trás, cobrindo o rosto com as mãos e berrando de dor.

O garoto me olha confuso e coloca as mãos sobre os ouvidos, balançando pra frente e pra trás. Essa é minha deixa. Recolho os cadernos, pego a mochila que está caída e coloco tudo desajeitadamente nas mãos do garoto de olhos lavanda. Ele me olha assustado. Ainda balançando pra frente e pra trás. Penso em sair correndo, mas eu sei que se o deixar ali, quando Cadu e seus amigos se acalmarem do susto, vão cair matando em cima dele. Puxando-o pelo braço, saímos os dois correndo.

Corremos para o estacionamento. Os gritos animados dos alunos indicam que logo estaremos rodeados pelo grupinho do meu ex-maníaco. É melhor que o meu velho golzinho ligue de primeira, do contrário estaremos fritos.

Acomodo o garoto no banco do carona e começo a rezar. O carro nojento resolve implicar comigo logo agora, não pegando nas duas primeiras tentativas. Por sorte dá a partida bem na hora que enxergo Cadu, com a mão cobrindo o nariz. Na ponta do estacionamento. Dou a ré e saio em disparada. Os gritos explodem atrás de nós.

Para um primeiro dia de aula, até que começamos bem.

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Dois

Sem conversa

Ainda exultando com o resultado da nossa fuga, olho diretamente para o meu passageiro. Ele está mais calmo, os olhos perdidos do outro lado da janela, observando a vegetação que corre rapidamente a medida que aumento nossa velocidade.

— Você vai precisar me dizer aonde você mora. — Resmungo, depois de tentar três ou quatro vezes extrair alguma palavra dele.

Seus olhos violetas se voltam diretamente para os meus, num olhar profundo que poderia facilmente estar lendo a minha alma. A sensação queima o meu estomago, e minha garganta trava imediatamente.

— Que-quer-quero dizer, se eu não souber onde você mora, não terei como te levar pra casa.

— Rua das Palmeiras, quinhentos e doze. — Ele diz, simplesmente.

A voz do meu passageiro é grave e seu rosto de Kutcher é simplesmente perfeito. Eu poderia facilmente arriscar que ele é, pelo menos três vezes mais bonito e charmoso que o astro original. Se bem que isso é meio relativo, tenho minhas dúvidas se a Mila Kunis pensaria o mesmo que eu. Ok, melhor voltar a pensar só na estrada.

— Assim fica mais fácil. — Tento parecer descontraída, quando percebo que ele me olha especulativamente.

Pronto, ele vira o rosto de novo me deixando num tremendo vácuo.

— Você está bem? — Pergunto.

Ele confirma com uma mesura de cabeça, sem voltar os olhos pra mim.

— Você deu um soco e tanto no Cadu. — Sorrio com a lembrança. — Ele vai ficar uma fera por um bom tempo. — Resmungo considerando a situação mais atentamente. — Talvez fosse melhor você ficar uns dias em casa.

Ele torna a olhar pela janela e percebo que mexe, muito lentamente a cabeça para frente e para trás, alternando entre longas e profundas insufladas de ar.

— Como é mesmo o seu nome? — Invisto novamente.

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Ele fica em silencio.

— Então, como eu te chamo?

Ele insufla o ar ponderando. Definitivamente não está com vontade de conversar. Suspiro com desanimo e dou de ombros, me concentrando na curva do arvoredo, uma das mais acentuadas da nossa região, que já provocou a morte de alguns dos jovens mais lendários aqui da cidade.

— Bom, você pode me chamar de Nina. — Digo perdendo a simpatia junto com a paciência.

Viro a esquerda e prossigo, mantendo uma velocidade tranquilizadora. Mais uma curva e logo avisto a rua das Palmeiras. Agora é só encontrar o número 512.

O céu azul claro está rasgado por linhas douradas e o calor começa a intensificar-se quando finalmente paro diante de uma casa cuja cerca branca me lembra instintivamente os filmes da seção da tarde. Dois pisos tingidos por um rosa meio salmão, ou seja lá como chamam essa cor, com janelas brancas de madeira que estão completamente escancaradas, gramado aparado e meia dúzia de vasos de flor num caminhozinho que vai desembocar direto numa porta de tom levemente mais escuro que as paredes.

— Bonito. — Falo, enquanto salto para fora do carro e o ajudo a desemperrar a porta do carona.

Ele não diz nada, mas não desce do carro quando eu finalmente consigo escancarar a porta. Fico olhando-o com atenção, mas ele nem sequer me lança um meio olhar. Seu rosto está pálido e ele segura com firmeza o cinto de segurança.

