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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”
AVM FACULDADE INTEGRADA
A Observância do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
nas Relações Contratuais Privadas
Por: Jairo de Moraes Barreto
Orientador
Prof. Francis Rajzman
Rio de Janeiro
2011
UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
2
PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”
AVM FACULDADE INTEGRADA
A Observância do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
nas Relações Contratuais Privadas
Apresentação de monografia à Universidade
Candido Mendes como requisito parcial para
obtenção do grau de especialista em Direito Privado
e Civil
Por: Jairo de Moraes Barreto
AGRADECIMENTOS
3
Agradeço a Deus, por todos os
pequenos milagres concedidos à minha
vida.
Agradeço a minha mãe, meu pilar.
Agradeço aos velhos e novos amigos,
que foram fundamentais em todos os
aspectos nessa caminhada de um ano.
4
DEDICATÓRIA
Aos meus pais, que me ensinaram os valores
do amor, da bondade e da justiça.
Aos meus irmãos, que sempre me deram apoio
e as condições necessárias para lutar por
esses valores.
E aos amigos que estão sempre ao meu lado
nesta luta sem fim.
RESUMO
5
As relações contratuais originalmente surgiram como instrumento de
exercício de poder, sendo a liberdade meramente formal apenas um meio hábil
para expansão capitalista e exploração das classes menos favorecidas.
No Brasil, o tema da dignidade da pessoa humana não poderia ser mais
atual, visto o imenso abismo social existente no país, e toda a gama de
problemas oriundos desta desigualdade, inclusive dificultando o progresso
como um todo.
Apesar da promulgação da Carta Magna de 1988, uma Constituição
eminentemente preocupada com o bem estar social do povo, acompanhada de
outros dispositivos legais como o Código Civil de 2002 e o Código de Defesa
do Consumidor 1990, possuidores de normas em total consonância com a
função social do Estado, por várias vezes a visão positivista-individualista
permanece visível e concretamente.
Portanto, a escolha deste tema é extremamente pertinente no contexto
atual da sociedade, onde a dignidade da pessoa parece apenas uma lenda em
muitos casos. Mas não é. Existem direitos fundamentais previstos
constitucionalmente. No art. 1º inciso III da Constituição Federal é possível ler
claramente a expressão “dignidade da pessoa humana” e, estando consagrada
nesta Carta Magna, não só é possível concretizá-la como deve ser observada
nas relações privadas, enfrentando obstáculos impostos por doutrinas e
jurisprudências conservadoras baseadas em princípios como a autonomia da
vontade e a liberdade.
6
METODOLOGIA
Preliminarmente, o estudo será realizado através da leitura de textos
existentes no Brasil acerca do tema, levando-se em consideração
doutrinadores renomados. A pesquisa será eminentemente bibliográfica, frente
à necessidade de uma atualização teórica sobre o assunto, com a finalidade
de delimitar o objeto a ser investigado, observando inclusive as alterações
históricas de postura do Estado frente ao tema. A legislação brasileira será
base fundamental de consulta.
Ainda, com o intuito de descobrir novo enfoque dado ao tema e novos
posicionamentos acerca da problemática apresentada, a jurisprudência será
estudada, em especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e do
Superior Tribunal de Justiça. Como complemento, a internet também será
utilizada como fonte de pesquisa.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 08
CAPÍTULO I - O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana 11
CAPÍTULO II - A Constitucionalização do Direito Civil sob a ótica da evolução
histórica do instituto contratual 20
CAPÍTULO III – Função Social dos Contratos 43
CONCLUSÃO 49
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 51
ÍNDICE 53
INTRODUÇÃO
8
A Constituição Federal é a lex superior do ordenamento jurídico
brasileiro. Em virtude de sua supremacia normativa, apresenta-se como
parâmetro de validez para todas as demais normas existentes. Para Alexandre
de Moraes, juridicamente a Constituição deve ser entendida como “a lei
fundamental e suprema de um Estado, que contém normas referentes à
estruturação do Estado [...], distribuição de competências, direitos, garantias e
deveres dos cidadãos.” 1 E completa Luis Roberto Barroso, dizendo que “a
Constituição regula tanto o modo de produção das demais normas jurídicas
como também delimita o conteúdo que possam ter”.2
As primeiras constituições, no entanto, não traziam como
característica a regulação das relações privadas, cumprindo eminentemente
sua função de delimitação de um Estado Mínimo. Como historicamente
comprovado, a codificação liberal tornou-se instrumento de exploração das
camadas menos favorecidas da sociedade, gerando conflitos que culminaram
no surgimento do Estado Social.
Hodiernamente com o advento da chamada constitucionalização do
Direito Civil, não há como os civilistas negarem a eficácia normativa do texto
constitucional no regulamento das relações privadas.
Diante das orientações dos autores citados, pode-se notar, então, a
importância dos princípios fundamentais estatuídos na Carta Magna brasileira,
e em especial no presente trabalho o Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana, exemplificando sua aplicação nos contratos privados, na observância
do princípio da função social dos contratos.
1 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13.ed. São Paulo: Atlas 2003. p. 36 2 BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de
uma dogmática constitucional transformadora. 6.ed. São Paulo: Saraiva. 2004. p. 370-371
9
CAPÍTULO I
PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
1.1 - Origens Históricas e Filosóficas
Uma das origens remotas do Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana está sem dúvida alguma na doutrina do cristianismo. O conceito de
pessoa como categoria espiritual, possuidor de subjetividade e valor em si
mesmo e, consequentemente, de direitos subjetivos fundamentais e dignidade,
surge nas bases doutrinais cristãs relativas ao tema em questão tanto nos
escritos bíblicos quanto na filosofia Patrística3 4. Daí se estruturou a idéia da
dignidade humana como o bem mais caro ao ser humano, assim como a idéia
da igualdade universal.
Na linha de evolução do pensamento antropológico cristão, não há
como deixar de citar as contribuições de Santo Agostinho e São Tomas de
Aquino. O primeiro, como explica Cleber Francisco Alves,
integrante ainda do período da Patrística, influenciado pelas idéias de Platão e na esteira dos ensinamentos de Santo Irineu, elaborou sua doutrina sobre o homem baseado em suas dimensões fundamentais: (1) a unidade essencial do homem, superando definitivamente o dualismo maniqueísta do corpo e do espírito, e (2) o caráter do homem como alguém que está em busca de uma finalidade extrínseca, que corresponde exatamente ao encontro com a divindade, prefigurado pelo cristianismo.5
3 “Conjunto do pensamento cristão elaborado durante os dez primeiros séculos do Cristianismo
pelos chamados Padres da Igreja, que o expuseram em suas obras e em suas pregações, e que fez parte do conteúdo dos ensinamentos na Alta Idade Média.” Enciclopédia Novo Século. Editora Visor, [S.l.] 2002. v 9.
4 “Compõem ainda a Patrística os ensinamentos e homilias que foram conservados através da história, pela Igreja, onde os chamados Padres Gregos e depois os Padres Latinos procuraram sistematizar a doutrina cristã tal como a receberam nas fontes da Sagrada escritura, compatibilizando os avanços culturais da civilização greco-romana que se fundamentavam na filosofia e na razão natural, com os postulados da fé apresentados pela Revelação judaico-cristã.” ALVES, Cleber Francisco. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: o enfoque da doutrina social da Igreja. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 16-17
5 Idem, ibidem, p. 22.
10
Já São Tomas de Aquino, influenciado por Aristóteles e baseando-
se, para elaborar sua síntese do pensamento cristão sobre a pessoa humana,
na herança bíblica, na patrística e nos filósofos da Escolástica6 que o
precederam, dizia ser a dignidade do homem proveniente deste ter sido feito à
“imagem” de Deus, chegando a conclusão de que a pessoa é um fim em si
mesmo, nunca um meio. As pessoas nunca estão entre si em relação de meio
e fim, merecendo respeito absoluto, não devendo ser instrumentalizadas
nunca.
Surge em seguida no mundo a noção acerca da limitação do poder
político, já que o homem antigo se afirmava dentro de uma estrutura de poder
ilimitado, da polis, na qual não podia contrapor sua individualidade. O jurista
alemão Hans Welzel afirma expressamente que não é iurisnaturalista e, no
entanto, admite certos princípios fixos, inalteráveis, anteriores e superiores às
leis e que nenhum legislador pode modificar validamente7. Considerado
expressão da natureza humana ou deduzível de princípios da razão, o direito
natural foi sempre tido por seus defensores como superior ao direito positivo. A
noção objetiva do Direito Natural pode ser encontrada muito bem ilustrada no
texto de São Paulo na Bíblia Sagrada:
"Porque, quando os gentios, que não têm lei, fazem por natureza as coisas da lei, eles, embora não tendo lei, para si mesmos são lei. Pois mostram a obra da lei escrita em seus
6 Ciência filosófico-teológica que se ensinava durante a Idade Média nas universidades e escolas monacais. “A partir do século XIII, o aristotelismo penetrou de forma profunda no pensamento escolástico, marcando-o definitivamente. Isso se deveu à descoberta de muitas obras de Aristóteles, descobertas até então, e à tradução para o latim de algumas delas, diretamente do grego. A busca da harmonização entre a fé cristã e a razão manteve-se, no entanto, como problema básico de especulação filosófica. Nesse sentido, o período escolástico pode ser dividido em três fases: Primeira fase - (do século IX ao fim do século XII): caracterizada pela confiança na perfeita harmonia entre fé e razão. Segunda fase - (do século XIII ao princípio do século XIV): caracterizada pela elaboração de grandes sistemas filosóficos, merecendo destaques nas obras de Tomás de Aquino. Nesta fase, considera-se que a harmonização entre fé e razão pôde ser parcialmente obtida. Terceira fase T (do século XIV até o século XVI): decadência da escolástica, caracterizada pela afirmação das diferenças fundamentais entre fé e razão.” O Cristianismo. Disponível em: <http://www.mundodosfilosofos.com.br/pencristao.htm#E> Acesso em: 15 set. de 2011. 7 LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. 17.ed. São Paulo: Brasiliense, 1999. p. 26
11
corações, testificando juntamente a sua consciência e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os".8
Tal direito não só serve de limitação ao poder secular, que deve
respeitá-lo, como também empresta ao direito positivo a força que o tornará
obrigatório.
