universidade de lisboa instituto de ciências...
TRANSCRIPT
1
UNIVERSIDADE DE LISBOA
Instituto de Cincias Sociais
Ttulo da Tese
Velhos Amigos, Novos Adversrios
As Disputas, Alianas e Reconfiguraes Empresariais na Elite Poltica Moambicana
Nome completo do Autor
Edson Robert de Oliveira Corts
Orientador: Prof. Doutor Paulo Jorge Granjo Simes
Tese especialmente elaborada para obteno do grau de Doutor Em Antropologia,
especialidade de Antropologia da Economia e do Trabalho
2018
2
UNIVERSIDADE DE LISBOA
Instituto de Cincias Sociais
Ttulo da Tese
Velhos Amigos, Novos Adversrios
As Disputas, Alianas e Reconfiguraes Empresariais na Elite Poltica Moambicana
Nome completo do Autor
Edson Robert de Oliveira Corts
Orientador: Prof. Doutor Paulo Jorge Granjo Simes
Jri:
Presidente: Doutora Ana Margarida de Seabra Nunes de Almeida, Investigadora
Coordenadora e Presidente do Conselho Cientfico do Instituto de Cincias Sociais da
Universidade de Lisboa
Vogais:
- Doutor Michel Cahen, Directeur de Recherche Centre National de la Recherche
Scientifique Sciences Po Bordeaux, Frana;
- Doutor Jason Michael Sumich, Senior Research Fellow Institute of African Affairs do
Giga;
- Doutora Maria Paula Guttierrez Meneses, Investigadora Coordenadora Centro de
Estudos Sociais da Universidade de Coimbra;
- Doutor Jos Manuel Rolo Ferreira Correia, Investigador Coordenador Jubilado
Instituto de Cincias Sociais da Universidade de Lisboa;
- Doutor Paulo Jorge Granjo Simes, Investigador Auxiliar Instituto de Cincias Sociais
da Universidade de Lisboa, orientador;
2018
3
ndice
Resumo ............................................................................................................................. 6
Abstract..7
Agradecimentos ................................................................................................................ 8
Dedicatria...................................................................................................................... 10
Abreviaturas.................................................................................................................... 11
Capitulo I ........................................................................................................................ 15
Introduo ....................................................................................................................... 16
1.2. O Estado como instrumento de acumulao de capital ........................................... 24
1.3 Como foi feita a pesquisa ......................................................................................... 38
1.4 Conceptualizao ...................................................................................................... 49
1.5 Estruturao do Trabalho.......................................................................................... 50
Capitulo II ....................................................................................................................... 52
Reviso Bibliogrfica ..................................................................................................... 52
Capitulo III ..............................................................................................................69
Elite Poltica e Econmica de Moambique Sua Gnese e Formas de Reproduo ...... 69
3.1. Breve historial da economia poltica de Moambique no perodo antes e depois da
independncia ................................................................................................................. 69
3.2. O surgimento de uma elite poltica e econmica cuja sobrevivncia e reproduo
est baseada na relao privilegiada com o Estado em Moambique ............................ 72
3.3 A influncia poltica como garantia dos direitos de propriedade e contratuais. ....... 91
Capitulo IV ................................................................................................................... 115
Dinmicas do processo de acumulao em Moambique. ........................................... 115
4
4.1 Da ajuda externa indstria extractiva, metamorfoses do processo de acumulao
em Moambique ........................................................................................................... 116
4.2 O equilbrio precrio dos jogos de interesse da elite poltica moambicana poder
possibilitar a emergncia de uma burguesia produtiva? ............................................... 145
4.3 O Associativismo Empresarial como instrumento de controlo do sector privado . 151
Tabela 1. Ministros com interesses no sector das madeiras ......................................... 163
Tabela 2. Ministros com interesses no sector das Pescas ............................................. 166
Tabela 3. Ministros com interesses no sector dos Hidrocarbonetos ............................. 167
Tabela 4. Ministros com interesses no sector da Banca, Finanas e Seguros .............. 168
Tabela 5. Ministros com interesses no sector da Minerao ........................................ 169
Tabela 6. Ministros com interesses no sector da Energia ............................................. 170
Tabela 7. Ministros com interesses no sector dos Transportes, Portos e Comunicaes
...................................................................................................................................... 171
Tabela 8. Ministros com interesses no sector dos Construo Civil e Obras Pblicas 173
Tabela 9. Ministros com interesses no sector Imobilirio ............................................ 175
Tabela 10. Ministros com interesses no sector de Servios ......................................... 177
Tabela 11. Ministros com interesses no sector da Agricultura e Agropecuria ........... 179
Tabela 12. Ministros com interesses no sector do Turismo ......................................... 181
Tabela 13. Ministros com interesses na Gesto de Participaes em outras sociedades
...................................................................................................................................... 183
Capitulo V .................................................................................................................... 186
As estratgias de reproduo da elite poltica/empresarial de Moambique ................ 186
5.1 A educao formal como mecanismos de reproduo das elites polticas em
Moambique. ................................................................................................................ 187
5
5.2. O matrimnio como estratgia de reproduo das elites em Moambique205
5.3 O poder econmico como mecanismo de reproduo das elites polticas em
Moambique. ................................................................................................................ 214
5.3.1. Acesso aos activos e bens do Estado como mecanismos de reproduo e
manuteno das elites216
5.3.2 A privatizao dos activos do Estado, mais concretamente o parque imobilirio do
Estado ........................................................................................................................... 218
5.3.3 O saque aos bancos estatais ................................................................................. 227
5.3.4 O recurso aos crditos de tesouro como forma de financiar as suas empresas
deficitrias, emprstimos que a maioria dos credores nunca reembolsou ao Estado. .. 230
5.3.5 Aliana ao capital internacional .......................................................................... 232
5.4 A posse e deteno do poder poltico como estratgia de manuteno e reproduo
das elites poltico-econmicas em Moambique .......................................................... 234
Capitulo VI ................................................................................................................... 260
O impacto do escndalo das dvidas ocultas na coeso das elites polticas do partido
Frelimo ......................................................................................................................... 260
6.1 O historial da descoberta das dvidas ocultas..264
6.2 A crise da dvida pblica e o seu impacto na coeso interna da elite do partido
Frelimo ......................................................................................................................... 288
Capitulo VII .................................................................................................................. 315
Concluso ..................................................................................................................... 315
Bibliografia327
Anexo das entrevistas ................................................................................................... 335
6
Resumo
Este estudo procura perceber at que ponto o surgimento de grupos econmicos
sustentados pelo acesso privilegiado ao Estado moambicano se encontra dependente
das lgicas e dinmicas internas de acesso ao poder dentro do partido Frelimo.
Desde a independncia de Moambique o pas teve quatro Presidentes da Repblica que
simultaneamente ocupavam o cargo de presidente do partido Frelimo. Aps a
liberalizao da economia e adeso ao capitalismo, o controlo do poder poltico
permitiu acumulao do poder econmico, tornando parte considervel das elites
polticas tambm elites econmicas.
O estudo demostra que a ascenso ao poder de um novo Presidente da Repblica traz
consigo oportunidades para a reconfigurao dos principais beneficirios no processo de
acumulao de capital. Este facto acirra as disputas e tenses entre as elites polticas do
partido Frelimo porque, o controlo do Estado permite o acesso privilegiado as
oportunidades de acumulao de capital, mas para controlar o Estado preciso que
antes se tenha o controlo do partido, pois o partido que controla o Estado.
As disputas e tenses internas pelo controlo da Frelimo fazem com que a competio
poltica seja enorme, agravado pela existncia de vrios Patres dentro do partido, cada
um com as suas respectivas redes clientelares que no so estanques e onde os seus
Clientes disputam protagonismo para ganhar visibilidade perante os seus Patres ou
ento serem cooptados pelas redes que se mostram dominantes num determinado
momento.
A avidez pela acumulao de capital faz com que as disputas no se circunscrevam
somente ao mbito poltico, pois como a economia pequena e, existe uma enorme
concentrao dos sectores economicamente rentveis, os polticos/empresrios tornam-
se tambm concorrentes nos negcios, e quando assim o , aquele que detm maior
poder poltico vence, mesmo que isso implique o desrespeito pelos direitos contratuais e
de propriedade.
Palavras chaves: Elites, Patres, Clientes, Acumulao de capital
7
Abstract
This study seeks to understand the extent to which the emergence of economic groups
sustained by privileged access to the Mozambican state is dependent on internal logic
and dynamics of access to power within the Frelimo party.
Since the independence of Mozambique the country has had four Presidents of the
Republic who simultaneously occupied the position of president of the Frelimo party.
After the liberalization of the economy and adherence to capitalism, control of political
power allowed accumulation of economic power, making political elites also economic
elites.
The study shows that the rise to power of a new President of the Republic brings with it
opportunities for the reconfiguration of the main beneficiaries in the process of capital
accumulation. This fact aggravates the disputes and tensions between the political elites
of the Frelimo party because state control allows privileged access to capital
accumulation opportunities, but to control the state, one must first have control of the
party, since it is the Party controlling the state
Internal disputes and tensions over Frelimo's control make political competition huge,
compounded by the existence of several Patrons within the party, each with its own
clientele networks that are not watertight and where its Clients compete for visibility To
their Patrons or to be co-opted by the networks that are dominant at a given moment.
Greed for capital accumulation means that disputes are not confined to the political
sphere alone, because the economy is small and there is a huge concentration of
economically profitable sectors, politicians / entrepreneurs also become competitors in
business, and when So it is, the one with the greatest political power wins, even if this
implies disrespect for contractual and property rights.
Key words: Elites, Patrons, Clients, Capital Accumulation
8
Agradecimentos
Quero enderear agradecimentos especiais a todos aqueles que deram um contributo
valioso para a materializao deste trabalho.
