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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”
PROJETO A VEZ DO MESTRE
AFETIVIDADE E COGNIÇÃO: UM ESTUDO SOBRE A INFLUÊNCIA DA
AFETIVIDADE NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM DOS APENADOS DA
ESCOLA ESTADUAL DE ENSINO SUPLETIVO MÁRIO QUINTANA
Apresentação de monografia à Universidade
Candido Mendes como condição prévia para a
conclusão do Curso de Pós-Graduação “Lato Sensu”
em Psicopedagogia Institucional.
Por: Jacqueline Elizabeth Balthazar Martins Oliveira
2
AGRADECIMENTOS
A meu marido, Luis Martins Oliveira, meu incentivador e companheiro
fiel ao longo de minha vida acadêmica.
A meu filho, Matheus Balthazar Martins Oliveira, que desde muito novo
foi privado da minha companhia, mas que hoje, desvendando os “mistérios” e
as “delícias” do mundo das letras/palavras compreende ainda melhor minha
dedicação à vida acadêmica.
A minha amiga e agora futura comadre, Renata Coelho Araújo
companheira fiel e inseparável ontem, hoje e sempre...
A Marcio Fernandes Calixto, amigo ímpar que sem nenhuma obrigação
cedeu horas preciosas dos seus já tão corridos dias, para revisar com carinho e
dedicação o presente trabalho.
A Rodrigo Silva Gomes, “amigo especial” que empenhou suas horas
de almoço na EAPAC para digitar e formatar esse trabalho.
A Dona Estella, diretora da Escola Estadual de Ensino Supletivo Mário
Quintana e a toda sua equipe, por terem me possibilitado conhecer e fazer
parte do cotidiano dessa Escola Diferenciada.
Aos internos da Penitenciária Lemos de Brito no Complexo da Frei
Caneca, que apesar de endurecidos por suas histórias de vida e pela reclusão
foram sempre gentis, acolhedores, por vezes “protetores” e dignos comigo e
com minhas práticas pedagógicas.
E, finalmente àquela que fez valer cada manhã de sábado passada em
sala de aula, àquela que foi a mais brilhante mediadora do meu processo de
aprendizagem em todos esses meus anos de estrada, àquela que se tornou
parte da minha história acadêmica, recheando-a de lucidez, clareza e doçura e
muito, muito conhecimento.
A você Carly Machado, meu muito obrigada e meu respeito, carinho e
admiração eternos.
3
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho àqueles que
fizeram de uma criança sem perspectivas uma
mulher feliz, realizada e vencedora.
Àqueles que me ensinaram a
caminhar na estrada da vida com dignidade,
honestidade, humanidade e respeito ao
próximo.
A meu amado pai, Ivo Vieira da Silva,
com minhas eternas saudades e meu eterno
amor e a minha mãe, Olinete Ferreira Vieira da
Silva, com minha infinita gratidão e admiração.
RESUMO
4
O principal objetivo do trabalho proposto é analisar a influência da
afetividade no processo ensino-aprendizagem dos apenados da Escola
Estadual de Ensino Supletivo Mário Quintana – uma Escola Penitenciária.
Observar-se-á o trabalho dividido em cinco capítulos, onde no primeiro
tratar-se-á da Legislação Brasileira e a Educação de Jovens e Adultos (EJA),
e conseqüentemente dos ordenamentos legais que já estiveram e/ou ainda
estão na base das práticas e dos projetos de EJA.
Já no segundo capítulo, será apresentado um breve histórico da EJA e
dos reflexos do neoliberalismo e da globalização sobre ela. Foi construída
uma discussão acerca da questão do poder da educação, da exclusão do
processo educacional brasileiro e, pro fim, da relação existente entre
cidadania, democracia e educação.
Foi construído no terceiro capítulo um histórico da Escola Estadual de
Ensino Supletivo Mário Quintana, com sua fundamentação teórico-
metodológica, a caracterização sócio-econômica-cultural da comunidade
escolar e uma análise descritiva das atividades observadas/participadas no
estágio lá realizado, no que tange a relevância e a relação das mesmas com a
Educação de Jovens e Adultos.
No quarto capítulo será tecida uma discussão psicopedagógica acerca
da influência da afetividade e da cognição no processo ensino-aprendizagem
sob as óticas de Lev Vygotsky e Henri Wallon, procurando embasar teórico
metodologicamente minha discussão acerca da afetividade e da cognição no
processo ensino-aprendizagem.
Fechando o trabalho, no quinto capítulo será traçada uma relação direta
entre os referenciais teóricos que embasaram o presente e a realidade
conhecida/vivida na Escola Estadual de Ensino Supletivo Mário Quintana.
5
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 7
6
CAPÍTULO I - A Legislação Brasileira e a Educação de Jovens e Adultos. 11
CAPÍTULO II - Educação de Jovens e Adultos, Cidadania e Exclusão. 18
CAPÍTULO III - Educação Penitenciária – Conhecendo a Escola 45 Estadual
de Ensino Supletivo Mário Quintana
CAPÍTULO IV - Afetividade e Cognição – A influência da afetividade no
processo ensino-aprendizagem sob as óticas de Vygotsky e Wallon. 68
CAPÍTULO V - Um olhar psicopedagógico sobre a influência da afetividade no
processo ensino-aprendizagem dos apenados da E.E.E.S. Mário Quintana 76
CONCLUSÃO 81
ANEXOS 84
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 85
BIBLIOGRAFIA CITADA 86
ÍNDICE 88
FICHA DE AVALIAÇÃO 90
INTRODUÇÃO
O presente trabalho objetiva apresentar um estudo sobre a influência da
afetividade no processo ensino-aprendizagem dos apenados (homens privados
de suas liberdades por terem transgredido às regras sociais) da Escola
7
Estadual de Ensino Supletivo Mário Quintana, alocada na Penitenciária Lemos
de Brito, no Complexo Frei Caneca.
A escolha desta temática deve-se, além de motivos de ordem pessoal
que julgo desnecessário expô-los, a crença pessoal na Educação como um dos
possíveis vieses de Ressocialização daqueles que se encontram aprisionados
nas instituições prisionais do Estado do Rio de Janeiro. Acredito que a
Educação não é o único viés, mas, que agregado ao esporte, a arte, ao
artesanato, a música, a terapia, é mais um instrumento de ressocialização, de
resgate, quiçá da conquista de dignidade para àqueles que sempre, ou pelo
menos, na grande maioria das vezes viveram a margem da sociedade, e que
no interior das unidades prisionais, ditas, de correção, passam seus dias
ociosos, perambulando pelos corredores, e se “aperfeiçoando” na “arte do
crime”.
Ressalvo aqui, que não julgo esses apenados “pobres coitados”, “vitímas
da sociedade” ou algo parecido, mas que discordo veementemente do Sistema
Penitenciário vigente onde estes, são despejados em unidades estruturalmente
deficientes e largados as suas próprias sortes, no que tange apoio terapêutico,
resgate de auto-estima, preparação para recomeçar a vida fora da unidade e
etc.
Como forma de melhor estruturar o presente trabalho divido-o em cinco
capítulos que configurar-se-ão da forma abaixo descrita.
No capítulo 1 abordo a Legislação Brasileira e a Educação de Jovens e
Adultos – meu objetivo central de estudo. Embaso esta abordagem
principalmente no Parecer CEB nº 11/2000 - Diretrizes Curriculares Nacionais
para a EJA, aprovado em 10/05/2000, cujo relator foi o Sr. Carlos Roberto
Jamil Cury. Recorro ainda a Constituição de 1934, onde pela primeira vez a
educação foi reconhecida como direito de todos... extensivo aos adultos e com
estatuto de gratuidade e de obrigatoriedade à todos. Utilizo-me, também, da
8
Constituição de 1946, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (nº
4.024/61). Perpassando pelas leis nº 5.378/67 – fundação do MOBRAL, pela
Lei nº 5.540/68 e nº 5.692/71 – bases legais específicas para o ensino
supletivo, chego a Constituição de 1988 – onde o Estado tem seu dever
ampliado em relação ao ensino fundamental, sendo, no entanto, incapaz de
garantir escola básica para todos e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional de 24/12/96 – Lei nº 9394/96 onde, em seu art. 5º a educação de
jovens e adultos no âmbito do ensino fundamental retira do Estado a
responsabilidade de mantê-la.
Faço esse percurso objetivando mostrar ao longo do capítulo – mais
detalhadamente – como as políticas públicas da Educação de Jovens e Adultos
têm reflexos diretos na manutenção das desigualdades sociais existentes em
nosso país.
Sigo para o capítulo 2 procurando discorrer acerca da Educação de
Jovens e Adultos, de Cidadania e da Exclusão, onde teço de início um breve
histórico da Educação de Jovens e Adultos no Brasil embasada em Cury
(2000), na Proposta Curricular do MEC (2001), em Freire (1970/1973),
perpasso por Colares (2001) em sua distinção entre Alfabetização e
Letramento para a seguir, discutir os reflexos da globalização e do
neoliberalismo na educação de jovens e adultos, alicerçada para tal em Gentilli
(1999) e Paiva (2000).
A discussão construída a partir daí, direciona-se para a questão do
poder na/da educação a partir de Foucault (1941), uma vez que inerente a
nossa vontade, há muito a educação/saber proporcionam “poder” àqueles que
o possuem. Poder esse, legitimado e nitidamente percebido pela sociedade na
qual encontramo-nos inseridos, por mais que essa tente negar tal legitimação.
Embasam, ainda, esta discussão, Neto (1981) e Deleuze (1991).
9
Sigo discutindo a questão da exclusão social, sob a ótica de Teixeira
(1994), como forma de aprofundar um pouco mais o aspecto das
desigualdades sociais e suas conseqüências refletindo diretamente em nossa
sociedade.
O capítulo 2 encerra-se com uma discussão referente à relação
existente entre democracia, cidadania e educação, consciente que até hoje tal
questão não foi devidamente respondida e que ainda há um longo e árduo
caminho a se percorrer para chegarmos a alguma resposta. O embasamento
teórico dessa discussão recai sobre Benevides (1992), Chauí (1993), Reis Filho
e Arroyo (1981).
Já no capítulo 3, direciono-me para a Educação Penitenciária, inserindo-
me como observadora na Escola Estadual de Ensino e Supletivo Mário
Quintana, onde iniciei minhas pesquisas sobre a educação no interior de uma
unidade prisional, sobre o meio onde está educação se dá e sobre os eni
fatores sócio-político-econômico e psicológicos que interferem no processo
ensino-aprendizagem dos alunos que “sobrevivem” sob essa realidade.
Nesse capítulo teço apreciações acerca das observações e dos
acontecimentos vivenciados no interior da referida Escola. Destaco que foi
impossível, não permear de emoção, sentimentos – nem sempre os melhores –
minhas apreciações.
Chego ao capítulo 4 construindo um estudo acerca da afetividade e da
cognição e de suas influências no processo ensino-aprendizagem sob as óticas
de Vygotsky (2001) e Wallon (2000).
Concluo a presente monografia com um olhar psicopedagógico acerca
da afetividade e os processos cognitivos desses educandos.
10
No capítulo 5 transponho e associo os estudos sobre afetividade e
cognição para a realidade educacional dos educandos (apenados) da Escola
Penitenciária destacada nesse estudo.
CAPÍTULO I
11
A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA E A EDUCAÇÃO DE
JOVENS E ADULTOS
O presente capítulo objetiva apresentar os primeiros passos a caminho
da legalização da EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS através de um breve
histórico da legislação brasileira e seus capítulos concernentes à EDUCAÇÃO
DE JOVENS E ADULTOS. As constituições de 1934/1946/1988, as Leis de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961/1968/1971/1996 e o Parecer
CEB nº 11/2000 do relator Carlos Roberto Jamil Cury embasam o presente
capítulo. Teço no presente, considerações legais e históricas que nos permitem
perceber ao longo deste, os reflexos das políticas públicas de Educação de
Jovens e Adultos na manutenção do status cour da sociedade vigente.
1.1– A Legislação Brasileira e a Educação de Jovens e Adultos
Os primeiros passos a caminho da legalização da educação de jovens e
adultos foram dados na Constituição de 1934, que reconheceu, pela primeira
vez, em caráter nacional, a educação como direito de todos, como nos mostra
o Prof.º Jamil Cury:
“A Constituição de 1934 reconheceu, pela primeira
vez em caráter nacional, a educação como direito de
todos e {que ela} deve ser ministrada pela família e pelos
poderes públicos (art. 149). A Constituição, ao se referir
no art. 150 ao Plano Nacional de Educação, diz que ele
deve obedecer, entre outros, ao princípio do ensino
primário integral, gratuito e de freqüência obrigatória,
extensivo aos adultos (§ único a). Isto demonstra que o
legislador quis declarar expressamente que todos do art.
149 inclui os adultos do art. 150 e estende a eles o
12
estatuto da gratuidade e da obrigatoriedade. A
Constituição de 1934, então, põe o ensino primário
extensivo aos adultos como componente da educação e
como dever do Estado e direito do cidadão (Cury, 2000, p.
14 ).”
Tivemos entre 1936-37 a construção do Plano Nacional de Educação,
que, devido ao golpe que instituiu o Estado Novo, não chegou a ser votado, no
qual todo o título III da 2ª parte se encontra voltado para o ensino supletivo.
Sobre isso Cury, diz:
“(...) o Plano Nacional de Educação possuía todo
o título III da 2ª parte voltado para o ensino supletivo.
Destinado a adolescentes e adultos analfabetos e
também, o ensino supletivo deveria conter disciplinas
obrigatórias e sua oferta seria imperativa nos
estabelecimentos industriais e nos de finalidade
correcional. (Cury, 2000, p. 16)”
Em seu parecer, o prof.º Cury destaca que a presença do Brasil na 2ª
Guerra Mundial, a luta pela democracia no continente europeu, a manutenção
da ditadura no país com seus horrores e o crescimento da importância da
democracia política trarão de volta a cena movimentos sociais e temas culturais
reprimidos a força. Um dos movimentos de tal retorno será a Constituinte de
1946.
Em seu art. 166 a Constituição de 1946 reconhece a educação como
direito de todos, e em seu art. 167, diz que o ensino primário oficial é gratuito
para todos. Embora saibamos que este discurso ainda perdurará por muito
tempo inexistente na prática.
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Chega-se, finalmente, à primeira lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, Lei N.º 4.024/61, que reconhece a educação como direito de todos e
cujo título VI, capítulo II, ao tratar do ensino primário diz:
“O ensino primário é obrigatório a partir dos 7
anos e só será ministrado na língua nacional. Para os que
iniciarem depois dessa idade, poderão ser formadas
classes especiais1 ou cursos supletivos correspondentes
ao seu nível de desenvolvimento.”
Em 1967, ainda, sob o clima do regime militar (limites/controle), a
Constituição mantém a educação como direito de todos (art. 168) e, pela
primeira vez, estende a obrigatoriedade da escola até os quatorze anos. Surge,
assim, um outro conceito para jovens, a partir de quinze anos de idade, que
será usado como referência para o ensino supletivo.
Ainda em 1967, a Lei N.º 5.379/67 cria uma fundação denominada
Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) cujo objetivo era erradicar o
analfabetismo e propiciar a educação continuada de adolescentes e adultos.
Cury afirma que é no interior das reformas autoritárias que o ensino supletivo
terá suas bases legais específicas, como, por exemplo, nas Leis N.º 5.540/68 e
N.º 5.692/71.
Em 1971 o ensino supletivo ganha capítulo próprio com cinco artigos –
na Lei N.º 5.692/71 – em que um deles diz que esta modalidade de ensino se
destina a “suprir a escolarização para adolescentes e adultos, que não a
tenham seguido ou concluído na idade própria”.
Cury (2000) relata, ainda, em seu parecer a elaboração de muitos
pareceres e resoluções no interior do Conselho Federal de Educação,
destacando o Parecer Nº 699/72 do Cons. Valnir Chagas, regulamentando a
1 Não confundir essa expressão com o que hoje se entende por classes especiais. Naquele momento, tal expressão se aproxima do que hoje denominamos classes de aceleração.
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matéria relativa às idades de prestação de exames e ao controle destes últimos
pelos poderes públicos. Sobre esse assunto, Cury afirma:
“Esse Parecer destaca quatro funções do então
ensino supletivo: a suplência (substituição compensatória
do ensino regular pelo supletivo via cursos e exames com
direito à certificação do ensino de 1º grau para maiores de
18 anos e de ensino de 2º grau para maiores de 21 anos),
o suprimento (complementação do inacabado por meio de
cursos de aperfeiçoamento e de atualização) a
aprendizagem e a qualificação2. Elas se desenvolviam por
fora dos então denominados ensinos de 1º e 2º graus
regulares. Este foi um momento de intenso investimento
público no ensino supletivo e um início de uma redefinição
da aprendizagem e qualificação na órbita do Ministério do
Trabalho (Cury, 2000, p. 20).”
A Constituição de 1988 ampliou o dever do Estado em relação ao ensino
fundamental, sendo, no entanto, incapaz de garantir escola básica para todos,
independentemente da idade, bem como outras modalidades de ensino.
Se por um lado podemos observar um consenso social sobre a
importância da educação infantil, o mesmo não acontece em relação a
educação de jovens e adultos, mantendo-se o poder público, de certa forma,
passivo em relação a essa clientela. Segundo Sérgio Haddad (MEC, ano 10):
“Dentre os países da América Latina, o Brasil é o
que possui o maior número de analfabetos entre a
população com mais de dez anos de idade; considerando
a população acima dos catorze anos, cerca de cinqüenta
por cento não concluíram as quatro primeiras séries do
2 No texto da nova LDB, ela é tratada em capítulo específico.
15
ensino fundamental, podendo ser então considerados
analfabetos funcionais. (s. d.,p. 12)”
No início dos anos 90, observou-se, no Brasil, um certo desinteresse do
governo pela educação de jovens e adultos, oficializada através de Proposta de
Emenda Constitucional (PEC 233), que se transformou, posteriormente, na
Emenda Constitucional 14/96. Apresentando uma sutil alteração no inciso I do
art. 208 da Constituição Federal, a emenda manteve a gratuidade da educação
pública de jovens e adultos, supondo-se a obrigatoriedade do poder público em
oferecê-la; suprimiu o compromisso governamental de eliminar o analfabetismo
no prazo de dez anos, até porque, sete anos depois de promulgada a
Constituição, a meta já se mostrava inviável; e criou o Fundo de
Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério
(FUNDEF).