Filósofo e cientista político inglês, Thomas Hobbes, sobre o tema
Estado de Natureza, demonstra um grande pessimismo em relação ao ser
humano pois atribui aos homens a incapacidade de viver em paz seguindo
apenas leis naturais (em clara oposição ao homem como animal social de
Aristóteles) visto que seus desejos não se limitam às necessidades,
envolvendo apetites e variedade de intensidade. Apesar da visão hobbesiana
atribuir igualdade a todos os homens, é justamente esta que faz do Estado de
Natureza sinônimo de Estado de Guerra. Seguindo sua própria paixão, e
utilizando a razão como instrumento, os homens acabam provocando
discórdia, conforme argumenta o autor do “Leviatã”:
[Da] igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de atingirmos nossos fins. Portanto se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às vezes apenas seu deleite) esforçam-se por destruir ou subjugar um ao outro.[...] De modo que na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória. A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro; a Segunda, a segurança; e a terceira, a reputação.[...] Com isto se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens.9
Citando o “Leviatã” de Hobbes, Francisco Weffort demonstra a visão
do filósofo inglês para o problema e sua solução. O homem não poderia viver
8 Rom. 2, 14-15. 9 HOBBES, s.d. apud WEFFORT, Francisco. Os clássicos da política. São Paulo: Ática,
1989. p. 55 e 56.
12
apenas sob o Direito de Natureza pois este consiste na liberdade que cada um
possui de usar seu próprio poder como bem entender, com o fim de preservar
sua vida, mesmo prejudicando outrem. Definindo Lei de Natureza como a
busca da auto-preservação e da paz, Hobbes argumenta que é preciso um
Estado com poder pleno para forçar os homens ao respeito.
Jonh Locke possui uma visão diferente. Sobre a passagem do
estado de natureza para o governo civil, Francisco Weffort cita Locke, em
especial o “Segundo tratado do governo civil”:
Contudo seja este um estado de liberdade, não é o de
licenciosidade; ainda que naquele estado o homem tenha uma
liberdade incontrolável para dispor de sua pessoa ou posses,
não possui, no entanto, liberdade para destruir a si mesmo ou
a qualquer criatura que esteja em sua posse, senão quando
isto seja exigido por algum uso mais nobre do que a simples
conservação. O estado de natureza tem uma lei de natureza a
governá-lo e que a todos submete; e a razão, que é essa lei,
ensina a todos os homens que apenas a consultam que, sendo
todos iguais e independentes, nenhum deve prejudicar a
outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas posses. [...]
E para evitar que todos os homens invadam os direitos dos
outros e que mutuamente se molestem, e para que a lei da
natureza seja observada, a qual implica na paz e na
preservação de toda a humanidade, coloca-se, naquele estado,
a execução da lei da natureza nas mãos de todos os homens,
por meio da qual qualquer um tem o direito de castigar os
transgressores dessa lei numa medida tal que possa impedir
sua violação. Isso porque a lei da natureza [...] seria vã se não
houvesse ninguém nesse estado de natureza que tivesse o
poder para pôr essa lei em execução e deste modo preservar o
inocente e restringir os infratores. [...]
[...]
Concedo de bom grado que o governo civil é o remédio acertado para os inconvenientes do estado de natureza, os quais certamente devem ser grandes onde os homens podem ser juízes em causa própria, já que é fácil imaginar que quem
13
foi tão injusto a ponto de causar dano a um irmão, raramente será tão justo a ponto de condenar a si mesmo por isso.10
Montesquieu, em seu “Espírito das Leis”, também ensinou sobre a
necessidade vital de limitação do poder dos governantes, através da doutrina
da divisão de poderes.
Pode-se concluir do exposto que a construção do Estado Moderno
ao longo da história teve como pressuposto a idéia da dignidade humana. Até
mesmo princípios estruturais como a separação de poderes e a federação,
criados pelas primeiras constituições liberais, são concebidos de forma a
proteger a pessoa humana em face do Estado.
Dentro do tema de origens do princípio da dignidade da pessoa
humana, não se pode esquecer de citar as influências inglesa, americana e
francesa. Os ingleses, desde 1215 com sua Magna Carta, vem contribuindo
para moldar o constitucionalismo moderno, influenciando as atuais
Declarações de direitos fundamentais com a Petition of Rights de 1628,
estabelecendo que o poder real é limitado por direitos e liberdades individuais.
Estes direitos foram reafirmados em 1679 no Habeas Corpus Act e em 1689
surgiu o Bill of Rigths, estabelecendo direitos ao parlamento oponíveis ao
Governo.
A tradição norte-americana brindou o mundo com sua Constituição,
escrita quando da independência dos Estados Unidos em 1787, que,
inicialmente não possui uma declaração dos direitos do homem. Em 1791
então, entra em vigor o Bill of Rights americano, formado pelas dez primeiras
emendas à Constituição, muito mais amplo que a carta inglesa de direitos.
Em 1789, foi a vez de a França contribuir para o avanço do tema de
defesa dos direitos do homem, editando a Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão, inspirada por toda a ideologia moral, social e política dos
séculos XVII e XVIII, especialmente pela doutrina contratualista de
Rousseau11. Ressalte-se que os direitos até então referidos eram formados
10 LOCKE, s.d. apud WEFFORT, Francisco. Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 1989.
p. 91-92. 11 Na sociedade de iguais pretendida por Rousseau, em “Do contrato social”, o poder estava
fundado na vontade geral, que antes de ser o somatório das vontades individuais,
14
pelo valor de liberdade. Eram direitos foram reconhecidos pelo Estado Liberal
dentro do que se concebeu como conveniente à expansão do modelo
econômico liberalizante. Porém, estas liberdades se consubstanciavam
primeiramente como uma omissão do Estado. Esta abstenção estatal era
suficiente para configurar o exercício de liberdade pública. Posteriormente, a
fim de fazer valer um determinado direito, passou-se a exigir uma prestação
positiva do Estado.
Com o surgimento do Estado socialista russo e a crise econômica
oriunda da I Guerra Mundial, observa-se uma necessidade de transformação
da mentalidade liberal das antigas Declarações americana e francesa, com
uma mentalidade mais social. Como conseqüência da II Guerra Mundial, em
1945 foi aprovada a Carta das Nações Unidas, estabelecendo o compromisso
das nações signatárias de agir constantemente em prol da paz mundial.
Porém, só em 1948 é que foi aprovada pela Assembléia Geral das Nações
Unidas, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão. Esta
Declaração sim estava preocupada não só com a reconstrução dos Estados e
a defesa genérica da paz, e sim segundo princípios e numa estrutura que
propiciasse a promoção da dignidade humana, não apenas sob a perspectiva
da liberdade, como também sob a da igualdade. Sua expressão repercutiu,
inclusive, no plano moral das Nações, despertando a consciência dos povos
para a questão de seus destinos. Por conseguinte, a ausência de
questionamentos ou reservas por parte dos Estados em relação aos princípios
da Declaração, deu-lhe um status de código e plataforma comum de ação,
majoritárias ou minoritárias, era a sua síntese.
“Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja, com toda a força comum, a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece, contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes. É esse o problema fundamental ao qual o Contrato Social dá a solução. As cláusulas deste contrato [...] reduzem-se todas a uma só: a alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, à comunidade toda, pois, em primeiro lugar, desde que cada um se dê completamente, a condição é igual para todos e, sendo a condição igual para todos, ninguém se interessa em torna-la onerosa aos demais.” ROUSSEAU, s.d. apud WEFFORT, Francisco. Os clássicos da política. São Paulo: Ática,
1989. p. 221.
15
consolidando a afirmação de uma ética universal, ao consagrar um consenso
sobre valores de cunho universal a serem observados pelos Estados.
Agora, aos direitos à liberdade individual, costumeiramente
chamados pela doutrina de direitos de primeira geração, eram acrescidos os
de segunda geração12, ou seja, os direitos sociais, econômicos e culturais,
revestidos pelo valor da igualdade.
Alguns outros documentos de proteção aos direitos humanos foram
elaborados com maior ou menor repercussão ao longo dos anos, por exemplo
a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, chamada de Pacto de San
José da Costa Rica. Não obstante a existência de tantas Declarações e
Tratados, o desrespeito aos direitos fundamentais tem sido uma constante ao
longo da história, podendo ser observado um exemplo contemporâneo claro o
dos governos latino-americanos ditatoriais. Os principais questionamentos
acerca das inúmeras Declarações existentes continuam tratando da
discrepância entre o que foi listado como direito e a sua contínua violação, seja
no Oriente, seja no Ocidente.
Como será observado adiante neste trabalho, a dignidade da
pessoa humana foi colocada no ordenamento jurídico brasileiro não como
direito fundamental e sim como um dos princípios fundamentais do Estado.
Devendo ser respeitada prescindindo de sua expressão textual, a dignidade da
pessoa decorre da própria evolução humana, do consenso histórico que se
firmou, ainda que com resistência por parte de vários Estados. O direito à
dignidade, semanticamente elaborado como princípio, assume o papel de pilar
não só da interpretação constitucional quanto de todas as normas
infraconstitucionais.
1.2 – A Especial Contribuição da Filosofia de Immanuel Kant
12 “Da mesma maneira que os da primeira geração, esses direitos foram inicialmente objeto de
uma formulação especulativa em esferas filosóficas e políticas de acentuado cunho ideológico; uma vez proclamados nas Declarações solenes das Constituições marxistas e também de maneira clássica no constitucionalismo da social democracia (...), dominaram por inteiro as Constituições do segundo pós-guerra.” BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 17.ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 564.
16
É comum ver atribuída a primeira enunciação do princípio da
dignidade humana ao pensamento de Immanuel Kant. Tal atribuição decorre
do fato de Kant ter sido o primeiro teórico a reconhecer que ao homem não se
pode atribuir valor, pois este não é “coisa”, justamente na medida em que deve
ser considerado como um fim em si mesmo e em função da sua autonomia
enquanto ser racional.
