uma herança de amor - quando o fim pode ser o começo

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Amanda é uma jovem recém-formada de 23 anos. Foi criada pela avó materna, vivendo no município do Rio de Janeiro, e passou a vida com uma grande lacuna em relação à lembrança dos pais. Devido a esse hiato de memória, ela atravessou um período de revolta na adolescência, quando trouxe grandes aborrecimentos a sua tutora. Esta, infelizmente, acaba de falecer, em decorrência de um súbito câncer. Em seu testamento, a avó pede que Amanda reencontre-se com a mãe e permaneça ao lado dela durante trinta dias, antes que tome posse de sua herança. E, em homenagem à figura materna que sua avó representou, mas muito a contragosto, a neta a obedece. Entretanto, a única coisa que Amanda sabe sobre a mãe é que ela era uma alcoólatra, e que, por isso, passou muito tempo vivendo em uma clínica de recuperação. Sobre o pai, Amanda só sabe que está morto.

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UMA HERANÇA DE AMOR

Quando o fim pode ser o começo

3a edição

Lycia Barros

S ã o P a u l o 2013

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2013IMPRESSO NO BRASILPRINTED IN BRAZIL

DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO ÀNOVO SÉCULO EDITORA LTDA.

Alameda Araguaia, 2190 – 11º andar – CJ 1111CEP 06455-000 – Barueri – SP

Tel. (11) 3699-7107 – Fax (11) 3699-7323www.novoseculo.com.br

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(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índice para catálogo sistemático:

Copyright © 2013 by Lycia Barros

Carlos Eduardo Gomes

Monalisa Morato

Fernanda Guerriero Antunes

Equipe Novo Século

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Para minha mãe, porque ela sempre esteve presente.

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“Há momentos que mudam o curso do seu destino para sempre. Algumas pessoas já viveram esses instantes. Outras não, mas esses momentos as esperam como tubarões que va-gam pelo fundo do oceano.

Somos como meros nadadores na superfície, pensando ter o controle de tudo e apenas vendo a praia de longe. Para muitas pessoas, vale a pena nadar até lá, vale a pena lutar. A praia significa esperança, o horizonte sobre ela é uma entra-da para um novo mundo. Nadamos, realizamos, trabalhamos duro e, durante todo o tempo, continuamos seguindo em di-reção ao futuro.

Contudo, o que está lá embaixo é maior e muito mais po-deroso, porque pode modificar o seu mundo, envolver você por completo e mudar tudo aquilo em que você acredita.”

(trecho retirado do livro A bússola da felicidade)

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Prólogo

Rio Grande do Sul, dezoito anos atrás.A brisa leve os envolvia como uma manta. Era uma

noite de verão, Marcelo Salvatore estava sentado na escada e contemplando sua filha da varanda, que corria alegremente ao crepúsculo. Seus cabelos molhados pendiam ao lado do rosto recentemente barbeado. Ele sempre estava impecável diante do juiz, por isso se preparara com louvor naquela manhã. Lutara por ela e vencera a batalha. Havia muito que celebrar. E, para começar, nada melhor do que a doce e tran-quilizadora maconha.

Com os olhos apertados, ele deu uma nova tragada e olhou para dentro de casa. Deb já se ocupava do jantar, mas em breve estaria ali com ele. Eram parceiros, nas alegrias e nas tristezas. Fora isso que prometeram na cerimônia, não foi? Contente consigo mesmo, Marcelo lembrou-se de que promoveria um grande churrasco, e que por isso ela se ocu-pava dos preparativos.

Havia passado a tarde inteira na piscina com a filha para comemorarem a sua guarda definitiva, e, por essa razão, ainda estava de sunga. Enquanto isso, Amanda corria pelo gramado e conversava com o pai, jogando uma nojenta bola de tênis para Iron pegar. O cachorro, que tinha um tom amarronzado brilhante, já não estava mais no auge da juventude. Mas se esforçava para dar conta do recado.

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A cada volta que a filha dava pelo quintal, Marcelo a agarrava e lhe fazia cosquinhas. Amanda conseguiria fugir, mas a verdade é que não resistia, pois gostava de estar nos braços do pai. Adorava o seu cheiro, sua risada e se divertia com seus cabelos. Ela não compreendia aquele clima de festa ainda, só sabia que estava adorando. Naquela tarde, houve muita conversa ociosa, muitas piadas e muito riso. A casa estava cheia de uma alegria quase celestial. Seu pai lhe pro-metera que, a partir daquele dia, nunca mais ela sairia de lá. Ficaria para sempre com ele e com Deb, como num final feliz de um de seus contos de fadas.

Promessas.Naquele dia, Deb também a abraçara forte pela primeira

vez, e fizera um grande bolo de chocolate para ela. “Vamos comer todos juntos na sua festa”, ela prometeu. Mas Amanda nunca provara daquele bolo.

Promessas.Diante das reclamações da esposa, Marcelo resolveu se

trocar antes de os convidados chegarem. Apagou o baseado no cinzeiro e finalmente colocou-se de pé. Nunca se sen-tira tão feliz em sua vida, finalmente conseguiria recomeçar. Invadido por essa emoção, correu para abraçar a pequena.

– Daqui a pouco venho te buscar, mocinha, estará vestida como uma princesa nesta noite. Pois o motivo dessa festa é você.

