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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas Área de Filologia e Língua Portuguesa
Giovanna Wrubel Brants
Investigação do processo de negociação interpessoal infantil em situação lúdica: aspectos interacionais e
cognitivos
(Versão Corrigida)
Orientador: Prof. Dr. Luiz Antonio da Silva
São Paulo 2010
GIOVANNA WRUBEL BRANTS
Investigação do processo de negociação interpessoal infantil em situação lúdica: aspectos interacionais e
cognitivos
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas de São Paulo, para obtenção do título de Doutora em Letras (versão corrigida). Área de concentração: Filologia e Língua Portuguesa. Orientador: Prof. Dr. Luiz Antônio da Silva
São Paulo 2010
BRANTS, G. W. Investigação do processo de negociação interpessoal infantil em situação lúdica: aspectos interacionais e cognitivos. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas de São Paulo, para obtenção do título de Doutora em Letras.
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. _______________________________________Instituição: ______________
Julgamento: ____________________________________ Assinatura: ______________
Prof. Dr. _______________________________________Instituição: ______________
Julgamento: ____________________________________ Assinatura: ______________
Prof. Dr. _______________________________________Instituição: ______________
Julgamento: ____________________________________ Assinatura: ______________
Prof. Dr. _______________________________________Instituição: ______________
Julgamento: ____________________________________ Assinatura: ______________
Prof. Dr. _______________________________________Instituição: ______________
Julgamento:____________________________________ Assinatura: ______________
"Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.
Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo."
Fernando Pesssoa
Agradecimentos
Ao caríssimo Prof. Dr. Luiz Antônio da Silva, por ter aceitado o desafio de
dar prosseguimento à minha orientação no doutorado. Desde os tempos do
mestrado tenho sido agraciada com sua generosidade, sabedoria e sugestões
preciosas na condução de meus trabalhos.
À Profa. Dra. Lélia Erbolato Melo. A sua orientação na primeira fase de meu
doutorado teve um valor inestimável para a definição dos alicerces e para o
desenvolvimento da presente pesquisa.
À Profa. Dra. Sueli Cristina Marquesi e à Profa. Dra. Clara Brandão, pelas
valiosas sugestões e indicações no momento do Exame de Qualificação.
À Profa. Dra. Idméa Semeghini-Siqueira que, ao me orientar no período de
Iniciação Científica, plantou as sementes de meu apreço pela pesquisa
acadêmica.
À CAPES, pela bolsa de fomento à pesquisa que viabilizou o término deste
projeto, na medida em que possibilitou minha dedicação em tempo integral ao
doutorado, e pela bolsa do doutorado-sanduíche do qual participei na UFRN.
Aos caros colegas do Departamento de Linguística e do Departamento de
Letras Clássicas e Vernáculas – Renata Palumbo, Priscila Fiorindo, Renira
Cirelli, Artarxerxes Modesto, Daniela Pannuti, Andressa Barboza e Liliana
Moretti, pela amizade e pelos ricos diálogos acadêmicos.
Aos professores e colegas que fiz no decorrer Doutorado-Sanduíche,
realizado no Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, no âmbito do projeto intitulado Análise de Textos e Discursos:
Gêneros, Interação, Sociocognição e Ensino de Língua Portuguesa, financiado
pela CAPES, Edital PROCAD/NF 21/2009.
Aos amigos: Giuliano, Alexandre, Karina, César, Andrés, Marceli e
Katyuscia que, mesmo distantes fisicamente, acompanharam minha trajetória
ao longo do doutorado de muito perto no sentido afetivo, ouvindo-me e
incentivando-me.
À minha mãe Rosita, à minha irmã Gianna e ao meu marido Erich, pelo
constante incentivo e apoio carinhoso ao longo de todo este processo.
Resumo
O objetivo principal da presente pesquisa é a investigação das estratégias interacionais e cognitivas adotadas por crianças nas suas conversações, em situação lúdica, a fim de que a negociação interpessoal seja estabelecida. Pretendemos, dessa forma, observar como as crianças procederam para desfazer as eventuais complicações que surgiram no curso da negociação, até o restabelecimento de uma troca conversacional equilibrada. Nesse sentido, o estudo em questão nos permitiu compreender melhor a transição entre os momentos de acordo e de desacordo/conflito instaurados nas interações sociais entre as crianças, nos processos de diferenciação ―eu–outro‖ (Wallon, 1987). A partir da análise de amostras de interações conversacionais de crianças de 5, 8 e 10 anos, no contexto do evento lúdico (jogo de construção), identificamos as ocorrências de implicaturas conversacionais (Grice, 1982), conflitos, equívocos, regulações discursivas (Caron, 1983) e mecanismos de ameaça e preservação das faces (Goffman, 1967) durante o processo discursivo, que estimularam a criança a argumentar em favor de suas próprias crenças a respeito dos fatos, culminando, muitas vezes, no surgimento da negociação interpessoal com a outra criança e/ou com o adulto. Foi igualmente possível verificar, nesse contexto, a percepção que as crianças têm dos estados mentais (desejos, crenças, intenções, etc.) dos outros − que, por sua vez, diferem de seus próprios estados mentais (Perner & Wimmer, 1985). Foram realizadas gravações em áudio de seis pares de crianças, de ambos os sexos, na presença da pesquisadora. Cada sessão foi constituída da gravação de um evento lúdico completo, isto é, pela abertura, desenvolvimento e finalização do jogo. Tais gravações foram transcritas posteriormente, de acordo com as Normas para Transcrição, comumente utilizadas pelos pesquisadores do Projeto NURC/SP — Projeto de Estudo da Norma Linguística Urbana Culta de São Paulo. Posteriormente à transcrição dos dados coletados, empreendemos uma análise de cunho qualitativo de amostras de conversação entre as crianças e/ou entre as crianças e a pesquisadora. Considerando-se todos os exemplos analisados, foi possível concluir que há traços interacionais que se sobressaem no contexto conversacional de cada idade observada, o que se reflete na mobilização de diferentes estratégias de negociação interpessoal.
