universidade anhembi...
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI
TAIANA GRASSI LESSA
NEM O QUE NEM QUEM:
Análise da Antropomorfia dos Personagens Animais nas
Animações de Longa Metragem da Walt Disney
São Paulo 2012
UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI
TAIANA GRASSI LESSA
NEM O QUE NEM QUEM:
Análise da Antropomorfia dos Personagens Animais nas
Animações de Longa Metragem da Walt Disney
Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre do Programa de Mestrado em Comunicação, área de concentração em Comunicação Contemporânea da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação do Prof. Dr Luiz Vadico.
São Paulo 2012
TAIANA GRASSI LESSA
NEM O QUE NEM QUEM:
Análise da Antropomorfia dos Personagens Animais nas
Animações de Longa Metragem da Walt Disney
Dissertação de Mestrado apresentado à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre do Programa de Mestrado em Comunicação, área de concentração em Comunicação Contemporânea da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Vadico.
Aprovado em / /
Prof. Dr. Luiz Vadico
Profa. Dra. Bárbara Heller
Prof. Dr. Renato Luiz Pucci Junior
DEDICATÓRIA
Dedico esse trabalho a Silvia Orrú
meu grande amor, pela confecção desse
trabalho não apenas por contribuir com
seu desenvolvimento e inspiração, mas
também, sendo a verdadeira responsável
por esse grande desafio em minha vida
no mundo acadêmico.
Obrigada pelo companheirismo e
carinho, estando presente em todas as
etapas deste novo percurso.
AGRADECIMENTO
Agradeço aos meus pais que tanto confiam e se orgulham de mim,
acreditando a todo o momento que o meu trabalho e esforço é o maior do mundo e
por vezes me ajudando a perceber o quão importante isso é para eles.
À Silvia Orrú minha companheira na vida que me motivou a fazer esse
mestrado e a cada momento que pensava nas dificuldades me mostrava que era só
uma barreira que precisava ser transposta e que daria tudo certo, e que muitas
vezes segurou minha mão para que pudéssemos atravessar juntas algum obstáculo.
Agradeço aos meus irmãos que me fizeram rir e me distrair nos momentos de
cansaço.
Ao meu orientador que não apenas me auxiliou nas escolhas do caminho
para esse trabalho, mas teve paciência para lidar com meus ataques de insegurança
e desespero.
Ao coordenador, professor e amigo Rogério Ferraraz que criou as bases de
meu conhecimento e me apoio em cada um dos momentos desse percurso.
À todos os professores do mestrado que contribuíram para solidificar
conhecimento, inspirar e motivar.
À Alessandra Marota que com seu bom humor e boa vontade sempre ajudou
e resolveu os “pepinos” que jogava em suas mãos.
À amiga Érica Almeida por seus ensinamentos de perseverança e alegria.
E à todos aqueles que contribuíram diretamente a esse trabalho ou a minha
formação como pessoa e acadêmica.
RESUMO Esta pesquisa possui como objetivo identificar a extensão dos personagens animais
dos filmes de longa-metragem dos estúdios Walt Disney e Pixar, no que diz respeito
ao antropomorfismo apresentado por estes, levando em conta o quanto suas
características se aproximam mais ou menos de características humanas. Como
forma de contribuição para análise narrativa das animações, a fim de construir de um
entendimento mais profundo desta vertente do cinema, uma vez que o maior foco
das pesquisas no que diz respeito a animações se encontra na técnica e não tanto
na forma, estética e narrativa das mesmas. A metodologia apresenta quatro etapas
distintas: levantamento das animações, catalogação das 59 animações selecionadas
para análise: a partir de uma tabela por mim desenvolvida para a análise do
antropomorfismo, classificação das animações em três níveis distintos de
antropomorfização, identificadas a partir de análise prévia de uma amostra inicial de
animações. E como última etapa uma análise detalhada da narrativa das animações:
Pinóquio, Robin Hood, Vida de Inseto e O Rei Leão, a partir da estrutura de Vladimir
Propp e releituras de sua metodologia. Após este processo foi possível perceber o
alto grau de importância dos animais nas animações da Disney e Pixar, estando
estes em sua grande maioria ligados a mensagens importantes da narrativa,
aparecendo assim como uma reatualização das fábulas tradicionais.
Palavras-chave: Cinema de Animação. Antropomorfismo. Fábulas.
ABSTRACT This research has aimed to identify the extent of animal characters from films from
Walt Disney and Pixar, regarding to anthropomorphism displayed by the characters,
taking into account their characteristics as they approach more or less to human
characteristics. As a contribution to the analysis of narrative animations in order to
build a deeper understanding of this aspect of the film, since the major focus of
research in regards to animations is on technique and not so much about. The
methodology has four distinct stages: survey of animations, animations cataloging of
the 59 films selected for analysis using a board developed by myself for the analysis
of anthropomorphism, classification of animations into three distinct levels of
anthropomorphizing, identified by me from prior analysis based on an initial sample of
animations and as the last step a detailed narrative analysis of the animations:
Pinocchio, Robin Hood, a Bug's Life and the Lion King, using the structure of Vladimir
Propp and reinterpretations of his methodology. From the surveys and analyzes
completed was possible to realize a high degree of importance in the animations of
Disney and Pixar, the animals being mostly linked to important messages of the
narrative, thus appearing as a revival of fables.
Key-words: Animation movie. Anthopomorphism. Fables.
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 - Distribuição das animações pelo nível de antropomorfismo apresentado
pelos personagens animais. ............................................................................... 33
Gráfico 2 - Comparativo entre grau de antropomorfismo apresentado e importância
do animal na história .......................................................................................... 34
Gráfico 3 - Comparativo entre grau de antropomorfismo e presença de magia ........ 41
Gráfico 4 - Distribuição das animações em função da origem da história ................. 42
Gráfico 5 - Comparativo entre nível de antropomorfismo e origem da história ......... 45
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Levantamento de dados sobre antropomorfismo das animações de longa
metragem do estúdio Walt Disney de 1937 a 2010. ........................................... 28
Tabela 2 - Invariantes desenvolvidas por Coelho (2000, p .109 -110) a partir das
funções de Propp ............................................................................................... 83
Tabela 3 - Comparação entre Tradição herdada e a desagregação ocorrida hoje em
Coelho (2000, p. 19) ........................................................................................ 108
Tabela 4 - Lista de animações de Longa-metragem da Walt Disney ...................... 131
LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Bambi X Veado ......................................................................................... 17
Figura 2 - Gatos na animação Aristogatas ................................................................ 18
Figura 3 - Robin Hood versão animação e seriado live action .................................. 19
Figura 4 - Personagens Oswald e Gato Félix ............................................................ 24
Figura 5 - Animais não antropomorfizados que não apresentam característica
alguma que fuja daquelas apresentadas por animais da natureza .................... 36
Figura 6 - Animais Silvestres lavando roupa em A Branca de Neve ......................... 37
Figura 7 - Animais realizando ações de seres humanos: cadela de Peter Pan
arrumando os brinquedos das crianças, Dumbo ajudando a montar o picadeiro
de Circo e Sebastião com sua partitura prestes a reger uma orquestra em A
Pequena Sereia. ................................................................................................ 38
Figura 8 - Paralelo entre a ONU dos humanos e a ONU dos ratos em Bernardo e
Bianca. Ratinhos confeccionando o vestido para Cinderela. ............................. 39
Figura 9 - Chá com uma Lebre em Alice no País das Maravilhas, Patos em busca de
tesouro em Ducktales e Galo dirigindo um automóvel em O Galinho Chicken
Little.................................................................................................................... 40
Figura 10 - detalhes da casa de Gepeto ................................................................... 51
Figura 11 - Evidência dos relógios que indicam a atividade laboral de Gepeto ........ 52
Figura 12 - Detalhes do cenário ................................................................................ 56
Figura 13 - Diferença do tipo de iluminação entre ambiente externo e interno. ........ 56
Figura 14 - Cenas sombrias da animação ................................................................. 57
Figura 15 -Câmera em posicionamento superior ...................................................... 57
Figura 16 - No teatro cenário mais simples e ponto de luz focal ............................... 58
Figura 17 - Cena em primeiro plano onde o cenário está na escuridão .................... 58
Figura 18 - Cenas contrastantes entre o mundo maravilhoso e o sombrio ............... 59
Figura 19 - Ambiente submarino sem grande destaque de cores ............................. 60
Figura 20- Grilo Falante X Grilo real .......................................................................... 63
Figura 21 - Grilo com nariz avermelhado em função do frio ...................................... 65
Figura 22 - Grilo se aquecendo na lareira ................................................................. 66
Figura 23 - João Honesto e Raposa Vermelha ......................................................... 70
Figura 24 - Comportamentos correspondentes de João Honesto e em um Ser
Humano .............................................................................................................. 71
Figura 25 - João Honesto bate em Gideão. .............................................................. 72
Figura 26 - Fígaro X Gato real ................................................................................... 75
Figura 27 - Fígaro fazendo careta por não gostar do nome sugerido por Gepeto..... 76
Figura 28 - Fígaro calmamente dormindo em sua cama em seguida aborrecido por
ter sido despertado. ........................................................................................... 77
Figura 29 - Fígaro mau-humorado ............................................................................ 78
Figura 30 - Cenário simplificado de Robin Hood. ...................................................... 85
Figura 31 - Aldeia onde vivem os "animais" .............................................................. 86
Figura 32 - Cenário desfocados onde alguns objetos sequer podem ser identificados.
........................................................................................................................... 86
Figura 33 - Cena cinzenta reforçando a melancolia .................................................. 88
Figura 34 - João Pequeno ......................................................................................... 90
Figura 35 - Xerife ....................................................................................................... 90
Figura 36 - Sr, Chio ................................................................................................... 90
Figura 37 - Personagem Robin Hood ........................................................................ 92
Figura 38 - Robin subindo na árvore ......................................................................... 93
Figura 39 - Comparativo da representação de príncipe João como leão e o animal na
realidade ............................................................................................................ 95
Figura 40 - Rei revelando sua fraqueza .................................................................... 96
Figura 41 - Alarme das formigas e formigueiro ....................................................... 103
Figura 42 - Formiga pronta para sua aventura ........................................................ 104
Figura 43 - Farol da cidade dos insetos .................................................................. 104
Figura 44 - Plano geral da cidade dos insetos ........................................................ 105
Figura 45 - Porporção real do tamanho dos insetos ................................................ 105
Figura 46 - Insetos surpresos ao descobrirem o mal entendido .............................. 106
Figura 47 - Invenção de Flik para colher mais grãos ............................................... 110
Figura 48 - Flik e formiga real .................................................................................. 111
Figura 49 - Posição dos gafanhotos ao invadirem o formigueiro............................. 112
Figura 50 - Detalhes do gafanhoto Hopper em paralelo com um gafanhoto real. ... 113
Figura 51 - Mufasa com expressão de raiva e Scar com desdém ao que está lhe
sendo dito ......................................................................................................... 118
Figura 52 - Oposição entre reinado de Scar e reparação após vitória de Simba .... 121
Figura 53 - Simba X filhote de leão ......................................................................... 122
Figura 54 - Simba e seus amigos olhando as estrelas ............................................ 124
SUMÁRIO
DEDICATÓRIA ..................................................................................................................................................... 4
INTRODUÇÃO .................................................................................................................................................... 11
CAP. 1 - A DISNEY, E SEU PAPEL NO DESENVOLVIMENTO DA ANIMAÇÃO ................................. 21
1.2 CLASSIFICAÇÃO DO ANTROPOMORFISMO NAS ANIMAÇÕES ............................................................. 27
CAP. 2 - CONDIÇÃO HUMANA A PARTIR DE ANIMAIS .......................................................................... 47
2.1 PINÓQUIO ................................................................................................................................................... 47 2.1.1 Um Grilo que fala .......................................................................................................................... 61 2.1.2 A Raposa que trai .......................................................................................................................... 69 2.1.3 O Gato Mimado .............................................................................................................................. 75
2.2 ROBIN HOOD .............................................................................................................................................. 80 2.2.1 A Raposa Astuta ............................................................................................................................ 91 2.2.2 Leão Medroso ................................................................................................................................ 94
CAP. 3 - CONSTRUÇÃO SOCIAL DO REINO ANIMAL ............................................................................. 99
3.1 VIDA DE INSETO ......................................................................................................................................... 99 3.1.1 A Formiga Revolucionária ........................................................................................................ 109 3.1.2 Gafanhoto Inteligente................................................................................................................. 112
3.2 O REI LEÃO .............................................................................................................................................. 116 3.2.1 O desenvolvimento de um leão ............................................................................................... 121
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................................ 125
ANEXO .......................................................................................................................................................... 131
11
INTRODUÇÃO
O cinema é algo que atinge tanto adultos como crianças, sendo as crianças
as mais “contagiadas” pelo cinema de animação. Tassara (1996) afirma que devido
à complexidade para produzir animações os pioneiros dessa arte optavam por uma
narrativa de humor e de ironia fácil, que acabou por atrair as crianças, mesmo não
sendo planejada especificamente para esse público. Animação, portanto, é um
importante elemento na constituição do sujeito, justamente no momento que está
mais suscetível aos estímulos: na infância.
Segundo a teoria Comportamental de Skinner (2003) a partir das relações
humanas, o homem se constitui como indivíduo, para tanto possui a capacidade
inata de aprender a partir de seus contatos. A possibilidade de se aprender
comportamentos específicos é fato inerente ao ser humano, entretanto esse
processo é mais propício de acontecer quando falamos de crianças. A princípio a
criança se comporta por reflexos e imitação, reproduzindo aquilo que as pessoas a
sua volta estão apresentando, feito isso tem a chance de experimentar as
consequências de seu comportamento e isso determina se esse comportamento
será mantido ou não. Tendo em mente que o tempo que a criança teve para passar
por esse processo, conhecer comportamentos, colocá-los em prática e inseri-los ou
não em seu repertório, é menor do que o de um adulto não é difícil imaginar que as
crianças sejam muito suscetíveis aos estímulos externos.
Levando em consideração a afirmação de Skinner (2003, p.455) “No sentido
mais amplo possível, a cultura na qual um indivíduo nasce se compõe de todas as
variáveis que o afetam e que são dispostas por outras pessoas” e a afirmação de
Kellner (2001) de que a cultura da mídia é hoje a forma de cultura dominante que
nos socializa e provê materiais para identidade, temos que hoje a cultura nos é
passada não apenas com o contato entre os membros dos grupos em que estamos
inseridos, mas sim através de uma verdadeira gama de mídias que chegam até
nós. No presente trabalho o foco será uma dessas mídias específicas: o cinema.
Ao analisar o desenvolvimento do cinema de animação é possível perceber
que este utilizou técnicas de áreas distintas do conhecimento e da arte. Muito
ligado à pintura, história em quadrinhos, cinema live action, posteriormente ao
12
design gráfico e game. Denis (2007) reforça essa idéia ao afirmar que animação
não é apenas uma técnica, mas um conjunto de técnicas que permite ao criador
uma infinidade de resultados. Isso sem falar na narrativa de suas histórias que
utilizou a literatura, teatro, circo, mitologia, contos populares, etc. Porém em sua
trajetória desenvolveu características próprias e bem particulares, Meckee (2006)
afirma que a animação sustenta-se pelas leis do metamorfismo universal, a partir
das quais tudo pode ser criado e transformado, independentemente de normativas
físicas. Isso pode inclusive ser verificado nas primeiras animações como no caso
do animador francês Emile Cohl:
Cohl mergulhou no universo gráfico criando personagens autônomos, próprios para o mundo da animação, onde seus personagens criam-se e destroem-se, sofrem metamorfoses ilimitadas, são executados através de guarda-chuvas sem perder uma gota de sangue e são vítimas de monstros com faces humanóides e olhos nas pontas de suas caudas (BENDAZZI, 1995, p.9).
Ao falar em animação certamente ao redor de todo o mundo o nome Disney
vem à mente quase que simultaneamente. Isso se dá pela representatividade deste
artista e posteriormente de seu estúdio no desenvolvimento da animação, e ele em
especial manteve a essência das características da animação apresentadas por
Cohl, como é possível perceber a partir da afirmação: “Disney refere-se ao
desenho animado como pertencente ao mundo feérico, da fantasia e magia, um
universo que convida insistentemente à poesia” (FOSSATTI 2011, p.27). Tanto que
o primeiro personagem animado de Disney foi um coelho capaz de coisas incríveis,
muito além do esperado de um pequeno mamífero. A animação de animais se
tornou uma verdadeira marca registrada de Disney. Eles podem aparecer como
figurantes, auxiliares, coadjuvantes ou como personagens principais. Podem ser
representados muito próximos a suas características reais, podem apresentar
comportamentos diferentes daquilo que é esperado da espécie em questão e
podem até mesmo representar seres humanos em seus comportamentos e
vestimentas, mas dificilmente será encontrado um filme da Disney em que eles não
apareçam. Mesmo quando baseadas em histórias já consagradas para o público
como é o caso de Branca de Neve, na adaptação o cuidado com a inserção dos
animais é evidente, uma vez que deixam de ser meros figurantes e ganham
13
relevância na narrativa, desempenhando a função de auxiliares conforme a
concepção proppiana1, uma vez que eles conduzem Branca de Neve à cabana dos
anões, e a acompanham assegurando-lhe um novo lar, além de contribuírem com
a comicidade da animação, participando de inserções que provocam gracejos
visuais, em momentos indeterminados, como descreve Fossatti (2011).
Uma vez que a produtora que há mais tempo produz animações para o cinema
é a Walt Disney (em conjunto com a Pixar, que foi adquirida posteriormente pela
Disney), as suas produções foram o foco desta pesquisa. O primeiro passo,
portanto, foi levantar a lista de filmes de longa-metragem produzidos desde o
primeiro: Branca de Neve e os Sete Anões até o mais recente, e assistir algumas
das animações de diferentes períodos em busca de elementos que pudessem dar
indícios de um padrão para inserção dos animais e a forma de representá-los. A
lista foi desenvolvida através da lista de filmes apresentada por Surrell (2009) e
Mutran (2010).
Nesse primeiro percurso o objetivo era criar uma maior familiaridade com os
filmes e não uma análise fílmica detalhada. As animações dessa amostra inicial
foram: Branca de Neve e os Sete Anões (1937), Bambi (1942), Alice no País das
Maravilhas (1951), A Dama e o Vagabundo (1955), A Espada era a Lei (1963), 101
Dalmátas (1961), Aristogatas (1970), Robin Hood (1973), O Cão e a Raposa (1981),
A Pequena Sereia (1989), A Bela e a Fera (1991) e Vida de Inseto (1998). Foi
utilizada uma amostra de conveniência, conforme maior facilidade de acesso às
animações e mais alguns critérios de seleção:
Utilização de ao menos duas animações de cada década;
Buscar uma animação com personagens principais humanos e outra com
animais em cada uma das décadas;
Utilização na amostra de cada década, de animações com textos
originais de diferentes origens.
A partir da amostragem utilizada, algumas diferenças de utilização para os
personagens animais já puderam ser estabelecidas:
a) Há filmes em que animais se comportam como animais;
1
Vladimir Propp (1984), formalista russo, apresentou contribuições à análise narrativa, orientada pela
trajetória dos personagens onde desenvolveu sete esferas de ação correspondentes ao que cada personagem
realiza na narrativa, sendo a esfera de ação do auxiliar descrita como: compreende o deslocamento do herói no
espaço, a reparação do dano ou carência, o salvamento durante a perseguição, a resolução de tarefas difíceis, a
transfiguração do herói.
14
b) animais que não se comportam como animais comuns, porém não
representam seres humanos;
c) animais que se comportam como seres humanos.
A partir disso o objetivo da pesquisa passa a ser identificar a função dos
animais nas animações da Walt Disney de longa-metragem desde seu início (1937)
até o mais recente no momento (2010).
Nesse percurso foi necessário entender o momento histórico de cada
animação, verificar seu texto de origem, os animais que são utilizados para
representar seres humanos e o tema de cada animação. Com isso pretende-se
encontrar um padrão para utilização da forma dos animais em cada uma das
funções apresentadas anteriormente.
Inicialmente é possível refletir nesse tipo de utilização dos animais como
forma de explorar a principal vantagem da animação: representar qualquer coisa
que venha à mente, mesmo distante do mundo real. Com o sucesso dos animais
humanizados essa foi uma tendência que se instaurou nas animações, até porque,
mesmo podendo ser destinada a adultos, a animação sem dúvida é diversão
garantida para as crianças, que apresentam uma imaginação fértil e com poder de
fabulação muito grande. Por esse motivo, além das animações da Disney será
necessário retomar alguns dos primórdios da história e constituição da animação
para contribuir para construção da compreensão da utilização da forma dos
animais nos filmes.
Existem diversas pesquisas na área da animação, em sua maioria, realizam um
levantamento detalhado das animações e das técnicas utilizadas, os avanços
tecnológicos aplicados, etc. Outro tipo de pesquisa comum de se encontrar na área
é sobre a tendência de produções autorais e os reflexos disso em cada uma das
animações. Há muito sobre as tendências da estética, porém pouco se encontra
sobre as tendências narrativas e o conteúdo apresentado. Estudo sobre gêneros
na animação, faz-se ainda mais raro. Dessa forma o presente trabalho busca
versar sobre essas áreas mais esquecidas em relação à animação, em busca de
identificar especificidades relacionadas ao conteúdo e à narrativa, o que
posteriormente pode contribuir para embasamento de estudos sobre gêneros
nessa arte. No que diz respeito especificamente à análise relacionada à utilização
da forma dos animais nas animações nada foi encontrado no percurso da pesquisa.
Identificar tendências e padrões no conteúdo narrativo deve contribuir para
15
compreender se existem, e quais são os grupos possíveis de classificação de
animação. Afinal a animação possui hoje uma imensa quantidade de produções
muito diversificadas entre si, sendo possível assim pensar em possibilidades de
agrupamento por características específicas encontradas.
A partir do exposto acima, o objetivo do trabalho é identificar nas animações de
longa-metragem da Walt Disney como são representados os animais, o quanto
mantêm suas características naturais e o quanto são humanizados. Identificar qual
é a função dessas figuras na animação e o tipo de narrativa que elas conformam.
Identificar se existe um padrão para tal utilização e qual seria esse. Para tanto será
necessário verificar se existe relação entre o tipo de representação dos animais e a
origem da história e comparar as representações ao longo dos anos a fim de
identificar tendências para a maneira pela qual os animais são utilizados na
narrativa ao longo dos anos.
A metodologia para esta pesquisa é composta por quatro etapas distintas:
1 - Levantamento e seleção dos filmes para análise,
2 - Catalogação dos filmes levantados,
3 - Classificação dos filmes em grupos de semelhança para discussão teórica,
4 - Análise fílmica de filmes representativos.
Levantamento e seleção dos filmes para análise
O primeiro critério para isso foi a decisão de utilizar apenas as animações de
longa-metragem, uma vez que o foco do trabalho é a produção cinematográfica
e com essa seleção há uma maior quantidades de animações longa-metragem
no circuito comercial.
Foram tomadas como base para a listagem as apresentadas por Surrel
(2009) e Mutran (2010). A partir disso foram selecionadas as animações que
seriam objeto de análise; para isso foram descartadas animações que se
tratavam de sequência de outra já apresentada anteriormente, filmes com os
mesmos personagens já apresentados em uma animação anterior que já
haviam feito parte da amostra de objetos selecionados e animações compostas
por uma seleção de curta-metragem. (Anexo I)
Catalogação dos filmes levantados
Para realização da análise dos filmes foi desenvolvida uma tabela com os
principais itens que deveriam ser analisados nos filmes, para dessa forma
16
existir um padrão de análise e posteriormente contar com informações
qualitativas e quantitativas.
Os itens para análise são:
1- o filme possui animais? - a fim de identificar o quão freqüente é a
presença de animais nas animações
2 - os animais são os personagens principais? - para identificar a
importância dos animais na animação e identificar possível tendência para o
antropomorfismo.
3 - existe interação entre humanos e animais? - este é novamente um item
que pode demonstrar alguma tendência para utilização do antropomorfismo.
4 - (item válido apenas para animações com presença de animais)
apresentam traços de comportamentos não pertencentes a animais? -
identificação da presença ou não de antropomorfismo.
5 - (item válido apenas para animações com presença de animais)
representam humanos em seus comportamentos e vestimentas? - identificação
do grau de antropomorfismo. Os elementos analisados nesse item são:
vestimenta, habitat, forma física, tipos de ações que realizam e relação com
seres humanos.
Serão considerados quatro níveis distintos:
a - não representam seres humanos, mantêm apenas as características
dos animais. Podem nesse nível falar entre si e até apresentar sentimentos e
algumas atitudes não pertencentes aos animais, porém mantêm suas
características físicas, habitat, alimentação, relação com ser humano tal qual na
realidade, ou seja, são pertencentes ao mundo animal. Vejamos um exemplo de
um personagem que se enquadraria nesse nível: Bambi. O personagem da
animação não utiliza nenhum tipo de vestimenta ou acessório diferente do que
encontramos nos animais dessa espécie na natureza. Seu habitat é a floresta, o
que corresponde à realidade da maior parte dos veados existentes. Fisicamente
ele é bem parecido com um veado real, seus olhos seriam o elemento que mais
se distanciariam no quesito físico. Bambi corre pela floresta, se relaciona com
os demais animais e brinca com os de sua espécie, apresenta dificuldades para
dar os primeiros passos, busca sempre a proteção de sua mãe, entre outras
ações que apesar de envoltas de fantasia e criação própria para a narrativa
17
ainda assim não destoam daquilo que podemos aceitar como sendo típicas de
um veado.
Figura 1 - Bambi X Veado
A partir dessa análise inicial foi percebida já uma questão importante
no que diz respeito á antropomorfização, é preciso guardar as devidas
proporções na comparação de animais animados e animais reais, uma vez que
se trata de uma obra ficcional com base na representação de uma realidade,
não sendo possível corresponder à realidade de fato, sendo o documentário o
mais adequado nessa situação (ainda que existam discussões de que mesmo
no documentário tratar-se-ia apenas de uma representação). Porém existe um
universo de animação e representação de animais que podem ser comparadas
entre si, é o universo da forma, e é a partir dessa conclusão que as análises
aqui apresentadas serão realizadas.
O princípio aqui defendido não é o que é verdade, mas o que convence
como tal. Carrière (1995) traz diversos exemplos do quanto o cinema não
reflete uma realidade/ verdade, mas sim constrói uma linguagem
cinematográfica que convença o espectador de que aquilo que ele vê está
ligado a uma verdade. Aqui é possível pensar essa idéia para o
antropomorfismo, ou seja, na linguagem construída para animação no que diz
respeito à representação de animais, esta primeira categoria estaria mais
próxima do que chamamos de real, ou da preocupação do animador em criar
uma verdade relacionada ao personagem animal. A forma assumida pela
animação é a mais próxima da forma do animal.
b - parcialmente, realizam ações que animais normalmente não realizariam,
podendo ser algumas delas características de humanos, mas ainda assim
18
representam formas de animais. Isso ocorre principalmente quando apresentam
um ou dois elementos de antropomorfismo citados anteriormente, mas
principalmente respeitam as características físicas dos animais e seu habitat.
Mesmo quando se aproximam bastante de ações realizadas por humanos, a
questão central aqui é: “Estão vivendo em um mundo humano ou, um mundo
que apesar de fantástico, é próprio para esta espécie?” No caso da resposta ser
a segunda, então estamos falando desse segundo nível de antropomorfismo.
Um exemplo desse nível seriam os gatos de Aristogatas, os quais fisicamente
são bem parecidos com gatos da realidade, seu habitat é uma casa humana,
pois são gatos de estimação de uma senhora, como tantos que existem na
realidade, eles não conversam com seres humanos, apenas entre si, porém
apresentam alguns comportamentos que são humanos, como por exemplo
tocar instrumentos musicais.
Figura 2 - Gatos na animação Aristogatas
c - completamente, suas características se aproximam de tal forma das
características dos humanos que o personagem de forma animal poderia ser
substituído por um de forma humana. Nesses casos os animais estão em um
habitat que não é o seu, se comportam de forma muito próxima a seres
humanos, se vestem como esses e ocupam papéis sociais como o de humanos.
Um exemplo desse nível seria Robin Hood, que é uma raposa, mas vive em
uma sociedade tal qual a de seres humanos, se veste como tal e só não fala
com seres humanos porque todos os personagens do filme são animais
humanizados.
19
Figura 3 - Robin Hood versão animação e seriado live action2
Vale ressaltar que a análise desses níveis apesar de apresentar um
comparativo com a realidade foi desenvolvida a partir de tendências narrativas dos
filmes de animação, ou seja, deve-se pensar nos níveis comparando as
representações dos animais em animações. Pois é claro que animais de animação
não serão os mesmos que os animais reais, mas ainda assim apresentam
diferentes formas de representação, fato este que é o interesse desta pesquisa.
Dando continuidade aos elementos analisados em cada filme:
6 - possui objetos mágicos? - item para identificação de tendências da
representação de humanos e animais.
9 - origem da história - busca identificar se a história é um conto de fada,
uma história da literatura geral, uma lenda ou uma produção nova. Assim
podendo identificar um padrão ou não para a representação de humanos e
animais.
10 - tipos de animais - (análise de animais parcialmente e completamente
humanizados presentes nos filmes) para identificar se existe algum tipo de
animal mais freqüentemente humanizado.
Classificação dos filmes em grupos de semelhança para discussão teórica
Após preenchimento das fichas de análise, foi feita a separação em três
grupos:
a) animais que se comportam como animais;
b) animais que não se comportam como animais comuns, porém não chegam
a representar seres humanos;
c) animais que se comportam como seres humanos.
2 AS AVENTURAS DE ROBIN HOOD (The Adventures of Robin Hood - EUA 1938). Direção: Michael
Curtiz e William Keighley.