Em primeiro lugar, agradeo ao supervisor da minha tese de doutoramento Prof. Doutor
Paulo Granjo que, foi mais do que um simples orientador, tornando-se ao longo desta
caminhada um amigo e companheiro de todas as horas. Muito obrigado Professor,
estarei sempre agradecido.
Quando terminei o mestrado a primeira pessoa que me incentivou a fazer o
doutoramento foi o meu PAP, Ernesto Corts, na ausncia da bolsa de mestrado, foi ele
que sem receios de qualquer tipo de riscos fiducirios e, nem usando de qualquer
condicionalismo, financiou toda a empreitada relacionado com o meu mestrado. Ao
longo do doutoramento, diante dos constrangimentos da falta de bolsa de estudo, o meu
eterno Parceiro de Apoio Programtico (PAP), voltou a no impor qualquer tipo de
condicionalismo financiando parte considervel de mais uma etapa da minha formao.
Por isso s posso dizer, muito obrigado Pai, tu s o meu heri e amo-te muito.
Os meus agradecimentos so extensivos aos meus amigos Marcelo Mosse e Adriano
Nuvunga, obrigado pela vossa ajuda impar durante o trabalho de campo, as vrias
conversas que troquei com ambos sobre os temas abordados nesta tese foram bastante
importantes para a construo dos argumentos deste trabalho.
Ao Prof. Jos Jaime Macuane pela sua disponibilidade, apesar da sua preenchida agenda
sempre que eu tivesse um bloqueio criativo e precisasse da sua ajuda, as portas do seu
escritrio estavam abertas para mim. Ao Marc De Tollenare pela sua prontido em
comentar alguns captulos desta tese. Ao Prof. Joo Pereira pelo tempo disponibilizado
para conversar comigo e esclarecer aspectos cruciais abordados ao longo deste trabalho.
Ao meu amigo Briguel (Francisco da Conceio), que por vrias vezes colocou em
causa os meus argumentos, foram muitas as discusses e s no chegamos a vias de
facto devido a distncia que nos separava na altura da redaco desta tese. Estas
discusses, tenses e conflitos ajudaram-me a consolidar e melhorar os argumentos
deste trabalho, por isso o meu muito obrigado.
9
Aos meus irmos Denise, Nancy, Carla, Emanuel e Luis Filipe por todo apoio prestado
ao longo destes anos para que este trabalho fosse materializado. A minha me Maria
Salom por todo o carinho e apoio incondicional vai o meu muito obrigado.
Ao Moses No Cossa, my brother from another mother, a Aline Afonso, Cludio
Toms, Gilson Lzaro e Marta Patrcio pela sua ajuda, companheirismo e incentivos
durante a estadia em Lisboa e ao longo da elaborao desta tese.
A minha tia Lcia Cortez, e os meus primos Paulo Bretes e Daniel Bretes pelo amor e
carinho que me deram ao longo dos anos em que vivi em Lisboa.
Os meus agradecimentos so extensivos todas as pessoas que mesmo sabendo da
sensibilidade de alguns dos temas abordados nesta tese, se predispuseram a conceder-
me entrevistas e falar abertamente sobre os temas em questo. Khanimambo.
10
Dedicatria
Este trabalho dedicado ao Oliver, a Chloe e a Claudia muito obrigado pelo amor,
carinho e pacincia demonstrado ao longo destes anos. Este o nosso trabalho e por
isso serei eternamente grato a vocs. GMV*.
* Gramo Maningue de Vocs
11
Abreviaturas
ACIS Associao Comrcio Indstria e Servios
ACLLN Associao dos Combatentes da Luta de Libertao Nacional
ADO Apoio Directo ao Oramento
AdM Aeroportos de Moambique
ADeM guas de Moambique
AGP - Acordo Geral de Paz
APIE - Administrao do Parque Imobilirio do Estado
APD Ajuda Pblica ao Desenvolvimento
AT Autoridade Tributria de Moambique
BA Banco Austral
BAD - Banco Africano de Desenvolvimento
BCI Banco Comercial de Investimento
BCM - Banco Comercial de Moambique
BM Banco Mundial
BIM Banco Internacional de Moambique
BNU - Banco Nacional Ultramarino
BPD Banco Popular de Desenvolvimento
BR Boletim da Repblica
BSTM - Banco Standard Totta de Moambique
CASP - Conferncia Anual do Sector Privado
CE Comisso Europeia
12
CC Comit Central
CCT -Comisso Consultiva de Trabalho
CDN - Corredor de Desenvolvimento do Norte
CGE Conta Geral do Estado
CFM Caminhos de Ferro de Moambique
CFMP Cenrio Fiscal de Mdio Prazo
CIP Centro de Integridade Pblica
CMEA - Cooperao Econmica dos Pases de Leste
CP Comisso Poltica
CPAR - Country Procurement Assessment Report
CPI - Centro de Promoo de Investimento
CPI - Comisso Parlamentar de Inqurito
CTA Confederao das Associaes Econmicas
CUF - Companhia Unio Fabril
DFID -Department of International Development
DNO Direco Nacional de Oramento
DUAT - Direito e Uso e Aproveitamento de Terra
EDM Electricidade de Moambique
EMATUM Empresa Moambicana de Atum
ENI - Ente Nazionale Idrocarburi
FRELIMO Frente de Libertao de Moambique
FMI Fundo Monetrio Internacional
13
G-19 Grupo dos 19 Doadores do oramento do estado
GCMB - Global Group of Mozambique Bondholders
GIPS - Gesto de Investimentos, Participaes e Servios
GdM Governo de Moambique
HCB Hidroelctrica de Cahora Bassa
JUE - Janela nica Electrnica
LAM Linhas Areas de Moambique
MAM Mozambique Assets Management
MANU - Unio Nacional Africana de Moambique
MASC Mecanismo de Apoio a Sociedade Civil
MDE Memorando de Entendimento
MDM - Movimento Democrtico de Moambique
MDN Ministrio da Defesa Nacional
ME Ministrio da Energia
MEF Ministrio da Economia e Finanas
MF Ministrio das Finanas
MIREME Ministrio de Recursos Minerais e Energia
MITADER - Ministrio da Terra, Ambiente e Desenvolvimento Rural
MOZAL - Moambique Alumnio
MPD Ministrio da Planificao e Desenvolvimento
MRM - Ministrio dos Recursos Minerais
MS Ministrio da Sade
14
OE Oramento do Estado
OJM Organizao da Juventude Moambicana
OMM Organizao da Mulher Moambicana
OMR Observatrio do Meio Rural
ONG Organizao No Governamental
PAF - Performance Assessment Framework
PAP Parceiros de Apoio Programtico
PARPA Programa de Alivio e Reduo da Pobreza
PES - Plano Econmico e Social
PIB Produto Interno Bruto
PRE Programa de Reabilitao Econmica
PRES Programa de Reabilitao Econmica e Social
PRI - Partido Revolucionrio Institucional
PPP Parcerias Pblico Privadas
USAID United States Agency International Development
SADC - Comunidade de Desenvolvimento da Africa Austral
SERSSE - Servios Sociais dos Servios de Informao e Segurana do Estado
SISE - Servios de Informao e Segurana do Estado
SPEED - Support Program for Economic and Enterprise Development
SWAPS Sector Wide Approach
IDA - Agncia de Desenvolvimento Internacional
IDE Investimento Directo Estrangeiro
15
IDN Investimento Directo Nacional
IESE Instituto de Estudos Sociais e Econmicos
IGEPE - Instituto de Gesto e Participaes do Estado
INE - Instituto Nacional de Estatstica
Instituto Nacional de Comunicaes (INCM
TA Tribunal Administrativo
TDM Telecomunicaes de Moambique
TVE - Televiso Experimental de Moambique
UDENAMO - Unio Democrtica Nacional de Moambique
UNAMI - Unio Nacional Africana de Moambique Independente
VTB - Vneshtorgbank
https://pt.wikipedia.org/wiki/Uni%C3%A3o_Nacional_Africana_de_Mo%C3%A7ambique_Independente
16
Capitulo I
Introduo
Quando Moambique conquistou a sua independncia a 25 de Junho de 1975, esta
antiga colnia de Portugal tinha uma economia assente no fornecimento de mo-de-obra
para as minas de ouro da Africa do Sul e na explorao do sistema ferro-porturio que
garantia a entrada de receitas provenientes do escoamento de matria-prima e produtos
para os pases do Hinterland, mais concretamente a Rodsia do Sul, actual Zimbabwe, o
Malawi e a Zmbia.
A outra fonte de arrecadao de divisas era providenciada essencialmente pelos grandes
grupos ligados agricultura comercial que dominavam internamente a economia, tais
como a Sena Sugar Estates, a Companhia de Boror a Companhia da Madal e outras, que
eram empresas maioritariamente de capitais estrangeiros e tinham interesses no agro-
negcio da exportao de acar, copra, algodo, castanha de caju e ch.
Havia tambm sucursais de alguns grupos empresariais portugueses que detinham
interesses no sector de servios e da pequena indstria local, tais como o Grupo
Champalimaud, Espirito Santo e Companhia Unio Fabril (CUF). Podia-se ainda
encontrar um terceiro grupo de empresas que foram constitudas e tinham as suas sedes
em Moambique; apesar de os seus fundadores serem colonos portugueses, eles j se
encontravam a muitos anos em Moambique e parte considervel dos seus
investimentos, seno a totalidade, eram feitos no pas. Neste grupo de empresas
encontravam-se o Grupo Entreposto, Joo Ferreira dos Santos, Boror Comercial, entre
outros.
A vasta maioria das pequenas e mdias empresas eram essencialmente propriedade de
colonos portugueses, como tambm de alguns comerciantes indianos. Estas empresas
operavam principalmente na rea comercial e na pequena e mdia indstria que
produzia para fornecer os principais centros urbanos do pas.