Palavras-chave: interação conversacional infantil; negociação interpessoal; psicolinguística.
Abstract
The main objective of this research is to investigate interactional and cognitive strategies adopted by children in their conversations, on a playing situation, in order to establish an interpersonal negotiation. We intend, therefore, to observe how children proceeded to undo eventual complications that arise in the course of negotiation until a balanced conversation is restored. Accordingly, the present study allowed us to better understand the transition between moments of agreement and disagreement/conflict which happens at social interactions among children, described by Wallon in 1987 as the process of differentiating "self-other". Analyzing samples from conversational interactions among children aged 5, 8 and 10 years, in a context of a playing event (building game), we have identified instances of conversational implications (Grice, 1982), conflicts, misunderstandings, discursive regulations (Caron , 1983) and mechanisms of threat and face-saving (Goffman, 1967) during the discursive process, which encouraged children to argue for their own beliefs about facts, resulting often in the emergence of interpersonal negotiation with another child and/or with adults. In this context, it was also possible to verify the perception that children have about mental conditions of others (desires, beliefs, intentions, etc.), which differ from their own mental conditions (Perner & Wimmer, 1985). Audio recordings were made of six pairs of children from both sexes, in the presence of the researcher. Each session consisted on a recording of a complete playing event, which encompasses the opening, development and completion of the game. These recordings were transcribed later, according to the Standards for transcription, commonly used by researchers from the NURC / SP - Project for the Study of the Cult Urban Language Standard of São Paulo. After the transcription of data collected, we undertook a qualitative analysis of samples from conversation between children and/or between children and researcher. Considering all samples analyzed, it was possible to conclude that there are interactional traces which stand out in conversational context on each observed age, which is reflected in the utilization of different interpersonal negotiation strategies. Keywords: child conversational interaction; interpersonal negotiation; psycholinguistics.
Apresentação Pessoal
A motivação inicial para a realização desta pesquisa de doutorado se
inscreve no âmbito das indagações surgidas no decorrer do processo de
elaboração de nossas pesquisas de Iniciação Científica e de Mestrado. A
primeira, realizada na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo,
sob a orientação da Profª Drª Idméa Semeghini-Siqueira, versava sobre um
estudo exploratório das violências, conscientes ou não, que subjazem às
práticas pedagógicas de linguagem, bem como do clima relacional construído
em sala de aula para realização de atividades de oralidade, leitura e escrita em
diferentes disciplinas. Nessa investigação, pudemos realizar um primeiro
contato com o campo teórico da Psicolinguística (aplicada ao meio
educacional), que respaldou a análise dos dados coletados na pesquisa de
campo.
A seguir, na pesquisa em nível de Mestrado, desenvolvida no
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH-USP (área de
Filologia e Língua Portuguesa), sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Antônio da
Silva, investigamos o processo de constituição das relações de poder nas
interações conversacionais entre professor e alunos em sala de aula, com o
olhar voltado para a questão da polidez linguística1, da simetria/assimetria na
interação, da argumentação com vistas à manutenção do poder da fala, etc.
Nesse sentido, a análise dos corpora desta pesquisa apoiou-se essencialmente
no campo teórico da Análise da Conversação e da Pragmática Linguística
aplicada à Educação.
Ao ingressarmos no programa de Doutorado em Semiótica e Linguística
Geral da Universidade de São Paulo e, a partir de sugestões de nossa primeira
orientadora, a Profª Drª Lélia Erbolato Melo, optamos pelo estudo das
interações conversacionais infantis, imbricando os campos teóricos da
Psicolinguística, da Análise da Conversação e da Pragmática. A escolha do
tema desta pesquisa (condutas de negociação interpessoal em situações
conversacionais infantis) ocorreu, portanto, em decorrência de nossa
experiência acadêmica anterior.
No decorrer da pesquisa, sentimos a necessidade de um
aprofundamento dos subsídios teóricos e metodológicos concernentes à área
de atuação do Prof. Dr. Luiz Antônio da Silva – a Análise da Conversação e,
mais especificamente, os estudos sobre polidez linguística - motivo pelo qual
julgamos ser conveniente a realização de transferência de nossa orientação
para o Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas.
1 Utilizaremos daqui em diante a expressão polidez linguística como sinônimo para a expressão cortesia
verbal. As duas expressões são igualmente utilizadas por pesquisadores da área de Análise da
Conversação.
SUMÁRIO
Considerações Iniciais...............................................................................14
1. As interações conversacionais infantis. .................................................20
1.1. Sobre a Análise da Conversação......................................................20
1.2. Sobre a Pragmática Linguística..........................................................30
1.3. A Pragmática Desenvolvimental.........................................................35
1.4. A Sociolinguística Interacional...........................................................43
2. Relações entre linguagem, cultura e cognição no discurso infantil.....52
2.1. A “teoria da mente” na criança...........................................................56
3. Considerações acerca do desenvolvimento pragmático-linguístico da
criança, e sua correlação com o “brincar”..............................................73
4. Explorando as condutas de negociação interpessoal nas interações
conversacionais infantis............................................................................81
4.1. Acordos e desacordos no processo de negociação........................84
4.2. A regulação do discurso.....................................................................90
4.3. Os FTAs (Face Threatening Acts) e a cortesia verbal no discurso
infantil...................................................................................................94
5. Material e Método.....................................................................................107
5.1. Material................................................................................................107
5.2. Método................................................................................................109
6. Análise qualitativa do corpus..................................................................117
6.1. S e M – 05 anos..................................................................................118
6.2. C e T – 05 anos...................................................................................132
6.3. Ma e Ge – 08 anos..............................................................................147
6.4. Gi e Mx – 08 anos...............................................................................154
6.5. Ga e H – 10 anos................................................................................163
6.6. R e Pd – 10 anos.................................................................................169
Considerações Finais....................................................................................179
Referências bibliográficas............................................................................184
Anexo - Fotos das crianças em situação lúdica com os brinquedos
selecionados para a pesquisa......................................................................199
Considerações iniciais
Pudemos verificar, por meio de longa revisão da literatura, que os
estudos relativos à análise da conversação infantil, sob o ponto de vista teórico
que empreendemos nesta pesquisa (imbricando os campos teóricos da Análise
da Conversação, Pragmática e Psicolinguística) são extremamente raros. Hage
et. al. (2007), por exemplo, consideram que os estudos sobre o
desenvolvimento das competências pragmáticas pelas crianças é recente, se
comparado à profusão de estudos sobre o desenvolvimento de habilidades
fonológicas, semânticas ou sintáticas.