Reconhecendo em Kant esta mais remota enunciação do princípio,
Alexandre dos Santos Cunha escreve em sua obra que
Para Kant, a dignidade é o valor de que se reveste tudo aquilo que não tem preço, ou seja, não é passível de ser substituído por um equivalente. Dessa forma, a dignidade é uma qualidade inerente aos seres humanos enquanto entes morais: na medida em que exercem de forma autônoma a sua razão prática, os seres humanos constroem distintas personalidades humanas, cada uma delas absolutamente individual e insubstituível. Conseqüentemente, a dignidade é totalmente inseparável da autonomia para o exercício da razão prática, e é por esse motivo que apenas os seres humanos revestem-se de dignidade.
O grande legado do pensamento kantiano para a filosofia dos direitos humanos, contudo, é a igualdade na atribuição da dignidade. Na medida em que a liberdade no exercício da razão prática é o único requisito para que um ente se revista de dignidade, e que todos os seres humanos gozam dessa autonomia, tem-se que a condição humana é o suporte fático necessário e suficiente à dignidade, independentemente de qualquer tipo de reconhecimento social.13
O pensamento kantiano acerca da dignidade da pessoa humana,
quando confrontado com suas concepções acerca das regras de direito,
parece não refletir com exatidão aquilo que hoje se entende como tal, ainda
que levando-se em conta as circunstâncias de tempo e espaço em que viveu o
filósofo alemão.
Deve-se partir da premissa de que na "Fundamentação da
metafísica dos costumes" Kant visou à formulação de raciocínios no campo da
13 CUNHA, Alexandre dos Santos. A normatividade da pessoa humana: o estudo jurídico da personalidade e o Código Civil de 2002. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 87-88.
17
filosofia moral, para compreender como os seres humanos formulam suas
bases valorativas, ainda que não dotadas de coerção. Já na "Doutrina do
direito" Kant buscou demonstrar como e porque devem ser formulados
preceitos jurídicos, estes sim dotados de coerção para viabilizar a convivência
social.
Francisco Weffort, analisando as idéias kantianas, afirma que
A metafísica da moral, como filosofia moral pura, é dividida em duas partes. A primeira diz respeito à justiça; a segunda, à virtude. Ambas tratam das leis da liberdade, por oposição às leis da natureza; mas a legalidade se distingue da moralidade pelo tipo de motivo pelo qual as normas são cumpridas. A mera conformidade da ação à norma caracteriza a legalidade; para que a ação seja moral, é preciso que a ação se realiza pelo dever. As leis jurídicas são externas ao indivíduo, e podem coagi-lo ao seu cumprimento. As leis morais, tornando obrigatórias certas ações, fazem ao mesmo tempo da obrigação o móbil do seu cumprimento. 14
E Maria Helena Diniz completa, mais uma vez lembrando o Direito
Natural, que
Para o jusnaturalismo de Kant, sendo racional e livre, o homem é capaz de impor a si mesmo normas de conduta, designadas por normas éticas, válidas para todos os seres racionais que, por sua racionalidade, são fins em si e não meios a serviço de outros. Logo, a norma básica de conduta moral que o homem se pode prescrever é que em tudo o que faz deve sempre tratar a si mesmo e a seus semelhantes como fim e nunca como meio. Aplicada à conveniência jurídico-social, essa norma moral básica transmuda-se em norma de direito natural. A obediência do homem à sua própria vontade livre e autônoma constitui, para Kant, a essência da moral e do direito natural. As normas jurídicas, para tal concepção, serão de direito natural, se sua obrigatoriedade for cognoscível pela razão pura, independente de lei externa ou de direito positivo, se dependerem, para obrigarem, de lei externa. Mas, nesta hipótese, deve-se pressupor uma lei natural, de ordem ética, que justifique a autoridade do legislador, ou seja, o seu direito de obrigar outrem por simples decisão de sua vontade. Tal lei natural, que é o princípio de todo direito, deriva da liberdade
14 WEFFORT, Francisco. Os clássicos da política. São Paulo: Ática ,1989. p. 51.
18
humana, reconhecida por intermédio do imperativo moral categórico.15 16
Para Kant, o homem é sempre o fim e não o meio para se alcançar
qualquer outro objetivo que seja. A humanidade é, portanto, um valor absoluto,
porque a razão a impõe como um fim em si mesmo. Como valor absoluto que
é, não comporta outra alternativa senão a preservação da sua própria
humanidade, sendo a escolha moral irreprimível e inafastável.
O direito funciona como pressuposto para a coexistência das
liberdades individuais, que almeja do Estado a garantia de que este não vai
atuar de forma a impedir o livre desenvolvimento dessas liberdades. Por essa
visão de orientação liberal, o Estado de direito se justifica através da afirmação
da autonomia individual, e de que esta só vai ser direcionada quando a lei
assim determinar.
A filosofia de Kant não está imune, porém, às mais variadas críticas
em especial em relação ao caráter antropocentrista de suas idéias,
principalmente observando o Direito atual em que existem bens
reconhecidamente possuidores de valores de fundamentalidade jurídica e
social inafastável, por exemplo em se tratando de matéria ambiental. Ainda
assim, vale citar trecho da obra do eminente especialista em Direito Ambiental
Paulo de Bessa Antunes, implicitamente defendendo o ideal kantiano, onde
afirma que o fato do direito estar “evoluindo para uma posição na qual o
respeito às formas de vida não humanas seja uma obrigação jurídica cada vez
mais relevante, não é suficiente para deslocar o eixo ao redor do qual a ordem
jurídica circula.”17
15 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 39-40.
16 “Assim se compreende a fórmula kantiana da Lei Universal, ou imperativo categórico: Aja
sempre em conformidade com o princípio subjetivo, tal que, para você, ele deva ao mesmo tempo transformar-se em lei universal.” WEFFORT, Francisco. Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 1989. p. 52.
17 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 9.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris 2006. p. 20.
19
Não poderia faltar a este pequeno resumo da contribuição da
filosofia de Kant em matéria de Dignidade da Pessoa Humana um trecho de
sua obra Fundamentação para a Metafísica dos Costumes, onde assevera que
[...] o Homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim... Portanto, o valor de todos os objetos que possamos adquirir pelas nossas ações é sempre condicional. Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio (e é um objeto de respeito).18
No pensamento kantiano, a dignidade humana está sendo
construída não apenas como uma idéia abstrata que deve guiar o trabalho de
interpretação do direito, ou de orientar a atividade legislativa. Ela possui status
de valor supremo, e como tal é revestida de obrigatoriedade, não apenas por
seu sentido axiológico, mas por se consubstanciar através de normas
jusfundamentais.
1.3 – Atuais Bases Constitucionais do Princípio da Dignidade
da Pessoa Humana
18 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, in: Os Pensadores – Kant
(II), Trad. Paulo Quintela. São Paulo: Abril Cultural, 1980. in PONTES, Manuel Sabino. A anencefalia e o crime de aborto: atipicidade por ausência de lesividade Disponível em <http://jus.com.br/revista/texto/7538/a-anencefalia-e-o-crime-de-aborto> Acesso em: 20 set. 2011.
20
Assim está escrito no artigo 1º, inciso III da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e Distrito Federal, constituí-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III – a dignidade da pessoa humana
Ao se iniciar uma análise do princípio da dignidade da pessoa
humana inserido no texto constitucional de 1988, pertinentes são as palavras
do ilustre constitucionalista Daniel Sarmento:
A nossa ordem constitucional tem como epicentro axiológico o princípio da dignidade da pessoa humana, inscrito no art. 1º do texto constitucional como fundamento da República. Proteger e promover esta dignidade é tarefa essencial do Estado, que justifica e legitima sua existência. E a dignidade humana é denegada tanto quando se amputa a esfera de liberdade individual, como quando se priva o ser humano de condições mínimas de subsistência. Até autores professadamente liberais, como John Rawls, concordam com a idéia de que a ausência destas condições básicas frustra o exercício das liberdades humanas. 19
A concepção de dignidade humana apresenta-se como norma
constitucional principiológica, a conduzir a interpretação constitucional: esta é a
lógica maior que conduz inevitavelmente ao respeito aos direitos fundamentais,
bem como a toda a ordem constituída. Quando o texto constitucional assevera
que a dignidade da pessoa humana é fundamento da República Federativa do
Brasil, conclui-se que o Estado existe em função de todas as pessoas, e não
estas em função do Estado e, reforçando ainda mais essa idéia, o Legislador
constituinte colocou estrategicamente tal princípio antes dos artigos que
versam sobre a organização do Estado.
Já no preâmbulo essa idéia de estruturação a partir da dignidade
humana é ratificada, sem mencioná-la diretamente:
[...] para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
19 SARMENTO, Daniel. Direitos Sociais e Globalização: Limites ético-jurídicos ao
realinhamento constitucional. In: QUARESMA, Regina; OLIVEIRA, Maria Lúcia de Paula. Direito Constitucional brasileiro. Rio de Janeiro: Forense. 2006. p. 334.
21
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social [...]20
À medida que se avança no texto desta Carta Maior, não há outra
conclusão senão a de confirmar sua base antropológica. O artigo 3º define os
objetivos fundamentais da República brasileira, sendo seu primeiro inciso uma
síntese de toda a idéia que rege o texto constitucional: construir uma
sociedade livre, justa e solidária.
Logo a seguir, no artigo 4º, a prevalência dos direitos humanos é
eleita como um dos princípios que regem as relações internacionais, seguindo
logicamente o fundamento constitucional de promoção da pessoa humana.
Outro artigo cujo texto traz expressamente o princípio da dignidade
da pessoa humana é o 170, situando-o como finalidade da ordem econômica:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social [...]21
Da mesma forma o artigo 226, § 7º, trazendo o princípio da
dignidade da pessoa humana como base do planejamento familiar e de
estruturação das políticas públicas voltadas para a proteção da família, da
criança e do adolescente.
Apesar de não revelar de maneira expressa o princípio ora
estudado, o artigo 5º e incisos da Constituição Federal trazem todo o rol de
garantias e direitos fundamentais, de onde se tira a preocupação com a
consolidação do regime democrático, no qual se concentram as esperanças
para efetivação dos direitos fundamentais, nunca esquecendo o “alicerce”
dignidade da pessoa humana, visando construir a sociedade justa e solidária
de que fala o artigo 3º, inciso I.