20
Então, foram analisados os demais elementos a fim de identificar as
tendências em cada um dos grupos para, a seguir, verificar se existe
diferenciação entre os grupos.
Análise fílmica de filmes representativos.
A partir dos dados levantados na etapa anterior foram selecionados quatro
filmes para análise dos personagens animais, dando prioridade a filmes onde os
animais fossem os personagens principais, ou apresentassem um papel
significativo na animação. Assim para animação onde animais se comportam
como seres humanos foi selecionado Robin Hood (1973), para o segundo tipo
onde se comportam parcialmente como seres humanos Vida de Inseto (1998),
um no qual encontramos os dois tipos de representação de animal no mesmo
filme- Pinóquio (1940) e por fim um no qual animais se comportam como
animais - O Rei Leão (1994).
Para a análise serão utilizados os conceitos apresentados pelo formalista
russo Vladimir Propp no que diz respeito a morfologia dos contos maravilhosos,
sua releitura por A.J Greimas, linguista lituano que muito contribuiu para teoria
Semiótica e da narratologia. E, quando necessário a simplificação apresentada
pela professora e estudiosa de literatura Nelly Novaes Coelho. Apesar dos
autores apresentados tratarem da literatura partiremos da afirmação de
AUMONT (1995, p. 128) “O filme de ficção, como o mito e o conto popular,
apóia-se em estruturantes de base cujo número de elementos é finito e cujo
número de combinações é limitado”, ou seja, as teorias dos autores
mencionados servem como base para análise de filmes de ficção.
Como estrutura da pesquisa temos o primeiro capítulo onde será retomado
brevemente o histórico das animações com foco nas formas e nas narrativas
apresentadas e em seguida a análise quantitativa que embasa a análise
qualitativa da amostra de animações selecionadas. O segundo e terceiro
capítulo do trabalho terão como foco principal a análise fílmica sendo que
primeiramente será apresentada a análise dos animais completamente
humanizados e no terceiro capítulo os animais parcialmente e não
antropomorfizados.
21
CAP. 1 - A DISNEY, E SEU PAPEL NO DESENVOLVIMENTO DA
ANIMAÇÃO
Para compreender como são representados os animais antropomorfizados nas
animações de Disney, é preciso retomar o percurso do cinema de animação,
identificar como se deu a construção de sua linguagem, em especial no caso de
Walt Disney, foco desta pesquisa e grande marco não apenas nas animações, mas
também no que diz respeito à antropomorfização de animais e objetos.
A animação nasceu talvez antes mesmo do cinema live action, se levarmos em
consideração que as primeiras experiências de imagem em movimento diziam
respeito na verdade a desenhos que por técnicas diferentes criavam a ilusão do
movimento. Porém, apesar do início em comum com o cinema, a animação trilhou
um caminho próprio, obtendo seu desenvolvimento e espaço na arte
cinematográfica.
Segundo Beck et al. (2004) Humorous Phases of Funny Faces (1906), de J.
Stuart Blackton é considerada por muitos como a primeira animação. Blackton
nasceu na Inglaterra, mas emigrou para os Estados Unidos, em 1906 produz sua
animação combinando técnicas de parada para ação de Meliés com técnica de
animação frame a frame. Utilizava uma lousa e giz para desenvolver seus
desenhos, apesar de serem desenhos simples, apresentavam certa quantidade de
detalhes.
Porém a primeira animação frame a frame, a qual embasa a técnica de
animação até os dias de hoje, é atribuída a Emile Cohl, em 1908, com uma série
simples de desenhos utilizando traços negros sobre papel branco fotografados. Na
tela utilizou o negativo por isso a imagem projetada de figuras com traço branco se
movendo sobre um fundo negro, tal relato pode ser encontrado em Halas e Manvell
(1976), Denis (2007) e Tassara in Bruzzo (1996). Interessante notar como em
alguns casos da literatura americana o nome de Cohl é deixado de lado, como no
caso do livro Enchanted Drawings de Charles Solomon (1989) e o Animation Art
de Beck et. Al (1995) com pouco destaque ou nenhuma menção. Em Bendazzi
(1995) encontra-se uma descrição mais aprofundada sobre a arte de Cohl, francês
que trabalhava como cartunista para uma revista. Ao contrário de Blackton, que
22
estava preocupado com a verossimilhança, Cohl desenvolve um mundo próprio
como já citado anteriormente, podendo dessa forma ser reconhecido não apenas
pela sua contribuição para técnica, mas principalmente para uma tendência de
linguagem para o cinema de animação, amplamente explorada até hoje. É possível
notar a preocupação em mostrar as possibilidades trazidas pela animação, onde a
magia foi bem estabelecida, uma vez que os personagens são capazes de fazer
diversas ações que não seriam possíveis na vida real. Interessante notar também a
base da metamorfose, mostrando o grande poder que está na mão do artista que
muda as formas a seu bel prazer. No primeiro momento da animação a técnica
ainda em pleno desenvolvimento exigia um imenso esforço por parte do artista, que
poderia ficar preso por anos em sua obra não acabada. Cohl demonstra o que é
possível fazer, explora a linguagem da animação com o fantástico, inusitado,
inesperado, abrindo caminho, portanto, para seu desenvolvimento e
aperfeiçoamento.
A necessidade de quebrar as amarras ao real só será teorizada com os surrealistas, após a Primeira Guerra Mundial, mas a abordagem de Cohl já era essa. Menos virado para o espetáculo público do que McCay, ele proporcionava uma dimensão fortemente mental, psicológica, que equivalia a um mergulho direto no cérebro do realizador. O traço branco em fundo negro de Fantasmagories é bem uma aplicação das teorias sobre o sonho e os poderes infinitos do imaginário (DENIS, 2007, p.47).
Cohl abre as portas para novos artistas interessados em produzir animações.
Grande nome neste momento é o americano Winsor McCay, com uma vasta
produção na época. Em 1911 lança o filme Litlle Nemo, segundo Denis (2007, p. 47)
“é um deslumbrante exercício de estilo gráfico”, possível notar a riqueza de detalhe
dos personagens e já um indício de personalidade. Nessa primeira animação
utilizou figuras se movendo, sem um fundo desenhado e sem uma narratividade
concreta. Porém em seguida produz a animação The Story of a Mosquito, na qual
um mosquito gigante, usando um chapéu e segurando uma maleta, tem uma fome
insaciável pelo sangue de um bêbado e acaba explodindo de tanto se alimentar
com o sangue do homem. Neste curta já é possível notar uma tendência na
animação para a humanização e utilização de animais, neste caso um inseto,
fortemente marcados por características psicológicas. Em 1914 produz Gertie the
Dinosaur, onde pela primeira vez pode ser visto um cenário ao fundo, o que gerou
23
grande trabalho, bem como fortes indícios de utilização da perspectiva podem ser
verificados, com o dinossauro se movendo pelo cenário e pegando objetos. Porém
talvez o que mais chame a atenção nesse momento é a personalidade dada a
Gertie que se comporta como um animal de estimação, mas revela traços de sua
própria personalidade quando se nega a realizar algum comando, ou quando
Gertie começa a chorar e podemos ver grandes lágrimas saindo de seus olhos.
Fossati (2011) afirma que houve um intenso processo de industrialização da
animação, tendo seu boom entre 1910 e 1940. Isso se dava em função da
necessidade de criar animações cada vez mais rapidamente e com custo menores,
isto pode ser visto como o propulsor para busca de novas técnicas que
otimizassem o processo. Em 1914 Earl Hurd desenvolve a técnica do acetato, em
que o desenho que deve se mover era feito sobre uma folha vegetal transparente e
colocada sobre o desenho fixo do cenário, assim evitando a reprodução cansativa
de elementos fixos da animação. Segundo Denis (2007) esse processo foi decisivo
para possibilitar rentabilidade para animação, juntamente com a invenção de Raoul
Barre que desenvolve um mecanismo de pequenos pinos fixados sobre uma régua
que permitiam posicionar de maneira sempre idêntica os desenhos sucessivos,
garantindo maior qualidade e mitigando a instabilidade dos filmes pelo
posicionamento sem tanta precisão. Em 1915 foi criada a rotoscopia, por Max e
Dave Fleischer. Fossati (2011) afirma que essas invenções buscavam aprimorar os
movimentos, recobrindo-lhes de realismo.
Lucena (2005) afirma ainda que as animações na década de 20 estavam
empobrecidas se comparadas àquelas desenvolvidas por Cohl e McCay, os
movimentos eram simples. Isso muito provavelmente por conta da necessidade já
mencionada de uma maior velocidade de produção, uma vez que a animação
ainda não possuía lugar de destaque no cinema e precisava ainda se impor como
produto autônomo. Disney chega justamente neste momento.
[Para Disney] o personagem de animação tinha de atuar, de representar convincentemente; parecer que pensa, respira; convencer-nos de que é portador de um espírito. E para envolver completamente a audiência, esse personagem tinha, por fim, de estar inserido em uma história (LUCENA, 2005, p. 99).
Disney nasceu em 1901 em Chicago. Bruzzo (1996) ressalta que Disney
costumava passear pelos bosques com seu tio e que nessas ocasiões teve
24
certamente muitas oportunidades para observar pequenos animais de toda espécie,
inclusive seus comportamentos e movimentos. Diz que talvez seja essa a origem
de seu apego pelos animais, que criou sua tendência de usá-los em suas
animações fossem antropomorfizados ou não. Ele começou desenhando alguns
anúncios com seu amigo Ub Iwerks, conforme relata Denis (2007). Foi o primeiro
animador a estabelecer-se em Hollywood. Sua primeira produção foi uma série
onde inseriu personagens reais em um mundo de desenho animado. A série não
obteve muito sucesso, porém teve o reconhecimento da qualidade técnica. Foi isso
que garantiu a participação de Walt Disney na Série da Universal: Oswald the
Lucky Rabbit, com sua primeira aparição em 1927. Nesta animação um pequeno
coelho passa por inúmeras situações inusitadas, com possibilidades incríveis de se
esticar, se dividir, ou seja, ações típicas apenas de personagens animados.
Interessante notar que Oswald apesar de ser um coelho andava sobre duas patas
e vestia um short. As histórias do coelho podem fazer lembrar outro personagem
animado, o Gato Félix criado por Pat Sulivan e Otto Messmer em 1919, sendo
considerado o primeiro personagem de cartum3.
Figura 4 - Personagens Oswald e Gato Félix
Em seguida produz a série Mickey Mouse, surgindo em 1928. Vejamos um relato
de Disney em relação a seu personagem:
Mickey devia primeiro ser simples. Devíamos produzir mais de duzentos metros de filme a cada quinze dias; era-nos preciso um personagem fácil para desenhar. Sua cabeça era um círculo e seu focinho uma oval. Suas orelhas, duas rodas que permaneciam redondas em todas as posições. Seu corpo tinha a forma de uma pêra e sua cauda era muito longa. Suas patas se enfiavam em enormes sapatos, que lhe davam o ar de criança que teria posto os sapatos de seu pai. Como ele devia ter o ar humano, não lhe
3 Segundo Bruzzo (1996, p. 211) cartum é um desenho caricatural com propósito humorístico. Designa um tipo
de animação que ignora as leis naturais de tempo e espaço, predominando o exagero e o delírio.
25
dotamos de garras de rato, mas de luvas, e cinco dedos sendo demais para um cavalheiro tão pequeno, só lhe concedemos quatro. Isto fazia um a menos para pôr em ação. Para simplificar certos detalhes, Mickey foi vestido com um calção e privado de todos os pêlos e bigodes que teriam atrasado o trabalho, ainda que isto tornasse mais difícil a aparição de sua personalidade (BRUZZO, 1996, p. 55-56).
Esse breve relato revela bastante sobre a forma de desenvolver
personagens de Disney, unindo estratégia para agradar ao público e também
praticidade para a reprodução. Fica evidente a preocupação com a identificação do
espectador com o personagem, assim coloca elementos para que Mickey se
pareça mais humano. Segundo a teoria da Psicologia Comportamental de Skinner
(2003) a identificação é a tendência para nos comportamos do mesmo modo que o
personagem, assim posso compartilhar sentimentos e sentir um maior
envolvimento emocional com o filme. Para isso é necessário reconhecer a
possibilidade de emitir o comportamento da personagem na vida cotidiana em
algum aspecto, é possível também identificação com animais e objetos inanimados
contanto que seja discriminada uma possibilidade de repetir alguma característica
de seu comportamento. Quando Disney comenta sobre os sapatos de Mickey isso
fica evidente. Mesmo que não fique evidenciado para as crianças a imagem pode
remeter a essa lembrança mesmo que não chegue a atingir um nível de
consciência do espectador, mas certamente desperta sentimentos relacionados a
isso.
Fossatti (2011) relata que Mickey não atingiu de imediato o sucesso
esperado, e aponta como um dos motivos para isso o surgimento do cinema falado,
Disney lança então sua primeira animação sonora ainda em 1928 Steamboat Willie,
sendo o terceiro episódio da série do personagem Mickey. Os Fleischer já haviam
aperfeiçoado algumas invenções e apresentado seus resultados, porém dada a
perfeição com que Disney apresentou sua animação ficou conhecido como pioneiro
nessa inovação. Incansável, Disney continuou a desenvolver a qualidade do som
em sincronia com as animações, e lançou sua série Silly symphonies, onde a
música e o som não são elementos secundários, mas sim os elementos principais
da animação. Apresentou algumas histórias inéditas, mas também se aproveitou
de contos e fábulas já conhecidas para atrair ao público. Humanizou animais,
árvores e outros seres inanimados, ganhou inclusive seu primeiro Oscar em 1932
26
com o primeiro desenho animado colorido o Flowers and Trees. Continuou seu
aprimoramento técnico com a câmera multiplano que possibilitava efeitos
tridimensionais, que puderam ser conferidos pela primeira vez com a animação O
velho Moinho.
O ápice de seu desejo se deu no desenvolvimento do primeiro longa de
animação. Disney aprimorou muitas técnicas, treinou seus animadores,
demonstrou a importância e magia do som sincronizado, fez o primeiro desenho
animado colorido, criou o storyboard, se estabeleceu como um importante estúdio
e por fim estava pronto para essa grande novidade. Não apenas tecnicamente,
mas principalmente com o conhecimento dos elementos necessários para entreter
o público. Talvez o que nem mesmo Disney imaginasse é que ainda hoje, após
quase 80 anos do lançamento de Branca de Neve e os Sete Anões, a animação
ainda fosse assistida por muitos e seus personagens considerados referências.
Para muitos, falar no conto de fadas A Branca de Neve é o mesmo que falar na
animação, que passou a representar o conto em si.
A produção de Disney se mantém, principalmente de seus longas-metragens.
Segundo Denis (2007, p. 135), o caminho encontrado foi o realismo. Fossatti (2011)
afirma que os sucessivos longas-metragens de animação consolidavam-se como
carros-chefe de Disney, apesar de manter a produção de seus curtas, criando
inclusive novos personagens famosos até hoje: Pateta, Pato Donald e Pluto.
Na época da Segunda Guerra Mundial houve uma queda nos rendimentos o
que fez com que Disney desenvolvesse alguns filmes de instrução militar e de
propaganda norte-americana para o mercado sul-americano para sanar suas
dívidas, como relata Denis (2007), o que demonstrou grande flexibilidade e
maturidade do estúdio.
As produções de animações continuam com momentos mais intensos e
outros de maiores dificuldades, sempre atrelados ao resultado das produções
anteriores. Mogli o Menino Lobo (1967) é a última animação com a participação
efetiva de Disney, que morreu em 1966. Fossatti (2011) afirma que com
Aristogatas (1970) foi encerrada uma importante etapa do cinema de animação.
Houve a popularização da televisão o que trouxe consequências para o estúdio,
que buscaram novas propostas com filmes de atores reais e a Disneylândia, o que
trouxe uma diminuição no ritmo das animações, retomando apenas ao final dos
anos oitenta.
27
No momento da chegada da computação os estúdios Disney produziram um
filme chamado Tron, porém terceirizou o trabalho de computação gráfica. John
Lasseter no documentário A História de Disney e Pixar (2001) relata que os
diretores do estúdio não ficaram interessados, porém Lasseter que na época era
animador na Disney, acreditava que o potencial ali contido seria o futuro da
animação, inclusive desenvolveu um filme utilizando a técnica. Porém, foi
despedido pois a Disney não estava interessada nesta nova técnica. John foi
contratado pela Lucas Filmes que posteriormente foi comprada por Steve Jobs,
fundando assim a Pixar. Foi então que nasceu Toy Story, produzida pela Pixar,
mas distribuída pela Disney, assim como as animações que a sucederam. Nascia
assim uma parceria. Entretanto, Disney continuou com a animação tradicional e a
Pixar se aprimorou e desenvolveu novos longas através da computação, como
relata Mutran (2010).
Mutran (2010) ressalta que após a animação Nem que a Vaca Tussa (2004)
Disney decide se render à animação digital e passa a produzir seus filmes com
essa tecnologia. Até que, após muita negociação, em 2006 a Disney comprou a
Pixar.
E assim a produção e sucesso das animações seguem constantes atraindo
adultos e crianças ao cinema, sem dúvidas estabelecidas no mundo do cinema,
acompanhando e ditando tendências.
1.2 Classificação do antropomorfismo nas animações
Observando os aspectos relativos à forma e ao desenvolvimento dos
personagens animados, e a relevância da Disney para os mesmos, passamos a
verificar as tendências e padrões de antropomorfismo no conjunto de produções de
longa metragem deste estúdio.
Para analisar as tendências e padrões para o antropomorfismo foram
analisadas cinquenta e nove animações conforme critérios apresentados
anteriormente, estes foram inseridos em uma tabela para melhor análise
comparativa entre as animações. A partir disso, foi necessário analisar algumas
28
variáveis chaves para conduzir os comparativos entre as animações ao longo dos
anos e tipo de história. Vale ressaltar que a análise conduzida não tinha como
objetivo uma análise fílmica detalhada, mas sim um levantamento de dados para
uma análise quantitativa. A seguir o resultado do levantamento de dados:
Tabela 1 - Levantamento de dados sobre antropomorfismo das animações de longa-metragem do estúdio Walt Disney de 1937 a 2010.
Ano Título no
Brasil Possui
Animais? São
principais?
Animais e humanos
interagem?
Apresentam ações não
pertencentes a animais?
Representam humanos?
Há magia?
Origem da
história
Tipos de animais
humanizados
1937
Branca de Neve e os
Sete Anões sim não sim poucas não sim conto de
fadas animais
silvestres
1940 Pinóquio sim não sim sim sim sim literatura
grilo, gato, peixe e raposa
1941 Dumbo sim sim sim sim parcialmente não literatura elefante e rato
1942 Bambi sim sim não poucas não não literatura
veado, coelho,
gamba e coruja
1950 Cinderela sim não sim sim parcialmente sim conto de
fadas rato e gato
1951
Alice no País das
Maravilhas sim não sim sim sim sim literatura coelho e rato
1953 Peter Pan sim não sim poucas parcialmente sim peça
teatral cachorro
1955 A dama e o vagabundo sim sim sim poucas não não literatura x
1959 A Bela
Adormecida sim não sim poucas não sim conto de
fadas x
1967
Mogli - O menino
lobo sim não sim poucas não não literatura x
1963 A Espada era a Lei sim não sim sim não sim literatura x
1961 101
dálmatas sim sim sim poucas não não literatura x
1970 Aristogatas sim sim sim sim parcialmente não literatura gatos
29
Ano Título no
Brasil Possui
Animais? São
principais?
Animais e humanos
interagem?
Apresentam ações não
pertencentes a animais?
Representam humanos?
Há magia?
Origem da
história
Tipos de animais
humanizados
1973 Robin Hood sim sim não há
humanos sim sim não lenda
raposa, coelho, lobo, tigre, cobra,
etc
1977 Bernardo e
Bianca sim sim não sim parcialmente não literatura rato
1981 O Cão e a
Raposa sim sim sim poucas não não literatura x
1985 O Caldeirão
Mágico sim não sim poucas não sim literatura x
1986
As Peripécias do Ratinho
Detetive sim sim não há
humanos sim parcialmente não literatura rato
1988 Oliver e sua
Turma sim sim sim sim não não literatura x
1989 A Pequena
Sereia sim sim sim sim parcialmente sim conto de
fadas peixe e siri
1990
DuckTales, O Filme: O Tesouro da Lâmpada Perdida sim sim
não há humanos sim sim sim original
4 patos
1991 A Bela e a
Fera sim não sim não não sim conto de
fadas x
1992 Aladdin sim não sim sim não sim conto x
1994 O Rei Leão sim sim não há
humanos sim não não peça
teatral x
1995 Pateta - O
Filme sim sim não há
humanos sim sim não original cachorro
1995 Pocahontas sim não sim poucas não não lenda x
1995
Toy Story - Um Mundo
de Aventuras -
PIXAR não x x x x não original x
4 O termo original aqui refere-se a roteiro de cinema original, quando as demais categorias abarcam adaptações.
30
Ano Título no
Brasil Possui
Animais? São
principais?
Animais e humanos
interagem?
Apresentam ações não
pertencentes a animais?
Representam humanos?
Há magia?
Origem da
história
Tipos de animais
humanizados
1996
O Corcunda de Notre
Dame sim não sim poucas não não literatura x
1997 Hércules sim não sim sim não sim mitologia
grega x
1998 Mulan sim não sim sim não sim lenda x
1998
Vida de Inseto - PIXAR sim sim
não há humanos sim parcialmente não original insetos
1999 Doug - O
filme sim não sim poucas parcialmente não original x
1999 Tarzan sim não sim poucas não não literatura x
200 O filme do
Tigrão sim sim sim sim parcialmente não literatura
tigre, urso, lebre,
canguru, leitão e burro
2000 Dinossauro sim sim não há
humanos não não não original x
2000
A nova onda do
imperador sim sim sim poucas não sim original x
2001 Hora do Recreio não x x x x não original x
2001
Atlantis - O Reino
Perdido não x x x x sim lenda x
2001 Monstros S. A.- PIXAR não x x x x não original x
2002 Lilo & Stitch sim não não não não não original x
2002 O Planeta
do Tesouro não x x x x sim literatura x
2003
Procurando Nemo - PIXAR sim sim não sim parcialmente não original peixe
2003 Irmão Urso sim sim sim sim não sim original x
31
Ano Título no
Brasil Possui
Animais? São
principais?
Animais e humanos
interagem?
Apresentam ações não
pertencentes a animais?
Representam humanos?
Há magia?
Origem da
história
Tipos de animais
humanizados
2004 O Cãozinho
Esperto sim sim sim sim sim sim original cachorro
2004 Nem que a Vaca Tussa sim sim sim poucas não não original x
2004 Os Incríveis
- PIXAR não x x x x não original x
2005
O Galinho Chicken
Little sim sim não há
humanos sim sim não original galo, pato, porco, etc
2006
Os selvagem -
PIXAR sim sim não sim não não original x
2006 Carros não x x x x não original x
2007 A Família do Futuro sim não sim sim parcialmente não literatura
cachorro e sapo
2007 Ratatouille -
PIXAR sim sim sim sim parcialmente não original rato
2008 WALL·E -
PIXAR não x x x x não original x
2008
Tinker Bell - Uma
aventura no mundo das
fadas não x x x x sim original x
2008
Romeu – O Vira-Lata
Atrapalhado sim sim não sim não não original x
2008 Bolt:
Supercão sim sim sim poucas não não original x
2009
Up - Altas Aventuras -
PIXAR sim não sim sim não não original x
2009
Os Fantasmas de Scrooge sim não sim não não sim literatura x
2009 A Princesa e o Sapo sim não sim sim parcialmente sim
conto de fada
jacaré e vagalume
32
Ano Título no
Brasil Possui
Animais? São
principais?
Animais e humanos
interagem?
Apresentam ações não
pertencentes a animais?
Representam humanos?
Há magia?
Origem da
história
Tipos de animais
humanizados
2010 Enrolados sim não sim sim não sim conto de
fada x
Já foi mencionada a grande predileção de Disney pela utilização de animais
em suas animações, tendência que se manteve no estúdio mesmo após sua morte.
Das animações analisadas apenas 15% (nove animações) não possuíam nenhuma
aparição de animal (não estamos aqui avaliando o quão significativo o animal era
ou não na animação, sua simples presença já é suficiente para que a animação
seja considerada como possuindo animal), sendo que, desses, seis animações não
se passavam no mundo real, mas sim em mundos alienígenas, mundo de carros,
fadas, brinquedos, robôs etc. Ou seja, a presença de animais com humanos é
quase obrigatória nos filmes da Disney. Durante 48 anos todas as animações da
Disney possuíram animais, foi a partir de 1995 que tal regra foi alterada. É possível
talvez ligar tal fato com o surgimento de uma grande concorrente para o mundo da
animação, a Dreamworks fundada em 1994, o que pode ter contribuído para que
Disney e Pixar explorassem novos mundos para animação, em busca inclusive de
cada vez mais novidades para atrair o público, além de haver um possível reflexo
da mudança da sociedade moderna, explorando-se uma variedade maior de
elementos para ampliar a gama de sensações impostas aos espectadores.
Dentre os 85% (cinquenta animações) em que existe a presença de animais
a maioria (54%) são animações nas quais os animais são os personagens
principais, ou seja 45% do total de animações analisadas, o que revela não apenas
a predileção pela utilização de animais, mas também sua importância na trama.
Neste momento vale avaliarmos dentre as 50 animações mencionadas, a
questão do antropomorfismo para identificar a distribuição da representação
desses animais relacionando-os ao seu papel na trama:
33
Gráfico 1 -
Distribuição das animações pelo nível de antropomorfismo apresentado pelos personagens
animais.
A maioria das animações (58%) que apresentam animais não os
representam como seres humanos, ou seja, mantêm suas principais características,
o que reafirma a tendência ocidental de representação de animais em fábulas5:
É acentuada a predileção dos antigos pelas personagens-animais para representarem vícios ou virtudes humanas. Há porém, diferenças entre as que povoam as fábulas de origem oriental e as das fábulas ocidentais. Nas primeiras (como em Calila e Dimna), os animais agem como seres humanos e em nada fazem lembrar os seres de sua espécie. Nas fábulas européias, os animais, embora falem como os homens, mantêm as peculiaridades naturais de sua espécie (é o caso da maioria das Fábulas de La Fontaine) (COELHO, 2000, pg. 107).
E se considerarmos que os 28% que representam apenas parcialmente
seres humanos estão mais próximos de uma representação animal, guardando
grande parte das características originais dos animais, mais se confirma tal
tendência. Isso não quer dizer que afirmo que animações que possuem animais
são fábulas, não é possível fazer tal generalização, entretanto é certo que se
aproximam delas quando de maneira geral buscam apresentar uma moralidade
trazendo à tona discussões relacionadas à inveja, preconceito, sociedade e
distinção entre bem e mal. Uma vez que foi identificada que a maioria das
5 Segundo Coelho (2000, pg. 165) fábula é a narrativa (de natureza simbólica) de uma situação vivida por
animais que alude a uma situação humana e tem por objetivo transmitir certa moralidade. O responsável por
seu surgimento no Ocidente foi o grego Esopo (séc VI a.C). A partir do séc. XIX, o racionalismo crescente vai
estabelecer fronteiras entre as formas literárias, e a fábula passou a ser definida como uma história de animais
que representam os homens, e que tem como finalidade divertir o leitor e ensinar-lhe uma moralidade. Ou seja,
não basta possuir animais, é necessário que estes transmitam uma moral.
Nível de representação de seres humanos por animais
58%28%
14%
não representam
representam parcialmente
representam completamente
34
animações apresentam animais como personagens principais, é possível pensar
nessa moralidade sendo apresentada através dos animais, mesmo quando esses
não assumem completamente a posição de seres humanos, o que torna grande
parte das animações analisadas próximas ao que vemos como fábula, sendo
possível assim utilizar tal conceito para analisar os elementos da animação.
Poderíamos pensar em algumas animações em que a moralidade é passada
através dos animais: Pinóquio com o grilo que indica o que é certo e errado,
Dumbo e suas lições em relação ao preconceito, A Dama e o vagabundo revelando
questões sobre humildade, 101 Dálmatas ressaltando a importância da família, O
Cão e a Raposa ensinando sobre amizade, entre outros.
Como verificamos anteriormente, a maioria das animações apresenta
animais em suas histórias, e para identificar a relação entre grau de
antropomorfismo e importância do personagem na história foi feito aqui um
comparativo entre estes dois itens como pode ser observado no Gráfico 2:
Relação entre grau de antropomorfismo e importância do
personagem
55%
36%29%
45%
64%71%
Não
antropomorfizados
Parcialmente
antropomorfizados
Não são personagens
principais
São personagens
principais
Completamente
antropomorfizados
Gráfico 2 - Comparativo entre grau de antropomorfismo apresentado e importância do animal na história
O que é possível perceber a partir do gráfico é que quanto maior o nível de
antropomorfismo maior a tendência para que se tornem os personagens principais,
quando os animais não são antropomorfizados a tendência é que não sejam
personagens principais (55%), porém quando aumenta seu grau para parcialmente
antropomorfizado essa tendência inverte, onde a maioria (64%) dos animais são
personagens principais e essa tendência é ainda maior (71%) quando temos
35
animais completamente antropomorfizados, ou seja os animais antropomorfizados
ganham destaque na trama, o que acaba por lhes atribuir novos papéis além
daqueles impostos pela natureza. Tal conclusão parece evidente, pois em
nenhuma animação é colocado um animal antropomorfizado para servir como
“figurante” como veremos adiante em relação aos animais de Lilo e Stitch ou Os
fantasmas de Scrooge, o que faz reafirmar o que facilmente se percebe nos filmes
e com os elementos da pesquisa até o momento: o animal antropomorfizado possui
razões para existir muito ligadas à narrativa e a uma mensagem a ser passada.
Além da questão da identificação mencionada anteriormente, ao decidir utilizar um
animal como personagem principal é necessário que o espectador encontre
elementos de semelhanças com esse personagem, o que apenas é possível
através de um certo nível de antropomorfismo.