Although the scholarly literature largely has overlooked them, approximately 20.000
Indians originating from Goa (which Portugal also colonized) and the Indian sub-
17
continent participated in the import-export trade and in retail trade in both the city and
the countryside (Pitcher: 2002, 29).
A forma como estava estruturada a economia possibilitava que administrao colonial
portuguesa conseguisse arrecadar elevadas somas em divisas externas devido a natureza
de servios que a economia de Moambique prestava aos pases da regio.
Moambique passou a ser um manancial de divisas externas, o que em parte explica
que, apesar das guerras coloniais, se tivesse mantido o nvel de reservas/ouro conhecido.
Com efeito, atravs dos transportes para frica do Sul e Rodsia e dos pagamentos
diferidos aos trabalhadores moambicanos nas minas sul-africanas, sendo parte dos
salrios entregues ao governo, e s mais tarde, devolvido aos trabalhadores, j na sua
terra, Moambique arrecadava somas que permitiam, por exemplo, em 1965, um saldo
positivo na rubrica de transportes, de 1114 milhes de escudos (Capela, 1977: 242).
Porm, apesar da enorme entrada de divisas, a balana de transaces correntes foi
sempre deficitria, devido ao facto de a economia depender das exportaes de
matrias-primas no seu estado bruto (por processar) pela ausncia de uma indstria de
processamento e importava produtos acabados maioritariamente da metrpole.
Segundo Capela (1977), para alm da posio de subalternidade das colnias nas trocas
comerciais, com total benefcio para a economia metropolitana, elas vieram a sofrer, na
rea estritamente financeira, os efeitos do processo de integrao monetria da zona do
escudo previsto no decreto-lei n44016, de 1961, e instituio do sistema de pagamentos
interterritoriais estabelecido em 1963.
Como se pode depreender, por parte da administrao colonial portuguesa, havia uma
poltica clara de uso dos territrios coloniais como fonte de matria-prima para a
metrpole e de potenciais mercados para os produtos acabados ou bens de consumo da
pequena e mdia indstria portuguesa que no tinha vantagens comparativas em relao
a mercados mais competitivos.
Ao nvel da regio Austral de frica, a administrao colonial portuguesa soube tirar
proveito da localizao geogrfica de Moambique em relao aos seus vizinhos que
possuam economias muito mais desenvolvidas e que precisavam da mo-de-obra de
18
Moambique, como tambm e principalmente da rede ferro-porturia de Moambique,
que permitia a importao e o escoamento de seus produtos.
Abrahamsson & Nilsson (1994) sugerem que a estratgia seguida pela administrao
colonial portuguesa entrou em contradio com os portugueses moambicanos que
lutavam por exercer uma dominao econmica em Moambique. E esta luta conduziu-
os a uma poltica econmica que exclua, quase completamente, os moambicanos
negros da actividade econmica. Os moambicanos no tinham possibilidade de
avanar nem mesmo no comrcio local e na pequena agricultura.
importante frisar que estas contradies entre os objectivos definidos pela
administrao colonial portuguesa e a pretenso de alargar a dominao econmica por
parte dos colonos portugueses moambicanos h muito estabelecidos no pas se devia
ao facto de os sectores estruturantes da actividade econmica serem controlados pelo
capital estrangeiro, entenda-se no portugus.
Durante o perodo colonial, eram muito poucos os exemplos de populaes nativas que
tivessem a seu cargo a gesto de pequenos e mdios negcios que pudessem competir
com as empresas dos colonos portugueses.
As populaes africanas, principalmente aquelas situadas na parte sul de Moambique,
tinham como destino as minas de ouro da Africa do Sul, onde eram melhor remunerados
em relao aos trabalhos pouco especializados que estavam destinados a exercer na sua
terra natal, principalmente aqueles que viviam prximo das zonas urbanas. Porm a
maior parte da populao nativa vivia na base da agricultura de subsistncia.
Em 1970, na Assembleia Nacional, dizia a deputada por Moambique: Somos
informados e com imensa satisfao o soubemos que em Angola se encontram
portugueses africanos em vrios sectores da administrao pblica e de actividade
privada a desempenhar diversos lugares, incluindo alguns de relevo. Outro tanto,
infelizmente, no se pode dizer de Moambique, onde salvo raras ou rarssimas
excepes, no encontramos o portugus africano nos quadros do funcionalismo pblico
nem das actividades econmicas, excepto no preenchimento de mesteres no
qualificados, mais humildes. No o conhecemos como exercendo comrcio ou indstria
propriamente ditos, no o sabemos como possuidor de terrenos ou prdios, quase nunca
19
visto a frequentar cinemas, restaurantes ou hotis, no vive em casas ou apartamentos
prprios ou alugados dentro dos centros urbanos, mas apenas isoladamente ocupando
dependncias reservadas a serviais, etc. (Capela: 1977:248).
A administrao colonial em Moambique era bastante centralizada, o Estado detinha
um papel fulcral na definio das estratgias de desenvolvimento. Por via desse facto,
os maiores beneficirios das suas polticas de desenvolvimento eram os colonos
portugueses em detrimento da populao nativa que no tinha acesso a mecanismos de
financiamento para competir nos mercados formais e muito menos o nvel de instruo
que o possibilitasse aspirar a cargos mais altos na administrao do Estado.
Nos ltimos anos do perodo colonial, com a intensificao da guerra de libertao
nacional de Moambique, houve por parte da administrao colonial algumas tentativas
de abrir espao para que as populaes nativas pudessem auferir de alguns privilgios
que antes constituam prerrogativa dos colonos. Contudo, essas iniciativas no foram
suficientes para o surgimento e consolidao de empresrios negros e muito menos de
uma classe mdia constituda pelas populaes nativas.
Quando no dia 7 de Setembro de 1974 foram assinados os acordos de Lusaka, entre o
governo portugus e a Frelimo, acordos que permitiram a formao de um governo de
transio liderado por Joaquim Chissano e que inclua ministros do lado do governo
portugus como tambm da Frelimo, este governo estava incumbindo de preparar o
processo da transio da gesto administrativa do governo portugus para a Frelimo.
A entrada em funes do governo de transio aumentou os receios que os colonos
portugueses tinham sobre o novo regime da Frelimo, acabando por desencadear uma
vaga de migrao que retirou parte considervel dos funcionrios pblicos da
administrao colonial portuguesa, como tambm grande parte dos actores do sector
privado que detinham o controlo sobre a economia.
Durante este perodo a economia moambicana assiste sada dos principais grupos
empresariais, principalmente as grandes empresas de capitais portugueses que tinham as
suas sucursais em Moambique, algumas das grandes empresas de capitais estrangeiros
que operavam no sector agro-industrial, como tambm, a quase totalidade de pequenas e
20
mdias empresas, cujos proprietrios eram na sua maioria colonos portugueses e que
controlavam grande parte do comrcio de produtos e matria-prima.
Apesar de existirem relatos que no perodo colonial havia alguns empresrios africanos
que se destacavam dos demais nativos pela sua habilidade nos negcios, estes nunca se
tornaram grandes empresrios porque a poltica seguida pelo administrao colonial
impedia que estes conseguissem acumular o suficiente de modo a tornarem-se grandes
empresrios.
Although the regime parcelled out land and credit in the 1960s, simultaneously it
blocked further accumulation by africans, or appropriated land to distribute to
portuguese migrants, or enacted administrative reforms that disturbed existing
customary boundaries (Pitcher: 2002:34).
A administrao colonial era bastante intervencionista nos mercados, apesar de
existirem grandes empresas privadas que controlavam os sectores chaves da economia,
cabia a ela a funo de regular e disciplinar os mercados. Atravs do controlo que
exercia sobre o Banco Nacional Ultramarino (BNU), que era o banco central da colnia
e controlava mais de 80% dos financiamentos economia, a administrao facilitava o
acesso ao crdito s grandes empresas privadas, s empresas pblicas e ao sector
privado no geral. Isto, para alm da prerrogativa legislativa que lhe possibilitava a
criao de decretos e legislao que favoreciam as empresas detidas pelos colonos
portugueses em detrimento dos nativos africanos.
Quando a Frelimo chega ao poder em Junho de 1975, aps a proclamao da
independncia, havia por parte do sector privado receios de que a poltica seguida pelo
novo governo fosse inviabilizar os negcios deste sector, atravs da nacionalizao das
empresas.
Parte destes receios eram justificados pelo facto de aps a morte de Eduardo Mondlane,
primeiro presidente e fundador da Frelimo, nas disputas internas entre as diversas
faces pela tomada de poder, ter sado vitorioso o grupo liderado por Samora Machel
que defendia que o movimento deveria ter uma orientao marxista-leninista.
Tendo em conta a orientao poltica seguida pelo movimento de libertao, os receios
manifestados pelo sector privado eram mais do que plausveis. Porm, nos dois anos
21
aps a independncia no se verificou uma sbita nacionalizao das empresas que
operavam em Moambique. Contudo uma conjugao de vrios factores fez com que a
partir de 1977, a Frelimo enveredasse pela opo de economia centralizada.
Even with widespread abandonment and sabotage, the degree of state intervention and
nationalization in the first two and half years after Frelimo assumed leadership was
selective and limited, evidence which further supports official claims that the measure
was expedient. Out of a total of approximately 1675 companies existing throughout the
country at the time of independence, the state only involved in approximately 39
companies in key sectors of the economy by 1977, the year government officially
proclaimed its adherence to Marxism-Leninism (Pitcher: 2002:40).