Composta de setenta e oito incisos, a Declaração de Direitos da
Constituição de 1988 coloca lado a lado as liberdades clássicas que impõem
uma prestação negativa do aparelho estatal e os direitos mais modernos, que
20 Antes mesmo de mencionar o texto de qualquer artigo constitucional, uma nova ordem
voltada para a promoção da pessoa humana já pode ser delineada a partir deste trecho. 21 Situado na Constituição Federal dentro do capítulo de princípios gerais da atividade
22
requerem uma atuação positiva do poder estatal para concretização do direito,
ampliando ainda o rol de bens de vida sob tutela jurídica. Destaca-se aqui a
inserção das remédios processuais destacados no texto constitucional, a
saber, mandado de segurança, habeas data e mandado de injunção.
Norma merecedora de destaque encontra-se no parágrafo 1º do
artigo 5º, dispondo que “as normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais têm aplicação imediata”22, confirmando a idéia de que os direitos
fundamentais sintetizam a vontade da sociedade acerca dos paradigmas que
devem alcançar expressão jurídica para formar a base das relações dos
indivíduos entre si e com o Estado.
Cleber Francisco Alves afirma que
A expressa inserção do princípio da dignidade da pessoa humana, como “fundamento” do ordenamento jurídico-constitucional em nosso país, na esteira do que vem ocorrendo em diversos outros países do mundo, traduz uma pretensão de que tal princípio confira uma unidade sistêmica e um substrato de validade objetivamente considerado, notadamente quanto aos direitos e garantias fundamentais do homem.23
Tantos outros direitos provenientes do princípio da dignidade da
pessoa humana podem ser citados aqui, como os elencados nos artigos 6º, 7º
e 205 da Constituição Federal. A previsão desses direitos e garantias não faria
sentido se não houvesse formas de concretizá-los, seja através de uma
prestação estatal baseada numa nova hermenêutica, seja através de medidas
judiciais, esta última, aliás, de extrema importância na defesa dos direitos e
garantias, sendo o Estado obrigado a prestar assistência jurídica integral e
gratuita aos hipossuficientes, conforme o art. 5º, inciso LXXIV, da Lei Maior.
Diante de todo o exposto resta visível a importância do estudo do
princípio constitucional em comento e sua utilização na teoria geral contratual,
através da observância do princípio da função social dos contratos, este nada
mais sendo do que uma ramificação de aplicação no Direito Civil do princípio
da dignidade da pessoa humana.
econômica.
22 Constituição Federal. 23 ALVES, Cleber Francisco. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: o
enfoque da doutrina social da Igreja. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 134.
23
CAPÍTULO II
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL SOB A
ÓTICA DA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO INSTITUTO
CONTRATUAL
A transformação do Estado Liberal em Estado Social fez com que
surgisse um novo paradigma filosófico na sua concepção elementar de
24
estruturação da sociedade. O foco, antes baseado em um desejo de libertação
de um poder opressor, altera-se de uma visão exclusivamente defensora do
patrimônio para a valorização de um conjunto de direitos e garantias que
enaltecem a importância do indivíduo como ser social.
Maria Celina Bodin de Moraes, explica que, neste contexto, o
respeito das normas inferiores à Constituição não deve ser examinado apenas
sob o ponto de vista formal, a partir do procedimento de sua criação, mas com
base em sua correspondência substancial aos valores que, incorporados ao
texto constitucional, passam a conformar todo o sistema jurídico, valores estes
que adquirem positividade na medida em que consagrados normativamente
sob a forma de princípios. Assim, a solução normativa aos problemas
concretos não se pauta mais pela subsunção do fato à regra específica, mas
exige do intérprete um procedimento de avaliação condizente com os diversos
princípios jurídicos envolvidos.
A consagração do princípio da dignidade da pessoa humana como
fundamento da República é conquista determinante e transformadora de toda
a ordem jurídica privada. A escolha do constituinte ao elevar este princípio ao
topo do ordenamento alterou radicalmente a estrutura tradicional do Direito
Civil na medida em que determinou o predomínio necessário das situações
jurídicas existenciais sobre as relações patrimoniais.24
2.1 – Breve histórico sobre a evolução Moderna do Instituto
Contratual
O famoso Código Civil Napoleônico, espelhando a vitória burguesa
na Revolução Francesa de 1789, foi a primeira grande codificação moderna,
utilizado como modelo para códigos de várias nações espalhadas pelo mundo.
Dois dos principais pilares de sustentação da lei francesa estavam no poder
24 MORAES, Maria Celina Bodin. A Constitucionalização do Direito Civil e seus efeitos sobre a Responsabilidade Civil. Disponível em : <http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/Bodin_n29.pdf>. Acesso em: 18 de Setembro de 2011.
25
irrestrito da propriedade e intangibilidade dos contratos. Os juristas
conseguiram absorver os anseios daquele tempo e redigiram um código em
que o pacta sunt servanda era absoluto, sendo inconcebível que o pactuado
entre iguais e com liberdade restasse descumprido.
O artigo 1134 do Código francês ilustra bem esta concepção, ao
dizer que “as convenções feitas nos contratos formam para as partes uma
regra à qual devem se submeter como a própria lei”.
O contrato neste sistema apresenta-se como apenas o meio para
conquista da propriedade. O indivíduo a partir desta nova lei teria autonomia de
contratar livremente. Isso representava verdadeira ruptura com o Antigo
Regime, garantindo a Burguesia ascendente que seus bens ficassem
resguardados, alienando-se apenas por sua própria manifestação de vontade.
Nesta concepção, o Estado não deve interferir na relação que os
contratantes formaram, não cabendo tutela estatal a ponto de influir no objeto
do pacto. Esta visão foi fundamental para o sistema capitalista crescente da
época, e hoje mesmo características como a propriedade privada, a liberdade
de contratar e a igualdade formal dos agentes econômicos são consideradas
alicerces de uma economia baseada na livre iniciativa.
Depois da franca ascensão do liberalismo, na primeira metade do
século XX o liberalismo começa a perder sua força. Período histórico que
compreende duas grandes guerras que alteraram drasticamente o status quo
econômico mundial.
A cláusula Rebus sic Stantibus, originária do Direito Canônico,
ganha altura na Idade Média, como bem lembra Silvio de Salvo Venosa, passa
um tempo esquecida e ressurge com força após a Primeira Guerra Mundial.
Esta conflagração de 1914-1918 trouxe um desequilíbrio para os contratos a
longo prazo. A Lei Failliot da França, em 1918, autorizou a resolução dos
contratos concluídos antes da guerra porque sua execução se tornara muito
onerosa. Ocorre, portanto, um renascimento histórico da teoria da imprevisão
no século XX, embora os fundamentos sejam bastante antigos.25
25 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos
Contratos. 3.ed. São Paulo: Atlas 2003; v.2. p. 465.
26
Outro indicativo histórico do crescente intervencionismo estatal
encontra-se no surgimento do Welfare State e a implantação do New Deal por
Roosevelt nos EUA, onde a intervenção do Estado na economia torna-se mais
incisiva.
Ademais, já era visível nas economias capitalistas que a excessiva
liberdade de contratar fazia das grandes empresas verdadeiros ditadores das
cláusulas contratuais, impondo suas vontades ao resto da sociedade.
Outros fatores foram primordiais para a mudança de tratamento nas
questões contratuais. A massificação da sociedade, com sua evolução
industrial e tecnológica fez com que o conceito liberal de igualdade dos
contratantes se apresentasse de maneira meramente formal e teórica,
despersonalizando as relações privadas.
Típico da sociedade contemporânea é o contrato de consumo.
Muitas vezes este tipo de relação se desenvolve exclusivamente por mera
conduta das partes. Cria-se um contrato de transporte por um mero acenar ao
ônibus, compra-se produtos em lojas sem que as partes troquem uma única
palavra.
Surge ainda o contrato de adesão, onde a parte que normalmente
detém o poder econômico fixa todas as cláusulas, restando ao contratante
apenas aceitar ou rejeitar as disposições contratuais rígidas.
Com este sucinto apanhado histórico já é possível notar como a
dinâmica da sociedade através dos tempos alterou drasticamente a concepção
clássica dominante por todo o século XIX no tratamento dado ao princípio da
autonomia da vontade. Aspectos como a teoria da imprevisão, a excessiva
onerosidade e o abuso de direito limitam a autonomia da vontade, outrora
princípio intocável.
2.2 – Princípios Gerais do Direito Contratual Contemporâneo
2.2.1 – A Importância de se observar a dignidade humana como
fundamento do ordenamento jurídico
27
Sempre que se fala de colisão de princípios, os primeiros exemplos
que surgem dificilmente serão diferentes do embate entre liberdade de
imprensa e privacidade, ou o famoso exemplo da liberdade religiosa de um
adepto da Testemunha de Jeová contra o direito a vida de um paciente
necessitando de uma transfusão de sangue. Certo é que o princípio da
dignidade da pessoa humana não está “disponível” para este tipo de embate
principiológico, visto ser este norteador, não só dos objetivos constitucionais
como também de todos os outros princípios q integram a Constituição e as
normas infraconstitucionais, como será demonstrado a seguir.
Diferente do conflito de regras, resolvido no campo da validade, o
conflito de princípios se resolve na esfera valorativa. Paulo Bonavides,
trazendo os ensinamentos do doutrinador alemão Robert Alexy, que lapidou as
idéias de Dworkin, elucida a questão dizendo que se algo é vedado por um
princípio, mas permitido por outro, um dos princípios deve recuar, não
significando, contudo, que o princípio do qual se abdica no caso concreto seja
declarado nulo, nem que uma cláusula de exceção seja introduzida nele. Em
determinadas circunstâncias um princípio cede ao outro e, os mesmos
princípios podem se defrontar em outra situação onde a resolução do conflito
entre eles seja oposta26. No entanto, Alexy entende ser relativa a dignidade
humana como princípio que é, conclusão que se tira quando este afirma que
Se existem princípios absolutos, então cabe modificar a definição de princípio, visto que, se um princípio, em caso de colisão, precede todos os demais princípios (...) significa que sua realização não conheceria limites jurídicos. Haveria somente fronteiras fáticas. Não seria aplicável o teorema da colisão.27
O princípio da proporcionalidade possui extrema importância no
âmbito jurídico pois são muitos, e com freqüência, os princípios conflitantes e a
aplicação destes deve se fundamentar exatamente no exame da
proporcionalidade. Sem uma análise estruturada, a ponderação entre aplicar
no caso concreto um princípio em detrimento de outro, restringir um direito
26 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 17.ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
p. 279-280. 27 Idem, ibidem, p. 281.