— Sem pressa. — Resmungo, indo me postar diante do portãozinho que não deve chegar nem à altura da minha cintura e bom, eu não sou muito alta, o que leva a um portão que me lembra casas de bonecas.

Espero mais alguns minutos, mas ele não se pronuncia, ficando lá parado, esfregando as mãos no cinto de segurança que ainda o prende ao meu carrinho velho. Penso por um momento no que fazer e fico com aquela cara de tacho de quem não faz ideia do que está acontecendo. É sério, esse garoto é a pessoa mais estranha que já conheci. Tudo bem, melhor fazer alguma coisa.

Bato palmas umas duas vezes antes que um vulto se projete na entrada. É uma mulher esguia, pouca coisa mais alta que eu, cabelos louros presos num coque, bem no alto da cabeça e com mechas esparsas caídas emoldurando um rosto de não mais que uns trinta e cinco anos, talvez. É uma mulher bonita, corpo forte do tipo que passa pelo menos duas horas por dia se exercitando, as mãos são finas e a cintura também, escondida por um avental e uma roupa escura muito discreta. Os olhos verdes cintilam na minha direção, quando ela sorri e caminha até mim.

— Oi! — Ela diz simplesmente, exibindo dentes brancos e alinhados.

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— Desculpe incomodar, mas eu dei carona pra um colega de escola e ele me disse que esse era o endereço dele.

Ela me lança um olhar preocupado.

— Só que nós estamos com um probleminha. — Falo, meio se jeito. — Acho que ele não consegue sair do meu carro. — Sinto minhas bochechas queimarem com a impressão da loucura que parece soar.

— Ah! Não. — Ela fala, compreendendo tudo e indo na direção do meu passageiro.

Fico observando, enquanto ela conversa com ele num quase sussurro. Ele balança o corpo pra frente e pra trás e depois de algum tempo alisando a mão da mulher, resolve sair.

O Ashtom Kutcher brasileiro passa por mim, abraçado aos livros, como um furacão. Dou de ombros e resmungo:

— Obrigado Nina. Oh! Não tem problema, foi um prazer não conversar com você.

Depois que termino minha frustrada encenação de insatisfação quanto ao que eu esperava ser a nossa única conversa, me deparo com o vulto louro me lançando um olhar divertido. Ok, me passei de novo! Fico vermelha imediatamente, mas isso parece não atingir a dona da casa de sessão da tarde. Por fim, sabendo que meu trabalho ali de boa samaritana está cumprido me afasto da mulher e vou ao meu carro.

— Você foi muito gentil ao trazer o Daniel. Obrigada.

Gentil? Mas quem é que ainda fala esse tipo de coisa???

— Não foi nada.

Bato a porta do carona do Paolo. E sim, o meu carro chama-se Paolo, porque com esse seu jeitinho barulhento e seu motorzinho esperto me lembra um italiano muito engraçado e assanhado que conheci numa feira de artesanato, há uns cinco anos, última vez que saí com os meus pais em viagem.

— Você pode entrar por um minuto? Gostaria de agradecer melhor.

— Não precisa se incomodar, além do mais eu preciso ir, a minha avó está me esperando.

— É só um minuto, por favor.

Dou de ombros e a sigo.

A casa é bem comum, mas um comum do tipo elegante, com sofá, televisão, cortinas que arrastam no chão, fotos de duas crianças numa estante perto de uma

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janelona escurecida pelo creme da cortina, e um piano cor de caramelo queimado no outro canto do cômodo. Lindo.

A mulher que arrancara o meu passageiro do velho Paolo, me lança um olhar curioso. Com certeza devo provocar algum desconforto nela, afinal, ela é elegante até no jeito de andar, enquanto eu escondo meus cabelos castanhos revoltados dentro de um capuz de um casaco marrom surrado, muito surrado. Esfrego minhas mãos com as unhas roídas pintadas de preto, tentando não parecer uma aberração completa, o que desconfio que seja impossível a essa altura. Ela me olha diretamente nos olhos e os meus olhos não são nem verdes claros como os dela, nem violetas vivos como do Ashton Brasileiro mudo Cutcher, são apenas castanhos, exatamente como o meu cabelo que logo hoje eu não lavei. Acho que até posso até ver a imagem que estou projetando na mente da loura de olhos verdes vivos, quando os meus próprios não passam de dois riscos negros, feitos por um delineador que com certeza já passou da validade. Preto, como a minha aura na maior parte do tempo. Minhas mangas compridas desajeitadas e a minha calça jeans de roqueiro, com um buraco no joelho e três rasgos na outra coxa, não devem melhorar a situação. Bom, e porque eu haveria de me preocupar logo com isso, não pedi para entrar na casa dela, foi ela quem praticamente me implorou.

— Você toma alguma coisa? Quero dizer, água, suco? — Ela interrompe meu pensamento depreciativo.