Uma questão importante a ser destacada é que mesmo quando a
representação dos animais foi classificada como “não representa ser humano” isso
não quer dizer que todas as ações apresentadas pelo personagem em questão
sejam correspondentes a ações de animais, apenas em 10% (3 animações dentre
29) das animações com animais não antropomorfizados encontramos animais sem
nenhum traço que fuja daqueles encontrados na natureza. Temos nesse item o
cachorro de A Bela e a Fera, que possui uma aparição muito singela no filme, na
qual aparece apenas latindo e correndo para seu dono; em Lilo e Stitch aparecem
alguns animais marinhos nas cenas aquáticas, estes podem ser encarados
praticamente como cenário e não como personagens, servindo apenas como
ilustração do ambiente em que se encontra a menina; e, por fim em Os Fantasmas
de Scrooge aparece um cachorro roubando um pedaço de carne e alguns cavalos
puxando carroças, tal qual ocorre na realidade (Fig 05).
36
Figura 5 - Animais não antropomorfizados que não apresentam característica alguma que fuja daquelas apresentadas por animais da natureza
Vejamos agora alguns exemplos de personagens que foram classificados
como não representando seres humanos em suas ações, mas que apresentam
alguns comportamentos que não são pertencentes aos animais, para compreender
o porquê ainda se mantiveram na classificação mencionada. Nessa situação
estariam os animais silvestres de Branca de Neve que ajudam a garota a limpar a
casa dos anões, porém respeitam as características físicas e limitações dos
animais, e não chegam a apresentar características humanas, ou seja, fogem um
pouco do que é esperado de animais, mas não apresentam elementos humanos
que os tirassem desta categoria. O mesmo acontece com A dama e o Vagabundo,
que são agraciados com um jantar romântico a luz de velas, ou com os macacos
em Tarzan, que possuem regras e uma sociedade bem estruturada, mas é própria
da espécie. Consideramos tais características como próprias de uma história de
ficção de animação, onde a aproximação com o fantástico é maior. Importante
ressaltar que foram classificados como não representando seres humanos as
animações que possuíam humanos transformados em animais como o caso de A
espada era a Lei, A nova onda do Imperador, Irmão Urso. Para o caso de A
37
Princesa e o Sapo, a classificação como parcialmente representando humanos se
deu em função do jacaré que toca instrumentos musicais e não em função dos
sapos que na verdade eram seres humanos. Pois o objetivo da pesquisa é analisar
a representação de animais e nestes casos por questões mágicas temos na
verdade seres humanos, o que faz com que sejam esperados comportamentos
distintos daqueles normalmente apresentados por animais.
Figura 6 - Animais silvestres lavando roupa em A Branca de Neve
Quando analisamos as catorze animações onde os personagens animais
foram classificados como representando parcialmente seres humanos temos uma
diversificação maior na utilização dos personagens, temos animações nas quais os
comportamentos pertencentes aos seres humanos são pontuais, como é o caso da
cadela babá de Peter Pan, onde a personagem possui vestimentas próximas de
uma empregada humana e é a responsável por cuidar das crianças na ausência de
seus pais, os elefantes em Dumbo sendo responsáveis pela montagem do
picadeiro de circo, utilizando inclusive ferramentas humanas com suas vestimentas
ou Os Aristogatas, onde há a presença de gatos tocando instrumentos musicais,
muito próximo ocorre em A Pequena Sereia com o siri regente de uma orquestra,
em Doug com seu cachorro tocando piano, os sapos pertencentes a uma banda de
a Família do Futuro ou o jacaré tocador de trompete e fã de Blues em A Princesa e
Sapo.
38
Figura 7 - Animais realizando ações de seres humanos: cadela de Peter Pan arrumando os brinquedos das crianças, Dumbo ajudando a montar o picadeiro de Circo e Sebastião com sua partitura prestes a reger uma orquestra em A Pequena Sereia.
Há também as animações onde o comportamento humano não é pontual,
mas sim alguns elementos de sociedade e realidade humana que são
transportadas para o filme, como exemplo temos os ratinhos e passarinhos em
Cinderela que conversam com ela, se vestem com roupas humanas
(confeccionadas pela garota), a acordam todos os dias, além de costurarem para
ela. Ou seja a somatória dos elementos faz com que assumam uma posição
diferente de animais naturais se aproximando de ações humanas. Mais
intensamente isso ocorre em Bernardo e Bianca onde há uma sociedade da ONU
própria para ratos, que se vestem como seres humanos e se ocupam de assuntos
importantes relacionados à segurança nacional, ou em As Peripécias do Ratinho
Detetive, onde há uma sociedade próxima ao que vemos no mundo dos humanos,
porém adaptada para realidade dos ratos, em Vida de Inseto algo semelhante
acontece, uma sociedade específica é criada onde o capitalismo impera, mas não
como na realidade humana, mas construída propriamente para insetos, onde a
moeda de troca são sementes, a cidade possui trânsito de insetos correndo e as
casas são latas velhas. Em Procurando Nemo temos uma escola própria para os
39
peixes, ambientes destinados à residência, peixes com dentes e uma peixinha que
sabe ler. Em Ratatouille o rato não apenas é capaz de ler, mas também cozinhar e
apesar de não falar, se comunica muito bem com seu amigo humano.
Figura 8 - Paralelo entre a ONU dos humanos e a ONU dos ratos em Bernardo e Bianca. Ratinhos confeccionando o vestido para Cinderela.
Os animais completamente antropomorfizados são a minoria dentre as
classificações (7%), pois o critério para essa classificação também foi bem
restritivo, o animal precisa estar na realidade humana para ser categorizado como
tal. Temos em Alice no País das Maravilhas a cenas do chá, onde o principal
objetivo em optar pela utilização de animal antropomorfizado é de ressaltar o
fantástico6, pois estão vestidos como humanos, conversam naturalmente com Alice,
estão sentados à mesa se alimentando exatamente como humanos. A cena é curta,
porém não poderia ser classificada de outra maneira uma vez que as
características humanas se apresentam bem marcantes, inclusive representando a
6 Segundo Todorov (1981) o fantástico está pautado em uma oscilação entre real e imaginário, entre causas
naturais e sobrenaturais e isso se dá normalmente pela inserção de elementos não pertencentes à realidade
humana, onde há questionamento se de fato se trata de algo real. Poderia ser pensado que toda aparição de
animal antropomorfizado contribuísse para tornar uma obra fantástica, entretanto isso só ocorre quando isso se
torna o ponto de estranhamento de assombro e questionamento da realidade, por esse motivo os animais
antropomorfizados em Alice no País das Maravilhas servem de manutenção ao fantástico uma vez que são
mais um elemento a fazer que espectador e Alice se questionem sobre se o que vivem é real ou sonho, uma vez
que tais seres não são encontrados no mundo cotidiano da garota.
40
loucura, pois a lebre é muito confusa em suas ações e palavras, e realiza ações
que não seriam normais para seres humanos ou animais. Em Ducktales e Pateta
os personagens antropomorfizados clássicos da Disney, apresentados em diversos
curtas são trazidos aos filmes de longa-metragem, temos patos e cães
respectivamente vivendo em mansões ou casas, voando em aviões, dirigindo carro,
brincando, comendo e se comportando tal como seres humanos, nada os distingue
de tal a não ser sua aparência física. O mesmo ocorre em Robin Hood que será
analisado mais adiante, e também em O Galinho Chicken Little onde é apresentada
uma comunidade de animais, sem uma espécie definida, mas todos vivem tal como
os seres humanos. No caso do filme O Cãozinho Esperto a classificação já seria
mais complexa, pois existe a consciência de que se trata de um animal
antropomorfizado, tanto que o principal objetivo do cachorro é se tornar um menino
de verdade. No entanto, não poderia deixar de entrar nessa categoria, pois não é
um ser humano, mas se veste como tal, frequenta escola, estuda, lê, canta e
conversa normalmente com outros seres humanos. São diversas as situações em
que animais recebem status de seres humanos, os tipos de narrativa e forma de
representação variam bastante como foi possível perceber nesse agrupamento.
Figura 9 - Chá com uma lebre em Alice no País das Maravilhas, patos em busca de tesouro em Ducktales e galo dirigindo um automóvel em O Galinho Chicken Little.
41
A partir dos objetos analisados foi possível perceber que não existe uma
preocupação em explicar no contexto da narrativa como ou por que um animal foi
antropomorfizado, ele simplesmente possui tais características. Mesmo quando há
interação desses personagens animais com seres humanos, estes não parecem
questionar ou estranhar as características dos animais, salvo raras exceções como
o caso de Ratatouille onde o personagem humano acha estranho encontrar um
rato que cozinha e com o qual ele consegue se comunicar, ou em Alice no País
das Maravilhas, pois o mundo ao qual a garota é levada é questionável como um
todo, e a construção da narrativa existe justamente para que seja questionado o
que foge à realidade. Ao contrário do que seria normal pensar, não existe uma
proporção crescente relacionada ao grau de antropomorfismo e presença de magia
nas animações, como pode ser verificado no Gráfico 3:
Gráfico 3 - Comparativo entre grau de antropomorfismo e presença de magia
Apesar de não existir uma proporcionalidade percebe-se uma relação
contrária entre presença de magia nas animações com animais não
antropomorfizados e nas animações com animais completamente
antropomorfizados. É possível pensar nesses extremos como resultado do
delineamento de uma realidade específica, sendo que no primeiro caso estão mais
próximas do mundo real, com animais comuns e sem magia, já no extremo oposto
teríamos o mundo diferente do que existe realmente, onde os humanos são
representados por animais e a magia faz parte do cotidiano. Ressaltando que
nestes casos a atribuição de antropomorfismo não estava relacionada com a magia,
Relação de antropomorfismo com presença de magia
59%
71%
43% 41%
29%
57%
Não antropomorfizado
Parcialmente antropomorfizado
Completamente antropomorfizado
Sem Magia Com Magia
42
esta apenas estava presente em situações diversas e não na humanização dos
animais. Já para o caso de animais parcialmente antropomorfizados a quantidade
de animações em que não há presença de magia é muito maior o que está
relacionado diretamente com a origem da história. Pois, em algumas das
animações onde há classificação de animais como parcialmente antropomorfizados
estes estão ligados a contos de fada. E apenas nesta situação é que há presença
de magia. Nas demais, há maior proximidade com a realidade, como mencionado
anteriormente mesmo quando o animal é pertencente a essa categoria significa
que está muito próximo dos animais reais com ações pontuais não pertencentes a
estes ou há a criação de um mundo próprio para estes animais de animação, mas
nesse caso o objetivo é representar como se fosse o mundo real das espécies em
questão como se fosse esse o mundo natural vivido por estes animais e que nós
humanos não temos conhecimento criando uma ilusão momentânea de que isso
não seria fantasia e sim realidade.
Um importante item a ser analisado quando falamos de antropomorfismo é a
origem da história. No Gráfico 4 é possível verificar as diferentes origens das
animações selecionadas para o estudo:
Origem da história
40%
34%
12%
7%3% 2% 2% história original
literatura
conto de fadas
lenda
peça teatral
conto arábe
mitologia grega
Gráfico 4 - Distribuição das animações em função da origem da história
A maioria das animações (40%) analisadas é de histórias originais. Foram
classificadas como originais os filmes que não tiveram como base história ou
personagens pré-existentes. Mesmo quando a animação preserva pouco de seu
original, ainda assim não foi classificada como história original, pois possui raízes
que não apenas a mente de seus autores. Ou seja, quando existe algum indício de
43
origem em história pré-existente não entrou nessa classificação, pois para análise
do antropomorfismo das animações é importante distinguir o que foi feito
exclusivamente para animação no que diz respeito às características dos animais e
o que faz parte da sua história de origem. Surrell (2009) exemplifica que a Dama e
o Vagabundo, O Rei Leão e Lilo e Stitch seriam histórias originais. Na classificação
aqui apresentada apenas Lilo e Stitch seria classificado dessa forma, pois O Rei
Leão na verdade foi ligeiramente inspirado por Hamlet, peça teatral de
Shakespeare. Dama e o Vagabundo possui influências de um conto de Ward
Greene: “Happy Dan, the Cinical Dog”, que inspirou a personalidade do
personagem Vagabundo. Das vinte e quatro animações classificadas como
originais, nove (37,5%) foram desenvolvidas pela Pixar. Segundo John Lasseter
em seu depoimento para o DVD A História de Disney e Pixar (2011), essa foi
justamente a proposta da Pixar, focar em criação de histórias e personagens nunca
antes vistos. Outro ponto importante é que a primeira história original foi produzida
apenas 53 anos após o primeiro longa de animação, revelando certo
conservadorismo do estúdio e predileção pelas adaptações e que a mudança
dessa tradição pode ser pensada como um amadurecimento, uma vez que já havia
uma estabilidade financeira e de público.
Na sequência são as histórias baseadas na literatura (34%) que se
destacam na classificação de sua origem. Algumas histórias são de adaptações
mais próximas da história original e já amplamente conhecidas pelo público, como
por exemplo: Pinóquio, Alice no País das Maravilhas, O Cão e a Raposa, Os
Fantasmas de Scrooge. Em contrapartida, outras tomam como base apenas algum
elemento da história ou do personagem, por exemplo: Oliver e sua turma, A Dama
e o Vagabundo, As peripécias do Ratinho Detetive. Porém independente da maior
ou menor proximidade do original, uma coisa é certa em todas as animações há o
desenvolvimento próprio de Disney tanto na história quanto nos personagens.
Também muito representativo como base das animações encontram-se os
contos de fadas (12%). Talvez muito mais pelo seu sucesso e tradição do que pela
quantidade produzida propriamente dita. Em sua maioria, as adaptações são dos
contos dos irmãos Grimm, clara predileção do estúdio (quatro das sete animações).
O sucesso desta fórmula é tão evidente que se mantém constante o lançamento
44
deste tipo de animação pelo estúdio, com praticamente uma animação baseada em
conto de fada por década. Bruzzo (1996) destaca que:
Os contos de fada, as narrativas folclóricas e as fábulas acompanham a humanidade desde tempos que ficaram há muito para trás. Como produtos da imaginação dos homens, sofrem os efeitos da dinâmica das sociedades e se transformam com elas. Assim, é muito acertada a máxima: “quem conta um conto aumenta um ponto (Bruzzo, 1996, p. 179).
Tal tendência fica evidente nas versões de Disney, como já apontado
anteriormente. Porém pode-se perceber também que com o passar do tempo a
ousadia para adaptação ficou maior. As três primeiras (Branca de Neve e os Sete
Anões, Cinderela e a Bela Adormecida) apresentam grande parte dos elementos
da história original. Já no caso de A Pequena Sereia e a Bela e a Fera a essência é
mantida, porém há uma considerável inserção de novos elementos.Quando
entramos no século XXI, com as animações A Princesa e o Sapo e Enrolados, o
rompimento com o original é significativo nestes casos, apresentando uma
construção da história numa versão completamente atualizada. Tonin (2012) traz
uma discussão em relação a essa atualização de contos de fada como um
“espelho do homem contemporâneo” onde seriam reveladas tendências da
sociedade atual. A partir dos elementos7 apresentados como foco de alteração
nessas novas versões pode-se identificar nas duas animações as seguintes
alterações: o desencantamento, em Enrolados apesar da magia ainda estar
presente, o esforço físico e as trapalhadas são o grande destaque da trama, e na
Princesa e no Sapo a magia é justificada pela religião e elementos espirituais e não
o encanto pelo encanto. Além disso, em ambas animações é possível verificar a
significativa alteração do papel representado pelas mulheres e consequentemente
pelos homens. Estas não são mais figuras indefesas que necessitam de
salvamento, mas, sim, senhoras de suas ações. Ao homem, portanto, é consentida
a permissão para o erro e a necessidade de ser ajudado. Com isso fica evidente
7 Os temas recorrentes apresentados por Tonin (2012) são: necessidade da revelação da verdade, de um fato
oculto, como se nas versões anteriores houvesse algo escondido. Conseqüentemente, o segundo tema liga-se a
um desencantamento, como se a verdade fosse revelada para levar ao conhecimento de um mundo mais real do
que fantástico. O terceiro tema é questão da mulher como nova heroína, há toda uma nova compreensão do
papel que ela representa, do conhecimento e poder que possui. Por derivação, como quarto tema evidencia-se o
papel e perfil do homem, do herói invencível torna-se apenas homem. Por fim a questão do corpo ligadas a
noções de aparência, forma e saúde.
45
que Disney se atualiza com as tendências da sociedade não ficando simplesmente
alheio em suas fórmulas de sucesso.
Em seguida temos algumas histórias pautadas em lendas (7%), que em
alguns casos tratam-se apenas de lendas ligadas a personagens, passeando por
culturas e realidades bem distintas. O que reforça a versatilidade na criação de
histórias.
Com menor representatividade, por fim, há animações com base em peça
teatral (3%), mitologia grega e conto árabe, representando 2% cada. Ou seja,
inspirações para as histórias não são restritas. Vejamos a relação da origem da
história com a antropomorfia dos animais a partir do Gráfico 5, onde foram
consideradas as quatro origens mais recorrentes das histórias:
Gráfico 5 - Comparativo entre nível de antropomorfismo e origem da história
A partir da distribuição apresentada no gráfico, não é possível identificar
relação entre origem da história e o grau de antropomorfismo. Apenas é possível
identificar algumas possíveis indicações de tendências. No caso de histórias
baseadas em literatura e contos de fadas, encontramos a maior proporção de
animais não antropomorfizados, o que pode fazer pensar que nas histórias
originais eles de fato existissem dessa maneira e os produtores das animações
optaram por mantê-los assim. No caso das histórias baseadas em lenda, olhando a
29%
38%
17%
17%
5%
55%
30%
10%
-
57%
-
43%
25%
50%
-
25%
Original Literatura Contos de Fada
Lenda
Distribuição do nível de antropomorfização em relação a origem da história
completamente antropomorfizado
parcialmente antropomorfizado
não antropomorfizado
sem animal
46
proporção é possível imaginar como a maior tendência à antropomorfização
completa. Mas em números absolutos, isso não seria de fato uma realidade, não
sendo possível ser concluído como tendência.
Com o levantamento realizado, identificou-se a forte presença de ratos nas
animações, o que não seria difícil de supor uma vez que o personagem principal
que representa o estúdio é justamente um rato, o Mickey Mouse. Das 59
animações analisadas este pequeno roedor esteve presente em seis animações, o
que pode parecer pouco, mas, se pensarmos que nas animações cinco possuíam
cachorros e três possuíam gatos. As demais animações apresentam espécies
variadas: animais silvestres, tigre, sapo, peixe, raposa, elefante, coruja, coelho,
cobra, etc. Os roedores em sua maioria (cinco) são animais parcialmente
antropomorfizados que ou aparecem em uma sociedade específica como o caso
de Bernardo e Bianca e As peripécias do ratinho detetive ou são amigos dos
personagens principais como em Dumbo, Cinderela e Ratatouille.
É comum ao estudar animações e mais especificamente as de Disney ouvir
comentários sobre os animais humanizados produzidos pelo estúdio, entretanto no
momento de organizar o que de fato é um animal humanizado, percebemos que tal
generalização não é de fato correta uma vez que a maioria das animações nas
quais há presença de animais esses preservam grande parte de suas
características naturais. Entretanto é fato que os animais são presença quase
obrigatória, estando fora das animações apenas em poucas animações que às
vezes sequer apresentam seres humanos, como por exemplo, Wall- e onde todos
os personagens são robôs. Os tipos de comportamentos são bem variados,
entretanto, no caso das animações em que havia animais classificados como
parcialmente antropomorfizados comportamentos relacionados com atividades
musicais chamam atenção, deixando clara a união por dois elementos bastante
explorados por Disney: a música e os animais. Outra grande tendência para esses
casos é a construção de uma sociedade específica para a espécie, que não é a
sociedade humana, mas a representa a partir de elementos próprios, gerando a
questão como isso é construído? Como é apresentada a linha entre humano e
animal nesta sociedade? Já nos casos de utilização de animais completamente
antropomorfizados fica a pergunta: por que optar pela utilização de animais ao
invés de seres humanos?
47
CAP. 2 - CONDIÇÃO HUMANA A PARTIR DE ANIMAIS
A presença dos animais nas animações da Disney é quase obrigatória como
podemos verificar até o momento; já a interação de animais antropomorfizados
completamente e seres humanos é mais rara. Se uma das condições para que um
animal seja considerado completamente antropomorfizado é estar ocupando o
lugar de um ser humano como fica essa questão no caso de existirem humanos e
animais completamente humanizados em uma mesma animação? Dentre a
listagem de filmes levantados os únicos filmes em que isso acontece são Pinóquio
e Alice no País das Maravilhas, porém uma vez que o segundo se passa em um
mundo declaradamente fantástico e não numa imitação da realidade humana,
optamos por analisar Pinóquio em busca de verificar tal questão.
2.1 Pinóquio
Pinóquio é uma animação estadunidense de longa-metragem produzida em
1940, por Walt Disney, para o cinema. Trata-se da história de um entalhador
solitário que conta com a companhia de seu gato Fígaro e de sua peixinha Cléo e
que fez um lindo boneco de madeira a quem deu o nome de Pinóquio. Certa noite
antes de dormir faz um pedido para uma estrela de que seu boneco se tornasse
um menino de verdade. Seu desejo é parcialmente atendido pela Fada Azul, que
dá vida ao boneco, mas que coloca nas mãos deste a responsabilidade de
concretizar de fato o desejo de Gepeto. Para isso contará com a ajuda de um
pequeno Grilo falante que é nomeado como sua consciência. Já em seu primeiro
dia fora de casa, em função de sua ingenuidade é desviado do caminho do bem e
passa a se envolver em inúmeras confusões, como ser preso por um diretor de
teatro de marionetes e ser levado para uma terra na qual tudo é permitido, mas que
ao final os meninos são transformados em burros. Com a ajuda do Grilo consegue
escapar das confusões e voltar para casa, momento no qual descobre que seu pai
foi devorado por uma baleia, mas ainda assim está vivo. Pinóquio então arrisca sua
48
vida e salva Gepeto, provando assim sua virtude e sendo transformado em um
menino de verdade.
Para analise dos personagens tomaremos como base as esferas de ações
dos personagens propostas por Propp (1984):
1. Antagonista - gera dano ou luta com o herói;
2. Doador - prepara ou transmite o objeto mágico;
3. Auxiliar - dá o suporte ao personagem para seu deslocamento, repara um
dano ou uma carência, salva ou ajuda o herói em momentos de dificuldade;
4. Princesa - compreende a transposição de tarefas difíceis, a imposição de
um estigma, o desmascaramento, o reconhecimento, o castigo do malfeitor e o
casamento;
5. Mandante - envio do herói;
6. Herói - compreende a partida para realizar a procura, a reação perante as
exigências do doador, casamento;
7. Falso herói - compreende a partida para realizar a procura, a reação
perante as exigências do doador, sempre negativa e com pretensões enganosas.
Somando Greimas apud Aumont (1995)8,que apresenta um modelo actancial
em seis termos onde encontra-se:
1. Sujeito - herói;
2. Objeto - que pode ser a pessoa em busca de quem o herói parte - não
existe correspondente exato na versão de Propp, mas pode ser visto como uma
atualização da função da princesa e seu pai;
3. Destinador - o que estabelece a missão, a tarefa ou a ação a ser realizada
- mandante na versão de Propp;
4. Destinatário - o que recolherá os frutos da tarefa realizada;
5. Oponente - que atrapalha a ação do herói - malfeitor na versão de Propp;
6. Adjuvante - que ajuda o herói - auxiliar na versão de Propp.
Segundo Aumont (1995) Greimas define como actante aquele que só
cumpre uma função ao longo da história e ator aquele que cumpre muitas. Propp já
havia identificado isso também, mas Greimas organiza essa idéia. Segundo ele os
8 Optamos pela utilização dos dois teóricos por entender que, apesar da afirmação de que as funções dos
Contos Maravilhosos atendem bem à estrutura de um filme de ficção na análise inicial, percebemos que não
atende a todas as variações, assim sendo necessário uma união das teorias para completar uma compreensão no
caso de análise das animações,
49
actantes são um número finito e permanecem invariáveis, já os personagens não
possuem essa limitação.
O que é normalmente chamado de riqueza psicológica de um personagem muitas vezes só provém da modificação do feixe de funções que ele cumpre. Essa modificação não se opera com relação à realidade, mas com relação a um modelo preexistente do personagem, onde certas ligações actanciais, geralmente admitidas, são abandonadas em proveito de combinações inéditas (AUMONT, 1995, p.132).
Assim em Pinóquio encontramos:
- Pinóquio (no caso de Disney o herói/sujeito, porém na versão de Collodi pode-se
pensar nele como um tipo de antagonista e a partir da definição de Greimas seria
também o Objeto e o Destinatário, pois seu principal objetivo é encontrar o menino
em seu interior, o que implica a esse personagem um alto grau de complexidade)-
marionete de pau, que busca ser um menino de verdade e passa por diversas
aventuras ao ser enganado por João Honesto;
- Gepeto (auxiliar/ adjuvante podendo ser pensado também como destinatário uma
vez que seu desejo é que Pinóquio se torne um menino de verdade e o sucesso da
ação traz frutos diretos a esse personagem) - simpático senhor solitário que
entalha objetos em madeira;
- Grilo falante (auxiliar/ adjuvante)- grilo antropomorfizado que se torna a
consciência de Pinóquio;
- Fígaro (sem esfera de ação) - gato ciumento e birrento companheiro de Gepeto;
- Cléo (sem esfera de ação) - peixinha doce e simpática companheira de Gepeto;
- Fada Azul (doador e mandante/destinador)- Fada que realiza o desejo de Gepeto
e ajuda Pinóquio em diversas situações;
- João Honesto (antagonista) - raposa antropomorfizada que tira Pinóquio do
caminho do bem, em prol de adquirir recompensas financeiras;
- Gideão (antagonista/ oponente) - gato antropomorfizado, parceiro trapalhão de
João honesto, que não fala nada durante todo o filme;
- Stromboli (antagonista/ oponente) - dono do teatro de marionete que se aproveita
de Pinóquio para fazer dinheiro e acaba por lhe prender evitando assim perder sua
nova fonte de renda;
50
- Cocheiro (antagonista/ oponente) - homem gorducho que negocia com João
Honesto a compra de inúmeros meninos a serem levados à ilha dos prazeres, para
então transformá-los em burros para vendê-los;
- Espoleto (falso herói) - menino malcriado que foi para ilha dos prazeres e se torna
o amigo de Pinóquio, acaba transformado em burro;
- Baleia Monstra (antagonista/ oponente)- enorme baleia que devora Gepeto.
É possível notar uma complexidade maior para os personagens que
acumulam funções fazendo parte de mais de uma esfera de ação.
O filme é baseado em As aventuras de Pinóquio, do italiano Carlo Collodi,
de 1881, descrita por Coelho (2000) como uma novela da literatura infantil clássica,
devido a sua característica longa e em capítulos. Pouco dessa característica restou
na versão animada, onde não houve exploração de tantas aventuras, apenas de
três centrais: o teatro de marionetes, a ilha dos prazeres e a baleia Monstra. Alguns
episódios da história original encontram-se diluídos ao longo desses três principais,
como Pinóquio pegando fogo e o nariz que cresce ao mentir. Porém, outro aspecto
destacado por Coelho (2000) é que Pinóquio faz parte de uma narrativa
transformada para a era do Romantismo 9 , expressando um estilo
racionalista/romântico e no caso de Pinóquio temos uma narrativa híbrida
resultando da fusão da linguagem realista com a simbólica 10 (mantendo uma
estrutura dos contos maravilhosos como poderá ser verificado mais adiante), o que
será também refletido na animação, sendo quesito de animais antropomorfizados
que representam completamente seres humanos conviverem em uma realidade
humana, inclusive com interação direta entre as espécies um indício desta
tendência.
9 Romantismo foi um movimento artístico que sucedeu o Classicismo, teve início no final do século XVIII e
se estendeu por grande parte do século XIX. Sua característica principal era o racionalismo. Segundo Coelho
(2000) o indivíduo passa a ser valorizado pelo que ele é, sabe ou faz, e não mais pela classe social a que
pertence. A novidade maior seria a preocupação de realismo, sua intenção de expressar a vida realmente vivida
pelos homens A autora ressalta também que até essa época não existia literatura escrita especificamente para a
infância e a juventude, algo parecido ocorreu com a representação de crianças nas artes plásticas até o século
XII pois segundo Ariés (1981) estas eram vistas como pequenos adultos em um período de transição que logo
seria ultrapassado, mas foi a partir daí que começaram a perceber melhor as especificidades dessa fase humana.
Talvez algo similar tenha acontecido a literatura quando durante os séculos XVIII e XIX identificou-se a
necessidade de adaptar a literatura adulta especificamente para as crianças. As Aventura de Pinóquio seria um
exemplo de obra desenvolvida já em seu original especificamente para crianças. 10
Coelho (2000) afirma que na ficção contemporânea surge uma forma híbrida. Seria essa uma linguagem
usada pela ficção do Realismo Absurdo ou do Realismo Mágico, no qual o cotidiano mais comum passa a
conviver com um elemento maravilhoso que na história é vista como natural.
51
Assim como em Branca de Neve a versão de Disney é mais amena que a
original, onde Pinóquio é descrito como “uma personagem visualmente concebida
para despertar ternura. É sua ingenuidade que o desvia do caminho justo, que lhe
é indicado pelo Grilo Falante.” Bruzzo (1996, p. 240). Porém ainda assim guarda
características primordiais de burlar as regras impostas e buscar o caminho mais
fácil, que definem a narração, deixando claro o tom educacional da história.
A animação poderia ser facilmente dividida em 5 momentos centrais:
introdução, as 3 aventuras citadas anteriormente e a conclusão.