28
fundamental para a aplicação de outro, torna-se arbitrária, sem critérios. A
questão da ponderação é, portanto, uma questão de controlabilidade do
resultado restritivo que se adote para um direito em conflito. Daniel Sarmento
cita a afirmação de Willis Santiago Guerra Filho, quando este diz que o
princípio da proporcionalidade
Permite fazer o “sopesamento” dos princípios e direitos fundamentais, bem como dos interesses e bem jurídicos em que se expressam, quando se encontrem em estado de contradição, solucionando-a de forma que maximize o respeito de todos os envolvidos no conflito.28
Porém, como já dito anteriormente, o princípio da dignidade da
pessoa humana é absoluto. A dignidade é valor intrínseco a qualquer direito
fundamental, jamais podendo ser sacrificado, ainda que possa haver variações
de intensidade em sede deste princípio.
O conflito de princípios existe, pois, apesar de todos os direitos
fundamentais serem de certa forma expressões da dignidade como valor, nem
sempre haverá uma interpretação que ligue diretamente os princípios no caso
concreto com o da dignidade da pessoa humana que gere o direito a uma
prestação negativa ou positiva do Estado nesse sentido.
Porém, o principal critério de ponderação de interesses não
poderia ser outro senão o princípio da dignidade da pessoa humana. Deve-se
adotar sempre como solução dos conflitos a situação mais apropriada com os
valores humanitários promovidos por este princípio, inclusive nas relações
privadas em que impere a autonomia da vontade.
Ressalta-se, por fim, que a dignidade possui função norteadora,
limitadora ou de alicerce na concretização de qualquer direito. Ainda que estes
direitos sejam concretizações mediatas e remotas da dignidade humana, esta
sempre deve ser considerada como padrão ético máximo, adquirindo status
absoluto. Nas palavras de Daniel Sarmento,
Nenhuma ponderação poderá importar em desprestígio à dignidade do homem, já que a garantia e promoção desta
28 GUERRA FILHO, s.d. apud SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 96.
29
dignidade representa o objetivo magno colimado pela Constituição e pelo Direito [...] uma vez que o homem não é apenas um dos interesses que a ordem constitucional protege, mas a matriz axiológica e o fim último desta ordem.29
2.2.2 – Princípio da Autonomia da Vontade
Com o fim do Estado Liberal, este princípio, colocado antes como
centro de todas as avenças foi mitigado.
Segundo Silvio Venosa, a liberdade de contratar pode ser vista sob
dois aspectos. Pelo prisma da liberdade propriamente dita de contratar ou não,
estabelecendo-se o conteúdo do contrato, ou pelo prisma da escolha da
modalidade de contrato. A liberdade contratual permite que as partes se
valham dos modelos contratuais constantes do ordenamento jurídico (contratos
típicos), ou criem uma modalidade de contrato de acordo com suas
necessidades (contratos atípicos).30
O artigo 425 do Código Civil é claro quando autoriza as partes
estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais do Código, já que no
direito privado prevalece a atipicidade dos negócios jurídicos, desde que sejam
observados os requisitos do artigo 104 da Lei Civil (agente capaz, objeto lícito,
possível, determinado ou determinável e forma não defesa em lei).
Regra de extrema importância está no artigo 421 do Código Civil: “a
liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do
contrato”. É direito de todos, decorrente inclusive do princípio da dignidade da
pessoa humana, declarar vontade e agir. Porém este princípio constitucional
também limita a autonomia da vontade através deste mesmo artigo, que possui
natureza de ordem pública e moralidade social. O juiz no caso concreto,
portanto, pode de ofício observar esta norma de ordem pública, integrando o
contrato de acordo com a melhor interpretação baseada na moralidade social.
29 Idem, ibidem, p. 75-76. 30 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos
Contratos. 3.ed. São Paulo: Atlas 2003; v.2. p. 375
30
Apenas para ilustrar, colaciona-se aqui julgado recente do Tribunal
de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que demonstra na prática a
importância destes elementos:
“0027647-08.2009.8.19.0209- APELACAO
DES. SIRLEY ABREU BIONDI - Julgamento: 26/08/2011 -
DECIMA TERCEIRA CAMARA CIVEL
Ação de Obrigação de Fazer c/c Indenizatória c/ pedido de
tutela antecipada. Rito ordinário. Plano de saúde. Amil no pólo
passivo. Necessidade de internação para cirurgia, sendo o
caso classificado como de urgência.
Negativa de autorização do procedimento, sob alegação de
carência.
Tutela antecipada deferida no plantão, confirmada por essa
Relatoria.
Sentença de procedência, para condenar a ré a autorizar a
internação da autora para realização de cirurgia bariátrica e a
arcar com o pagamento das despesas de internação e
condenar a ré ao pagamento de indenização por danos morais.
Inconformismo da ré que pretende a reforma do julgamento, ou
a redução do quantum indenizatório. Correta a sentença.
O atendimento de urgência ou emergência do segurado de
plano de saúde não está condicionado a período de carência
nem à limitação temporal. A ré, além descumprir o contrato
firmado entre as partes e o comando legal específico, agiu
de forma a atentar contra o princípio da dignidade
humana, consagrado pela CRFB/1988 e pelas normas de
proteção ao consumidor, ferindo a própria função social
do contrato, que é a de resguardar a incolumidade e a vida
do autor.
A Lei nº 9.656/1998, no art. 12, V, "c", estatui prazo máximo de
carência de 24 horas para a cobertura dos casos de urgência e
emergência. Súmula nº 209 do TJRJ. Precedentes. Nos termos
31
do art. 557, do CPC, NEGO SEGUIMENTO AO RECURSO,
mantendo integralmente a sentença recorrida.
2.2.3 – Princípio da Obrigatoriedade dos Contratos
Anteriormente o Código de 1916 enaltecia a individualidade e o
caráter patrimonial conservador. No entanto, assim como a liberdade de
contratar, este princípio, conhecido como pacta sunt servanda, também foi
amenizado no ordenamento jurídico pátrio atual. Mesmo não estando previsto
explicitamente, os capítulos I a III do Título IV do Código Civil de 2002 que trata
do inadimplemento das obrigações traz a obrigatoriedade dos contratos
implicitamente.
Apesar desta mitigação, a obrigatoriedade dos contratos sempre
estará presente, tendo em vista que esta força coercitiva é verdadeiro
instrumento de segurança para as partes. As disposições contratuais devem
ser cumpridas pois o contrato faz lei entre as partes, nada mais sendo
conseqüências das vontades individuais.
O que a teoria moderna traz a este princípio é a influência de outros
princípios baseados na constituição, sendo a dignidade humana o mais
importante deles. O contrato, portanto, deve ser cumprido sob pena de grave
afronta ao princípio da segurança jurídica, mas sem afastar sua função social.
Exemplo concreto de mitigação, e não inobservância, deste princípio
está no artigo 478 do Código Civil:
“Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a
prestação de uma das partes se tornar excessivamente
onerosa, com extrema vantagem para outra, em virtude de
acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o
devedor pedir a resolução do contrato (...)”
Por fim, a título de ilustração, colaciona-se aqui dois julgados do STJ a respeito da
obrigatoriedade dos contratos, relativizando-a no primeiro julgado e corroborando-a no
segundo, relativizando até mesmo a coisa julgada:
32
REsp 849228 / GO RECURSO ESPECIAL 2006/0106591-4
Relator(a) Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO (1140)
T4 - QUARTA TURMA Data do Julgamento: 03/08/2010
Ementa
DIREITO CIVIL E COMERCIAL. COMPRA DE SAFRA
FUTURA DE SOJA. ELEVAÇÃO DO PREÇO DO PRODUTO.
TEORIA DA IMPREVISÃO. INAPLICABILIDADE.
ONEROSIDADE EXCESSIVA. INOCORRÊNCIA.
1. A cláusula rebus sic stantibus permite a inexecução de
contrato comutativo - de trato sucessivo ou de execução
diferida - se as bases fáticas sobre as quais se ergueu a
avença alterarem-se, posteriormente, em razão de
acontecimentos extraordinários, desconexos com os
riscos ínsitos à prestação subjacente.
2. Nesse passo, em regra, é inaplicável a contrato de compra
futura de soja a teoria da imprevisão, porquanto o produto
vendido, cuja entrega foi diferida a um curto espaço de tempo,
possui cotação em bolsa de valores e a flutuação diária do
preço é inerente ao negócio entabulado.
3. A variação do preço da saca da soja ocorrida após a
celebração do contrato não se consubstancia acontecimento
extraordinário e imprevisível, inapto, portanto, à revisão da
obrigação com fundamento em alteração das bases
contratuais.
4. Ademais, a venda antecipada da soja garante a aferição
de lucros razoáveis, previamente identificáveis, tornando o
contrato infenso a quedas abruptas no preço do produto.
Em realidade, não se pode falar em onerosidade
excessiva, tampouco em prejuízo para o vendedor, mas
tão-somente em percepção de um lucro aquém daquele
que teria, caso a venda se aperfeiçoasse em momento
futuro.
33
5. Recurso especial conhecido e provido.
REsp 594238 / RJ RECURSO ESPECIAL 2003/0175122-3
Relator(a) Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO (1140)
T4 - QUARTA TURMA / Data do Julgamento: 04/08/2009
Ementa
DIREITO PROCESSUAL. RESPONSABILIDADE CIVIL.
CUSTO DE MANUTENÇÃO DE APARELHO ORTOPÉDICO.
DEFASAGEM DA QUANTIA FIXADA EM LIQUIDAÇÃO DE
SENTENÇA. PRESTAÇÃO DE NATUREZA ALIMENTAR.
POSSIBILIDADE DE REVISÃO.
INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO À COISA JULGADA.
RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO.