— Não obrigada, na verdade eu preciso ir.

— Queria agradecer por você ter trazido o Daniel pra casa.

— Não foi nada.

— Bom, pra mim foi alguma coisa e imagino que pra você não tenha sido uma coisa muito fácil.

Ela sorri complacente.

— Ele é meio caladão. — Falo coçando minha cabeça e deixando o capuz baixar-se sem importância.

O olhar dela se ilumina, como se esperasse que eu dissesse algo ruim e tivesse ficado contente com o meu simples ‘caladão’. Mas também o que eu poderia dizer? Ele não disse uma palavra durante o percurso inteiro.

— Você mora por aqui? — Ela pergunta, se virando para a cozinha e me indicando para segui-la.

— Umas duas quadras depois do fim da rua, a esquerda.

— Hum.

Ela mexe um molho bem vermelho na panela, com um cheiro tão delicioso que faz com que meu estomago ronque alto me deixando completamente envergonhada.

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Ela não diz absolutamente nada sobre o barulho monstruoso do meu morto de fome estomago, baixa o fogo e pega alguns pratos. Acomoda-os delicadamente sobre uma mesa de jantar redonda à direita da entrada em arco da cozinha.

— Você poderia ficar para o almoço? — Pergunta, me indicando para abrir o armário. — aqueles lisos ali por favor.

Eu pego os copos de dois em dois e os coloco na mesa, em frente a cada prato. Quatro pratos, quatro copos.

Ela me alcança uma travessa oval de vidro forrada até a boca com macarrão e eu deposito-a na mesa, sobre um descanso de madeira amarelinho. Depois ela sorri, mas não é um sorriso feliz. É triste.

— Como é mesmo o seu nome?

— Nina. — Falo imediatamente.

— Nina...

— Bom, não é exatamente Nina, é Ana Maria, mas todo mundo me conhece por Nina, desde sempre.

— Pra mim, Nina está ótimo. Eu me chamo Clarice e você já conheceu o Daniel e esse que está chegando é o meu marido Carlos. — Ela fala, apontando pela janela da cozinha para um carro que está estacionando sobre um caminhozinho feito de lajotas brancas.

— Se você não se importar eu gostaria de conversar um pouco com você, durante o almoço. — Ela me lança um olhar verde definitivo.

Vencida, dou de ombros e respiro bem fundo. Espero que pelo menos a comida seja boa.

E a comida é realmente muito boa. Sou obrigada a me servir uma segunda vez, sem fazer nenhuma cerimônia, porque está tudo tão gostoso que chega a ser um pecado não comer mais. Encho meu prato com o macarrão enfeitado com manjericão, depois despejo uma concha gigante de molho e almondegas, e pego também mais uma panqueca com um creme espesso branco que me faz derreter por dentro. Minha avó cozinhava coisas assim, quando ainda podia comer sal, agora comemos sempre frango amolecido, insosso ou alguma sopa de legumes que me embrulha o estomago. E a minha comida, bom, essa é a pior de todas. Se faço algo decente é só o sanduiche de mortadela, porque o resto, eca.

Enquanto como sem dizer muita coisa, Daniel, o Ashton Cutcher de olhos violetas, me lança esporádicos olhares, todos sempre silenciosos, enquanto o pai dele, Carlos conta animadamente sobre o seu dia de aula no conservatório. Pelo jeito, nesta casa, todos entendem de música. Clarice me explica que o marido é professor de teoria musical e que toca violino, viola (um tipo parecido com violino) e violoncelo, enquanto ela toca apenas piano e Daniel, toca piano e saxofone. Segundo ela um verdadeiro

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mistério a todos, pois ninguém na família, nem os avós ou bisavós sabiam tocar sax, nem tinham muito folego para isso. Me diz abrindo um sorriso orgulhoso. De repente seu olhar fica distante. Carlos se apressa a tocar os dedos da esposa com carinho, me deixando ainda mais curiosa.

— Isabela, a nossa filha tocava violino e cantava.

Daniel larga o garfo e cerra os dentes, fechando a mão com força envolta da faca que está na outra mão. Instintivamente eu toco em seu punho e pergunto.

— Tudo bem?

Ele congela de novo, sem sequer piscar.

— Ela faleceu recentemente, ainda é um desafio pra todos nós. — Clarice fala, por fim, levantando-se da mesa e pegando uma jarra grande de um suco grosso amarelo. Depois descubro que é de manga, natural e deliciosamente saboroso.

Depois de algum tempo em silencio, aos poucos o clima cordial vai sendo retomado. Carlos, que eu descubro ser uma terceira versão do Ashton Cutcher é tão bonito quanto o filho, só que com olhos e cabelos mais escuros que o do filho, magro de um jeito engraçado e só um pouco mais alto que Daniel. Com linhas de vida no canto dos olhos.