Em dezembro de 1996, o Congresso Nacional aprovou o Projeto de Lei
N.º 107/94, criando o Programa Empresarial de Alfabetização de Adultos, que
deveria ser desenvolvido por qualquer órgão público ou empresa com mais de
100 empregados, os quais passavam a estar obrigados a montar, no local de
trabalho, salas de aula para alfabetização, arcando com os custos necessários
relativos a equipamentos, material e pessoal docente especializado. Em
contrapartida, caberia ao poder público selecionar e treinar monitores, além de
acompanhar o processo pedagógico.
Em 1997, a lei foi vetada em sua totalidade pelo Presidente da
República, sob a alegação de que a obrigatoriedade de abertura de salas de
alfabetização aumentaria o desemprego dos analfabetos. Tal decisão revela
um pensamento neoliberal, em que se observa a necessidade, por parte dos
governantes, de se manter níveis de analfabetismo “essenciais” à perpetuação
das desigualdades sociais.
A nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 24/12/1996
(Lei N.º 9394/96), apesar de destinar uma seção para essa modalidade de
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oferta de educação escolar, na verdade manteve-a como uma educação de
“nível inferior”, refletindo as contradições que permaneceram desde seu
processo de criação. A nova lei prioriza a Educação Fundamental de crianças,
e tão somente dessas, sem dedicar uma linha sequer à questão do
analfabetismo. Coloca a educação de jovens e adultos como algo já superado
e a vincula ao mundo do trabalho, apesar de manter a suplência como
modalidade de reposição de estudos do ensino fundamental e médio.
No art. 5, a Nova LDB trata a educação de jovens e adultos no âmbito do
ensino fundamental, mas retira do Estado a responsabilidade de mantê-la,
apesar de, no art. 37, reafirmar o conceito de uma educação de adultos voltada
para a reposição de escolaridade.
A Lei ainda manteve o conceito básico de ensino supletivo, a exemplo
da Lei anterior, mas o descaracterizou como algo que devesse ter uma
estrutura e um modelo de preparação próprios.
No art. 39, retomando o ensino supletivo, reduziu a idade mínima para
habilitação aos exames, além de promover, diretamente, uma significativa
redução na responsabilidade do sistema público face aos processos de
formação de jovens e adultos, descartando a especificidade de aspectos
pedagógicos que garantissem a eficácia da aprendizagem. Assim, o Estado
amplia os mecanismos de certificação e reduz seus compromissos com uma
formação cidadã.
Concretamente, por meio de todos esses mecanismos, o ensino
supletivo perde a função de ampliação de oportunidades educacionais e,
reduzido à sua dimensão de “exame”, torna-se um instrumento de aceleração
de estudos de jovens que apresentam defasagem na escolarização – embora
esses devessem atender apenas à população adulta, verificando
conhecimentos adquiridos fora do sistema escolar, na vida, no trabalho.
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Posta dessa forma, a política pública para a educação de jovens adultos
tem reflexos diretos na manutenção das desigualdades sociais. Mesmo nas
grandes capitais o quadro não é dos mais animadores, principalmente em se
tratando da qualidade do ensino das escolas públicas. Muito se tem discutido
acerca do papel das Universidades face à crise do ensino fundamental e
médio, mas pouco se tem realizado, existindo leves tendências de parcerias
entre órgãos governamentais e privados, com o objetivo de minimizar tais
deficiências.
Retorno a LDB no capítulo a seguir, quando da construção da discussão
a respeito dos reflexos da globalização e do neoliberalismo na educação de
jovens e adultos. No próximo capítulo constarão também: um breve histórico da
educação de jovens e adultos no cenário educacional brasileiro e as questões
da exclusão, da cidadania e do poder na/da educação. Embasar-me-ei para tal
em nomes como: Pablo Gentili (1999) e Michel Foucault (1991).
CAPÍTULO II
A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
TRABALHADORES, CIDADANIA E EXCLUSÃO
18
O presente capítulo objetiva apresentar um breve histórico da educação de
jovens e adultos no Brasil, baseado em leituras, como o parecer anteriormente
citado, do prof. º Jamil Cury (2000), na Proposta Curricular para a Educação de
Jovens e Adultos do MEC e em Paulo Freire (1970/1973/1978). A seguir
discorrerei sobre os reflexos da globalização e do neoliberalismo na educação
de jovens e adultos, tomando por referencial Gentili (1999). Prosseguirei meu
estudo tratando da questão do poder da educação, segundo Foucault (1991),
para então, chegar a questão da exclusão dentro do processo educacional
brasileiro, desta vez utilizar-me-ei de Teixeira (1994) Encerrando este capítulo,
discuto, sob a ótica de Benevides (1992), a questão da relação entre cidadania,
democracia e educação.
2.1 – Breve histórico da EJA no Brasil
Ao fazer um breve histórico da educação de jovens e adultos no Brasil,
devo, de imediato, reportar-me à década da 1930, período onde começou a se
delinear um lugar para a EJA no cenário educacional brasileiro. Historicamente,
nesse período a sociedade brasileira vivenciava uma série de transformações
sócio-econômicas, impulsionadas pela crescente industrialização que emergia
nos grandes centros urbanos e que, conseqüentemente, acarretavam um
“inchaço” dos centros acima citados. È nesse contexto sócio-econômico que o
governo impulsiona a ampliação da educação elementar, traçando diretrizes
educacionais para todo o país, determinando as responsabilidades dos estados
e dos municípios. Esse movimento de ampliação da educação elementar
também incluiu esforços, articulados nacionalmente, de extensão do ensino
elementar aos adultos, especialmente nos anos de 1940. Sobre isso Cury diz:
“Só é possível falar na existência de uma política
de educação de jovens e adultos no Brasil a partir da
19
década de 40. (...), mas tudo que se fez foi sempre muito
pouco significativo sob o ponto de vista do número de
educandos envolvidos (Cury, 2000, p.21).”
Em 1945, com o fim da ditadura de Vargas, o país viveu a efervescência
política da redemocratização. A Segunda Guerra Mundial terminara e a ONU –
Organização das Nações Unidas – alertava para a urgência de integrar os
povos visando à paz e a democracia. Todos esses fatores contribuíram para
que a Educação de Jovens e Adultos ganhasse destaque dentro da
preocupação geral com a educação comum. Era urgente a necessidade de
aumentar as bases eleitorais para a sustentação do governo central, integrar as
massas populacionais de imigração recente e também de incrementar a
produção. Sobre o processo de redemocratização acima mencionado, a
Proposta Curricular para o 1º segmento do Ministério da Educação diz:
“No processo de redemocratização do Estado
brasileiro, após 1945, a educação de adultos ganhou
destaque dentro da preocupação geral com a
universalização da educação elementar (MEC, 2001,
p.22).”
Em 1947, a educação de adultos define sua identidade tomando a
forma de uma campanha nacional de massa, a Campanha de Educação de
Adultos, pretendendo-se numa primeira etapa, uma ação extensiva, que previa
a alfabetização em 3 meses e mais a condensação do curso primário em dois
períodos de 7 meses. Uma segunda etapa de “ação em profundidade”, voltada
à capacitação profissional e ao desenvolvimento comunitário. Mais uma vez
cito a Proposta Curricular do MEC (2001), onde esse diz que “A campanha de
educação de adultos lançada em 1947 alimentou a reflexão e o debate em
torno do analfabetismo no Brasil”.
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Sob a direção do professor Lourenço Filho, a referida campanha obteve
resultados significativos nos primeiros anos, tendo sido criadas, inclusive,
várias escolas supletivas, contando para tal com a mobilização e os esforços
das diversas esferas administrativas, de profissionais a voluntários. No entanto,
o entusiasmo começou a declinar na década de 50, chegando a se extinguir as
ações comunitárias nas zonas rurais, sobrevivendo ainda, a rede de ensino
supletivo por meio da campanha implantada e assumida pelos estados e
municípios.
No decorrer da campanha, reconheceu-se que a concepção que
legitimava uma “visão do adulto analfabeto como incapaz e marginal,
identificando-o psicológica e socialmente com a criança”, não se consolidou
como a visão que melhor legitima o adulto em processo de alfabetização, uma
vez que o mesmo deve, sim, ser encarado como um ser produtivo, capaz de
raciocinar e resolver as mais diversas situações com as quais venha a deparar-
se. Embaso tal afirmativa remetendo-me a Lev Vygotsky (2000), em sua Teoria
do Desenvolvimento, onde esse afirma que: “O homem é um ser histórico,
construído a partir de suas relações com o mundo natural e social”.
Conseqüentemente, as histórias e as experiências de vida que um adulto
analfabeto ou em processo de alfabetização leva para sala de aula em
momento algum pode ou deve ser comparadas com as histórias e experiências
que uma criança, passando pelos mesmos processos, leva para sua sala de
aula.
Devido à difusão de métodos de ensino de leitura para adultos, o
Ministério da Educação tomou a iniciativa de produzir pela primeira vez – por
ocasião da Campanha de 1947 – material didático específico para o ensino da
leitura e da escrita para adultos.
Nos idos da década de 1950 muitas críticas emergiram em relação à
Campanha de Educação de Adultos, dirigidas não só às suas deficiências
administrativas e financeiras, como também à orientação pedagógica adotada.
21
As mais ferrenhas críticas direcionavam-se ao caráter do aprendizado que se
efetivava no ínfimo período de tempo destinado da alfabetização, a saber, 3
meses, à inadequação do método para a população adulta e, mais ainda, a
ausência de adequação às diversas regiões onde tal campanha estava sendo
implementada. Tais críticas convergiram para uma nova visão do processo e
dos problemas da alfabetização de adultos, consolidando, dessa forma, um
novo paradigma pedagógico para a educação de jovens e adultos, cuja
referência principal é o educador Paulo Freire. A esse respeito, a Proposta
Curricular do MEC (2001) afirma que “A pedagogia de Paulo Freire inspirou os
principais programas de alfabetização e educação popular do início dos anos
60”.
Os principais programas de educação popular que se realizaram no
Brasil nos anos 60 embasaram-se no pensamento pedagógico de Paulo Freire,
ou seja, em um novo entendimento da relação entre a problemática
educacional e a problemática social, em uma significativa dimensão social e
política, com componentes éticos, implicando um profundo comprometimento
do educador com seus educandos. Pensamentos e ideais pedagógicos onde
homens e mulheres são reconhecidos como seres produtivos, possuidores de
cultura; cultura a ser respeitada e não negada como algo desprezível ou
insignificante, mas sim, como algo a ser transformado através do diálogo,
fazendo desses educandos sujeitos de suas aprendizagens, como diz Freire:
“... o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele
é o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de
seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado
e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar
idéias de um sujeito no outro, nem tampouco se tornar
simples troca a serem consumidas pelos permutantes
(Freire, 1970, p. 79).”
22
Os programas de alfabetização e educação popular anteriormente
citados desenvolveram-se e foram aplicados por educadores do MEB –
Movimento de Educação de Base –, ligado à CNBB – Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil – , dos CPCs – Centros de Cultura Popular, organizados pela
UNE – União Nacional dos Estudantes, dos Movimentos de Cultura Popular,
que reuniam artistas, intelectuais e tinham o apoio de administrações
municipais. Devido à organização e a articulação desses diversos grupos de
educadores, o governo federal passou a ser pressionado para que os apoiasse
e estabelecesse uma coordenação nacional dirigida à Educação de Jovens e
Adultos. Em janeiro de 1964, foi aprovado o Plano Nacional de Alfabetização
que previa a disseminação por todo o Brasil de programas de alfabetização
orientados pelos pressupostos teóricos de Paulo Freire.
Foi elaborada por Paulo Freire (1973), uma proposta conscientizadora
de educação de adultos, cujo princípio básico se traduz em sua célebre frase:
“A leitura do mundo precede a leitura da palavra” (Freire, 1998, p. 11). Essa
proposta desenvolveu um conjunto de procedimentos pedagógicos conhecido
mundialmente como MÉTODO PAULO FREIRE, prescindindo o uso de
cartilhas.
A produção, elaboração e reprodução dos materiais de alfabetização
orientados pelos princípios freireanos eram, normalmente, regionais ou locais,
uma vez que deveriam expressar o universo vivencial dos alfabetizandos. O
que caracterizava esses materiais era a referência à realidade imediata dos
adultos e, principalmente, a intenção de problematizar essa realidade. Sobre
isso a Proposta Curricular do MEC (2001) diz que “Os materiais didáticos
produzidos nesse período referem-se à realidade imediata dos adultos,
problematizando-a”.
Toda efervescência e engajamento de estudantes, sindicatos, artistas e
dos vários grupos na elaboração e preparação do Plano Nacional de
23
Alfabetização foram brusca e impiedosamente interrompidas no mês de março
de 1964, por ocasião do Golpe Militar.
O golpe militar de 1964, seccionou brutalmente a educação de jovens e
adultos e seus programas que vinham se consolidando no período de 1961-64,
uma vez que tais programas eram vistos como uma grave ameaça à ordem,
tanto que seus promotores foram duramente reprimidos, chegando muitos ao
exílio. O controle dos programas de alfabetização de adultos passou às mãos
do Governo, em 1967, que passou a permitir sua existência a partir da vertente
do assistencialismo e do conservadorismo, lançando o MOBRAL – Movimento
Brasileiro de Alfabetização. A esse respeito coloca-nos a Proposta Curricular
do MEC:
Era a resposta do regime militar à ainda grave situação do analfabetismo
no país. O MOBRAL constituiu-se como organização autônoma em relação ao
Ministério da Educação, contando com um volume significativo de recursos
(MEC, 2001, p. 27).
Em 1969 houve o lançamento de uma massiva campanha de
alfabetização tendo sido instaladas Comissões Municipais que, no entanto,
tinham suas orientação e supervisão pedagógicas e seus materiais de apoio
pedagógico centralizados no MOBRAL.
A década de 1970 foi o período de expansão do MOBRAL por todo o
território nacional. Das iniciativas que derivaram do Programa de Alfabetização,
a mais relevante foi o PEI – Programa de Educação Integrada, correspondente
a uma “condensação” do antigo primário. Era a hoje tão comentada
“EDUCAÇÃO CONTINUADA”, começando a se corporificar no cenário
educacional brasileiro, permitindo assim, aos recém-alfabetizados e aos
alfabetizados funcionais darem continuidade a seus estudos.
24
É válido ressaltar que, paralelamente aos programas de educação
centralizados no governo, a sociedade civil, a saber, associações de
moradores e comunidades religiosas de base, apoiava grupos de educação
popular dando continuidade à realização de experiências em alfabetização de
adultos com propostas mais críticas, desenvolvendo assim, os postulados de
Paulo Freire que, exilado, seguia trabalhando com educação de adultos no
Chile e em países da África, posteriormente.
O descrédito dos meios políticos e educacionais levou à extinção, em
1985, do MOBRAL, fazendo surgir em seu lugar a Fundação Educar que, no
entanto, apoiava financeira e tecnicamente àqueles que se dispusessem a
executar programas de Alfabetização de Jovens e Adultos.
A década de 80, chega com o aparecimento dos movimentos sociais e o
início da abertura política que viria a proporcionar a construção de canais de
troca de experiências, reflexões e articulações a favor dos projetos de
alfabetização e de seus desdobramentos em turmas de pós-alfabetização, a já
mencionada EDUCAÇÀO CONTINUADA.
Em meados da década acima citada, difundiram-se entre os educadores
brasileiros estudos e pesquisas sobre a leitura e a escrita, sob o ponto de vista
de que ambas são muito mais do que transcrição e decifração de letras e
fonemas, mas sim, que são atividades inteligentes, em que a percepção é
orientada pela busca dos significados e de suas utilizações práticas e sociais.
Esses estudos seriam mais detalhados com o trabalho de Magda Soares
(2001), a respeito de LETRAMENTO e ALFABETIZAÇÃO. Em sua obra
Letramento: Um Tema em Três Gêneros, ela claramente diferencia as
condições do alfabetizado das condições do letrado, elucidando, assim, o cerne
dessa diferença:
25
“Há, assim, uma diferença entre saber ler e
escrever, ser alfabetizado e viver na condição ou estado
de quem sabe ler e escrever, ser letrado (atribuindo a
essa palavra o sentido que tem literate em inglês). Ou
seja, a pessoa que aprende a ler e a escrever – que se
torna alfabetizada – e que passa a fazer uso da leitura e
da escrita, a envolver-se nas práticas sociais de leitura e
escrita – que se torna letrada – é diferente de uma pessoa
que... sabendo ler e escrever, não faz uso da leitura e da
escrita – é alfabetizada, mas não é letrada, não vive no
estado ou condição de quem sabe ler e escrever e pratica
a leitura e a escrita. (SOARES, 2001, p. 36).”
No âmbito das políticas educacionais dirigidas à educação de jovens e
adultos, os primeiros anos da década de 1990 não foram nada favoráveis. A
Fundação Educar foi extinta sem que nenhuma nova política viesse a substituí-
la, deixando assim uma enorme lacuna no que diz respeito à educação de
jovens e adultos. A respeito da história da educação de jovens e adultos nos
anos 1990, a Proposta Curricular do MEC diz:
“A história da educação de jovens e adultos no
Brasil chega à década de 90, portanto, reclamando a
consolidação de reformulações pedagógicas que, aliás,
vêm se mostrando necessárias em todo o ensino
fundamental. Do público que tem acorrido aos programas
para jovens e adultos, uma ampla maioria é constituída de
pessoas que já tiveram passagens fracassadas pela
escola, entre elas, muitos adolescentes e jovens recém-
excluídos do sistema regular. Esta situação ressalta o
grande desafio pedagógico, em termos de seriedade e
26
criatividade, que a educação de jovens e adultos impõe:
como garantir a esse segmento social, que vem sendo
marginalizado nas esferas sócio-econômica e
educacional, um acesso à cultura letrada que lhe
possibilite uma participação mais ativa no mundo do
trabalho, da política e da cultura (MEC, 2001, p.42).”
