uma cartilha subvertida: lÍngua, histÓria e cultura
TRANSCRIPT
260 Eutomia, Recife, 12 (1): 260-280, Jul./Dez. 2013
UMA CARTILHA SUBVERTIDA: LÍNGUA, HISTÓRIA E
CULTURA ATRAVÉS DOS TEXTOS
Rose Mary do Nascimento Fragai (UFRPE) Valéria Severina Gomesii (UFRPE)
Só podemos nos regozijar com trabalhos deste teor, resultado de pesquisas sobre a língua que aconteceu, que continua acontecendo, como testemunho de um povo que fez e faz a sua história, na mistura das cores, das raças, dos sons, dos nomes, das prosas, dos versos, dos cânticos... Sons, palavras e textos que fizeram calar o boi – que já não baba, do gato, que já não mia em nossas salas de aula. Hoje Ivo não vê a uva. Estima-se que Ivo saboreie a uva, irrigada com a esperança que fez
a história de Pernambuco... (Irandé Antunes, 2012)
Resumo: Neste trabalho, discorremos sobre a publicação Identidade e Memória em Manuscritos e Impressos Pernambucanos: língua, história e cultura através dos textos, que apresenta uma proposta de trabalhos interdisciplinar a partir de textos reais, de gêneros variados, que circularam em Pernambuco entre os séculos XVIII e XX. Por meio da leitura e análise dos textos, podemos explorar vários aspectos não apenas da língua, mas também da cultura, da sociedade e da história de Pernambuco. Palavras-Chave: Língua; textos; história; interdisciplinaridade. Resumen: En este trabajo discurrimos sobre la publicación Identidade e Memoria
en Manuscritos e Impresos Pernambucanos: língua, história e cultura
através dos textos, que presenta una propuesta de trabajos interdisciplinaria a partir de textos reales, de géneros variados, que circularon en Pernambuco entre los siglos XVII y XX. Por medio de la lectura y análisis de los textos, podemos explorar varios aspectos, no sólo de la lengua, sino también de la cultura, sociedad e historia de Pernambuco.
Palabras Clave: Lengua; textos; historia; interdisciplinariedad.
1. Introdução
261 Eutomia, Recife, 12 (1): 260-280, Jul./Dez. 2013
No ano de 2012, seis integrantes da equipe pernambucana do projeto nacional
Para a História do Português Brasileiro (PHPB)1, Andrea Souza, Cleber Ataíde, Priscila
Ferreira, Rose Mary Fraga, Tarcísia Travassos, Thiago Nunes e Valéria Gomes,
iniciaram o desafio de elaborar a cartilha intitulada “Identidade e Memória em
Manuscritos e Impressos Pernambucanos: Língua, História e Cultura através dos
Textos”2. Esse projeto foi aprovado e fomentado pelo Sistema de Incentivo à Cultura –
FUNCULTURA - do Governo do Estado de Pernambuco, sob o número 0256/11 e
contou com a produção cultural de Thiago Nunes. Com elaboração e coordenação de
Valéria Severina Gomes, trata-se de uma ramificação de um projeto de pesquisa
denominado “Tradição Discursiva e Letramento: a Historicidade da Língua(gem) e dos
Gêneros Jornalísticos do Século XIX Aplicada ao Ensino”, aprovado pela Pró-Reitoria
de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal Rural de Pernambuco, de onde
partiu a concepção da cartilha.
O intuito do material, que foi produzido em 12 meses, era, e continua sendo,
fazer com que reflexões que ocorrem no campo da pesquisa cheguem mais perto
do(a) professor(a)-pesquisador(a) que está na sala de aula do Ensino Básico. O
material produzido foi distribuído gratuitamente em bibliotecas e escolas públicas, e
foram realizadas oficinas no litoral, no agreste e no sertão do Estado de Pernambuco.
Esse(a) professor(a) e os(as) leitores(as) deste artigo podem levantar a mesma
questão que inúmeras vezes nos foi feita: por que nomear o trabalho de cartilha? É
importante explicar o porquê dessa escolha. Historicamente esse termo designa um
material didático que representa uma prática de ensino da língua com abordagens
silábicas por meio de sequências frasais desconectadas e descontextualizadas, do tipo
Vovó viu a uva, bem nos moldes mais tradicionais de ensino, e longe, muito longe, dos
textos que remetem às diversas práticas sociais de leitura e de escrita. A retomada do
termo cartilha assume neste momento um caráter subversivo, que procuramos
ressaltar também no título deste artigo, no sentido de desconstruir a ideia da velha
cartilha escolar, sem textos e sem história.
A cartilha que foi elaborada parte da concepção básica de que a língua
materializa aspectos culturais, históricos, identitários e ideológicos e é, portanto, um 1 O projeto nacional Para a História do Português Brasileiro (PHPB) é coordenado pelo Prof. Ataliba de Castilho. 2 A cartilha na íntegra e um banco de textos manuscritos e impressos de Pernambuco, para estudo e aplicação na sala de aula, encontram-se disponíveis no site www.manuscritosimpressospe.com.br.