Inicialmente no havia uma clara inteno de nacionalizao da economia, porm o
receio dos colonos portugueses em relao orientao poltica que seria seguida pelo
novo regime ps-independncia, aliada fuga massiva de capitais, sabotagem de
maquinaria e equipamento das empresas por parte dos proprietrios, sada massiva de
mo-de-obra qualificada e o aproveitamento de alguns nativos que, organizados em
grupos dinamizadores, procuravam aterrorizar os colonos portugueses de modo a que
estes abandonassem as suas empresas e sassem do pas, acabou precipitando a deciso
do governo da Frelimo de nacionalizar parte considervel das empresas do sector
privado e os prdios de rendimento devido ao abandono precipitado dos proprietrios.
importante frisar que s foram nacionalizadas as casas abandonadas e ou que tinham
por fim o arrendamento. Portanto a nacionalizao no se destinava somente a ocupar
casas de colonos, mas tambm as casas dos moambicanos nativos que tinham como
objectivo o arrendamento foram abrangidas, os exemplos mais conhecidos so os
prdios de rendimento dos antigos jogadores do futebol do Sport Lisboa e Benfica
Mrio Esteves Coluna e Eusbio da Silva Ferreira.
Apesar das nacionalizaes que ocorreram de forma acelerada depois de 1977 em quase
todos os sectores da economia nacional, houve algumas empresas que se mantiveram na
posse dos seus proprietrios, tais como o Grupo Entreposto Comercial, Joo Ferreira
dos Santos, Banco Standard Totta de Moambique, entre outros, porque os seus
proprietrios ou gestores nunca abandonaram Moambique por mais de noventa dias
conforme rezava a lei das nacionalizaes.
22
importante frisar que s eram nacionalizadas as empresas de cujos proprietrios ou
gestores haviam-se ausentado do pas por mais de noventa dias, sejam eles colonos ou
nativos.
Por outro lado, o comrcio, que sempre fora uma actividade privada no regime colonial,
o governo moambicano liderado pela Frelimo, viu-se obrigado a nacionalizar a maioria
dos estabelecimentos devido ao abandono dos seus proprietrios deixando parte
considervel dos estabelecimentos comerciais abandonados e sem ningum que os
controlasse, tendo por conseguinte sido criado uma gesto estatal denominada de Lojas
do Povo.
As estruturas governativas tomavam conhecimento do abandono de um estabelecimento
comercial atravs de informaes de populares e emitiam comunicados por via dos
jornais e rdio aos seus proprietrios dando-lhes um prazo de retoma at 90 dias da data
da publicao, findo o qual o estabelecimento passava a gesto do Estado atravs de
uma Comisso das Lojas do Povo.
As empresas que no foram nacionalizadas eram na sua maioria grandes empresas,
algumas detidas por capitais estrangeiros, outras ainda pertencentes a colonos
portugueses que nasceram em Moambique e que na altura da independncia preferiram
manter-se no pas, uma vez que todo o seu portflio de negcios estava baseado em
Moambique.
A sada massiva dos colonos portugueses, mais de 250 000 no deixou muito espao de
manobra ao governo de Moambique. Numa primeira fase procurou-se constituir grupos
de gesto provisrios que eram compostos por trabalhadores das empresas abandonadas
e alguns elementos indicados pelo governo da Frelimo, processo que culminava com a
nacionalizao da empresa por parte do Estado.
Foi assim que, no incio da dcada 1980, o Estado tinha procedido nacionalizao de
grande parte da iniciativa privada, desde os pequenos e mdios negcios, at s grandes
companhias que controlavam sectores nevrlgicos da economia.
Estas medidas, mais uma vez, no possibilitaram o surgimento de empreendedores e
empresrios provenientes dos diversos grupos nativos de Moambique, processo que j
23
tinha sido interrompido durante a ocupao colonial portuguesa, atravs das polticas
restritivas que impediam a emergncia e consolidao de empresrios africanos.
Apesar de a iniciativa privada no ter sido banida por completo, no havia por parte do
novo regime incentivos de apoio iniciativa privada e os poucos empresrios que
continuaram eram essencialmente portugueses nascidos em Moambique, as grandes
empresas de capital estrangeiro e alguns comerciantes indianos.
The remaining private bank also found that obstacles were placed in the way of doing
business. According to one of its representatives: The Banco de Mozambique controlled
all of the large accounts, while Standard Totta was only able to finance Indians and
some of the small Portuguese who remained in Mozambique (Pitcher; 2002:79).
Durante a dcada 1980, Moambique atravessou enormes dificuldades econmicas
devido principalmente guerra civil que alastrou por todo o pas, destruindo parte
considervel das infraestruturas, o tecido econmico e social.
Perante o agudizar da crise poltica, econmica e social que o pas atravessava o
governo moambicano teve que reorientar a sua poltica externa e a sua viso marxista,
assinando o acordo de Nkomati com a frica do Sul no ano de 1983, acordo que previa
a cessao de hostilidades entre ambas as partes.
O objectivo principal deste acordo era que o governo da Repblica da frica do Sul
parasse de fornecer o apoio logstico e financeiro a Resistncia Nacional de
Moambique (Renamo), em troca da neutralidade do governo de Moambique para com
o Congresso Nacional Africano, o qual gozava de apoio logstico de Moambique.
These negotiations, which led to the Nkomati Accord, reflect the Mozambican
governments difficulty in recognising the rebel movement as a relevant actor in the
countrys political process and not just an instrument of externally supported political
and economic destabilization (Mazula 1995).
Paralelamente observa-se uma viragem estratgica para o ocidente, como forma de
conseguir ajuda para mitigar a profunda crise econmica que o pas atravessava.
assim que em 1985 o pas adere s instituies de Bretton Woods, Banco Mundial e o
Fundo Monetrio Internacional, que condicionam a sua ajuda introduo de um
24
conjunto de reformas estruturais na economia. deste modo que no ano de 1987, como
resultado dos condicionalismos impostos, entra em vigor o Programa de Reajustamento
Econmico (PRE).
Segundo Bochmann e Ofstad (1990:34), o programa de reajustamento estrutural,
(PRE) tinha os seguintes objectivos: inverter o declnio na produo e restaurar um
nvel mnimo de consumo e de salrios para toda a populao, particularmente nas
zonas rurais; reduzir substancialmente os desequilbrios financeiros internos e reforar
as contas e reservas externas; melhorar a eficincia e estabelecer as condies para um
regresso a nveis mais elevadas de crescimento econmico, logo que a situao de
segurana e outras condicionantes exgenas tivessem melhorado; reintegrar os
mercados oficiais e paralelos; restaurar a disciplina financeira nas relaes com os parceiros comerciais e credores.
Estas reformas culminaram com a reviso constitucional do ano de 1990, que abriu
espao liberalizao poltica, eliminando a proibio da formao e da filiao em
partidos polticos. Esta constituio tambm veio garantir os direitos civis e polticos,
para alm de estabelecer as eleies como o mecanismo para ganhar e legitimar o poder
poltico. Estas reformas legais constituram passos importantes para que em 1992 fosse
assinado o Acordo Geral de Paz (AGP), pondo termo guerra civil de 16 anos.
A mudana de constituio permitiu a liberalizao da economia, reduzindo
formalmente o papel do Estado na economia e conduzindo ao processo de acumulao
capitalista por parte da elite poltica local, que teve o seu incio atravs do processo de
privatizao das empresas estatais.
1.2. O Estado como instrumento de acumulao de capital
No Moambique ps-independncia impossvel falar do Estado moambicano, sem
mencionar o nome do partido Frelimo. O processo de construo do Estado
moambicano teve o seu incio aps a conquista da independncia em 1975; como tal,
os trs poderes do Estado, nomeadamente executivo, legislativo e judicial foram
constitudos no perodo do partido nico. Em 1990 com a entrada em vigor da nova
constituio da Repblica, houve formalmente a separao entre o partido e o Estado.
25
Contudo, esta separao tem-se revelado apenas formal, porque a realidade prtica
demostra que o sucesso que o Partido Frelimo tem tido ao longo das quatro dcadas em
que se mantm no poder em Moambique, se deve principalmente ao facto desta
organizao exercer um controlo sobre o Estado.
Aps a independncia, o controlo exercido sobre o Estado tinha como objectivos a
criao dos alicerces da unidade nacional, a orientao da organizao produtiva e
acima de tudo, atravs do projecto ideolgico Marxista-Leninista, construir um Estado
que fosse a anttese do Estado constitudo pela administrao colonial portuguesa.
Anos mais tarde, com a introduo da constituio de 1990, que abriu espao
competio poltica atravs da realizao de eleies e liberalizao da economia, o
controlo exercido pelo Estado passou a ter outros objectivos, tais como a garantia da
realizao da acumulao primitiva de capital por parte da elite poltica ligada ao
partido Frelimo que s possvel por via da manuteno do poder.
O processo de reformas a que o Estado esteve sujeito a partir da segunda metade da
dcada de 1980, aliado ao processo de reconfigurao de valores ideolgicos a que a
prpria sociedade esteve sujeita guerra civil prolongada, o abandono de uma lgica
socialista, onde o Estado era o centro da acumulao e detentor da maioria dos meios e
factores de produo, passando para uma economia de mercado selvagem, de
acumulao com base na extraco e na obteno de renda criou as condies para
que gradualmente o Estado se tornasse um instrumento de viabilizao do processo de
acumulao primitiva de capital por parte das elites polticas moambicanas.
Assistiu-se a este tipo de prticas por parte das elites polticas e burocrticas um pouco
por toda frica Subsaariana, como tambm em grande parte dos pases da Europa do
Leste, principalmente as antigas repblicas socialistas soviticas como resultado dos
processos de transio de economias centralizadas para economias capitalistas1.
Volvidos 40 anos aps a independncia, o regime poltico vigente em Moambique o
presidencialista, onde o chefe de Estado ocupa simultaneamente as funes de chefe do
1 Hellman et al. (2000) no seu trabalho intitulado Seize the State, Seize the Day, fazem uma anlise ao
processo de transio nas Repblicas Socialistas Soviticas de uma economia centralizada para uma
economia de mercado.
26
Governo. Desde a introduo do multipartidarismo no pas, j se realizaram 5 eleies
presidenciais e legislativas, a Frelimo tem conquistado todas as eleies legislativas
desde ento e os seus candidatos tm vencido as respectivas eleies presidenciais.