1. A indenização destinada à manutenção dos aparelhos
ortopédicos utilizados pela vítima de acidente reveste-se
de natureza alimentar, na medida em que objetiva a
satisfação de suas necessidades vitais.
2. Por isso, a sentença que fixa o valor da prótese não
estabelece coisa julgada material, trazendo implícita a
cláusula rebus sic stantibus, que possibilita sua revisão
face a mudanças nas circunstâncias fáticas que
ampararam a decisão.
3. Recurso especial não conhecido.
2.2.4 – Princípio da Relatividade dos Contratos
Por este princípio, os contratos, em regra, não podem onerar nem
beneficiar terceiros não contratantes. Mas, como bem lembra Venosa31, apesar
do contrato em relação a terceiros ser res inter alios acta aliis neque nocet
31 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos
Contratos. 3.ed. São Paulo: Atlas 2003; v.2. p. 377
34
neque potest, não deixa de ser coisa palpável, tangível, percebido por outras
pessoas que dele não participaram. Existem, portanto, os efeitos internos da
relação contratual, a obrigação avençada propriamente dita e que gera efeitos
exclusivamente entre as partes, e os efeitos externos, pois não sendo algo
intangível para o resto da sociedade, o contrato acarretará conseqüências na
vida de terceiros. Um contrato de aluguel produz os efeitos inerentes a sua
natureza entre locador e locatário, mas toda uma gama de efeitos “sociais” que
podem influenciar na esfera jurídica dos futuros vizinhos pode surgir a partir
daí.
Há obrigações que estendem seus efeitos a terceiros, sendo o caso
mais comum o constante nos artigos 436 a 438 do Código Civil de 2002, regra
que já constava no diploma legal de 1916.
A estipulação em favor de terceiro de que trata estes artigos decorre
de uma relação contratual na qual é concedido um benefício a pessoa
estranha ao contrato, onde uma das partes se obriga a realizar a prestação em
favor do terceiro. Está nesta modalidade, por exemplo, o seguro de vida.
Ressalta-se que um contrato só poderá produzir efeitos na esfera
jurídica de terceiros (efeitos internos) se houver amparo legal para a hipótese.
2.2.5 – Princípio da Boa-Fé Objetiva
O artigo 422 do Código Civil traz a seguinte regra:
“Os contratantes são obrigados a
guardar, assim na conclusão do contrato,
como em sua execução, os princípios de
probidade e boa-fé”.
Colocada nos primeiros artigos do Título do Código que trata dos
contratos, o princípio da boa-fé é imprescindível não só para as relações
35
contratuais, mas para que a desconfiança entre as pessoas não gere um
verdadeiro caos na sociedade.
Claudia Lima Marques define a boa-fé como uma atuação refletida,
pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus
interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com
lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem
excessiva, cooperando para atingir o fim das obrigações: o cumprimento
contratual e a realização dos interesses das partes.32
Depreende-se da definição acima que o legislador, ao consagrar tal
princípio na lei civil, entendeu a importância da ética em toda e qualquer
relação humana, não só no campo das intenções mas, de maneira concreta
nos atos jurídicos.
Comprovando não ser apenas um conceito jurídico abstrato e sim
ferramenta efetiva para observância das normais legais, entende recente
julgado do Superior Tribunal de Justiça:
“AgRg nos EDcl no Ag 1140960 / RS
AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS
DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO DE
INSTRUMENTO 2009/0060948-5
Relator(a): Ministra NANCY ANDRIGHI
Órgão Julgador: TERCEIRA TURMA
Data do Julgamento: 23/08/2011
Ementa:
CONSUMIDOR. CONTRATO DE SEGURO
DE VIDA, RENOVADO
ININTERRUPTAMENTE POR DIVERSOS
ANOS. CONSTATAÇÃO DE PREJUÍZOS
PELA SEGURADORA, MEDIANTE A
32 MARQUES,Claúdia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo
regime das relações contratuais. 5°ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. P. 216
36
ELABORAÇÃO DE NOVO CÁLCULO
ATUARIAL. CONTRATOS RELACIONAIS.
REPASSE DO IMPACTO FINANCEIRO.
ESCALONAMENTO.
PRECEDENTE DA 2ª SEÇÃO.
- No moderno direito contratual,
reconhece-se, para além da existência dos
contratos descontínuos, a existência de
contratos relacionais, nos quais as cláusulas
estabelecidas no instrumento não esgotam a
gama de direitos e deveres das partes.
- A 2ª Seção do STJ estabeleceu o
entendimento de que, em contratos de seguro
de vida, cujo vínculo vem se renovando ao
longo de anos, a pretensão da seguradora de
modificar abruptamente as condições do
seguro, não renovando o ajuste anterior,
ofende os princípios da boa fé objetiva, da
cooperação, da confiança e da lealdade
que deve orientar a interpretação dos
contratos que regulam relações de consumo.
- Admitem-se aumentos suaves e
graduais necessários para reequilíbrio da
carteira, mediante um cronograma extenso,
do qual o segurado tem de ser cientificado
previamente. Precedentes.
- Agravo no agravo de instrumento
não provido”.
Outro texto legal que traz a importância da interpretação dos
negócios jurídicos de acordo com a boa-fé é o do artigo 113 do Código Civil,
ressaltando que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a
boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. Não se pode olvidar ainda do
37
Código de Defesa do Consumidor, primeiro a trazer a boa-fé no texto legal,
indicada em seu artigo 4º, inciso III.
Pertinente aqui uma crítica ao já citado artigo 422 do Código Civil,
onde o legislador se ateve a expressar a boa-fé apenas nas fases contratual e
pós contratual. Este “esquecimento” legislativo foi corrigido pela doutrina e
jurisprudência, sendo pacífico o entendimento de que um princípio tão basilar
para as relações humanas em geral deve sim se estender a fase pré
contratual, onde também deve haver a observância da honestidade, probidade,
lealdade e confiança.
Conclui-se que por este princípio, tão importante quanto a função
social dos contratos, o intérprete deve ajustar a interpretação do contrato ao
significado que as partes, com relação às concretas circunstâncias, podiam ou
deviam razoavelmente compreender, o que se justifica em face da
necessidade de proteção das legítimas expectativas de cada um dos
contratantes, sendo a legítima confiança das partes determinante em relação a
quanto à outra tenha dado a entender mediante a própria manifestação de
vontade e seu próprio comportamento, somado às circunstâncias e valorado
segundo uma medida de normal diligência. Por ser um critério objetivo de
interpretação, deve ser aplicado não só no sentido literal da linguagem, mas
segundo o espírito do acordo firmado.33
2.2.6 – Princípio do Equilíbrio Contratual
Por este, busca-se preservar o equilíbrio real de direitos e deveres
no contrato, antes, durante e após sua execução, para harmonização dos
interesses. Este princípio preserva a equação e o justo equilíbrio contratual,
seja para manter a proporcionalidade inicial dos direitos e obrigações, seja
para corrigir os desequilíbrios supervenientes, pouco importando que as
mudanças de circunstâncias pudessem ser previsíveis. O que interessa não é
mais a exigência cega de cumprimento do contrato, da forma como foi
33 VICENZI, Marcelo. Interpretação do Contrato: ponderação de interesses e solução de
conflitos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 135
38
assinado ou celebrado, mas se sua execução não acarreta vantagem
excessiva para uma das partes e desvantagem excessiva para outra, aferível
objetivamente, segundo as regras da experiência ordinária. O princípio clássico
pacta sunt servanda passou a ser entendido no sentido de que o contrato
obriga as partes contratantes nos limites do equilíbrio dos direitos e deveres
entre elas.34
É neste princípio que o magistrado se baseia para rever os contratos
onde se constatar onerosidade excessiva, sendo de grande importância para a
observância do princípio da dignidade da pessoa humana no caso concreto.
São exemplos de dispositivos legais que trazem expressamente
este princípio os artigos 317 do Código Civil, norma que autoriza a revisão
contratual por parte do magistrado e o artigo 6º V do Código de Defesa do
Consumidor, autorizando a modificação de cláusulas contratuais que
estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos
supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.
O artigo 478 do Código civil autoriza o pedido judicial de resolução
do contrato de execução continuada na hipótese de onerosidade excessiva,
afastando-a apenas se o réu oferecer-se para modificar equitativamente as
condições do contrato. Este dispositivo legal não só se opera em conformidade
com o princípio do equilíbrio contratual, mas também em consonância com a
boa-fé objetiva, a função social dos contatos, tema a ser debatido em capítulo
futuro, e a própria dignidade da pessoa humana, ao afastar do caso concreto o
princípio clássico da pacta sunt servanda.
Pertinente aqui exemplificar o princípio com um caso concreto de
recente julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro:
“0057673-94.2010.8.19.0001- APELACAO
DES. LINDOLPHO MORAIS MARINHO - Julgamento:
27/09/2011 –
DECIMA SEXTA CAMARA CIVEL
34 Lôbo, Paulo Luiz Netto. Princípios Sociais dos Contratos no CDC e no Novo Código
Civil. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/2796/principios-sociais-dos-contratos-no-cdc-e-no-novo-codigo-civil>. Acesso em: 22 de setembro de 2011.
39
DIREITO CIVIL. RELAÇÃO DE CONSUMO. SEGURO DE
SAÚDE. PRÊMIO. REAJUSTE. ÍNDICE. ABUSIVIDADE.
REVISÃO. SUBSUNÇÃO AO CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR E AO ESTATUTO DO IDOSO. NORMA DE
ORDEM PÚBLICA. AUMENTO EM RAZÃO DE FAIXA
ETÁRIA. VEDAÇÃO. PAGAMENTO INDEVIDO. DEVOLUÇÃO
SIMPLES. CONTRATO DE TRATO SUCESSIVO.
PRESCRIÇÃO QUINQUENAL.
Considerando os requisitos do art. 15 c/c 16, IV da Lei nº
9.656/98 e os princípios do Código de Defesa do
Consumidor, pode-se afirmar que o percentual de reajuste
de 87,32%, não atende critérios razoáveis, de modo a
evitar que a prestação do consumidor seja
desproporcional, colocando a operadora de plano de
saúde em vantagem excessiva. Por se tratar de questão de
ordem pública, o Estatuto do Idoso sua aplicação imediata e
uniforme a todos os contratos em curso, indistintamente, posto
que sua natureza assistencial visa à proteção do idoso, por sua
patente vulnerabilidade.Desta forma, foi imposto um percentual
de aumento na mensalidade, traduzindo-se em verdadeira
onerosidade excessiva, hipótese que deve incidir o
disposto no art. 6º, V, do CDC. Assim, se faz necessário o
restabelecimento do equilíbrio contratual violado pelo reajuste
desproporcional, devendo ter como parâmetro o percentual
estabelecido pela ANS (Agência Nacional de Saúde)
atendendo assim, os princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade.
Verificado o abuso nos reajustes, cabe a devolução do que foi
pago indevidamente de forma simples.
Precedentes do TJERJ.
Recurso que se dá parcial provimento.”
40
E decisão do STJ entende da mesma forma não ser abusivo o
reequilíbrio contratual:
REsp 1102848 / SP RECURSO ESPECIAL 2008/0274493-2
Relator(a) Ministra NANCY ANDRIGHI (1118)
Relator(a) p/ Acórdão Ministro MASSAMI UYEDA (1129)
T3 - TERCEIRA TURMA
Data do Julgamento: 03/08/2010
Ementa
“RECURSO ESPECIAL – CONTRATO DE SEGURO-SAÚDE
DE REEMBOLSO DE DESPESAS MÉDICO-HOSPITALARES
– PLANO EMPRESARIAL – CONTRATO FIRMADO ENTRE O
EMPREGADOR E A SEGURADORA – NÃO-APLICAÇÃO DO
CDC - CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - E DA
HIPOSSUFICIÊNCIA NA RELAÇÃO ENTRE AS EMPRESAS
CONTRATANTES – CONTRATO ONEROSO – REAJUSTE –
POSSIBILIDADE – ARTIGOS
478 e 479 DO CÓDIGO CIVIL – RECURSO ESPECIAL
IMPROVIDO.
I - Trata-se de contrato de seguro de reembolso de despesas
de assistência médica e/ou hospitalar, firmado entre duas
empresas.
II - A figura do hipossuficiente, que o Código de Defesa do
Consumidor procura proteger, não cabe para esse tipo de
relação comercial firmado entre empresas, mesmo que uma
delas seja maior do que a outra e é de se supor que o contrato
tenha sido analisado pelos advogados de ambas as partes.
III - Embora a recorrente tenha contratado um seguro de saúde
de reembolso de despesas médico-hospitalares, para
beneficiar seus empregados, dentro do pacote de retribuição e
de benefícios que oferta a eles, a relação da contratante com a
seguradora recorrida é comercial.
41
IV - Se a mensalidade do seguro ficou cara ou se tornou
inviável paras os padrões da empresa contratante, seja por
variação de custos ou por aumento de sinistralidade, cabe ao
empregador encontrar um meio de resolver o problema, o qual
é de sua responsabilidade, pois é do seu pacote de benefícios,
sem transferir esse custo para a seguradora. A recorrida não
tem a obrigação de custear benefícios para os empregados da
outra empresa.
V - A legislação em vigor permite a revisão ou o reajuste
de contrato que causa prejuízo estrutural (artigos 478 e
479 do Código Civil – condições excessivamente
onerosas). Não prospera o pleito de anulação da cláusula
de reajuste, pois não se configura abusividade o
reequilíbrio contratual.
VI – Recurso especial improvido.”
Ressalta-se que pelo princípio da conservação dos contratos,
procura-se, sempre que possível não extinguí-lo nem declarar sua nulidade,
eliminando apenas a “mácula” do negócio jurídico em questão. O artigo 47935
do Código Civil baseia-se neste princípio.
CAPÍTULO III
A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS
35 “A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as
condições do contrato”.
42
O artigo 421 do Código Civil estabelece que a liberdade de contratar
será exercida em razão e nos limites da função social dos contratos. Se o
princípio da dignidade da pessoa humana é fundamento de toda a ordem
jurídica, a função social do contrato é princípio oriundo daquele e norteador de
todas as relações contratuais no ordenamento.
Por serem os contratos revestidos de função econômica, a função
social dos contratos guarda analogia com a função social da propriedade,
constante na Constituição Federal como direito e garantia fundamental no
artigo 5º XXIII. Este princípio possui também natureza de ordem pública,
conforme demonstra o artigo 2035 § único.
Em poucas linhas já se pode notar a importância deste instituto para
o ordenamento jurídico brasileiro, por isso merece mais destaque no presente
trabalho do que os demais princípios contratuais contemporâneos.
O contrato, por ter função primordial na circulação de riquezas e
tantas outras relações humanas, dentro da nova concepção do Direito Civil-
Constitucional cede espaço a uma visão social do instituto, em detrimento do
seu antigo aspecto individualista. Como norma de interesse público, a função
social do contrato protege não só o objeto avençado, mas a sociedade como
um todo.
Partindo da analogia com a função social da propriedade, a
importância social das relações privadas é destacada no artigo 1228 § 1º do
Código Civil. Nelson Nery Junior elucida que a função social agrega mais um
valor à técnica jurídica e ao sentido cultural do instituto contratual. O negócio
jurídico deve ter validade e eficácia, também, a partir de sua socialidade, ou
seja, da qualidade que eles potencialmente devem ter para contribuir para a
harmonia das relações sociais e da potencialidade de servirem como
instrumentos de segurança social fundada na solidariedade social de que trata
o artigo 3º I da Constituição Federal.36
36 NERY JUNIOR, Nelson. Código Civil Comentado. 4. Ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais 2006; p. 732
43
Motivo de amplos debates, este princípio foi objeto de vários
enunciados das Jornadas de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal. O
enunciado 21 informa que “a função social do contrato, prevista no art. 421 do
novo Código Civil, constitui cláusula geral a impor a revisão do princípio da
relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela
externa do crédito”. Portanto, em seu aspecto externo, a observância da
função social dos contratos preocupa-se em avaliar os impactos que
determinada negociação contratual possa causar a terceiros.
O enunciado 22, ao destacar que “a função social do contrato,
prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral que reforça o
princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas”, não
só reforça a função social do contrato em seu aspecto interno, inter partes (da
mesma forma o enunciado 360 da IV Jornada de Direito Civil do CJF), como
destaca também o princípio da conservação dos contratos, citado
anteriormente.
Alguns exemplos de aplicação deste princípio no caso concreto
podem ser encontrados na jurisprudência:
REsp 476649 / SP RECURSO ESPECIAL 2002/0135122-4
Relator(a) Ministra NANCY ANDRIGHI (1118)
T3 - TERCEIRA TURMA
Data do Julgamento: 20/11/2003
“Ementa
Consumidor. Contrato de prestações de serviços educacionais.
Mensalidades escolares. Multa moratória de 10% limitada em
2%. Art. 52, § 1º, do CDC. Aplicabilidade. Interpretação
sistemática e teleológica. Eqüidade. Função social do
contrato.
- É aplicável aos contratos de prestações de serviços
educacionais o limite de 2% para a multa moratória, em
harmonia com o disposto no § 1º do art. 52, § 1º, do CDC.
44
Recurso especial não conhecido”.
REsp 811670 / MG RECURSO ESPECIAL 2006/0013678-2
Relator(a) Ministra NANCY ANDRIGHI (1118)
T3 - TERCEIRA TURMA
Data do Julgamento: 16/11/2006
“Ementa
Civil. Permuta de imóveis financiados pelo SFH, em que cada
parte assume o pagamento das prestações da outra, sem
transferência dos contratos ou anuência do agente financeiro.
Morte de um dos mutuários com a conseqüente quitação do
saldo devedor relativo ao imóvel dado em permuta. Equilíbrio
contratual. Beneficiamento dos dependentes do falecido.
- o seguro habitacional tem dupla finalidade: afiançar a
instituição financeira contra o inadimplemento dos dependentes
do mutuário falecido e, sobretudo, garantir a estes a aquisição
do imóvel, cumprindo a função social da propriedade.
- se o comportamento das partes, desde o início, evidencia a
intenção de ambas de manter o equilíbrio do contrato e de se
desvincular totalmente do bem dado em permuta, transferindo
para o imóvel recebido em troca todas as suas expectativas e
esforços de aquisição da tão sonhada “casa própria”, o seguro
decorrente do falecimento de um dos mutuários deve vir em
benefício de seus próprios dependentes, na proporção do que
for pago pela seguradora.
Recurso especial conhecido e provido.
Acórdão
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os
Ministros da TERCEIRA TURMA do Superior Tribunal de
Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas
constantes dos autos, por unanimidade, conhecer do recurso
45
especial e dar-lhe provimento, nos termos do voto da Sra.
Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Humberto Gomes de
Barros, Ari Pargendler e Carlos Alberto Menezes Direito
votaram com a Sra. Ministra Relatora. Ausente,
justificadamente, o Sr. Ministro Castro Filho.
Resumo Estruturado
EXISTÊNCIA, DIREITO, HERDEIRO, MUTUÁRIO,
RECEBIMENTO, VALOR, REFERÊNCIA, PRÊMIO, SEGURO
DE VIDA, PARA, QUITAÇÃO, IMÓVEL, OBJETO,
FINANCIAMENTO, PELO, SFH / HIPÓTESE, MUTUÁRIO,
SFH, CELEBRAÇÃO, CONTRATO DE PERMUTA, IMÓVEL,
COM, OUTRO, MUTUÁRIO; EXISTÊNCIA, CLÁUSULA,
CONTRATO, PREVISÃO, CADA, MUTUÁRIO, ASSUNÇÃO,
PAGAMENTO, PRESTAÇÃO, OBJETO, FINANCIAMENTO,
IMÓVEL; INEXISTÊNCIA, SUBSTITUIÇÃO, TITULARIDADE,
CONTRATO, FINANCIAMENTO, COM, SFH; NÃO
OCORRÊNCIA, REGISTRO, CONTRATO DE PERMUTA, EM,
CARTÓRIO DE REGISTRO DE IMÓVEIS; OCORRÊNCIA,
QUITAÇÃO, DÍVIDA, OBJETO, FINANCIAMENTO, IMÓVEL,
APÓS, MORTE, MUTUÁRIO, COM, UTILIZAÇÃO, VALOR,
PRÊMIO, SEGURO DE VIDA, PREVISÃO, ÂMBITO,
CONTRATO, COM, SFH / CARACTERIZAÇÃO, SEGURO DE
VIDA, COMO, GARANTIA, PARA, CUMPRIMENTO,
CONTRATO; NECESSIDADE, MANUTENÇÃO, IGUALDADE,
ENTRE, TOTALIDADE, CONTRATANTE, E, OBSERVÂNCIA,
BOA-FÉ, E, FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO.