— Então Nina, você podia me contar como é que vocês se conheceram. — Falou, dando uma piscadela e enchendo meu copo novamente até a boca.

— Na escola. — Dou de ombros, ponderando se devo ou não explicar a confusão em que nos metemos.

Ele me olha na expectativa, curioso.

Insuflo o ar com força e resolvo abrir o bico.

— Tem um garoto na escola, o Cadu, ele tem o habito de implicar com os alunos novos.

Clarice levanta a sobrancelha, mas não de um jeito ruim e até parece divertida com a minha cara de apavorada por cogitar a hipótese de contar do socão que o filho deu no garoto mais popular da escola, e também meu ex.

Começo a me preparar para retomar a narrativa, ainda bolando as palavras que usar quando Daniel mexe o corpo desconfortavelmente. Percebo que nossos braços se encostam de leve.

— Eu bati nele. — Daniel fala, fazendo o pai engasgar com o suco e tossir alto.

— Você o quê?

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— A verdade é que o Cadu é um idiota. — Me apresso a dizer. — Eu tentei intervir, mas acabou que a mochila do Asht... Do Daniel virou um cabo de guerra, quando eu cai, ele me defendeu.

Clarice abre um sorriso deliciado, Carlos levanta as sobrancelhas, mas não está mais surpreso. Talvez apenas eu ainda esteja perdida no meio dessa família tão peculiar.

— Então vocês dois se meteram numa confusão. Pelo menos resolveram as coisas.

— Eu tenho minhas dúvidas. — Resmungo. — Com certeza o Cadu vai querer comer o nosso fígado amanhã.

— Posso fazer uma pergunta? — Clarice fala, retomando seu tom suave.

Dou de ombros, assentindo com a cabeça em seguida.

— Porque você resolveu ajudar o Daniel?

Fico em silencio por algum tempo, pois não sei mesmo o que responder. É claro que de jeito nenhum vou admitir que provavelmente eu só me meti por causa dos olhos violetas do Daniel. Penso por mais algum tempo e percebo que todos esperam a minha resposta. Por fim, depois de lançar um olhar furtivo para os olhos violetas silenciosos, digo que achei que era o certo a fazer. Satisfeitos com a minha resposta encerram o assunto ali, mas desconfio que algo tenha ficado nas entrelinhas, algo que eu, definitivamente não percebi.

Ajudo a lavar a louça e arrumo uma desculpa para ir embora. Carlos me agradece pelos feitos na escola e diz que sua casa está sempre de portas abertas para uma jovem tão corajosa e bonita como eu. Bonita, eu? Certo ele foi, como é mesmo a palavra? Gentil. Ele quis ser gentil.

Clarice me dá um abraço apertado e então me acompanha até o carro. Enquanto me ajusto no banco e tento desemperrar o cinto de segurança, ela fala.

— Eu queria fazer mais uma pergunta. Você entende a condição do Daniel?

— Condição? — Penso por algum tempo. — Acho que sim.

— Entende?

— Bom, também perdi alguém e também demorou pra superar.

Ela arqueia as sobrancelhas de um jeito único, compreendendo o que quero dizer.

— Sim, está sendo difícil, mas além disso o Daniel tem algumas dificuldades para se relacionar com as pessoas.

— Dificuldades? — Pergunto imaginando quem não tem isso hoje em dia.

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— É o que chamam de síndrome de Asperger. Você já ouviu falar?

Chacoalho a cabeça em negativa.

— É um tipo de autismo, mais leve. Sabe, ele é muito inteligente e tinha uma relação incrível com a irmã, mas com as outras pessoas é diferente.

— Ah! Por isso ele é tão quieto.

— Sabe, trazer ele até aqui, no seu carro, conseguir fazer ele entrar no seu carro, foi incrível. — Ela diz, erguendo os ombros e suspirando. — Será que posso pedir que você volte mais vezes?

Digo que sim com um aceno leve de cabeça e dou a partida. Aceno de longe, dou uma buzinada rouca e vou embora. A palavra Asperger retumbando na minha mente.

Três

Sem conversa mesmo: que saco.

Exatos três dias se passam sem que eu dê as caras na escola. É claro que não estive doente, longe disso. Minha ausência não passou de uma estratégia para manter o plano de ficar longe de encrencas. Minha esperança de que a cabeça oca do Cadu esfrie é ínfima, mas até que um pouco resiliente, um pouco perseverante eu diria. Nesses dias em que me mantive fora das vistas da gangue de mauricinhos da escola, alternei entre pesquisar sobre a tal síndrome de asperger e o tédio quase absoluto, não fosse a paciente jogatina de cartas com a minha avó, no final do dia.