Iniciarei, a seguir, a discussão acerca dos reflexos da globalização e do
neoliberalismo na educação de jovens e adultos, embasada no discurso de
Pablo Gentili (1999) dentre outros.
2.2 - O Neoliberalismo, a Globalização e a Educação de Jovens e Adultos
Atrelada às grandes transformações que as sociedades vêm sofrendo
após a Segunda Guerra Mundial, expande-se há mais de uma década,
sobretudo nos países do ocidente, uma prática política que tem provocado
entusiasmo em alguns e verdadeiros bombardeios de críticas por parte de
outros: é o assim chamado neoliberalismo. Para uns, o neoliberalismo é mais
uma, enquanto para outros, é a última variação do pensamento liberal que
acompanha o capitalismo desde seus primórdios. Por tentar fundamentar o
capitalismo desde suas origens, há mais de trezentos anos, o pensamento
liberal pode ser considerado a ideologia do capitalismo.
A globalização aparece como o principal instrumento ideológico de
legitimação das políticas neoliberais que visam a reestruturação dos processos
de produção e circulação de mercadorias, marcados pela hegemonia do capital
financeiro. Segundo Gentili:
“O neoliberalismo expressa uma saída política,
econômica, jurídica e cultural específica para a crise
hegemônica que começa a atravessar a economia do
27
mundo capitalista como produto do esgotamento do
regime de acumulação fordista iniciado a partir do fim dos
anos 60 e começo dos 70 (Gentili, 1999, p. 20).”
Como toda ideologia política, a globalização responde a uma
necessidade de legitimação e dissimulação da enorme concentração de poder
de decisão que se manifesta nas relações de dominação (e dependência) na
economia, na política e na cultura. Essa necessidade permanente de
dissimulação ideológica tornou-se mais intensa nas últimas duas décadas
porque o capitalismo mundial entrou num longo ciclo recessivo, após trinta
anos de expansão (1945 -1975).
A experiência das semi-periferias e periferias demonstra que quanto
mais dependente for o país mais o fundamentalismo da globalização aparece
como um determinante inevitável das políticas implementadas pela tecnocracia
e pelos agentes financeiros encarregados de velar pelas sacrossantas
estabilidades monetária e fiscal. É por isso que a estratégia imposta pela
globalização é incompatível com o desenvolvimento nacional, com os direitos
sociais, civis e econômicos que aqueles consideram como principais obstáculos
à acumulação comandada pelos mercados financeiros. O pós-fordismo se
caracteriza pela cristalização de um modelo social fundado na dualização e na
marginalidade crescente de setores cada vez mais amplos da população.
Existe no mundo um formidável exército de desempregados ou
subempregados e uma avassaladora tendência estrutural ao desemprego
tecnológico, a distância entre os que têm e os que não têm acesso a melhores
cargos no mercado de trabalho tende a ampliar-se e apronfundar-se.
Ao controlar o estado, os grupos dominantes têm condições de
influenciar a educação. A prática educativa é parte integrante da dinâmica das
relações sociais, das formas da organização social. A desigualdade entre os
homens, que, na origem, é uma desigualdade econômica no seio das relações
entre as classes sociais, determina não apenas as condições materiais de vida
28
e de trabalho dos indivíduos, mas também a diferenciação no acesso à cultura
espiritual, a educação. Segundo Gentili:
“A educação para o emprego pregada pelos profetas
neoliberais, quando aplicada ao conjunto das maiorias
excluídas, não é outra coisa senão a educação para o
desemprego e a marginalidade (Gentili, 1999, p. 27).”
Existe um abismo entre promessas e realidade, entre intenções e fatos,
entre o que a escola deveria ser e o que ela de fato é. A realidade da escola
desmente suas promessas de acesso igual para todos. As estatísticas sobre os
resultados escolares contradizem a esperança de que a escola possa servir de
escada para que todos consigam melhorar de vida.
Todo mundo espera que a escola cumpra seu papel que é fornecer
instrução, qualificação e diplomas a todos. Na verdade, a escola produz muito
mais fracassos que sucessos, trata uns melhor do que outros e convence os
que fracassam de que fracassam porque são inferiores.
Considero, no caso da educação de jovens e adultos, que o caráter
indutor do Estado é essencial. Diferentemente da educação fundamental
regular. A experiência e os estudos realizados na América Latina apontam para
o fato de que é a oferta de serviços que modela as características da demanda
nesse nível de ensino. Não é este o caso da educação fundamental regular,
onde há um grande consenso social (particularmente dos pais) sobre a
necessidade de as crianças irem à escola, que não ocorre no caso dos jovens
e adultos. Considerando-se a proposta de estado mínimo proposto pelo modelo
neoliberal, a nova LDB vem completar este movimento de transformar a
educação de jovens e adultos numa educação de segunda classe. Premidas
pelas atuais orientações de reforma do Estado no contexto de crise do seu
financiamento, as reformas educativas que ali se prenunciavam e que,
recentemente, têm sido aceleradas, têm dado prioridade à educação
29
fundamental das crianças, deixando de lado outros níveis e modalidades de
ensino. O discurso da inclusão, que vinha sendo crescente até aquele
momento, passou a ser substituído pelo discurso da exclusão, do
estabelecimento de prioridades com restrições de direitos.
A nova LDB, além de manter o conceito básico da legislação do regime
militar - o ensino supletivo -, empobreceu-o, na medida em que o
descaracterizou, como algo que deveria ter uma estrutura e um modelo de
preparação próprios. Assim, não foi considerada, no projeto da Câmara, a idéia
de professores especializados para este tipo de ensino e a menção explícita de
uma organização escolar flexível que permitisse um ensino não marcado pelo
modelo escolar regular. Deve-se considerar que a antiga legislação tomava o
ensino supletivo como algo que, mesmo tendo o ensino regular como modelo
inicial, ganhava sua essência ao dele se afastar. No entanto, o termo
“oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as características do
alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho” pode ser assumido
como uma abertura para a reversão do conceito básico da lei e buscar
constituir programas voltados para os interesses dessa população.
A LDB deixou de contemplar, ainda, algo que é fundamental em
programas voltados para jovens e adultos, uma atitude ativa por parte do
Estado, no sentido de criar as condições de permanência de um grupo social
que tem de realizar um esforço redobrado para freqüentar qualquer programa
de educação. Assim foram abandonadas as formulações do projeto da Câmara
referentes aos seguintes aspectos: “escolas próximas de seu local de trabalho
e residência", “condições de recepção de programas de tele-educação no local
de trabalho" etc. Todas essas referências contidas no projeto da Câmara
tinham o sentido de criar as condições necessárias para que o alunado
potencial pudesse freqüentar programas de educação de jovens e adultos. Ao
omitir tais condições, a legislação caiu na perspectiva liberal, que aposta na
idéia de que a oferta deveria responder à demanda. Como sabemos, em
grupos pobres, excluídos de condições sociais básicas, com frustradas
30
experiências escolares anteriores, não basta oferecer escola: é necessário criar
as condições de freqüência, utilizando uma política de discriminação positiva,
sob o risco de mais uma vez culpar os próprios alunos pelos seus fracassos.
Ao adotar a concepção de que a educação de adultos é um desvio
causado pelo fracasso do ensino fundamental de crianças, o MEC destoa do
conceito das nações presentes à conferência de Hamburgo. Segundo o
Ministério, tão logo esse desvio seja corrigido, cessará a necessidade da
educação de adultos. Desse modo, entende-se que a opção política pelo
ensino fundamental de crianças estancará em mais um quadriênio a "fonte de
analfabetos", concorrendo para a manutenção das taxas e dos números que
estão aí. Os já analfabetos e subescolarizados serão atendidos por programas
compensatórios de assistência social como o “alfabetização solidária", sem
maiores responsabilidades do referido Ministério, e com a mesma lógica que
historicamente vem regendo a educação de jovens e adultos.
A visão estreita que esta concepção encerra deixa de incorporar toda a
construção que o mundo vem fazendo nesta área, em que a educação de
jovens e adultos é vista como um processo de educação continuada,
indispensável para acompanhar a velocidade e a contemporaneidade do
desenvolvimento das ciências, técnicas, das artes, expressões, linguagens,
culturas, enfim, que o mundo – especialmente a partir do fenômeno da
globalização – vem conferindo à história. Na contramão, as políticas
governamentais promovem a exclusão, deixando de garantir o direito à
cidadania a tão largo contingente populacional.
A consolidação do bloco conservador no poder articula as reformas do
Estado a um projeto educacional, da pré-escola à pós-graduação, ajustando à
nova era do mercado. O campo educativo, neste quadro de ajuste global, é
então direcionado para uma concepção produtivista, cujo papel é o de
desenvolver habilidades do conhecimento, de valores e atitudes e de gestão da
qualidade, definidas no mercado de trabalho, cujo objetivo é formar em cada
31
indivíduo um banco, ou reserva de competências, que lhe assegure
empregabilidade. Há uma preocupação de sintonizar o sistema de ensino com
os princípios da grande empresa capitalista com vistas a maior eficácia e
produtividade.
Penso que, apesar do enorme predomínio do capital, o mundo atual não
pode ser definido em uma única dimensão: a dos mercados, supostamente
unificados ou globalizados. Essa definição é própria de um positivismo
unilateral e de uma abordagem ideológica reducionista que empobrece
seriamente o pensamento social. É preciso, portanto, ampliar a perspectiva
liberando a sociedade e a cultura da prisão do mercado e do fetichismo
tecnológico para assim, superar a estreiteza mental do economicismo vulgar.
Os processos educativos que interessam aos trabalhadores não podem ter no
mercado e no capital seu horizonte conceptual e prático.
Garantindo apenas a avaliação do produto, o Estado joga para o
mercado da educação a responsabilidade pelo processo educacional. Ou seja,
o Estado abre mão da sua responsabilidade de formação, garantindo apenas
os mecanismos de creditação e certificação. Estamos, portanto, diante de um
fenômeno que tem enormes custos sociais, a herança do neoliberalismo será
uma sociedade profundamente desagregada e distorcida, com gravíssimas
dificuldades em se constituir do ponto de vista da integração social e com uma
agressão permanente ao conceito e à prática da cidadania.
Será discutida a seguir, a questão do poder na/da educação a partir de
Foucault (1991) uma vez que, há muito, a educação/o saber proporcionam um
certo “poder” àqueles que o possuem. Poder, legitimado e claramente
percebido pela sociedade na qual nos encontramos inseridos, por mais que
essa tente negar tal legitimação.
2.3 – Educação e Poder, a partir de Michel Foucault
32
Veiga Neto (1991) afirma que Michel Foucault, para abordar as relações
entre poder e saber, utiliza uma metodologia centrada na genealogia:
“Genealogia é a palavra que Foucault utiliza para
designar uma metodologia cuja finalidade é a análise do
poder, seja qual for a máscara que esse assuma, seja
qual for o campo em que se manifesta, da moral, da
política, do conhecimento, do desejo etc. Dizer que a
finalidade é fazer uma análise não implica dizer que a
genealogia tenta explicar o que é o poder, o que ele quer
é desmontá-lo, fazer-lhe a anatomia pela análise de suas
manifestações e descobri-lo (Neto, 1991, p. 27)”
Sob a ótica de Foucault (1991), o poder se manifesta como a vontade
que cada indivíduo tem de atuar sobre o outro, ou sobre a ação alheia, e se
revela modificando, destinando, ou criando novas realidades.
Segundo Deleuze (1991), o importante não é perguntar: “o que é o
poder? E de onde ele vem?” Mas “como se exerce?”.
“O poder assumiu as múltiplas formas de dominação exercidas no seio
da sociedade. A ele podemos associar a questão da liberdade crítica, praticada
a partir da experiência de cada indivíduo.”
É ainda Deleuze que, relendo as teses de Foucault sobre poder,
destaca:
“(...) o poder é esse enigma (já que “imita”,
“suscita”, produz ); ele se exerce antes de possuir (já que
só se possui sob uma forma determinável – classe – e
determinada – Estado); passa pelos dominados tanto
33
quanto pelos dominantes (porque passa em todas as
forças da relação) (Deleuze, 1991, p. 79)”
Retomo Veiga Neto (1981), quando esse nos ensina que, sobre a
relação entre poder e saber, o filósofo Foucault assim se manifesta:
“Temos antes que admitir que o poder produz
saber (e não simplesmente favorecendo-o porque o serve
ou aplicando-o porque é útil); que poder e saber estão
diretamente implicados, que não há relação de poder sem
constituição correlata de um campo de saber, nem saber
que não suponha e não constitua ao mesmo tempo
relações de poder. Essas relações de poder – saber não
devem então ser analisadas a partir de um suposto
conhecimento que seria ou não livre em relação ao
sistema de poder; mas é preciso considerar, ao contrário,
que o sujeito que conhece, os objetos a conhecer e as
modalidades de conhecimentos sente outros tantos
efeitos dessas implicações fundamentais do pode – saber
– e de suas transformações históricas. Resumindo, não é
a atividade do sujeito do conhecimento que produzirá um
saber, mas o poder saber, os processos e as lutas que
atravessam e que constituem, que determinam formas e
os campos pessoais do conhecimento (Neto, 1981, p.
30).”
Assim, do poder espraiado sobre a coletividade deriva a busca de uma
legitimidade através de discursos divididos entre dominantes e dominados, não
sendo estes nem falsos nem verdadeiros, mas apenas algo que separa
locutores e ouvintes, em tempo e espaço específicos.
34
Michel Foucault (1991), ao desenvolver seus estudos sobre o poder,
estabelece essa categoria como uma prática social constituída historicamente,
não a considerando como uma realidade que possua uma natureza, uma
essência, por isso capaz de apresentar-se de formas variadas, heterogêneas e
em constantes transformações. E afirma:
“Observa-se que com o aprimoramento do
indivíduo às suas condições sociais subalternas, o Estado
é capaz de dar conta da sua prática totalitária, muitas
vezes antidemocrática (Focault, 1991, p. 86).”
Ora, se ao cidadão comum não é permitido ter acesso a mecanismos
capazes de melhorar suas condições de vida, ele mantém, preserva,
intencionalmente, as condições de desigualdades e de estigmatizações.
A sociedade dividida, assim, entre excluídos e incluídos destina aos
primeiros uma condição de subordinação e discriminação, embotando-os de
uma deficiência social, decorrente da própria forma de organização das
sociedades.
Considerando que todo homem é um ser social, gregário, sendo esta a
realidade objetiva que ajusta o próprio indivíduo, detendo hábitos, crenças e
valores que determinarão o papel a ser desempenhado por ele, admitimos que
o não atendimento a tais expectativas tornarão esse indivíduo um ser
diferenciado, excluído, marginalizado, estigmatizado.
Assim, para Foucault (1991), a genealogia do poder seria, portanto:
35
“(...) um empreendimento para libertar da sujeição
os saberes históricos. Isto é torná-los capazes lutar contra
a coerção do discurso teórico, unitário, formal e científico
(...) (Focault, 1991, p. 86).”
Desta maneira, valorizando saberes históricos, experiências de vida e de
práticas sociais, é possível promover mudanças profundas, num verdadeiro
processo de escolarização social, intra e inter grupos.
Do ponto de vista das práticas sociais, o indivíduo se organiza e busca,
de alguma forma, a transformação de sua realidade. Sua consciência sobre a
sua condição de ser social leva-o a atuar na perspectiva de resolver a
contradição do sistema e, por conseqüência, a modificar até mesmo o modo de
produção capitalista.
Através dessa consciência, ataca as causas que lhe deixam a
margem da sociedade. Foucault (1991), ao tratar dessa questão, aponta:
“A revolta toma uma forma consciente quando se
constituem as associações; o sindicalismo no seu sentido
original. A associação é a forma superior da revolta do
proletariado moderno, porque resolve a contradição
principal das massas: a oposição das massas entre si
causadas pelo sistema social e pelo seu mídeo, modo de
produção capitalista (Focault, 1991, p. 138).”
Considerando-se a escola como uma instituição corporificadora a idéias
e aspirações sociais, as limitações impostas ao cidadão comum, no que
concerne a seu preparo para a inserção na própria sociedade, tornam essa
instituição incapaz de concretizar expectativas, na medida em que sua prática
se mantém distanciada da realidade que a justifica.
36
Discuto, a seguir, a questão da exclusão social, sob a ótica de Teixeira
(1994), como forma de aprofundar um pouco mais o aspecto das
desigualdades sociais e suas conseqüências refletindo no cenário educacional
brasileiro.
2.4 – Educação e Exclusão Social
De acordo com Anísio Teixeira (1994):
“(...) a idéia de uma escola universal para todos, a
partir da convenção revolucionária francesa, surge como
um novo estágio de humanidade, pois até então toda
educação escolar consistia na especialização de alguém
cuja formação já fora feita pela sociedade e em vigor pela
“classe” a que pertencia, nas artes escolares, que não
eram mais que tipos de ofícios intelectuais e sociais
(Teixeira, 1994, p. 39-40).”
Era a própria sociedade que formava os homens, de acordo com as
classes ou castas a que pertenciam. No tocante à preparação para o trabalho,
a formação ocorria sob o regime de mestre e aprendiz, através de participação
direta no cotidiano dentro dos ateliês e oficinas da época.