Nesta direção, a realização desta pesquisa se justifica em virtude de
nossa intenção de contribuir com o desenvolvimento de uma metodologia de
pesquisa que leve em conta as contribuições teóricas de tais campos, quando
se tem como objetivo a análise das competências linguísticas (pragmático-
discursivas) e cognitivas, nas interações conversacionais entre criança-adulto e
criança-criança.
Além disso, esperamos que os resultados advindos desta pesquisa
possam constituir uma fonte de contribuição científica aos educadores e outros
profisssionais (psicólogos, psicolinguistas, fonoaudiólogos, etc.) que atuam na
área da linguagem oral infantil, e aos seus respectivos cursos de formação.
Nesta perspectiva, o objetivo geral da presente pesquisa é a
investigação das estratégias interacionais e cognitivas adotadas por crianças,
em situação de interação conversacional em contexto lúdico, a fim de que a
negociação interpessoal seja estabelecida.
Paralelamente, apresentamos os seguintes objetivos específicos:
a) Observar como as crianças procedem para desfazer, pouco a pouco, as
situações ambíguas e as eventuais complicações que surgem no curso da
negociação, até o restabelecimento de uma troca conversacional equilibrada.
Nesse sentido, o estudo em questão nos permitirá compreender melhor a
transição entre os momentos de acordo e de desacordo/conflito, instaurados
nas interações sociais entre as crianças, nos processos de diferenciação ―eu–
outro‖. Em outras palavras, esses momentos de interação oferecem indícios do
modo como a criança passa a reconhecer o outro como um agente mental
diferente de si, isto é, que possui crenças, intenções, perspectivas sobre os
fatos, etc., que diferem das suas (as chamadas teorias da mente). Dessa
forma, a intenção é correlacionar as condutas linguageiras/pragmáticas com a
teoria da mente na criança.
b) Identificar as ocorrências de implicaturas conversacionais (pressupostos,
subentendidos, inferências, etc.), conflitos, equívocos e desacordos, durante o
processo discursivo, que estimulam a criança a argumentar em favor de suas
próprias crenças a respeito dos fatos, culminando, muitas vezes, na
emergência da negociação interpessoal com a outra criança e/ou com o adulto.
c) Descrever as estratégias linguísticas de cortesia verbal e dos FTAs (Face
Threatening Acts, ou atos ameaçadores da face) que podem ser observadas
nesse processo.
A partir da revisão da literatura realizada, formulamos as seguinte
hipóteses:
a) A observação do comportamento linguístico de crianças em situações de
interação conversacional, em contexto lúdico, permite que avaliemos a
emergência de condutas comunicativas/linguísticas em direção ao
estabelecimento de uma negociação interpessoal.
b) Consideramos, ainda, que seja possível verificar, nesse contexto, a
percepção que as crianças têm dos estados mentais (desejos, crenças,
intenções, etc.) dos outros − que, por sua vez, diferem de seus próprios
estados mentais.
No decorrer da análise dos dados coletados, buscaremos respostas para
as seguintes questões:
a) A ocorrência de equívocos, mal-entendidos, conflitos, desacordos e
ambiguidades durante a interação promove um direcionamento da interação
para o surgimento da negociação interpessoal? Quais são as estratégias
interacionais mobilizadas pelas crianças nesse processo?
b) A escolha das verbalizações pela criança, durante a brincadeira, está
associada às crenças, intenções, desejos e perspectivas que ela assume
diante das verbalizações de seus interlocutores (criança ou adulto), ou seja, às
suas teorias da mente? É possível correlacionar os momentos de emergência
de teorias da mente na criança com o desenvolvimento da negociação
interpessoal na interação?
c) Em quais momentos da interação a regulação discursiva/tutela exercida pela
pesquisadora torna-se necessária para o direcionamento/orientação da
brincadeira? De que maneira essas intervenções contribuem (ou não) para o
processo de negociação interpessoal entre as crianças, e entre as crianças e a
pesquisadora?
d) Quais as diferenças observadas em relação às estratégias linguísticas e
cognitivas que emergem no discurso das crianças de 5, 8 e 10 anos de idade?
e) Há diferenças em relação ao sexo das crianças, no que diz respeito às
verbalizações observadas? Observaremos, nesse sentido, se há uma
predominância das verbalizações de meninos ou de meninas, ao buscarem o
acordo e a negociação interpessoal, em uma situação de conflito.
Nessa direção, dividimos o presente trabalho em seis capítulos: no capítulo
1, discorreremos sobre os pressupostos teóricos básicos da Análise da
Conversação, da Pragmática e da Sociolinguística Interacional, que servirão de
esteio à análise que empreenderemos, posteriormente, das interações
conversacionais infantis. Deteremo-nos especialmente na questão da
Pragmática Desenvolvimental, uma vez que tal área de estudo se situa no
entrecruzamento de diversas disciplinas fundamentais ao exame das
peculiaridades das interações dialógicas entre as crianças.
No capítulo 2, trataremos das relações entre linguagem, cultura e cognição
no discurso infantil, incluindo um subcapítulo especial dedicado à teoria da
mente na criança.