O despertador é insistente e minha avó, com suas ruguinhas de setenta anos espalhadas pelo rosto amendoado é ainda mais. Me sento na cama resmungando, os cabelos revirados caem sobre os olhos. Percebo que minha avó me lança um olhar contrariado.

— Pelo Amor de Deus, menina, quem vê você desse jeito acha que esteve bem no meio de um vendaval. — Fala, sorrindo enquanto escancara as cortinas pretas do meu quarto.

— Eu não tenho culpa de ter nascido assim. — Resmungo passando as mãos de leve sobre o cabelo.

— Não reclame. — Ela fala apontando aquele dedo enrugado na minha direção. — Garanto que muitas meninas da sua idade morreriam pra ter esse seu rostinho...

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Dou uma gargalhada alta, espreguiço-me e acabo saindo da cama. Resmungo uma ou outra coisa, mas a discussão já está finalizada, hoje, preciso ir pra escola, antes que reprove por faltas já no primeiro bimestre.

Tomo o café forte que minha avó prepara na nossa minúscula cozinha. Dou um abraço, recebo um beijo e disparo ao encontro do meu querido Paolo. Partimos em disparada para a tortura de todos os dias, o campo de guerra adolescente em que sou obrigada a passar as minhas manhãs, para no fim receber um misero diploma. Saber que um dia esse banho de sangue vai acabar me conforma um pouco. Com os pensamentos ainda presos ao infernal último ano do colegial viro a direita na avenida jardins. Passo pela esquina e dou uma espiada. Não, eu não tenho nenhuma expectativa de reencontrar aquele par de olhos, só não consigo evitar. Por via das dúvidas entro na rua seguinte e sigo até perto da ponte. Tamborilando com as mãos no volante acompanho o ritmo de Hells Bells. O que posso fazer, tem um gosto exigente. Continuo meu percurso, distraída com a música quando, perto da curva sinuosa, aquela que tem o habito de levar pro além muitos dos nossos melhores amigos, o vejo.

Lá está, vestindo uma roupa que nem de longe reflete a idade. Um suéter fino, de um cinza bem escuro, calças de um tecido que só gente velha costuma usar e caminhando com pressa, abraçado aos livros, sem olhar para os lados. Buzino, mas ele não reage. Acelero um pouco e paro o Paolo a uns cem metros de onde ele vem. Desço bem rapidinho e me recosto no carro, esperando que o passo apreçado do Daniel o coloque diante de mim. Ele passa, me lança um olhar ínfimo e continua. Pensa de certo que não notei, mas eu notei. Por algum motivo da minha existência insana, que desconheço, o sigo.

— É meio longe pra ir a pé. — Comento, como quem não quer nada.

Ele diminuiu o passo, mas não diz nada.

— Se você quiser posso te dar uma carona.

— Você bem que podia me dizer alguma coisa, o que acha?

— Que tal me dizer como você tá se sentindo hoje. — Falo sem parar, acho que estou um pouco nervosa. — Como tem sido a escola nos últimos dias? Sentiu minha falta? — Provoco e é exatamente nesse momento que ele para e me olha. Um olhar tão profundo que me faz arrepiar do dedo do pé ao último fio de cabelo.

Depois disso decido parar com as investidas e volto para o Paolo. Se ele não quer conversa, o que posso fazer? Entro no carro e bato a porta, mas bato mesmo porque estou furiosa. E nem sei porque estou, mas estou. Dou a partida e começo a me afastar da calçada. Quando estou me aproximando novamente de Daniel, ele faz algo que eu jamais esperaria. Atravessa a rua e para bem no meio, me fazendo frear o carro com brusquidão e praguejar. Depois disso, ele vem até a porta do carona e para do meu lado. Ainda atônita eu abro a porta e o deixo entrar. Ele senta, coloca o cinto e como sempre não diz nada. Partimos em disparada para nosso inferno em comum, agora ao som de foo fighters.

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Estaciono no pátio atrás da escola. Vantagem de se viver em uma cidade pequena é que as construções são antigas e cheias de brechas. Depois de estacionar, conduzo meu passageiro até uma porta dos fundos, que desemboca em um velho corredor e que nos dá acesso a uma escadaria. Assim chegamos ao segundo pavimento da escola, sem passar por aquela massa de hormônios que fica aglomerada na entrada principal.

A aula passa morosamente e meus pensamentos pouco se conectam com os conteúdos que devem encerrar minha carreira escolar. A única coisa que fica indo e vindo na minha mente, como se fosse um martelo incansável é aquele par de olhos violetas. Mass afinal de contas o que é que está acontecendo comigo?

Durante o intervalo passeio pelo corredor distraidamente. Nem sinal do Cadu, nem sinal do meu Ashton Catcher. Ando de um lado para o outro no refeitório. Não que eu não tenha um grupo a que pudesse me enquadrar, poderia facilmente ser aceita pelos roqueiros, ainda mais com esse meu visual meio rock meio gótico; ou ainda pelos nerds do clube de ciências, já que tiro notas bastante razoáveis, ou ainda dos geeks que parecem alucinados por tecnologias, ou podia andar com os descolados, que parecem uma mistura de tudo que tem por aqui, ou andar com aqueles que não parecem com nada além de gente comum. Mas acontece que eu prefiro andar sozinha e por isso saio do refeitório pela grande entrada quadrada, paro rapidamente sob o toldo e depois avisto o lugar a que melhor me adapto, uma sombra embaixo de uma mangueira.

Na volta, saio o mais discretamente possível, para não dar bandeira para certas pessoas. Pelo menos por hoje quero paz. Caminho pelo mesmo percurso que utilizei hoje cedo para infiltrar o Daniel e eu na escola, desço as escadas e caminho pelo corredor estreito absorvendo o cheiro de mofo e coçando meu nariz, depois finalmente encaro o sol do meio dia. Pronto, lá está o Paolo, lindo, quietinho e... acompanhado. Daniel está parado ao lado da porta do passageiro, com os cabelos revirados, o olhar perdido e seu material escolar envolvido com os braços. Abro a porta com uma sensação que se mistura entre incredulidade, satisfação e confusão. Ele entra, senta, coloca o cinto e ponto.

Partimos em disparada, fazendo o motor do Paolo resfolegar. Olho pra ele e os olhos violetas desviam dos meus, se perdendo na paisagem que corre do outro lado da janela. Sem conversa fazemos o percurso inteiro até sua casa. Sem conversa mesmo, que saco.

Quatro

Olhos violetas, flores violetas e um humor explosivo = ser mulher pode ser uma merda

Já são quinze dias. Isso mesmo, quinze dias que de segunda a sexta eu dou carona para o Daniel e por um milagre quinze dias sem o tormento chamado ex-namorado. Eu não estou me queixando disso, pelo contrário, o dinheiro da gasolina que a mãe dele me dá com a desculpa de que é para compensar a economia que ela está fazendo, dá e sobra pra gasolina e ainda para algum lanche esporádico. E todo santo dia

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no mesmo horário lá está ele, em frente a cerquinha branca de sua casa, os livros apertados junto ao peito – afinal ele desistiu de carregar a mochila e imagino que isso se deu por causa da história do cabo de guerra. Há quinze dias que ele me espera todas as manhãs com seus olhos violetas vivos. E no horário do almoço eu o devolvo ao mesmo local, sem que troquemos uma única palavra. E ele pode ser bem irritante as vezes, desligando o som do meu carro ou simplesmente me ignorando. Geralmente eu levo isso numa boa, mas hoje acordei com um humor típico de certas épocas do mês, quando ninguém, inclusive a minha avó, costuma me encher muito, porque sabe o tipo de resposta que eu provavelmente darei.

Hoje, ele que não me provoque.

Visto a minha roupa mais escura, aquela que reflete o meu humor da forma mais perfeita possível. Camiseta preta, calça jeans surrada com um rasgo na coxa que nada tem a ver com a moda e um casaco fino com capuz e mangas bem compridas. Não, definitivamente não está um dia frio. Saio de casa sem dizer um tchau decente para a minha avó, jogo minha mochila no banco de Trás do Paolo que por sinal resolveu pegar de primeira, creio que pressentindo o perigo.

Logo que entro na rua dele já o avisto, com seu mesmo jeito irritante de sempre. Bufo irritada, paro o carro e ele entra, me diz um bom dia automático e desconfio que ensaiado com a mãe, coloca o cinto e vira o olhar pra rua, me deixando ainda mais furiosa.

Aumento o volume do meu som que está tocando um rock antigo super pauleira. Suspiro pesado e como sou completamente ignorada aumento um pouco mais. É aí que a coisa complica. Primeiro Daniel começa a mexer-se devagar pra frente e pra trás, de repente está com as mãos nos ouvidos, mexendo-se muito rápido e aos berros. Entro em pânico, afinal o que mais eu poderia fazer?

Tento acalma-lo sem tirar a mão do volante mas ele está desesperado. É impossível entender o que está acontecendo e essa maldita música alta não está ajudando. Desligo o som para tentar compreender melhor o que ele diz e então tudo se silencia, tanto o rádio quanto Daniel.

─ Se era a porcaria da música que estava te irritando porque você não disse? ─ Explodo. ─ Eu não entendo você. Já é difícil entender a mim mesma, imagina entender alguém que não fala comigo e surta.

Depois da aula deixo Daniel em casa, e digo a ele que vai precisar arrumar outra carona a menos que pare de me ignorar e comece a falar comigo. Ele desce do carro visivelmente chateado, me dá tchau, obrigado e vai embora.

Passo o resto do dia resmungando de um lado para o outro em casa. Não consigo me concentrar, não consigo pensar em nada que não sejam aqueles olhos violetas.

La pelas oito da noite ligo meu mp3 no banheiro com as músicas que minha mãe costumava escutar comigo e me enfio debaixo do chuveiro. Deixo a água correr por

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algum tempo, mas logo me venço pelo aconchego que toma conta do ambiente. Ouvir essas músicas me faz sentir como se minha mãe estivesse novamente aqui, cantando de um lado para o outro da casa e me fazendo acompanha-la muitas vezes com minha voz esganiçada e desajeitada. Por causa da saudade, essas músicas acabaram virando parte de mim, amarradas às lembranças.

Uns dez minutos depois, ainda curtindo meus rocks antigos e melódicos começo a cantar. Nothing Compares 2U é minha última canção, antes da porta abrir e minha vó mergulhar no banheiro enfumaçado. Amo essa música, é como se ela me levasse diretamente para os braços de minha mãe. E nós cantamos juntas, fazendo fumacinha com o vapor do chuveiro e desenhando no vidro do box coraçõezinhos.

─ Pelo amor de Deus, Nina, abra essa janela. ─ minha avó fala quando, ao entrar no banheiro, ser arrebatada pela fumaça quente do meu banho musical.

─ Tudo bem general, já estou saindo. ─ Resmungo.

─ E por favor penteie esses cabelos e vista uma roupa decente.

─ Meu pijama está mais do que bom pra mim.

─ Sim, e você vai receber aquele belo rapaz que está na sala de pijama?

─ Rapaz? Que Rapaz?

─ Um rapaz, bonito e com um ramo de flores.

─ Pelo amor de Deus, vó, se for o Cadu diga que eu morri.

─ Não é o Carlos Eduardo. ─ Minha avó fala num tom solene. ─ É um rapaz quietinho, queixo quadrado e um par de olhos que... ─ Ela suspira.

Daniel.

Me enrolo na toalha e me lanço pro quarto às pressas, visto meu jeans, uma blusa justa, mas não demais porque eu não sou muito desse tipo, penteio meus cabelos umas cinco vezes pra garantir que se arrumem, passo delineador por dentro dos olhos, rímel e um brilhinho de leve nos lábios. Depois fingindo minha cara de mais 'mau humor' do mundo vou ao encontro do meu Ashton Cutcher.

Ele está sentado no sofá da sala, ereto como uma tábua de passar roupa. Como sempre, os olhos perdidos em algum ponto entre a parede e a janela. Trouxe flores e elas são violetas. Será que ele quer me enlouquecer?

Um pouco mais sem jeito do que eu esperava ficar, me sento ao seu lado no sofá e lanço um olhar astuto para as flores.

─ Oi. ─ Ele diz, me olhando bem dentro dos olhos.

Estremeço. Acho que é a primeira vez que realmente me olha.

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─ Oi. ─ Digo, na falta de algo mais eloquente.

Ele me entrega as flores, pego e as observo por algum tempo.

─ Nunca vi uma flor como essa. ─ Digo, olhando admirada para a flor que é uma mistura de branco com violeta nas pontas.

─ É uma lisianthus roxa, a favorita da minha mãe, ela costuma crescer em ambientes secos, é originária do clima desértico dos Estados Unidos... ─ Ela fala sem parar. ─ Mas precisa estar perto de rios...

Toco em seu braço para chamar sua atenção.

─ Deve ter sido bem cara.

─ Eu peguei no jardim la de casa, minha mãe mandou trazer flores pra você.

Hum. Só podia. Um gesto tão delicado só podia vir dela. Fecho o cenho.

─ Agradeça a sua mãe por mim. ─ Digo, me levantando um pouco chateada. ─ Obrigada por vir.

─ Minha mãe falou que preciso me desculpar pelo que quer que eu tenha feito. Você me desculpa?

─ Não. ─ Resmungo.

─ Porquê? ─ Ele me olha num misto de curiosidade e confusão.

─ Porque foi a sua mãe que mandou e não você que realmente quis. Além do mais a única coisa que eu disse foi que não daria mais carona a você se não começasse a conversar comigo.

─ Mas eu estou conversando agora. Então estou desculpado?

Xeque-mate.

─ E você vai falar sempre comigo? Quero dizer, dessa forma?

Ele vira para a janela.

─ Daniel... ─ Falo, já cansada dessa conversa. ─ Tudo bem, se você conversar comigo de vez em quando. E se prometer não gritar mais, por mim tudo bem. Falando nisso porque você estava berrando daquele jeito, foi mesmo por causa da música?

─ Eu não gosto de música alta, me deixa nervoso.

─ Ok! Sem música alta. Temos um acordo então?

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Ele me olha com um meio sorriso. Acena que sim com a cabeça. O levo até a porta, mas ele estaqueia diante dela, ponderando algo a me dizer. Espero.

─ Você canta muito bem. ─ Ele diz, finalmente me fazendo derreter e gelar ao mesmo tempo.

─ E-e-u? ─ Gaguejo, que merda.

─ Você pode cantar novamente, quer dizer, pra mim agora?

Surpresa, fico em silencio.

─ Mas eu não canto, só no banheiro.

─ Tudo bem. ─ Ele diz prontamente, já voltando porta a dentro. ─ Onde fica o banheiro?

Começo a rir e ele fica um pouco sem jeito, o rosto vermelho.

─ Não era literalmente, não é? ─ Ele pergunta, os olhos voltados para o chão.

─ Eu quis dizer no banho.

Ele fica ainda mais vermelho e acho isso engraçado, pois não imaginei que ele pudesse ficar assim, constrangido. Achei, francamente que esse tipo de coisa não o afetasse, que ele não fosse capaz de sentir esse tipo de sensação, ainda mais depois de tudo que li sobre a tal síndrome de asperger, que é um tipo mais leve de autismo.

─ Tudo bem, eu canto. ─ Digo, tentando quebrar esse clima de bochechas coradas que se formou entre nós. ─ Mas tem uma condição...

─ Você tem muitas condições pra tudo. ─ Ele resmunga, olhando para a rua novamente.

─ A vida é assim. ─ Dou de ombros. ─ Vem, vamos lá pro jardim.

Ele me segue em silencio, as mãos começando com aquele tique que me irrita. Primeiro ele esfrega a parte de cima, bem na junto aos ossinhos dos dedos, depois aperta os dedos de leve e repete tudo outra vez, várias vezes. Tenso.

O jardim da minha casa é pequeno, não temos um quintal muito espaçoso nem muito menos decorado, mas só o fato de a casa ser nossa já é grande coisa. Sentamos no degrauzinho há meio metro da porta da frente, numa coisa que minha avó costuma chamar de varanda. Daniel me olha contrafeito. Pelo menos agora não desvia os olhos violetas cada vez que eu o encaro e eu encaro mesmo. Ainda mais hoje que estou num dia cinzento, numa noite cinzenta, ou estava até ele chegar.

Os olhos violetas me observam em silencio e eu fico, por um curto tempo apreciando aquele olhar de Ashton Cutcher dele. Certo, eu vou parar, já estou parecendo

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uma dessas perseguidoras lunáticas que passam na televisão, no programa de mulheres assassinas.

─ Então, o que você está esperando? ─ Pergunto, mais para puxar assunto do que por esperar uma resposta realmente.

─ Você cantar.

─ Mas você vai tocar pra mim?

─ Tocar o quê?

─ Qualquer coisa, sei lá Bethoven, Mozert. ─ Dou de ombros. ─ O que você quiser.

─ Eu não quero tocar.

─ Então eu não quero cantar. ─ Faço beiço, mas me arrependo pensando que isso não vai surgir efeito nele.

Mas o que acontece é justamente o oposto, um efeito e dos mais assustadores, ele levanta e anda de um lado para outro, agitado, esfregando as mãos, e esfregando a cabeça, resmungando. Cruzo meus braços pra que fique bem claro que esse seu jeito não vai me convencer.

─ Eu não tenho a noite inteira. ─ Provoco.

─ Eu não vou tocar. ─ Ele grita, depois sai portão a fora, caminhando com as mãos sobre a cabeça.

Num ímpeto de preocupação e medo saio correndo ao seu encalço. O alcanço quase na esquina, ele está agitado, nervoso, cansado. O abraço sem pensar. Ele retribui, me envolvendo num apertado e quente par de braços. Deixo minha cabeça pender em seu peito e sinto um alvoroço no meu estomago. Ele encosta os lábios no meu cabelo, e aspira o cheiro do shampoo. Nesse momento tenho certeza de que provoco nele a mesma coisa que provoca em mim. Mas se ele pensa que com isso eu vou ceder, está muito enganado. Se ele não tocar, eu não vou cantar.

Conheça mais dessa história em: http://www.wattpad.com/75149428-uma-can%C3%A7%C3%A3o-de-amor-sobre-a-hist%C3%B3ria

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