Para Anísio Teixeira (1994), ainda:
“(...) a escola e a universidade eram apenas
aspectos mais amplos dessa especialização do
artesanato, com mestres e alunos vivendo em comum,
nas corporações universitárias, em regime de
aprendizagem associada das pequenas e grandes artes
intelectuais (Teixeira, 1994, p. 40).”
37
Assim, com a Revolução Francesa propõe-se uma concepção de
sociedade sem privilégios de classe mostrando a escola, como o lugar onde o
indivíduo poderia buscar posição na vida social a partir do desenvolvimento de
dotes inatos, considerando o propósito de uma escola universal.
Pode-se observar, então, que a escola, de uma forma geral, não iria se
preocupar com a especialização de alguns indivíduos, e sim com a formação
do homem comum, cabendo à sociedade moderna e democrática oferecer-lhe
as condições para posterior especialização.
A educação tradicional do século XVIII foi obrigada a se transformar
quando passaram a ser-lhe exigidos compromissos com as diversas vocações
e profissões, decorrente de uma sociedade mais liberal e progressistas, apesar
da enorme resistência manifestada pelos educadores da época. Lentamente, o
modelo intelectualista deu lugar à escola moderna, cujas maiores
características seriam à busca de uma participação responsável na sociedade,
no tocante àqueles que nela ingressavam, em oposição à escola antiga, que,
alheia à vida cotidiana e indiferente às necessidades dos homens comuns, se
preocupava tão somente com a formação dos eruditos, intelectuais e críticos.
A escola antiga servia aos propósitos da classe dominante, sendo
inacessível ao cidadão comum, cujos objetivos, processos e métodos, senso
prático e conhecimento empírico de nada valiam.
Com o surgimento da ciência experimental, o intelectual formado pela
escola antiga, necessitava, elaborar mais o saber para produzir novos
conhecimentos, vai buscar nas oficinas do homem comum seus meios e
procedimentos, originando o sistema do conhecimento moderno, ou seja, a
ligação entre o conhecimento racional da escola antiga com a realidade
concreta do mundo e da existência.
38
Assim, a diferença entre uma escola e outra – a antiga e a moderna –
passa a ser considerada segundo o grau de segurança dos conhecimentos
(experimentos, comprovações), e não mais com base na natureza desses
mesmos conhecimentos.
O conhecimento experimental decorrente da especulação racional e da
especulação prática torna o lugar do conhecimento empírico e produz novas
tecnologias. As separações entre o prático e o teórico desapareceram, assim
como a diferença entre os homens da pesquisa e os da aplicação do
conhecimento.
Com essa evolução, a escola deixa de ser a instituição especializada
que preparava o homem escolástico e se torna uma fonte de educação do
homem comum para uma sociedade de trabalho científico. E essa sociedade
passa a preparar trabalhadores para as três fases do saber, ou seja, para a
pesquisa, para o ensino e para a tecnologia.
Tomando como diretriz uma proposta de educação para todos, surge a à
Escola Nova, decorrente dessa alteração da natureza, do conhecimento e do
saber. Deixando de ser segregadora ou especializada, passa a comprometer-
se com a educação de trabalhadores qualificados, dominadores de técnicas
diferenciadas, e de trabalhadores voltados para a pesquisa, para a formulação
de teorias e para o descobrimento de novas tecnologias.
Com o incremento da produção agrícola e fabril da sociedade moderna
surge a necessidade do desenvolvimento de novas “ferramentas” (tecnologias
e técnicas). Todas as escolas, desde o nível primário até o universitário,
passam a ser escolas dominantes de ciência, desenvolvendo aplicações e
generalizações a partir de teorias especializadas. Em todas as suas
modalidades, o ensino tem que se fazer pelo trabalho e pela ação, não mais
cabendo a simples exposição de palavras.
39
A escola brasileira, no entanto, permaneceu à margem dessa proposta
metodológica durante longas décadas. Para Anísio Teixeira (1994), alguns dos
exemplos que mais se aproximaram da nova proposta foram o Instituto
Tecnológico da Aeronáutica, em São José dos Campos, algumas escolas de
medicina e os cursos do SENAI, além de alguns cursos profissionais ou
técnicos industriais, e, por vezes, de cursos intensivos e de pós-graduação. E
conclui:
“(...) tudo isto é de certo modo ainda marginal e
extraordinário. Regulares e sistemáticas são as formas
arcaicas do ensino pela “exposição oral” e “reprodução
visual” de conceitos e nomenclaturas, mais ou menos
“definidas” por simples “compreensão” as quais
dominaram em boa parte a escola primária e
esmagadoramente a escola média, sobretudo a
secundária, e a maior parte das escolas superiores
(TEIXEIRA,1994, p. 46).”
Dessa forma, a escola brasileira concretizou-se como uma escola quase
medieval, sem qualquer caráter prático. Da História à Matemática, entre
exposições orais e memorização dos programas desenvolvidos, o aluno
brasileiro foi absorvido por um sistema assentado na reprodução, distanciado
da realidade e da prática do cotidiano de uma sociedade em desenvolvimento.
Cabia ao aluno compreender e fixar categorias, classificações e
distinções, habilitando-se a falar com certa erudição e eloqüência. Portanto, o
modelo educacional brasileiro consolidou-se como método de treinamento da
capacidade do educando para familiarizar-se com conceitos de todas as áreas
do saber. Tal modelo, na verdade, somente servia àqueles que, de alguma
forma, pudessem demonstrar uma capacidade intelectual diferenciada dos
homens comuns.
40
Se as nossas escolas são, metodologicamente, instituições que
selecionam e classificam os alunos, podemos dizer que tal “ritual de passagem”
corresponde a preparar-se para estar inserido nas classes média ou superior,
e, portanto, certamente no Brasil, negando sua condição de trabalhador.
Assim, escolarização e exclusão social são conceitos polarizados, que
colocam os membros de nossa sociedade em categorias diferenciadas, já que
cabe ao próprio sistema definir, previamente, àqueles que estarão em um ou
outro segmento social.
Até os anos de 1960 perdurou na educação brasileira o confronto entre
favorecidos e desfavorecidos, dentro de um contexto de sociedade dividida
entre dominantes e dominados, impedindo que a proposta de uma escola
viesse a concretizar-se no nosso meio.
Desde exigências de uniformes até os programas e currículos, a escola
se apresentava como um espaço de privilegiados, e a questão central da
democratização, ficou distante da idéia de educação comum (escola pública
americana), como também da escola única francesa, correntes que dominavam
a educação mundial, cujo eixo central, baseava-se em oferecer a todos uma
educação possível de inserção social e de trabalho.
As exceções eram as escolas profissionais, destinadas aos
desprivilegiados e aos trabalhadores.
Como forma de encaminhar o término desse capítulo, sigo para a última
discussão desse, discussão referente à relação existente entre democracia,
cidadania e educação.
2.5 – Democracia, Cidadania e Educação
41
Discuto agora a questão da relação entre a democracia, a cidadania e a
educação, baseada nos estudos de Maria Victória Benevides (1992),
adiantando de antemão que até hoje tal questão ainda não foi devidamente
respondida e que ainda há um longo e árduo caminho a percorrer para
chegarmos a alguma resposta.
Maria Victória Benevides, debatendo as relações entre a cidadania e
democracia, alerta que muito já se escreveu sobre a ausência do “povo” em
nosso país. Tema debatido dentro e fora das instituições acadêmicas, ainda
hoje, as correlações entre direitos do cidadão e democracia têm sido alvo de
discussões e reflexões desde o século XVIII.
Nossa noção de cidadania, por tudo isso, permanece ambígua:
enquanto para alguns é apenas aparência de democracia, discriminando
cidadãos de primeira, segunda e terceira ou nenhuma classe social; para
outros, como as elites que dependem do reconhecimento explícito das
hierarquias entre superiores e inferiores, para poderem manter seus privilégios,
parte da idéia de que uma igualdade, mesmo que jurídica, seria indesejável.
Para Benevides, na nossa constituição
“cidadão é o indivíduo que tem vínculo jurídico
com o Estado”, como por exemplo, o poder de voto,
sendo todos eles “livres e iguais perante as leis. Claro
está que essa idéia de cidadania se dissipa no ponto de
vista teórico, já que verdadeiramente nossos cidadãos
não participam da nação ou da construção de uma nova
ordem jurídica” (BENEVIDES, 1992, p. 74).
Vivemos numa sociedade excludente por excelência, onde a cidadania
se dá de forma passiva, colocando concessões no lugar de direitos. Portanto,
42
falar de democracia numa sociedade da qual os cidadãos efetivamente não
participam é mascarar a realidade.
Nesse contexto, inserem-se os desígnos de políticas públicas, definidas
sob bases corporativas, anti-sociais ou antidemocráticas, bem como o sistema
de educação brasileira.
Toda a festejada modernização política, denominada de democracia,
vem, ao longo dos anos, encobrindo direitos políticos que limitam a livre
participação nas mais diferentes instituições, além de serem diferenciados,
igualmente, o acesso à justiça, à segurança e à renda, mantendo, para bem
das elites dominantes, as hierarquias e diferenciações entre dominantes e
dominados.
Na verdade, os direitos que deveriam impregnar a ação cidadã ainda
são tratados como privilégios que só podem ser usufruídos sob determinadas
condições.
Para Marilena Chauí:
“(...) a cidadania ativa se define pelos princípios da
democracia, significando, necessariamente conquista e
consolidação social e política. A cidadania exige
instituições mediações e comportamentos próprios,
constituindo-se na criação de instituição permanente para
a expressão política, como partidos, legislação e órgãos
do poder público. Distingue-se, portanto da cidadania
passiva, já que essa é outorgada pelo Estado, com a idéia
moral do favor e da tutela (CHAUÍ, 1993, p. 42).”
Então, para falar de democracia e cidadania no Brasil torna-se premente
uma revisão dos conceitos, buscando a ampliação dos direitos políticos para a
43
participação direta dos indivíduos nos processos de decisão de interesse
público, numa ação mais ampla de reeducação política.
A grande distância existente entre o povo e os órgãos de decisão,
especialmente nas sociedades contemporâneas, dá sustentação a uma
concepção retrógrada de cidadania, estabelecendo um (des)caminho para a
adoção de políticas nem tão públicas, portanto nem tão interessadas nas
grandes questões sociais, como educação, saúde, habilitação e saneamento.
A participação efetiva do povo nos processos decisórios redesenha
novos limites para a educação política da sociedade. No entanto, enquanto
permanecer na condição de “concessão exacerbada” permite a movimentação
das elites dominantes, que vão “se desculpando” cinicamente das condições de
miserabilidade da população, como se estas tivessem causa em si mesmos.
Casemiro Reis Filho (1981) mostra que:
“(...) já no século passado a educação consistia no
mais eficiente instrumento para construção de um Estado
Republicano Democrático. Acreditava que um regime
político que se defina como sendo do povo e para o povo
necessitava de uma sólida organização escolar, capaz de
oferecer uma formação política, a mais completa possível,
a todos os cidadãos (REIS FILHO, 1981, p. 178).”
Assim, o que diferencia as elites autoritárias das liberais, segundo
Arroyo (1981), é que estas se declaram a favor de educar as camadas
populares para um dia participarem: o dia em que essas elites as julgarem
capacitadas.
Assim, o mesmo discurso que enfatiza a liberdade e a cidadania também
dá ênfase à necessidade de uma educação para a liberdade e para a
44
cidadania, e este binômio parece equacionar as questões inerentes ao poder e
às relações entre classes.
Portanto, se a educação passa a ser percebida como mecanismo
possível para a constituição de uma nova ordem social, ela mesma passa a ser
utilizada como um dos mecanismos dessa nova sociedade.
Entendemos que a questão das relações entre educação e cidadania
ainda não foi devidamente respondida, já que até hoje persiste a idéia de que a
cidadania das camadas populares depende da capacidade de o Estado
conduzir e proteger o povo contra si próprio, contra a irracionalidade dos “falsos
condutores”, cabendo inclusive uma reflexão sobre a possibilidade da
educação escolar aumentar os níveis de igualdade social e de participação
política.
Falar verdadeiramente de democracia implica uma ampla reflexão sobre
a necessidade de se usufruir da cidadania outorgada e controlada pelo Estado,
através dos seus diferentes institutos, dentre eles a Educação, e, por outro
lado, sobre a hipótese de essa cidadania ser constituída de forma processual,
dentro e a partir das vivências dos vários grupos sociais, com suas práticas e
com sua política de classes.
45
CAPÍTULO III
Educação Penitenciária – Conhecendo a Escola
Estadual de Ensino Supletivo Mário Quintana (E.E.E.S. Mário Quintana)
O capítulo a seguir apresenta a Escola Estadual de Ensino Supletivo
Mário Quintana – E.E.E.S. Mário Quintana uma escola diferenciada posto que
se encontra alocada no Complexo Penitenciário Frei Caneca, mais
precisamente, na Unidade Lemos de Brito3 onde realizei estágio na área de
Educação de Jovens e Adultos.
A escolha dessa como objeto de estudo deve-se, antes de qualquer
outro motivo, a um ideal de vida – motivos pessoais que não cabem no
momento – e ao fato que desde meu ingresso na vida acadêmica almejo
trabalhar com a educação no interior das unidades prisionais do Estado do
Rio de Janeiro.
As práticas que embasam a construção desse se deram no campo das
observações e da participação em eventos da escola, como: III Festival de
Música, aulas, organização da formatura, etc. Observações e práticas
vivenciadas entre os meses de outubro/novembro/dezembro do ano de 2002.
Ressalto, pois, que no decorrer desse capítulo serão feitas incursões ao
cotidiano, às práticas sociais e às relações interpessoais na Penitenciária
Lemos de Brito, já que não é possível, pensar-se a Escola Mário Quintana
sem pensar no ambiente social; no sistema em que ela se encontra inserida.
Destaco que são feitas no presente capítulo uma série de notas de rodapé,
4 Inicialmente Casa de Correção da Cidade do Rio de Janeiro, foi criada pela Carta Régia de D. José I, “El Rei”. Entretanto, somente em 06/07/1850 foi regularmente estruturada. Em 24/12/1941 recebeu a denominação de Penitenciária Professor Lemos de Brito. Em 1960, com a criação do Estado da Guanabara passou a subordinar-se ao Governo Estadual. Em 28/04/1970 recebeu o nome de Instituto Penal Lemos de Brito que ostentou até 22/09/1981, quando recebeu a denominação atual. Abriga, atualmente, presos do regime fechado e possui capacidade para 610 detentos.
46
construídos com o apoio do advogado Itamar Cláudio Netto, já que não
domino, como gostaria, a literatura jurídica e a realidade mais intrínseca das
unidades penitenciárias.
Neste encontram-se um breve histórico da escola, sua fundamentação, a
caracterização sócio-econômico-cultural da comunidade escolar, a descrição
da sua realidade, além da descrição/análise das atividades
observadas/participadas quanto à relevância e a relação das mesmas com a
Educação de Jovens e Adultos.
3.1 – Breve Histórico da E.E.E.S. Mário Quintana
A Escola Estadual de Ensino Supletivo Mário Quintana localiza-se à Rua
Frei Caneca, n.º. 463 - Cidade Nova, tendo sua base dentro da Penitenciária
Lemos de Brito4, estando ainda em 3 outras unidades do Complexo, onde
atende aos internos que cumprem suas penas – regime fechado – a saber:
Presídio Feminino Nelson Hungria, Penitenciária Petrolino de Oliveira e
Presídio Hélio Gomes5.
Fundada em 1968, com o nome Classe Operação Lemos de Brito – 1º
escola prisional do Brasil – e confirmada pela portaria n. º. 2529/ECDAT,
datada de 14 de janeiro de 1988, através de um convênio de cooperação
entre as Secretarias de Educação (SEE) e Justiça. Posteriormente, passou a
chamar-se Escola Supletiva Lemos de Brito.
4 Essa é uma das sete unidades prisionais que constituem o Complexo Penitenciário Frei Caneca. Além desta penitenciária, fazem parte do Complexo o Presídio Hélio Gomes. O Presídio Feminino Nelson Hungria, a Penitenciária Milton Dias Moreira, a Penitenciária Petrolino de Oliveira, o Hospital Fábio Soares Maciel (HC) e o Hospital de Custódia e Tratamento Heitor Carrilho. 5 Tecnicamente, Penitenciária é destinada a presos, com condenação, cuja sentença transitou em julgado, isto é, não há nenhuma possibilidade de mudança, exceto pela revisão criminal; enquanto, Presídios destinam-se a presos sem o trânsito em julgado de suas sentenças. Porém, em razão da realidade do Sistema Prisional do Estado do Rio de Janeiro, ambas têm sido destinadas ao confinamento de qualquer categoria. Há atualmente no estado as Casas de Custódias que estão sendo destinadas para presos oriundos de Delegacias Policias, onde aguardarem julgamento.
47
Convém ressaltar que até 1973 a escola oferecia da alfabetização à 4º
série do ensino fundamental e que a partir de 1974 passou a oferecer,
também, o 2 º ciclo do ensino fundamental.
Em 1994, a escola recebeu o nome Escola Estadual de Ensino Supletivo
Mário Quintana6 hoje, encontra-se em andamento o processo n. º. IE
30/16204153/98 para a transformação do nome da escola, para Colégio
Estadual de Ensino Supletivo Mário Quintana tendo em vista, a
implementação do ensino médio regular na escola. A implementação do
ensino médio na escola é fato único na história da educação no interior das
unidades prisionais do Estado e, estaria formando sua primeira turma, aos
quatorze dias do mês de dezembro do ano corrente.
A escola possui um total de 350 alunos distribuídos em 19 turmas, que
são atendidas por 17 professores concursados, 12 professores contratados e
9 professores com Gratificação por Lotação Prioritária (GLP), distribuídos
pelas 4 unidades em que se encontra inserida.
No ano 2000 a Escola Mário Quintana estendeu-se a todas as unidades
prisionais do Complexo Penitenciário Frei Caneca, fato que se deu graças à
credibilidade que esta, representada magistralmente na pessoa de sua
Diretora Maria Estella B. Morgado goza junto às Secretarias de Educação e
Justiça.