Por via do sufrgio universal, j ocuparam o cargo de Presidente da Repblica trs
membros do partido Frelimo, partido que se encontra no poder desde a independncia
nacional, o primeiro foi Joaquim Alberto Chissano, que chegou ao poder no ano de
1987 por nomeao do Bureau Poltico do Partido Frelimo aps a morte em 1986 do
primeiro Presidente da Repblica, Samora Moiss Machel.
Joaquim Chissano conduziu a transio de Moambique de um sistema de economia
centralizada para o liberalismo econmico e a introduo do multipartidarismo. Em
1994 a Frelimo apresentou-o como candidato as primeiras eleies presidenciais, tendo
vencido e permanecido no poder durante dois mandatos consecutivos, saindo da
presidncia da Repblica no ano de 2004.
Power was transferred from the reformist, technocratic and state-centred President
Joaquim Chissano to the party-centred and heavy-handed leadership of President
Armando Guebuza, who revitalised and reorganised the party, restored the founding
history of the then nationalist movement to give direction to the party, increased salaries
to party personnel and, when he became president of the Republic in 2005, brought
back the subservience of the state to the party. So, while President Chissano had rolled
back the party from the state, President Guebuza not only further entrenched the party in
the state, he put it into the driving seat (Nuvunga, 2014:11).
Em 2005, como resultado das terceiras eleies presidenciais e legislativas, Armando
Emlio Guebuza chega ao poder como o terceiro presidente de Moambique, cargo que
ocupou at janeiro de 2015, quando subiu ao poder Filipe Jacinto Nyusi, o quarto
presidente da Repblica e o terceiro que ocupa o cargo por via da realizao de eleies.
Como se pode depreender, contrariamente a muitos partidos ou movimentos de
libertao que ficaram dependentes ou refns de um nico lder, a Frelimo conseguiu
sobreviver aos processos de sucesso interna do partido com relativo sucesso,
demostrando que a organizao muito mais importante do que os indivduos.
27
Apesar deste sucesso, desde os primeiros anos da sua fundao at actualidade, h
vrios relatos da existncia de disputas, constituio de alianas estratgicas pelo
controlo do poder dentro do partido e muito poucos casos de cises ou expulses.
A Frente de Libertao de Moambique (FRELIMO) foi constituda no ano de 1962,
como resultado da fuso de 3 movimentos: a Unio Democrtica Nacional de
Moambique (UDENAMO), a Unio Nacional Africana de Moambique Independente
(UNAMI) e Unio Nacional Africana de Moambique (MANU). Eduardo Chivambo
Mondlane foi o primeiro presidente e aquele que conduziu este movimento nos
primeiros anos da luta de libertao contra o colonialismo portugus.
A Frelimo conseguiu agregar diversas tendncias dentro de si, uma vez que os seus
membros so provenientes dos mais diversos grupos tnicos que fazem parte do
mosaico cultural do pas, para alm de partilharem as mais diversas ideologias sobre
aquilo que Moambique deveria tornar-se aps a independncia. Este facto pode ter
contribudo para que ocorressem conflitos internos entre as diversas tendncias que
compunham o movimento, com os diversos integrantes procurando buscar o
protagonismo necessrio de modo a controlar o poder dentro da organizao.
Segundo Opello (1975), nos primeiros anos aps a formao da Frelimo, os conflitos e
disputas que ocorreram no seu seio foram influenciados pelas questes tnico-tribais,
onde os membros provenientes do norte e centro do pas julgavam que existia uma
hegemonia dos grupos provenientes do Sul e dos mestios. Porm, estas disputas e as
expulses que ocorreram durante este perodo nunca abalaram a estrutura do
movimento.
In the beginning, the major cleavage consisted of two groups: on the one hand, semi-
educated assimilados, predominantly from ethnolinguistic groups located in what are
today the northern provinces of Niassa and Cabo Delgado (the northern part of the
country bordering on Tanzania and Malawi), with Lazaro Nkavandame, who belonged
to a relatively rich Makonde rural family (Oppelo Jr 1975), as the prominent political
figure. The other group consisted of highly educated mestios (people of mixed
European and African descent) and assimilados, largely from ethnolinguistic groups
located in what today are the southern provinces of Gaza, Maputo and, partly,
Inhambane, with Eduardo Mondlane as the prominent political figure. Mondlane was a
28
scholar, the only Mozambican with a PhD at the time and a UN official based in New
York (Nuvunga, 2014: 2 e 3).
Segundo Opello (1975), a estrutura do movimento de libertao no se ressentia dos
conflitos internos porque as elites que se outorgavam como representantes dos seus
respectivos grupos tnicos-tribais, no tinham conseguido influenciar os membros das
suas respectivas etnias. Portanto o conflito dentro da Frelimo neste perodo era um
conflito entre as elites e ele no arrastava consigo os membros da base, na medida em
que o movimento sobrevivia basicamente fora da sua sociedade de origem, durante o
perodo em questo.
Os conflitos internos, exacerbados numa primeira fase pela existncia de vrias elites
tnico-tribais que pretendiam deter o controlo do movimento, vieram a acirrar-se anos
mais tarde, devido vontade expressa pelas lideranas do partido no sentido de alargar a
base de apoio do partido aos mais diversos grupos da sociedade, ajustando-se aos novos
contextos.
O perodo que antecede os processos de transio tem-se revelado dos mais crticos no
que diz respeito as disputas e tenses internas dentro do partido. Provavelmente porque
as transies implicam por vezes mudanas significativas na estrutura do poder dentro
do partido e acima de tudo no controlo que exercido sobre o Estado.
As mudanas que o partido, o Estado e a sociedade moambicana tm vindo a
experimentar ao longo dos tempos podem ajudar a explicar em parte estas tenses que
se verificam nos processos de transio das lideranas partidrias.
Weimer, Macuane e Buur (2012), consideram que o `arranjo poltico` ou political
settlement em Moambique e no seio da Frelimo passou por trs fases decisivas, com a
possibilidade de uma quarta fase a aproximar-se rapidamente.
Segundo os autores, no que concerne primeira fase, o argumento tem sido o de que, se
no na realidade pelo menos a partir de uma perspectiva ideolgica, uma potencial
coligao de desenvolvimento foi constituda aps a independncia, em 1975. Aps
uma srie de fracassos polticos, ela transformou-se num regime autoritrio fraco, na
medida em que a economia e a guerra de desestabilizao se transformaram numa
guerra civil em finais da dcada de 70 e incios da dcada de 80. Desde que Joaquim
29
Chissano assumiu o poder em substituio de Samora Machel aps a sua morte trgica
em 1986, at ao incio do novo milnio, a coligao comeou a afigurar-se cada vez
mais uma coligao fraca do partido dominante, na medida em que o controlo do
partido sobre o Estado e a sociedade afrouxou, mas ela manteve o poder sobre a
economia. Isto alterou-se quando Armando Guebuza se tornou secretrio-geral da
Frelimo em 2002 e Presidente da Repblica, bem como presidente do partido aps as
eleies de 2004, com este ltimo, uma vez mais, a tornar-se no centro de organizao
crucial da distribuio de benefcios e recursos na sociedade, no Estado e na economia.
Ao longo do tempo, a coligao veio a assemelhar-se, cada vez mais, a uma forte
coligao do partido dominante operando num sistema multipartidrio formal.
Segundo Weimer, Macuane e Buur (2012) a questo que se coloca actualmente se o
political settlement em Moambique se tornou numa coligao competitiva clientelista
do partido dominante, com faces elitistas em competio lutando pelo controlo do
poder no seio do Partido Frelimo, ao invs de uma luta entre partidos.
Analisando as dinmicas inerentes economia poltica de Moambique e os diversos
actores envolvidos constata-se que os questionamentos levantados pelos autores acima
citados so de todo pertinentes. Ora vejamos:
O regime poltico em Moambique presidencialista, desde que foi introduzido o
multipartidarismo os presidentes eleitos tm sido os candidatos indicados pelo partido
Frelimo que tambm tem sido o partido com maioria na Assembleia da Repblica. O
Presidente da Repblica o chefe do Estado e do governo, tambm o ocupa o cargo de
comandante em chefe das Foras Armadas de Defesa do pas e, cumulativamente a de
presidente do partido que sustenta o governo, detendo por conseguinte enorme poder no
que diz respeito gesto do poder executivo, legislativo e tambm o judicial.
No ano de 2012, a quando da realizao do 10 Congresso do partido Frelimo, na cidade
de Pemba, capital da provncia de Cabo Delgado, foi introduzido no regulamento
interno do partido Frelimo um dispositivo legal que tinha como objectivo fazer a
distino entre o Presidente da Repblica (nos casos em que o titular deste cargo fosse
membro do partido) e o Presidente do Partido. Esta reviso dos estatutos preconizava
30
que o Presidente da Repblica deveria prestar contas Comisso Poltica2 do Partido,
que liderada pelo presidente do Partido.
Na eventualidade do cargo de Presidente da Repblica no ser ocupado pelo mesmo
individuo que ocupa o cargo de Presidente do partido, esta medida abria espao para
que houvesse dois centros de poder, algo que veio a suceder durante os primeiros meses
do mandato de Filipe Nyusi, que ocupou o cargo de Presidente da Repblica enquanto o
seu antecessor Armando Guebuza mantinha o cargo de presidente do partido.
No 10 Congresso, o ento Presidente do partido Armando Guebuza aprovou esta
medida quando faltavam apenas dois anos para o final do seu segundo mandato no
cargo de Presidente da Repblica, o que no deixa de ser caricato tendo em conta que
devido limitao de mandatos preconizada pela constituio da Repblica, Armando
Guebuza no poderia concorrer sua sucesso.