O capítulo 3 abrange considerações acerca do desenvolvimento
pragmático-linguístico da criança, e sua correlação com o ―brincar‖.
O capítulo 4 é dedicado à exploração da questão das condutas de
negociação interpessoal nas interações conversacionais infantis. Nesse
capítulo, trataremos dos acordos e desacordos no processo de negociação, da
questão da regulação do discurso e, finalizando a fundamentação teórica de
nossa pesquisa, discorreremos sobre os FTAs e a polidez linguística no
discurso infantil.
O capítulo 5 será dedicado à descrição da metodologia de pesquisa que
utilizamos neste projeto, bem como o material selecionado para a coleta de
dados na pesquisa de campo. Finalizamos este capítulo com um quadro
referente às categorias de análise selecionadas a partir da fundamentação
teórica da pesquisa.
Finalmente, no capítulo 6, realizaremos a análise qualitativa do corpus,
tendo como referência as categorias de análise selecionadas no capítulo 5.
Serão analisadas amostras de transcrição referentes a seis pares de crianças
em situação de interação conversacional: 02 pares de crianças de 05 anos, 02
pares de crianças de 08 anos e 02 pares de crianças de 10 anos de idade,
respectivamente.
1. As interações conversacionais infantis.
A verdadeira substância da língua não é constituída por um
sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação
monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua
produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal.
(Mikhail Bakhtin)
Refletiremos, no presente capítulo, a respeito dos estudos concernentes à
Análise da Conversação, à Pragmática e à Sociolinguística Interacional, que
servirão de esteio à análise que empreenderemos, posteriormente, das
interações conversacionais infantis. Deteremo-nos especialmente na questão
da Pragmática Desenvolvimental, uma vez que tal área de estudo se situa no
entrecruzamento de diversas disciplinas fundamentais ao exame das
peculiaridades das interações dialógicas entre as crianças.
1.1 Sobre a Análise da Conversação
Consideramos que, para o exame detalhado das negociações interpessoais
em situações conversacionais infantis, torna-se necessária a utilização de
conceitos advindos de teorias pertencentes à Análise da Conversação, já que a
língua falada possui características específicas de organização textual.
De acordo com Marcuschi (1998), a Análise da Conversação (AC) teve
início na década de 60 com estudos de Etnometodologia e de Antropologia
Cognitiva, preocupando-se principalmente com a descrição das estruturas da
conversação e seus mecanismos organizadores. Atualmente, há uma
tendência em se observar outros aspectos envolvidos na atividade
conversacional. Assim, de acordo com Gumperz (1982), a AC deveria se
preocupar, sobretudo, com a especificação dos conhecimentos linguísticos,
paralinguísticos e socioculturais que devem ser partilhados para que a
interação seja bem sucedida. Para Marcuschi (1998), esta perspectiva
ultrapassa a análise das estruturas e atinge os processos cooperativos
presentes na atividade conversacional, fazendo com que o problema central
passe da organização para a interpretação.
Quanto à metodologia da AC, o autor afirma que o procedimento é o da
indução, já que não existem modelos a priori. A AC parte de dados empíricos
em situações reais e, por isso, possui uma vocação naturalística com poucas
análises quantitativas, prevalecendo as descrições e interpretações
qualitativas. É também em virtude desta vocação empirista que a AC se
distingue da Análise do Discurso e da Pragmática Filosófica, já que a sua
motivação histórica é de proveniência etnometodológica, etnográfica e
sociológica: ―a AC estabeleceu desde o início sua preocupação básica com a
vinculação situacional e, em consequência, com o caráter pragmático da
conversação e de toda atividade linguística diária‖ (MARCUSCHI, 1998. p.8).
Marcuschi (1998, p.15) ressalta as cinco características básicas
constitutivas da organização elementar da conversação:
(a) interação entre, pelo menos, dois falantes;
(b) ocorrência de, pelo menos, uma troca de falantes;
(c) presença de uma sequência de ações coordenadas;
(d) execução numa identidade temporal;
(e) envolvimento numa ―interação centrada‖.
O autor ainda discute a organização turno a turno das conversações; o
turno conversacional pode ser considerado como aquilo que um falante faz ou
diz enquanto tem a palavra, incluindo a possibilidade do silêncio.
Sacks, Schegloff e Jefferson, no artigo clássico de 1974, discorrem
sobre a sistemática elementar para a organização da tomada de turnos na
conversação. Para os autores, este é um tópico de relevante importância aos
pesquisadores interessados em estudar os aspectos sociológicos dos sistemas
de trocas de fala, uma vez que a tomada de turnos é usada nas mais diversas
situações cotidianas: na ordenação de movimentos em jogos, no atendimento a
clientes em estabelecimentos comerciais, na fala em entrevistas, reuniões,
debates, cerimônias, conversas, etc.
A conclusão de um turno, para os autores, pode se dar a qualquer
momento em que ocorra um lugar relevante para a transição (LRT). O LRT
seria um ponto em que o ouvinte percebe que o turno do interlocutor está
concluído. Assim, as pausas, os silêncios e as hesitações, podem configurar
lugares relevantes para a transição de um turno a outro.
Para Galembeck (1999, p. 72), contudo, o conceito de lugar relevante
para a transição (LRTs) é intuitivo e, por esse motivo, o analista da
conversação pode encontrar dificuldades na determinação dos LRTs, mesmo
que assuma a perspectiva do ouvinte:
Essas dificuldades decorrem da circunstância de não ser
o final do turno algo que se evidencie por si, assim, é
preciso identificar os LRTs pelo maior número possível de
pistas ou marcadores de final de turno: a entoação
ascendente e a descendente, a pausa conclusa, os
marcadores verbais (sabe?, né?, entende?, não é?), os
gestos.