Após esse breve histórico da Escola Mário Quintana passo a
apresentação de sua fundamentação teórico-metodológica, embasando-se
para tal no Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola (em anexo).
6A mudança de nome favoreceu aos alunos, pois ao receberem o diploma desta escola, não fica caracterizado o fato de terem cursado uma escola dentro de uma unidade prisional.
48
3.2 – Fundamentação teórico-metodológica
Estudando o projeto político pedagógico (anexo) da escola, pude
deparar-me com uma visão de educação direcionada para a construção do
conhecimento, para a formação crítica do cidadão, para o desenvolvimento
da consciência individual e social de seus alunos7. Visão essa posta em
prática no cotidiano de escola, no respeito dos educadores para com seus
educandos e na reciprocidade desse8, e em uma gama de práticas que serão
mencionadas no decorrer desse.
Destaco agora, trechos do PPP que considero relevantes e que
deveriam permear os PPP das demais escolas da rede e suas práticas
pedagógicas diárias, principalmente das escolas que trabalham com a
educação de jovens e adultos.
“... no contexto das propostas dos Parâmetros
Curriculares Nacionais se concebe a educação
escolar como uma prática que tem a possibilidade de
criar condições para que todos os alunos
desenvolvam suas capacidades e aprendam os
conteúdos necessários para construir instrumentos
de compreensão da realidade e de participação em
relações sociais, políticas e culturais diversificadas e
cada vez mais amplas, condições estas
fundamentais para o exercício da cidadania na
construção de uma sociedade democrática e não
excludente”. (PCN,p.45)
7 Não devemos, no entanto, iludirmo-nos com os alunos que freqüentam a Escola, pois, se fizermos uma pequena observação, facilmente perceberemos que nas Unidades Prisionais do Estado do Rio de Janeiro há falta de trabalho para os apenados e, por conseqüência, estes apegam-se a qualquer oportunidade que possa levá-los ao convívio com outras pessoas e que possa distrair suas mentes. Assim, nem todos efetivamente desejam o conhecimento, funcionando a escola como uma “válvula de escape” para muitos. 8 Na prática é o que acontece, pois, qualquer desvio que possam ter com relação aos funcionários da escola, resultaria em “problemas” para todos os apenados. Haveria punição severa por parte dos Agentes e pelos seus próprios pares. Assim, é melhor haver respeito!
49
O papel do educador de jovens e adultos que atua nas escolas alocadas
dentro das unidades prisionais do estado é posto em discussão uma vez que
fora todas as dificuldades inerentes à profissão, esses se encontram em um
local em que a violência existe sob todas as formas, algumas vezes veladas,
outras não, um local onde a miséria coexiste com os alunos/internos, não a
miséria do dinheiro9, mas a miséria do respeito10, da dignidade11, da
higiene12, da humanização, de atitudes. Não quero dizer com isso, que as
unidades prisionais deveriam ser “hotéis cinco estrelas”13, mas apenas
esclarecer que no meu modo de entender as coisas, um sistema que foi
concebido a priori para “recuperar”14 o homem para o seu posterior
“reingresso” à sociedade, não o faz, posto que, submete esses homens à
condições sub-humanas, à ociosidade, à improdutividade e não, à atividades
educacionais, ao trabalho, a arte, ao esporte enfim, a atividades que
9 Quase todos os apenados do Estado do Rio de Janeiro (mais de 98% provavelmente) são pobres ou miseráveis que, em muitos dos casos, dependiam do produto do crime para seu sustento e o de sua família. 10 São postos de lado e passam a sofrer todos os tipos de humilhação possíveis e imagináveis, sobretudo, por parte dos Agentes de Segurança Penitenciária. 11 Na realidade em que vivemos é muito difícil se falar em dignidade para os presos. 12 As instalações chegam a ser deprimentes; por mais que tentem manter a limpeza não conseguem, pois, a maioria não se preocupa. A noite há uma verdadeira invasão de ratos que se alimentam das sobras de alimentos deixadas pelos detentos; os ratos chegam ao extremo de caminhar sobre os apenados que dormem. É comum ver vários deles nas galerias; às vezes 30, 40 e, até mesmo, 50 ratos de uma só vez. Quando há aplicação de veneno contra os mesmos é comum encontrar 300 ou 400 mortos, mas, eles persistem. Até os presídios e penitenciárias mais novas apresentam tal quadro. A culpa deve ser dividida entre as autoridades que são inertes e os apenados que parecem ter o prazer de destruir tudo. 13 Guardadas as devidas proporções, tal fato chega a acontecer nas unidades prisionais em que se encontram presos os “barões do tráfico” e, no passado, quando da prisão dos “banqueiros do bicho”. 14 Em um primeiro momento a pena teve caráter meramente retributivo – punitivo, ou seja, após “os homens passarem a viver em grupos, formando uma comunidade, ainda que muito incipiente, sentiram eles a necessidade de disciplinar a sua própria conduta, traçando normas de respeito aos direitos de cada um”. Tais normas para surtirem efeito necessitavam, a exemplo do que ocorre atualmente, de algo além do preceito, ou seja, da sanção.
Assim, em um passado distante surgiram as primeiras normas de caráter meramente punitivo; normas que visavam tão somente a satisfação da vítima ou da sociedade, sem nenhuma preocupação com as conseqüências advindas ao delinqüente e, muito menos, cogitava-se a possibilidade deste vir a alcançar a ressocialização. Como exemplo de tais normas podemos citar: o Código de Hamurabi, a Legislação Mosaica, o Código de Manu, o Direito na Grécia Antiga: A Legislação de Drácon e de Sólon, a Lei das XII Tábuas, o Alcorão, etc.
50
pudessem lhes ser úteis de alguma forma, quando da obtenção da
liberdade.15
No tocante a metodologia de ensino, aos conteúdos e as práticas
pedagógicas, a escola as constituem como objeto de ampliação da visão de
mundo de seus educandos, tendo como um de seus fios condutores a
interdisciplinaridade. Remeto-me, pois, aos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN) como forma de endossar a opção metodológica da escola:
“Para ser uma organização eficaz no
cumprimento de propósitos estabelecidos em
conjunto por professores, coordenadores e o diretor,
e garantir a formação coerente de seus alunos ao
longo da escolaridade obrigatória, é imprescindível
que cada escola discuta e construa seu projeto
educativo”. (PCN, p.488)
E ainda:
“Os PCNs propõe uma mudança de enfoque
em relação aos conteúdos curriculares: ao invés de
um ensino onde o estudo seja visto como um fim em
si mesmo, o que se propõe é um ensino em que o
conteúdo seja visto como meio para que os alunos
15 É fato que todo o sistema parece conspirar contra a educação do apenado, isto é, além de todas as dificuldades, já anteriormente elencadas, os profissionais da educação e, porque não dizer, todas as pessoas que de alguma maneira tentam contribuir para a recuperação do delinqüente, passam a ser vistas pelos Agentes de Segurança Penitenciária – pelo menos a nível de Estado do Rio de Janeiro – como pessoas indesejáveis. Estes são avessos a tudo e a todos que tenham por objetivo contribuir para uma vida mais digna e humana em relação aos presidiários. Tal fato é facilmente entendido se levarmos em consideração, a verdade que se tornou mentira e vice-versa. O Agente de Segurança Penitenciária é o elo de ligação entre o preso e qualquer outra coisa, ou seja, aquele convive ininterruptamente com este, e, assim deveria ser o primeiro elo na corrente da ressocialização. Porém, o Agente, em razão da total falta de uma Política Criminal séria, nesse estado, deixa de assumir o seu papel ressocializador para assumir o de policial, embora não o seja. Os próprios apenados já absorveram esta informação equivocada e passam a chamá-los de “policiais”, a exemplo do que ocorre, também, com a sociedade. Desta forma, aquele que
51
desenvolvam as capacidades que lhes permitam
produzir e usufruir os bens culturais, sociais e
econômicos”. (PCN, p. 488)
Destaco que o PPP da Escola Mário Quintana foi construído pelo
conjunto dos corpos docente e discente da escola, mediante encontros para
discussão dos problemas e do cotidiano da escola, para a construção coletiva
e verosímil de um Projeto que viesse a atender “de fato” às necessidades da
comunidade escolar como um todo.
Caracterizo sócio-econômica e culturalmente a comunidade escolar, a
partir de agora, e descrevo a realidade da escola mais uma vez, tomando
como instrumento de pesquisa o PPP da escola e, as observações realizadas
até a presente data.
3.3 – A comunidade escolar e suas características
Mediante as informações obtidas quando do estudo do PPP, traço,
modestamente, um perfil do corpo discente da Escola Mário Quintana quanto
sua faixa etária, sua classe social de origem, sua escolaridade, sua renda
familiar, dentre outras características, como forma de apresentar à
comunidade universitária, a vida “intra-muros” de uma unidade prisional e
mais, de uma escola que coexiste à essa unidade.
A faixa etária preponderante na escola á superior aos 21 anos16, com
exceção para os educandos da classe de alfabetização onde, a média de
idade é de 40 anos. Essa discrepância quanto a média de idade, deve-se ao
fato de que a maioria dos educandos dos ensinos fundamental e médio, antes
teria uma grande responsabilidade no caminho da ressocialização, torna-se o principal inimigo do delinqüente. Então, sendo inimigo poderia, de alguma maneira, contribuir para a ressocialização? 16 A nível de Rio de Janeiro, os apenados com idade entre 18 e 21 anos, na medida do possível, são concentrados na Penitenciária Moniz Sodré, localizada no Complexo Penitenciário de Bangu.
52
de se tornarem apenados, tiveram alguma passagem pelo sistema
educacional, não o completando, porém. Já, quanto os educandos da
alfabetização, quase sua totalidade nunca freqüentou o sistema educacional
em “função da falta de oportunidades, provenientes das condições precárias
da vida e de falta de estrutura familiar”17 (PPP, p. 5).
Como forma de reafirmar os últimos dados divulgados pelo IBGE,
posteriormente ao Censo 2000, realizado dentro das unidades prisionais do
Brasil, onde: 96% dos internos são do sexo masculino e, que 98% são
absolutamente pobres18, colho do PPP da escola, a seguinte informação:
“O nosso alunado é fundamentalmente
masculino, com exceção da classe de alfabetização
do presídio feminino Nelson Hungria. Em sua
totalidade, os internos são oriundos de classes
menos favorecidas da sociedade”.(PPP, p. 5)
17 Falar em família é o mesmo que se referir ao início; ela é o principal alicerce do caráter e da personalidade humanas e, desta maneira, exerce, ou pelo menos deveria exercer, papel singular no que diz respeito à preparação do indivíduo para o convívio social; aliás, aquela é, sem dúvida alguma, o primeiro grupo social no qual a pessoa é inserida e com o qual passa a conviver.
É preciso lembrar, ainda, que o delinqüente, antes de ser produto de uma sociedade corrompida, é fruto de uma família desestruturada. Assim, não havendo um maior envolvimento social e conseqüentemente familiar, aquele continuará a ser produzido.
Assim, entendo que a participação familiar é de suma importância em dois momentos, a saber: - Preventivamente, isto é, a família deve orientar a seus jovens e, se necessário for, usar
de todos os meios para influenciá-los de maneira positiva; lembre que ninguém se torna um delinqüente de um dia para o outro, ou seja, existe todo um processo que a família prefere fingir não ver. Valores devem e precisam ser cultivados no seio familiar.
- Repressivamente, isto é, há uma série de razões que podem levar um indivíduo a delinqüir, as quais podem somente ser conhecidas após a efetiva ocorrência do fato, assim, deve ser afastado das razões que o conduziram à delinqüência. É o caso, por exemplo, de afastar de imediato o delinqüente de locais, amigos, influências, etc., que possam conduzi-lo à reincidência.
Quando há ausência de coesão e de integração da família, os seus membros são mais inclinados a um comportamento criminoso do que aqueles que vivem dentro de uma estrutura familiar bem constituída. A desorganização familiar é fator condicionante e de grande influência no aparecimento da delinqüência. 18 Já em 1516, Thomas More, na Obra “Utopia” advertia que em um país, quando há miséria do povo e observa-se riqueza e ostentação nas classes superiores, isto origina uma incidência maior na criminalidade, devido a um relaxamento maior da ordem moral, decorrente do irritante e desmoralizado luxo do rico.
53
Destaco ainda que os internos não são obrigados à freqüentar a escola,
fazendo-o, pois, por sua livre e espontânea vontade e/ou pelos mais variados
motivos, como: a oportunidade de estar convivendo com pessoas
(direção/professores/apoio administrativo) que proporcionam sua
aproximação com o mundo “extra-muros”, a possibilidade de novos
conhecimentos, a ampliação de seus valores, a reformulação de suas
relações humanas enfim, a oportunidade de ser respeitado e tratado como
um produtor de “coisas boas” – poesia, música, arte – e não como mais um
interno, um devedor da justiça sem direitos a nada, a não ser as humilhações,
aos maus tratos etc19.
“O aluno apenado busca na escola um meio de
se reencontrar com a sociedade e consigo e
encontra um convívio social baseado no respeito,
levando-o a obter, ou resgatar princípios que ao
longo da vida se perderam”. (PPP, p.7)
Tendo em vista essa conjuntura sócio-cultural na qual seu aluno/interno
encontra-se inserido, a Escola Mário Quintana busca em sua prática diária
humanizar cada vez mais as relações sociais para com /e com seu corpo
discente.
Apesar de todos os esforços do corpo docente e administrativo da
escola, pontos negativos ainda permeiam o cotidiano de seu alunado, como a
dificuldade de conciliar o estudo e o trabalho, o pouco esclarecimento quanto
à remissão20 da pena em relação aos dias de aula freqüentados etc.
Encerro por aqui minhas observações acerca das características sócio-
econômicas e culturais da comunidade escolar, uma vez que ainda preciso
19 Atualmente há possibilidade de remissão em relação aos dias de freqüência às aulas. 20 Segundo a Lei n º 7.210, de 11 de julho de 1984 - Lei de Execuções Penais – Art. 126 e seguintes, fica estabelecido que poderá, desde que não seja punido por falta disciplinar de natureza grave, descontar de sua pena 1 dia a cada 3 dias trabalhados. Atualmente o mesmo ocorre com a freqüência às aulas, porém, a carga horária é reduzida em 2 horas, ou seja, de 8 para 6.
54
discorrer a respeito dos pontos de relevância no que tange o cotidiano, a
realidade da Escola Mário Quintana.
Deter-me-ei, a seguir, à descrição desse cotidiano/realidade, mais uma
vez apoiando-me em observações pessoais e no PPP da Escola.
3.3.1 – A realidade nua e crua
A Escola Mário Quintana funciona no final do 1º andar da Penitenciária
Lemos de Brito em 12 celas desativadas e adaptadas para serem salas de
aula, sala da direção, sala dos professores, copa e sala de informática. As
salas são pintadas, porém apresentam infiltrações – como em toda a unidade
– as dependências da escola são limpas diariamente e suas condições de
higiene são satisfatórias21.
O auditório da penitenciária, seus campos e quadras destinados ao
banho de sol dos internos são cedidos à escola, pela Direção da unidade, por
ocasião de eventos e das aulas de educação física22.
Há alguns meses a escola recebeu da Direção da unidade uma área
livre, geminada as suas dependências, que deverá ser construída
gradualmente, como toda as antigas instalações o foram. São os próprios
apenados da unidade que trabalham nas obras da escola e da unidade23.
A escola conta com um aparelho de televisão, um aparelho de
videocassete, fitas de vídeo educativas, mapas históricos, geográficos e
21 É obvio, entretanto, que para um melhor desenvolvimento educacional há necessidade de um maior investimento por parte das autoridades constituídas, no sentido de que melhor possa atender aos requisitos mínimos da modernidade. 22 O ideal seria, por tratar-se de um complexo penitenciário, que um dos prédios ali localizados, ou um novo, fosse destinado à educação, conferindo assim, maior autonomia aos profissionais da área. 23 O Estado não parece realmente se importar com investimentos na área educacional para presidiários. Caso queiram melhorias, estes devem providenciá-las por si sós. O Estado nada faz, mas quer colher os frutos e receber as glórias.
55
biológicos, dois aparelhos de som e de instrumentos de música que são
utilizados por seus docentes como recursos para o enriquecimento de suas
aulas24. Tais recursos são adquiridos pela escola com a verba à ela destinada
pela SEE. Infelizmente, já ocorreram furtos na escola, indignando a todos da
comunidade escolar, sem que, no entanto seu/seus autor/autores seja/sejam
identificado/identificados25.
A escola possui ainda uma biblioteca com aproximadamente 200
volumes que momentaneamente está sem espaço físico para se instalar,
devido às obras que estão sendo realizadas na escola, para a construção da
sala de informática, mas que estão a disposição dos educando para leitura,
pesquisas etc. Ao tomar conhecimento desse acervo bibliográfico me surgiu a
idéia de pensar um projeto de leitura/literatura junto à escola e a sua
comunidade , que de antemão, já recebeu a permissão da Diretora Estella
para ser implementado na escola em 2003.
São oferecidas pela escola oficinas de leitura, artes, redação e música.
Tais oficinas têm seus ápices em eventos como a Feira de Ciências, o
Concurso de Prosa, Poesia e Desenho e o Festival de Música, sendo esse
extensivo ao “coletivo da unidade”26.