Foram com essas palavras que Amanda viu o pai se afastar, só não imaginava que fosse vê-lo pela última vez. Ela virou-se novamente para Iron e lançou mais uma vez sua bola amarela, alarmando-se ao vê-la cruzar o portão. O cachorro foi atrás. Amanda ainda olhava para aquele ponto quando o contem-plou atravessar a rua. O medo aflorou primeiro, pois ela temeu pelo seu cachorrinho. Papai iria brigar com ele, ela se lembrou, com as mãos na boca. Nenhum dos dois tinha permissão de sair sozinho. A esse pensamento a menina estremeceu. E se Iron se perdesse por lá? E se não achasse mais o caminho de

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casa? E se alguém o roubasse? Entretanto, pensou ela consigo mesma, sabia que não poderia sair de casa sozinha, e nunca descumpria aquela regra, pois gostava de deixar o pai satisfeito. Por isso, sentou-se na grama e esperou, pacientemente. Como se passasse algum tempo, seus olhos começaram a encher-se de lágrimas. Iron não estava voltando, e seu pai também não estava por perto para buscá-lo e trazê-lo de volta. O que deveria fazer? Sem opção, ela decidiu que precisava salvá-lo, mesmo que seu pai ralhasse com ela depois.

– Iron! – foi o que gritou, antes de sair andando sorratei-ramente para a escuridão. E aquela decisão feriu a sua alma para sempre.

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Capítulo 1

Minas Gerais. Dias atuais.Ela daria tudo por um antiácido. Tinha cinco anos da última

vez em que vira os pais e só aquilo podia explicar aquele embrulho inces-sante no estômago. Não seria como reencontrar velhos amigos, parentes distantes ou um encontro às escuras. E, acima de tudo, não seria como encontrar alguém que ela realmente gostasse. Na verdade não havia sen-timentos. Talvez fosse melhor se houvesse alguma dor, alguma alegria, ou até mesmo raiva. Pelo menos, Amanda saberia como lidar com aquilo tudo. Saberia como reagir e não ficaria especulando qual seria a reação da mãe. Será que conseguiria reconhecê-la?

Segundo sua avó, seria tão simples quanto olhar o seu reflexo no espe-lho. Mas dona Sandra sempre simplificara muito as coisas. Pelo pouco que conseguia se lembrar, sua mãe tinha uma face esculpida pelos anjos. Seus caracóis dourados desciam serpenteando as costas e seus olhos eram castanhos, amendoados e curiosos. E seu sorriso era livre. Às vezes, regados de amor, mas, muitas vezes, exagerados. Seu pai sempre lhe dizia que ela ria daquele jeito porque estava doente, e que Amanda deveria evitá-la naqueles momentos. Claro que, naquele tempo, Amanda não entendia o significado do termo ‘alcoolismo’. E foi esse mesmo termo que um dia desintegrou a família.

Marcelo Salvatore era um renomado advogado da cidade de Ibirubá, pequeno município do Rio Grande do Sul, e por isso conseguira rapida-mente a guarda da única filha. E um ano depois da separação, já estava casado de novo. Amanda não se lembrava do nome dela, mas gostava de se lembrar dela como Deb. Talvez se chamasse Débora, a verdade é

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que ela nunca saberia. Ambos eram bonitos, elegantes e claramente apai-xonados. Em nenhum momento, Deb mostrou que desejava substituir sua mãe. Mas Amanda sabia que, na medida que podia, Deb também a amava. E havia algo muito forte e importante que unia as duas: ambas eram apaixonadas pelo mesmo homem.

Seu pai era um rapaz charmoso de 29 anos quando tudo aconteceu. Era um moreno alto, de compleições fortes e com um corpo atlético. Seus incríveis olhos verdes pareciam saltar na sua pele dourada. Mas, acima de tudo, ele era o seu herói. Fora ele quem lhe salvara daquela maluca. Na época, Amanda confiava que agora seu pai lhe proporcionaria uma vida regrada e de paz. Iria finalmente para a escola, teria um quarto só para ela e tinha acabado de ganhar um cachorro. Seu pai também nunca se opu-nha – mesmo quando cansado – a passar algumas horas deitado com a filha lhe contando intermináveis estórias sobre fadas. Coisa que sua mãe nunca fizera. Pelo menos não que Amanda se lembrasse.

A vida era mesmo injusta, meditava Amanda, enquanto trocava de marcha. Talvez, pensando bem, houvesse sim algum sentimento por sua mãe. Talvez ainda houvesse alguma mágoa escondida no seu coração, muito bem camuflada durante os últimos dezoito anos. O que, idiota-mente, acabou lhe trazendo um certo conforto, pois com isso ela estava habituada. Afinal, já fora magoada muitas vezes.

A estrada sinuosa também não ajudava muito, e talvez fosse por isso o desconforto estomacal. Nunca havia viajado de carro sozinha. Aliás, pensando bem, nunca havia viajado sozinha. Apesar das circunstâncias, sentia-se bem por estar resolvendo aquilo tudo. Era isso que as pessoas maduras e independentes faziam, não é? Resolviam seus problemas sozi-nhas. E ela agora já estava com 23. Amanda sabia que era tempo de cres-cer e precisava urgentemente confrontar o seu passado.