De acordo com Galembeck (1999, p. 72), há duas modalidades de
passagem de turno: a passagem requerida pelo falante (caracterizada por uma
pergunta direta ou pela presença de marcadores que testam a atenção ou
buscam a confirmação do ouvinte), e a passagem consentida, que consiste em
uma entrega implícita do turno, em que o lugar relevante para a transição é
assinalado pelo final de uma frase declarativa
Pode ainda ocorrer a situação de ―assalto ao turno‖, que é marcado pelo
fato de o ouvinte intervir sem que sua participação seja direta ou indiretamente
solicitada. O assalto ao turno pode se manifestar a partir de ―uma deixa‖ ou
não. No caso do assalto ao turno com ―deixa‖, o ouvinte aproveita-se de um
momento de hesitação do falante caracterizado por pausas, alongamentos,
repetições de palavras ou sílabas.
Já o caso do assalto sem ―deixa‖ é caracterizado pela entrada brusca e
inesperada do ―assaltante‖ no turno do interlocutor, o que determina o
surgimento da sobreposição de vozes.
Marcuschi (1998, p. 25) afirma que a sobreposição de vozes também
pode ocorrer, por exemplo, nos casos em que o ouvinte concorda, discorda,
endossa, etc. o falante com pequenas produções, como "sim‖, "tá bom", ―é‖,
―ahã‖, ―claro‖, etc.
Ainda sobre a questão das sobreposições de vozes, Preti e Urbano
(1990) consideram que em qualquer diálogo sempre haverá a predominância
de um interlocutor sobre o outro, em virtude dos fatores psicossociais que
agem sobre a interação. Assim, de acordo com os autores, a simetria absoluta
em uma interação conversacional é impossível sempre ocorre uma luta pela
palavra:
(...) o que significa, de certa forma, a luta pela supremacia
de opiniões, a qual deve ser entendida em última análise
como um dos tantos capítulos da luta pelo poder social,
mesmo quando se limita às fronteiras da família. E dessa
luta fazem parte os vários fatores que cercam os falantes,
seu verdadeiro background psicossocial: seu status, nível
cultural, poder econômico, faixa etária, temperamento,
relações de dependência na escala social, etc. Esses
fatores podem ter influência sobre fenômenos como a
sobreposição de vozes na conversação (PRETI e
URBANO, 1990, p. 100-101).
Outra característica importante a ser analisada nas interações
conversacionais são as sequências interativas. Marcuschi (1998), nesse
sentido, discorre sobre a organização de sequências na conversação,
enfatizando as sequências mínimas, que se estendem por dois ou três turnos e
podem aparecer em qualquer momento da conversação. Dessa forma, cita a
noção de par adjacente ou par conversacional, que constitui uma sequência de
dois turnos que co-ocorrem e servem para a organização local da conversação.
Dentre os exemplos de pares conversacionais, podemos citar:
Pergunta-resposta;
Ordem-execução;
Convite-aceitação/recusa;
Cumprimento-cumprimento;
Xingamento-defesa/revide;
Acusação-defesa/justificativa;
Pedido de desculpa-perdão.
De acordo com o autor (MARCUSHI, 1998, p. , os pares conversacionais
trazem uma importante consequência metodológica para a AC: indicam que
não é a simples ação linguística, mas sim a sequência de atividades que se
presta como unidade para análise; ou seja, o ato de fala não é a unidade mais
adequada para a análise dos mecanismos conversacionais.
Nesta direção, Wolf (1994, p. 200-201) afirma que o interesse pelos
pares adjacentes reside no fato de permitirem um trabalho de interação
negociada, que um só enunciado não pode explicar:
Mediante a segunda parte de um par adjacente, o Locutor
B pode mostrar, manifestar, comprovar que entendeu
aquilo para o que apontava o Locutor A, e, ao mesmo
tempo, estar disposto a caminhar na mesma direção.
Além do mais, por meio da segunda parte do par,
produzida imediatamente depois da primeira, o sujeito A
pode ver que o que ele pretendia foi compreendido e se é
ou não aceito. E do mesmo modo, o Locutor A pode
perceber que não foi entendido, que houve ambiguidade,
mal entendimento, etc.
Para Kerbrat-Orecchioni (2006, p.10), a interação face a face é fruto de
um trabalho colaborativo incessante, ou seja, uma espécie de sincronização
interacional que caracteriza, por exemplo:
o funcionamento dos turnos de fala;
os comportamentos corporais dos diferentes participantes presentes a
uma interação: as análises efetuadas a partir de gravações em vídeo por
alguns especialistas em comunicação não-verbal mostraram exatamente
que, em uma interação, os participantes ―parecem dançar um balé
perfeitamente ajustado, adaptando instintivamente suas posturas, gestos
e mímicas aos de seus parceiros‖;
as escolhas dos temas, do estilo da troca, do registro da língua, do
vocabulário utilizado etc.: vemos, assim, como o conjunto do material
discursivo, produzido durante a interação, pode ser objeto de
negociações (por vezes, explícitas; mais frequentemente, implícitas)
entre as diferentes partes em presença.
Quanto ao funcionamento dos turnos de fala, Kerbrat-Orecchioni (op.cit.)
afirma que, para que haja diálogo, é preciso que ao menos dois interlocutores
estejam presentes e revezem os seus turnos. Em outras palavras, a atividade
dialogal tem por fundamento o princípio da alternância, que pode ser resumido
pela fórmula ABABAB.
Assim, numa conversação ―ideal‖, uma única pessoa fala por vez.
Apesar dos casos de sobreposições de fala não serem raros nas conversações
espontâneas, tais casos não deveriam, a princípio, reproduzirem-se muito
frequentemente, nem tampouco se prolongar por muito tempo: para a autora
francesa, nesses casos, uma negociação deve imediatamente intervir entre os
falantes em competição, a fim de que somente um deles permaneça como
falante do turno.