O horário de funcionamento27 da escola28 é das 8h30mim às 17h, sendo
que as aulas ocorrem no turno da manhã das 8h30mim às 12h e no turno da
24 É obvio que trabalhamos com aquilo que temos, porém, em se tratando de uma universalidade de 350 alunos, fica claro o tipo de deficiência vivido pelos profissionais da área da educação. O quadro é terrível e, possivelmente, demorará muito para ser mudado, pois, como bem sabemos, grande parte dos apenados do Estado do Rio de Janeiro são semi ou completamente analfabetos; sendo educados muito provavelmente passarão a conhecer melhor seus direitos e fatalmente a questioná-los. Será que isto é interessante para as autoridades? 25 É fato que dentro dos muros de uma penitenciária, as leis elaboradas pelos próprios apenados funcionam de maneira surpreendente, isto é, a bagunça e desrespeito que ocorrem no seio da sociedade, dificilmente ocorreria naquela sociedade, pois, ali as regras são bastante claras e as “penas” bastante violentas, chegando em muitos casos a se “pagar” com a própria vida. Assim, de acordo com o pensamento de algumas pessoas ligadas ao setor, dificilmente um apenado praticaria tais furtos. 26 O termo “coletivo da unidade” é utilizado para designar o grupo de apenados que não se encontram matriculados na escola, mas que estão internos na unidade; é o termo utilizado para se referir ao todo. 27 Embora não seja o caso específico de nossa escola, por estarem os presos soltos durante o dia nas dependências da unidade, é comum acontecer, nas unidades onde os presos ficam confinados em galerias
56
tarde das 12h e15mim às 17h, salvo algum imprevisto29. Como forma de
demonstrar o quanto estar alocada dentro de uma unidade prisional atinge
diretamente o cotidiano de uma instituição de ensino, cito a questão do
horário do término das aulas no turno da manhã: teoricamente ele se encerra
às 12h, no entanto, como o almoço na unidade começa a ser servido às 11h,
entre 11h e 15mim e 11h e 30mim, os alunos começam a ficar agitados e as
professoras acabam por liberá-los, posto que se eles chegarem tarde no
refeitório, encontrarão a comida completamente revirada e escolhida30.
Sabemos, pois, que meia hora a cada dia faz diferença no final de um ano
letivo, mas sabemos também, que não podemos deixar que os alunos se
alimentem pior do que já se alimentam.
Há uma rotatividade significativa de alunos na escola, visto que por se
tratar de uma escola prisional, sempre estão chegando novos internos –
possíveis aluno – outros estão sendo transferidos para as demais unidades
do Sistema e alguns ganhando a tão almejada liberdade.
Penso que as informações fornecidas até o momento, possibilitam a
comunidade universitária ou quem o venha a ler, a conhecer uma ínfima parte
do cotidiano de uma escola diferenciada. De qualquer forma, ao final desse,
anexo o Projeto Político Pedagógico da escola, caso desejem consultá-lo a
fim de melhor conhecer a Escola Mário Quintana.
Detenho-me a partir de agora, a descrição de momentos distintos das
minhas incursões pela Escola Mário Quintana, a saber: o primeiro dia, o
(“tranca”) durante o dia, que somente sejam liberados pelos Agentes de Segurança com atrasos de até 45 minutos. 28 O horário de funcionamento da escola é determinado pela Segurança e pela Direção do Complexo Penitenciário Frei Caneca. 29 Na realidade as aulas somente ocorrem se a Direção ou o Serviço de Segurança da Unidade Prisional estiver de acordo, pois, caso contrário determina outra atividade ligada à realidade penitenciária (por exemplo, revista nas celas, greves, etc), e, automaticamente, as aulas são suspensas. Basta qualquer, suposta, confusão para que suspendam as aulas por motivos de segurança. 30 As autoridades não tomam nenhum tipo de providência no sentido de resolver a questão tão simples. Bastaria separar um conteiner fechado com a refeição dos alunos da escola.
57
Festival de Música, a primeira aula. Na medida do “meu possível” pretendo
além de descrevê-los, analisá-los social e pedagogicamente.
3.4 – EU, a escola e o cárcere
A priori quero registrar o quão difícil foi viabilizar meu acesso a uma
“escola diferenciada”31 visto que a burocracia do Sistema é enorme e ao fato
que dentro da Academia32 poucas são as pessoas que se interessam por
esse objeto de estudo33. Esse estudo só foi possível graças à professora
Regina Glória, que trabalha na Escola Mário Quintana e viabilizou minha
entrada lá junto à Diretora Estella. Ambas, como eu, acreditam que a
Educação é um viés para a “recuperação”, ou como gostam os
representantes da Justiça para a “ressocialização”34 da comunidade apenada.
Faço minhas as palavras do PPP (p.8) da escola, quando esse coloca
que o termo “ressocialização” é inadequado, pois vários de nossos alunos
quando estavam fora do sistema penal, já viviam um processo de
marginalização e exclusão social. Não se pode ressocializar, ou seja, fazer
31 Essa é uma das denominações utilizadas para denominar à escola que funciona dentro de unidade prisional. 32 A única Universidade do Estado do Rio de Janeiro que trabalha esse tema é a Pontifícia Universidade Católica (PUC). A UERJ só trabalha a questão dos menores em situação de risco social , os menores em conflito com a lei e as medidas sócio-educativas à eles aplicadas, na pessoa do professor Basílio. 33 Outro fator importante relaciona-se ao fato de a sociedade não se envolver em tais assuntos. Esta considera o delinqüente um “lixo social” e quer, tão somente, livrar-se dele, sem se preocupar com o destino que lhe será dado pelas autoridades; não há preocupação se este será reciclado ou não, esquecendo-se que se tal não acontecer, este voltará e as conseqüências negativas serão, sem sombra de dúvidas, maiores que as primeiras.
Por outro lado, muitos defendem a pena de morte em nosso país como forma de combate eficaz à delinqüência, sem saberem que, com exceção ao caso de guerra declarada, aquela jamais poderá figurar em nossa atual ordem constitucional, pois, é uma das cláusulas constitucionais que não admite mudança, e, assim, teremos que conviver com o problema da criminalidade sem a esperança de que tenhamos, dentro da legalidade, a pena capital em nossa Nação, ou seja, somente poderemos cogitar a pena de morte, em nosso país, em face de uma nova Constituição. Assim, se não podemos eliminar, resta-nos somente reciclar. Aliás, certa vez, alguém muito próximo disse-me: “Quem morre não aprende e quem mata não ensina”. Por algum tempo não concordei, porém, por que não ensinarmos, pelo menos, àqueles que querem realmente aprender? 34 Há uma discussão no sentido de que o conceito correto não seria o da ressocialização, mas, sim o da socialização, pois, para aqueles que defendem a este o delinqüente sempre esteve à margem da sociedade.
58
voltar para o meio “social”, alguém que esteve sempre nas fímbrias do
sistema.
O primeiro dia – 23/10/2002.
“Treze horas de uma Quarta-feira nublada e chuvosa de outubro de
2002 e estou a alguns metros de começar a realizar o meu projeto
pedagógico mais audacioso, entrar para o grupo de profissionais da educação
que trabalham no interior das unidades prisionais do estado do Rio de
Janeiro. Não posso negar que a ansiedade e o medo me assolam, afinal
estou prestes a adentrar uma das unidades prisionais do estado e,
consequentemente a me expor a todos os riscos que essa possa me trazer.
Para aumentar meu medo, sou extremamente mal tratada por um
agente do Serviço de Operações Especiais (SOE)35 que estava de plantão na
portaria principal do Complexo Penitenciário Frei Caneca, quando o perguntei
sobre minha autorização para entrar no Complexo e na Escola – que até
então desconhecia o nome.
Uma hora depois desse “mal estar” houve a troca da “turma”36 da manhã
e finalmente consegui ser bem atendida. Fui informada que minha liberação já
se encontrava na portaria e que eu deveria me dirigir à unidade Lemos de
Brito visto que a escola para onde eu iria se localiza em suas dependências e
se chama Escola Estadual de Ensino Supletivo Mário Quintana. Apesar desse
agente ter liberado minha entrada na unidade, preferi esperar pela Regina
35 Eles autodenominam-se desta maneira, porém a sigla SOE, efetivamente, significa: Serviço de Operações Externas. A palavra "especiais" foi vetada por outros órgãos em razão de não possuírem aqueles nenhum curso ou treinamento específico ou especial. São Agentes de Segurança Penitenciária que diferenciariam dos demais somente por dois aspectos: sua total falta de educação e por usarem um uniforme todo preto. Sua função real é o transporte de apenados para audiências, atendimento médico, e, para servirem de apoio às Unidades no caso de rebeliões ou emergências. Somente adentram as Unidades em caso de emergência se autorizados pela direção, o que demonstra claramente sua falta de autonomia. 36 É assim que os grupos de agentes se chamam.
59
afinal não conhecia nada ali dentro e, ainda estava um tanto quanto
assustada.
Logo, Regina chega e começa nossa preparação para entrarmos na
unidade: entregar carteira de identidade e celular, receber crachá e
"plaquinha", seguir para o detector de metais e para a revista, abrir bolsa,
estojo, folhear livros e ... liberada !!!.
Encontro-me agora no jardim central do Complexo de onde posso
visualizar as várias unidades nele alocadas. Regina então, conduz-me ao
prédio da unidade Lemos de Brito e, mais uma vez... Quem você é? Aonde
você vai? Olhar desconfiado, mas ... liberada !!!.
Primeira tranca ...
Segunda tranca ...
Enfim, corredor principal da unidade. Sobressalto-me quando percebo
que os internos estão circulando pela unidade, e ao indagar Regina, esta me
explica que o regime da unidade é o “tranca aberta”37. Durante o trajeto até a
escola – final do corredor principal à esquerda – cumprimentamos e somos
cumprimentadas por todos, até pelos agentes. Confesso que olhei e fui
olhada com estranheza por muitos... passou!!!
Chego então a Escola Mário Quintana, ainda acompanhada de
ansiedade, exaltação, mas já sem medo. Regina me apresenta a todos e sou
muito bem recebida. Aproveito a oportunidade e apresento à Diretora Estella
meu “projeto” de pesquisa e lhe falo sobre meu interesse de permanecer
37 As penitenciárias são unidades onde o regime das trancas é o fechado, ou seja, os internos passam os dias trancafiados dentro de suas celas, saindo apenas para as refeições e para o banho de sol. Já os presídios funcionam com o regime de tranca aberta, ou seja, os internos circulam livremente pela unidade, tendo suas celas abertas ela manhã e fechadas após o jantar.
60
freqüentando a escola e a ela ser útil sempre que possível, e de pronto ela
me abriu as portas da escola.
Como uma ala da unidade que estava em obras ficou pronta e os
internos tinham que realizar suas mudanças para ela, a fim de que outra ala
entrasse em obras, as aulas ficaram esvaziadas e por fim, todos foram
liberados.
Cinco horas, hora de ir embora e mais uma vez ... Tchau, tchau, tchau
corredor afora, abrir tranca, fechar tranca, outra tranca, portaria principal,
nova revista38, abre bolsa, estojo, folheia livros, pega a identidade e o celular,
obrigada, tchau, ou melhor, até sexta-feira.
Pego um táxi e sigo para a UERJ ainda anestesiada pela enormidade de
“novidades” que começo a desbravar.”
Fiz questão de detalhar meu primeiro dia, segundo a segundo para que
ficasse claro, o quão complexa é a prática educacional em uma escola
alocada no interior de uma unidade prisional, que fora todos os problemas
comuns a qualquer instituição de ensino, esta convive ainda com os
problemas do cotidiano dessa. A pressão feita pelos agentes da segurança é
medonha e por vezes cruel, tal pressão é justificada por um discurso perverso
e preconceituoso, onde os agentes declaram não concordar com a existência
da escola na unidade, já que acham que os internos não merecem tal
“regalia” e muito menos serem tratados como “gente” pelos professores39.
Vale ressaltar que é uma grande maioria que pensa assim, mas não todos.
III Festival de Música da Escola Mário Quintana
38 Mais uma prova de que os Agentes procuram de todas as formas dificultarem nossas tarefas, pois, a revista somente é necessária e obrigatória quando da entrada na Unidade Prisional. 39 Precisamos, mais uma vez frisar, que tudo conspira contra a educação. A mesma dificuldade sofrem religiosos, os familiares dos presos e qualquer pessoa que tente ajudá-los, a exceção dos advogados, pois estes conhecem a lei mais profundamente e, desta forma, são temidos ou respeitados pelos Agentes que têm consciência de suas arbitrariedades.
61
Hoje é meu segundo dia como estagiária da Escola Mário Quintana e fui
convidada junto com algumas autoridades40 da Secretaria de Educação do
Estado do Rio de Janeiro, da Secretaria de Justiça do Estado, da Pastoral
Penal e demais colaboradores e parceiros da escola, para assistirmos ao III
Festival de Música realizado põe ela realizado junto a seus alunos – Unidades
Lemos de Brito, Nelson Hungria, Petrolino W. de Oliveira e Milton Dias
Moreira – e extensivo ao coletivo da unidade que desejasse participar.
O Festival foi realizado no auditório da Unidade Lemos de Brito, tendo
sido dividido em dois dias, a saber, dia 04/11 – música popular e dia 05/11 –
música gospel. Infelizmente não pude estar presente no dia 04/11, mas aqui
estou eu dia 05/11.
Preciso destacar, antes de mais nada, que fiquei encantada com a
qualidade das letras e das músicas apresentadas. Letras que falam de
sonhos, fé, liberdade, amor, Deus, mensagens fortes, reconfortantes e de
encorajamento. Foi muito bom constatar que alunos/internos e coletivo de
forma geral têm uma produção de qualidade a apresentar à SOCIEDADE,
desde que essa se dispa de seus preconceitos e se permita ver, ouvir e ler
suas artes.
Por ocasião da premiação das apresentações do primeiro dia, o
professor Naum me chamou ao palco para entregar o prêmio (um livro, um
bloco e uma caneta) a um dos vencedores, confesso que morri de vergonha,
logo eu, a mais “sem-vergonha” de todas, envergonhada, mas, era só o meu
segundo dia ali, e lá estava eu de frente para aproximadamente 200 internos,
6 agentes41 e alguns convidados, apesar da vergonha, não posso negar que
40 Embora compareçam, raramente, segundo informações obtidas, permanecem por tempo considerável. Quando a massa carcerária, propriamente dita, é deslocada para o local do evento, as autoridades procuram sair o mais rapidamente possível. 41 Dentro da realidade do Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro havia até muitos Agentes no local. Para se ter uma idéia mais clara, o número de Agentes previstos em uma portaria do DESIPE/RJ para compor a turma da Lemos de Brito é de 18, enquanto a capacidade da Unidade é para 610 detentos. Tal número, que já é absurdo, torna-se pior quando percebemos que na realidade, em razão da deficiência de pessoal, tais turmas passam a ter 6 ou 7 Agentes.
62
fique muito feliz de ter sido lembrada pelo professor Naum. Meu ego foi para
as alturas !!!.
Analiso o Festival como uma prática pedagógica, desde sua concepção
à sua execução, visto que humaniza, transforma os alunos e ao demais
internos da unidade42. Esse é o momento onde os alunos/internos e o coletivo
têm a possibilidade de terem sua arte reconhecida, premiada, aplaudida, o
que faz com que eles se empenhem em utilizar corretamente a Língua
Portuguesa, utilizem o dicionário, se instrumentalizem gramaticalmente.
Vejo-o como uma prática social por possibilitar ao grupo como um todo,
a aproximação com pessoas que vêm do mundo “extra-muros”. Pessoas
essas que não estão ali para olhá-los como “bichos” em exposição em suas
jaulas, pelo contrário, estão ali de livre e espontânea vontade para apreciar
suas artes, seus talentos, respeitando-os como pessoas, como artistas que
são. Tal prática resgata um pouco de suas “auto-estimas” tão destruídas em
seus cotidianos, em suas realidades.
Eis uma prática onde a humanização, o respeito, a atenção, a
valorização e a dignidade estão presentes em todos os momentos, em todas
as ações e atitudes que a construíram ao longo dos anos e a transformou no
SUCESSO que é hoje.
Preciso contar como foi emocionante ver bem a minha frente, pela
primeira vez, um grupo de internos se comunicando através da linguagem de
sinais – uma mistura da linguagem de sinais dos deficientes auditivos com
seus próprios sinais – com as internas do Nelson Hungria. Só havia visto
cena semelhante, nos documentários da TV e quando vi de pertinho, fiquei,
extremamente, emocionada por ver que mesmo confinados em unidades
distintas, eles/elas são capazes de construir uma “relação” no silêncio, nos
42 Apesar de tudo, devemos ser cuidadosos e lembrar que “o homem sob vigilância é exatamente aquilo que queremos que seja”.
63
ares, entre grades. Não é a afetividade, o carinho, a cumplicidade que estão
privados de liberdade, mas sim o ser humano, o homem/a mulher dentro dos
quais sentimentos nascem, crescem, dão certo, dão errado sempre
coexistindo com a distância, a ausência física, as privações.
Outro fato chamou minha atenção logo de início, o festival já havia sido
iniciado, quando chegou um grupo de aproximadamente 10 homens muito
bem vestidos, muito bem cuidados, posturas imponentes, que não trocaram
palavra alguma, com quem quer que fosse, e que fizeram questão de se
sentarem bem afastados de todos. Estranhei o fato e perguntei à uma
professora com quinze anos de Mário Quintana se eram os alunos do PO –
como é chamada a unidade penitenciária Petrolino W. de Oliveira – e ela me
disse não saber. Mais tarde confirmei minha suspeita, eram mesmo os
alunos/internos do PO, ou seja, ex-policiais43 militares e civis condenados e
que cumprem suas penas, no Complexo Penitenciário Frei Caneca. Por
serem ex-policiais são odiados por todos os demais internos do Complexo,
que os retalham o tempo inteiro, não prestando atenção as suas
apresentações, não batendo palmas, enfim, ignorando-os solenemente.
Para encerrar esse relato quero ainda falar a respeito das internas do
Nelson Hungria. Ao chegarem ao auditório houve um verdadeiro reboliço
entre os internos, todos se viravam para vê-las e para iniciarem suas
“conversas”, seus “namoros”. Elas ficaram no mezanino do auditório e por
ocasião da entrega dos tickets para o lanche fui até elas. Fui olhada de uma
forma como nunca havia sido em toda minha vida, com frieza, raiva44, sei lá.