Esta tentativa de Armando Guebuza de tentar exercer o controlo do partido mesmo
depois de abandonar o cargo de Presidente da Repblica pode ser um indicador da
mudana que tem vindo a ocorrer para que a Frelimo se torne uma coligao
competitiva clientelista do partido dominante.
A eleio interna do candidato do partido Frelimo para as eleies presidenciais de 2014
tambm constitui um exemplo das tentativas de controlo do partido por parte do seu
anterior Presidente. Neste processo, a Comisso Poltica que era presidida por Armando
Guebuza na qualidade de Presidente do partido apresentou trs candidatos,
nomeadamente Jos Pacheco, ministro da Agricultura do governo de Armando
Guebuza, Alberto Vaquina, Primeiro-Ministro de ento e Filipe Nyusi que ocupava o
cargo de Ministro da Defesa. Cabia ao Comit Central3, a escolha de um de entre os trs
candidatos.
Ao apresentar estes trs candidatos, a Comisso Poltica recusou a possibilidade de abrir
espao para que outros membros do partido pudessem apresentar as suas candidaturas.
2 A Comisso Poltica o rgo que orienta e dirige o Partido no intervalo das sesses do Comit Central.
3 O Comit Central o rgo mximo do Partido, entre os Congressos.
31
Essa proposta foi rapidamente recusada por parte de alguns membros proeminentes do
Comit Central do partido, como tambm foi alvo de crticas por parte de alguns
membros fundadores do partido Frelimo.
Embora Guebuza oficialmente nunca tenha manifestado a sua preferncia sobre nenhum
dos trs candidatos, os meios de comunicao social em Moambique apresentavam
Jos Pacheco e Alberto Vaquina, como sendo a primeira e segunda preferncia
respectivamente, do ento presidente do partido.
O terceiro candidato apresentado pela Comisso Poltica do partido Frelimo, era o ento
ministro da defesa Filipe Nyusi, nascido na provncia de Cabo Delgado e pertencente a
etnia Makonde. Nyusi da mesma etnia que o general Alberto Chipande, tido como
um dos homens mais poderosos na estrutura do partido Frelimo e, devido a este facto, a
imprensa, alguns membros do partido, como tambm indivduos ligados ao sector
privado afirmavam que a candidatura de Nyusi tinha sido por influncia de Chipande.
A historiografia oficial da luta de libertao nacional afirma que o general Alberto
Chipande foi o homem que disparou o tiro que deu incio a luta de libertao nacional
contra o colonialismo. O general Chipande membro da Comisso Poltica do partido
Frelimo, deputado da Assembleia da Repblica, empresrio com interesses nas mais
diversas reas da economia de Moambique, desde os transportes at a indstria
extractiva.
A Comisso Poltica liderada pelo Presidente do partido acabou cedendo s crticas e
recuou na sua deciso, abrindo espao para que outros concorrentes fossem admitidos
na corrida a sucesso de Armando Guebuza. Foi assim que juntaram-se aos trs
primeiros candidatos, os antigos primeiros-ministros Aires Aly e Lusa Diogo.
Este episdio pode indicar que apesar de Armando Guebuza, na altura em que
ocorreram os factos acima descritos, ocupar o cargo de presidente do partido e tambm
o cargo de Presidente da Repblica, ele no era o nico Patro dentro do partido,
havendo por conseguinte outros Patres com as suas respectivas redes clientelares
que disputavam o controlo do poder dentro do partido.
Filipe Nyusi sagrou-se vencedor das eleies internas aps uma segunda volta com a
antiga ministra do Plano e Finanas do governo de Joaquim Chissano e primeira-
32
ministra no primeiro mandato de Armando Guebuza, a economista Lusa Diogo, tendo
vencido posteriormente as eleies presidnciais realizadas em Novembro de 2014.
Em Janeiro de 2015, quando Nyusi empossado como o quarto presidente da Repblica
de Moambique, o dispositivo aprovado durante o 10 Congresso do Partido Frelimo
deixa-o literalmente refm das decises tomadas pela Comisso Poltica que era dirigida
por Armando Guebuza, que se tinha mantido no cargo de presidente do partido.
Mais uma vez, proeminentes membros do partido Frelimo, tais como Srgio Vieira,
Teodato Hunguana, entre outros, comearam a exercer presso atravs dos meios de
comunicao social para que Armando Guebuza renunciasse presidncia do partido,
uma vez que a histria da Frelimo nunca tinha tido um precedente de bicefalia ou dois
centros de poder.
Em Maro de 2015 foi convocada a IV sesso ordinria do Comit Central do partido
Frelimo, que culminou com a renncia de Armando Guebuza da presidncia do Partido
e da presidncia da Associao dos Combatentes da Luta de Libertao Nacional
(ACLLN), a mais importante organizao social do partido que aglomera os antigos
combatentes da luta de libertao nacional e tambm parte considervel dos membros
fundadores do partido.
Como se pode depreender, a luta pelo controlo do poder dentro do partido tem-se vindo
a intensificar, porque quem controla o partido consequentemente exerce o controlo
sobre o Estado.
Isso acontece pelo facto de Moambique ser um pas caracterizado pela existncia de
uma democracia de partido dominante, onde o partido controla o Estado e os sectores
nevrlgicos da economia, portanto o candidatado do partido Frelimo s eleies possui
larga vantagem em relao aos demais concorrentes ao cargo de Presidente da
Repblica.
Alcanado o cargo de Presidente da Repblica, o novo titular do cargo torna-se tambm
presidente do partido devido aos estatutos do partido, como foi mencionado nos
pargrafos acima, o que possibilita que este indivduo esteja no centro da redistribuio
de oportunidades de acumulao de capital, para si, para os seus familiares e aliados
mais prximos.
33
Somos tambm um Pas em que o controlo do Estado determina o acesso a todo o tipo
de recursos. Assim, muitos de ns alinhamos o nosso posicionamento pessoal de acordo
com os que detm o poder do Estado. H lugares em Conselhos de Administrao por
distribuir, h direces em ministrios, h ministrios, h projectos, etc. Neste ambiente
dominado pela preocupao do ter material e no qual o ser convices
desempenha apenas um papel secundrio e visto com hostilidade por muitos no
admira que haja muitos oportunistas que investem na ideia de uma Frelimo forte apenas
com o intuito de tirar benefcio individual (Macamo, 2012:7).
Este facto s possvel atravs da constituio de alianas dentro do partido, no Estado,
com o sector privado nacional e principalmente atravs da aliana estratgica com o
capital internacional e os doadores internacionais que, atravs da sua ajuda financeira,
tm vindo a impedir ao longo de mais de duas dcadas que Moambique se torne um
Estado falido.
Somos um Pas com caractersticas muito especficas, a principal das quais a nossa
dependncia do auxlio externo. A lgica poltica, mas tambm a lgica individual
consistem, neste tipo de contexto, na instrumentalizao desse auxlio. A classe poltica
faz tudo para estar em conformidade com as exigncias desse auxlio, muitas vezes no
por convico poltica, mas por convenincia pessoal (idem).
A estrutura organizacional do Estado moambicano privilegia o centralismo
administrativo, que foi herdado da administrao colonial portuguesa. Porm a lgica
do centralismo administrativo aliada cultura politica que d primazia s lealdades ao
chefe em detrimento do cumprimento da legalidade, abre espao falta de distino
entre a esfera pblica e a privada.
O Estado gradualmente tornou-se o instrumento de acumulao primitiva de capital
porque, apesar das privatizaes a que foi sujeito de modo a reduzir o seu peso na
economia, ele continua a ser o detentor da maioria dos meios e factores de produo.
A elite poltica e administrativa, tendo a plena conscincia de que no tem capacidade
financeira e muito menos expertise necessria para consolidar-se no mundo de negcios
sem a influncia que eles exercem sobre o Estado, foi paulatinamente consolidando os
34
seus processos de acumulao com base na procura de oportunidades de extraco de
rendas usando o Estado como instrumento para atingirem os seus fins.
A constituio de 1990 prev a separao entre Estado e o partido, porm essa
separao apenas cosmtica e durante os dois mandatos de Armando Guebuza era
quase que inexistente. Perante este cenrio, o aproveitamento dos meios e recursos do
Estado para fins partidrios e em especial por parte dos membros do partido tornou-se
uma prtica frequente, o que na competio poltica constitui uma vantagem
comparativa em relao aos demais actores polticos.
The Country Report of the African Peer Review Mechanism was inundated with
reports that Frelimo cells or units exist in all public institutions, where they operate with
official sanction. Indeed, members are permitted to suspend work in order to attend
party meetings when these are scheduled in working hours Compulsory deductions
are made from workers salaries for the benefit of Frelimo when authorized by the
relevant party organs (CRM, 2010:103).
Este tipo de prticas de actuao consolidou a ideia de que para se tornar capitalista,
empresrio ou empreendedor de sucesso era necessrio estar muito prximo dos
crculos do poder, num contexto onde as narrativas dominantes apresentam o discurso
de que aqueles que no esto connosco so nossos inimigos, realando a dualidade
extrema na qual est assente a realidade poltica do pas.
Obviamente, nestas condies o partido dominante, a Frelimo, detm uma capacidade
de atraco de novos membros muito superior em relao aos demais partidos polticos
devido s expectativas que estes possuem em relao as recompensas que podem obter
por causa da militncia partidria.
An example of the use of state machinery for Frelimos gain was the launch by the
Provincial Planning and Finance Directorate in Inhambane province of a tender in May
2008. The tender, for the provision of campaign material (8 000 T-shirts and 10 000
pennants) for Frelimo, appeared in the daily pro-government paper, Notcias. Frelimo
uses cadre deployment to ensure that the state machinery is put at the service of the
party, with civil servants in managerial positions doing the partys work not only to
35
maintain their positions but because they believe that their positions depend on Frelimo
remaining in power (Nuvunga, 2015:18).