Ao analisarmos a estrutura dos textos em língua falada, torna-se
fundamental observamos os marcadores conversacionais presentes nesses
textos, uma vez que eles funcionam como articuladores não só das unidades
cognitivo-informativas do texto como também de seus interlocutores, revelando
e marcando as condições de produção do texto. Em outras palavras, são
elementos que ―amarram o texto não só enquanto estrutura verbal cognitiva,
mas também enquanto estrutura de interação interpessoal‖ (Urbano, 1999, p.
86).
Assim, de forma esquemática, apresentamos a seguir os tipos de
marcadores conversacionais, de acordo com Urbano (1999, p. 87):
Finalmente, devemos ressaltar um conceito central para a abordagem de
textos conversacionais: o de tópico discursivo. Castilho (2010) afirma que
entende-se por tópico discursivo o assunto, o tema, à volta do qual giram as
marcadores
verbais
prosódicos (pausas, alongamentos, entonação
lexicalizados (ex.: sabe?)
não lexicalizados (ex.: ahn?)
marcadores marcadores
não- linguísticos ou paralinguísticos: olhar, risos, gesticulação
linguísticos
marcadores
intervenções. Caso seja inserido um tópico discursivo desviante ao tópico em
andamento na interação, verificamos o surgimento da digressão.
1.2 Sobre a Pragmática Linguística
Os estudos linguísticos concernentes ao que hoje conhecemos como
Pragmática foram originalmente desenvolvidos por trabalhos de filósofos da
linguagem, em particular John Austin e Paul Grice e John Searle, em meados
do século XX. Quando o primeiro começa a desenvolver sua teoria dos atos de
fala, através da obra clássica How to do things with words, de 1962, a
Linguística ainda privilegiava a descrição da língua em sua forma abstrata,
independentemente de seu contexto de uso — sabemos, por exemplo, que
para Ferdinand de Saussure, considerado o precursor da corrente linguística
estruturalista, importava a descrição sincrônica da langue, isto é, das unidades
pertencentes aos diversos níveis da língua, tais como fonemas, morfemas, etc.
Desta forma, os filósofos da linguagem supracitados promovem o
interesse da Linguística pelo estudo do uso concreto da língua, ou seja, pelo
exame das relações entre a língua e seus usuários e do contexto situacional
em que os eventos de fala ocorrem. Em nosso trabalho, particularmente,
interessa-nos o estudo pioneiro de Grice (1982) a respeito do Princípio de
Cooperação e das máximas conversacionais dele decorrentes, uma vez que tal
teoria serviria de esteio para uma série de outros estudos pragmáticos, como
os estudos sobre polidez linguística que, posteriormente, analisaremos em
detalhes.
O Princípio de Cooperação é, de acordo com o filósofo, o princípio
básico que rege a comunicação humana, ou seja, quando duas ou mais
pessoas se propõem interagir em uma conversação, há um acordo tácito entre
elas, pressupondo o respeito às regras do jogo conversacional e à cooperação
para que a interação transcorra de maneira adequada; nas palavras de Grice
(1982, p.86), este princípio poderia ser assim caracterizado: ―faça sua
contribuição conversacional tal como é requerida, no momento em que ocorre,
pelo propósito ou direção do intercâmbio conversacional em que você está
engajado‖. Ao Princípio da Cooperação, subordinam-se quatro máximas
conversacionais: da Quantidade, da Qualidade (ou da verdade), da Relação
(ou da pertinência) e do Modo, as quais, por sua vez, possuem certas máximas
mais específicas.
Dessa forma, a categoria da Quantidade pressupõe as seguintes
máximas: 1. ―Faça com que sua contribuição seja tão informativa quanto
requerido‖ e 2. ―Não faça sua contribuição mais informativa do que é
requerido‖. A categoria da Qualidade apresenta, como supermáxima, ―trate de
fazer uma contribuição que seja verdadeira‖ e como duas máximas mais
específicas: 1. ―Não diga o que você acredita ser falso‖ e 2. ―Não diga senão
aquilo para que você possa fornecer evidência adequada‖. Já sob a categoria
da Relação, o autor coloca uma única máxima: ―Seja relevante‖. Por fim, sob a
categoria Modo, Grice inclui a supermáxima ―seja claro‖ e uma série de
máximas como: 1. ―Evite obscuridade de expressão‖; 2. ―Evite ambiguidades‖;
3. ―Seja breve‖ (evite prolixidade desnecessária); 4. ―Seja ordenado‖.
Às vezes, tais máximas podem entrar em conflito, o que resulta em uma
predominância de uma delas. Ou, em outros casos, pode haver um
―desrespeito‖ intencional do locutor a uma das máximas — fato que nos conduz
a outra importante contribuição do autor aos estudos pragmáticos: a noção de
implicatura, que pode ser considerada como uma inferência que se obtém dos
textos. As implicaturas podem ser convencionais (quando desencadeadas por
uma expressão linguística) ou podem ser implicaturas conversacionais (quando
são provocadas por princípios gerais ligados à conversação).
Grice (1982, p. 93) afirma que, para deduzir que uma implicatura
conversacional determinada se faz presente, o ouvinte faz uso dos seguintes
dados: (1) o significado convencional das palavras usadas, juntamente com a
identidade de quaisquer referentes pertinentes; (2) o Princípio de Cooperação e
suas máximas; (3) o contexto, linguístico ou extralinguístico, da enunciação; (4)
outros itens de seu conhecimento anterior (background); e (5) o fato (ou fato
suposto) de que todos os itens relevantes cobertos por (1)-(4) são acessíveis a
ambos os participantes, e ambos sabem ou supõem que isso ocorra.
Armengaud (2006, p. 90) ressalta que a implicatura conversacional está
na base do procedimento comunicativo como um subentendido: ―Para
subentender q (que não se quer dizer abertamente por uma outra razão), basta
ter uma sentença p — não importa qual seja o assunto, desde que p implique
conversacionalmente q.‖
Marcondes (2005), nesse sentido, considera que o modelo proposto por
Grice é particularmente importante do ponto de vista do desenvolvimento da
Pragmática, por propor efetivamente um método de interpretação das
intenções do falante e de reconstrução de elementos contextuais que explicam
a constituição de um significado específico ao contexto de uso.