Um hiato de memória.Mas será que queria mesmo remexer naquela gaveta? Será que alguns

sentimentos ainda poderiam ser reativados? Ao simples pensamento, Amanda alisou o braço, sentindo um súbito calafrio de apreensão. Mas ainda faltam duas horas, ela disse a si mesma, enquanto agarrava o volante e mirava fixamente a faixa amarela desenrolando na estrada. Precisava

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manter a calma para resolver aquele pequeno problema. E quanto mais rápido fizesse isso, seria melhor para todos, pois não tinha ideia da recep-ção que lhe aguardaria mais tarde. Contudo, ela imaginava, deveria ser cheia de acusações e ressentimentos.

Quando abriu o testamento da sua avó, já sabia que haveria alguma surpresa, só não esperava que fosse ser tão desagradável. O câncer a levara de forma rápida, mas deu-lhe tempo de organizar tudo como queria. Essa era dona Sandra, sempre prática.

Sua avó frequentemente fizera uma força para aproximar a neta da filha, mas não conseguira realizar o seu intento em vida. Então, como se rindo do paraíso, resolveu manipulá-las após a morte.

Trinta dias.Trinta dias com as duas juntas na mesma casa.Foi o pedido anexado ao seu testamento.Ambas precisariam passar por aquilo juntas e só então usufruiriam

do que lhes cabia. Aquilo era simplesmente ridículo, Amanda balançou a cabeça, além de absurdamente patético. De que assunto elas iriam con-versar, se já fazia dezoito anos que não se viam? Se pudesse se dar àquele luxo, com certeza abriria mão daquele dinheiro. Mas naquele momento, literalmente, ela não podia. Formara-se no semestre anterior e vivera por quatro meses com o apoio dos amigos, e ocasionalmente de algum cachê como recepcionista. Suas amigas sempre a apoiaram em tudo. Principalmente depois da morte de sua avó – quando precisou de alguma ajuda financeira, ela fora imediata. Até com o enterro ela não se preocu-pou, pois sua amiga Clarissa – abençoada seja – fez questão de cuidar de tudo pessoalmente.

Quatro meses, suspirou Amanda com tristeza, enquanto avistava uma nova placa na beira da estrada. Havia quatro meses sobrevivia sem sua avó. A ferida provocada pela sua morte ainda sangrava e esfacelava seu peito de dor, fazendo os olhos arderem e seu estômago ficar embolado. Sua avó era a única família que conhecera na vida e ela nunca havia se sentido tão desamparada, mesmo já tendo conhecido o amor de Jesus. Sua jornada espiritual começou muito perto de sua avó falecer, e muitas perguntas ainda estavam sem respostas na sua cabeça.

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Tentando ignorar essa sensação, ela começou a tatear a bolsa em busca de um Trident®, um substituto nos últimos tempos para o cigarro. Desde que havia se convertido, não colocara mais nenhum cigarro na boca. Pelo menos isso, pensou Amanda, com certo conforto, ela conse-guira fazer em vida pela sua avó. Quantas vezes Sandra pedira para a neta parar de fumar? Porém, agora o sacrifício era outro, e Amanda especulava o quão doloroso e traumatizante seria.

Riscos à saúde?, pensou ela, com um dar de ombros, talvez. Integridade física? Bem, Amanda apertou o volante, isso dependia do que ouviria de sua mãe. Ela se convencera de que viera pelo dinheiro, mas sabia que fora só por causa disso. Queria acreditar que já estava preparada para o per-dão, como Clarissa sugeriu, mas no fundo também sabia que não seria tão simples assim. Mascarada por trás daquela ambição mesquinha, havia a curiosidade que ela enfrentara durante anos: o que acontecera real-mente naquela noite? E por que seu pai nunca voltara para casa? Amanda sabia que ele havia falecido, ainda era criança quando sua avó veio buscá--la; todavia, suas lembranças ainda eram muito turvas.

Lembrava-se de que morara com o pai, mas somente por poucas horas. Lembrava-se de brincar na varanda em meio a margaridas, rosas e jasmins. Lembrava-se vagamente do cachorro. Lembrava-se de Deb ser-vindo o jantar enquanto todos sorriam, e depois...

O escuro.Sombras, gritos e um súbito clarão de faróis seguido de uma tinta

vermelha que dominara completamente o cenário. Aquela parte que, inconscientemente, ela bloqueara com frequência durante anos era a que mais precisaria de uma resposta.

Tentando novamente evitá-la, Amanda fixou os olhos na vegetação. Aquela era uma linda paisagem, ela concluiu, tentando se distrair, mesmo que não entendesse como uma pessoa poderia se estabelecer numa cidade pequena. Pelo que soube, São Lourenço tinha em torno de quarenta mil habitantes e era a terceira menor cidade do país. Amanda se arrepiava só de pensar em morar ali. Apesar de ter nascido em Ibirubá, desde os cinco anos ela morou com a avó na agitação da zona sul do Rio de Janeiro. Mais

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precisamente no charmosíssimo bairro da Urca. Era uma garota tipica-mente metropolitana, refletiu ela, com uma fisgada de orgulho.