A introdução se estende por 30 minutos, e é composta pela apresentação
dos personagens: Grilo Falante, Fígaro, Cléo, Gepeto e Pinóquio. Equivaleria ao
que Propp (1984) descreve como situação inicial11. No caso da animação esta
introdução representa 1/3 do filme, explorando não apenas as características dos
personagens, mas também a riqueza da animação, a casa de Gepeto possui
inúmeros detalhes, cada cantinho possui um belo objeto bem desenhado para
ornar a cena, muitos elementos entalhados em madeira que tornam o cenário
fascinante, além das cenas musicais que animam e tornam mais divertida a história.
O ambiente apesar de não ser muito claro, pois representa a iluminação fraca da
luz de uma vela, possui uma imensidão de cores nos objetos de Gepeto.
Figura 10 - detalhes da casa de Gepeto
11
Onde os membros da família e o herói são apresentados.
52
Figura 11 - Evidência dos relógios que indicam a atividade laboral de Gepeto
Neste momento fica clara a conjunção entre real e simbólico/ fantástico
apontado anteriormente, pois na cena é a realidade que prevalece, a situação
econômica evidenciada pela casa pequena ocupada pelos seus objetos de
sobrevivência, a profissão de Gepeto com sua produção exposta pela casa, sua
solidão com a casa vazia, mas ao mesmo tempo temos o Grilo falante em todo
momento e a chegada da Fada que dá vida a Pinóquio e faz com que possamos
pensar na história como um conto de fada:
Com ou sem a presença de fadas (mas sempre com o
maravilhoso), seus argumentos desenvolvem-se dentro da magia
feérica (reis, rainhas, príncipes, princesas, fadas, gênios, bruxas,
gigantes, anões, objetos mágicos, metamorfoses, tempo e espaço
fora da realidade conhecida etc.) e têm como eixo gerador uma
problemática existencial. Ou melhor têm como núcleo problemático
a realização essencial do herói ou da heroína, realizações que, via
de regra, está visceralmente ligada à união homem-mulher
(COELHO, 1987:13).
No caso de Pinóquio isto é evidenciado não apenas pela presença da fada,
mas também pela questão existencial e a trajetória para superar uma condição
inicial atingindo uma nova forma de existência.
53
O momento que chamamos de introdução apresenta cenas mais longas,
propiciando explorar características da personalidade dos personagens e do
ambiente em que se encontram. Os diálogos são poucos, sendo as canções bem
presentes nessa seqüência.
Uma vez identificado como Conto de Fadas para analisar o conteúdo do
filme é possível utilizar a estrutura de funções propostas por Propp (1984, p. 19 -
37) que segundo ele seriam a base morfológica dos contos de magia em geral, de
forma simplificada estas seriam:
I - Um dos membros da família sai de casa (definição: afastamento)
II - Impõem-se ao herói uma proibição (definição: proibição)
III - A proibição é transgredida (definição: transgressão)
IV - O antagonista procura obter uma informação (definição: interrogatório)
V - O antagonista recebe informação sobre sua vítima (definição: informação)
VI - O antagonista tenta ludibriar sua vítima e apoderar-se dela ou de seus bens
(definição: ardil)
VII - A vítima se deixa enganar, ajudando assim, involuntariamente seu inimigo
(definição: cumplicidade)
VIII - O antagonista causa dano ou prejuízo a um dos membros da família
(definição: dano)
VIII-A - Falta alguma coisa a um membro da família, ele deseja obter algo
(definição: carência)
IX - É divulgada a notícia do dano ou carência, faz-se um pedido ao herói ou lhe é
dada uma ordem, mandam-no embora ou deixam-no ir (definição: mediação,
momento de conexão)
X - O herói-buscador aceita ou decide, reagir (definição: início da reação)
XI - O herói deixa a casa (definição: partida)
XII - O herói é submetido a uma prova; a um questionário; a um ataque, etc., que o
preparam para receber um meio ou um auxiliar mágico (definição: primeira função
do doador)
XIII - O herói reage diante das ações do futuro doador (definição: reação do herói)
XIV - O meio mágico passa às mãos do herói (definição: fornecimento - recepção
do meio mágico)
XV - O herói é transportado, levado ou conduzido ao lugar onde se encontra o
objeto que procura
54
XVI - O herói e seu antagonista se defrontam em combate direto (definição:
combate)
XVII - O herói é marcado (definição: marca, estigma)
XVIII - O antagonista é vencido (definição: vitória)
XIX - O dano inicial ou carência são reparados (definição: reparação do dano ou
carência)
XX - Regresso do herói (definição: regresso)
XXI - O herói sofre perseguição (definição: perseguição)
XXII - O herói é salvo da perseguição (definição: salvamento, resgate)
XXIII - O herói chega incógnito à sua casa ou a outro país (definição: chegada
incógnito)
XXIV - Um falso herói apresenta pretensões infundadas (definição: pretensões
infundadas)
XXV - É proposta ao herói uma tarefa difícil (definição: tarefa difícil)
XVI - A tarefa é realizada (definição: realização)
XVII - O herói é reconhecido (definição: reconhecimento)
XVIII - O falso herói ou antagonista ou malfeitor é desmascarado (definição:
desmascaramento)
XXIX - O herói recebe nova aparência (definição: transfiguração)
XXX - O inimigo é castigado (definição: castigo, punição)
XXXI - O herói se casa e sobe ao trono (definição: casamento)
Então passamos para a primeira aventura de Pinóquio propriamente dita que
dura 20 minutos:
I - Pinóquio deve ir para escola, vale novamente observar o teor realista da
situação, o afastamento ocorre tal como na sociedade;
II - no caso de Pinóquio a proibição não é verbalizada, mas a ordem seria:
“Não deixar de ir à escola”;
Na verdade no caso de Pinóquio há uma inversão da ordem, pois a
transgressão da proibição só ocorre após ser ludibriado pelo antagonista,
lembremos que Disney desejou criar um personagem ingênuo e não malandro
como na história original, assim temos:
VI - João Honesto ludibria o herói falando e encantando Pinóquio com
histórias sobre a glória e fama no teatro;
55
VII - Pinóquio se deixa enganar no momento em que concorda em ir para o
teatro ao invés da escola;
Então com isso:
III - Pinóquio vai ao teatro transgredindo a proibição.
A função IV (o antagonista busca obter informação de sua vítima) e V (o
antagonista recebe informação) ocorrem de maneira indireta com João Honesto
observando Pinóquio e vendo que se trata de um boneco de pau com vida e
conclui que pode tirar proveito da situação assim apesar de não buscar informação
através de questionamentos o faz através de observação que faz com que passe a
um estágio em que já possui a informação.
VIII - João Honesto não causa dano a um dos membros da família
diretamente, nesse caso é Pinóquio que se coloca na situação de prejuízo por
vontade própria e acaba preso, assim sendo não apenas João Honesto e Stromboli
são antagonistas, mas o próprio Pinóquio que infringe dor ao seu pai devido ao seu
sumiço, gerado por sua própria desobediência, o que retoma as características de
Antagonista do personagem de Collodi.
IX - A carência é o próprio Pinóquio que faltou com seu compromisso de ser
bom para poder tornar-se um menino de verdade, assim lhe é dada uma nova
chance, novamente o mundo maravilhoso volta à cena com o nariz de Pinóquio
crescendo magicamente quando mente e com a fada o libertando. Representando
também alguns elementos das funções de X a XVIII relacionadas ao objeto mágico
e ao doador mágico. Até que por fim:
XIX - Pinóquio é solto e pode voltar para seu pai e assim reparar o dano
causado.
Grande parte dessa aventura se passa em um ambiente externo, aonde
passeiam pela cidade, a quantidade de detalhes se comparada com a sequência
anterior é menor, mas ainda assim é possível notar o capricho e cuidado com o
cenário, das vielas italianas.
56
Figura 12 - Detalhes do cenário
A luz é mais intensa, se comparada com a seqüência anterior (iluminação
por vela), devido ao ambiente externo. Ainda em comparação com a introdução é
possível notar que a quantidade de interações entre os personagens através do
diálogo também é maior.
Figura 13 - Diferença do tipo de iluminação entre ambiente externo e interno.
Uma cena muito sombria seria a que Gepeto sai durante a noite chuvosa.
Segundo análise apresentada nos extras do DVD de Pinóquio, esse seria um
exemplo de como a essência sombria de conto de fadas foi mantida por Disney,
bem como a cena em que Pinóquio é preso em uma pequena gaiola na carroça de
Stromboli, escuridão e raios tomam conta da cena.
57
Figura 14 - Cenas sombrias da animação
É possível notar em alguns momentos a amplitude do espaço em função do
posicionamento da câmera, quando, por exemplo, um plano geral a partir de um
ângulo superior é apresentado, ampliando o espaço fílmico e revelando a cidade
que se tem ao redor, como se a história acontecesse independente da câmera e
esta existisse apenas para registrar o ocorrido e não o contrário. A animação se
estabelece assim de uma forma mais real, como se de fato a imagem que passa na
tela tivesse sido filmada a partir de uma situação cotidiana, o que no caso da
animação é evidente ser impossível, pois, apesar da câmera ser utilizada, tudo que
é visto na tela depende da mão do artista que inclusive dá essa impressão de
diferença de posicionamento de câmera.
Figura 15 -Câmera em posicionamento superior
58
Já no momento em que estão no teatro de marionetes o cenário é mais
simples e a iluminação própria de teatro, ou seja, há um foco de luz nos elementos
de interesse, apresenta-se uma quantidade de planos conjuntos focados apenas
nos personagens e não mais em um ambiente geral, pois o interesse aqui é
apenas a ação, além de acentuar a dramaticidade presente.
Figura 16 - No teatro cenário mais simples e ponto de luz focal
Dando sequência às funções do Conto Maravilhoso, nota-se que não
ocorrem as funções XX, XXI e XXII, porém há a repetição das funções III e VIII a
XVIII, quando se dá início à nova aventura de Pinóquio que o levará à Ilha dos
Prazeres. Nesta podemos notar que algumas alterações no ambiente são
implicadas na imagem que é apresentada, a cena de negociação entre João
Honesto e o cocheiro ocorre em sua maior parte em primeiro plano, com
iluminação fraca (com destaque apenas para os personagens) e com leve névoa
(causada pelo fumo dos três personagens) encobrindo o local, o que
provavelmente traz maior tensão à cena.
Figura 17 - Cena em primeiro plano onde o cenário está na escuridão
59
No momento em que Pinóquio reencontra João Honesto é noite e os
detalhes da cidade não são tão explorados quanto anteriormente, talvez uma
economia de desenhos, afinal o espectador já pode construir o ambiente em sua
cabeça. Porém isso muda quando chega-se a Ilha dos Prazeres, a trilha sonora e
os detalhes nas imagens contribuem para criar a atmosfera maravilhosa
empregada pelo ambiente. Por fim na cena dramática em que Espoleto se
transforma em Burro e Pinóquio precisa fugir novamente a luz mais fraca esta em
cena com ambiente mais sombrio.
Figura 18 - Cenas contrastantes entre o mundo maravilhoso e o sombrio
Não há também as funções de XXIII e XXIV, assim passa-se direto para a
seguinte.
XXV - Proposta ao Herói uma tarefa difícil - que na verdade não é imposta,
mas demonstrada uma situação problema a qual Pinóquio decide agir, que seria o
resgate de seu pai de dentro do estomago da baleia Monstra.
XXVI - A tarefa é realizada - Pinóquio consegue salvar sua família.
Uma vez que Pinóquio é um misto de herói e antagonista, podemos pensar
que XXVII onde o herói é reconhecido, e XXVIII onde o falso herói é desmascarado,
seriam representados pela superação do estigma do personagem, sendo
finalmente de fato apresentado como herói de bom coração e corajoso. Até que por
fim temos XXIX o herói recebe nova aparência, onde o objetivo final é atingido e o
boneco se torna menino de verdade.
Nesta última seqüência há grande destaque para as cenas submarinas
enquanto Pinóquio e Grilo procuram a baleia, um novo ambiente é apresentado
60
estão submersos, andam mais devagar em função da resistência da água, o
ambiente é mais claro, mas pouco colorido, exceto pelos peixes que cruzam o
caminho dos personagens. Afinal novamente a cena deve estar impregnada de
perigo e a ausência de cor pode contribuir sutilmente para isso.
Figura 19 - Ambiente submarino sem grande destaque de cores
Com esta análise é possível perceber que apesar de não ter sido concebido
como um conto maravilhoso o romance de Collodi se enquadra muito bem em sua
estrutura, com pequenas variações (comum em todos os contos) e que na versão
de Disney, mesmo apresentando elementos condensados a estrutura geral pode
ser bem enquadrada com a proposta de Propp.
A partir dos elementos simbólicos de Pinóquio é possível pensar em seu
conteúdo ligado inclusive aos Contos de Fada, segundo definição de Coelho (1987),
onde diz que tais contos possuem a presença de fadas e dizem respeito a uma
problemática existencial, onde o herói busca uma auto-realização, tal como ocorre
em Pinóquio. Ou seja, apesar de vir em uma época na qual esses contos estavam
sucumbindo ao romance, e até poder ser visto como tal no caso de Pinóquio, o teor
híbrido se mantém fortemente.
Uma das formas de evidenciar o teor híbrido apontado por Coelho (2000)
seria a utilização de seres inanimados que adquirem vida e falam ou agem como
humanos ou pela presença de animais representando ideias, estes vivenciariam
situações exemplares, como ocorre nas fábulas. No caso de Pinóquio encontram-
se as duas situações, porém para os objetivos da pesquisa seria a utilização de
animais que mais chama a nossa atenção.
61
Para um aprofundamento nas questões relativas ao antropomorfismo dos
animais, foram escolhidas três personagens para análise: O Grilo Falante devido à
sua representatividade na animação e repercussão anos ainda após sua aparição
em Pinóquio (sendo utilizado em outras animações do estúdio), João Honesto, por
se tratar do vilão do filme que tem seu correspondente também animal na literatura
de Collodi e por fim o gatinho Fígaro, criado especialmente para a animação da
Disney, além de possuir uma representação diferente de antropomorfismo, sendo
tal conjunção de representações difícil de ser encontrada nas demais animações.
2.1.1 Um Grilo que fala
Grilo Falante, personagem que na literatura não possuía grande destaque
mas, na animação foi concebido de forma a ser um personagem importante,
conforme declara Ollie Johnston nos créditos do DVD do 70º aniversário de
Pinóquio: “ele acabou sendo o coração da história ao invés de ser esmagado com
um martelo, como foi na versão original de Collodi”. Nos 36 capítulos do livro de
Collodi o personagem do Grilo está presente apenas nos capítulos 4, 13, 16 e 36,
sem grande impacto para a narrativa, a não ser nas reflexões do próprio Pinóquio
em relação as suas ações. Não existe sequer uma descrição física desse
personagem, sendo então sua antropomorfia na literatura designada pela fala e
seu raciocínio sobre questões humanas.
Por se tratar da segunda animação de longa-metragem dos estúdios Disney,
precedidos do imenso sucesso A Branca de Neve e os Sete Anões, havia grande
preocupação com a superação deste:
Quando a produção começou, Walt sentiu que no novo filme faltavam a simpatia e o apelo - faltava o coração - de seu primeiro longa-metragem de animação. Mais precisamente: ele sentiu que no segundo filme faltava um personagem central envolvente... (SURRELL 2009, p.180)
A partir disso algumas alterações foram feitas no personagem principal, de
forma a atrair a simpatia do público, segundo depoimento do historiador J.B.
Kaufman nos créditos do DVD de Pinóquio, foi nesse mesmo momento que
62
decidiram usar o Grilo de uma maneira ampliada em relação à versão original,
justamente para contribuir para a história funcionar e atrair a simpatia do público.
Ele foi transformado em um amigo de Pinóquio presente em quase todas as cenas
do filme.
Para analisar as características estéticas desse personagem foi selecionada
a seqüência inicial do filme, onde o Grilo aparece sozinho em grande destaque,
onde a construção desse personagem é feita.
O filme se inicia com os letreiros de abertura com uma canção em voz forte
até o momento em que é apresentada a imagem de um livro com o título Pinóquio,
e o espectador pode perceber que aquela bela voz pertence a um pequeno ser de
roupa social e cartola (Figura 20), não é possível apenas a partir da imagem definir
de que espécie é o personagem que se revela na tela, seu formato não remete
facilmente a nenhum ser conhecido. Pela voz e vestimenta percebe-se que é do
gênero masculino. Ele está vestido como um ser humano, com um casaco, camisa,
calça, sapato, luvas,cartola e um guarda-chuva nas mãos, caminha de maneira
ereta, possui dois olhos, nariz, boca, sobrancelhas, uma cabeça ovalada muito
grande se comparada com o restante do corpo, braços, pernas, mãos e pés,
próximo ao formato que estamos acostumados a encontrar nas figuras humanas,
mas ainda assim não é possível ter certeza se este personagem é humano, animal
ou alguma outra espécie ainda desconhecida para o espectador, uma vez que na
animação tudo é possível e possuímos representações diversas para os elementos
da realidade, como por exemplo Betty Boop 12 , com sua cabeça enorme e
retangular e Mônica13 com ausência de dedos nos pés e nariz quase inexistente,
mas que ainda assim não deixam de ser reconhecidas pelos espectadores como
seres humanos, pois em seu conjunto as semelhanças são maiores que as
diferenças, principalmente no que diz respeito a sua forma de agir. Mas é essa
possibilidade infinita de representação que faz com que mais elementos sejam
necessários até a identificação do que está sendo representado. O personagem
em questão possui uma pele bege14, em um tom muito próximo às cores usadas
para representar personagens humanos (que normalmente são mais rosadas),
12
Criada por Max Fleischer na década de 30. 13
Criada por Maurício de Souza em 1963 como história em quadrinhos ganhando sua primeira animação em
1982. 14
Normalmente em imagens na internet o Grilo aparece com a pele verde, bem como na impressão do DVD do
70º aniversário, porém tanto no filme original quanto na versão de aniversário sua pele é tal qual a descrita
neste trabalho.
63
porém é muito pequeno para um ser humano e apresenta apenas quatro dedos,
mas nada disso é determinante para que o espectador possa chegar a alguma
conclusão. Porém após 40 segundos do momento em que esse personagem
aparece na tela é esclarecido ao espectador o que de fato ele é. Apenas por sua
aparência as conclusões não foram possíveis de serem tomadas, então o
personagem mesmo se define dizendo: “Sou apenas um Grilo cantando...”
Figura 20- Grilo Falante X Grilo real
Grilo é um inseto que possui longas antenas, os machos emitem sons
friccionando uma asa na outra, pesa aproximadamente quinze gramas, a cor mais
comumente encontrada nas espécies de grilo é o verde, seu habitat são campos,
terras cultivadas e relvas. De fato percebemos poucas semelhanças físicas com o
personagem apresentado, principalmente ao comparar as imagens.
A partir dos elementos apresentados até aqui não é difícil perceber que esse
personagem precisa ser construído para o espectador, pois a categorização dele a
partir de elementos já presentes em seu repertório não é possível de ser feita, pois
ele não é humano tanto por suas características quanto por sua própria auto-
descrição como grilo, mas também não é grilo por suas características físicas, o
ambiente em que se encontra e principalmente por falar como um ser humano.
O Grilo, sorridente e de formas arredondadas, olha diretamente para a
câmera e fala como se conversasse diretamente com os espectadores, criando
uma proximidade entre personagem e quem assiste ao filme, pois segundo
Bernadet (2000) a ilusão de verdade, chamada impressão de realidade, seja talvez
a base do grande sucesso do cinema, e para isso ocorrer é preciso que haja
identificação entre espectador e personagem, para que seja possível compartilhar
64
sentimentos e sentir um maior envolvimento emocional com o filme. Assim o
diálogo direto contribui para o desenvolvimento dessa identificação, colocando
personagem e espectador em um mesmo ambiente, compartilhando de um diálogo,
logo devem compartilhar também de uma mesma realidade.
Em seguida o Grilo abre o livro com certa dificuldade afinal ele é muito
pequeno perto do tamanho do livro. Ao tentar iniciar a narração da história uma
página começa a tentar se fechar, ele então para e se contorce para segurar a
página, então busca prendê-la de forma que não mais o atrapalhe. Esse trecho
certamente traz um toque de comicidade à cena, porém reitera uma questão que já
foi possível de ser percebida: o inseto pensa, encontra soluções para seus
problemas, assim na mesma proporção que o espectador é lembrado que vê um
pequeno inseto (afinal é muito pequeno para segurar a página do livro) também é
lembrado que não é qualquer inseto, mas sim o Grilo Falante, com suas
características próprias, semelhantes aos seres humanos.
Ao apontar para a figura do livro a câmera se aproxima desta até mergulhar
completamente na imagem, assim pode-se perceber que não mais estamos no
ambiente inicial, mas sim entramos na história que está sendo contada em primeira
pessoa. E, o mais interessante, é que entramos a partir da visão subjetiva do Grilo,
isto é percebido pois, a câmera em plano geral está fazendo uma panorâmica pelo
local e vemos exatamente o que ele vai descrevendo como tendo visto, até que por
fim ele descreve ter visto uma casa iluminada, a qual está sendo mostrada em
cena em plano geral, neste momento, diz que foi pulando até a casa e neste
instante a câmera faz movimentos como se estivesse subindo e descendo ao
mesmo tempo em que se aproxima da janela. Ou seja, reproduz o movimento do
Grilo, levando o espectador a vivenciar tal experiência.
Neste momento não é mais o grilo assumindo a posição de ser humano,
mas o contrário, reforçando a fusão entre as espécies, porém a preocupação com
a identificação continua por isso. Mesmo quando o personagem assume a posição
de inseto o espectador é levado a assumir junto. Porém, vale lembrar que estamos
em 1940 e esta é a segunda animação de longa-metragem da Walt Disney, onde
as técnicas ainda possuem grande destaque, ou seja, a movimentação da câmera
para se aproximar da janela da casa chama a atenção por não ser usual.
Em seguida o Grilo volta a ser mostrado com uma câmera objetiva. Ele não
está mais vestido com os trajes elegantes apresentados anteriormente, mas com
65
roupas rasgadas, velhas e remendadas. No momento em que a câmera o focaliza
é possível notar que sua cor está ligeiramente diferente, ao invés de um bege
homogêneo, seu nariz está levemente rosado (Figura 21), fenômeno normal de
acontecer a seres humanos quando estão em locais gelados, exatamente a
situação na qual o Grilo se encontra. Dessa forma é possível perceber que esse
pequeno inseto está sujeito a efeitos físicos próprios dos humanos.
Figura 21 - Grilo com nariz avermelhado em função do frio
Em continuidade à cena, o Grilo decide se proteger do frio entrando na casa
de Gepeto, passa por baixo da fresta da porta, lembrando ao espectador das
características ainda de inseto dessa pequena criatura. Neste momento a câmera
focaliza o Grilo em primeiro plano destacando suas expressões faciais, olhos
arregalados boca levemente entreaberta como uma pessoa que está atentamente
verificando o local, em seguida vagarosamente quase nas pontas dos pés,
demonstrando grande cautela, vai se esgueirando ainda mais para o interior da
casa. Essa cena evidencia o que afirmou Bruzzo em relação à função desse
personagem:
[...]outra grande mudança operada pelos animadores responsáveis pelo filme: tornar o Grilo Falante o narrador da história. Assim a atenção do espectador é atraída quase o filme todo para os movimentos e a graça do bichinho...Essa escolha deveu-se à necessidade de um personagem marcante que permitisse a criação das gags visuais fundamentais para o sucesso do filme junto ao público adulto. Um boneco de madeira não permitia muitas variações de desenho e expressão. Vale lembrar que os Estúdios Disney tinham conseguido enorme sucesso com Branca de Neve e os sete Anões, principalmente pelos momentos
66
de humor criados por causa dos anões (BRUZZO, 1996, p. 242 - 243).
As expressões e movimentos cuidadosos do Grilo nessa cena de fato
mostram um personagem desenvolvido cuidadosamente e capaz de muitas coisas.
A cena continua, após perceber que não havia ninguém por perto, passeia
pelo local, enquanto uma música animada toca ao fundo. O Grilo caminha ao ritmo
da música rodando o guarda-chuva, demonstrado um ambiente tranquilo e
agradável. O Grilo sempre sorridente se aproxima da lareira para se aquecer, neste
momento traz novamente sua característica mais cômica, enquanto passa mão em
suas nádegas voltadas para a lareira (Figura 22) diz: “parado ali e aquecendo um
pouco a minha...(pausa), a minha pessoa” onde pela pausa, posição e mesmo pela
sua expressão pode-se imaginar que a palavra na verdade que será dita será
“poupança”, mas como que por respeito aos espectadores tal palavra é substituída
por “pessoa”, o que traz uma comicidade à cena além de conectar constantemente
o espectador ao Grilo de uma forma como se houvesse um diálogo direto.
Figura 22 - Grilo se aquecendo na lareira
O Grilo então passa a observar a casa, enquanto seu olhar e a câmera
demonstram para os espectadores o que está na casa, sua fala descreve cada
elemento que está sendo mostrado. Até que por fim Pinóquio chama sua atenção.
Ele explica aos espectadores que se trata de uma marionete, enquanto se
aproxima do boneco, no momento que está frente com Pinóquio não mais fala na
primeira pessoa, não mais está no papel de narrador, mas assume ação e fala
dentro da cena, tornando-se agora personagem daquela história.
A aparição do Grilo se mantém ao longo de toda animação, estando
presente em praticamente em todas as cenas, sem dúvida contribuindo à narrativa,
67
mas, pelo que pudemos perceber suas formas estéticas, contribuem para uma
afeição do público não só em relação a ele, mas aos personagens em geral.
Em relação à função narrativa do Grilo é possível enquadrá-lo como Auxiliar
que conduz o herói, Pinóquio, reparando danos, aconselhando, e salvando
(considerando que Pinóquio é seu próprio antagonista, o que melhor do que sua
consciência para ser seu suporte). Porém é possível pensarmos em algo além, a
partir de uma nova função para as personagens de animação:
Além destes, observa-se, hoje, que uma outra configuração de personagem vem ganhando inserção, principalmente junto às animações e outras produções filmográficas, o comic relief15. Esse personagem através de suas atribuições hilariantes e divertidas, oferece alívio cômico às cenas. Assim, o denso conteúdo afetivo-emocional das histórias, o impacto dramático e as cenas de suspense são suavizados por esse personagem picaresco. Apresentando-se sob distintas nuances, personagem e narrativa retroalimentam-se, povoando de vida e dinamismo as histórias (FOSSATTI, 2011, p. 75-76).
Em muitos momentos sua aparição se dá apenas para trazer um toque
cômico a cena, são momentos sutis, mas que certamente fazem o espectador rir,
como o momento no qual encosta-se a uma boneca e, quando se dá conta, está
com a mão nas nádegas dela, então pede desculpas; ou quando interage com os
objetos inanimados na casa de Gepeto; quando faz comentários irônicos sobre a
opção de Pinóquio de ser ator. Assim é possível afirmar que apresenta também
essa nova função na narrativa.
Apesar de presente em quase todas as cenas o Grilo não interage com
muitos personagens aos 15 minutos do filme interage com a Fada Azul em seguida
apenas com Pinóquio, até que com 1 hora de filme interage também com Espoleto,
menino amigo de Pinóquio. Mas interessante ressaltar que na história original a
interação do Grilo é apenas com Pinóquio e com a Fada, ou seja, está ainda mais
ligado ao mundo da magia e da não realidade humana do que na animação.
Ficando muito mais no mundo não humano (fada e boneco de pau não fazem parte
de uma realidade) do que humano, assim principalmente na animação foi possível
perceber que suas características humanas de alguma forma humanizam o boneco
de madeira, pois é seu conhecimento de mundo e de certo e errado que devem
conduzir Pinóquio ao caminho do bem, além de sua constante preocupação com a
15
Comic Relief tradução livre: alívio cômico. Neste trabalho usaremos o termo em inglês conforme
apresentado por Fossatti 2011.
68
segurança e os sentimentos do boneco que despertam um sentimento semelhante
no espectador. Podemos pensar nesse pequeno personagem como o principal
responsável por doar características humanas a Pinóquio, é sua existência que
destaca as características que precisam ser adquiridas por Pinóquio e isso só se
dá por apresentar um alto grau de antropomorfismo o que é essencial para esse
efeito. O trecho a seguir refere-se aos animais das animações dos grandes
estúdios: MGM, Warner Brother, Universal e Paramount, apesar de se tratar de
outro tipo de animação pode contribuir a uma reflexão:
[...] Ele pensa fala, veste-se e comporta-se como ser humano, mas permanece um bichinho em seus instintos; apesar de sua origem e de sua aparência, sempre sonha com mulheres; ao mesmo tempo que usa garfo, faca, panela e fogão, permanece um canibal ou um franguinho assado na imaginação do animal inimigo. Estas contradições do personagem de Cartum permitem sua identificação com a criança, também um adulto em espírito e uma vítima em potência. A criança pensa, fala, veste-se e comporta-se como um adulto, mas ainda não superou sua animalidade [...] (NAZÁRIO in BRUZZO, 1996, pg 45).
No caso do Grilo acontece algo semelhante quando pensamos em sua
ingenuidade, muito próxima da infantil, mas tão responsável e preocupado que é
ao mesmo tempo adulto e criança, bem como é humano e animal. O que
certamente contribui para identificação de crianças com este personagem, além de
que a proximidade do Grilo com Pinóquio pode levar facilmente ao espectador
estabelecer uma generalização16 entre as características dos dois personagens,
tomando-as como pertencentes a um mesmo grupo, onde tanto animal quanto
criança possuem comportamentos semelhantes, seja pela humanização do Grilo
seja pela animalidade presente na criança de Pinóquio.
Assim suas características estéticas tão distorcidas do que é um grilo na
natureza e tão próximo a um pequeno homem acabam por ter importante função
narrativa. Ao mesmo tempo fosse esse um pequeno homem apenas, as inserções
cômicas não teriam muito efeito, afinal um grilo se preocupando em apalpar as
nádegas de uma boneca certamente tem um efeito mais interessante do que um
16
Generalização é um conceito da teoria Behaviorista da Psicologia que diz que no desenvolvimento de nossa
aprendizagem quando são discriminados estímulos semelhantes nossa resposta tende a ser a mesma. Pois
temos a tendência de aglutinar informações em grupos dependendo de sua similaridade. No caso apresentado o
estímulo em questão são as características do personagem e a resposta é nossa conceituação em relação a eles.
Para mais informações em relação a esse conceito buscar em Bock e colaboradores (1988)
69
pequeno homem. Além disso, o grilo apresenta um misto de ingenuidade e
maturidade, que talvez seria difícil de ser empregada a um pequeno homem. Ou
seja, no caso de Pinóquio há a necessidade das características humanas e animais
do personagem, prestando-se assim à ampla função narrativa empregada.
As características físicas do pequeno personagem contribuem para à
narrativa e também para simpatia do público, que facilmente o acha “bonitinho”,
“engraçadinho”, atingindo os objetivos mencionados pelos animadores para esse
personagem. Além de reiterar uma característica própria da animação onde tudo é
possível, linguagem estabelecida desde os primórdios da técnica como apontado
na introdução. Além de certamente se prestar a uma forma mais prática de
reprodução, como pudemos notar anteriormente ser uma preocupação quando um
personagem é desenvolvido.
O Grilo seria um personagem classificado no nível de completamente
humanizado, apesar de suas características animais terem sido necessárias a
narrativa, com a análise realizada é impossível negar sua representação humana,
tanto nas questões estéticas quanto psicológicas. Apesar de não ser possível
substituí-lo por um personagem humano, como seria um critério para essa
classificação, é fácil identificar a partir do exposto na análise o quanto este é um
personagem animal que se encaixa bem neste nível de antropomorfização.
2.1.2 A Raposa que trai
Aos 28 minutos do filme os espectadores são apresentados a dois novos
personagens: Sr. João Honesto e Gideão, uma raposa e um gato respectivamente,
ambos vestidos como seres humanos: cartola, calça, camisa, capa, as roupas são
nitidamente velhas, percebidas pelos remendos apresentados. Ambos caminham
sobre duas patas. Para a análise aqui proposta a raposa será utilizada devido a
sua representatividade na narrativa.
Diferentemente do caso do Grilo, o reconhecimento da espécie da
personagem é mais fácil, devido às semelhanças físicas com o animal, seu corpo é
coberto de uma pelagem avermelhada, possui um focinho alongado, duas orelhas
em pé, patas de animal, que estão a mostra pela ausência do sapato e longa
70
cauda peluda. Dessa forma, mesmo apresentando mão com longos dedos
humanos, proporção corpórea (longo tronco, com cabeça menor e braços e pernas
cumpridos) muito próxima à representação de seres humanos, sua origem fica
mais explícita, tanto que não há necessidade de auto-nomeação. É preciso
também levar em conta que o Grilo já serviu como preparação aos espectadores
em relação ao tipo de personagens que podem encontrar, bem como inúmeras
situações que demonstram que o ambiente de Pinóquio é diferenciado, não
seguindo regras do mundo animal e nem tão pouco do mundo humano. Mas trata-
se na verdade de uma construção específica, própria do ambiente da ficção.
Figura 23 - João Honesto e Raposa Vermelha
O caráter do personagem é que fica difícil de ser desvendado neste primeiro
momento, pois faz uma apologia à importância da escola, ao mesmo tempo em
que pega uma bituca de charuto no chão e começa a fumar (ação dificilmente
associada a personagens bons, afinal essa seria uma ação errada), então a dúvida:
está é uma personagem que apóia importantes regras sociais ou é na verdade um
malandro fanfarrão? Fato também que não demora a ser esclarecido, quando ao
falar com seu parceiro conversa sobre uma armação que fez em situação anterior,
apenas para ganhar dinheiro.
João Honesto e seu companheiro possuem uma maneira diferente de andar,
com um leve pulinho entre um longo e arrastado passo e outro, o que indica a
tranquilidade e falta de pressa para qualquer coisa, o que de forma sutil demonstra
mais características a respeito deste personagem.
Ao ver Pinóquio pela primeira vez, não percebe que pode tirar proveito do
fato deste ser um menino de pau, mas no instante seguinte se dá conta, então
71
muito rapidamente muda a direção em que estava indo para seguir Pinóquio, agora
o público já está mais ciente das intenções desta personagem, que busca fazer
qualquer coisa para ganhar dinheiro, ação tipicamente humana, uma vez que o
mundo capitalista é inerente à sociedade humana.
Os movimentos desta raposa são pautados em movimentos humanos e não
de animais. No momento em que está tendo ideias em relação a como tirar
proveito de Pinóquio, leva a mão no queixo, movimento típico de pessoas que
estão tendo idéias. Reforçando o antropomorfismo, não apenas nas características
físicas, mas na representação de seus movimentos e comportamentos,
demonstrando cada vez mais a proximidade física com homens comuns. Isto é
feito com tamanha naturalidade que é fácil passar despercebido ou mesmo fazer
com que o espectador se esqueça de que está vendo uma raposa na tela, tamanha
é sua semelhança com personagens humanos que tantas outras vezes foram
vistos em situações semelhantes.
Figura 24 - Comportamentos correspondentes de João Honesto e em um Ser Humano17
João Honesto e Gideão começam a seguir Pinóquio, neste momento por
duas vezes a raposa utiliza sua bengala para puxar Gideão pelo pescoço, deixando
clara sua natureza de desenho animado. Os movimentos também são típicos de
animações, quando ao se movimentar mais rápido e se esconder atrás de algum
objeto um leve borrão colorido fica na tela, representando o movimento tão rápido
que os olhos não foram capazes de acompanhar.
No momento em que esperam escondidos por Pinóquio, Gideão tira um
enorme martelo de dentro de suas roupas, fato bem pouco provável considerando
o tamanho do martelo. Está em posição como que aguardando para acertar
17
Figura do personagem Ron Weasley do filme Harry Potter, interpretado pelo ator Rupert Alexander Grint.
72
Pinóquio, mas nesse momento João Honesto retira o martelo de sua mão e acerta
o gato na cabeça, que não sofre grandes consequências.
Figura 25 - João Honesto bate em Gideão.
Tal cena indica um padrão cartum de animação:
Dentro das diferentes modalidades de animação, uma outra forma de divisão se faz: quando o movimento busca uma expressão natural, querendo tornar crível a relação personagem-tempo-espaço, falamos de animação clássica; ela possibilita a identificação do espectador com o filme nos níveis emocional e narrativo. Quando as leis naturais são ignoradas prevalecem o exagero e o delírio, estamos falando de animação Cartum. Tudo é possível (TASSARA in BRUZZO, 1996, p -167-168).
Pinóquio em geral segue as regras da animação clássica, mas
principalmente nesta primeira sequência de João Honesto e Gideão, é a linguagem
de Cartum que prevalece, talvez como mecanismo para amenizar as
características maldosas dos personagens e implicar comicidade na sequência, o
que acaba por levar a associação dos animais de Pinóquio com cenas engraçadas,
mesmo quando estamos vendo o vilão. A cena continua a se desenrolar dentro
dessas mesmas características, onde João Honesto bate em Gideão e vice-versa,
de uma forma cômica próxima das comédias pastelão18, onde os personagens se
agridem mutuamente sem que cause nenhum dano real, fato que torna a cena de
traição e persuasão para o mal de fato algo engraçado e ameno, o que demonstra
também o fascínio das personagens, destacando seu lado interessante e não
18
Gênero de comédia cinematográfica que priorizam cenas que geram riso na platéia implicando comumente a
violência física. Cruz (1986)
73
maldoso. Assim, se o próprio espectador de distrai e se deixa levar por esses
personagens, por que com Pinóquio seria diferente? Semelhante com o que
aconteceu com o personagem do Grilo, a identificação de sentimentos entre
espectador e Pinóquio, intermediadas e promovidas pelos personagens
humanizados do filme podem ser identificadas como forma de humanizar Pinóquio,
espectador humano e o boneco são acometidos pelo mesmo sentimento pela
raposa, o que aproxima ficção de realidade.
Assim que conseguem envolver e convencer Pinóquio que a escola é
besteira, agora deixando mais clara a ironia quando fazia apologia à escola no
início da cena, saem todos cantando de forma animada reforçando a proposta de
vida maravilhosa feita a Pinóquio.
A cena poderia facilmente possuir homens ao invés da raposa e do gato
vestidos como seres humanos, uma vez que além de sua característica física nada
mais remete o personagem a uma raposa, porém na própria versão de Collodi
(1992) é colocado desta maneira, apesar de que no livro a situação em que João
Honesto e Gideão aparecem seja diferente da apresentada no filme, estão também
enganando Pinóquio, mas sobre questões diferentes. Na literatura, assim como no
caso do Grilo, apesar de serem apresentados animais que falam e interagem com
Pinóquio, não há descrição de sua aparência, nem tão pouco comicidade nos
personagens, assim é possível perceber isso como criação própria para animação
de Disney.
João Honesto aparece também interagindo com um ser humano em uma
cena posterior, onde novamente está fazendo negócios ilícitos a fim de receber
dinheiro, demonstrando toda sua ganância, estando inclusive disposto a tirar vida
de alguém se isto fosse necessário. Estão ele e Gideão em um bar bebendo e
fumando enquanto acertam os detalhes de seu próximo golpe com um cocheiro
maldoso (humano). Isso mais ainda descaracteriza o personagem como animal e o
aproxima do mundo humano, em momento algum de sua aparição foi percebido o
cuidado em apresentar comportamentos típicos de uma raposa, ao contrário do
que foi feito com o Grilo que vez por outra fazia algo que lembrava ao espectador
sua real origem. João Honesto só é uma raposa por sua aparência, nada além
disso, nem sequer é nomeado dessa forma.
Segundo a definição proppiana, João Honesto estaria próximo a esfera de
ação do malfeitor, que segundo a definição geraria danos ao Herói, que no caso da
74
história original de fato ocorre, pois este rouba e assusta Pinóquio, mas na
animação isso de fato não ocorre, ele apenas é um intermediário entre Pinóquio e
os que de fato lhe causarão mal, assim poderia ser pensado como o mandante, um
pouco diferente do que se encontra descrito nas funções propostas por Propp, mas
ainda assim adequadas para o contexto.
Como mencionada no caso do Grilo é perceptível o quanto o personagem
passeia entre o mundo humano e animal e a partir da análise foi possível perceber
as funções para ambas as características, mas no caso de João Honesto isto não
acontece, sendo por isso que fomos em busca de elementos além daqueles
presentes no filme para construir uma compreensão em relação à representação
desse personagem.
A raposa é um animal comum de ser encontrado em fábulas infantis. Vale
nesse momento uma discussão em relação a esse tipo de narrativa. Como por
exemplo, A Raposa e a Uva (Esopo), A Raposa e a Cegonha (La Fontaine), A
Raposa e o Corvo (Esopo), O Galo e a Raposa (La Fontaine), O Gato e a Raposa
(Esopo), entre outros. Nestes a Raposa é retratada ou como um animal arrogante,
sem capacidade alguma de demonstrar humildade, ou como um animal esperto
pronto a tirar vantagem de situações diversas. Muito semelhante de fato com a
representação da raposa de Collodi e Disney. O que torna possível pensar que o
histórico de representação deste animal tenha sido determinante para a escolha do
personagem, de quem já se espera alguma atitude negativa, tendo significados que
vão além daquilo que está descrito, mas está implícito no conhecimento humano.
Tal conceito pode ser reforçado pela frase de Bruzzo (1996, p. 240),
“ Coelhos, ratos, gatos, cães, variadas espécies de pássaros, além dos malvados
de sempre - lobos, leões e raposas - , todos nos são familiares...” (grifos nossos),
com isso reforça-se a ideia de que fato existe uma predisposição para o papel
designado aos animais, pois já vêm carregados de informações prévias, que
sequer precisam aparecer na história, como o fato por exemplo, que a raposa é um
caçador, veloz e perigoso, a mensagem: “cuidado com a raposa!” não precisa ser
dita. Mas isso não é regra como poderá ser visto no caso da raposa de Robin Hood
mais adiante.
A raposa João Honesto seria mais um representante do tipo de animal
completamente humanizado, com um alto grau de antropomorfismo.
75
2.1.3 O Gato Mimado
Inexistente na versão de Collodi, o gato Fígaro é uma criação original da
Disney e que rouba algumas cenas do filme devido a suas características
peculiares. Para análise deste personagem foram escolhidas duas cenas, pois se
faz necessário para que a análise de sua personalidade seja clara e completa.
O primeiro trecho analisado faz parte da introdução do filme onde os
personagens estão sendo apresentados, para assim verificar como foi construída à
imagem deste personagem, que, apesar de figurante, no que diz respeito a
ausência de função narrativa segundo a classificação de Propp, se enquadraria na
função de Comic Relief, como poderemos identificar a seguir.
Estamos falando de um pequeno gato, que por seu tamanho pode até ser
pensado com um filhote, desenhado com as características físicas tais quais às do
mamífero na realidade, exceto pelos seus olhos maiores e não tão arredondados.
O formato utilizado no desenho é maior do que o que seria na realidade e contribui
para as expressões faciais do personagem. Não apresenta nenhum tipo de
acessório como adereço e encontra-se em um ambiente totalmente adequado para
outros de sua espécie.
Figura 26 - Fígaro X Gato real
Fígaro entra em cena no mesmo momento em que Gepeto, e é visto ao lado
deste quase na totalidade das cenas em que o entalhador aparece, demonstrando
desde o início que é sua verdadeira companhia. Algo que não é se de estranhar e
está absolutamente dentro de representação realista aonde o gato é um animal
doméstico comum de ser encontrado.
76
Sua primeira interação com Gepeto é apenas um miado em resposta à
pergunta deste, mas nada que possa surpreender, pois interação frente ao
estímulo da voz do dono é comum. Isso isoladamente não diz muito sobre as reais
capacidades do gatinho. Ele tenta brincar com o pincel, presta atenção aos
movimentos de seu dono, senta-se calmamente enquanto este finaliza seu trabalho,
mostrando suas características de um animal de estimação.
Ao finalizar seu trabalho entalhando o boneco de madeira, Gepeto pergunta
a Fígaro o que acha do nome escolhido para sua obra. O gato nitidamente
compreende o que seu dono quis dizer e responde a ele, não mais na forma de um
miado, como é comum na realidade, mas com uma careta expressiva que não
deixa dúvidas de seu descontentamento com o nome indicado. Seus olhos são
fechados bem espremidos e sua boca é entortada, então ele balança
negativamente a cabeça, não deixando dúvida de que apesar de não falar é capaz
de compreender e se comunicar com Gepeto.
Figura 27 - Fígaro fazendo careta por não gostar do nome sugerido por Gepeto
Então o pequeno gato aparece seguindo Gepeto em passadas ritmadas ao
som que toca, e com um leve semblante de sorriso, reforçando suas características
que fogem de comportamentos restritivos a animais. Além de andar de ré, algo que
não ocorre entre os animais. O que mais valoriza a personalidade de Fígaro são
suas expressões, ele não precisa dizer uma só palavra para que Gepeto ou os
espectadores sejam capazes de compreender seus sentimentos, o mais
interessante é que para isso não precisou descaracteriza-lo fisicamente como um
animal.
77
Fígaro aparece em seguida “tomando banho”, ou seja, está calmamente
passando sua língua pelo corpinho, como os gatos fazem para se manterem limpos,
se esfrega dengosamente nas pernas de Pinóquio e se assusta com as
brincadeiras de Gepeto, tal qual um gato de estimação comum poderia fazer. O
que reforça suas características de felino. Em seguida busca a atenção de Gepeto
que está concentrado conversando e elogiando Pinóquio, é inclusive acusado por
seu dono de estar com ciúme, sentimento caracteristicamente humano, porém que
quando olhado mais de perto pode ser encontrado em animais muito apegados a
seus donos.
No momento em que Gepeto e Fígaro vão para o quarto dormir, temos
reforçadas algumas características humanas do gatinho, pois este possui uma
cama humana em miniatura, se deita em posição tal qual um homem deitaria e
ainda puxa sua manta, como se possuísse mãos e se acomoda na cama. Fica
extremamente incomodado quando Gepeto interrompe seu sono, novamente tal
incômodo é expresso através de suas feições e reações físicas como no momento
em que retira nervosamente sua manta de seu corpo para se forçar a levantar. A
interrupção ocorre, pois o velhinho solicita que Fígaro abra a janela, este
compreende perfeitamente o que lhe está sendo pedido, e mesmo com as
limitações físicas de ser um gato, realiza a ação, o que traz uma comicidade à cena,
justamente pela irritação e dificuldades do gatinho para atingir um objetivo que lhe
foi imposto.
Figura 28 - Fígaro calmamente dormindo em sua cama em seguida aborrecido por ter sido despertado.
Outra cena na qual Fígaro chama atenção é no momento em que Gepeto
decide sair em busca de Pinóquio. A mesa do jantar está posta e o gato aparece
78
sentado em uma cadeira com um guardanapo amarrado em seu pescoço, possui
um prato a sua frente. Cheira a comida, não da forma que os gatos fazem
aproximando o focinho do alimento, mas como os humanos, ao inspirarem
profundamente para inalar o cheiro. Enquanto a imagem demonstra o gato ansioso
para comer seu prato de comida, a fala de Gepeto demonstra sua aflição à
Pinóquio. Antes de sair o velho dá a ordem de que não se pode comer enquanto
ele não voltar de sua busca pelo filho. O gato faz menção com a cabeça de que
compreendeu e acatou a orientação, porém assim que seu dono sai esfrega uma
pata na outra em sinal de satisfação e faz menção de começar a comer, porém é
impedido pela peixinha de estimação de Gepeto, ele então passa a língua nos
beiços demonstrando nitidamente seu desejo pela comida, então se sacode todo,
cruza os braços no corpo e fica com cara de mau-humorado.
Figura 29 - Fígaro mau-humorado
A classificação desse personagem quanto parcialmente representando seres
humanos e não representando possui uma linha tênue, o que o torna tão
interessante para análise. Ele possui expressões faciais e demonstra sentimentos
e reações muito próximas a de seres humanos, mas conserva as características
físicas e habitat de um gato de estimação. Poderíamos pensar em alguns dos
filmes classificados como possuindo personagens que não representam seres
humanos e fazer uma comparação com Fígaro:
- Personagem Tambor em Bambi: o coelho Tambor é muito expressivo é possível
apenas através de suas expressões faciais perceber seu humor ele demonstra
timidez, colocando as patinhas para trás encolhendo o pescoço e balançando seu
corpinho, nada muito diferente de algumas reações do gato em questão. Ainda
para agravar, o coelho aparece na tela conversando com os demais animais,
79
porém tudo ocorre restritamente ao mundo animal, como uma representação real
desse mundo, o qual nós humanos não conhecemos, afinal não fazemos parte. No
caso de Fígaro a interação é com um ser humano, com quem ele praticamente
conversa. Por isso que no caso de Bambi a classificação que melhor se enquadra
é que os personagens não representam os seres humanos, já Fígaro a
classificação é mais delicada.
- Os cachorros de 101 Dálmatas: o casal de cães aparece ao lado de fora da Igreja
enquanto seus donos se casam, como se estivessem casando também, o que
representa romance, compreensão de religião, elementos exclusivos dos humanos;
claramente compreendem a conversa dos seres humanos; apresentam expressões
faciais claramente não pertencentes a seres animais, falam entre si, mas ainda
assim toda a sua relação com os seres humanos se restringe à forma real de
animais interagirem, ou seja, são cães como podemos concebê-los como tal. Os
sutis elementos que fogem a isso não são para caracterizá-los como seres
humanos, mas sim para cumprir com a narrativa que se passa no mundo canino.
Assim nesse caso também a classificação se enquadra bem no item de “não
representam seres humanos”.
- O beija-flor e o guaxinim de Pocahontas: fisicamente são iguais aos animais na
realidade, porém eles interagem entre si com expressões distintas àquelas
reservadas aos animais, eles brigam em função de intrigas e confusões causadas
por eles próprios, sendo responsáveis pelo comic relief do filme. As interações com
a protagonista do filme Pocahontas apresentam também expressões faciais e
indicações de compreensão do que esta fala em alguns momentos até um
pequeno nível de comunicação entre eles, mas tudo isso é sutil e em momentos
curtos do filme, o que fez com que a classificação do mesmo fosse “não representa
seres humanos”, sem maiores dificuldades para tal conclusão.
Já nos casos de Bernardo e Bianca, Aristogatas, As Peripécias do Ratinho
Detetive entre outros classificados como animais que representam parcialmente
seres humanos, temos animais com vestes humanas, operando veículos,
resolvendo casos de mistério, porém sempre dentro de uma realidade de mundo
animal, fantástico, mas animal. Porém, possuem características muito marcantes
que os distinguem dos animais que não representam seres humano, por isso se
enquadram tão bem no item “representam parcialmente seres humanos”. É Fígaro
ainda estaria muito distante desses personagens. A partir disso, percebe-se que
80
apesar de não atender a todos os critérios e destoar dos demais animais nessa
classificação, o mais adequado é considerar Fígaro como não representando seres
humanos. Lembrando que a classificação é feita não a partir apenas da realidade,
mas de um comparativo de representações de outros personagens animais de
animações, e levando isso em conta é desse grupo que o gato mais se aproxima.
Lembrando que essa não é uma ciência exata e sim composta de variáveis
independentes, ou seja, uma classificação perfeita para cada personagem só seria
possível se tivéssemos tantas classes quantos são os personagens.
2.2 Robin Hood
Segundo Coelho (2000), a literatura tem suas raízes no que podemos
chamar de fantástico, principalmente em função da falta de explicação científica
para diversos fenômenos. Foi a partir disso que surgiram os mitos que se
desdobraram em inúmeras variantes como lendas, contos maravilhosos, sagas, etc.
É nessa fase que segundo a autora as fábulas revelam uma preocupação crítica
com as relações humanas. Tal natureza mágica acabou por atrair as crianças. Na
animação a seguir temos a união desses elementos, a criação lendária e utilização
de animais corroborando para uma realidade fantástica.
Robin Hood é uma animação de longa-metragem produzida pelos estúdios
Disney em 1973, porém vale ressaltar que esta foi produzida após a morte de
Disney, mas ainda teve a participação deste, pois originou-se de uma animação
abandonada, Reynard the fox, da qual Disney havia participado. Conta a história de
um fora da lei que vive nas florestas e rouba dos ricos para dar aos pobres, que
são explorados pelo príncipe João, irmão do rei, que, aproveitando-se da ausência
deste em função de uma cruzada, usurpa o trono e impõe altas taxas de imposto a
população. Robin Hood e seus companheiros saem em defesa dos camponeses a
fim de aliviar suas aflições. Enquanto paralelamente o herói se preocupa com seu
romance com a sobrinha do rei. Na versão da Walt Disney todos os personagens
são na verdade animais. Os principais personagens na história são:
81
- Robin Hood - fora da lei que se arrisca para prover aos mais necessitados. É
querido e simpático com todos à exceção dos vilões do filme. Representado por
uma raposa. Representa o herói nas esferas de ação de Propp e Greimas.
- Príncipe João - irmão do rei da Inglaterra que se aproveita da ausência do rei
para aumentar os impostos para proveito próprio. Apesar de ser representado por
um leão, não possui a coragem entre suas características, além da ingenuidade
que o torna um tolo digno de piadas. Sua função corresponde ao
antagonista/oponente.
- Sr. Chio - Fiel companheiro do príncipe, perspicaz e inteligente, porém apanha de
João constantemente, por julgá-lo desconfiado, porém dificilmente segue os
conselhos dessa serpente com poderes hipnóticos, que entretanto sempre estava
certa. Uma vez que é o cúmplice de Príncipe João sua função também é a mesma
na narrativa.
- Lady Marian - sobrinha do rei Ricardo, muito generosa e que vive a sonhar com
seu reencontro com Robin Hood. Abre mão de seu conforto no palácio para viver
seu grande amor e ajudar seu amado em sua nobre missão. Assim como o
personagem principal da história é também uma raposa. Esta personagem pode
ser percebida exercendo a função de princesa segundo as esferas proppianas e o
objeto na versão de Greimas, não que ela seja o único objetivo do herói, mas é um
deles, em determinado momento da narrativa.
- Narrador - Aparece no início do filme esclarecendo que a história que será
apresentada já foi representada muitas vezes, mas que existe uma versão própria
do reino animal, este personagem é um galo trovador.
- Pequeno John - Grande amigo de Robin Hood que faz parte de todas as suas
aventuras em busca de recuperar o dinheiro do povo. Representado por um grande
urso é um personagem doce e preocupado com Robin Hood, e suas decisões, em
alguns momentos demonstra dúvidas sobre se as ações que realizam estão de fato
corretas, ainda assim se dedica a cada aventura intensamente. Seria, no que diz a
esfera de ação o auxiliar/ adjuvante.
- Frei Tuck - Auxilia Robin Hood a distribuir as riquezas conquistadas, além de em
diversas situações enfrentar o xerife verbalmente. É representado por um texugo.
Assim como João Pequeno, o Frei corresponde a esfera de auxiliar/ adjuvante.
82
- Lady Kluck - Dama de companhia de Lady Marian que a incentiva
constantemente a raposa a ir em busca de seu amor. É representada por uma bem
humorada galinha. Pode ser classificada também como auxiliar/ adjuvante do herói.
- Xerife de Nottingham - Maldoso xerife responsável pela cobrança de impostos e
por prender Robin Hood. Representado por um traiçoeiro lobo. Faz parte dos
antagonistas/ oponentes do herói.
- Tiro Certo e Biruta - Soldados atrapalhados que acompanham o xerife, são
representados por urubus. Também podem ser classificados como mais
antagonistas/ opositores de Robin.
Mas, não se restringem a esses, há a tropa real composta por elefantes,
rinocerontes e hipopótamos, são guardas leais ao príncipe João e ao xerife, os
camponeses que são representados por famílias de coelhos, tartarugas, cachorros
entre outros que podem ser identificados como destinatários segundo as esferas
de ação de Greimas que irão se beneficiar do objeto conquistado pelo herói: o
dinheiro.
A animação foi baseada no personagem de lendas inglesas de mesmo
nome. Lyon (1990), no Dicionário da Idade Média, afirma que tal personagem tinha
base histórica e sua primeira referência foi em um poema de 1377, assim como
outras histórias incluindo uma peça de 1475. Nessas primeiras histórias, conforme
descrito no dicionário, Robin é um fora-da-lei, mas não um rebelde social. Existem
algumas figuras que se acredita ter dado origem à lenda, porém com o passar do
tempo história e estória acabaram por se misturar, sendo difícil precisar o que é
fato ou não. No cinema há também inúmeras versões da história, sendo As
Aventuras de Robin Hood de 1938, baseada no livro Robin dos Bosques, de 1920,
uma das mais famosas, e talvez sejam as características dessa versão as mais
difundidas até hoje. No filme de 1938 pode se notar semelhanças com o
personagem Ivanhoé de Walter Scott, de 1820, comprovando a forma em que
diferentes elementos acabam por compor a personalidade de Robin Hood, o que
reafirma sua origem na lenda:
Lenda, episódio heróico ou sentimental com elemento maravilhoso ou sobre-humano, transmitido e conservado na tradição oral popular, localizável no espaço e no tempo. De origem letrada, lenda, legenda, legere, possui características de fixação geográfica e pequena deformação. Liga-se a um local, como processo
83
etiológico de informação, ou à vida de um herói, sendo parte e não todo biográfico ou temático (CASCUDO, 2001, pg. 328).
A utilização de uma lenda como base para desenvolvimento de um roteiro
da Disney, não é algo comum de ser encontrado, Robin Hood foi o primeiro e até o
momento apenas, mais três filmes utilizaram esse tipo de inspiração: Pocahontas,
Mulan e Atlantis. Adaptação de lendas para o cinema permite uma maior liberdade,
pois não há uma sequência de fatos já pré-estabelecida e fixada para os
espectadores. Pode, sim, existir versões conhecidas da história em livros ou filmes,
mas há também a consciência de construção a partir de fatos segmentados, sem
esperar por uma fidedignidade muito grande, a não ser pelas características ou
fatos que deram origem à lenda, e Disney fez isso nos quatro filmes citados.
O grande diferencial no caso da Disney para Robin Hood foi certamente a
transformação dos personagens em animais. Este é o primeiro longa metragem em
que isso acontece, ou seja, em que são apresentados animais como personagens
principais, sendo esses completamente humanizados. A utilização de tal forma de
representação de animais já havia ocorrido anteriormente em Pinóquio e Alice, mas
os animais não eram os personagens principais.
A sequência e fatos da narrativa apresentados em Robin Hood, não
coincidem com as funções propostas por Propp, mas, segundo a definição de
lenda, entendemos que podemos fazer uma relação deste tipo de narrativa com o
Conto Maravilhoso, assim utilizaremos aqui a versão simplificada de Coelho (2000),
que a partir das funções de Propp identificou algumas invariantes presentes nos
contos.
Tabela 2 - Invariantes desenvolvidas por Coelho (2000, p .109 -110) a partir das funções de Propp
INVARIANTE EXPLICAÇÃO
Desígnio Aspiração que levam o herói à ação.
Viagem A condição para o desígnio é a saída do herói de casa, ou seja deve ocorrer
um deslocamento para um ambiente estranho, não familiar.
Obstáculos Desafios à realização pretendida aparentemente insuperáveis que se opõem
à ação do herói.
Mediador Surge alguém ou algo entre o herói e o objetivo que está difícil de ser
alcançado. Este pode ser natural ou sobrenatural, que afasta ou neutraliza
os perigos e ajuda o herói a vencer
Conquista Conquista do almejado objetivo.
84
I - desígnio - logo na abertura do filme o narrador já apresenta tal situação
relatando que o príncipe usurpou o trono do rei, e sendo ganancioso, isso era um
problema, e que o herói era a única esperança, roubando dos ricos para dar aos
pobres. Esta é uma breve introdução com menos de 30 segundos, com imagens
fixas a partir de um livro ilustrado, revelando o caráter lendário da história que será
vista. Vale ressaltar que o espaço geográfico da história é mantido, preservando o
caráter de lenda apresentado por Cascudo.
Em seguida, através de uma canção, são apresentados os personagens
Robin Hood e seu amigo João Pequeno, além do primeiro vilão (malfeitor que gera
dano não apenas a Robin, mas à comunidade inteira): o xerife, que durante a
canção está perseguindo os heróis. Ressaltando sua amizade e despreocupação,
trata-se de uma cena curta apenas com Robin e João Pequeno. Porém para
reforçar o que está sendo cantado pelo narrador, a música cessa. Então João
Pequeno começa a falar demonstrando que já viveram muitas aventuras tendo que
fugir inúmeras vezes do xerife, aparentando ser um personagem mais consciente e
preocupado se comparado com Robin, que chega a ser retratado como
inconsequente. A cena se passa em uma floresta, com desenhos não muito
complexos ou detalhados, afinal são mostradas apenas árvores e em alguns
momentos de fuga o cenário não passa de um borrão colorido ao fundo (porém
apesar de muito simples deve-se ressaltar que o desenho é bonito e cuidadoso).
Revelando uma diferença em relação à produção anteriormente analisada.
Lembremos que nesse momento o estúdio já está estabelecido, além do que esta
animação reflete também uma fase difícil, logo após a morte de Walt Disney.
85
Figura 30 - Cenário simplificado de Robin Hood.
II - viagem- esta não fica muito clara na lenda de Robin Hood, pois não é
revelado o momento que saiu de casa para viver em uma floresta em defesa do
povo, entretanto, uma vez que vive em uma floresta, fica claro que em determinado
momento teve de sair de casa. Porém no caso da animação da Disney isso se
torna mais obscuro, pois Robin Hood é uma raposa, ou seja, sua casa é a floresta,
mas tomando o princípio de que todos os personagens do filme são animais, ainda
assim moram em casas ou palácio, é preciso considerar sim que apesar de não
revelada essa é uma função implícita na narrativa. Porém a cena seguinte onde a
carruagem real passa pela floresta com o resultado da arrecadação de impostos,
um indício do motivo de Robin viver na floresta fica claro, pois ali roubar o dinheiro
da coleta é mais fácil. Nesse momento são apresentados mais dois vilões o
príncipe João e sua serpente, Sr. Chio (malfeitores que assim como o xerife,
causam dano à comunidade e não apenas ao herói), nesta cena há um complexo
diálogo entre o príncipe e Chio, apresentando cenas em primeiro plano,
ressaltando o diálogo e não os elementos do ambiente.
Em seguida é mostrada uma cena em que Robin e João Pequeno
consumam um assalto, mas tal situação não é marcada pela ação, mas sim pelo
diálogo e esperteza para enganar o príncipe. Desenrolando ainda mais as esferas
I e II.
III - obstáculos - é oferecida uma recompensa pela captura de Robin, o que
demonstra que sua dificuldade para cumprir seus desígnios iriam aumentar, mas
isso não foi o suficiente para impedir o herói de cumprir seus ideais. Neste
momento é mostrada a vila de camponeses passando dificuldade e sendo
explorados pelo xerife, o que ressalta o ato heróico de Robin, em função de um
86
bem maior, sequer se preocupa com os obstáculos que lhe são impostos e
continua a praticar seus atos heróicos.
Figura 31 - Aldeia onde vivem os "animais"
Além de reforçar o caráter humano dos animais que moram em casas muito
simples construídas de pedra e palha, tal qual encontramos em filmes e imagens
de residências da era medieval, é mostrada também a vida cotidiana das
profissões da pobre população. Novamente é apresentado um cenário sem muitos
detalhes onde os elementos muitas vezes aparecem distorcidos (desfocados).
Outro item que chama atenção no cenário são cartazes falando a respeito da
cobrança de impostos, ou seja, estes animais sabem ler e escrever!
Figura 32 - Cenário desfocados onde alguns objetos sequer podem ser identificados.
IV - mediador- Frente às dificuldades para que Robin possa atingir seus
objetivos, surge a figura de Frei Tuck que cumpre com a distribuição do dinheiro
87
enquanto o herói precisa ficar escondido. Sua função é diferente da de João
Pequeno devido ao momento em que aparece no filme, além do que ele não é
responsável por proteger o herói, mas sim seus objetivos.
Em seguida novas personagens são apresentadas, Lady Marian e sua dama
de companhia, estão no quintal do Castelo jogando peteca, é então que é revelada
a parte romântica da narrativa, pois é mostrado que esta raposa é apaixonada por
Robin e que inclusive já teve um romance com ele no passado. Em seguida Robin
aparece pensando em seu amor. Pela primeira vez este não está mais preocupado
com seu objetivo social e, sim, com seu amor.
Neste momento temos a repetição dos itens I, II, III e IV:
I - novo desígnio surge: a retomada do romance com Lady Marian,
II - viagem nesse caso representada por adentrar em um ambiente
desconhecido: o castelo de príncipe João, pois toma conhecimento de um torneio
de arco e flecha no qual o vencedor receberá um beijo da raposa Marian;
III - obstáculo: o torneio é apenas um plano para capturar Robin Hood, onde
João e sua guarda o esperam para prendê-lo e apesar de seu disfarce ele é
descoberto, preso e condenado a morte;
IV - então João Pequeno assume a função de mediador, forçando o rei a
libertar o herói;
Essa sequencia da história é finalizada com a função designada por Coelho
(2000) como a conquista do objetivo (V), pois Robin e Marian fogem para a floresta
e ficam juntos, que terá sua consumação final no término do filme com o
casamento do casal.
Entretanto o desígnio inicial ainda não obteve o sucesso necessário, assim
retomando esta parte há a retomada da função III quando os impostos são
duplicados e diversos trabalhadores são presos, inclusive o Frei acaba na prisão
por desacato à autoridade. Espera-se com isso prender o próprio Robin Hood.
Neste momento a cena fica mais escura e com chuva, a cor das cenas e da própria
vestimenta dos animais fica mais acinzentada, trazendo melancolia à cena.
88
Figura 33 - Cena cinzenta reforçando a melancolia
Então por fim a conquista do objetivo (função V) onde Robin e João
Pequeno conseguem libertar os presos, recuperar todo o dinheiro dos impostos,
após a perseguição e batalha final, na qual Robin quase é morto pelos guardas do
príncipe. O rei Ricardo retorna de sua cruzada e pune os vilões prendendo-os e os
fazendo trabalhar.
Ao longo de toda a animação é possível perceber que as cenas são
permeadas por diálogos longos saindo do padrão “uma imagem vale por mil
palavras”. O filme passa em sua maior parte com diálogos entre as personagens,
revelando fatos e situações, discutindo questões sociais e não com muitas ações,
como normalmente é possível ver em outras animações do estúdio. Isso pode ser
pensado em função do momento complicado que o estúdio se encontrava, ou seja,
utilizar planos mais fechados diminui a quantidade de desenhos necessários,
otimizando a produção.
Além disso, na própria narrativa é possível perceber uma repetição de
situações e piadas, sem que a história de fato tivesse um prosseguimento.
Podemos observar no trecho a seguir que de certa forma isso é o esperado para a
narrativa infantil:
Consiste na repetição exaustiva dos mesmos esquemas básicos (argumentos, invariantes e variantes, tipos e atributos de personagens, motivos de conflito, funções das personagens, valores ideológicos). Da mesma forma que a simplicidade inerente à mente popular ou infantil repudia estruturas narrativas complexas (devido às dificuldades de compreensão imediata que elas apresentam), também se desinteressa de textos que apresentam
89
excessiva variedade ou novidades que alterem continuamente os elementos já conhecidos (Coelho, 2000, p.105).
Mesmo levando tal estrutura em consideração, se compararmos a narrativa
de Robin Hood com a de Pinóquio é notória a redução de funções narrativas, o que
inevitavelmente levou a uma maior repetição. Podemos pensar que, no caso do
filme em questão, a inspiração veio de uma lenda, constituída a partir de uma
complexa história medieval de disputas territoriais entre povos distintos, sendo tal
questão inapropriada para o público infantil, sendo omitida da animação de Disney,
restando apenas as características do personagem de Robin Hood, para serem
exploradas. Para se estender durante um longa-metragem de 1 hora e 23 minutos,
precisaria utilizar da repetição, a fim de atingir a duração necessária. Talvez
justamente tamanha simplificação tenham contribuído para a decisão de trazer
animais para vivenciarem a lenda, ou seja, esse seria o “toque especial” da
animação, como relatado no bônus do DVD da animação:
Já que muitas crianças já conhecem a história de Robin Hood os artistas decidiram tentar algo novo, eles transformaram Robin Hood, Marian e todos os outros personagens em animais [...] Será que você adivinha por quê os artistas da Disney decidiram contar a história Robin Hood com animais ao invés de pessoas? Foi porque acharam que seria mais divertido ver animais fazendo coisa que pessoas fazem. Ora você já viu um leão de verdade chupando o dedão? (narração do bônus especial galeria de vídeo do DVD Robin Hood).
Apesar deste comentário não confirmar diretamente a hipótese apresentada,
demonstra que de fato a utilização de animais teve como objetivo deixar o filme
mais rico. O que de fato aconteceu, criando uma atmosfera cômica que se
encenada por seres humanos não teria o mesmo efeito.
Para análise do antropomorfismo no caso de Robin Hood os animais
escolhidos foram o próprio herói, pois existe a possibilidade de compará-lo com o
que foi construído sobre sua personalidade nas lendas, além de ser novamente a
representação de uma raposa, porém dessa vez como herói. Outro personagem
escolhido foi o príncipe João como oposição ao herói.
Porém considerando a riqueza das questões de antropomorfismo presentes
nesta animação, abaixo algumas observações referentes a outros personagens:
90
João Pequeno - é um urso grande e meigo. Ursos
apresentam representações distintas no imaginário, são os
bichos de pelúcia mais comuns de serem encontrados,
assim facilmente relacionados a amizade, mas também são
as feras que atacam pessoas em florestas, ou seja
representando força. O que combina exatamente com o
que se deseja para personalidade do personagem, uma
vez que deve ser o amigo de Robin, mas possuir força e coragem para vivenciar
cada uma das aventuras. Suas características físicas deixam nítido que representa
um urso, sendo a imagem do desenho próximo ao que encontramos de urso na
natureza. Entretanto esse personagem anda a todo momento sobre duas patas, o
que já não acontece com ursos na realidade. Além da imagem de urso não possui
outro atributo que assim o caracterize.
Xerife - é um lobo, porém sua imagem ao contrário da
maioria nessa animação não deixa isso tão evidente, pois
trata-se de um animal grande e barrigudo e andando sobre
duas patas o que dificulta sua identificação, pois lobos
normalmente são animais mais esbeltos, sendo associados
à velocidade e à destreza. Mas também como traiçoeiros,
como podemos constatar pelo dito popular: “lobo em pele de
cordeiro”. O xerife do filme se enquadra bem nesta descrição.
Quando em alguns momentos conversa com os
camponeses, finge interesse em algo até conseguir seu objetivo. Também não
apresenta mais características que possam contribuir para sua caracterização
como animal, sendo completamente humanizado.
Sr. Chio - uma cobra que mantém bem suas
características físicas, de movimento de corpo e língua
próximos ao encontrado nos animais desta espécie. Sua
vestimenta não é muito complexa devido ao formato de
seu corpo, mas ainda assim possui acessórios humanos.
A ausência de membros de certa forma deixa seus
movimentos limitados aos de uma serpente, sendo esse
o animal que na animação mais conserva as
características originais da espécie. A cobra é um animal discreto e atento para dar
Figura 34 - João Pequeno
Figura 35 - Xerife
Figura 36 - Sr, Chio
91
o bote, tais características foram repassadas a Chio, que está sempre observando
e identificando situações em que o príncipe será enganado. Esta é a única
animação da Disney em que uma cobra possui tamanho destaque e seja,
humanizada.
2.2.1 A Raposa Astuta
Robin Hood é o personagem principal da lenda e suas características de
fora da lei que não aceita as regras da monarquia são sua principal característica.
No caso da animação são essas características que servem como base principal
para o desenvolvimento da narrativa.
O herói é na verdade uma raposa, parecido esteticamente com a
representação de Raposa encontrada anteriormente com o personagem João
Honesto, porém Robin Hood possui um focinho menos alongado e o pelo um tom
menos avermelhado, mas ainda assim suas características físicas são muito
próximas de raposas na realidade. Assim como o personagem anteriormente
analisado, esta raposa usa vestes humanas (próprias ao personagem que ele
representa), com uma única diferença, dispensou a calça, sua blusa é comprida o
suficiente para cobrir suas partes íntimas, mas vemos suas pernas à mostra. Utiliza
sapatos que também correspondem ao que é encontrado como vestimenta desse
personagens em representações com seres humanos. Caminha sob duas patas e
manuseia objetos tal como um ser humano faria. Suas expressões faciais também
são exatamente correspondentes a de seres humanos. A partir apenas dessa
descrição é possível perceber uma conjunção entre características humanas e
animais no que diz respeito a sua apresentação física.
92
Figura 37 - Personagem Robin Hood
Na cena inicial onde há um diálogo entre o herói e seu companheiro João
Pequeno, no qual já podemos perceber algumas características da personalidade
de Robin. Demonstra-se ser despreocupado com os perigos a que se submete,
inclusive quando seu amigo diz que ele se arrisca demais Robin nega, porém está
com uma flecha atravessada em seu chapéu, sua expressão facial e resposta
verbal a João Pequeno revelam aqui um certo nível de sarcasmo do personagem,
característica complexa encontrada nos seres humanos. Enquanto fala o
personagem está tranquilamente encostado em uma árvore olhando suas unhas,
revelando sua total falta de preocupação, ainda finaliza dizendo que estava apenas
se divertindo. Ao mesmo tempo em que a cena nos mostra traços importantes da
personalidade do herói, revela também a natureza da animação, na qual deverão
prevalecer as leis do mundo real e não do cartum, uma vez que está evidenciado
que os personagens estão sujeitos a danos físicos. O que estabelece o tipo de
preocupação que o espectador deverá ter com os personagens, construindo assim
a relação de identificação.
A discussão que se segue trata de uma questão primordial que define se
Robin é um herói ou não, pois é o questionamento sobre se é correto roubar dos
ricos para dar aos pobres. O herói faz questão de afirmar que não é roubo, e, sim
um “empréstimo”. Dessa forma reafirmam-se as características tiradas da lenda
original onde Robin é um fora da lei. Aqui temos isso evidenciado o que aproxima a
história da animação de suas bases originais.
Em seguida ao ouvir tocar uma corneta rapidamente sobe em uma árvore,
ainda na posição ereta. Tal atividade pode ser realizada por algumas espécies de
raposas, o que não distanciaria tanto o animal da realidade, não fosse a forma em
93
que fez a ação, como pode ser verificado na figura 38, onde Robin se apóia em
João Pequeno e sobe rapidamente na árvore:
Figura 38 - Robin subindo na árvore
Outra cena que revela muito a respeito do personagem é quando Robin rouba o
príncipe João, mas para isso não precisa utilizar força, apenas sua astúcia. Ao perceber a
carruagem real passando pela floresta, Robin decide junto com João Pequeno disfarçar-se
de cigana para enganar o príncipe. Ou seja, além de vestirem-se como seres humanos
ocupam papéis sociais e crenças como estes, fugindo completamente do mundo animal.
Tamanha é a perfeição do disfarce que o príncipe confia nas ciganas que encontra, ao
ponto de não perceber quando estas roubam seus diamantes ao cumprimentá-lo. Robin
finge ler o futuro do príncipe, para tanto pede que este fique de olhos fechados, é nesse
momento que Robin rouba o dinheiro da realeza. Novamente revela-se uma cena muito
mais pautada no diálogo, em que não há nenhum indício de que se trata do mundo animal.
Como visto no caso de João Honesto, a esperteza é normalmente uma característica
associada à raposa, como nas histórias infantis mencionadas anteriormente. Assim,
mesmo que em uma animação analisada tenhamos um antagonista, e nesta o herói com a
mesma espécie de animal, no qual encontramos características de personalidade muito
semelhantes sendo empregadas nos personagens com base nas características do animal
que está sendo representado.
Algo interessante de se pensar é que uma vez que em Robin Hood todos são
animais, a questão do simbolismo implícito ao personagem é menos evidente que no caso
de Pinóquio, onde os animais são minoria, assim quando aparecem chama a atenção para
algum motivo especial. No segundo caso se busca compreender o todo muito mais do que
um personagem específico. Mas ainda assim é possível perceber o cuidado com a escolha
dos animais que representaria cada personagem.
Além das características exploradas até o momento, existem alguns elementos que
fogem da representação tradicional da raposa, como a bondade e altruísmo e isso se fez
94
necessário uma vez que a escolha de utilização do animal não foi pontual ou com base em
uma história na qual tal animal já era utilizado, pelo contrário trata-se de uma história
amplamente conhecida onde o herói é um ser humano, ou seja, ele já tem uma gama de
características que mesmo não sendo correspondentes às características da raposa
precisavam ser retratadas em função da narrativa, o que impossibilitou um casamento
perfeito entre o simbolismo do animal e as características do herói, o que facilmente passa
desapercebido uma vez que muito facilmente esquecemos que Robin é uma raposa.
2.2.2 Leão Medroso
O antagonista no filme é o príncipe João, representado por um leão. Possui
pelos amarelados como de um leão, sua pata apresenta apenas quatro dedos
curtos como os de um leão. Apresenta também focinho próximo ao de leão na
realidade, entretanto não possui juba, o que dificulta o reconhecimento do animal,
porém sabe-se que ele é um leão, pois na abertura da animação ele foi
apresentado como tal através do letreiro inicial. Suas vestes correspondem à de
alguém pertencente à realeza, com um manto vermelho, anéis de brilhante e uma
bela coroa. Encontramos aqui a primeira explicação da escolha de um leão para o
personagem, a partir do conhecimento popular o leão é reconhecido como o Rei
dos Animais, em função de estar no topo da cadeia alimentar das localidades em
que vive e segundo o site de ecologia online isso se deve também a sua postura
majestosa e sua juba, considerada como uma coroa cabendo a ele defender o
território. Já um elemento de curiosidade é o fato do príncipe João não apresentar
juba, discussão que será apresentada mais adiante quando analisarmos as
características desse personagem.
95
Figura 39 - Comparativo da representação de príncipe João como leão e o animal na realidade
A primeira cena em que vemos o príncipe, é no momento que ele está em
sua carruagem conversando com seu fiel criado, Sr. Chio. Ele aparece brincando
com moedas contidas em um saco, muito feliz e satisfeito, revelando que tal
dinheiro é fruto dos impostos recolhidos do povo. Tal cena revela uma sociedade
capitalista pautada na divisão social muito clara entre ricos e pobres, nada
relacionado com uma sociedade animal, que pode apresentar divisões de trabalho,
alguma hierarquias, mas dinheiro é algo que nunca fez parte do reino animal.
Assim os animais de Robin Hood se aproximam ainda mais da representação
humana e o príncipe revela uma característica restrita aos seres humanos:
ganância. Revela inclusive seu mau caráter ao dizer: “roubo dos pobres para dar
aos ricos”, deixando ainda mais evidente a oposição em relação a Robin Hood que
sequer concorda em usar a palavra “roubar” para seus atos.
Na sequência o príncipe está ajeitando sua coroa na cabeça, algo que faz
com dificuldade uma vez que a coroa é grande demais para sua cabeça, revelando
sua inferioridade em relação ao rei, pois pelo diálogo é revelado que tal coroa
pertence na verdade ao Rei Ricardo, irmão de João, a quem este enganou para
afastar do trono e usurpar seu lugar. Revela nesse momento grande desejo pelo
poder, algo incomum de se encontrar no reino animal, existem, sim, disputas, mas
sempre ligadas a alimentos e sobrevivência.
No momento em que Sr. Chio fala a respeito da mãe do príncipe, este
demonstra seu lado fraco, dizendo que a mãe sempre gostou mais do irmão do que
dele, leva seu dedo à boca e segura a orelha em uma ação que remete a atitudes
de bebê, como se este estivesse tendo uma regressão, como alguma
consequência psíquica de algum trauma ou questão mal resolvida de sua infância.
96
Quem já viu animais agirem dessa forma? Isso não é muito bem explorado, apenas
inserido talvez para despertar o comic relief, que como mencionado anteriormente
se dá justamente porque o príncipe é um leão e está apresentando
comportamentos inesperados para a espécie. Porém ao analisar a cena, a questão
de se tratar de um leão não tem grande significado, pois este personagem se
aproxima de tal forma das características humanas que facilmente esquecemos
sua origem, mas ainda assim a cena é engraçada, pois vemos um príncipe
ganancioso sentindo falta da mãe e chupando o dedo. Reforçando o caráter
cômico da cena, o Sr. Chio repreende João, não por este estar demonstrando
fraqueza, mas porque seu polegar faz muito barulho. A cobra inclusive revela que o
príncipe está tendo uma crise psicótica.
Figura 40 - Rei revelando sua fraqueza
Os termos empregados na conversa por parte do Sr. Chio nessa sequência
são um tanto complexos e talvez difíceis de serem compreendidos pelo público
infantil, como por exemplo: “como vos assenta bem”, “lapso da minha língua
viperina”, “o hipnotismo vai vos livrar de vossa psicose”.
Em seguida à cena em que Robin Hood engana o príncipe revelando mais
algumas características desse leão, que se demonstra pouco desconfiado e até
mesmo ingênuo, não escutando os avisos de seu conselheiro de tomar cuidado
com as “ciganas”, mas o príncipe não lhe dá atenção, está mais preocupado com
sua diversão e preocupado em descobrir seu futuro do que prezar pelo ouro que
possui. Robin e João Pequeno tiram os diamantes do rei sem que este perceba
revelando ser até mesmo um tanto bobo, caindo em um golpe tão distante da
97
realidade, com espíritos sendo invocados, não percebendo o sarcasmo da “cigana”
dizendo que ele é bondoso, majestoso, amável, etc... até porque João se percebe
dessa forma. Os heróis conseguem facilmente atingir seu objetivo e João só
percebe isso quando está sem roupa e seus inimigos já estão em fuga.
Em nenhum momento no filme ele assume uma briga, sempre delegando a
outros tal responsabilidade, o que pode inclusive ser visto como uma característica
antagônica do leão que seria de força e coragem, tomando frente das brigas e
disputas. Ou seja, esse leão não seria tão leão assim, inclusive por isso não teria
uma juba. Ele não é o rei por direito e não se comporta como tal, não sendo digno
das características majestosas de um leão. Isso é reforçado com o príncipe caindo
na lama e ao ouvir Sr. Chio falando em sua mãe coloca novamente o dedo na boca,
inclusive queixa-se que seu dedo está sujo com voz de criança. Com a postura tal
qual a de um bebê e mais distanciada de um rei.
Assim como a raposa, o leão aparece em algumas fábulas, como: O leão e o
rato, O leão apaixonado, O leão e o Asno (Esopo) e o Leão e o Mosquito (La
Fontaine) em todas o leão sendo retratado como forte e temido pelos demais
animais que na maioria das histórias buscam derrotá-lo, sem grande exploração de
outras características. O que leva a pensar que a única marca da personalidade do
leão não é refletida no personagem do príncipe João.
O que é possível perceber a partir das análises apresentadas é a
simplicidade dos personagens no que diz respeito as suas características
acompanhando a tendência geral dessa narrativa onde poucos elementos são
repetidos ao longo da história, não havendo espaço para grandes novidades.
A partir desse primeiro capítulo é possível perceber que mesmo com as
diferenças de representação de animais em Pinóquio em Robin Hood em ambos
encontramos preservação de alguns elementos naturais de animais e
características marcantes de seres humanos nos personagens, o que aproxima a
espécie humana da animal, relembrando nossas semelhanças e características
compartilhadas. Algumas características apresentadas pelos personagens animais
servem para evidenciar elementos da condição humana.
É possível perceber o cuidado para escolha dos animais para servir de
personagens nas animações, mesmo em Robin Hood onde a estrutura narrativa é
mais simples, ou seja, o simbolismo dos personagens acaba por enriquecer a
98
narrativa trazendo conteúdo implícito aos personagens em função da escolha do
animal a ser utilizado.
Com isso, por mais que inicialmente pudéssemos pensar que os
personagens animais completamente humanizados poderiam simplesmente ser
substituídos por personagens humanos, com uma análise mais profunda fica claro
que o conteúdo narrativo seria completamente diferente se assim o fosse e
algumas mensagens não existiriam. Como por exemplo de que por vezes um
estigma não se confirma na prática, mesmo que acreditemos que todos os leões
são corajosos a partir de Robin Hood percebemos que isso não é uma verdade
universal, então esse tipo de conceito pré estabelecido deve também servir para
seres humanos.
99
CAP. 3 - CONSTRUÇÃO SOCIAL DO REINO ANIMAL
Quão próximo um personagem animal pode chegar de características
humanas sem que se torne um animal completamente humanizado? Quais as
características que o mantêm como animal? Essas são questões que precisam ser
analisadas a partir de personagens animais categorizados como apenas
parcialmente humanizados ou não humanizados. Para tanto foram selecionadas as
animações Vida de Inseto e Rei Leão, ambas com animais como personagens
principais e com uma sociedade específica construída em torno da espécie
predominante de animais nos filmes.
3.1 Vida de Inseto
Animação estadunidense de 1998 produzida pela Pixar e distribuída pela
Disney. Conta a história de uma comunidade de formigas que sistematicamente
precisa separar parte de sua colheita para os opressores e fortes gafanhotos. Flik,
uma formiga criativa e visionária, vive se metendo em confusão e a fim de afastá-lo
do formigueiro as formigas do conselho da rainha o mandam em busca de ajuda,
quando Flik encontra uma trupe de insetos circenses, mas os confunde com
guerreiros, ao levá-los para o formigueiro ele é considerado um herói. Porém, logo
a confusão é identificada e as formigas se desesperam, mas graças às invenções
malucas de Flik as formigas conseguem derrotar os gafanhotos.
São muitos os personagens encontrados em Vida de Inseto, inclusive
porque a história não é pontual sobre um personagem, mas sim a realidade e
desdobramentos de uma sociedade inteira, assim temos:
- Sr. Solo - Formiga macho responsável por coordenar as formigas trabalhadoras.
Não apresenta uma função narrativa conforme as apresentadas por Propp ou
Greimas.
- Princesa Atta - Formiga fêmea, filha da rainha, que está sendo preparada para
assumir o trono, é preocupada e perfeccionista. As funções desta personagem
100
variam entre princesa/objeto uma vez que as ações do herói são em grande parte
para impressioná-la, porém é preciso pensar nesta como uma função atualizada,
uma vez que a personagem não precisa ser resgatada, e, sim conquistada. Outra
função na qual se pode encaixar a personagem é a de mandante/destinador, tanto
pensando que ela o faz diretamente, quando impõem a jornada de buscar ajuda ao
herói, quanto indiretamente, quando pensado que as ações do herói são motivadas
pela conquista da princesa. Aqui já é possível perceber uma atualização da
sociedade refletida na animação, onde o papel da mulher se modifica e as funções
são acumuladas.
- Rainha - Formiga fêmea que conduz o formigueiro, é ponderada e sábia e tenta
passar valores importantes para a princesa que está sendo preparada para
sucedê-la.
- Cão - Pulga que se comporta como cachorro, é o animal de estimação da rainha.
Pode ser visto pela sua simples existência como ocupando a função de comic relief.
- Dot - Filha mais nova da rainha, parece ser a única em enxergar em Flik um herói,
ocupando dessa forma a função de auxiliar/adjuvante a pesar de ser apenas uma
formiga criança. O que quebra com paradigmas colocando todos como potenciais
agentes de mudança no mundo, o que traz maiores possibilidades e
responsabilidades a cada indivíduo.
- Flik - Formiga macho que gosta de criar objetos a fim de facilitar a vida das
formigas, não recebe muito crédito por suas idéias. Em alguns momentos também
é o causador de confusões. Representa o herói. Apesar de ser reconhecido como
tal após muito tempo, é rejeitado por considerarem que ele não age como uma
formiga, ou seja, não segue o padrão.
- Hopper - Líder dos gafanhotos, é ditador e opressor inclusive com sua
comunidade preza pelo poder acima de tudo, sem se preocupar com as
consequências disso, prefere tirar proveito da comunidade das formigas a trabalhar.
Ocupa a função do antagonista/oponente.
- Molt - Irmão trapalhão de Hopper que não parece muito à vontade com a
exploração das formigas, entretanto segue fielmente o irmão. Ocupa a função de
comic relief na animação.
- Tambor - gafanhoto que apresenta certa deficiência mental e foi treinado para ser
agressivo. Enquadra-se também como antagonista/oponente, não sendo possível
identificar se por vontade ou por aquilo que Hopper o treinou para ser.
101
- Dim - besouro que trabalha no circo e namora com uma aranha, algo raro de ser
encontrado nas animações com animais que é a relação entre espécies,
novamente indicando uma mudança da sociedade onde as regras raciais e sociais
mudaram, havendo possibilidades de relacionamentos tantas quanto o indivíduo
deseje e não mais unicamente o imposto por regras da sociedade. Apesar de ser o
maior dos insetos é também o mais sensível. Assim como todos os personagens
do circo apresentam a função de auxliar/adjuvante, além de comic refief.
- Rosie - aranha viúva-negra cuidadosa com todos seus amigos e principalmente
com seu querido Dim. Nova quebra de paradigmas pois, ao que parece, como é
comum à espécie, a aranha matou seus antigos companheiros, porém com o
besouro foi diferente.
- Chucrute - lagarta comilona que sonha em se tornar borboleta.
- Francis - joaninha macho de cílios longo e feições femininas, porém com voz
grossa, que traz à tona sutilmente temas relacionados com sexualidade e auto-
aceitação.
- Cigana - bela borboleta casada com um louva deus. Temos assim nova relação
entre espécies diferentes e agora oficializada pelo casamento.
- Manuel – louva deus que faz o papel de um mágico no circo, é um inseto tranquilo
e decidido.
- Vareta - bicho palito que se incomoda com os desígnios que lhe são impostos em
função de seu formato.
- Deita e Rola - dois tatubolas trapalhões e divertidos, mesmo sem falar nada ao
longo de toda animação.
- P.T - pulga ranzinza dono do circo, apresenta a função apenas de comic relief.
Vida de Inseto é uma produção original escrita e dirigida por Jonh Lasseter,
evidentemente inovadora que participou ativamente da criação da Pixar. Isso
também fica claro em suas animações, sempre trazendo realidades diferentes e
mundos fora do normal para seres humanos.
O filme se inicia levando o espectador ao mundo dos insetos, pois apresenta
inicialmente um plano geral de uma imagem em uma área com árvores e grama e
a partir do movimento de câmera há cada vez uma aproximação maior com a área
do gramado ao ponto em que a câmera “toca” nas hastes da grama então a
primeira formiga aparece. Ou seja, o espectador que foi levado para esse ambiente
através do poder da câmera. O cuidado com a proporção de tamanhos ao longo da
102
animação fica muito claro. Esse já é também um indício em relação a utilização dos
animais, eles não estão no mundo dos humanos, mas nós estamos tendo o
privilégio de estar no deles, onde teremos elementos revelados para nós nunca
vistos antes. Pois não podemos entrar nesse minúsculo mundo pertencente aos
insetos.
Podemos identificar a estrutura narrativa de cinco invariantes apresentadas
anteriormente, com uma pequena inversão em sua ordem como veremos a seguir.
Temos inicialmente a apresentação do cenário e de alguns personagens,
bem como de uma situação que parece ocorrer há um bom tempo: as formigas
devem colher sementes e ofertar para os gafanhotos. Então somos apresentados
para essa comunidade de formigas onde fica evidenciada sua maneira tradicional
de agir, com uma sociedade fechada para o novo, fixa a regras e formatos já há
muito pré-estabelecidos. Mostrando a falta de possibilidade das formigas do
formigueiro pensar além do que lhes foi determinado, o que fica claro quando uma
pequena folha cai na frente de uma das formigas que está na fila da colheita e esta
se desespera dizendo que se perdeu, apesar do tom cômico a cena serve para
mostrar a limitação desses seres. No oposto, temos o personagem Flik, que criou
um objeto capaz de colher mais sementes em menos tempo, porém nem a rainha,
nem a princesa nem seus conselheiros acham esta uma boa idéia.
Pouco antes do momento da chegada dos gafanhotos Flik acidentalmente
joga fora toda a comida que deveria ter sido deixada para eles, o que faz com que
os gafanhotos “desçam” no formigueiro para reivindicar sua comida e quando
informados que não há comida ameaçam matar as formigas caso estas não
providenciem o que lhes é devido.
Alguns elementos importantes são as mensagens que são passadas a todo
o momento no filme. Nesse primeiro trecho um dos conselheiros da rainha diz à
princesa quando esta entra em pânico em função a uma falha na fila das formigas:
“tudo bem, alteza, falhas acontecem, só perdemos alguns centímetros”. Ou como
no momento em que Flik explica a Dot que não é tão ruim ser pequena, dizendo
que quem é pequeno tem grande potencial, precisa apenas de algum tempo, como
se fosse um recado direto para as crianças que estão a assistir a animação. Isso
também fica nítido no momento no qual a princesa pensa em se justificar sobre a
ausência da comida dizendo que não foi culpa dela, e prestes a dizer quem é o
responsável, então Hopper lhe diz : “primeira regra da liderança: tudo é culpa sua!”,
103
importante mensagem não apenas para as crianças mas principalmente para
adultos que certamente assistem às animações que cada vez mais apresentam
conteúdos para esse público também.
Porém, além do conteúdo da história, é muito importante verificar o cuidado
com o cenário apresentado, reforçando a todo o momento a idéia de que estamos
sendo levados para o mundo dos insetos. Como no momento em que soa o alarme
avisando que os gafanhotos estão se aproximando, onde vemos formigas
assoprando conchas que produzem o barulho do alarme, ou quando as formigas
entram no formigueiro, onde há uma rampa para as formigas que consiste na
verdade de um grande tronco de árvores, e a luz é fornecida pelos raios que
entram no ambiente ou por cogumelos florescentes, mas não há um só elemento
que seja de uma comunidade humana, o conceito pode ser o mesmo, mas os
objetos são próprios da comunidade das formigas da animação.
Figura 41 - Alarme das formigas e formigueiro
Nesse momento temos a finalização da parte inicial e entramos nas etapas da
narrativa apresentadas por Coelho (2000)
I - desígnio - após a determinação de Hopper de um novo prazo para a colheita. as
formigas precisam fazer nova colheita, mas não têm tempo, então a partir de
sugestão do próprio Flik e com a concordância da princesa e seu conselho deverá
deixar o formigueiro em busca de ajuda para derrotar as formigas. Apesar de se
classificar como desígnio, a verdade é que as formigas não esperam que este seja
de fato cumprido, estão apenas em busca de uma maneira de se livrarem das
trapalhadas dessa formiga revolucionária.
104
II - viagem - então Flik sairá do formigueiro para um lugar desconhecido em busca
de ajuda. Temos a cena dele caracterizado para uma caminhada, com boné (feito
de folhas), ao que parece uma barraca ou saco de dormir (feito de folhas), cantis
(sementes), mas novamente sem nenhum elemento seja do mundo do humano,
mas sim uma recriação para uma formiga.
Figura 42 - Formiga pronta para sua aventura
O destino final de sua viagem é a cidade, não a dos homens, mas, sim, dos
insetos, momento no qual são revelados diversos elementos semelhantes à cidade
dos homens, mas ao mesmo tempo bem diferentes, em alguns momentos
encontramos, sim, elementos humanos, mas nitidamente resgatados de algum lixo
e reaproveitados para situações específicas da sociedade dos insetos, como o farol
que é feito a partir de pisca-pisca controlado por um vaga-lume, ou o bar localizado
dentro de uma lata velha, o circo onde os assentos são uma forma de gelo, cidade
com caixas no lugar de prédios e outdoors, trânsito de insetos ao invés de carro,
inclusive com mendigo.
Figura 43 - Farol da cidade dos insetos
105
Figura 44 - Plano geral da cidade dos insetos
Porém, além da parte visual, nesse novo ambiente vemos uma divisão social
estabelecida, onde além dos profissionais do circo, temos donos de bar, motorista
de ônibus, taxista, garçonete, sempre na proporção e especificações pertinentes ao
ambiente construído para os insetos.
A quase todo momento o espectador vê os insetos e seu mundo em
tamanho grande, devido à aproximação da câmera apresentada anteriormente,
mas em alguns momentos essa câmera se afasta como que para mostrar a
proporção real dos elementos desse mundo, como no momento que Flik volta para
casa com seus novos amigos, que ele acredita serem grandes guerreiros, mas
tudo não passou de um mau entendido que pode ser acompanhado pelos
espectadores.
Figura 45 - Porporção real do tamanho dos insetos
Insetos
106
Aqui uma pequena inversão nas invariantes apresentadas. Antes de
aparecer o obstáculo, temos o mediador.
IV- Mediador - seria justamente a chegada dos insetos do circo, sendo
apresentados como guerreiros, são vistos como a solução dos problemas das
formigas. Para o mal entendido não houve nenhuma das partes mal intencionadas,
apenas a ansiedade de ambas as partes de atingirem seus objetivos, um arranjar
ajuda para o formigueiro e outro desejo de atingir a fama. Assim Flik acredita que
os insetos são guerreiros e fala isso para a princesa e todo o formigueiro que
recebe os insetos com grande cordialidade e entusiasmo, o que faz com que os
insetos sintam-se de fato um sucesso. As esperanças de todo o formigueiro de
derrotarem os gafanhotos são depositadas nos mediadores que acabam de chegar.
Por isso uma festa de boas-vindas é feita em homenagem dos “guerreiros”.
III - Obstáculo - este surge exatamente no momento em que é revelado para
os insetos através de uma encenação do grupo de teatro da escola infantil o real
motivo para a presença dos insetos. A surpresa dos insetos e sua preocupação é
evidenciada por suas feições. Essa cena revela que a antropomorfização aparece
em pequenos detalhes. O cuidado em apresentar uma sociedade própria dos
insetos vem ficando claro a partir da análise, entretanto pequenos gestos e
comportamentos tipicamente humanos são encontrados, como o de Rosie com a
mão na boca esboçando susto, ou Vareta protegendo Chucrute ao colocar sua
mão nos olhos deste, impedindo que veja as cenas reveladas pela peça teatral.
Não é preciso diálogo algum para perceber que os insetos estão com medo e que
de fato não tinham ideia em que estavam se metendo. Apenas suas expressões
faciais e gestos são suficientes para que o espectador perceba isso, principalmente
porque são gestos comuns a humanos nesta situação.
Figura 46 - Insetos surpresos ao descobrirem o mal entendido
107
Após se darem conta do mal entendido, os insetos comunicam isso a Flik e
decidem ir embora, porém na fuga enfrentam um passarinho faminto e junto com
Flik conseguem se sair bem da situação, porém como Francis machuca sua pata,
precisam voltar para o formigueiro, além de se motivarem com os aplausos
recebidos após a vitória na fuga do pássaro.
Porém o obstáculo continua, os gafanhotos ainda devem chegar e os
mediadores não são mediadores de verdade. Flik tem então uma ideia de construir
um pássaro para espantar os gafanhotos, todos juntos colocam o plano de ação.
Quando parece que o obstáculo foi superado, todos descobrem que os
insetos não são guerreiros, pois P.T chega no formigueiro e reconhece seus
artistas. Com uma nova rejeição, os insetos não têm opção a não ser irem embora,
e Flik os acompanha. Com isso, a crença de que seria possível derrotar Hopper é
deixada de lado. Mesmo com o pássaro pronto, as formigas não acreditam em si
mesmas e desistem de lutar.
IV- Mediador - A partir do que aprendeu com Flik, Dot o convence a voltar
acompanhado dos demais insetos e cumprir com sua tarefa. Ela lidera seus
colegas que se tornam os novos mediadores, responsáveis pela luta contra os
gafanhotos, e os insetos retomam sua posição.
V - Conquista - O plano de espantar os gafanhotos com o pássaro é posto
em prática, porém por acidente é posto fogo no pássaro e Hopper descobre que
não se passava de um plano das formigas. Mas ainda assim Flik toma coragem e
enfrenta Hopper, que faz com que Tambor dê uma surra nela. As feridas causadas
podem ser vistas em seu olho roxo e em marcas pelo seu corpo, revelando
também uma característica inédita pelo menos para formigas. Mas mesmo muito
machucado, Flik questiona Hopper quando este diz que as formigas não servem de
nada a não ser para servir os gafanhotos, mas o herói declara a todas o quanto
elas são capazes e as relembra do que fizeram quando se uniram, e quantas vezes
colheram para elas e para os gafanhotos, revelando que gafanhotos é que
precisam de formigas, isso desperta a coragem das formigas que se viram contra
os gafanhotos e os espantam da ilha, sem plano, sem guerreiros, apenas com sua
própria coragem e união. Dessa forma a conquista vai muito além de derrota e
expulsão dos gafanhotos, mas em um autodescobrimento e criação de
autoconfiança até então inexistente na espécie. Flik também atinge seu objetivo, e
as formigas passam a confiar nele e utilizar os eventos propostos por ele.
108
A narrativa claramente apresenta valores e contribui para formação de uma
mentalidade para quem a assiste, com mensagens que podem ser utilizadas por
adultos e crianças. Coelho (2000) apresenta um comparativo interessante entre os
valores tradicionais (estipulados a partir do romantismo) e os novos, para isso
vejamos o quadro comparativo de conteúdo apresentados por ela:
Tabela 3 - Comparação entre tradição herdada e a desagregação ocorrida hoje, em Coelho (2000, p. 19)
O Tradicional O Novo
1. Espírito Individualista 1. Espírito Solidário
2. Obediência absoluta à Autoridade 2. Questionamento da Autoridade
3. Sistema social fundado da valorização do
ter e do parecer, acima do ser
3. Sistema social fundado na valorização do
fazer como manifestação autêntica do ser
4. Moral dogmática 4. Moral de responsabilidade ética
5. Sociedade sexófoba 5. Sociedade sexófila
6. Reverência pelo passado 6. Redescoberta e reivenção do passado
7. Condição de vida fundada na visão
transcendental da condição humana
7. Concepção de vida fundada na visão
cósmica/ existencial/ mutante da condição
humana
8. Racionalistmo 8. Intuicionismo fenomenológico
9. Racismo 9. Antirracismo
10. A Criança: “adulto em miniatura” 10. A Criança: ser-em-formação
(“mutantes” do novo milênio)
Vida de Inseto é o filme mais recente analisado (lançado em 1998), e é
possível perceber claramente as modificações destacadas pela autora. Se
voltarmos para Pinóquio será possível perceber que se enquadra mais no formato
tradicional, entretanto no caso de Robin Hood e até mesmo O Rei Leão que será
apresentado adiante (que, apesar de ser uma produção de 1994, segue uma
vertente da Disney mais tradicional). Apesar de termos um herói central, o
interesse da sociedade está em primeiro lugar e todos apresentam um importante
papel na trama. A autoridade já nos primeiros minutos é questionada e por fim
derrotada. O herói não tem nada, na verdade nenhum deles têm, as formigas estão
todas em pé de igualdade, porém são as idéias e manifestações de Flik que o
destacam, o formigueiro está repleto de dogmatismos que são superados ao longo
109
da animação, nitidamente temos novas formas de relacionamento no filme
revelando a quebra com a tradição sexófoba e racista. A criança no filme é
encarada de forma diferente e passa a ser agente de mudança e transformação e a
criança espectadora passa a receber mensagens diretas e específicas para sua
realidade.
Com tudo isso, temos uma vasta gama de mensagens sendo passadas que
refletem ideais de uma sociedade contemporânea e, a partir das explicações vistas
anteriormente, é possível pensar nessa animação, apesar de original, como
criando uma nova fábula, própria de um novo tempo, mas certamente uma fábula.
A escolha dos personagens segue, entretanto, características já conhecidas,
formigas são trabalhadoras, característica já explorada em fábulas anteriores no
caso do gafanhoto temos um inseto preguiçoso que apenas se preocupa com
diversão e que precisa da formiga para lhe dar comida como representado na
fábula de Esopo.
Para a análise dos personagens, foram escolhidos os opostos: Flik e Hooper.
3.1.1 A Formiga revolucionária
Flik aparece aos 43 segundos da animação, logo após a aparição das
formigas em fila colhendo cada uma um grão, porém esta formiga aparece com um
protetor nos olhos, como de trabalhadores que trabalham em indústria, com uma
máquina presa ao seu corpo, que corta uma haste de grãos e tira mais de um grão
de uma só vez. Antes de prosseguir, interessante analisar a engenhoca do herói:
seu capacete é originado de uma semente preparada para isso, a máquina é feita
de gravetos, pedaços de grama que mantêm presos uns aos outros, pedra que gira
como motor, ou seja, não é uma máquina de humanos e, sim, uma máquina de
formigas, como reforçado ao longo da análise anterior.
110
Figura 47 - Invenção de Flik para colher mais grãos
Em relação a sua aparência, há um misto entre características de formiga e
outras específicas, para animação. Primeiramente, temos a questão da cor, na
natureza formigas são pretas, marrons ou avermelhadas, na animação elas são
azuis, cinzas ou rosas dependendo de seu sexo e idade, o que se faz necessário
para as relações que se estabelecem. Certamente essa foi a forma que os
animadores encontraram de transmitir tais características das formigas sem ter que
sistematicamente comunicá-las aos espectadores. O corpo de uma formiga é
dividido em três partes; cabeça, tórax e abdômen, sendo cabeça e abdômen as
partes que mais se sobressaem, exatamente como apresentado na animação,
entretanto as formigas na realidade apresentam seis patas e na animação apenas
quatro, o que pode estar diretamente ligado com questões práticas do desenho e
complexidade para reprodução, além de ser necessário dar movimento e utilidade
constante para mais um par de patas, porém com essa característica a formiga se
aproxima ligeiramente dos seres humanos no quesito físico, além de andar ereta
sobre duas patas.
As formigas da animação também possuem antenas, que no reino animal
servem para tatear e sentir odores, porém na animação não houve momento algum
em que ficou evidenciada a utilidade das antenas, sendo muito mais um elemento
para o design físico do personagem. A partir das características físicas, a categoria
“parcialmente antropomorfizado” é reforçada, pois há um hibridismo nas
características do inseto, que contribuem para a aproximação de características
humanas, mas ao mesmo tempo há características marcantes da espécie que
reafirmam os personagens como pertencentes às formigas. Apesar de não
entrarmos aqui em detalhes, o mesmo acontecerá com os demais personagens,
111
perderão algumas de suas características naturais, porém ainda podem ser
reconhecidos como membros da sua espécie.
Figura 48 - Flik e formiga real
Flik pertence a um formigueiro, mas ele é diferente, não consegue
simplesmente aceitar o que ouve, de que certas coisas sempre foram feitas
daquele jeito. Ele quer mudanças, quer revolucionar. Mas isso não é bem aceito
pela sociedade conservadora da qual faz parte. Outro fator que contribui para isso
é que Flik é muito desastrado, na primeira cena isso já fica estabelecido, onde,
após cortar a haste de grama e retirar os grãos sua máquina, arremessa a haste
para longe e nesse momento as hastes caem sobre a princesa. Flik então corre
para ajudar, e uma das formigas diz: “Ahh... é o Flik”, revelando que este tipo de
coisa pode acontecer constantemente. Então ele começa a falar sobre as
vantagens de sua produção de uma forma muito rápida e empolgada, o que revela
pontos de sua personalidade como ansiedade e hiperatividade. Ao que parece, a
única que gosta de Flik é a irmã mais nova da princesa Atta, a pequena Dot. Após
seu discurso, as formigas mais velhas do formigueiro se dirigem para ele e dizem
que, se deseja ajudar, deve largar a geringonça e colher os grãos como uma
formiga. Como se pelo fato de poder fazer algo de forma diferente, o
descaracterizasse como formiga.
Há uma reprodução clara de uma sociedade a partir do filme, onde ficam
estabelecidas as regras sociais, as relações de poder e fortemente o preconceito
existente. Apesar do mundo ser de insetos e formigas, os problemas e situações
do filme certamente são reflexos de uma sociedade do homem, o que reforça ainda
mais o caráter de fábula da animação, cheia de mensagens, do tipo: “não devemos
112
julgar o diferente, pois este pode ser melhor”, “não é porque algo sempre foi feito
de uma determinada maneira que não possa ser mudado”, entre inúmeras outras.
A escolha pelas formigas, além de sua característica já conhecida de
trabalhadoras, há também a questão de ser fato conhecido que as formigas se
organizam em sociedade, onde vários membros da espécie vivem juntos no
mesmo ambiente (o formigueiro), onde existe divisão de tarefas e papéis.
3.1.2 Gafanhoto inteligente
Hopper é o líder de uma comunidade de gafanhotos que exploram as
formigas para obterem alimento. No momento que chega no formigueiro para
reivindicar sua comida, é possível ter clara percepção em relação às características
desse personagem e de seu bando. Os gafanhotos invadem o formigueiro e entram
de forma bem característica a insetos, andando sob suas seis patas de forma
rápida e emitindo um ruído característico. Nesse momento fica clara a antítese em
relação às formigas, são desordeiros, entram gritando, voando sem organização, a
música de fundo não é mais serena e, sim, contribui para o tom caótico da cena,
que reflete o caos da desorganização dessa sociedade de antagonistas.
Figura 49 - Posição dos gafanhotos ao invadirem o formigueiro
Em relação à aparência de Hooper, os detalhes com que ele foi produzido,
chamam a atenção em oposição à simplicidade do design das formigas, ele
113
apresenta manchas em seu corpo e textura diferenciada para cada parte (pernas,
tórax, rosto, casco etc) dando grande realismo ao personagem. A parte traseira de
seu corpo, de onde saem as asas, também é cuidadosamente apresentada, saindo
por baixo da carapaça rígida típica da espécie, deixando o inseto ainda mais
próximo do representante natural. As pernas traseiras de um gafanhoto são muito
maiores, e os personagens da animação seguem exatamente essa característica e
as utilizam para dar impulso para voar, assim como ocorre na natureza.
Apresentam antenas que são úteis para cheirar outros animais e alimentos. Na
animação é colocada uma cena na qual fica evidente que Hopper utiliza tal função
de sua antena, quando passa antena pelo rosto da princesa Atta e constata que ela
não tem “cheiro de rainha”. Entretanto sua cabeça é um pouco mais arredondada
que o da espécie na realidade e seus olhos estão posicionados na parte frontal e
não lateral como podemos verificar na figura. Na animação os gafanhotos
apresentam dentes e, apesar de andarem sobre as seis patas em alguns
momentos, seus movimentos normalmente ocorrem apenas com os personagens
eretos sobre duas patas.
Figura 50 - Detalhes do gafanhoto Hopper em paralelo com um gafanhoto real.
114
Apesar de algumas características discrepantes com o inseto na natureza,
Hopper respeita muito bem a ideia geral das características de um gafanhoto.
Já na primeira cena em que Hopper aparece, é perceptível o cuidado para
que seja implicada a grandiosidade e força características ao líder dos gafanhotos
a câmera o filma de baixo para cima contribuindo para a sensação de grandeza do
personagem, além do que ele é filmado em primeiro plano em grande parte das
cenas, destacando os detalhes de seu rosto e corpo tão próximos da realidade de
um inseto.
No momento em que entra no formigueiro, as formigas fogem dele sem que
ele tenha que falar nada, apenas sua presença impõe o medo necessário para as
formigas. Certamente sua aparência foi desenvolvida cuidadosamente para criar
esse efeito, sem que para isso tenha se afastado das características reais do
inseto. Sua primeira frase é em tom forte e gritado questionando sobre sua comida,
o que faz com que todas as formigas se encolham de medo. Quando a princesa
questiona se a comida não está na pedra da oferenda, Hopper lhe pergunta se ela
o está chamando de otário, mostrando certamente sua firmeza. Na continuação de
sua resposta, o gafanhoto mostra a complexidade de seu raciocínio e preconceito,
dizendo à princesa que, caso a comida estivesse lá no alto ele não desceria ao
nível dela para buscar.
Apesar de ser o antagonista do filme, Hopper passa grandes mensagens, e
a primeira dela é em relação à liderança já mencionada anteriormente, o que
reforça sua posição de líder. Fala também que no mundo “é inseto comendo
inseto”, grande reflexo da sociedade atual onde as pessoas se tornam cada vez
mais individualistas e egoístas no que diz respeito à busca por poder e dinheiro. O
que novamente cria para o espectador o paralelo entre a sociedade animal que
está sendo apresentada, mas que reflete na verdade a sociedade em que vivemos.
Talvez alguns pontos apresentados por Hopper passem despercebidos pela
percepção nas crianças, que ainda não desenvolveram um pensamento crítico
sobre a sociedade, mas a mensagem ainda assim é passada e pode despertar
identificação de crianças, mas principalmente nos adultos que podem estabelecer
um paralelo imediato com sua realidade. O personagem está o tempo todo sério e
não apresenta nem um momento de trapalhada ou como comic relief que têm sido
um padrão para os animais até o momento analisados.
115
Os movimentos do personagem são reforçados pela movimentação de suas
quatro patas dianteiras, então, ao falar e gesticular, ao invés de apenas duas patas
acompanhando sua fala temos quatro, cuidadosamente ilustrando o que ele está
dizendo.
No momento em que Hopper percebe um pequeno movimento das formigas
se rebelarem quanto às regras impostas, ele fica mais duro e impõe como meta o
dobro de quantidade de comida.
Na cena posterior, em que é apresentado ao espectador o reduto dos
gafanhotos, é possível notar que os gafanhotos pertenceriam a uma cultura latina,
o que pode ser interpretado como certo preconceito por parte dos produtores da
animação, pois os exploradores e aproveitadores seriam os latinos, ou seja, é essa
raça que tira comida da sociedade modelo (americana), quando na realidade o que
ocorre é o contrário, mas não pode ser deixado de lado a origem do estúdio. Mas
apesar da força dos gafanhotos as formigas são capazes de derrotá-los (e
permanece intocada a soberania americana). Hopper passa uma nova mensagem
aos gafanhotos explicando que mesmo mais fracas as formigas estão em maior
quantidade e que caso elas percebam isso poderão derrotá-los, o que de fato
acontece.
Outro ponto importante no momento em que vemos a morada dos
gafanhotos é o quanto eles apenas realizam tarefas de lazer, como andar em algo
que representa um esqui aquático, tocam música, dança, bebem e recebem
massagem. Ou seja, temos assim um paralelo muito grande com a fábula
mencionada anteriormente, onde a cigarra (aqui representada pelo gafanhoto,
inseto com formato bem parecido inclusive com a cigarra) se diverte enquanto a
formiga trabalha e depois estes precisam da comida das formigas para
sobreviverem.
Hopper é um personagem inteligente capaz de passar importantes
mensagens sobre sociedade, apesar de utilizar sua capacidade para explorar
aqueles que se acreditavam mais fracos, como muitos governantes são capazes
de fazer, ainda assim passa valores aos espectadores. É um personagem
complexo e cheio de detalhes que não persegue o herói diretamente porém, causa
impacto a uma comunidade inteira.
116
3.2 O Rei Leão
A animação de 1994 faz parte de um novo momento da Disney e sua busca
pela criação de novos clássicos e um restabelecimento no mercado de longa-
metragem que apresentou uma queda desde a morte de Disney. A animação conta
a história de um pequeno leão que perde seu pai a partir de uma armação de seu
tio que intenta tomar o trono e de fato o faz. O Rei Leão é uma história original que
tem como inspiração a peça Hamlet, de Shakespeare, na qual o rei da Dinamarca
é morto por seu irmão que coloca veneno em seu ouvido. Após a morte do rei, o
traidor toma seu lugar no trono, entretanto o fantasma do rei assassinado aparece
para seu filho contando a verdade e pedindo por vingança. Hamlet mata o tio e
assume o trono. De fato é possível identificar uma linha semelhante da trama:
O projeto estivera rodando o estúdio desde 1989, quando a equipe
da Feature Animation expressou interesse em fazer outro conto
alegórico com um elenco todo composto de animais, na tradição de
Bambi. O pessoal terminou aterrissando em um cenário africano
com os leões como protagonistas.
Quando entrei, me descreveram o projeto como Bambi na África e
um pequeno Hamlet no meio... era um Bamblet - Lembra a
correteirista Irene Macchi ( SURRELL, 2009, p. 145).
A história é conduzida quase em sua totalidade a partir do protagonista,
Simba, muito parecido com a estrutura vista em Pinóquio, mas ainda assim existem
personagens interessantes que suportam e acompanham a trama:
- Simba príncipe da selva, que está sendo preparado para ser rei, assume a esfera
de herói.
- Mufasa pai de Simba e rei da selva, ele passa noções importantes sobre valores
para seu filho preparando-o para seu futuro. Nesse momento, pode ser visto como
auxiliar/ adjuvante que prepara e auxilia o herói, porém no momento em que
aparece como espírito pode ser interpretado como mandante/ destinador onde
relembra o filho de suas responsabilidades e, a partir disso, Simba decide lutar pelo
seu reino.
117
- Sarabi é mãe de Simba e esposa de Mufasa. Suas esferas de ação são bem
singelas ao longo da história. Pode ser reconhecida como auxiliar/adjuvante na
batalha final com as hienas, e, como destinatário da recuperação do reino por seu
filho, o que a livrará de uma vida de servidão a Scar.
- Zazu é o mordomo de Mufasa e serve como auxiliar/ adjuvante em muitos
momentos em que Simba está em perigo, porém seu grande destaque é como
comic relief, sempre amenizando situações e sendo enganado pelo filho travesso
do rei.
- Nala melhor amiga de Simba na infância, porém depois assume a esfera de ação
da princesa auxiliando Simba na transposição da tarefa difícil que é se reconhecer
como rei e responsável pela vida dos animais que estão sujeitos aos caprichos e
maldade de Scar.
- Timão, um suricate boa vida, que não gosta de se preocupar com nada, junto com
seu amigo Pumba ensinam a filosofia Hakuna Matata para Simba e milhões de
espectadores no mundo todo. Pode ser enquadrado na esfera de auxiliar /
adjuvante uma vez que auxilia Simba a se recuperar da morte do pai, acolhe-o em
sua terra e posteriormente luta contra as hienas junto com Simba e os leões.
Grande responsável pela esfera do comic relief.
- Pumba um porco do mato companheiro inseparável de Timão, muito sensível e
engraçado, acompanha as mesmas esferas descritas para o personagem anterior.
- Rafiki é um babuíno sábio e religioso, inclusive que batiza Simba, revelando uma
tradição bem humana em determinado momento do filme. Ocupa a esfera de
auxiliar / adjuvante bem como de comic relief. Além disso, pode ser encarado como
doador, pois ele que coloca Simba em contato com o espírito de Mufasa.
- Scar irmão de Mufasa, responsável pelo assassinato deste para assumir o trono,
ocupa a esfera de antagonista/ oponente, inclusive, interessante notar que retoma
uma tendência clássica para representação do antagonista nos westerns, onde o
bandido normalmente usa chapéu preto, Scar, ao contrário dos leões da realidade
e dos demais da animação, apresenta uma juba preta, o que já esteticamente
revela algo sobre sua personalidade.
- As hienas Eddie, Banzay e Chanzie são ajudantes de Scar, ocupando dessa
forma a esfera de antagonistas. Interessante que Eddie é uma hiena tão burra que
acaba por ocupar também a função de comic relief.
118
No que diz respeito às esferas de ação ocupadas pelas personagens, é
possível perceber um nível intermediário de complexidade. Não temos grandes
variações de esfera de ação ou de personagens ocupando mais de uma esfera
como ocorreu em Pinóquio, mas não temos uma simplificação extrema como no
caso de Robin Hood.
Rei leão não se enquadra em uma estrutura de Conto de Fada nem de
Conto Maravilhoso, mas apresenta uma trajetória existencial, e, como apontado
anteriormente, por se tratar de uma ficção pode ser analisado a partir da base
morfológica de contos maravilhosos apresentados por Propp.
Como trecho de introdução há a música “Ciclo Sem Fim”, onde, segundo
Surrell (2009, p. 91), há o resumo da história e apresentação dos personagens,
através do fundo musical. Esta abertura tem duração de 4 minutos e 30. Em
seguida há uma cena na qual o personagem Scar é apresentado e onde já fica
nítida sua insatisfação em relação ao reinado do irmão e nascimento do sobrinho.
Scar é um leão magro e sarcástico, com expressões faciais que revelam muito de
seu sentimento, bem como as expressões de Mufasa, ambos aparentam tal como
leões, porém suas expressões de raiva e felicidade os distanciam do que
encontramos nos animais na natureza, porém ainda assim podem ser
considerados como pertencentes à classificação não antropomorfizados.
Figura 51 - Mufasa com expressão de raiva e Scar com desdém ao que está lhe sendo dito
No que diz respeito à morfologia dos contos, não é apresentada a ação em
que um membro da família sai de casa, iniciando com:
II proibição - a cena se inicia com Simba tentando acordar o pai, neste momento
temos uma visão da caverna em que dormem os leões, de forma selvagem e sem
119
nenhum elemento que descaracterize o habitat selvagem do qual fazem parte.
Então Mufasa apresenta o reino a seu filho, com uma visão em plano geral da
Savana africana, caracterizando muito bem o ambiente em que se passa o filme,
com as tradicionais cores amareladas, comuns de serem vistas na representação
deste ambiente. Então o rei indica a seu filho uma área à qual não têm permissão
para ir, uma vez que esta fica fora dos domínios do reino. Nesse momento,
algumas mensagens sobre equilíbrio da vida são passadas.
Então, uma pequena inversão na ordem das ações apresentadas por Propp, temos:
IV - interrogatório - Scar busca saber se a proibição foi imposta a Simba, de forma
sutil e sem revelar suas reais intenções.
V - informação - Simba revela que o pai lhe proibiu de ir além dos domínios do
reino.
VI - ardil – Scar, fingindo ser sem querer, revela a Simba o que há no local que lhe
foi proibido ir, sabendo da curiosidade e ousadia do sobrinho imagina que com
essa informação o sobrinho realize a transgressão.
VII - cúmplice - Simba não se dá conta das intenções do tio e decide ir ao local
proibido.
III transgressão - após um belo número musical que Simba cria para despistar
Zazu que está responsável por vigiá-lo, ele e sua amiga Nala chegam finalmente
ao ambiente que havia sido proibido, o cemitério de elefantes. Porém Mufasa
chega e não permite que o dano seja causado.
VIII - dano - apesar de não haver um dano físico, é instaurado nesse momento um
dano psíquico em Simba que se sente envergonhado perante o pai e com desejo
de reparação de seu erro.
Então há repetição das ações VI, VII onde, Scar pede a Simba que aguarde
em determinado local, revelando que Mufasa tem uma surpresa para ele. Em
função do dano causado anteriormente e sem saber do envolvimento do tio
anteriormente, Simba decide não transgredir uma falsa ordem e fica a esperar o pai.
Novamente temos a ação de dano, porém desta vez irreversível, com a morte de
Mufasa. Scar e suas cúmplices estouram uma manada de gnus e Simba está
prestes a ser pisoteado, mas, graças a Scar, Mufasa chega ao local, com isso o
antagonista intenta a morte de ambos os leões da família real, o que o colocaria no
trono, entretanto apenas Mufasa morre.
120
VIII carência e IX mediação - Simba então se dá conta da morte do pai e com isso
Scar se aproveita e diz ao sobrinho que ele deveria fugir, pois todos pensarão que
a culpa pela morte do rei foi dele. Com isso, nova carência é imposta, porém agora
a todos os animais, pois com Scar como rei o reino entra em profunda
degeneração.
Assim Simba parte (XI) não como reação em busca de reparar a carência,
como na estrutura proposta de morfologia, mas para se esconder da vergonha do
dano causado. Então Simba se encontra em um ambiente distante onde conhece
Timão e Pumba, que dirão a ele que é ´importante levar a vida mais leve e deixar
os problemas para traz, ou seja, Hakuna Matata. É com essa filosofia e na
companhia desses amigos que Simba cresce.
Quando Simba já é um leão formado, Nala, que está em busca de comida,
chega na mata em que se encontra Simba. Eles conversam, se apaixonam, mas
Simba não concorda em ir com ela clamar pelo seu reino. Então temos a ação XII
(primeira ação do doador) onde Rafiki começa a irritar Simba, brincar com ele,
bater em sua cabeça, o que pode ser encarado como preparo para receber o
auxiliar. Simba reage negativamente às ações de Rafiki, mas ainda assim o segue
então podemos interpretar seu contato com o espírito do pai como a recepção do
auxiliar mágico (XIV - recepção do objeto mágico), ou seja, é o contato com esse
espírito que desperta as forças adormecidas de Simba. Nesse momento seria
possível categorizar o babuíno como parcialmente humanizado, pois carrega um
cajado e o manuseia de forma incomum para animais, além disso em determinado
momento se coloca a meditar sentado sobre uma pedra, além disso ele claramente
é praticante de algumas religiões, o que é incomum para os animais, então apesar
da classificação geral dos animais do filme, esse se destoa da classificação.
XVI - combate - Simba vai então ao seu reino e percebe o quanto as coisas
estão mudadas e deterioradas, o que fica bem marcado pela cor cinzenta e
ausência de plantas. Nesse momenta enfrenta Scar e o fantasma da culpa pela
morte de seu pai, porém no momento que lhe é revelado que não teve culpa pela
morte do pai, fica ainda mais forte e derrota o tio (XVIII - vitória). Com isso o
equilíbrio do reino volta a seu equilíbrio inicial (XIX - reparação), então há um salto
para a ação XXXI - casamento, quando Simba sobe ao trono e se casa com Nala.
121
Figura 52 - Oposição entre reinado de Scar e reparação após vitória de Simba
O filme segue uma certa linearidade de ações e se encaixa bem em
algumas esferas da morfologia apresentada por Propp, além de apresentar
algumas mensagens importantes que aproximam a animação da fábula, como
aconteceu em Vida de Inseto.
3.2.1 O desenvolvimento de um leão
Segundo relato de Surrell (2009), o objetivo no desenvolvimento de O Rei
Leão era a criação de uma história sobre o amadurecimento. Simba recebe lições e
valores importantes de seu pai que o ajudam no desenvolvimento de sua
personalidade. São lições não apenas para o pequeno leão, mas para todas as
crianças que precisam perceber que todos os elementos do mundo estão
interligados e relacionados entre si. Ele passa por sérios problemas e foge, porém
é relembrado de que deve cumprir com suas responsabilidades e assumir seu
papel no ciclo da vida. Essas são mensagens importantes e muito bem passadas
através dos animais agindo como animais, não foi necessário humanizá-los, todos
os acontecimentos poderiam ser facilmente encontrados no reino animal. Lógico
que as características e sentimentos são característicos dos seres humanos, mas
nada que não convença bem quando colocado para um animal, como podemos ver
a partir do personagem Simba.
A aparência de Simba, seja quando criança seja quando adulto, é muito
próxima de um leão na realidade. Anda sobre quatro patas, possui o pelo
amarelado, dentes afiados, um rabo que se mexe involuntariamente, olhos
arredondados com contorno preto, quando adulto apresenta uma juba com um
122
amarelo mais escuro em volta de seu pescoço. Ou sej,a em termos físicos a
semelhança com o mundo natural é grande.
Figura 53 - Simba X filhote de leão
O que aproxima muito Simba de humanos são suas expressões faciais e
sentimentos, porém isso não é suficiente para mudá-lo de categoria no que diz
respeito ao nível de antropomorfização. Ele ocupa bem a descrição de animal não
antropomorfizado, ele se enquadra na descrição de Surrell (2009,p. 53) que diz que
muitas vezes os animais de Disney são naturais e não evidentemente
antropomorfizados, e que muitas vezes parecem animais selvagens de verdade,
em cenários naturais. Ainda reforça que isso contribui para que o público acredite
que aquele animal é tão real quanto eles próprios, ou seja, a identificação nesse
caso se dá pela aproximação com a realidade e não com a humanidade. Os
produtores optaram claramente pela utilização de animais mais próximos da
realidade, pois isso dá um caráter atemporal para história e deixa o filme mais
próximo dos contos da carochinha e fábulas de Esopo (SURRELL, 2009, p. 54) ou
seja, a mensagem é passada, mas de forma alegórica.
A cena em que Simba está com seu pai conhecendo o reino e se distrai,
tentando caçar uma marmota, é marcada pela natureza selvagem do leão, onde
seu instinto o impele a caçar, seu pai o ajuda reforçando aqui a ligação e a
amizade entre pai e filho.
Na sequencia há a cena em que Simba e Nala tentam despistar Zazu e para
isso contam com a ajuda de outros animais selvagens que começam a dançar
enquanto Simba canta. Mas ainda assim, não foge do mundo selvagem, seria mais
123
uma pausa musical do que uma caracterização como ser humano. Seus
movimentos continuam restritos aos de um leão.
Em seguida, Simba chega ao cemitério de elefantes, local proibido, sua
expressão varia entre surpresa e medo, o que deixa claro seus sentimentos sem
que tenha que falar, mas ainda assim se comporta como um leão. Outra ação que
chama atenção é a risada. Simba, enquanto conversa com Nala, em alguns
momentos ri, não apenas com expressão facial, mas emitindo som de risada que
também não é comum a um leão, o que serve para reforçar um sentimento que
está sendo expressado.
Simba e Nala são cercados por um bando de hienas e começam a fugir. No
momento da briga, o que ocorre é um arranhão de Simba em uma das hienas, até
que Mufasa chega para salvá-los. Os comportamentos dos leões são sempre muito
cuidadosos no que diz respeito às limitações animais quando correm e precisam
subir por pedras, simplesmente não conseguem, pois andam sobre quatro patas e
não possuem mãos para se segurar em nada porém, as falas e diálogos são
complexos mostrando uma configuração complexa desses seres, como quando
após a desobediência do filho Mufasa lhe dá lições sobre responsabilidade e
medos.
Em oposição às cenas em que Simba recebe lições de responsabilidade no
momento que vai viver com Timão e Pumba, é como se tudo o que aprenderá
precisasse ser descartado, o que é uma nova lição, pois demonstra que em alguns
momentos é preciso relaxar, e deixar os problemas para trás. É dessa forma que
ele cresce inclusive. Como a cena é permeada de um fundo musical, Simba está
andando de forma mais relaxada, ritmada à batida da música. Após essa situação,
aparecem o leão e seus amigos deitados vendo as estrelas e discutindo a origem
das mesmas. Essa configuração o aproxima de seres humanos, mais pelo teor da
conversa do que pela sua posição.
124
Figura 54 - Simba e seus amigos olhando as estrelas
O personagem enquanto imagem é um leão puro, enquanto ao que é visto
se comportando destoa de um leão nas expressões faciais, porém o raciocínio e
forma de encarar o mundo estão ligados a questões humanas complexas, tal como
ocorre nas fábulas.
Como já foi apontado anteriormente, não existem fábulas que explorem
muitas características do leão. Assim podemos pensar que a opção pelo animal
não se deu por algum traço específico de sua personalidade, mas sim para compor
um cenário já escolhido, a África, e uma vez que o leão já é considerado rei seria
coerente colocá-lo na história como tal, porém sem grandes mensagens
complementares como suporte a essa escolha.
Com as análises realizadas neste capítulo, é possível notar a importância
dada para a comunidade e as relações, as quais geram as mensagens principais
da animação. Não mais apenas as características do animal são usadas para
passar mensagens, mas da estrutura de sociedade que é construída, o que fica
mais evidente em Vida de Inseto, mas também pode ser percebido em O Rei Leão.
A proximidade dos animais com a natureza não diminuem a aproximação
com os seres humanos, pois a todo momento é possível identificar como uma
determinada situação vivida na animação pelos animais ocorre na realidade
humana, e assim mesmo com animais não antropomorfizados temos um grande
paralelo com seres humanos.
125
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A fim de identificar um padrão para a utilização de personagens animais nas
animações da Disney e identificar sua forma de representação, principalmente no
que diz respeito ao antropomorfismo aplicado, foi feito um vasto percurso por
diversas animações e análises mais profundas em quatro dessas animações para
poder compreender melhor tal utilização.
Dessa forma a conclusão possível a partir da análise é que a representação
do personagem animal humanizado se dá de forma a facilitar funções narrativas
aplicadas ao personagem. Mas os personagens precisam ser de tal forma
construídos para passar um nível de verdade, onde apesar do antropomorfismo, há
o cuidado em preservar características importantes humanas e do animal em
questão, construindo o personagem de forma dual, o que acaba por necessitar
cenas específicas de construção do personagem, para posicionar o espectador
sobre o que esperar desse ser que não faz parte de seu repertório (não
desconsiderando que em alguns casos isso pode ser realizado de forma mais
simples em função da repetição de um personagem já conhecido, onde se espera
que este já seja familiar ao espectador). É fato que a construção do personagem,
seja ele da espécie que for, é sempre algo presente nas narrativas, mas no caso
mencionado, como foi possível verificar essa construção, precisa ser feita
reforçando a cada momento as características que estão sendo tomadas de cada
espécie, além das características pessoais do personagem.
Outra característica própria da Disney presente, em Pinóquio, é a utilização
das músicas como elemento narrativo, que complementam a história e até mesmo
contribuem para a efabulação, impondo ritmo e conteúdo à narração, dinamizando-
a de forma a prender a atenção do público. Mas para a análise aqui proposta traz
uma novidade interessante do que foi visto na literatura é possível assistir aos
animais humanizados, não apenas falando, mas cantando e dançando, o que os
aproxima ainda mais dos seres humanos, não tendo sido colocados apenas por
questões de personalidade e virtude, mas para animar de fato, caso contrário não
precisariam fazer parte de tal número musical. Isto reforça ainda mais a presença
126
do maravilhoso mesmo quando a história se aproxima de características do
realismo e racionalismo.
Na maioria das animações o questionamento da realidade está muito
presente, pois, como já foi dito anteriormente, o que no mundo natural não tem vida
passa a ter em um filme de animação, então somos levados a passear entre o real
e o irreal com muita naturalidade, sendo difícil identificar quando algo na animação
é impossível, se é que existe o impossível nesse gênero. Entretanto esse
questionamento dificilmente é feito pelos próprios personagens de uma animação.
Por esse motivo, logo no início desta pesquisa foi apontado que as características
de animais em animações são próprias. Mesmo que comparemos ao mundo real
de animais ou humanos, ainda assim nunca se encaixarão com exatidão, pois
trata-se de uma linguagem específica desenvolvida para uma forma específica de
comunicação: a animação.
As variáveis possíveis para a utilização de animais em animações são tantas
que não existe uma tendência, mas sim formas diversas de utilização em função da
narrativa. Quando tratamos de animais completamente antropomorfizados temos a
união de características humanas e preservação de características de animais,
principalmente no que diz respeito à parte física, pois o comportamento em si é
dominado pelos referenciais humanos. Podemos pensar que as características
comportamentais de animais ficam apenas no nível simbólico, do “não dito”, mas
“percebido”, o personagem é carregado de uma mensagem prévia baseada em um
conhecimento geral das características de determinado animal. E, assim, sem
muito esforço, o personagem recebe elementos em sua personalidade sem que o
animador tenha que fazer grandes esforços a não ser escolher cuidadosamente
seu personagem.
A partir das análises realizadas foi possível perceber a preservação destas
características pré-existentes de conhecimento comum, no que diz respeito à
representação de animais. Para esses casos é possível pensar a identificação
ocorrendo pela aproximação com a “humanidade”. O espectador espera dos
animais comportamentos que ele mesmo emite e assim ocorre a identificação.
No lado oposto, quando tratamos de animais não antropomorfizados, é
possível perceber o cuidado para que os comportamentos dos personagens
fossem compatíveis, ou muito próximos, a comportamentos reais dos personagens,
fugindo disso apenas sutilmente. Inclusive porque para esses casos a identificação
127
deverá ocorrer pela similaridade com o mundo natural, o mundo no qual o
espectador vive. Ele precisa saber o que esperar de um animal, por isso este não
pode romper demasiadamente com a realidade. No caso de animais parcialmente
antropomorfizados temos duas vertentes, uma na qual as características animais
se sobressaem sobre as humanas e apenas alguns comportamentos humanos são
apresentados, na maioria das vezes para reforçar um comic relief, porém os mais
interessantes são aqueles onde as características dos animais são preservadas e
uma sociedade, próxima à organização da sociedade humana, é apresentada.
Nesse caso a metáfora impera, pois a crítica ou mensagem é suavizada pela
leveza de ser representada por animais e não seres humanos.
Sem dúvida, além de seguir uma linguagem de animação já estabelecida, na
qual a representação de animais já era comum, Disney trouxe uma maior
complexidade e variedade para tal representação, assim sendo possível entreter e
ensinar ao mesmo tempo, criando personagens que por vezes são esquecidos
como animais e, por outras, é justamente sua animalidade que se torna
encantadora.
128
BIBLIOGRAFIA
Aumont, J. A Estética do Filme. Campinas: Papirus, 1995. Baum, W.M. Compreender o Behaviorismo – Comportamento, Cultura e Evolução. Porto Alegre: Artmed, 2006. Beck, J. (org) Animation Art: from pencil to pixel, the history of cartoon, anime & cgi. Edição geral de Jerry Beck. New York : Harper Design International, 2004. Bendazzi, G. Cartoons: One hundred years of cinema animaton. Indiana: Indiana University Press, 1994. Bernardet, J.C. O que é cinema. São Paulo:Brasiliense, 2000. Bettelheim, B. A Psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. Bock, A. M. B. Furtado, O. Teixeira M. L. Psicologias. Uma introdução ao estudo de psicologia. São Paulo: Saraiva, 1988. Bruzzo, C. (Org.). Coletânea lições com o cinema: animação. São Paulo: FDE, v.4, 1996. CARRIERE, J. C. A Linguagem Secreta do Cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. Cascudo, L.C. Dicionário do folclore brasileiro. 10ª ed. São Paulo: Global, 2001. COELHO, N. N. Literatura infantil: teoria, analise, didática. São Paulo: Moderna, 2000. __________ O Conto de fadas. 2. ed. São Paulo: Ática, 1987. Cruz, D. S. "A Comédia Muda". Cinemin 25: pp. 28–31. Rio de Janeiro: Ebal, 1986. D’Elia, C. Animação, técnica e expressão. In: Bruzzo, C. (Org.). Coletânea lições com o cinema: animação. São Paulo: FDE, v.4, 1996. Denis, S. O Cinema de Animação. Lisboa: Armand Colin, 2007. Fossatti, C.L. Cinema de Animação. Um diálogo ético no mundo encantado das histórias infantis. Porto Alegre: editora Sulina, 2011. Halas, J. e Manvell, R. A Técnica da Animação Cinematográfica. Rio de Janeiro: Embrafilme, 1976. Khéde, S.S. Personagens da Literatura Infanto-Juvenil. São Paulo: Editora Ática, 1990.
129
Kellner, D. A cultura da Mídia. Bauru: Edusc, 2001. Lucena, A. J. Arte da Animação: técnica e estética através da história. São Paulo: Editora Senac, 2ª edição, 2005. MCKEE, R. Story: Substância, estrutura, estilo e os princípios da escrita de roteiros. Curitiba: Arte e Letra, 2006. Mutran, A. A Contribuição de Walt Disney para o desenvolvimento do cinema de animação – Uma análise histórica das evoluções técnicas adotadas nos desenhos animados. São Paulo: Universidade Anhembi Morumbi, 2010. 114p Dissertação de mestrado. NAZARIO, Luiz. A animação americana. In: Bruzzo, C. (org.). Coletânia lições com cinema: animação. São Paulo: FDE, v.4, 13-35, 1996. Novaes, N. C. Literatura infantil. São Paulo: Moderna, 1987. Palhares, M.S.; Martinez, C. M. S. A Educação infantil: uma questão para o dabate. In: Faria, A. L. G; Palhares, M.S. (org). Educação Infantil Pós-LDB: rumos e desafios. São Paulo: Autores associados, 1997. Propp, V. I. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense- Universitária, 1984. Reis, A. V. Dicionário de termos comportamentais [online]. Disponível na Internet via WWW. URL: http://olharbeheca.blogspot.com/2007/09/tabela-de-siglas-e-notaes.html. Arquivo capturado em 07 de Junho de 2010. Skinner, B.F. Ciência e Comportamento Humano. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Solomon, C. Enchanted Drawings - The History of animation. New York: Wings Books, 1989. Sumerland, Margot. O valor terapêutico de contar história para crianças, pelas crianças. São Paulo: Cutrix, 2005. Surrell, J. Os Segredos dos roteiros da Disney: Dicas e técnicas para levar a magia a todos os seus textos. São Paulo: Panda Books 2009. Tassara, M. Das pinturas rupestres ao computador: uma mini-história do cinema de animação. In: Bruzzo, C. (Org.). Coletânea lições com o cinema: animação. São Paulo: FDE, v.4, 13-35, 1996. Todorov, T. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1981. Tonin, J. O conto (de um imaginário que) não pára. In: XXI Encontro da Compós, na Universidade Federal de Juiz de Fora, 2012.
130
Vieira, T.C. O potencial educacional do cinema de animação: três experiências na sala de aula. Campinas: PUC – Campinas, 2008. 182p Dissertação de mestrado. http://www.ecologiaonline.com/leao-nome-cientifico-panthera-leo/ acesso em 09.09.2012
131
ANEXOS
As linhas selecionadas demonstram animações que não foram incluídas nos
objetos selecionados para análise, por se tratarem de seqüência de animações
anteriores, repetição de personagens ou animações que não foram localizadas
para ser realizada a análise.
Tabela 4 - Lista de animações de Longa Metragem da Walt Disney
ANO TÍTULO NO BRASIL
DIRETOR
MOTIVO DA NÃO INCLUSÃO
1 1937
Branca de Neve e os Sete Anões
William Cottrell
David Hand
Wilfred Jackson
Larry Morey
Perce Pearce
Ben Sharpsteen
2 1940
Pinóquio
Norman Ferguson
T. Hee
Wilfred Jackson
Jack Kinney
Hamilton Luske
Bill Roberts
Ben Sharpsteen
1940 Fantasia Coletânea de curtas
3 1941
Dumbo
Samuel Armstrong
Norman Ferguson
Wilfred Jackson
Jack Kinney
Bill Roberts
Ben Sharpsteen
John Elliotte
4 1942
Bambi
James Algar
Samuel Armstrong
David Hand
Graham Heid
Bill Roberts
132
Paul Satterfield
Norman Wright
1943 Alô, amigos Coletânea de curtas
1945 Você já foi à Bahia? Coletânea de curtas
1946 Música, Maestro! Coletânea de curtas
1947 Como é Bom se Divertir Coletânea de curtas
1948 Tempo de Melodia Coletânea de curtas
1949 As Aventuras de Ichabod e Sr. Sapo
Coletânea de curtas
5 1950
Cinderela
James Algar
Samuel Armstrong
David Hand
Graham Heid
Bill Roberts
Paul Satterfield
Norman Wright
6 1951
Alice no País das Maravilhas
Clyde Geronimi
Wilfred Jackson
Hamilton Luske
7 1953
Peter Pan
Clyde Geronimi
Wilfred Jackson
Hamilton Luske
Jack Kinney
8 1955
A dama e o vagabundo
Clyde Geronimi
Wilfred Jackson
Hamilton Luske
9 1959 A Bela Adormecida Clyde Geronimi
10 1967 Mogli - O menino lobo Wolfgang Reitherman
11 1963 A Espada era a Lei Wolfgang Reitherman
12 1961
101 dálmatas
Clyde Geronimi
Hamilton Luske
Wolfgang
Reitherman
13 1970 Aristogatas Wolfgang Reitherman
14 1973 Robin Hood Wolfgang Reitherman
1977 Puff - O ursinho guloso Coletânea de curtas
15 1977 Bernardo e Bianca John Lounsbery
133
Wolfgang
Reitherman
Art Stevens
16 1981
O Cão e a Raposa
Ted Berman
Richard Rich
Art Stevens
1983 Natal do Mickey
17 1985 O Caldeirão Mágico
Ted Berman
Richard Rich
18 1986
As Peripécias do Ratinho Detetive
Ron Clements
Burny Mattinson
David Michener
John Musker
19 1988 Oliver e sua Turma George Scribner
20 1989 A Pequena Sereia
Ron Clements
John Musker
21 1990
DuckTales, O Filme: O Tesouro da Lâmpada Perdida
Bob Hathcock
1990 Bernardo e Bianca na Terra dos Cangurus
Sequencia de um filme já incluso na listagem
22 1991 A Bela e a Fera
Gary Trousdale
Kirk Wise
23 1992 Aladdin
Ron Clements
John Musker
24 1994 O Rei Leão
Roger Allers
Rob Minkoff
25 1995 Pateta - O Filme Kevin Lima
26 1995 Pocahontas
Mike Gabriel
Eric Goldberg
27 1995 Toy Story - Um Mundo de Aventuras
John Lasseter
28 1996 O Corcunda de Notre Dame
Gary Trousdale
Kirk Wise
29 1997 Hércules
Ron Clements
John Musker
30 1998 Mulan
Tony Bancroft
Barry Cook
31 1998 Vida de Inseto
John Lasseter, Andrew
Stanton
1998 O Rei Leão 2 Sequencia de um filme já
134
incluso na listagem
32 1999 Doug - O filme Maurice Joyce
33 1999 Tarzan Chris Buck, Kevin Lima
1999 Toy Story 2 Sequencia de um filme já
incluso na listagem
1999 Fantasia 2000 Coletânea de curtas
34 2000 O Filme do Tigrão Jun Falkenstein
35 2000 Dinossauro
Eric Leighton
Ralph Zondag
36 2000 A nova onda do imperador Mark Dindal
37 2001 Hora do Recreio Chuck Sheetz
38 2001 Atlantis - O Reino Perdido
Gary Trousdale
Kirk Wise
39 2001
Monstros S. A.
Pete Docter
David Silverman
Lee Unkrich
2001 A Dama e o vagabundo 2 Sequencia de um filme já
incluso na listagem
2001 O Natal mágico do Mickey Coletânea de curtas
2002 Peter Pan - De Volta à Terra do Nunca
Sequencia de um filme já incluso na listagem
40 2002 Lilo & Stitch
Dean DeBlois
Chris Sanders
2002 A Pequena Sereia: O Retorno para o Mar
Sequencia de um filme já incluso na listagem
2002 Cinderela 2 Sequencia de um filme já
incluso na listagem
41 2002 O Planeta do Tesouro
Ron Clements
John Musker
2002 Os vilões da Disney Sequencia de um filme já
incluso na listagem
2003 Mogli - O menino lobo 2 Sequencia de um filme já
incluso na listagem
2003 Leitão - O Filme Sequencia de um filme já
incluso na listagem
42 2003 Procurando Nemo
Andrew Stanton
Lee Unkrich
43 2003 Irmão Urso
Aaron Blaise
Robert Walker
44 2004 O Cãozinho Esperto Timothy Björklund
2004 O Rei Leão 3 - Hakuna Matata
Sequencia de um filme já incluso na listagem
45 2004 Nem que a Vaca Tussa
Will Finn
John Sanford
46 2004 Os Incríveis Brad Bird
135
47 2005 O Galinho Chicken Little Mark Dindal
2005 Era uma vez um Haloowen Sequencia de um filme já
incluso na listagem
48 2006 Os Selvagens Steve Willians
49 2006 Carros
John Lasseter
Joe Ranft
2006 Irmão Urso 2 Sequencia de um filme já
incluso na listagem
2006 O cão e a Raposa2 Sequencia de um filme já
incluso na listagem
2007 Cinderela 3 - Uma Aventura no Tempo
Sequencia de um filme já incluso na listagem
50 2007 A Família do Futuro Stephen J. Anderson
51 2007 Ratatouille Brad Bird, Jan Pinkava
52 2008 WALL·E Andrew Stanton
53 2008 Tinker Bell - Uma aventura no mundo das fadas
Bradley Raymond
2008 A Pequena Sereia: A História de Ariel
Sequencia de um filme já incluso na listagem
54 2008 Romeu – O Vira-Lata Atrapalhado
Jugal Hansraj
55 2008 Bolt: Supercão
Byron Howard
Chris Williams
56 2009 Up - Altas Aventuras
Pete Docter, Bob
Peterson
2009 Tinker Bell e o Tesouro Perdido
Sequencia de um filme já incluso na listagem
57 2009 Os Fantasmas de Scrooge Robert Zemeckis
58 2009 A Princesa e o Sapo
Ron Clements, John
Musker
2009 Os tres porquinhos Coletânea de curtas
2010 Toy story 3 3D Sequencia de um filme já
incluso na listagem
59 2010 Enrolados
Nathan Greno
Byron Howard