Dessa maneira, o autor (op.cit., p. 34) salienta que a ironia e a
insinuação são casos exemplares da implicatura de que nos fala Grice. Em
ambas as situações, há uma violação às máximas conversacionais de forma
intencional, sem que o falante possa ser de fato responsabilizado, pois nada foi
dito explicitamente: ―ele pode sempre recuar da intenção irônica e afirmar que
sua intenção foi outra, evitando assim a interpretação de ofensa ou agressão
verbal‖.
Ao estudo de Grice a respeito dos conteúdos implícitos em
conversações, seguiu-se uma série de outras explicações a tal fenômeno
linguístico, como a de Kerbrat-Orecchioni (1998), que discorre sobre o fato de
os atos de fala poderem ser explícitos ou implícitos. Para a autora, se um
enunciado for implícito, ele pode ser denominado como uma inferência e que,
por sua vez, divide-se em pressupostos e subentendidos. Fiorin (2002),
baseando-se no citado estudo de Kerbrat-Orecchioni, afirma que o pressuposto
é a informação que não é abertamente posta, ou seja, que não constitui o
verdadeiro objeto da mensagem, mas que é, todavia, desencadeada pela
formulação do enunciado. Já o subentendido seria uma informação veiculada
por determinado enunciado, cuja interpretação depende da situação de
comunicação, ou seja, depende do contexto extralinguístico da interação.
Assim, poderíamos afirmar que o pressuposto decorre de uma marca
linguística inscrita no enunciado, ao passo que o subentendido é uma
informação formulada sob responsabilidade do ouvinte. Para Fiorin (2002, p.
184): ―o subentendido é um meio de o falante proteger-se, porque, com ele, diz
o que quer sem se comprometer. Com os subentendidos, diz-se sem dizer,
sugere-se, mas não se diz‖. Exemplos de subentendidos são as insinuações e
as alusões.
1.3 A Pragmática Desenvolvimental
Como vimos, a Pragmática se refere aos usos sociais dos sistemas de
comunicação e permite o estudo das relações entre a forma das mensagens e
o seu contexto de produção. De acordo com Laval e Guidetti (2004), ela está
no cruzamento entre várias disciplinas das ciências cognitivas, como a
Linguística, a Antropologia, a Psicologia e a Inteligência Artificial, entre outras.
Ela permite estudar de maneira científica a linguagem e a cognição, como
comportamentos humanos realmente produzidos em situações cotidianas. No
âmbito deste espaço intelectual onde a interdisciplinaridade é uma regra,
compete aos pesquisadores destacar os processos mentais subjacentes à
utilização da linguagem e da comunicação, tanto no adulto, como na criança.
Nesse sentido, os processos mentais que a pragmática permite elucidar,
assinalam uma cognição que depende do ―aqui‖, ou seja, da situação em que
eles emergem para se manter.
Nesta perspectiva, falar, e mais amplamente, comunicar, é adotar um
comportamento determinado por regras complexas, inseridas num certo
contexto situacional. Uma parte importante destas regras que se referem à
correspondência entre a forma de uma mensagem e uma dada situação de
comunicação, diz respeito às convenções extralinguísticas que não repousam
sobre a estrutura do sistema de comunicação utilizado. Para Laval e Guidetti
(op. cit.), a concepção é particularmente heurística porque permite, por
exemplo, levar em conta e compreender a não-transparência das mensagens
linguísticas. Com efeito, o significado transmitido por um enunciado não
corresponde sempre àquele que se poderia deduzir, baseando-se unicamente
na sua estrutura formal. Por exemplo, um enunciado como ―tem hora?‖ ou
―pode passar-me o sal?‖ pede, de um ponto de vista formal, uma resposta
como ―sim‖ ou ―não‖. Ora, na maior parte das situações da vida diária, o
significado transmitido por estes enunciados é, respectivamente, ―que horas
são?‖, que pede por uma resposta do tipo ―são 9 horas e 20 minutos‖, ou ―me
dê o saleiro‖, pedindo para que lhe passem o saleiro.
A aplicação da pragmática à linguagem da criança foi inaugurada em
1977 pela obra doravante clássica de Ervin-Tripp e Mitchell-Kernan: Child
Discourse. Neste trabalho, a questão que é colocada é a de saber como a
criança se torna sensível às relações que podem existir entre a forma dos
enunciados e os contextos de comunicação. Em 1996, Ninio e Snow, em
Pragmatic development, propõem uma lista de temas que fazem parte do
desenvolvimento pragmático, como as intenções comunicativas, o
desenvolvimento da aplicação das formas linguísticas e a sua função social, as
capacidades conversacionais (ex.: os turnos de fala), as regras de polidez e o
seu caráter cultural, bem como os fatores pragmáticos que influenciam a
aquisição da linguagem e da comunicação (ex.: a linguagem dirigida à criança).
Para Laval e Guidetti (2004), esses temas constituem, de fato, os contextos do
desenvolvimento, e são contextos dinâmicos porque eles mesmos estão
sujeitos à ontogênese. Por exemplo, a conversação evolui entre dois e dez
anos, tanto nas suas formas como nas suas funções, e esta evolução é
paralela à aquisição de competências cognitivas mais gerais.