Claro que teve suas desvantagens, como ela pôde constatar bem de perto: nem tudo que reluzia era ouro. Durante certo tempo, Amanda teve contato com a parte podre da cidade grande. A parte que deveria ignorar. Arrumou alguns amigos da pesada e impingiu um período difícil à vida de sua saudosa avó. No Rio de Janeiro, qualquer desejo sórdido poderia ser facilmente atendido nas ruas. Desde um simples consumo de drogas até a mais vil prostituição de menores. Seus governadores e moradores compreendiam isso, e já não sentiam constrangimento por este fato. Não se davam mais ao trabalho de se importar. Mesmo assim, ainda era uma cidade encantadora e muito apreciada pelos turistas. As pessoas ocupa-vam cada canto, cada palmo e cada esquina. E o barulho de sua existência se elevava como uma celebração. Para Amanda, aquela miscelânea era o seu verdadeiro lar. Tinha a agitação e o esplendor da natureza, e o que faltava de cordialismo compensava em possibilidades de vida. Porém, graças a Deus, agora ela estava livre dos pequenos delitos, mesmo que nunca tenha pegado em nada pesado. Amanda não entendia o porquê, mas o cheiro do baseado sempre lhe trazia um certo conforto. Agora, liberta de tudo, ela acreditava que foi apenas um período de revolta pelas perguntas não respondidas.

A placa dizia que faltavam cem quilômetros para entrarem no muni-cípio de São Lourenço, e o coração de Amanda se agitou. Ela ficou pen-sando em como postergar a sua chegada. Talvez ainda fizesse algum lan-che no caminho. Como era domingo, torcia para que encontrasse algum lugar aberto nas proximidades. Ela sabia que sua mãe lhe aguardava, porém, pretendia despachar as malas em alguma pousada primeiro. Em seguida, talvez fosse procurá-la.

Não, ela decidiu, elas não dormiriam sob o mesmo teto naquela noite; primeiro sondaria o terreno. Lera muitas coisas sobre os hábitos dos alcoólatras. Mas, em consideração ao pedido de sua avó, se esforçaria para passarem algum tempo juntas. Queria acreditar que estava fazendo a coisa certa. Além do mais, também viera buscar uma resposta.

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Tinha um endereço. Apesar de nunca ter estado por lá, imaginava que seria fácil encontrá-lo. Pelo que sabia, a cidade de São Lourenço era formada por ruas estreitas e bem sinalizadas e quase todas acabavam no centro. Talvez tomasse um banho, arrumasse as coisas e fosse ler algo. A leitura fatalmente a acalmava, pois era o hobby mais apaixonante de sua vida. Nos últimos meses, aqueles em que passara na penúria, se tivesse que decidir entre adquirir comida ou um lançamento de um livro, não hesitava e passava fome. Era na leitura que ela encontrava sempre uma fuga. Porém, naquele dia, ela temia que não. Sua concentração estava muito abalada. E a história de sua vida já estava bem atordoante.

No som, o grupo Christafari tocava Never give in com o objetivo de fazê-la relaxar. Através das janelas do carro, Amanda captava a paisagem que margeava a estrada e o aroma de grama molhada. Orava em silêncio, pedindo a Deus a serenidade para resolver a situação. Havia chovido naquela manhã de verão, e misturavam-se no ar o cheiro de cavalos e de terra recém-revolvida. Amanda ficou feliz ao avistar uma nova placa, faltavam somente oito quilômetros para adentrar na cidade destino. Foi quando, abruptamente, ela ouviu um baque surdo e um solavanco atra-vancou o motor, que começou a engasgar. Ela ouviu um ruído agudo, seguido de uma fumaça no capô. Apavorada, Amanda desligou o carro e arremessou a cabeça de encontro ao volante. O que, em nome de Deus, estava acontecendo justamente agora que ela rompera recentemente com o seguro?

Quando estava sozinha.Numa tarde de domingo.No meio do nada.Ficou ali parada e fitando o além, incrédula com sua falta de sorte.

Depois, com um suspiro, decidiu que precisava se acalmar. Talvez não seja nada demais, tentou confortar a si mesma. Olhando pelo retrovi-sor, Amanda não avistou nenhum outro veículo seguindo por aquele caminho. Mas certamente logo, logo passaria algum. Não havia outro jeito, precisaria apelar para sua técnica de sempre: sairia do carro com sua melhor cara de menina perdida e lançaria um olhar apelativo para o primeiro motorista que passasse. Precisava admitir, depois de um certo

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tempo, adquiria-se uma prática impressionante. Não tinha orgulho de si mesma por causa disso.

Tudo bem, ela sabia que era patético, mas, afinal de contas, o que ela entendia de carros? Na verdade, naquele momento, era uma pena que não usasse mais seus antigos decotes. Eram mais ágeis e providenciais do que qualquer seguro.

Entretanto, como pôde constatar, parecia que o Divino não estava aprovando seus planos, pois não passou nenhuma vítima para ela apelar. Como se passaram dez minutos, Amanda começou a ficar ligeiramente cabreira. Olhando para a estrada à sua frente, avistou uma pequena placa e, quando se aproximou, se animou quando leu os dizeres:

OFICINA MECÂNICA – 200 METROS.

Com um suspiro, Amanda voltou para o carro para pegar sua bolsa. Em seguida se encaminhou para lá. Durante o caminho, conferiu se seu spray de pimenta continuava guardado, pois não saía mais de casa sem ele. E em uma estrada deserta era melhor se prevenir. Infelizmente, duzentos metros de subida não foram muito animadores, mas era melhor do que ficar encalhada na estrada. Aproveitou para apreciar a paisagem.

Amanda ficou meditando se aquilo não era um sinal. Se não era melhor retornar e evitar aquele encontro fatídico. No entanto, se fosse embora naquele momento, se fugisse, jamais teria as respostas para as perguntas que nem ela compreendia.