O controlo dos meios e recursos do Estado, como tambm o acesso a informao sobre
os futuros negcios do Estado ou reas de investimento do capital estrangeiro, criou
condies para que a militncia partidria se tornasse atractiva para os indivduos que
pretendem melhorar a sua condio social e econmica.
Este facto, para alm de ter atrado um enorme nmero de novos membros, acirrou as
relaes clientelares e de patrocinato dentro do partido Frelimo, o que, aliado a uma
dinmica interna que possibilita alteraes regulares das lideranas partidrias, abre
espao para que sejam bastante volteis as disputas, alianas e reconfiguraes
empresariais da elite poltica moambicana pelas melhores oportunidades de extrair
rendas.
Aps a liberalizao da economia, o pas j teve 3 presidentes da Repblica. Uma nota
em comum reside no facto de os processos de transio de um Presidente da Repblica
para outro - mesmo sendo eles do mesmo partido - provocarem alteraes profundas na
visibilidade dos protagonistas do sector empresarial.
Isto , durante os mandatos de um determinado Presidente, assiste-se ascenso de
determinados grupos de indivduos ou empresas na esfera econmica, porm aps os
processos de sucesso, o fulgor econmico apresentado por esses indivduos ou
empresas desaparece, podendo indicar que a sua performance no mundo empresarial
estava intrinsecamente relacionada com o acesso privilegiado aos crculos de poder, que
garantia por conseguinte o acesso aos grandes negcios com o Estado.
Este tipo de lgicas refora o argumento apresentado por Couto (2015), quando frisa
que em Moambique, para alguns, a poltica uma panela, preciso comer muito e
rpido porque a colher muito disputada e a refeio pode durar pouco.
Tendo conscincia que no caso moambicano uma parte considervel da elite politica
tambm por via disso elite econmica, a pesquisa procura compreender as dinmicas
internas que esto ocorrer no seio desta elite, tentando captar como elas se constituem,
as tenses e disputas internas, a formao de alianas e solidariedade entre si, e os
processos de redesenho e reconfiguraes dos seus interesses empresariais.
36
A pesquisa centra-se nos aspectos acima referidos devido ao facto, de volvidos mais de
25 anos aps a liberalizao da economia e a introduo de incentivos para o
surgimento de uma burguesia nacional, constituda por pequenas e mdias empresas
locais, o sector empresarial continua sendo fraco e com reduzida interligao entre os
diversos sectores, com falta de capacidade financeira e falta de expertise.
Os poucos casos de sucesso so de indivduos ou empresas com fortes ligaes
polticas, mas cujo sucesso est fortemente dependente da manuteno no poder do
indivduo que sustenta a rede clientelar ou de patrocinato, o que se agrava com o facto
de a economia ser bastante concentrada em poucos sectores de actividade econmica.
Este mais um factor que aumenta as disputas entre os membros das elites pelas
melhores oportunidades de negcios ou de extrair rendas.
Perante estas constataes a questo central desta pesquisa a seguinte:
- Observando as caractersticas polticas, econmicas e sociais de Moambique, e
tendo em conta as dinmicas internas do partido Frelimo, at que ponto o surgimento
de grupos econmicos sustentados pelo acesso privilegiado ao Estado estar
dependente das lgicas e dinmicas internas de acesso ao poder dentro deste partido?
A leitura da realidade emprica moambicana conduziu-nos a avanar com a hiptese de
que o controlo dos destinos do partido no poder pode criar condies para a constituio
de grupos empresariais favorecidos, mas que estes privilgios se podem reduzir, a partir
do momento em que os seus proprietrios perdem o poder efectivo na estrutura
partidria.
Este pressuposto advm do facto de, aps ter experimentado processos mais ou menos
pacficos de sucesso das lideranas, por onde passaram cinco lderes partidrios (sendo
que quatro destes chegaram a ocupar o cargo de Presidente da Repblica), uma nota
distinta parece emergir no perodo aps a adeso ao liberalismo econmico, que se
prende com o facto de a ascenso ao cargo de Presidente da Repblica (e por
conseguinte liderana mxima do partido) por parte de cada um deles conduziu a
processos de redesenho e reconfigurao dos indivduos ou grupos empresariais com
acesso privilegiado aos negcios com o Estado.
37
Esta constatao pode ser corroborada pelo facto de os processos de sucesso na
liderana do Estado e do partido, revelarem processos de ruptura e descontinuidade no
s no que diz respeito dimenso empresarial, como tambm ao nvel da concepo de
polticas pblicas, o que priori pode ser difcil de compreender tendo em conta o facto
de a sucesso ocorrer dentro do mesmo partido.
Um exemplo claro destas rupturas e descontinuidades ao nvel da concepo de polticas
pblicas pode ser descortinado no processo de constituio de ministrios aps a
formao dos governos. Por exemplo quando Joaquim Chissano chegou ao poder
constitui o ministrio do Plano e Finanas. Volvidos alguns anos, com a ascenso de
Armando Guebuza presidncia da Repblica, procedeu-se separao dos ministrios
em dois, constituindo o ministrio das Finanas e o ministrio do Planificao e
Desenvolvimento. Dez anos depois, Filipe Nyusi assume a chefia do Estado e do partido
e extingue os ministrios de Planificao e Desenvolvimento e o ministrio das
Finanas, criando o Ministrio de Economia e Finanas.
Obviamente que este tipo de rupturas e descontinuidades tem implicaes ao nvel da
gesto interna dos ministrios visados, da proviso de servios aos mais diversos utentes
e fornecedores, da performance do prprio ministrio e acima de tudo, revela de certa
forma uma falta de viso estratgica do prprio partido sobre a gesto do Estado.
O acesso e controlo do poder efectivo dentro da estrutura poltico-partidria
possibilitam o controlo do poder econmico; porm, o facto de existirem entraves
institucionais que conduzem a um processo de sucesso interna dentro do partido e ao
nvel da presidncia da repblica conduz a que os indivduos que detm o poder num
determinado perodo tendam a proceder sempre que possvel ao processo de
redistribuio, dentro da elite poltico-econmica do partido, de modo a garantir a sua
sobrevivncia econmica quando forem relegados do poder.
Os 49 anos de existncia da Frelimo, que a obrigaram a uma constante reconfigurao
passando de um movimento de libertao nacional para partido-Estado e depois para um
partido poltico ao estilo das democracias liberais e tendo conseguido manter-se no
poder com poucos casos de expulses de membros e rupturas ou clivagens que
ameaassem a sua existncia, podem constituir um bom indicador do processo de
redistribuio avanado na hiptese acima apresentada.
38
Deste modo, colocam-se como objectivos especficos deste estudo analisar os processos
de sucesso das lideranas partidrias e as dinmicas inerentes a estes mesmos
processos, procurando por conseguinte captar os factores por detrs da ascenso e
declnio de determinados grupos empresariais e dos indivduos ligados a estes mesmos
grupos.
Um segundo objectivo ser de analisar por um lado, o perfil das reas de interesse
econmico das elites poltico/empresariais moambicanas e as suas ligaes com o
Estado.
Como terceiro objectivo especfico iremos procurar perceber as disputas e
reconfiguraes, as alianas estratgicas que se estabelecessem entre os diversos grupos
constituintes desta elite poltica e empresarial. Aqui, iremos procurar analisar
pormenorizadamente as estratgias familiares destas elites para a manuteno do seu
status quo, o que nos ir possibilitar olhar para variveis tais como a estrutura dos
matrimnios, o nvel de educao, suas aspiraes e estilo de vida, que julgamos sejam
importantes para compreendermos o nosso grupo alvo.
O interesse pela compreenso das dinmicas, reconfiguraes, disputas e alianas
intrnsecas nova burguesia nacional moambicana, maioritariamente constituda por
polticos empresrios pertencentes ao partido Frelimo, decorre das constataes
identificadas na tese de mestrado, centrada na apropriao de bens pblicos e na sua
alterao com o aumento de importncia do apoio directo ao oramento por parte dos
doadores internacionais. Nesta pesquisa para obteno do doutoramento, pretendemos
aprofundar este debate e realizar uma anlise mais detalhada sobre o mesmo.
1.3 Como foi feita a pesquisa
Por uma questo metodolgica, houve a necessidade de definir o grupo alvo, que
constitudo pela elite poltico e empresarial, incluindo essa designao todo um grupo
de polticos que enveredaram pela actividade empresarial aps a transio de uma
economia centralizada para economia liberal, sendo que parte considervel dos mesmos
se mantm activos na vida poltica e simultaneamente detm interesses empresariais nos
mais diversos sectores da economia.
39
Tomando em considerao o facto de a elite poltica e empresarial estabelecer relaes
formais e informais com alguns membros do sector privado, houve a necessidade de
alargar o enfoque de modo captar as dinmicas dos diversos actores que se encontram
somente estabelecidos na rea empresarial, procurando observar as suas relaes
privilegiadas com o poder poltico.
O foco de anlise se concentrou na elite poltico empresarial ligada ao partido Frelimo,
pois esta faz parte de um grupo relativamente bem identificado e j algumas vezes
analisado em outros estudos, o que metodologicamente pode ser vantajoso.
Outro aspecto a salientar reside no facto de o pas, aps o processo de transio para
uma sociedade de democracia multipartidria, ter passado por cinco processos eleitorais
que sempre culminaram com a vitria do partido Frelimo, sendo que as lgicas
inerentes ao processo de acumulao de capital, neste contexto, possibilitam que os
detentores do poder poltico, com algum grau de facilidade e impunidade, possam criar
condies para deteno do poder econmico.
assim que grande parte da elite econmica do pas se encontra directa ou
indirectamente ligada ao partido no poder, por laos de filiao partidria, parentesco,
amizade ou outro tipo de ligaes, mas sempre tendo em vista as vantagens que advm
do acesso e controlo do Estado.
A construo do objecto de estudo exigiu a realizao de uma reviso bibliogrfica
aturada sobre as diferentes perspectivas tericas que directa ou indirectamente abordam
as matrias relacionadas com o objecto de anlise.