Senti-me muito mal. Espero poder ir ao Nelson Hungria para perder essa má
impressão das meninas, mas prefiro esperar um pouco mais, preciso
43 Mesmo presos e havendo perdido seus cargos, parecem não compreender sua punição e continuam acreditando, piamente, que ainda são policiais. 44 As mulheres ao serem presas e condenadas, na maioria arrasadora das vezes, são abandonadas por seus pares, pais, filhos e amigos, gerando grande revolta. Tal fato raramente acontece entre os homens por dois principais fatores: uma mãe jamais abandona seu filho e os homens, normalmente, obrigam a suas companheiras, esposas e, até mesmo, namoradas a visitá-los; chegam, muitas delas, a pagar com suas próprias vidas se não cumprirem tal determinação.
64
conhecer melhor a mim, as minhas reações, ao sistema para ir ter com elas
novamente.
Como ontem houve o sumiço da carteira de identidade do Eli –
mestrando da PUC que desenvolve pesquisas na área de Educação
Penitenciária – precisei sair da unidade acompanhada pelo Diretor Adjunto –
Sr. Cantuária, que aproveitou para “fazer um terror” comigo, quanto ao risco
que representa a perda do crachá que recebemos quando adentramos a
unidade45.
Mais uma do cotidiano que escolhi viver ...
Até a próxima ...
Sexta-feira – 08/11/02
“Pela primeira vez chego sozinha à portaria do Complexo e mesmo
tendo sido atendida por um grupo de agentes totalmente desconhecidos não
tive medo algum. A rotina foi a mesma: identifica, revista, pátio central, uma
tranca, duas trancas, corredor principal, passa por um, dois, três... e aí,
deparo-me com uma “rodinha de bate-bola” no meio do pátio central, mas,
antes que pudesse verbalizar qualquer pedido de licença, ouvi:
– Parou, parou, a professora vai passar.
Dou boa tarde, agradeço a gentileza, mas ninguém me responde e
ficam todos de cabeças abaixadas esperando minha passagem46. Depois de
minha passagem alguém fala:
45 Na realidade tal crachá, se usado pelo preso, poderia levá-lo até o Setor de Portaria e, até mesmo, ocasionar uma fuga. É claro, entretanto, que para isso outros fatores teriam também que contribuir. 46 Há unidades penitenciária que ao passar a esposa ou filha de outro apenado, os demais, viram-se contra a parede para não se sentirem tentados a olhar e, assim, sofrer as represarias dos demais apenados.
65
– Voltou, voltou, cuidado ela ainda tá mira.
Sigo o corredor até a escola distribuindo ainda alguns “boas tardes”
porém antes de chegar à sala da Dona Estella, vejo Regina dando uma aula e
resolvo entrar e participar.
A aula é de geografia para a turma do 3º ano do ensino médio, cujo
tema de discussão é a falta de água potável e o assoreamento dos rios.
Todos estão á volta de um mapa, trazido para sala pela professora, como um
recurso para o enriquecimento da aula e como forma de possibilitar aos
alunos conhecerem os vários tipos de mapas existentes.
Juntei-me ao grupo que a princípio era de 4 alunos e logo me envolvi na
discussão, sendo, pois, muito bem aceita pelo grupo. Mais um aluno chega e
juntasse ao grupo, agora o grupo já está completo.
A discussão foi riquíssima, falamos sobre rios, mares, degelo, chuvas,
alterações climáticas, ação do homem sobre o meio ambiente, assoreamento
dos rios etc. Uma verdadeira pedagogia dialógica (FREIRE, 1970), uma
verdadeira construção do conhecimento a partir dos conhecimentos prévios
de cada ator envolvido no processo, mediado por uma educadora nota 1000.
Fiquei impressionadíssima com a bagagem cultural de um aluno em
especial, o Edson, artista plástico, poeta e compositor, que lê muito e discorre
com apropriação sobre os mais diversos autores, entre eles; Rousseau,
Platão, Sócrates. Sua capacidade de fazer analogias e reflexões na maioria
das vezes utilizando-se de metáforas me encantou literalmente.
Quando a aula terminou, Regina precisou ir embora e resolvi ficar mais
um pouco. Sábia decisão!!!
Jorge e Edson – dois alunos da aula supra citada – vieram perguntar se
poderiam conversar comigo um pouco e engrenamos em uma conversa na
qual o que eles mais queriam era saber o que tinha me feito ir trabalhar lá na
66
escola, se eu não tinha medo deles, o que minha mãe e o meu marido
achavam da minha estada “naquele lugar”, se não tinham medo etc.
Conversei com eles por um longo tempo, explicando-os que o que me fez
escolher trabalhar em uma escola alocada no interior de uma unidade
penitenciária, foi minha crença na Educação como um dos viéses possíveis
para a conquista da cidadania, da dignidade, do respeito da sociedade por
aqueles, que pelos mais variados motivos, estão dentro de uma dessas
unidades, acertando com a justiça seus erros cometidos no passado.
Passado esse, que não interessa a nós educadores.
Fiquei ainda por um tempo na secretaria da escola conversando com
alguns professores e com três alunos: Arley, Maurício e “Chicletinho”. Foi
interessante ficar ouvindo os alunos contarem as mais diferentes histórias
ocorridas no cotidiano de seus dias dentro dessa unidade. A naturalidade com
a qual eles tratam determinados assuntos de início me impressionou, mas
com o transcorrer da conversa comecei a “naturalizar” os fatos, como eles
faziam questão de me ensinar. São gírias, códigos, necessidades como a da
existência de drogas nas galerias etc. A cada dia que passa mais e mais
informações passam a existir dentro de mim, às vezes isso me assusta47!!!
Acredito que não basta somente observar à escola, seus alunos, suas
instalações ou apenas ouvir o que os alunos/internos falam, para construir
uma sólida pesquisa, preciso sim, fazer todas essas práticas
concomitantemente à múltiplas leituras, à múltiplas reflexões e à longos dias
de estudo. É por isso, que não desperdiço nenhuma chance que tenho de
poder estar vivendo o dia-a-dia dessa escola.
47 Apenados costumam apresentar uma faceta confiscável e amigável com a finalidade de um maior envolvimento pessoal. É claro que não é regra, mas eles procuram envolver-se com profissionais da educação, enfermeiras, religiosas, psicólogas, assistentes sociais (têm sempre preferência por mulheres), as quais se aproximam em um primeiro momento por curiosidade, depois por pena e quando percebe, além de totalmente envolvidas, encontram-se em um beco sem saída. Assim, já aconteceram fatos tais quais: levarem drogas, aparelhos de telefonia celular, terem relações sexuais com apenados dentro da própria instituição, etc.
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E, mais uma vez: abre tranca, fecha tranca, mostra crachá, abre tranca,
fecha tranca, sorrir para um, dois, três, desejo bom final de semana e ...
casa!!!
Gostaria muito de continuar relatando atividades desenvolvidas na
Escola Mário Quintana, mas creio que esse já esteja por demais extenso.
Guardo, pois, tais relatos para uma próxima oportunidade.
No capítulo que se segue discuto com um olhar psicopedagógico a
influência da afetividade e da cognição no processo ensino-aprendizagem dos
apenados da E.E.E.S. Mário Quintana, sob as óticas de Vygotsky e Wallon.
CAPÍTULO IV
COGNIÇÃO, AFETIVIDADE E O PROCESSO ENSINO -APRENDIZAGEM SOB AS ÓTICAS DE VYGOTSKY E
WALLON
O presente capítulo fundamenta-se na teoria histórico-cultural
(principalmente de Vygotsky (1993)) que enfatiza a origem e o desenvolvimento
psicológico do homem em função do meio social em que vive e das relações
com o outro, mediados por instrumentos, signos e símbolos.
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Para Vygotsky (1993) o funcionamento psicológico fundamenta-se nas
relações sociais entre o indivíduo e o mundo exterior, os quais desenvolvem-se
num processo histórico.
O sócio-histórico, para Vygotsky (1993) não é sinônimo de coletivo, no
sentido de impor sobre o indivíduo, e, sim, como processo em que todo o
mundo cultural apresenta-se ao sujeito como “o outro”. O “outro” com quem ele
se relaciona é referência externa que permite ao homem constituir-se como ser
humano. Este processo de internalização cultural define os limites e as
possibilidades da construção do pessoal. Este processo permite a constituição
do ser autenticamente humano; na ausência do outro o homem não se
constrói.
Para Vygotsky (1993), a relação que o homem estabelece consigo
mesmo, com a natureza e com outros homens, é uma relação mediada por
instrumentos, signos e símbolos. O instrumento é um artifício usado pelo
homem de forma externa, é feito para um certo objetivo e carrega consigo,
portanto, a função para a qual foi cuidado e o modo de utilização desenvolvido
durante a história do trabalho coletivo. É, pois, um objeto social e mediador da
relação entre o indivíduo e o mundo. O instrumento é orientado externamente
modificando os objetos e o meio.
Na teoria de Vygotsky (1993) há uma ligação fundamental entre a
inteligência e a fala48 ao longo do desenvolvimento humano. Sua teoria mostra
que a origem da fala está diretamente ligada a interação social. A partir dessa
interação a linguagem externa social se desenvolve.
No que tange a construção do conhecimento e a aprendizagem,
Vygotsky (1993) afirma ser esta o objetivo do processo escolar e a
intervenção/mediação um processo pedagógico privilegiado. Essa
48 A fala exerce um papel fundamental na organização das funções psicológicas superiores, pois é uma função reguladora do comportamento.
69
intervenção/mediação se dá de várias formas: mostrar, fazer junto, fazer por,
apontar, criticar, apoiar, etc. Nesse processo, a interação entre educador(es) e
educandos, é fundamental para o desenvolvimento dos indivíduos envolvidos,
visto que a aprendizagem envolve, para Vygotsky (1993), a construção do eu e
do outro, entrelaçadas à construção do conhecimento.
Remetemo-nos a Oliveira (1993), para uma maior compreensão acerca
do processo ensino-aprendizagem e de sua construção a partir da interação
entre os sujeitos:
“(...) em Vygotsky, justamente por sua ênfase nos
processos sócio-históricos, a idéia de aprendizado inclui
a interdependência dos indivíduos envolvidos no
processo. O termo que ele utiliza em russo, obuchenie,
significa algo como “processo de ensino-aprendizagem”,
incluindo sempre aquele que aprende, aquele que ensina
e a relação entre essas pessoas”. (OLIVEIRA, 1993, p.
57)
A questão da aprendizagem e do papel do educador no processo de
construção do conhecimento está inserida na sua concepção sobre o
desenvolvimento humano, como mencionado anteriormente. Um conceito que
se destaca com relação ao papel do outro (no caso, educador) na explicação
vygotskiana é o de “mediação”, segundo o qual nossa relação com o mundo
nunca é direta.
A teoria de Vygotsky (1993) possui a lei da dupla formação, que consiste
em dizer que toda a função psicológica humana apareceu duas vezes, uma vez
que em nível social (entre os indivíduos), ou seja, interpsicológico, e outra vez,
em nível individual (interno do indivíduo), ou seja, intrapsicológico. Nesse
processo de passagem da função psicológica de interpessoal para intrapessoal
se dá o processo de internalização.
70
Na interação entre aprendizado e desenvolvimento encontramos a Zona
de Desenvolvimento Proximal, que é a distância entre o nível de
desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução
independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial,
determinado através da solução de problemas sob a mediação/orientação de
um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes.
“A Zona de Desenvolvimento Proximal define
aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que
estão em processo de maturação, funções que
amadurecerão, mas que estão presentemente em estado
embrionário. Essas funções poderiam ser chamadas de
“brotos” ou “flores”do desenvolvimento”. (VYGOTSKY,
1993, p. 60)
É na Zona de Desenvolvimento Proximal onde as interferências de
outros indivíduos é a mais transformadora. Se o aprendizado impulsiona o
desenvolvimento, então a escola tem um papel essencial na construção do ser
psicológico adulto.
Como fundamentação teórica deste trabalho, optamos também pela
teoria de Wallon (1999), que concorda com Vygotsky (1993) em muitos pontos,
principalmente quando afirma que o sujeito se constrói nas suas interações
com o meio. Wallon (1999) propõe o estudo contextualizado das condutas
infantis, para compreender o sistema de relações estabelecidas entre a criança
e seu ambiente. Este autor enfrenta a complexidade do real, procurando
compreendê-la e explicá-la por uma perspectiva dinâmica, multifacetada e
extremamente original.
A criança a cada idade estabelece-se um tipo particular de interações
entre o sujeito e seu ambiente. Os aspectos físicos do espaço, as pessoas
próximas, a linguagem e os conhecimentos próprios a cada cultura formam o
contexto do desenvolvimento. Conforme a idade a criança interage mais
71
fortemente com um ou outro aspecto de seu contexto, retirando dele os
recursos para o seu desenvolvimento.
Tanto Vygotsky (1993) quanto Wallon (1999), afirmam que não se pode
separar afetividade e cognição. Para Wallon, ambas não se mantém como
junções exteriores uma à outra:
"(...) estão envolvidas em um processo de
integração e diferenciação". (GALVÃO, 1999, p. 45)
Vygotsky (1993) enfoca que o pensamento tem sua origem na esfera da
motivação, a qual inclui inclinações, necessidades, interesses, impulsos, afeto
e emoção:
"(...) a compreensão do pensamento humano
só é possível quando se compreende sua base afetivo-
volitiva". (KOHL, 1992, p.76).
Ainda, segundo Kohl:
"A separação do intelecto e do afeto, diz Vygotsky,
"enquanto objetos de estudo, é uma das principais
deficiências da psicologia tradicional, uma vez que esta
apresenta o processo de pensamento como fluxo
autônomo de "pensamentos que pensam a si próprios",
dissociado da plenitude da vida, das necessidades e dos
interesses pessoais, das inclinações e dos impulsos
daquele que pensa". (KOHL,1992, p.76)
72
Também em relação a manifestação da consciência, esses autores se
aproximam. Vygotsky (1993) é quem concebe a consciência como emergindo
na participação em práticas sócio-culturais.
Wallon (1999) traz a dimensão afetiva como ponto fundamental em sua
teoria psicogenética. Um ponto importante que merece destaque no presente
trabalho é a diferença entre afetividade e emoção. Galvão (1999) chama a
atenção para esta questão na obra de Wallon:
“As emoções assim como os sentimentos e os
desejos são manifestações da vida afetiva. Na linguagem
comum, costuma-se substituir emoção por afetividade,
tratando os termos como sinônimos. Todavia, não o são.
A afetividade é um conceito mais abrangente no qual se
inserem várias manifestações”. (GALVÃO, 1999, p. 61)
Para Wallon (1999), os estados afetivos, sob forma de emoções
encontram-se na origem da consciência, operando a passagem do mundo
orgânico para o social, do plano fisiológico para o psíquico.
As emoções, segundo Wallon (1999), possuem características
específicas que as diferenciam de outras manifestações orgânicas, como
aceleração dos batimentos cardíacos, secura na boca, mudança no ritmo da
respiração, etc. Além disso, as emoções também provocam alterações na
mímica facial, na postura, e na forma como são executados os gestos.
Galvão (1999) em sua tese de Doutorado nos fala sobre Heloysa
Dantas, que partindo da concepção de Wallon sobre a função social e a
natureza das emoções, propõe que a educação da infância tome este tema
como objeto de reflexão. Quanto a natureza das emoções, destaca seu grande
poder de contágio e seu antagonismo à atividade intelectual, responsável por
73
seu poder regressivo, isto é, de obscurecer a percepção do exterior e do
raciocínio.
"Na vida cotidiana é possível constatar que a
elevação da temperatura emocional tende a baixar o
desempenho intelectual e impedir a reflexão objetiva. (...)
é como se emoção embaçasse a percepção do real,
impregnando-lhe de subjetividade e portanto, dificultando
reações intelectuais coerentes e bem adaptadas."
(GALVÃO, 1999, p.66-67)
Ao mesmo tempo, Galvão (1999) nos fala da importância da emoção
para as funções intelectuais, que na psicogênese acabam por adquirir
importância progressiva como modo de interação com o meio. Para Wallon
(1999), o primeiro contato da criança com o mundo e as pessoas é emocional.
É a emoção que permite as primeiras construções da criança.
"A atividade intelectual, que tem a linguagem como
um instrumento indispensável, depende do coletivo.
Permitindo acesso à linguagem, podemos dizer que a
emoção está na origem da atividade intelectual (...)"
(WALLON, 1999, p.66).
Torna-se, nesse sentido, de extrema necessidade para o educador
pensar nesta importância do fator emocional para a aprendizagem e para a
formação de seus alunos.
"Ao educador que lida com aqueles que se
encontram nesta fase por excelência, seriam de grande
utilidade recursos teóricos que sensibilizassem para os
traços expressivos da conduta das crianças – olhar,
74
mímica fisionômica, entonação da fala, qualidade dos
gestos, variações posturais – por meio dos quais se
podem obter indícios sobre diversos aspectos da
atividade cognitiva e dos estados afetivos. Além de uma
ampliação de recursos para a leitura dos traços
expressivos, desse processo de leitura dos corpos e
rostos esperam-se contribuições para o trato com as
dinâmicas interativas desencadeadas pelas emoções. (...)
Dantas propõe que uma atmosfera saudável para a
aprendizagem suporia ainda uma elevação da
temperatura afetiva, isto é, um sólido vínculo afetivo entre
professor e aluno." (GLAVÃO,1998, p.57-58).
Constru-o a seguir, o último capítulo do presente trabalho procurando
coordenar os referenciais teóricos acerca da influência da afetividade no
processo ensino-aprendizagem à minha experiência e conhecimento da
educação direcionada e diferenciada, junto aos apenados da E.E.E.S. Mario
Quintana.