262 Eutomia, Recife, 12 (1): 260-280, Jul./Dez. 2013
patrimônio a ser estudado e preservado, considerando a sua dinamicidade, a sua
flexibilidade e a autenticidade dos textos. Nessa perspectiva de abordagem sócio-
histórica da língua e dos textos, houve o intuito de integrar áreas afins do
conhecimento, de preservar os patrimônios linguístico e cultural de Pernambuco e de
estimular o interesse de professores e alunos pela reflexão e pela investigação da
língua e dos textos em condições de produção diacrônicas e sincrônicas. A opção por
nortear a discussão pelos eixos da leitura, da escrita, da reflexão linguística e da
preservação patrimonial fundamentou-se, por exemplo, no pensamento de Rojo
(2000, p. 29), ao explicar que:
Os conteúdos indicados para as práticas do eixo do uso da linguagem são eminentemente enunciativos e envolvem aspectos como: a historicidade da linguagem e da língua; aspectos do contexto de produção dos enunciados em leitura/escuta e produção de textos orais e escritos; as implicações do contexto de produção na organização dos discursos (gêneros e suportes) e as implicações do contexto de produção no processo de significação. Logo, neste universo, o texto é visto como unidade de ensino e os gêneros textuais
como objetos de ensino. (destaques da autora)
A problemática que motiva as nossas pesquisas e que culminou na proposição
da cartilha consiste em uma lacuna ainda bastante significativa entre as abordagens
sincrônicas e diacrônicas da língua e dos textos nas salas de aula. Dentre os fatores
que podem contribuir para essa fissura estão a permanência da dicotomia saussuriana
no que diz respeito ao ensino da língua, a falta de material didático que possibilite a
aproximação entre estudos históricos e os atuais da língua e dos textos e, em alguns
casos, a dificuldade que os professores encontram, do ponto de vista da formação
mesmo, para estabelecer esse elo.
A partir dessas questões, a cartilha foi elaborada e distribuída, com o intuito de
estabelecer o diálogo entre os estudos diacrônicos e sincrônicos, como perspectivas
complementares de reflexão linguística; de funcionar como um material de apoio com
proposição de atividades que podem ser realizadas pelos alunos e que podem gerar
outras ideias na dinâmica da sala de aula; e dar um suporte teórico inicial para os
professores e demais leitores que venham a despertar o interesse pelo estudo da
historicidade da língua e dos textos, uma área de pesquisa que vem crescendo em
virtude das muitas questões que carecem de investigação e de resposta. Essa
retomada dos estudos históricos não é de hoje. Já na década de 1980, registra-se o
263 Eutomia, Recife, 12 (1): 260-280, Jul./Dez. 2013
renascimento da Fênix, como uma representação apropriada acerca do ressurgimento
da Linguística Histórica, e Tarallo (1984) aponta para as novas perspectivas desses
estudos no cenário científico brasileiro.
Nesse contexto de investigação sócio-histórica da língua, o presente artigo
tem dois objetivos: 1) apresentar o projeto da cartilha como um material que analisa e
propõe atividades com manuscritos e impressos pernambucanos dos séculos XVIII,
XIX e XX nos níveis linguístico, textual e discursivo, a fim de evidenciá-los como parte
do patrimônio cultural e da identidade dos brasileiros; e 2) verificar a percepção dos
alunos do curso de Letras sobre a aplicação da cartilha no contexto da sala de aula.
Trata-se aqui do olhar dos primeiros leitores. Acreditamos que a verificação de como
a cartilha está sendo lida, trabalhada e analisada por professores(as) que já estão na
ativa e por professores(as) em formação nos cursos de graduação é uma etapa
importante para continuidade do nosso trabalho. Não foi possível, até o momento,
fazer uma verificação mais ampla do alcance da cartilha nas escolas públicas e nas
instituições de ensino superior que receberam o material, mas, neste momento inicial,
gostaríamos de compartilhar e de discutir um pouco a impressão e os comentários de
6 (seis) alunos do curso de Letras da Universidade Federal Rural de Pernambuco, que
apontam dados relevantes acerca das possíveis aplicações da cartilha na sala de aula e
das suas implicações na formação desses futuros profissionais.
Para atender aos objetivos propostos, o artigo está organizado da seguinte
forma: os tópicos 2, 3 e 4 tratam dos aspectos teóricos, metodológicos e analíticos
que nortearam a elaboração do projeto da cartilha; o tópico 5 traz o olhar dos
primeiros leitores sobre a cartilha, a partir de questões que problematizam o uso da
cartilha e que estimulam a reflexão sobre o material; o tópico 6 consiste nas
considerações finais; e o último tópico as nossas referências.
2. Os eixos norteadores da cartilha
Os textos selecionados para a composição da cartilha (carta oficial, carta
particular, editorial, carta de leitor e anúncio) tiveram a análise norteada por três
pontos de observação correspondentes a três eixos. O eixo da leitura traz à tona a
reconstrução da performance dos textos e os diferentes procedimentos de leitura ao
264 Eutomia, Recife, 12 (1): 260-280, Jul./Dez. 2013
longo do tempo. Esse ponto pauta-se nas concepções atuais de leitura, como as
apresentadas por Lima (2007, p.122-123):
• a leitura como atividade essencial para todas as matérias e como
habilidade que todas as disciplinas devem desenvolver;
• a leitura como uma atividade situada, que demanda diferentes estratégias
e abordagens a depender do gênero a ser lido e da função dessa leitura.
O eixo da escrita destaca a língua e as tradições discursivas, com abordagens e
reflexões sobre o português brasileiro e as condições de produção dos gêneros
textuais que circularam em Pernambuco do século XVIII ao XX.
O eixo da preservação do patrimônio histórico-cultural é de importância
indiscutível sob a ótica de uma proposta interdisciplinar e cidadã, pois colabora com o
despertar das consciências para a importância de se contar a história, preservar um
patrimônio e socializar conhecimentos.
Com base nesses três pontos, os textos foram examinados de acordo com as
condições de produção e o contexto em que foram produzidos, com a função social,
com o modo como são reportados para os seus suportes e deles retornam para a
sociedade, com os interlocutores envolvidos e, ainda, com os elementos linguístico-
discursivos que os constituem. A partir desses estudos, observarmos as possíveis
aplicações ao ensino na interface entre a História e a Língua(gem).
O percurso metodológico para este trabalho incluiu o registro fotográfico ou
digital de documentos impressos ou microfilmados de gêneros jornalísticos do século
XIX e XX e manuscritos dos séculos XVIII ao XX disponíveis nos acervos
pernambucanos. Em todos os casos houve a edição semidiplomática e procuraremos
manter a originalidade dos textos, seguindo as notações de ordem filológica para a
transcrição, organizadas por Guedes & Berlinck (2000, p.12).
Nesse sentido, as razões de caráter teórico que justificam o trabalho realizado
são:
- O aspecto histórico: o conhecimento específico da origem e das
transformações pelas quais passam os gêneros textuais (RIZZINI, 1968; PESSOA,
2002) é útil para a compreensão dos processos e das etapas de configuração dos
textos ao longo do tempo. Além disso, há a necessidade constante de ampliação dos
265 Eutomia, Recife, 12 (1): 260-280, Jul./Dez. 2013
testemunhos documentais do passado, a fim de acompanhar e ampliar o quadro
descritivo das mudanças comunicativas.
- O aspecto analítico: consideramos que a proposta analítica adotada na
cartilha (OESTERREICHER, 2002; KABATEK, 2003; PESSOA, 2003; BARBOSA, 2012)
oferece uma abordagem mais dinâmica para os estudos diacrônicos da língua e dos
textos (manuscritos e impressos), pois ultrapassa os estudos filológicos restritos ao
código e aos tratamentos estáticos dos textos. Nessas novas abordagens, há uma
integração da história das tradições discursivas com a história da língua(gem), como
um processo contínuo, com todas as nuances dos corpora históricos.
- O aspecto sociocomunicativo: tomamos este tópico como ponto de contato
entre as ocorrências linguísticas e as repercussões extralinguísticas e vice-versa, pois,
numa reflexão sócio-histórica-discursiva da linguagem, é inevitável que levemos em
conta a situação comunicativa e a relação estabelecida entre os interlocutores,
explicitadas nos textos.
3. O tratamento da variação no ensino de língua
A afirmação de que a língua é um fenômeno variável está muito longe de ser
uma novidade nos estudos linguísticos. Desde a década de sessenta, com o advento
oficial da Sociolinguística, num encontro que reuniu estudiosos de diferentes países,
dentre os quais estavam Willam Labov, Dell Hymmes, John Fisher, John Gumperz,
Charles Ferguson entre outros (Calvet, 2002), vem-se investindo em estudos que
relacionam língua e mudanças sócio-histórico-culturais. Assim, parece ponto pacífico
entre estudiosos, bem como entre os autores de livros didáticos, a ideia de que a
língua é plástica, não-uniforme, variável em função de diferenças regionais,
socioculturais e temporais. Para Ilari; Basso (2006, p. 153), “convém pensar na língua
não como uma forma que foi estabelecida em caráter definitivo em algum momento
do passado, quem sabe por decisão de uma assembleia de sábios, mas sim como uma
realidade dinâmica, que está por natureza em constante mudança”.
A despeito dessa questão, o tratamento da variação no livro didático ainda é
superficial. No que toca especificamente à mudança da língua no tempo, as atividades
266 Eutomia, Recife, 12 (1): 260-280, Jul./Dez. 2013
dos livros praticamente se limitam a mudanças ortográficas; algumas atividades
mostram a grafia de uma dada época passada quase como uma curiosidade. Desse
modo, vamos perdendo a oportunidade de refletir sobre as funções e os sentidos que
determinados modos de dizer cumprem numa dada época; e também vamos
esquecendo o fato de que esses modos de dizer compõem textos que circulam ou
circularam numa época e que, portanto, guardam/revelam parte de sua história: os
sujeitos, os lugares, o consumo, o comportamento etc.
Nesse tanto de perdas, o que temos na sala de aula? Obviamente não
sustentamos a ideia de que o caos está instalado no ensino de língua. Pelo contrário, é
fácil perceber, especialmente a partir dos anos 2000, que o livro didático vem
apresentando mudanças significativas no trabalho com análise linguística,
compreensão e produção textual, diversidade de gêneros de textos e, inclusive, vem
introduzindo uma reflexão sobre variação linguística. Isso tudo como resultado dos
esforços empreendidos por pesquisadores nas áreas da sociolinguística, da linguística
de texto, do sociocognitivismo, dos estudos do discurso, dos estudos sócio-históricos
etc. No entanto, é preciso assinalar que no quesito variação linguística os avanços
parecem ainda pequenos, pois a mudança, e mais especificamente a mudança
diacrônica, é não raramente apresentada apenas como ilustração da grafia ou do
vocabulário de uma época. O texto quase não aparece como objeto de investigação e
reflexão sobre os usos linguísticos e seus contextos socioculturais, o que, ao nosso ver,
limita enormemente o estudo da língua e dos textos.
4. Aspectos da interdisciplinaridade na cartilha subvertida
Na contramão da pouca importância destinada aos estudos históricos da
língua e dos textos, nosso trabalho na cartilha busca ressaltar a relevância de se
investigar a língua na linha do tempo; e mais que isso, põe em evidência o fato de que
é no texto que a língua se materializa, que os sujeitos se mostram, que os
comportamentos sociais indiciados nos textos revelam as transformações da
sociedade.
267 Eutomia, Recife, 12 (1): 260-280, Jul./Dez. 2013
Assim, na cartilha, quando analisamos aspectos linguísticos e textual-
discursivos, partimos de textos reais que circularam em Pernambuco em três séculos -
XVIII, XIX e XX –, a fim de observar e refletir sobre os traços de mudança e
permanência que a língua e os textos nos apresentam: a grafia, o léxico, a sintaxe, o
processamento dos gêneros, os efeitos de sentido dos índices linguísticos, as
temáticas abordadas, a história dos lugares, da sociedade e das gentes representadas
nos textos etc. Como se pode perceber, a proposta do nosso trabalho é disponibilizar
um material que possibilite a interdisciplinaridade, especialmente com a história.
O exemplo a seguir é uma carta escrita pelo abolicionista Joaquim Nabuco.
Nela observamos o quanto de História podemos aprender quando estudamos a língua
nos textos. Vejamos:
Ex.1:
Londres, 12 de novembro de 1882 Ilmo amigo o Senhor Dr Antonio Pinto, Faltam-me expressões para agradecer-lhe as | generosas palavras que disse a meo respeito na| Câmara. Ellas são para mim uma fonte de legi-|tima e elevada consolação. || Os abolicionistas tem diante de si um caminho | escabroso mas no futuro resta-lhes ha a satisfação| de terem feito o seo dever. Além disso o abolicionismo| é uma escola viril e austera em que aprendemos | a desprezar honras sem honra, posição sem digni- | dade ; glorias sem fundo e a eliminar dos nossos | sentimentos a inveja, o egoismo e a ingratidão. Con-|tinuemos pois a pagar a divida da patria a in-|feliz raça que a tem feito o que ela é. || Desejo-lhe na próxima sessão um papel activo, | vigilante e cada vez mais proeminente. V.E. escreve | nos Annaes do actual Parlamento as unicas| folhas dignas de uma Assembléa de (um) povo civilizado | [Fol2.r] A província do Ceará não há de esquecer quando | for chamada a eleger nova deputação, pela honra | do nome cearense não o pode. Creia me de V.E. | Obrigadissimo Amigo e Correligionário
[assinatura] Carta 3. Arquivo textual manuscritos Fundaj- JN cap 2 doc 32 a4g1
De acordo com Travassos; Ferreira (2012, p. 25), as cartas particulares
apresentam componentes fixos que dão ancoragem ao texto, tais como local, data,
vocativo etc., que cooperam para a compreensão e para “situar o texto no contexto da
compreensão”. Além disso, esses componentes podem ensinar muito sobre nossa
história, especialmente quando compõem um texto assinado por um dos grandes
nomes da história do país, como é o caso de Joaquim Nabuco. Abre-se, assim, um
268 Eutomia, Recife, 12 (1): 260-280, Jul./Dez. 2013
espaço interessante para um trabalho de pesquisa sobre Nabuco, sobre suas ideias,
sobre a escravidão, sobre a política de Pernambuco e do Brasil naquela época.
No tocante aos elementos linguísticos, Travassos e Ferreira (2012, p. 26),
assinalam que as pressões vindas da Europa e dos Estados Unidos para o fim do tráfico
constituíram-se em dificuldades na aquisição de novos escravos e na manutenção dos
que já existiam, o que propiciou “o surgimento de vozes a favor da libertação dos
escravos”, que vinham das elites e de outros grupos sociais. Para as autoras, as
expressões “escola viril e austera”, “dever” e “dívida da Pátria”, por exemplo, são
“indícios dos sentimentos que uniam diferentes forças com a finalidade de extinguir a
escravidão (TRAVASSOS; FERREIRA, 2012, p. 26).
Outro gênero contemplado na cartilha é o editorial, que apresenta, sob o
ponto de vista formal, “estruturas fixas e institucionalmente marcadas” (MARCUSCHI,
2000, p. 63). Vale destacar, no entanto, que embora alguns textos sigam um padrão,
“nem sempre houve tanto rigor com a disposição do texto no suporte. Nessa tradição
discursiva, como nas demais, a forma adotada tem finalidade comunicativa e funciona
como um enquadre interpretativo que auxilia o leitor na construção do sentido do
texto” (GOMES, 2007, p. 54)
Desse modo, a observação do editorial em diferentes épocas pode nos ajudar a
compreender o que assinala Bakhtin (2000) sobre a relativa estabilidade dos gêneros
do discurso; uma estabilidade sujeita às mudanças socioculturais e históricas. Como
eram e como são os gêneros, quais os traços de mudança e permanência, por que
alguns traços se mantêm e outros mudam? As respostas a essas questões podem
revelar aspectos interessantes não apenas da língua e dos textos, mas também da
dimensão do discurso, como a modalidade, o ethos, a sobreposição de vozes, as
posições ideológicas etc.
No que toca à história de Pernambuco, os editoriais são um material
importante. Esses textos dão testemunho de vários momentos relevantes da história
de Pernambuco. Por meio dos editoriais do século XIX, pudemos saber um pouco
mais, por exemplo, sobre os embates político-ideológicos da época e sobre os
melhoramentos urbanos na cidade do Recife, que trouxeram, sem dúvida, mudanças
269 Eutomia, Recife, 12 (1): 260-280, Jul./Dez. 2013
nos hábitos sociais e culturais da população (GOMES, 2012). Alguns desses
melhoramentos são as construções do Teatro Santa Isabel (1850), do Cemitério
Público de Santo Amaro (1851), da ferrovia (1854), a iluminação das ruas centrais a gás
carbônico (1859), o telégrafo (1857), o telefone (1876) entre outros. Essas mudanças
intensificaram o convívio da população, facilitaram a locomoção e reinventaram as
interações sociais. Os exemplos a seguir são fragmentos de editoriais que retratam
dois importantes momentos de nossa história. Vejamos:
Ex. 2:
Com estas occupações, com estes pensa-|mentos se entreteve durante o dia popula-|ção
desta capital, e apenas desceu a noite | sobre a terra acudio ella presurosa ao theatro de
Santa Isabel, por cuja abertura este-|ve anciosa. Também concorremos nós, não | na simples
qualidade de amadores de sce-|na, sim como desejosos e emthusiastas de | testemunhar a
inauguração do novo thea-|tro, desse padrão que serve a attentar o pro-|gresso de nossa
civilisação, que serve a me-|morar o pensamento de nosso engrandeci-|mento, tentativa do
patriotico barão da | Bôa-Vista, não menos nobre que feliz, que | pôde atravessando tantos
tempos, vencendo | tantas vontades malevolas, superior aos | desatinos de alguns dos nossos
presidentes, | chegar té á administração do Exceletíssimo Senhor con-|selheiro, que com
louvavel e esforçado em-|penho completou esse pensamento util, creando-nos este
beneficio, de que tanto | careciamos. ||
(Diario de Pernambuco nº 115, 22/05/1850 – editorial 63)
Ex.3:
Era o | coração brazileiro, que vibrava ao senti-|mento da caridade, e que hoje transbor-|da de
jubilo pela completa redempção | dos captidos, desde o coração de Sua Ma-|gestade, que,
longe da patria, guarda o | leito da dôr, desde o coração da gracio-|sa Princeza Imperial, que
teve a rara | fortuna de ligar o seu nome ao decreto | de redempção, até o do mais obscuro ci-
|dadão do angulo mais afastado do Im-|perio. Todos particpam da gloria e to-|dos se
embriagam na grande festa nacio-|nal.