Aliada reviso de literatura houve a necessidade de realizar uma anlise documental
atravs do Boletim da Repblica de Moambique, o que possibilitou a compreenso
detalhada das reas de interesse de investimento empresarial das elites poltico
econmicas moambicanas e os seus respectivos parceiros de negcios.
A anlise documental permitiu tambm a observao dos diplomas governamentais
aprovados nos ltimos anos, diplomas que possibilitaram a compreenso de como as
reas de interesse empresarial das elites polticas se tem vindo a alterar ao longo dos
tempos.
40
Tendo a plena noo de que as relaes entre as elites se estabelecem no s pela via
formal, mas tambm atravs de encontros numa base informal, privilegiou-se tambm a
observao dos mais diversos meios de comunicao social. Esta opo metodolgica
possibilitou a observao dos diversos tipos de solidariedade que se estabelecem entre
os membros da elite politica e empresarial. A ttulo de exemplo: relaes de
matrimnio, o processo de apadrinhamento de casamentos e baptizados, o tipo de
convidados que comparecem a este tipo de eventos, as prticas mgico-religiosas, entre
outros aspectos que a priori podem parecer superficiais, mas que muitas vezes se
encontram carregados de simbolismo e significado.
Uma das opes metodolgicas escolhidas aquando da planificao do estudo residia na
metodologia de histrias de vida, com enfoque centrado em histrias de vida de
indivduos pertencentes elite. Pretendia-se analisar histrias de determinado grupo de
indivduos que fazem parte do nosso grupo alvo; contudo no terreno no foi possvel
adoptar esta opo metodolgica, devido essencialmente falta de colaborao dos
visados que preferiam resguardar-se perante a sensibilidade do tema da pesquisa,
respondendo apenas a perguntas especficas em vez de contarem por palavras suas o seu
percurso de vida.
Um outro aspecto no menos importante que ter contribudo para a impossibilidade de
realizao da metodologia de histrias de vida est directamente relacionado com
actividade profissional do autor deste trabalho, que pesquisador do Centro de
Integridade Pblica, uma organizao no-governamental moambicana que pesquisa e
expe ms prticas na gesto da coisa pblica. um trabalho com um elevado nvel de
exposio pblica, que a priori impediu que o autor deste trabalho, estabelecesse
relaes de confiana e proximidade junto de elementos da elite poltica e empresarial
que possibilitassem o uso da metodologia de histrias de vida.
Assim, apesar de no ter sido possvel construir histrias de vida, foi possvel
entrevistar alguns elementos do grupo alvo. O facto de estes no serem um grupo
homogneo constituiu uma vantagem quer para realizao das entrevistas, quer para
levar a cabo um cruzamento e confrontao das informaes produzidas pelos diferentes
grupos que constituem esta elite poltica empresarial.
41
Foram realizadas tambm entrevistas semiestruturadas com informantes privilegiados.
Com estas entrevistas, foi possvel obter informao relevante sobre as dinmicas
inerentes ao grupo alvo.
Este grupo de entrevistados foi constitudo em parte por funcionrios das agncias de
cooperao estabelecidas em Moambique, porque durante o trabalho de campo
realizado para a tese de mestrado constatmos que estes possuem informao sobre os
mais diversos interesses econmicos da elite poltico e empresarial moambicana.
Foram tambm realizadas entrevistas a funcionrios de organizaes no-
governamentais locais, tais como do Instituto de Estudos Sociais e Econmicos (IESE),
o Centro de Integridade Pblica (CIP), o Mecanismo de Apoio a Sociedade Civil
(MASC), e o Observatrio do Meio Rural (OMR), organizaes que produzem alguns
estudos sobre aspecto relevantes para este estudo.
A anlise do discurso meditico sempre esteve presente ao longo do trabalho e, por isso,
no foi descurada a realizao de entrevistas com jornalistas, principalmente aqueles
que se encontram ligados aos media do sector privado. Esta opo pelos media do sector
privado, sejam eles os canais de televiso, a imprensa escrita ou a rdio, deve-se ao
facto de estes virem realizando, de uma forma contnua, reportagens relacionadas com
objecto de estudo deste trabalho.
Um outro grupo profissional entrevistado para a elaborao deste trabalho foram os
empresrios. Dentro deste leque, procurou-se ouvir empresrios dos mais diversos
sectores de actividade, como a banca, servios, construo civil, seguros, imobiliria,
etc. Para alm da auscultao de empresrios dos mais diversos sectores de actividade,
houve a necessidade de agrup-los segundo a dimenso das suas empresas, por forma a
captar a sensibilidade das pequenas, mdias e grandes empresas.
Tambm foram realizadas entrevistas com elementos da direco de duas das principais
associaes empresariais de Moambique, a Confederao das Associaes Econmicas
(CTA) e a Associao de Comrcio, Indstria e Servios (ACIS).
De modo a perceber uma outra dimenso da mesma realidade, principalmente no que
diz respeito ao acesso a informao privilegiada de alguns indivduos e empresas nos
negcios com o Estado, foram entrevistados alguns funcionrios pblicos de alguns dos
42
principais ministrios da altura, tais como o Ministrio das Finanas (MF), Ministrio
dos Recursos Minerais (MRM), Ministrio da Energia (ME) e Ministrio da
Planificao e Desenvolvimentos (MPD). Alguns destes ministrios possuem
actualmente uma nova designao, como resultado de fuses e extines.
Outros actores relevantes entrevistados aquando da realizao das entrevistas foram dois
antigos ministros, um do governo liderado por Joaquim Chissano e outro do governo de
Armando Guebuza, alguns professores universitrios e ativistas sociais, que tambm
possuem informao privilegiada sobre o assunto.
A escolha de diferentes tcnicas e metodologias para recolha de informao, abriu
espao para que houvesse a opo pela metodologia de estudos de caso, privilegiando
situaes conflituais e aplicando como instrumentos analticos os princpios da Social
Situation de Max Gluckman (1961, 1987) e do Social Drama de Vitor Turner (1957).
A escolha destas metodologias relaciona-se com a complexidade de compreender e
captar os processos e dinmicas inerentes ao nosso objecto de estudo.
Deste modo, a anlise situacional concentrou-se na anlise dos factores contextuais,
procurando perceber que lgicas internas ocorrem dentro do xadrez poltico que
condicionam a deslocao de oportunidades de uns indivduos para outros na esfera
econmica.
Para tal, foi crucial um esforo de reflexividade e anlise sobre os acontecimentos da
sociedade moambicana, um esforo autorreflexivo de reconfigurar a experincia de
vida como uma forma de observao participante a posteriori. A anlise de situaes
sociais oferece essa possibilidade principalmente quando o objecto de estudo se centra
num grupo privilegiado e de difcil acesso, tal como o a elite poltico empresarial
ligada ao partido Frelimo.
Embora Gluckman no tivesse colocado a questo com tanta frontalidade, tambm nos
convida a que revisitemos o mais essencial nas formas como estudamos e como
construmos as nossas concluses. Recorda e salienta que a matria-prima fundamental
do trabalho cientfico de um antroplogo (ou de qualquer investigador que baseie a sua
recolha de dados na observao directa) aquilo que ele observa na interao social
entre as pessoas. Por outras palavras, so os acontecimentos, os actos, as reaces, as
43
expresses de sentimentos, os silncios ou as trocas de palavras e como elas so ditas,
os comportamentos que as pessoas levam a cabo em circunstncias especficas e, por
vezes, o que nessas ocasies vestem, o que ento comem (ou no) e como o fazem, de
quem se aproximam e quem evitam, a quem se aliam e com quem cooperam, quem
confrontam ou ignoram. No terreno, no observamos estruturas sociais, sistemas
econmicos, polticos ou de parentesco, filosofias acerca do mundo e da sociedade nem,
muito menos, diagramas ou teorias sociais formalizadas; o que observamos so
comportamentos concretos de pessoas concretas em situaes concretas, que estaro
marcados de forma vivida por tudo isso mas que raramente constituem uma sua
expresso explcita, completa ou abstrata. (Granjo, 2017).
Da a necessidade que houve de, aliada observao das diversas situaes sociais,
cruzar essas observaes com um conjunto de entrevistas com informantes
privilegiados. Essas entrevistas possibilitaram o esclarecimento de alguns aspectos cuja
compreenso no era suficiente baseando-se somente na observao dos mesmos.
Os princpios de Social Situation de Max Gluckman (1961, 1987) permitiram que no
houvesse uma espcie de nsia para rapidamente procurar definir o quadro terico que
melhor se ajustasse ao objecto de estudo em anlise neste trabalho. Isso possibilitou o
recurso a um cocktail terico e metodolgico que consoante as situaes sociais em
anlise permitissem um melhor enquadramento.
Com este tipo de procedimento, (a definio a priori do quadro terico) conforme tive
oportunidade de desenvolver noutra ocasio (Granjo 2004: 309-320) 4 , o trabalho
cientfico torna-se aparentemente seguro e confortvel, mas os riscos que se correm so
altssimos. A escolha e aplicao apriorstica de uma determinada teoria incita-nos,
desde logo, a focar a ateno nos dados que so para ela pertinentes, correndo o risco de
no notar muitos outros, que podero at ser os mais pertinentes para a compreenso do
fenmeno que pretendemos estudar. (Granjo, 2017).
Contudo, um dos mais importantes contributos oferecidos pelos princpios do Social
Situation de Max Gluckman (1961, 1987) para este trabalho centra-se na observao
4 Tambm disponvel em, https://lisboa.academia.edu/PauloGranjo, com o ttulo Teoria, tautologia e
prtica antropolgica.
44
de acontecimentos concretos e situados, principalmente se estes acontecimentos
produzirem situaes conflituais, porque exactamente nas situaes conflituais onde
melhor se pode captar a realidade analisada, possibilit