Enfim, Amanda chegou ao abençoado estabelecimento. Os portões ainda estavam abertos e ela quase beijou o solo de tão grata que ficou. Era uma oficina velha, com muros altos e um portão de ferro azul visivelmente desgastado pelas intempéries. Porém, à primeira vista, não havia ninguém ali na frente para atendê-la. Com cara de nojo, ela constatou que o ambiente necessitava urgentemente de ser lavado com uma mangueira de pressão.

Ainda pensava nisso quando ouviu um barulho, vozes de televisão, e concluiu que os funcionários deveriam estar assistindo a algum pro-grama. Afinal, era uma tarde domingo. Amanda imaginou a cara deles quando a vissem entrar ali: uma turista bonita, desamparada e sozinha.

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Ela era confiante sobre a sua própria aparência. Enquanto todas as suas amigas passaram a adolescência diante do espelho numa angústia mortal encarando seu reflexo, Amanda sempre esteve satisfeita consigo mesma. Forçando os ombros para trás, passou pelo espaço entre dois carros e foi seguindo aquele burburinho. Porém, antes que alguém a avistasse, foi surpreendida com o pulo de um cachorro. Ficou atônita. Um labrador de cor caramelo carimbou seus dois ombros com as patas e em seguida deu--lhe lambidas de boas-vindas. Tudo aconteceu tão depressa que seu cora-ção disparou com o susto. Mas ao ver o quanto era inofensivo, ergueu as mãos e afagou-lhe as orelhas. Sempre fora apaixonada por animais. Depois de tê-lo acalmado, Amanda viu o animal se abaixar e seguir para trás de um balcão. Imaginou que seu dono estivesse por ali. Deu uma breve espanada no ombro e seguiu para lá. Ao colocar a sua bolsa no bal-cão, avistou um homem sozinho e concentrado em uma partida de fute-bol. Reparou que ele tinha cabelos lisos e compridos mais ou menos na altura dos ombros. Ele estava de costas e, numa reação instintiva à che-gada do cachorro, começou a acariciá-lo com os dedos dos pés descalços.

Amanda pigarreou uma vez, porém não obteve sucesso, pois o homem continuou a ignorá-la. Ele agarrava o controle remoto como se sua vida dependesse daquilo. Ela abriu a boca para falar, mas o grito estrangulado que ele deu a surpreendeu, estalando pelo ar como um chicote. O homem esbravejava para tela, como se o jogador estivesse lhe ouvindo. Amanda suspirou, já vira aquela cena muitas vezes com seus amigos: rapazes cegos e surdos para qualquer coisa que não fosse a partida.

Irritada por estar sendo ignorada, Amanda deu um grito do balcão. Diante dos seus olhos incrédulos, o homem limitou-se a erguer um dedo indicando que ela esperasse. Sua reação foi um misto de risada com sus-piro, aquilo só podia ser brincadeira. Injuriada, rangeu os dentes e catou sua bolsa no balcão. Porém, antes de sair, ainda disse:

– Devia pôr o cachorro pra trabalhar. Pelo menos, ele recebe os clien-tes na entrada. E, por sinal, com muito mais educação.

O homem virou o rosto para ela. Em seguida, ainda praguejando, colocou-se de pé. Olhando-a de frente com as pernas afastadas, como se estivesse posicionando-se para um combate. O sol do final da tarde

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penetrava pela claraboia e se espalhava iluminando seu rosto, acentu-ando um maxilar duro e um par de olhos cor de âmbar. Seu cabelo era escuro e brilhante, com fios escorridos e sem penteado definido. As pontas eram claras pelo sol. Suas sobrancelhas eram grossas e seus cílios negros, longos e espessos. Havia uma harmonia indescritível nos seus traços. Percebeu também uma discreta covinha demarcando seu queixo. Como se Deus o tivesse selado com um toque de perfeição. Ele apoiou as duas mãos nos quadris. Usava um jeans que tinha partes iguais de manchas e buracos. Sua blusa tinha um tom de verde-musgo, salpicada por rajadas de tinta e outra coisa que parecia ser óleo. Obviamente, fazia uns três dias que ele decidira não fazer a barba, e parecia que tinha menos de trinta anos.

Nunca em sua vida Amanda havia se sentido atraída por um sujeito tão rude e com uma aparência tão desleixada. Até aquela hora.

Porém, ela se recusou a se entregar à fantasia ridiculamente clichê, apenas pelo fato de estar frente a frente com um homem tão esguio, alto e viril, que segurava o controle da tevê com uma mão obviamente com-prida, emendada em um pulso visivelmente forte, abençoada com uns dedos largos, talvez ligeiramente áspera...

– Planeja ficar aí muito tempo ou vai me dizer o que veio fazer?Pega de surpresa, Amanda voltou os olhos para a televisão. Não

esperava por uma pergunta num tom tão rude. Diga alguma coisa, ela gritou em pensamento, tentando ardentemente se lembrar do que veio fazer.

– Meu... er... meu carro pifou a alguns metros daqui. Não sei o que aconteceu. Queria saber se você podia...

– Não funcionamos no domingo – ele a interrompeu.Com uma cara atordoada, Amanda piscou.– Mas... eu... o portão...– Deixei aberto porque estava calor, só vim aqui para ver essa bosta

de jogo. Um homem tem direito a ver o jogo sozinho, não é?Amanda apertou os lábios com força, subitamente enervada com

aquele tom. Quem, diabos, aquele caipira achava que era para ignorar um cliente naquela oficina no meio do nada? Muito menos se dirigindo

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a ela com aquele palavreado esdrúxulo? Mentalmente, ela resolveu exa-minar suas opções:

Dormiria na estrada, correndo o risco de ser assaltada;pegaria uma carona com um estranho ou um caminhoneiro; ouengolia o sapo e o persuadia a quebrar o galho.A decisão foi rápida. Para animar-se lembrou daquele versículo: “A

palavra branda desvia o furor” (Provébios 15:1). Com um sorriso falso que até um cego poderia enxergar, ela aproximou-se e sussurrou com uma voz manhosa:

– Sei que você deve estar muito cansado, pois deve dar um duro danado a semana toda. Mas meu carro está somente a alguns metros daqui. Será que não podia dar somente uma olhadinha?

O meio sorriso dele foi frio. Deve estar habituada com o assédio mas-culino, imaginou ele, virando-se de costas e desligando a televisão. Com uma rápida olhadela, ele já sacara o tipinho: cabelos longos e loiros, boa altura, olhos castanhos e amendoados. Aquela carinha de anjo devia fazer muito marmanjo babar.

– Muito bem – ele suspirou –, esse jogo tá mesmo uma droga. Posso até ir lá com você, mas não faço nada de graça.

Ofendida, Amanda apertou os olhos para ele.– Se está falando de dinheiro, é óbvio que pretendo lhe pagar.Enquanto encoleirava o labrador, ele ergueu os olhos duros para ela.– É claro que estou falando de dinheiro, não seja ridícula. Isso aqui

é meu trabalho.Sentindo-se realmente ridícula – apesar de ligeiramente ressentida

–, Amanda apressou-se em se desculpar. Precisava ser humilde, se qui-sesse ajuda.

– Desculpe, é que estou sozinha na estrada e acho que estou meio nervosa. Foi... tolice minha.

– Sei – ele deu um suspiro rápido –, mulheres como você sempre acham que estão sendo cantadas.

– Como assim, mulheres como eu? – Amanda estreitou os olhos minimamente.

Ele olhou-a rápido e franziu os lábios por um momento.

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– Mulheres... sei lá, sozinhas – ele deu de ombros, enrubescendo um pouco.

Amanda segurou uma risada ao ver o nítido constrangimento na face dele. Mesmo assim, não resistiu e alfinetou:

– Talvez porque caipiras como você costumem sempre nos passar cantadas.

– Caipiras? – ele repetiu a palavra, saboreando como se aquilo fosse um título. – Pois talvez esse caipira aqui ainda te salve nesta tarde. E, a não ser que pretenda dormir na estrada, aconselho que seja mais simpá-tica. Prontinho. – Ele ficou de pé, franzindo o cenho quando o cachorro correu para ela. – Podemos ir agora. Pra que lado está o carro?

Amanda se abaixou para afagar o cachorro, a luz do sol se refletia em seus cabelos.

– Pra esquerda. Ei, pare com isso – ela sorriu enquanto era lambida. Depois, olhando para o dono, disse: – É um belo cachorro. É seu?

– Hum hum.Amanda fez uma expressão de estranheza, caçoando.– Mas ele é tão amável, não dizem que o cachorro se parece com o dono?– Não é o caso aqui – ele abriu uma mochila e enfiou uma garrafa de

água dentro –, esse aí da bola pra qualquer um.– É verdade, acho mesmo que esse não é o caso – ela examinou-o de

cima a baixo –, pois esse fofinho aqui é muito simpático. E, ao contrário do dono, parece que gostou de mim.

O homem não se deu ao trabalho de olhar para ela, mas, quase sor-rindo, se afastou e foi pegar um molho de chaves. Em seguida, disse:

– Não se anime por isso, ele prefere beber água da privada. Seu gosto não é muito confiável. – Amanda abriu e fechou a boca sem emitir som. – O nome dele é Thor – ele continuou, colocando a mochila em um dos ombros. – Quando o peguei, a intenção era para que tomasse conta da oficina, mas obviamente eu escolhi a raça errada.

Decidida a não se aborrecer, Amanda tornou a sorrir e viu Thor se virando de barriga.

– Labradores são mesmo muito dóceis. Eu tinha um vira-lata quando era pequena. O nome dele era Iron, foi meu pai quem me deu. Acho

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que tinha labrador misturado nele, só que seu porte era um pouquinho menor. Depois que... – ela se interrompeu e fechou o semblante, depois suspirou e colocou-se de pé – depois que o perdi, nunca mais pude ter outro. Até há pouco tempo eu morava com minha avó, e ela tinha alergia.

Ao olhar para o mecânico novamente, algo dentro de Amanda se alte-rou. Algo rápido e inesperado, ela percebeu. O jeito como ele a olhava, de repente interessado, parecia dissecá-la por dentro. Ele chegou bem perto e lançou-lhe um olhar suave enquanto resgatava a coleira.

– Sinto muito.Amanda piscou.– Pelo quê?– Sua avó, você disse que ela tinha alergia. Imagino que ela tenha

falecido.– Ah... ahn... – ela estava atordoada com tanta proximidade. – Já

faz quatro meses. Mas, bem – forçou um sorriso –, pelo menos agora eu posso ter um cachorro quando quiser.

O homem foi andando até um interruptor e apagou as luzes; depois, seguiu andando para o portão em silêncio. Ela presumiu que deveria segui-lo, pois, pelo visto, comunicação não era o seu forte. Ao saírem para calçada, ele pediu que ela segurasse a coleira enquanto puxava os portões. Ao observar aqueles músculos se movendo, Amanda ficou pen-sando em puxar outro assunto, porém não encontrou nada para falar. A exibição de tanta masculinidade foi reduzindo o seu cérebro a mingau. Ele era um sujeito forte. Seu jeito rude e ao mesmo tempo sofisticado era completamente intrigante, e ela concluiu que ele certamente sabia disso. E devia usar aquilo muito bem.

Notou também – claro que por acaso – que suas mãos não possuíam nenhuma aliança, e ficou surpresa por gostar tanto da informação. Ele devia ser uma espécie de galã naquela cidade pitoresca. Mulheres deviam quebrar seus carros com mais frequência do que num rally. De repente, ele tornou a olhar para Amanda e um músculo do seu maxilar se moveu, como se estivesse camuflando uma reação. Ele fez um rabo de cavalo desajeitado, limpou o rosto no antebraço e saiu andando na frente, dei-xando escapada uma mecha da sua franja.

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Ele é meio bronco, pensou ela em silêncio, com um misto de desdém e interesse. Qualquer outro homem naquela situação já teria lhe dado mais atenção. Mesmo assim, não podia se negar, era um pedaço de mau caminho. Um admirável espécime masculino. O mais estranho, porém, é que Amanda sempre ficara com os caras mais cobiçados no Rio, e não entendeu por que reparava tanto naquele reles mecânico. Mas, pensando bem, ela decidiu, virando a cabeça de lado para analisá-lo de costas, dá para entender muito bem. Pois bendito seja o designer daquele jeans.

Novamente Amanda riu de si mesma, em seguida pensou: Ora bolas, uma mulher podia ficar curiosa por causa de um homem sem estar, necessa-riamente, interessada nele, certo?

Ambos começaram a caminhar na direção do carro e ela percebeu que ele caminhava um pouco mais rápido, como se quisesse estar sem-pre a sua frente. Seu olhar deslocou-se para a paisagem e ficou vague-ando por lá. Não parecia incomodado com aquele silêncio, absoluta-mente. Porém, Amanda se contorcia de agonia por dentro. Talvez pela necessidade de conversar com alguém para escapar um pouco daquele clima de tensão. Afinal, aquele encontro com a mãe nunca estivera nos seus planos. Ele parou de pernas afastadas diante do carro e ela entrou para abrir o capô.

– Ouvi um ruído alto – ela informou – seguido de uma fumaça no capô. Depois ele engasgou e parou. Minha avó comprou esse carro zero há somente dois anos e ele nunca havia dado problema antes. Não imagino o que tenha acontecido. Mas também, não entendo patavinas de carros.

O mecânico permaneceu calado. Franzindo o cenho, ele ficou anali-sando o motor com tanta concentração que ela se viu olhando na mesma direção. Porém, depois de alguns segundos ali parada, em pé ao lado dele, em completo silêncio, ela começou a se sentir um tanto idiota. Para onde, afinal de contas, ele estava olhando?

– Fez a revisão antes de vir?– Ahn? Eu... bem... Minha avó é que costumava fazer essas coisas.Sacudindo a cabeça, ele abriu o zíper da mochila bruscamente.– Vai ter que se acostumar a se virar sem ela. Precisa fazer a revisão

de água e óleo regularmente, e não é só quando for viajar. Ou então – ele

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sorriu de leve, enquanto abria a tampa do radiador – vai ter que arrumar alguém que faça isso pra você. E pelo visto não vai ser muito difícil.

Lisonjeada, Amanda mordeu os lábios e perguntou:– Agora foi uma cantada?– Não – a negação veio rápida –, foi só uma dica. Eu conheço os tais

caipiras de quem falou. E, acredite, não sou um deles.Que pena, ela refletiu em silêncio, repreendendo-se logo em seguida.

Às vezes, Amanda mal se reconhecia. Mas precisava admitir: estava se divertindo com aquilo. E como não havia nenhuma testemunha à volta... O que custava tirar um sarro da cara dele?

– Então, me diga... – Amanda apoiou um cotovelo no carro – que tipo de caipira você é? Casado, enrolado, enrustidamente gay? Pois não me parece ter vocação para ser um padre. Que tipo de pessoa interessa você?

Ele mirou-a por um segundo e murmurou:– As caladas. Pega aquela garrafa de água pra mim.Amanda se agachou e retirou-a da mochila balançando a cabeça, e

em seguida entregou-a para ele. Conhecia muito bem aquele tipo: ele gostava de se fazer de difícil. Àquela altura da sua vida, porém, nada mais a respeito de homens lhe surpreendia. Ele contornou o carro e ligou a chave na ignição, depois despejou todo o líquido no motor. Aos poucos, o barulho foi se estabilizando e ele verificou a vareta do óleo, dando um longo muxoxo em seguida.

– Passe aqui amanhã para trocar o óleo, senão vai acabar batendo o motor – ele bateu o capô. – Para onde vai agora?

– Pra cidade.– Que lugar da cidade?– Isso não é da sua conta – Amanda sorriu com deboche, para depois

olhar perplexa enquanto ele se sentava ao volante e colocava Thor no banco de trás. – Ei... eu... quanto ficou o serviço?

– Falamos sobre isso no caminho, parte do pagamento é uma carona de carro pro centro. Entra aí.

Amanda alteou uma sobrancelha.– Pelo menos eu posso dirigir?

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Olhando-a fixamente através do vidro, ele estendeu o braço e bateu a porta ao lado de si.

– Não! Acha que eu estaria aqui sentado se estivesse disposto a isso? Não costumo pegar carona com mulher relapsa. E seu carro não tinha nem sequer uma gota de água. O que, obviamente, a incluiu nessa categoria.

– Então era só isso? – ela se espantou. – Água? Por que o carro não avisa quando está com sede?

Ele também ergueu uma sobrancelha, conseguindo ficar ainda mais charmoso.

– Sugiro que estude o manual do carro, de preferência no capítulo painel.

– Humpf... – ela cruzou os braços. – Só espero que não saia muito caro. Mas pode ir ralando daí, não vou entrar nesse carro com você. Eu mal te conheço.

– Tudo bem então – ele ligou o carro –, vou deixá-lo estacionado em frente ao Parque das Águas, a chave estará na ignição. Não se preocupe, é uma cidade pacata.

– Espere! – berrou ela, contrariada, decidindo não nadar contra a maré e esborrachando-se no banco do carona. Porém, assim que botou os olhos nos músculos da perna dele ressaltando naquele trapo que ele devia chamar de jeans, concluiu que terminaria a viagem de forma divina. Afinal, admirá-lo não iria lhe matar. E se ele conseguisse manter a matraca fechada, talvez um dia até tivesse uma chance.

O caminho não foi muito longo, não durou mais do que oito minutos. Ao avistar as construções da cidade, Amanda sentiu o estô-mago tornar a se contorcer, mas fez de tudo para bloquear a sensação. Tinha a impressão de que a qualquer momento veria sua vexaminosa mãe cambaleando por ali, provavelmente voltando trôpega de algum bar. Na esperança de se distrair, ela tornou a abrir a boca. Percebeu que estava curiosamente tagarela.

– Então, você... mora por aqui há muito tempo? – perguntou a ele.– Desde que nasci.– Hum... Mas nunca saiu para estudar? Morar um tempo fora ou

coisa assim?

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– Não. Viajei bastante por causa de um hobby, mas já faz tempo que estou em terra firme.

– Nossa... – ela revirou os olhos – não consigo me imaginar morando numa cidade pequena, tipo... – ela sacudiu a mão. – Sem ofensas. Mas com o tempo deve ser entediante. Sempre os mesmo lugares, as mesmas pessoas... uma rotina miseravelmente chata. Acho que eu ficaria maluca. No Rio tem muitas coisas pra fazer: shopping centers, teatros, shows... pode ir a um lugar diferente por dia, durante o ano inteiro, e ainda assim terá novidades.

– Não gosto de novidades – disse ele, estacionando o carro e virando o rosto para ela. – Gosto das coisas seguras. Do conhecido. E ficaria maluco se morasse num lugar perturbado como o Rio, com tanta gente frenética. Quanto a coisas pra fazer, você está enganada, temos muitas coi-sas para fazer por aqui. E, provavelmente, muito mais saudáveis. Gosto de conhecer as pessoas nas ruas, de cumprimentá-las, de saber das suas origens... A única coisa que estraga a cidade, no meu modo de ver, são os turistas – ele desligou o carro e ergueu a mão. – Sem ofensas.

Sentindo-se desafiada, Amanda girou o corpo para ele. – Sabe, conheço bem alguns tipinhos como você, que gostam de

bancar os durões pra impressionar a mulherada. Mas, na verdade, só fazem isso porque são inseguros. Lá no Rio isso é muito comum, mas comigo não cola. – E abrindo a bolsa perguntou: – Afinal, em quanto eu morri nessa brincadeira?

Segurando uma risada e olhando para frente, ele tirou o cinto de segurança e abriu a porta do carro. Em seguida, retirou o cachorro. Com uma cara emburrada, Amanda passou para o volante e repetiu a pergunta:

– E aí, quanto eu lhe devo?Ele se abaixou e colocou uma mão na janela, até seus olhos se encon-

trarem. Chegou tão perto dela que percorreu-lhe um calafrio.– Não precisa pagar nada. Gosto de passar algum tempo com mulheres

bonitas, divertidas e inteligentes. Ainda mais quando gostam de cachor-ros. É um pacote muito sexy, e muito raro aparecer pela cidade. Mas, pelo visto, hoje foi meu dia de sorte.

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Amanda manteve os olhos fixos nele enquanto sentia seu coração disparar. Como ele conseguia lhe deixar tão abalada? Mal-humorado e muito rude num segundo, e generoso e muito sexy no outro. Sem fôlego, ela sentiu os lábios se curvando num sorriso.

– Isso... – informou ele, com um sorriso tímido depois de alguns segundos. – Seria uma cantada, caso eu estivesse interessado. São vinte pratas. Passe amanhã lá na oficina para acertar sua conta comigo. E des-culpe pela baba do cachorro – ele apontou para o cabelo dela.

Dito isso, ele virou e simplesmente saiu andando. Enquanto Amanda ficou ali, incrédula, entendendo agora aquela gosma no pescoço.

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