(Jornal do Recife nº 111, p. 1, 17/05/1888 – editorial 7)
A construção do Teatro Santa Isabel e a notícia do decreto da abolição da
escravatura foram comemoradas pelos jornais. E esses temas podem ser discutidos
3 Textos disponibilizados na íntegra, juntamente com outros exemplares, no site www..manuscritosimpresssospe.com.br, que funciona como anexo digital da cartilha.
270 Eutomia, Recife, 12 (1): 260-280, Jul./Dez. 2013
nas aulas de língua, de história e de artes, por exemplo. E o mais importante é que
esses debates serão feitos a partir de textos escritos na época dos referidos
acontecimentos. É um estudo da língua e da história pelas palavras daqueles que
estiveram lá.
O gênero anúncio também foi tratado na cartilha, pois o consideramos um
texto com interessantes possibilidades para o trabalho linguístico e para a análise do
contexto histórico, já que “anunciam não apenas produtos de compra e venda, mas os
modos de vida e de dizer essa vida em diferentes épocas” (FRAGA, 2012, p. 51, 52).
No referente à língua, os anúncios revelam tradições discursivas que
assumiram outras formas (“Quem quiser comprar”/“Vendo/Vende-se”), diferentes
aspectos da descrição com valor argumentativo e ainda a norma ortográfica de
épocas distintas. Vejamos alguns exemplos:
Ex.4:
Quem quizer comprar hum sitio, | na estrada da Caza Forte, que vai pa- | ra o Monteiro, que foi do falecido Pa- | dre Prata, pode dirijir-se a D. Joa- | quina Ignacia Salgueira, que esta pas- | sando a festa no Engenho Monteiro.
(Diario de Pernambuco 09/02/1827 – Anúncio 8)
Ex.5:
Casas para Vender || OPORTUNIDADE | BOA VIAGEM|| COBERTURA DUPLEX |PREÇO CR$ 59000.000,00 || Vendo excelente apt. de Cobertura em predio sob | [ilegível ], em elevador, Sl para 2 ambientes e varanda qtos | sociais, 2 WC sociais, sendo 1 suite, jardim de inverno, cozinha e azulejo decorado ate o teto dep. comp. | empregada. Rua Antonio Falcão. Aceita-se imovel de | menor valor ou financiamento. Tratar pelos fones 221 | 5333 em [ilegível] no Edif. Brazilar S\608.
(Diario de Pernambuco 06/02/1982 – Anúncio 10)
No final do século XX, há mais detalhamento de informações que nos
anteriores. Aparecem preço, descrição detalhada e objetiva do imóvel, endereço etc.
Além disso, aparecem abreviaturas e expressões bastante representativas das
mudanças no tipo de moradia da população, como “apt. de Cobertura”, “prédio”,
“elevador”, “suíte” etc. Vejamos o seguinte quadro:
271 Eutomia, Recife, 12 (1): 260-280, Jul./Dez. 2013
Quadro 1: aspectos verificados em anúncios dos séculos XIX e XX em jornais pernambucanos: SÉCULO XIX SÉCULO XX
SINTAXE “Quem quizer comprar hum sitio, | na estrada da Caza Forte, que vai pa- | ra o Monteiro, que foi do falecido Pa- | dre Prata,...” (período subordinado)
Vende-se; Vendo (expressões que predominam em anúncios do final do século XX)
DESCRIÇÃO Aparece a localização e identificação do antigo dono.
Aparece o tamanho do terreno; o bairro do imóvel à venda; quantidade de quartos do imóvel, banheiros etc.
DESCRIÇÃO COM VALOR ARGUMENTATIVO
“que foi do falecido Pa- | dre Prata,...”
“OPORTUNIDADE”; Perto do
mar; Andar alto (essas duas últimas expressões são comuns em anúncios mais recentes)
ORTOGRAFIA “Caza Forte”; “sitio”; “officio”; “criollo”
Casa Forte; sítio; ofício; crioulo
Com o quadro, podemos ver mais claramente as diferenças entre os anúncios
dos séculos XIX e XX: temos períodos preferencialmente compostos por coordenação
no século XX, com frases justapostas, sem conectivos; já em anúncios do século XIX, é
notório o uso do conectivo “que”, construindo a subordinação das orações. Essa
mudança é possivelmente resultado do pouco espaço e do custo cada vez mais alto
dos anúncios.
Também é possível perceber que as informações usadas na descrição dos
objetos anunciados são diferentes de um século para outro, assim como diferem os
elementos que constroem a argumentação. No século XX, a informação sobre quem
foram os proprietários do imóvel parece funcionar como um elemento persuasivo.
Provavelmente, eram pessoas conhecidas e com algum status social. Já no século XX,
muito dificilmente essa informação seria relevante. É bem mais convincente para a
compra e venda informações sobre tamanho do imóvel e sobre os serviços existentes
nas proximidades, como shoppings, praia, escolas, empresas etc. Ainda é interessante
272 Eutomia, Recife, 12 (1): 260-280, Jul./Dez. 2013
destacar as mudanças ortográficas, evidenciando que as convenções ortográficas
mudam com o tempo.
Como podemos observar, os textos analisados na cartilha possibilitam um
trabalho amplo em diferentes áreas, o que coopera para a interdisciplinaridade em
sala de aula, pois a a leitura dos textos nos revela os costumes e o consumo de cada
época (compra e venda de pessoas e objetos). Na aula de história, por exemplo, isso
pode render uma boa discussão; b) na aula de língua portuguesa, os anúncios podem
nos ajudar a compreender vários aspectos:
- na ortografia, perceber que a noção de erro depende das convenções de cada época;
- na sintaxe, observar a tendência atual de usos de construções sintáticas mais simples
(“Quem quizer comprar” / “Vende-se”/”Vendo”);
- na compreensão da descrição, os anúncios são ótimos textos para análise;
- na leitura, os anúncios podem colaborar para os alunos compreenderem de forma
ampla as diferentes sociedades evidenciadas nas informações que os textos revelam
em diferentes épocas.
5. O olhar dos primeiros leitores
Como dissemos no início, para a continuidade do nosso trabalho, é importante
acompanhar como está sendo a recepção e a aplicação da cartilha nos diferentes
espaços que a receberam. Como esse acompanhamento ainda não foi realizado de
forma ampla, nesse momento, trazemos apenas a percepção de seis alunos de
períodos diversos do curso de Letras da Universidade Federal Rural de Pernambuco,
que tiveram a oportunidade de analisar a cartilha em uma das atividades realizadas na
disciplina optativa “Diacronia do texto e tradições discursivas”, ministrada, no
segundo semestre de 2012, pela professora Valéria Gomes4.
Os alunos que cederam os seus comentários sobre a cartilha serão
identificados como informantes de 1 a 6. Eles responderam quatro questões que
problematizam o uso da cartilha e que estimulam a reflexão sobre o material. Dessas
questões, abordaremos apenas as duas primeiras, em virtude da delimitação do
4 Agradecemos aos alunos a autorização para utilizar, neste artigo, a atividade realizada na disciplina.
273 Eutomia, Recife, 12 (1): 260-280, Jul./Dez. 2013
espaço. Ficam as demais para uma avaliação mais ampla sobre os desdobramentos da
utilização da cartilha em outros artigos. As questões problematizadoras propostas
foram as seguintes:
1) Como futuros professores, apresente aspectos positivos e negativos da
utilização da cartilha na sala.
2) Que aspectos podem motivar o interesse de alunos e professores pelo
estudo diacrônico da língua e dos textos?
3) Comente as propostas didáticas de um dos capítulos com base nos eixos de
ensino da língua.
4) Proponha atividades para um dos capítulos, com base nos eixos de ensino da
língua.
A primeira questão pretendeu levar os alunos à identificação das possibilidades
de trabalho que a cartilha procura oferecer e também das dificuldades que poderiam
surgir no uso desse material no contexto da sala de aula. As respostas foram
organizadas no quadro a seguir:
Quadro 2: Levantamento dos aspectos positivos e negativos da cartilha
Informantes Aspectos positivos Aspectos negativos
Informante 1
- “A possibilidade de trabalhar a partir de um gênero os quatro eixos da língua”. - “A possibilidade de realizar um trabalho interativo entre passado e presente na medida em que é possível observar aspectos de mudança e de permanência da língua e conhecer o contexto sócio-histórico da época em que os textos foram produzidos”. - “A possibilidade de fazer um estudo com alunos tanto do texto quanto do gênero”.
- “As atividades de
motivação (como preparar os
alunos para receber os
textos)”.
- “... através dela, os alunos poderão tomar
- “... como podemos fazer com que o aluno se interesse
274 Eutomia, Recife, 12 (1): 260-280, Jul./Dez. 2013
Informante 2
conhecimento da forma como cada gênero escolhido para se trabalhar era apresentado e das mudanças sofridas no decorrer dos anos”. - “...a importância do contexto para que cada aluno seja capaz de desenvolver a capacidade de reflexão, uma análise do texto como um todo (estrutura organizacional, sintática e morfológica)”.
nessa pesquisa através da cartilha?”
Informante 3
- “... fazer com que os alunos observem as diferenças linguísticas de uma determinada época, em relação à atualidade”.
- “...utilizar a cartilha aleatoriamente, sem um devido cuidado e sem dar uma orientação prévia sobre os gêneros tratados na cartilha como uma prescrição”.
Informante 4
- “... o fato de estar trabalhando um material diferente do habitual, possibilitando ao aluno aprender mais sobre o desenvolvimento de sua língua”. - “... mostrar a importância do estudo e da preservação de documentos, cartas, jornais e registro em geral”.
- “... dificuldade de acesso a determinados tipos de materiais para trabalhar em sala de aula...”. - “... necessidade de procurar formas diferentes de chamar a atenção do aluno para um assunto que a grande maioria não tem interesse”.
Informante 5
- “... contempla os eixos de ensino da língua”. - “...possui uma proposta interdisciplinar e cidadã, pois fala do eixo da preservação do patrimônio histórico-cultural”.
- “O uso da cartilha com uma perspectiva diacrônica cobrará do professor um maior esforço para que motive o aluno e apresente a importância do estudo realizado pela cartilha”.
275 Eutomia, Recife, 12 (1): 260-280, Jul./Dez. 2013
Informante 6
- “... a prática e o desenvolvimento da leitura e da escrita de maneira mais contextual, e consequentemente mais efetiva”. - “Ao trazer textos autênticos para a sala de aula, o professor tem a oportunidade de mostrar as diferentes funções, objetivos e aspectos comunicativos presentes na manifestação escrita da linguagem, de maneira contextualizada, evitando, portanto, a simples memorização de regras e de estruturas”. - “Ao trazer textos de diferentes gêneros e épocas, o professor contribui na formação de leitores competentes e críticos, possibilitando uma reflexão sobre o caráter histórico, social, cultural e político da língua”.
- “... as condições de aplicabilidade dessa cartilha na sala de aula, ou seja, é preciso adequar a cartilha ao processo de ensino de língua no Brasil, e isso é desafiador, seja pela falta de investimento em educação, pela falta de motivação de alguns professores e alunos ou seja até mesmo pelas necessidades de mercado ou pelo imediatismo da vida contemporânea”.
Quanto ao levantamento das possibilidades de trabalho com a cartilha, todos
os alunos apresentaram considerações bastante significativas acerca do ensino da
língua. A abordagem dos eixos com base nos gêneros textuais de épocas distintas
permite a observância das mudanças e permanências da língua, em consonância com
a ideia de que “os textos não são mais o objeto final da nossa investigação, mas o
meio para distinguir as gramáticas dos falantes de português que os escrevem.”
(GALVES, 2012, p. 66). O reconhecimento de que, dentre as atividades propostas na
cartilha, há o trabalho com o texto e o trabalho com o gênero, conforme distinguem
Santos et. al. (2006), também revela um amadurecimento do olhar do aluno. Há
também a evidência da importância do contexto de produção para verificar a
historicidade da língua e dos textos, como também a acentuada ênfase nos diálogos
possíveis entre as abordagens sincrônicas e diacrônicas. Outra percepção que
276 Eutomia, Recife, 12 (1): 260-280, Jul./Dez. 2013
consideramos relevante na palavra dos alunos foi a questão da interdisciplinaridade e
da cidadania presentes no estudo e na preservação de documentos antigos. De um
modo geral, para nós, essas colocações vão para além da análise da cartilha. Elas dão
sinais de um(a) professor(a) em formação com uma concepção de ensino da língua
ampla, envolvendo aspectos não só linguísticos, mas também históricos, sociais,
culturais e políticos.
Quanto aos aspectos negativos pontuados pelos alunos, foi mencionada a
dificuldade de acesso ao material de época. De fato, nem todos os professores
dispõem de tempo para pesquisar documentos antigos em arquivos públicos, mas há
sites e livros que já trazem textos de épocas passadas com fotos dos originais e a
transcrição, o que facilita a localização e a análise dos textos. Outro ponto
mencionado foi a necessidade de preparação e de esforço do professor. A preparação
e o planejamento já são uma constante na prática dos educadores. O que o trabalho
com qualquer material novo vai requerer é um tempo de leitura e de estudo para a
apropriação do conhecimento. No mais, é contar com a disposição para experimentar,
para fazer da sala de aula um espaço criativo e vivo, pois o acerto e o erro fazem parte
das nossas ações e são dois caminhos para a aprendizagem. De todos os pontos
apresentados, a preocupação recorrente é como motivar os alunos a fazerem esse
mergulho do passado para o presente. Alguns alunos em suas respostas já apontaram
alternativas. O informante 2, por exemplo, levanta um questionamento e também
busca a resposta: “Agora, como podemos fazer com que o aluno se interesse nessa
pesquisa através da cartilha? Suponho que a curiosidade, atiçada pelo professor,
acerca do gênero possa ajudá-lo, basta apresentar um bom material para a leitura.”
Sim, sem dúvida, a escolha adequada do texto para o nível da turma, a
pertinência temática, o estímulo à pesquisa, a conquista paulatina pelos vieses da
curiosidade, conforme disse o informante 2, e da relevância do estudo são fatores que
contribuem fortemente para motivar o interesse dos alunos por textos de sincronias
passadas. O trabalho integrado entre professores de História e de Língua Portuguesa,
por exemplo, pode ser outra forma de motivar os alunos a ler e analisar textos do
período histórico que estiverem estudando. A segunda questão problematizadora
proposta para os alunos do curso de Letras foi exatamente refletir sobre essas
277 Eutomia, Recife, 12 (1): 260-280, Jul./Dez. 2013
alternativas para motivar os alunos que não estão habituados com a leitura de textos
dos séculos passados. Dentre as respostas apresentadas, destacamos:
Informante 1: “A comparação entre passado e presente (o que modificou e o
que permaneceu na língua e na composição dos textos)”; “a possibilidade de poder ir
até a fonte (os arquivos) para coletar os textos.”
Informante 5: “A observação de determinado fato da língua através de sua
evolução é interessante, porque percebe-se a necessidade de adequação desse fato ao
momento histórico, social e às exigências dos indivíduos.”
Informante 6: “É interessante saber um pouco sobre os costumes, os
pensamentos, a história de um povo através dos mais variados textos, e a diacronia,
ou melhor, a abordagem diacrônica possibilita isso.”
Nessas respostas, os alunos apresentaram alternativas de motivação que vão
da comparação entre o passado e o presente, tanto de aspectos linguísticos como os
costumes, que é algo bastante instigante, às aulas de campo que possibilitem a
experiência do contato direto com a documentação, algo que certamente mexe com o
imaginário e desperta a curiosidade dos alunos. Essas ideias, visando à motivação, só
reforçam que a língua é “testemunho de um povo que fez e faz a sua história”, como
bem disse Irandé Antunes na epígrafe deste artigo. Mostrar aos alunos que eles fazem
parte desse povo, dessa história e dessa língua é a grande motivação desse trabalho.
6. Considerações finais
Esperamos, com este artigo, ter despertado o interesse dos leitores para
conhecer a cartilha que foi produzida em 2012, um projeto inovador, e que aqui foi
rapidamente comentado. Esperamos ainda ter dado alguma contribuição para um
trabalho interdisciplinar e consciente de que a língua é um patrimônio histórico e
cultural. Visitem o site www.manuscritosimpressospe.com.br e entrem contato com
os autores para trocar ideias, fazer críticas, expor seus comentários e apresentar
sugestões. O olhar do leitor é muito importante para nós, pois nada está concluído,
tudo está em construção e em movimento sempre.
278 Eutomia, Recife, 12 (1): 260-280, Jul./Dez. 2013
7. Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes: 2000.
BARBOSA, Afranio. Tradições discursivas e tratamento de corpora históricos: desafios
metodológicos para o estudo da formação do português brasileiro. In: LOBO, Tânia
et. al. (Orgs.). Rosae: linguística histórica, história das línguas e outras histórias.
Salvador: EDUFBA, 2012.
CALVET, Louis-Jean. Sociolinguística: uma introdução crítica. São Paulo: Parábola
editorial, 2002.
FRAGA, Rose Mary. Anúncios: o comércio de coisas e de gente. In: SOARES, Tiago
Nunes.; GOMES, Valéria Severina. Identidade e memória em manuscritos e
impressos pernambucanos: língua, história e cultura através dos textos. Recife: Ed.
dos Autores, 2012.
GALVES, Charlotte. Periodização e competição de gramáticas: o caso do português
médio. In: LOBO, Tânia et. al. (Orgs.). Rosae: linguística histórica, história das línguas
e outras histórias. Salvador: EDUFBA, 2012.
GOMES, Valéria Severina. Traços de mudanças e de permanência em editoriais de
jornais pernambucanos: da forma ao sentido. Tese de Doutorado apresentada à
Universidade Federal Rural de Pernambuco. Recife, 2007.
GUEDES, Marymarcia & BERLINK, Rosane de Andrade (Org.). E os preços eram
commodos – Anúncios de jornais brasileiros século XIX. São Paulo: Humanitas, 2000.
ILARI, Rodolfo; BASSO, Renato. O português da gente: a língua que estudamos, a
língua que falamos. São Paulo: Contexto, 2006.
KABATEK, Johannes. Tradiciones Discursivas y Cambio Lingüístico. Fundacion
Duques de Soria. Seminário de História da Língua Espanhola “El cambio lingüístico na
historia española. Nuevas perspectivas”. Soria, Del 7 a 11 de Julio de 2003.
LIMA, M. L. C. A leitura como atividade interdisciplinar e a formação do professor. In:
MATTE, A. C. F. (Org.). Língua(gem), texto, discurso: entre a reflexão e a prática. Rio
de Janeiro: Lucerna; Belo Horizonte, MG: FALE/UFMG, 2007 pp 122-135.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: o que são, como se classificam? Recife,
UFPE (MIMEO), 2000.
_____. Linguística de texto: o que é e como se faz? São Paulo: Parábola Editorial,
2012.
279 Eutomia, Recife, 12 (1): 260-280, Jul./Dez. 2013
OESTERREICHER, Wulf. Autonomización del Texto e Recontextualización. Dos
problemas fundamentales en las ciencias del texto. In: RODRÍGUEZ, Eduardo Hopkins
(Ed.) Homenaje Luis Jaime Cisneros. Lima, Pontifícia Universidad Católica del peru,
vol. I, 2002, pp. 343-387.
PESSOA, Marlos de Barros. Da carta a outros gêneros textuais. In: LAMOGLIA, Maria
Eugênia et. al (Orgs.). Para a história do português brasileiro. Notícias de corpora e
outros estudos, vol. IV. Rio de Janeiro: UFRJ/FAPERJ, 2002 p 197-205.
________ . Formação de uma variedade urbana e semi-oralidade: o caso do Recife,
Brasil. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 2003.
RIZZINI, Carlos. O jornalismo antes da tipografia. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1968.
ROJO, Roxane. Modos de transposição dos PCNs às práticas de sala de aula:
progressão circular e projetos. In: ROJO, Roxane (Org.). A prática da linguagem em
sala de aula: praticando os PCNs. Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 2000.
SANTOS, Carmi Ferraz; MENDONÇA, Márcia; CAVALCANTE, Marianne C. B.
Trabalhar com texto é trabalhar com gênero? In: ______ (Orgs.). Diversidade textual:
os gêneros na sala de aula. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
SOARES, Thiago Nunes; GOMES, Valéria Severina (Orgs.). Identidade e memória em
manuscritos e impressos pernambucanos: língua, história e cultura através dos
textos. Recife: Ed. dos Autores, 2012.
SODRÉ, Nelson Werneck. Síntese da história da cultura brasileira. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1999.
TARALLO, Fernando. A Fênix finalmente renascida. Boletim da ABRALIN, n. 6,
1994, p. 95-103.
TRAVASSOS, Tarcísia; FERREIRA, Priscilla Elizabeth da Silva Costa. Cartas
particulares: história das pessoas, da sociedade e da linguagem. In: SOARES, Thiago
Nunes; GOMES, Valéria Severina. Identidade e memória em manuscritos e
impressos pernambucanos: língua, história e cultura através dos textos. Recife: Ed.
dos Autores, 2012.
280 Eutomia, Recife, 12 (1): 260-280, Jul./Dez. 2013
i Rose Mary DO NASCIMENTO FRAGA, Dra. Universidade Federal Rural de Pernambuco Departamento de Letras e Ciências Humanas [email protected]
ii Valéria SEVERINA GOMES, Profa.
Universidade Federal Rural de Pernambuco Departamento de Letras e Ciências Humanas [email protected]
Recebido: 31.08.13 Aprovado:20.09.13