0013676-52.2010.8.19.0004- APELACAO
Ementa
DES. ANDRE RIBEIRO - Julgamento: 15/09/2011 - SETIMA
CAMARA CIVEL
46
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO DO CONSUMIDOR.
PRETENSÃO DE MANUTENÇÃO NO PLANO DE SAÚDE
COLETIVO APÓS TÉRMINO DE RELAÇÃO CONTRATUAL.
APOSENTADORIA. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA.
INCONFORMISMO DO AUTOR. APOSENTADORIA
OCORRIDA EM 2008. PROVA NOS AUTOS ACERCA DA
CONTRIBUIÇÃO DO EMPREGADO PARA O PLANO DE
SAÚDE COLETIVO POR UM PERÍODO SUPERIOR A DEZ
ANOS. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 31 DA LEI Nº 9656/98.
LOGO, TENDO EM CONTA O DIREITO ASSEGURADO À
MANUTENÇÃO COMO BENEFICIÁRIO, NAS MESMAS
CONDIÇÕES DE COBERTURA ASSISTENCIAL DE QUE
GOZAVA QUANDO DA VIGÊNCIA DO CONTRATO DE
TRABALHO, ALIADO AO ATENDIMENTO DO REQUISITO
TEMPORAL DEFINIDO PELA LEI, IMPÕE-SE O
REEQUILÍBRIO DO CONTRATO (ART. 6º, V, DO CDC), COM
A PORTABILIDADE DAS CONDIÇÕES ANTERIORMENTE
VIGENTES. DIREITO DO AUTOR DE CONTINUAR A
USUFRUIR DO PLANO NAS MESMAS CONDIÇÕES EM QUE
GOZAVA NO PERÍODO DO CONTRATO DE TRABALHO.
PAGAMENTO DAS MENSALIDADES E FRUIÇÃO DOS
SERVIÇOS MÉDICO-HOSPITALARES FORNECIDOS PELO
RÉU. DANO MORAL CARACTERIZADO FACE À
ANGÚSTIA, ANSIEDADE E INSEGURANÇA IMPOSTAS AO
AUTOR EM MOMENTO DE INTENSA FRAGILIDADE FÍSICA
E PSÍQUICA, JÁ QUE É PESSOA IDOSA, CONTANDO COM
63 ANOS DE IDADE, E EM VIRTUDE DA GARANTIA DE
EFICÁCIA À FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS, E À
BOA-FÉ OBJETIVA. QUANTUM FIXADO EM R$ 5.000,00,
QUE SE MOSTRA CONDIZENTE COM AS
PECULIARIDADES DO CASO, E EM CONSONÂNCIA COM
OS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E
PROPORCIONALIDADE. REFORMA DA SENTENÇA.
PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. RECURSO A QUE SE
47
DÁ PARCIAL PROVIMENTO, NA FORMA DO ART. 557, §1°-
A, DO CPC”.
Por fim, pertinente destacar neste trabalho a correlação direta entre
o princípio da dignidade da pessoa humana e a função social dos contratos no
entendimento do Conselho da Justiça Federal ao elucidar no enunciado 23 da I
Jornada de Direito Civil que “a função social do contrato, prevista no art. 421
do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas
atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses
metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana.
CONCLUSÃO
Michael Löwy, ao definir os fundamentos do historicismo como
vertente teórico-metodológico das Ciências Sociais, traz uma concepção
interessante pertinente a este trabalho:
“Qualquer fenômeno social, cultural ou político é histórico e só pode ser compreendido dentro da história, através da história, em relação ao processo histórico. [...] Não só o objeto da
48
pesquisa é histórico, está imergido [sic] no fluxo da história, como também o sujeito da pesquisa, o investigador, o pesquisador, está, ele próprio, imerso no curso da história, no processo histórico”.37
Como foi demonstrado nesta exposição de idéias a respeito do
princípio da dignidade da pessoa humana e sua aplicação nas relações
contratuais privadas, a sociedade evoluiu muito em matéria de defesa do bem
mais caro existente: a vida. O reconhecimento da dignidade da pessoa foi
conseqüência de uma construção histórica arquitetada como paradigma das
relações entre indivíduos e destes com o Estado.
A humanidade já sofreu com tantas guerras e regimes autoritários, e
pessoas ao longo de tantas convulsões históricas deram literalmente seu
sangue para fazer deste mundo um lugar melhor para se viver. Mas o ser
humano vem aprendendo com seus próprios erros. O último século centrou-se
na promulgação de documentos internacionais que reconhecem os direitos do
homem, como se o verdadeiro sentido de justiça fosse despertado em grande
escala no mundo contemporâneo.
O direito nasce de uma exigência humana, pelo inerente desejo de
justiça que cada um possui. Se o direito se refere às exigências de justiça, a
qual está ordenada à realização de uma ordem equilibrada das relações
interpessoais e sociais e que encontra sua centralidade na própria pessoa e
nos bens que lhe são essenciais, essa ordem justa exigirá que a legislação e a
jurisprudência não se afastem dos fundamentos antropológicos e morais do
direito, caso contrário essas decisões dos legisladores, juízes e demais
autoridades serão puro arbítrio de pessoas que não levam em consideração a
dignidade de seus semelhantes.
Especificando o caso brasileiro, este passou pelos mesmos
sofrimentos que outros povos ao longo da história, e, como todos, também
vem aprendendo com os erros e atraindo para si a cota de responsabilidade
que lhe cabe para defender a vida digna das pessoas.
37 LÖWY, Michael. Ideologias e ciência social: elementos para uma análise marxista. 14. ed.
São Paulo: Cortez, 2000. p. 69-70.
49
A dignidade do homem ganhou força a cada diploma constitucional
e agora, com o advento da Constituição Federal de 1988, os mecanismos de
defesa de tal princípio fundamental inalienável estão aprimorados como nunca
com a evolução doutrinária. A mudança de um Código Civil de 1916
eminentemente patrimonialista e individualista para um novo diploma de 2002
compromissado com a eticidade, a operabilidade e a socialidade, pode
efetivamente ser utilizado como instrumento para promoção do objetivo maior
do Estado Democrático de Direito consagrado no art. 1º, III, da Carta Maior:
garantir sua legitimação transformando a dignidade humana uma realidade
para todos.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
ALVES, Cleber Francisco. O Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: o enfoque da doutrina social da Igreja. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 9.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris 2006. BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas, 8. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
50
______. Interpretação e Aplicação da Constituição: Fundamentos de uma Dogmática Constitucional Transformadora. 6. ed., São Paulo: Saraiva, 2004. BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional Brasileira: Legitimidade democrática e instrumentos de realização, 2. Ed., São Paulo: Renovar, 2004. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 17. Ed., São Paulo: Malheiros, 2005. _______. Do Estado Liberal ao Estado Social, 7. Ed., São Paulo: Malheiros, 2004. CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. 1988-1998: Uma década de constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. CAVALCANTI, Vanuza BECKER, Antônio. Constituições Brasileiras de 1824 a 1988. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004. v.1. CUNHA, Alexandre dos Santos. A normatividade da pessoa humana: o estudo jurídico da personalidade e o Código Civil de 2002" – Rio de Janeiro: Forense, 2005. DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito, 7. ed. – São Paulo: Saraiva, 1995. FONSECA, Rodrigo Garcia da. A Função Social do Contrato e o Alcance do artigo 421 do Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007; GROCHOLEWSKI, Zenom. A filosofia do direito nos ensinamentos de João Paulo II e outros escritos. São Paulo: Paulinas, 2002. GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do Direito. 31.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. LÖWY, Michael. Ideologias e ciência social: elementos para uma análise marxista. 14. ed. São Paulo: Cortez, 2000. LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. 17.ed. São Paulo: Brasiliense, 1999. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28. ed. São Paulo: Malheiros 2003.
51
MARQUES, Claúdia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 5°ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2003. NERY JUNIOR, Nelson. Código Civil Comentado. 4. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais 2006; QUARESMA, Regina. OLIVEIRA, Maria Lúcia de Paula. Direito Constitucional Brasileiro. Perspectivas e controvérsias contemporâneas. Rio de Janeiro: Forense. 2006. SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. SILVA, Anabelle Macedo. Concretizando a Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005. VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 3.ed. São Paulo: Atlas 2003; v.2 VICENZI, Marcelo. Interpretação do Contrato: ponderação de interesses e solução de conflitos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
ÍNDICE
FOLHA DE ROSTO 2
AGRADECIMENTO 3
DEDICATÓRIA 4
RESUMO 5
METODOLOGIA 6
SUMÁRIO 7
INTRODUÇÃO 8
52
CAPÍTULO I
O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana 9
1.1 – Origens Históricas e Filosóficas 9
1.2 – A Especial Contribuição da Filosofia de Immanuel
Kant 16
1.3 – Atuais Bases Constitucionais do Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana 20
CAPÍTULO II
A Constitucionalização do Direito Civil sob a ótica da evolução
histórica do instituto contratual 23
2.1 - Breve histórico sobre a evolução Moderna do Instituto
Contratual 24
2.2 – Princípios Gerais do Direito Contratual
Contemporâneo 26
2.2.1 – A Importância de se observar a dignidade humana
como fundamento do ordenamento jurídico 26
2.2.2 – Princípio da Autonomia da Vontade 29
2.2.3 – Princípio da Obrigatoriedade dos Contratos 31
2.2.4 – Princípio da Relatividade dos Contratos 34
2.2.5 – Princípio da Boa-Fé Objetiva 35
2.2.6 – Princípio do Equilíbrio Contratual 37
CAPÍTULO III
A Função Social dos Contratos 43
CONCLUSÃO 49
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 51
ÍNDICE 53