75
CAPÍTULO V
UM OLHAR PSICOPEDAGÓGICO SOBRE A
INFLUÊNCIA DA AFETIVIDADE NO PROCESSO
ENSINO-APRENDiZAGEM DOS APENADOS DA
ESCOLA ESTADUAL DE ENSINO SUPLETIVO MÁRIO
QUINTANA
O capítulo que se segue, procura relacionar as teorias de Vygotsky
(1993) – fundamentada nas relações sociais entre o indivíduo e o mundo
exterior – e de Wallon (1999) – na afirmação de que o sujeito se constrói nas
suas interações com o meio – acerca da influência da afetividade/relações
inter-pessoais à experiência e ao conhecimento adquiridos na E.E.E.S. Mário
76
Quintana no que tange a Educação dos apenados da Penitenciária Lemos de
Brito, público alvo da Escola supra citada, conforme descrito no capítulo III.
Analisar psicopedagogicamente os alunos da E.E.E.S. Mário Quintana
não é tarefa fácil, principalmente por se tratarem de alunos “especiais” e,
conforme destacou o advogado Itamar Cláudio Netto na consultoria prestada
para a construção deste, muitas vezes os apenados apresentam uma faceta
confiável e amigável com a finalidade de um maior envolvimento pessoal,
principalmente com as mulheres, que transcende o caráter educacional, social
ou religioso que as levaram até a Escola e/ou a Penitenciária. Tal análise se
complica a cada momento já, que cada minuto passado junto a esses alunos
e principalmente, dentro da Escola é permeado de detalhes / ações /
sensações das mais diversas naturezas não só pelos alunos / apenados como
pelo corpo docente da referida escola.
A opção de trabalhar como referencial teórico – metodológico de
Vygotsky e Wallon foi feita posteriormente a tomada de conhecimento /
consciência do quão o meio / o social / o em torno influencia no que somos e
fazemos.
No que tange o processo ensino - aprendizado dos referidos alunos,
quanto a influencia da afetividade a discussão são deve se iniciou na
constituição psíquica/social dos que lá se encontram. Constituição essa que
depende fundamentalmente do outro – pai, mãe, avós, tios – que “vive” e
participa da formação desse homem. Afinal, nos diz Vygotsky:
“O sócio - histórico... é sinônimo de coletivo, no
sentido de impor sobre o individuo, e, sim, como processo
em que todo mundo cultural apresenta-se ao sujeito
como” o outro “. O” outro “com que ele se relaciona é
referencia externa que permite ao homem constituir-se
como ser humano. Este processo de internalização
77
cultural define os limites e as possibilidades da construção
pessoal. Este processo permite a construção do ser
autenticamente humano; na ausência do “outro” o homem
não se constrói”. (VYGOTSKY, 1993, p.24).
E, ao observar a história pessoal dos alunos/apenados da Escola foi
possível perceber que raros são aqueles que tiveram alguma estrutura
familiar/referencial familiar em seu processo de
desenvolvimento/crescimento/formação como ser humano. Muitos cresceram
sem um de seus progenitores, ou em lares onde o pai e/ou a mãe bebiam,
outros tantos foram abandonados em orfanatos ou largados a sua própria
sorte, ou seja, não tiveram um “outro” em quem se apoiar, se espelhar ou com
quem dividir suas angústias, medos e carências na infância/adolescência.
Vale destacar que há alunos/apenados com estrutura familiar, ou seja, com a
presença do “outro”, na sua formação como ser humano cumprindo pena na
unidade. Como é de conhecimento de todos, não há regras o que há são
exceções.
A necessidade do “outro” para a formação e desenvolvimento do homem
foi destacada uma vez que foi possível perceber que do momento que
“outros” (educadores, psicólogos, assistentes sociais) se propuseram a
participar do cotidiano dos alunos/apenados, ensinando-os a ler, ou a
desenvolver seus potenciais artísticos, estes aproveitam tal oportunidade,
buscando melhorar suas condições sócio-intelectuais e de alguma forma
construir um novo “sujeito”, diferente daquele que transgrediu as regras da
sociedade e por isso hoje, acerta suas “contas” com a Justiça.
Alguns eventos foram presenciados na Escola, mas, mais importante do
que os eventos em si, destaco a construção destes, o empenho, a dedicação,
e a preocupação dos alunos/apenados em darem o melhor de si para seus
educadores. Educadores estes, incansáveis, que muita das vezes tiram do
seu próprio bolso os subsídios necessários para aquisições dos materiais
78
para que seus educandos tenham condições de produzir seus trabalhos.
Afinal, a Educação é uma via de mão dupla onde educadores e educandos
devem dar o melhor de si em busca da construção do conhecimento da
autonomia, da criticidade, da consciência de ser parte integrante e ativa de
um mundo que não para de cresce e se desenvolve.
Para uma maior compreensão acerca do processo ensino–
aprendizagem e de sua construção a partir da interação entre educadores e
educandos, destaco Oliveira (1993) Quando este cita Vygotsky:
“(...) em Vygotsky, justamente por sua ênfase nos
processos sócio-históricos, a idéia de aprendizado inclui
a interdependência dos indivíduos envolvidos no
processo. O termo que ele utiliza em russo, obuchenie,
significa algo como “processo de ensino-aprendizagem”,
incluindo sempre aquele que aprende, aquele que ensina
e a relação entre essas pessoas”. (OLIVEIRA, 1993, p.
57)
Merece destaque também a maneira silenciosa como muitos
alunos/apenados reagem por ocasião da chegada de um novo educador na
escola. Fato compreensível tendo em vista o significado de um estranho no
universo penitenciário. Com o passar dos dias e com as atitudes de atenção,
respeito e consideração destes educadores, os educandos vão começando a
falar uma coisa aqui outra acolá até se perceberem entrosados com seu novo
educador – fato explicado por Vygotsky (1993) quando este relaciona a fala à
integração social e ao desenvolvimento da linguagem externa social do
homem. Os fatos descritos acerca da importância da fala mediante a
confiança e a segurança adquiridas pelos educandos em relação a seus
educadores influência diretamente o processo ensino aprendizagem destes
educandos, já que há segundo Vygotsky (1993) uma ligação fundamental
entre o desenvolvimento da inteligência e a fala.
79
Wallon, fala sobre atividade intelectual e emoção com muita propriedade
em:
"A atividade intelectual, que tem a linguagem como
um instrumento indispensável, depende do coletivo.
Permitindo acesso à linguagem, podemos dizer que a
emoção está na origem da atividade intelectual (...)"
(WALLON, 1999, p.66).
Relacionar afetividade e cognição e o processo ensino–aprendizagem
dos alunos/apenados do Mário Quintana foi uma decisão definida do
momento em que ao aluno observar o desenvolvimento e desempenho dos
educandos pude verificar, inclusive em depoimentos de outros educandos
como seus temperamentos, interesses e objetivos de vida se modificaram ao
terem a oportunidade de conviver com os educadores, de terem acesso ao
mundo extra grade pelos olhos dos educadores, de terem direitos respeitados
e cumprimento de deveres exigidos em fim, ao observar que a afetividade
demonstrada e vivida nas relações educadores e educandos mudava
consideravelmente seus posicionamentos diante da vida, seus cotidianos.
Torna-se dispensável prosseguir nesta analise tendo em vista que ao
descrever o cotidiano da escola varias incursões foram feitas ao que concerne
o lado afetivo e cognitivo dos educandos da Escola Mario Quintana.
A partir de agora construo uma breve conclusão do presente trabalho,
procurando de alguma forma esclarecer pontos que por ventura tenham
ficado obscuros.
80
CONCLUSÃO
Como pode ser observado, o principal objetivo do trabalho proposto foi
analisar a influência da afetividade no processo ensino-aprendizagem dos
apenados da Escola Estadual de Ensino Supletivo Mário Quintana – uma
Escola Penitenciária.
Pode-se observar que o trabalho foi dividido em cinco capítulos, onde no
primeiro tratou-se da Legislação Brasileira e a Educação de Jovens e Adultos
(EJA), onde foram apresentados os ordenamentos legais que já estiveram
e/ou ainda estão na base das práticas e dos projetos de EJA. Concluiu-se ao
final desse, que os “mentores” da Legislação Brasileira ainda precisam se
conscientizar e direcionar seus olhares, eficazmente para a Educação,
principalmente a Educação Infantil e a Educação de Jovens e Adultos.
No segundo capítulo, apresentou-se um breve histórico da EJA e os
reflexos do neoliberalismo e da globalização. Foi construída uma discussão
81
acerca da questão do poder da educação, da exclusão do processo
educacional brasileiro e, pro fim, da relação existente entre cidadania,
democracia e educação. Desse capítulo, conclui-se que a educação de jovens
e adultos no Brasil ainda tem m logo caminho a percorrer para sua
consolidação, como uma prática pedagógica séria e capaz de garantir a sua
“clientela” o acesso a uma cultura de qualidade, o que por via de regra
possibilitará sua inclusão, como agente ativo do processo sócio-político-
cultural do país, libertando-o da condição de mero espectador passivo da
construção de sua realidade social por terceiros, que vêm e têm na sua
“ignorância global” desses, a garantia da manutenção do “status cour” das
desigualdades sociais vigentes, e de seus mandos e desmandos ávida dos
integrantes dessa sociedade.
Foi construído no terceiro capítulo um histórico da Escola Estadual de
Ensino Supletivo Mário Quintana, com sua fundamentação teórico-
metodológica, a caracterização sócio-econômica-cultural da comunidade
escolar e uma análise descritiva das atividades observadas/participadas no
estágio lá realizado, no que tange a relevância e a relação das mesmas com a
Educação de Jovens e Adultos. Conclui-se ao final desse, que manter uma
escola direcionada para um público diferenciado – os apenados – não é e
momento algum uma tarefa fácil, mas que quando se tem uma equipe
administrativo-pedagógica séria, responsável, consciente, comprometida e
firme em seus propósitos educacionais todas as adversidades tendem a ser
superadas e a Educação e o Processo Educacional-Socializador-Dignificador
a se fazerem presentes no cotidiano, não só dessa Escola como também no
cotidiano de seus educandos.
No quarto capítulo foi tecida uma discussão psicopedagógica acerca da
influência da afetividade e da cognição no processo ensino-aprendizagem sob
as óticas de Lev Vygotsky e Henri Wallon, onde foi possível concluir que as
relações afetivas estão diretamente ligadas ao sucesso ou ao insucesso do
processo ensino-aprendizagem, já que está mais do que comprovado ser
82
impossível aprender conteúdos – sejam eles pedagógicos ou experiências da
vida cotidiana – quando a relação educador-educando, pais-filhos é permeada
por insatisfações, desafetos, rancores e/ou indiferença.
E, para fechar o trabalho, no quinto capítulo foi traçada uma relação
direta entre os referenciais teóricos que embasaram o presente e a realidade
conhecida/vivida na Escola Estadual de Ensino Supletivo Mário Quintana. Ao
traçar essa relação foi possível concluir que a afetividade, manifestada na
educação sob a forma de respeito e atenção dos educadores para com os
educandos da referida Escola, influi diretamente no interesse, na dedicação e
no comprometimento desses, tornando o processo ensino-aprendizagem
destes, bem sucedido, apesar da total carência de estímulos, atenção,
valorização e respeito que permearam suas histórias pessoais e que
permeiam seus cotidianos no interior da Penitenciária Lemos de Brito, fora
dos limites da Escola.
Espero, em breve, retomar meus estudos acerca da afetividade e da
cognição influenciando o processo ensino-aprendizagem dos apenados,
procurando diminuir a cada dia o preconceito e o distanciamento que a
sociedade “extra-muros” imprime sobre àqueles que se encontram privados
de suas liberdades – acertando com a justiça suas dívidas sociais – mas que
merecem uma oportunidade de conquistar/resgatar dignidade, respeito e
amor próprio, e que têm na Educação um viés possível para tais conquistas e
resgates.
83
ANEXOS
Anexo 1 – Projeto Político Pedagógico da Escola Estadual de Ensino Supletivo
Mário Quintana
Anexo 2 – Atividades Culturais:
2.1 – Bienal do Livro
2.2 – Oficina de Arte-Terapia – Grupo Cravo
2.3 –1º Encontro de Facilitadores em Arte-Terapia/2º Encontro do Grupo
Caminharte
2.4 – Seminário Nacional de Educação – Educação para o Trabalho,
Educação para a Vida – SENAC-Rio.
84
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
SHOR, Ira & FREIRE, Paulo., Medo e Ousadia – O cotidiano do professor.8.
ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.(Coleção Educação e
Comunicação, v. 18)
FRIGOTTO, Gaudêncio. “A formação e a Profissionalização do Educador:
novos desafios”. Revista Escola S.A.
HADDAD, Sérgio. “Educação Popular, Educação de Adultos e ensino
Supletivo”: Revista de Educação. MEC, ano 10.
TEIXEIRA, Anísio. “Uma Perspectiva de Educação Superior no Brasil”: Revista
Brasileira de Educação e Pedagogia. Brasília, 1968
Revista do Sepe. Rio de Janeiro, ano 2, nº 5., nov. 1999
85
86
BIBLIOGRAFIA CITADA
1– ARROYO, Miguel (Org.). “Educação e Exclusão de Cidadania”. In:
Educação e Cidadania. São Paulo: Cortez, 1993. (Coleção Questões
de Nossa Época)
2 – BENEVIDES, Maria Victória. “Cidadania e Democracia”. Revista Cultura e
Política, São Paulo, nº 33, jul. 1994.
2 – CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia. São Paulo: Cortez, 1987.
3 – DELEZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1991
4 – FILHO, Casemiro R. Apud Arroyo, Miguel., 1981.
5– FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal,
1991.
6 – FREIRE, Paulo. Educação com Prática de Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1971.
7 – ______.Pedagogia do Oprimido, 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987
8 – _____.Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do
oprimido. 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982
9 – ______.A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 36.
ed. São Paulo: Cortez, 1998. (Coleção Questões da Nossa Época; v.
13)
10 – GENTILLI, Pablo. Adeus à Escola Pública: a Desordem Neoliberal, a
Violência do Mercado e o destino da Educação das Maiorias, 1999.
87
11 – PEREIRA, Maria Izabel Galvão G. Tese de Doutorado. Emoções e
conflitos: análise da dinâmica das interações numa classe de
educação infantil. Faculdade de Educação, USP, 1998.
12 –________, Henry Wallon, uma concepção dialética do desenvolvimento
infantil Petrópolis: Editora Vozes, 1999.
13 – ROMÃO, José. E. & GADOTTI, Moacyr (Orgs.). Compromissos do
Educador de Jovens e Adultos. In: Educação de Jovens e Adultos:
teoria, prática e propostas. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2001. (Guia da
Escola Cidadã, v. 5).
14 – SOARES, Magda. Letramento: um termo em três gêneros. 2. ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2001
15 – TEIXEIRA, Anísio. Educação não é Privilégio. 5. ed. Universidade Federal
do Rio de Janeiro, 1999
16 – VYGOTSKY, , Lev. Semenovich. A formação social da mente. São Paulo:
Editora Martins Fontes. 1984
17 – Revista Trimestral Novos Rumos, São Paulo, nº 31, 1999
18 – Brasil, Congresso Nacional. Lei das Diretrizes e Bases da Educação. Lei
9394/96. D.O. de 20/12/1996
19 – Lei 9424 de 24/12/1996. D.O. nº 250, de 26/12/1996
20 – Parecer CEB nº 11/2000. Diretrizes Curriculares Nacionais para EJA
(aprovado em 10/05/2000), relator Carlos Roberto Roberto Jamil Cury.
Ministério da Educação, Conselho Nacional de Educação.
21 – Lei de Execuções Penais – nº 7210. art. 126 de 11/07/1984
88
ÍNDICE
FOLHA DE ROSTO . 1
AGRADECIMENTO 2
DEDICATÓRIA 3
RESUMO 4
SUMÁRIO 6
INTRODUÇÃO 7
CAPÍTULO I
A Legislação Brasileira e a Educação de Jovens e Adultos 11
1.1 - A Legislação Brasileira e a Educação de Jovens e Adultos 11
CAPÍTULO II
A Educação de jovens e Adultos trabalhadores, cidadania e exclusão 18
2.1 – Breve histórico de EJA no Brasil 18
2.2 – O neoliberalismo, a globalização e a Educação de Jovens e Adultos 26
2.3 – Educação e Poder, a partir de Michel Foucault 32
2.4 - Educação e Exclusão Social 36
2.5 – Democracia, Cidadania e Educação 41
CAPÍTULO III
Educação Penitênciaria – Conhecendo a Escola Estadual de Ensino e
Supletivo Mario Quintana (E.E.E.S Mario Quintana) 45
3.1 – Breve histórico da E.E.E.S Mário Quintana 46
3.2 – Fundamentação teórico – metodológica 48
3.3 – A comunidade escolar e suas características 51
3.3.1 – A realidade nua e crua 54
3.4 - EU, a escola e o cárcere 57
89
CAPÍTULO IV
Cognação, Afetividade e o processo ensino-aprendizagem sob as óticas de
Vygostky e Wallon 68
CAPÍTULO IV
Um olhar psicopodegógico sobre influência da afetividade no processo ensino-
aprendizagem dos apenados da E.E.E.S Mario Quintana 76
CONCLUSÃO 81
ANEXOS 84
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 85
BIBLIOGRAFIA CITADA 86
ÍNDICE 88
90
FOLHA DE AVALIAÇÃO
Nome da Instituição: Universidade Cândido Mendes
Título da Monografia: Afetividade e Cognição: um Estudo sobre a
Influência da Afetividade no Processo Ensino-Aprendizagem dos
Apenados da Escola Estadual de Ensino Supletivo Mário Quintana
Autor: Jacqueline Elizabeth Balthazar Martins Oliveira
Data da entrega: 31/JAN/04.
Avaliado por: Conceito:
Avaliado por: Conceito:
Avaliado por: Conceito:
Conceito Final: