uma menina estranha e seu sintoma marcus andré vieira 2011

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  • CliniCAPS, Vol 5, n 14 (2011) Artigos

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    Uma menina estranha e seu sintoma

    A strange girl and her symptom

    Marcus Andr Vieira

    Mdico/Psiquiatra, Psicanalista Membro da AMP-EBP, Doutor em psicanlise na Universidade de Paris VIII, Professor da PUC-RJ - departamento de psicologia.

    E-mail: [email protected] Site: www.litura.com.br

    Resumo: Apresenta-se o livro de Temple Grandin e dele so examinadas algumas teses especificamente relacionadas estabilizao obtida pela autora com base em um uso peculiar do brete (mquina para imobilizao de gado). O artigo aproxima, a seguir, este uso da teorizao lacaniana do sinthoma, com base comentrio de J. A. Miller deste conceito e de suas relaes com o que a cultura denomina inveno. Palavras-chave: Estabilizao; Sinthoma; Inveno.

    Abstract: It presents the book by Temple Grandin and his theses are examined specifically related to the stabilization obtained by the author based on a peculiar use of the chute (machine for immobilization of cattle). This article draws together, then this use of the Lacanian theory of the "sinthome", based on review of J. A. Miller of this concept and its relations with what the culture calls "invention." Keywords: Stabilization; Sinthome; Invention.

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    Uma menina estranha1

    Temple Grandin uma autista famosa. Sua histria j deu origem a um filme, com Claire Danes como Temple e, entre ns, a uma pea de teatro, de Malu Galli, com Mariana Lima como protagonista. Nossos comentrios se apoiaro, apesar disso, nos vdeos do You Tube, em que a vemos utilizar sua clebre mquina do abrao e dando entrevistas, mas, sobretudo em seu livro: Uma menina estranha: autobiografia de um autista (Grandin, 2002).2

    um extenso relato autobiogrfico, talvez nico pelo valor de testemunho que possui, pois difcil encontrar um autista que deu certo e que ao mesmo tempo continua autista com todas suas estranhezas. Entre muitas experincias bizarras, ela tem no mais ntimo a experincia do corpo despedaado. Para ela era impossvel, por exemplo, passar pelas portas do shopping pela certeza de que ali, atravessando o blindex, era ela que ia se estilhaar. Uma estranha identificao com um boi na situao de aprisionamento de uma mquina que impede seus movimentos antes do abate permitir a Grandin criar uma soluo que tanto a apazigua quanto lhe d um lugar no Outro. Ela primeiro utilizar essa mquina em si mesmo, mas a seguir passa a desenvolver outras mquinas que humanizem a morte do animal, reduzindo as toxinas liberadas e tornando a carne mais e mais saborosa, o que lhe faz ganhar dinheiro e reconhecimento por sua inveno.

    Assumiremos, por definio, que se trata de uma inveno no sentido corrente do termo, de montagem criadora, mas tambm no sentido que lhe d J. A. Miller, de reconfigurao de si utilizando materiais subjetivos pr-existentes (Miller, 2003). Proporemos, finamente, que a soluo encontrada por ela pode ser aproximada do que Lacan, a partir de James Joyce, definiu como sinthoma.

    1 Este texto a verso editada do quinto encontro do Seminrio Invenes, realizado na Escola Brasileira de

    Psicanlise, seo Rio, em 26 de outubro de 2008. Agradeo a Leandro Reis pela transcrio e pesquisa inicial de referncias, assim como aos participantes do seminrio, em especial a Cristina Frederico por ter trazido Temple Grandin nossa considerao. 2 Todas as referncias a este livro ao longo do texto so seguidas do nmero de pgina entre parnteses.

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    O livro conta a histria de uma vida e, ao mesmo tempo, da inveno que a estabilizou. Ele tambm busca reunir tudo que demonstre o quanto os autistas tambm so gente, apoiando-se em dados variados, clnicos, cientficos, neurolgicos etc. Ela usa tudo que lhe cai nas mos para sustentar que o autista, assim como tantas minorias em nossos dias, do down, ao transexual e - porque no? - os sadomasoquistas e as mulheres que amam demais, no so anomalias da natureza, mas apenas especiais. Eles devem viver em sociedade com direito a seu quinho de respeito, pois podem vir a pagar suas contas como os outros, merecendo fazer parte dessa galxia de minorias que compem nosso mundo de hoje, em que todos tem direito sua diferena desde que se comportem direitinho.

    Estamos, claro, de acordo, mas vamos pular estes desenvolvimentos. So muito tendenciosos. Nem vamos tampouco discutir a questo diagnstica ou a validade das variadas teorias sobre o autismo. No preciso entrar em questes do tipo: uma sndrome de Asperger ou autismo grave? Fiquemos com a ideia geral do autismo como quadro clnico bem conhecido usualmente acompanhado de grave comprometimento social. As relaes entre autismo e psicose tambm no sero, aqui, desenvolvidas. No tenho experincia nem conhecimento para isso. Nossa premissa com relao ao autismo ser aquela levada a srio na comunidade denominada Campo Freudiano, a de que o autismo um trabalho subjetivo e no apenas deteriorao ou dficit.3 Bastar utilizar com Temple o tipo de raciocnio clnico que empregamos com os psicticos: o de que este trabalho passa por criar uma soluo artesanal para conexo com o mundo, que chamaremos de sinthoma, porque a soluo industrial, que definimos com Lacan como Nome do Pai, no est disponvel (Miller, 1998).

    Quanto teorizao do Nome do Pai como soluo industrial e a do psictico como artesanal, remeto vocs ao curso Lies da psicose do ano passado em que retomamos parte do enorme trabalho do Campo Freudiano neste sentido e que parte dos desenvolvimentos de J. A. Miller em seu Curso da Orientao Lacaniana, especialmente com relao ao que batizou ltimo ensino de Lacan (Miller, 2003b). Nele, generaliza-se a ideia de que estes trabalhos artesanais de conexo com o social so solues sinthomticas mais ou menos eficazes ou duradoras, elaboradas pelos sujeitos. Com elas estrutura-se uma vida, que deve sempre ao mesmo tempo ser nica e coletiva - lugar de um gozo singular e ao mesmo tempo de propagao de uma verdade compartilhada. Nenhuma soluo existe que no passe pelo

    3 Remeto vocs a duas referncias, uma prxima: Ribeiro e Monteiro (orgs.) 2004, que destaca, com base em

    casos clnicos, o trabalho do autista; e outra mais geral, Maleval, 2009, que rene e sintetiza o que de melhor se produziu na orientao lacaniana em termos conceituais.

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    paradoxo de que aquilo que mais me separa do Outro exatamente aquilo que terei que usar para me conectar e que chamaremos de sinthoma.4

    Autismo e excitao nervosa

    Para definir a relao mais bsica de Temple com o Outro destaco a expresso excitao nervosa que est presente em todo o livro. Temple definida por aqueles com quem encontra como estranha desde bem cedo. Se seu prenome vindo do Outro estranha, o sobrenome autista. Ela aceita esta nomeao, incluindo os comportamentos que elas implicam. De fato, da grande descrio psiquitrica do autismo ela destaca e assume os pontos principais. Excitao nervosa, no entanto, j uma nomeao, a primeira talvez, de que se serve de modo particular para subjetivar o que vive, com essa expresso ela designa algo que sente desde seus primeiros momentos.

    Para comear, h uma vivncia de excesso denominada excitao nervosa. Esta vivncia bsica explicada por ela como resultado de uma falha originria, uma deficincia nos sistemas que processam a informao sensorial (18) cuja causa ainda hoje para a cincia seria um mistrio. Temple no visa, porm, corrigir esta falha, visando tratar a causa para eliminar o problema. Os neurnios s so convocados para dar localizao a essa misteriosa incapacidade de filtrar o estmulos externos que lhe parecem avassaladores (18). Por falha nas defesas normais, os autistas viveriam com um sistema nervoso hiperativo (31) em grande tenso. O excesso de estmulos engendra algum excessivo. Como ela afirma: o leitor poder observar como eu tinha uma reao excessiva a certos cheiros e movimentos (18).

    A seguir, os neurnios sero postos de lado, pois o importante ser a descrio clnica da doena. Basta-lhe esta vaga teoria causal de uma falha neuronal como base etiolgica para os traos marcantes do autismo: crises de agressividade intervindo em um registro de grande isolamento, pois a pessoa se ausenta do ambiente que a cerca e das pessoas circundantes a fim de bloquear os estmulos externos excessivos (18) ou foge para o mundo interior a fim de filtrar os estmulos exteriores (31) e finalmente a perseverao definida por ela como um

    4 Cf. Vieira, 2004 e 2009. o que define todo o trabalho de uma comunidade analtica que tem como apogeu a

    Conversao de Arcachon (Cf. Miller, J. A. Esquizofrenia y paranoia, Psicosis y Psicoanalisis, Buenos Aires, Manantial, 1985; Clnica irnica, Matemas, JZE, 1996, pp. 190-200, La conversation dArchachon, Paris, Seuil, 1998. Miller, J. A. O Outro que no existe e seus comits de tica lio de 18/12/96. Retomam-se ali textos anteriores de Miller que invertem o vetor de leitura dos fenmenos clnicos da psicose. Em vez de partir-se da normalidade edpica, o que situaria a psicose como falha em seu processo de constituio, supe-se o catico notodo como grau zero a partir do qual ser preciso constituir um Todo que d corpo e institua sujeito e Outro em campos distintos - o que poder fazer-se tanto pelo dipo quanto por outras vias, o delrio, a escrita, etc. (Cf. por exemplo a seguinte afirmao A esquizofrenia atesta um estado nativo do sujeito (MILLER, J. A. op. cit., 1985, p. 28).

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    comportamento em que a pessoa no consegue interromper uma atividade depois de come-la, mesmo que deseje parar que levava loucura os adultos que me cercavam (19). Esta trade compe o quadro autista, do qual a excitao nervosa o centro. Todo o livro e a vida de Temple uma empreitada infatigvel para compor uma articulao entre este n de sintomas e o mundo.

    O discurso da cincia convocado para teorizar vontade a falha fundamental que engendraria o autismo, mas ele , no entanto, dispensado na hora de propor intervenes tcnicas para corrigir o defeito. Nada de cirurgias ou drogas para erradicar a tenso nervosa ou compensar a deficincia de base. Ela ser o centro de sua singularidade, que ganhar muitos nomes e que nada apagar. bem verdade que, no caso do autismo a cincia pobre em intervenes , mas o importante que Temple pde dedicar seus esforos no na correo, nem na capacitao educativa, que a proposta universal para o tratamento do autismo hoje, mas na adaptao. O termo aqui ganha conotao nova, no traduz a pedagogia macia a que so submetidos os autistas hoje, a fim de faz-los comportarem-se como todo mundo, mas o contrrio. Ele assinala o que chamaramos de conexo com o Outro, incluindo-se, nessa conexo toda a estranheza despertada pelo sujeito.

    O obscurantismo pseudo-cientfico ambiente toma o mundo como um dado natural. Se tomamos, tal como o faz essa concepo vigente, o universo caracterizado por um funcionamento regrado por leis onipresentes, uma relao excessiva com o mundo ser pensada como mal-funcionamento. A relao ego-mundo tida como harmnica em si, no preciso imaginar, como fez Freud, um ego primordial que em sua inefvel e estpida existncia (Lacan, 1998, p. 555) ter que estabelecer uma relao possvel com um mundo para manter-se na vida. Para Freud e para Temple o mundo um incontrolvel afluxo de estmulos, caso no se construa a boa mediao, metaforizada por Freud como escudo protetor (Freud, 1920, p. 43), sofre-se mais ou menos.

    Os incidentes de que me lembro contam uma histria fascinante sobre como as crianas autistas percebem e reagem de forma incomum ao mundo estranho que as cerca o mundo ao qual tentam desesperadamente impor alguma ordem (21).

    Compreende-se a inverso ao final de sua introduo: no a menina que estranha, mas o mundo. Seu livro contar a histria de como possvel ir de uma reao desesperada ao mundo a outra, mais pacfica, alm de delinear o achado que permitiu essa virada. Essa histria conta-se, em meu recorte, a partir de trs pontos: o rotor, a porta a mquina e como quarto elo, enlace disso tudo, o boi.

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    O corpo, o rotor e o imaginrio

    A tendncia geral pensar que o corpo do autista, diferente do normal fragmentado e por isso qualquer coisa que lhe venha abraar lhe acalma. Nada mais superficial. Nem todo abrao serve, e nem tudo o que nos parece continente, contm. Ora, se fragmentado est e se o Outro se apresenta como mais uma invaso do que j est invadido, algo que para ns poderia ser naturalmente continente, pode muito bem ser apenas mais uma invaso. Para que uma conteno benfica se d, preciso constru-la com elementos singulares, subjetivos.

    Um primeiro movimento subjetivo evidente e destacado por Temple: Isolamento, fuga, ficar ausente, so termos dela. Ele no apenas um trao distintivo do quadro clnico do autismo, mas uma postura ativa utilizada por um sujeito autista para limitar a invaso do Outro. o que Lacan dramatiza com um tapar as orelhas em uma clebre passagem (Lacan, 2003, p. 365)

    A este movimento, quase natural, do sujeito, outro modo de pacificao descrito por Temple e que nos interessar de perto. o que chama de Excitao compensatria. Ela supe um excesso ativamente buscado para se contrapor ao excesso do mundo. a mesma idia da festa rave: voc est tenso? Ento vamos levar sua tenso ao mximo, porque enquanto ela durar ser sua e no invasiva e ainda de quebra, pode haver ao final um tempo de paz, depois da tempestade a bonana.

    Girar como um pio era outra atividade que eu apreciava (...). Toda a sala girava comigo (...). s vezes fazia o mundo girar enrolando as correntes do balano que tnhamos no quintal de casa (...) Eu sei bem que as crianas que no so autistas tambm gostam de girar nos balanos. A diferena que a criana autista fica obcecada com este ato de girar (29)

    Por isso, quando um pouco mais velha ela encontra em um parque de diverses, o Rotor, um achado:

    O Rotor foi ganhando velocidade e o motor comeou a soar como um zumbido gigante. O azul do cu, o branco das nuvens e o amarelo do sol misturaram-se como as cores de um pio (...). Com um estalido das ferrragens, o piso foi se abrindo e eu vi o cho, l embaixo, mas a essa altura meus sentidos estavam to sobrecarregados de estmulos que eu no reagi mais com ansiedade e nem com medo (80).

    O Rotor sintetiza este tratamento quase espontneo que Temple encontra para se acalmar. Apesar de seus efeitos benficos, evidentemente falta alguma coisa para que ele lhe sirva aps a anestesia que proporciona. Ainda faltam-lhe fronteiras estveis que a protejam do mundo.

    Ateno, porm, faltam-lhe fronteiras por faltar-lhe unidade e no o contrrio. Essa ser nossa premissa: o corpo do filhote de homem no , em si, uno, mas despedaado. So as

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    imagens (em um sentido bem latu sensu) fornecidas pela cultura, pelo outro, que lhe do sua unidade. a tese maior de Lacan em seu Estdio do espelho (Lacan, 1998, p. 96).

    No h corpo real a no ser por um abuso de linguagem. S h pedaos de real. H uma imagem que me veste e faz de mim um corpo e no um amontoado de sensaes ou um feixe de rgos. O corpo, como uno, constitudo atravs do imaginrio. Ele uma imagem de unificao. Nesse sentido, a unidade, e a conscincia, um fenmeno de superfcie, o que no significa que seja falsa. Superficial no sentido de de fora para dentro e no de engodo.

    Alm disso, essa unificao no um processo natural, em que o sujeito seria inteiramente passivo. Mesmo a estabilizao imaginria da imagem de si mais imediata e simples, e que Lacan chama de bengalas imaginrias, j envolve um trabalho subjetivo. , por exemplo, andar com um amigo, ir com ele a todo lugar para poder dizer sou um porque tenho voc como amigo (Maron, et alli, 2011, p. 29). A unidade est nesse amigo. Esse trabalho , no entanto, bastante dependente daquele outro, com minscula, o semelhante, o amigo, que deve estar por perto todo o tempo. Haveria uma soluo mais eficaz?

    Em um primeiro tempo, de seu Seminrio 5, Lacan considera que o garante a cola entre real e imagem outra coisa, aquilo que chama simblico. O simblico tem vrios nomes em Lacan. Durante muito tempo ele o aproxima do Outro da cultura. Depois ser aproximado de uma f cega posta no que a tradio prega como conduta e que Lacan chama de Nome do Pai. Ora, exatamente este tipo de soluo espontnea, a aposta nos caminhos da f na tradio, que no acontece na psicose (Maron, et alli, 2011, p. 135).

    Em tempos to sem Nome do Pai como os nossos essa soluo no est mais to disponvel. A questo em nossos dias a de que se o Outro se estilhaa, no mnimo no vou poder contar com ele como contava antes. No apenas no simblico da tradio, mas tambm no imaginrio das formas de unidade que a cultura pode oferecer. Em nossos dias as imagens que vem do outro comeam a vir estilhaadas tambm. O imaginrio do Outro no mais o reino do um. Agora, para se produzir o Um teremos de constru-lo e lutar para mant-lo, pois a nica alternativa seria agarrar-se petrificadamente a uma imagem identificadora nica, como os Acolicos Annimos e seu mantra eternamente repetido meu nome ... tenho... anos e sou alcoolista. Teremos de fabricar, tranar, articular muitas coisas do Outro at conseguir montar uma roupa e fazer com que ela possa nos representar dando unidade ao que no tem. Se h algum para mostrar que preciso todo um trabalho de amarrao entre imaginrio e real fragmentado, excesso de estmulos, o autista.

    A questo como o imaginrio vindo do Outro pode passar a valer como do sujeito e isso que no ocorre com o rotor. Ela uma dissoluo programada do corpo. Por isso s pode

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    durar um tempo pr-determinado, limitado seno seria o fim. Girar e fazer girar, so, ambas, solues espontneas envolvem o fascnio da dissoluo de si, como em um bloco de carnaval, com a diferena que, neste caso, no esto presentes rituais coletivos para determinar como e onde comear e interromper a ao.

    Porta, simblico e semblante

    Como o rotor sozinho no o bastante, Temple segue procurando algo mais que a estabilize e lhe d um lugar no Outro. Falta-lhe alguma coisa para estar com relativa estabilidade no mundo dos homens. preciso, ganhar alguma coisa que lhe sirva, preciso mudar. Ora, em nossa cultura, a mudana, o ingresso em outro plano tem marcadores simblicos especficos, entre eles o atravessamento, de um portal qualquer. No toa que Temple esbarre, ento, com a Porta, a seu modo. assim que ela a encontra:

    Ento, um domingo, na capela, sentei-me na cadeira dobrvel, aprisionada pelas regras da escola que me obrigavam a estar l, entediada a mais no poder. Quando o ministro comeou o sermo, fugi para meu mundo interior vazio de estmulos (...) De repente, uma pancada alta intrometeu-se em meu mundo interior. Assustada, ergui os olhos e vi o ministro bater no plpito. Abram, disse ele, e Ele h de responder (...) Eu sou a porta; por mim, se algum homem entrar, estar salvo... (Joo 10:7.9) (83)

    A partir da ela comea a fazer todo tipo de explorao possvel com o tema das portas sem, no entanto, poder sentir na pele a ideia de atravessamento e superao, passagem para outro estado que ns temos, essa de que o pregador falava. Ela passa anos falando e pensando em portas. O que uma porta? Para que serve? Como ?

    O nome conceitual para aquilo que assegura o sentido de passagem para outro plano na teoria lacaniana Nome do Pai. o Pai freudiano como funo, no sentido de uma crena em algo alm que permanece vazio de sentido, mas que, exatamente por uma crena vazia, sustenta a certeza de que uma porta mais que apenas uma porta (Vieira, 2006).

    Fica muito claro como ela no pode contar com um simblico ordenado ao estilo Nome do Pai, com sua obsesso pelas portas. Ela sabe que a porta um smbolo ela fica fixada nele, mas no tem a mnima noo de como aquilo funciona. Por isso o tiro pode sair pela culatra e ela ficar ainda mais apavorada com a porta em vez de us-la para dar existncia passagens na vida. No toa que ela no consiga passar pelas portas de vidro.

    Obcecada, ela decompe, analisa, experimenta inmeras, calcula, desmonta realmente um sujeito a trabalho, mas que por no partilhar de uma premissa nossa, de uma f

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    anterior ao saber, no tem o sentimento de franqueamento que nos possui a cada passagem por uma porta.5

    A porta que ela consegue encontrar com um mnimo deste tipo de funcionamento, uma que realmente abre para algo diferente, diferente mesmo e no simbolicamente diferente. Na busca da porta que abre para o Reino dos Cus, sendo algum para quem tudo para mim era literal (84) ela encontrar sua porta no entre uma sala e outra, ou mesmo entre uma sala e a rua, mas entre uma sala e o cu. Ser para ela uma grande descoberta a do alapo do ltimo andar de seu prdio que abre para o telhado.

    Havia uma escada apoiada no prdio e, deixando meus livros no cho, subi por ela at o quarto piso (...) e encontrei A Porta! Era uma pequena portinhola de madeira que dava para o telhado (...) fiquei vendo a lua nascer por trs das montanhas, subindo ao encontro das estrelas. Fui tomada por uma sensao de alvio. Pela primeira vez em meses sentia-me segura no presente e confiante no futuro (...) E tinha encontrado! A porta para meu cu (84).

    Temos a impresso que ela est buscando as alturas, ou ainda, se dermos uma olhada rpida parece que ela est buscando uma sada. No! Na verdade, ela busca a prpria ideia de sada.

    As outras pessoas funcionam na base do sentido. Ela no. Porta no exatamente alguma coisa que tenha sentido em si. O imaginrio da porta, os sentidos culturais do que uma passagem, tomam o corpo e o organizam a partir da crena de que h um real nisso. No o caso de Temple que ter que ralar para construir, com vrios elementos dispersos, algo que funcione nesse sentido.

    Ela est buscando na porta, na passagem de um espao simblico a outro, a mgica de diferena, o gesto decisivo que faz com que uma coisa seja uma coisa e outra coisa seja outra coisa. Ela est buscando o poder de discernimento dos nomes que, para ela, so apenas nomes (Milner, J. C. 2006).

    Ser preciso montar, com vrios pedacinhos, essa sua inveno. A matria bsica ser constituda por retalhos de sentido, que Lacan chamou aparncias. Devemos distinguir o que Lacan chama de imaginrio do que ele chama de semblante.6 O termo pode igualmente ser traduzido por aparncia e no se confunde com o que ele chamou de imaginrio (Lacan, 2009 e Miller, 1992). Para Lacan, o discurso sempre uma articulao de semblantes. O discurso uma inveno a cultura para agenciar o real que lhe escapa.

    5 Cf. situao anloga com o beijo de boa noite entre Joyce e a me, em Mandil, Laia, S. e ainda Vieira, M. A.

    2007, pp. 161-186. 6 O Termo em francs semblant que significa aparncia. H a expresso faire-semblant que quer dizer fazer

    de conta, fingir e, por ltimo, tambm se usa num terceiro sentido que designa rosto, nica acepo do termo semblante, em portugus (cf. Vieira, M. A. , 2008).

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    O semblante para Lacan ser um espcie de Imaginrio sem unificao, imaginrio-pedao, pedaos de imagens. Ento iremos contrapor o imaginrio ao semblante. O semblante no tem unidade. No haveria estabilizao pelo semblante por si s. O semblante o reino do imaginrio despedaado.

    As aparncias so coisas um pouco menos unas do que aquilo que nos acostumamos a chamar de formas. Para Lacan, por exemplo, um trovo uma aparncia. O exemplo maior de aparncia para Lacan um arco-ris. No tem exatamente a idia de forma, de corpo. imagem, mas sem a unidade em si. So imagens que esto a e que podem servir a dar corpo, mas que no tm, por si s, corpo. Por isso Miller fala em uma natureza dos semblantes. A natureza cheia de semblantes. Mas eles agarram um real e por isso a definio de Lacan: um semblante um god sempre pronto a receber um gozo (Lacan, 2009, p. 114).

    Quando no h imagens unas, mas imagens esparsas ser preciso organiz-las em uma articulao que d corpo. Ser preciso fazer com que as aparncias ordenem nosso gozo. A esse escoamento funcional do gozo pelas aparncias chamaremos de inveno.

    Vocs poderiam perguntar: mas e o alapo? J no seria, ento, uma inveno? Falta alguma coisa. Para que este agenciamento de semblantes faa escoar o gozo de maneira estvel includa no social ele precisa agenciar algumas coisas bsicas, no mnimo, um si mesmo (um sujeito), uma alteridade (o Outro), a vida e a morte (como espao de diferenas entre as geraes e entre os sexos).

    Inveno, mquina e corpo

    Escorados na teorizao lacaniana do sinthoma e com base no curso da Orientao lacaniana de J. A. Miller, assim definiremos inveno, como uma montagem de aparncias que tome o organismo, propicie um escoamento para seu gozo vital e ao mesmo tempo o

    conecte com o Outro da cultura (Lacan, 2007, p. 20, 26, 36 e Miller, 2003 e 2005/2006). o que Temple s conseguir com sua mquina.

    Tudo comea com o abrao. Desde sempre existia para ela o prazer e a necessidade do abrao.

    Desde a segunda srie comecei a sonhar com um aparelho mgico que pudesse exercer um estmulo de presso intensa e prazerosa sobre meu corpo todo (107).

    No precisamos comprar a explicao dela sem reflexo. O que o corpo real, o corpo original, antes do imaginrio? Ele no existe como corpo. um feixe de sensaes. Se dissermos que esse feixe sensaes quer abrao estamos emprestando ao corpo despedaado uma unidade que ele no tem. uma questo clnica importante. Se vamos trabalhar com os

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    psicticos, mas tambm com os ditos ps-modernos, achando que no fundo eles querem abrao teremos problemas.

    o contrrio. O bom abrao o que conferir um corpo ao autista que no o tem. No : o corpo do autista precisa de um abrao especfico, correto. Portanto, toda questo de saber como constituir o abrao que sirva, a montagem de semblantes que faa o efeito sonhado do abrao-unidade. No to fcil. Ela mesma sabe, pois apesar de seu sonho de abrao, os abraos de que dispe so sempre terrveis, so excessos tteis (107).

    Existe uma diferena muito pequena entre ensinar o prazer do toque a uma criana autista e instilar-lhe um verdadeiro pnico, por medo de ser engolfada (107) (...). Foi s quando j tinha chegado quase aos trinta anos que consegui trocar apertos de mo com as pessoas ou olh-las nos olhos (38).

    Temple est lidando com sua dissoluo o tempo todo. Dada a intensidade do que vive, tudo para ela questo de vida e morte.

    Ela j tinha a pacificao anestsica do Rotor, a ideia de travessia da Porta, desconectada, e a unidade do abrao, mas falta alguma coisa para que estes semblantes possam ser agenciados em uma montagem que d escoamento vida e morte do corpo e ao mesmo tempo o nomeie, lhe d um lugar no Outro. isso o que estamos chamando de uma inveno, que Lacan s vezes chama da sinthoma (Lacan, 2007, op. cit.).

    O agenciamento de semblantes que constitui a inveno produz-se freqentemente com um semblante central por eleio. A Squeeze machine (Maquina do Amasso). No apenas uma mquina de abrao controlado, isso Temple j poderia ter construdo. Ela a mquina de abrao do boi. o boi que far toda diferena. ele, em seus momentos antes da morte que constituir o semblante central da inveno.

    Ela passa uma temporada em uma fazenda. Est ajudando em vrias coisas e vai ajudar no trabalho com os bois e com o brete.7

    Como se sabe que o animal estressado libera toxinas que prejudicam o sabor da carne, alguns bretes so os mais agradveis possveis. Em vez de uma priso de ripas de madeira, placas acolchoadas que o apertam quase ao modo de um abrao. Era algo assim que Temple encontrou nessa fazenda.

    Ela narra este encontro com o boi no brete da seguinte maneira:

    Fiquei observando enquanto bezerros nervosos e de olhos arregalados um a um eram

    7 Um comentrio sobre o termo: . Ele a traduo de snare, que designa armadilha e que quase s utilizado no mundo rural, tanto no ingls quanto no portugus. No modo mais simples um curral que vai se estreitando e se tornando um corredor de cercas que faz o animal ficar preso. Neste momento possvel administrar medicamentos, efetuar pequenas cirurgias e, sobretudo, matar. O brete utilizado especialmente no abate.

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    conduzidos em direo ao brete poucos minutos depois que os painis laterais pressionavam seus flancos, aqueles mesmo animais de olhos esbulhados se acalmavam. Por qu? Ser que a presso suave dava conforto e alvio para os nervos super-estimulados do bezerro? E se fosse assim ser que uma presso igualmente suave tambm no poderia me ajudar? (93).

    Ela fica, ento, fixada no brete. O primeiro passo experimentar nela e ela gosta. Depois construir uma mquina de abrao, mais adaptada para os humanos e aplic-la aos autistas em geral.

    O boi

    A princpio s uma fixao como tantas outras que teve durante a vida. Mas como o boi, o brete concentra vrias coisas: o relaxamento da tenso, sim, mas tambm a morte e a vida, a ideia de uma pacificao que tambm passagem para um plano melhor, em que reencontramos o tema da porta. Ela o diz explicitamente O brete tambm um porta (107) e no toa que ela passa a chamar o brete de escadaria para o cu (128).

    Ela agora tem um projeto. Construir bretes melhores e mais adaptados para que o boi no sofra:

    No era apenas uma fantasia de minha mente estranha. Era verdade. Pela primeira vez em minha vida senti que havia finalidade em estudar (...) uma razo verdadeira. Por que a presso de imobilizao do brete de imobilizao conseguia acalmar reses assustadas e acalmar meus nervos? (96) Como diz uma amiga a escadaria para o cu dedicada aos que desejam aprender o sentido da vida e no temer a morte (96).

    Ela realmente se acalma no brete, mas ele no apenas um abrao, ele conjuga igualmente os bois e sua identificao com eles, assim como o futuro da morte e da eternidade.

    Dessa forma, temos uma montagem que fisga um real essencial. A topologia dessa fisgada importante. Quero propor que ela no um agenciamento em torno do real, como no paradigma do vaso do oleiro do Seminrio 7, definido por Lacan como em torno do vazio (Regnault, 2001) , mas sim ao modo da trana, do n borromeano tal como desenvolvido no Seminrio 23 (Vieira, M. A. 2007). Aqui se situa uma possvel aproximao entre o que Miller denomina inveno e Lacan sinthoma. Ambos so articulaes entre elementos dspares que sustentam um lugar relativamente estvel para o sujeito no lao social sem recorrer a alguma falta originria, que a assinatura da submisso tradio encarnada pelo pai naquilo que Freud descreveu como dipo.

    O que o sujeito seno um furo? No mais ntimo de ns mesmos brilha uma ausncia, um furo em meio a tudo aquilo que nos constitui e representa. Este vazio longe de ser a marca

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    da nossa impotncia de saber a falta que pe tudo em movimento e que Lacan chamou desejo. Pois bem, em vez de abrir-se a eu desejo como o neurtico, Temple Grandin o engendra. Em vez de aceitar o furo que sempre ter estado ali ela precisa cri-lo. Seus grandes esforos com o alapo o demonstram. Eles foram bem melhor sucedidos com o brete. Possivelmente por este ltimo colocar em cena o furo dos furos, a morte.

    Nem mesmo a morte ocupa para ela a funo do furo. Poderamos imaginar que pelo menos em algum momento ela fosse se indignar com a matana que ela mesmo promove. No. Para ela a morte apenas , enquanto que, para ns, ela tem de ter algum sentido, por isso nos rebelamos contra ela. Ns adiamos a morte e nos revoltamos quando ela chega. Em momento nenhum ela fala um absurdo matar esses bichos. Ela mesma mata vrios. A morte no uma questo, um fato. Com sua inveno ela d um lugar a morte como furo, pois seu brete tambm para ela uma escadaria para o cu.8

    Temple Grandin talvez nos ensine pouco sobre como o autismo como patologia do desenvolvimento, pouco sobre superao, carinho, amor no sentido habitual do termo. Se tirarmos desses termos no relato as projees que sempre fazemos, descobrimos como ela nos ensina sobre a arte magnfica e insensata de construir para si mesmo um lugar no mundo ao remodelar ao mesmo tempo o mundo, em vez de espao compacto de alteridade unicamente exterior, ao menos um furo, ponto cego de passagem entre o eu e o Outro. Ela o faz sem pai, sem profundidade, apenas com uma montagem de semblantes, nada mais e nada menos. Nele ela consegue destacar um, o boi e seus olhos esbugalhados e consegue um pouco do cu no mundo, levando Grandin a ter seu nome inscrito no Outro de modo bem distinto do da multido annima a engrossar as fileiras dos asilos da cidade.

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    8 A morte ao mesmo tempo desaparecer e tornar-se imortal. Passo para posteridade, mas desapareo. Esse o problema do neurtico, como o obsessivo que se recusa a qualquer identificao paterna, tida como mortificante. o que Freud dramatiza com a os gametas, em Alm Princpio do Prazer e que passa longe das questes de Grandin (cf. Freud, Sigmund. (1920).

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    Recebido em Junho de 2011 Aceito em Agosto de 2011