No plano metodológico, as investigações que são da competência da
Pragmática Desenvolvimental estudam as conversações naturais, os
comportamentos efetivamente realizados ―em contexto‖, onde a criança é
observada, seja em situações da vida cotidiana, seja em situações que
simulam a vida cotidiana. Às vezes, a organização/intervenção é necessária,
por exemplo, no processo de compreensão, ou quando a intenção é a de que
todos os assuntos sejam colocados nas mesmas condições, nas situações em
que a criança pode perceber o que está em jogo na interação. Unidades de
análise mais amplas do que a palavra ou a frase (como o turno de fala ou o ato
de linguagem) são levadas em conta, assim como o contexto extralingüístico,
as variações interpessoais ou intergrupais, ou ainda as diferentes funções da
linguagem. Neste quadro, a linguagem não é, por conseguinte, constituída
simplesmente da gramática e da sintaxe, mas também e, sobretudo, de um
conjunto de estratégias ulilizadas pela criança para comunicar e se adaptar ao
seu interlocutor e à situação de comunicação.
A Pragmática Desenvolvimental busca se apoiar sobre os
contextos teóricos de dois domínios: o da Pragmática e o da Psicologia do
Desenvolvimento. Por exemplo, as pesquisas realizadas por Bernicot (1992),
Laval (1999) e Guidetti (2002) articulam as teorias interacionistas do
desenvolvimento, como aquelas de Bruner (1975a e b) e Vigotski (1934/1997),
a uma teoria procedente da Linguística Pragmática: a teoria dos atos de fala
(Searle e Vanderveken, 1985; Trognon, 2001).
De acordo com Laval e Guidetti (2004), as investigações já realizadas
mostraram como a Pragmática Desenvolvimental permitiu levar em conta e
estudar os usos sociais da Iinguagem e da comunicação, renovar as
perspectivas teóricas que modelam o desenvolvimento da criança, aumentar os
nossos conhecimentos empíricos e, enfim, progredir na construção de
instrumentos metodológicos relevantes. A pragmática permite, assim, elucidar
os processos mentais que subjazem ao uso da comunicação e da linguagem
na criança, ancorando o seu desenvolvimento na interação social.
Se a Pragmática se interessa pelos usos sociais da comunicação, o
desenvolvimento das competências pragmáticas compreende igualmente a
capacidade das crianças de produzir e interpretar não somente os enunciados
verbais, como já foi abundantemente mostrado, mas também o comportamento
não verbal do outro, colocado em evidência pela comunicação gestual e
também pela expressão facial das emoções. No primeiro caso, isso pode
referir-se aos gestos convencionais que, para alguns (apontar, gestos de
consentimento e de recusas realizados ao movimentar a cabeça), são
produzidos antes que a criança disponha de palavras correspondentes, e
fazem parte dos únicos sinais que permitem à criança se comunicar antes da
emergência do léxico. Estes gestos que, posteriormente, vão combinar-se com
a linguagem, podem substituí-la nos casos de impossibilidade de sua utilização
(barulho, distância, etc.), mas podem também lhe conferir uma nuance ou
precisá-la (ex.: ―olhe ali‖ acompanhada da indicação da direção a mostrar).
Estes comportamentos, quase a partir do momento de sua emergência,
podem exprimir várias funções e vários usos, como o pedido ou a afirmação.
Estas variações vão permitir à criança dispor de vários registros e estratégias
de comunicação que vão lhe adaptar aos seus interlocutores e aos diferentes
contextos e situações aos quais ela será confrontada.
De acordo com Laval e Guidetti (2004, p. 125), saber interpretar
adequadamente as expressões faciais/vocais emocionais constitui igualmente
um aspecto importante da cognição social, fortemente solicitado por tratar dos
aspectos pragmáticos da comunicação. As emoções, em seu componente
cognitivo e comunicativo, permitem ampliar a problemática da intenção —
central na Pragmática — à compreensão e à expressão dos estados mentais.
Assim, no que diz respeito à natureza social do signo, o texto de
Wierzbicka (2000) propõe alterar de perspectiva o estudo da expressão facial
das emoções e passar da ―psicologia da expressão facial‖, tal como era
representada por Ekman (1973, por exemplo), para a ―semântica da expressão
facial‖. Neste quadro, a intenção não é mais interrogar-se sobre qual é a função
da contratura deste ou daquele músculo facial, mas sobre qual é o sentido de
um franzimento de sobrancelha; o autor nos fala de ―gestos faciais‖. Pode-se,
então, considerar que as expressões faciais podem exprimir significados
equivalentes àqueles dos enunciados verbais. São, por conseguinte, sinais
sociais, cujo sentido pode ser interpretado de maneira uniforme,
independentemente da linguagem e da cultura. Isso introduz a noção de
convenção; a pragmática não permite estudar quais sistemas convencionais
permitem atribuir intenções e estados mentais ao outro. Poder-se-ia, então,
falar de uma ―pragmática da expressão facial‖, e analisar as variações destes
comportamentos em função da situação de comunicação.
Os pontos de convergência entre a teoria pragmática e as teorias
interacionistas do desenvolvimento permitem, além disso, desenvolver a
análise da noção de intenção, estendê-la aos estados mentais e abordar, por
conseguinte, as relações entre desenvolvimento pragmático e um novo campo
em pleno desenvolvimento atual, no plano internacional: o das teorias da
mente. Trata-se de modelos de representações cognitivas que levam em conta
não somente os indivíduos isolados, mas que sejam capazes de definir as
representações individuais das representações de outras pessoas. Esta
corrente de investigações que mostra que aos cinco anos, a criança é capaz de
atribuir aos outros estados mentais diferentes dos seus, encontra a sua origem
no artigo de Premack e Woodruff, de 1978, intitulado; ―Does the chimpanzee
have a theory of mind?‖. Posteriormente, no capítulo 2, analisaremos
especificamente a questão da teoria da mente nas crianças.
Outro domínio privilegiado da investigação pragmática concerne ao
estudo da linguagem não-literal. O recurso às capacidades pragmáticas é
necessário em todas as situações de comunicação nas quais a interpretação
do enunciado depende do contexto. Em outros termos, cada vez que a
linguagem não é transparente, as capacidades pragmáticas devem ser
colocadas em prática, de modo que o sucesso da comunicação seja
assegurado. Esta falta de transparência da linguagem aparece de maneira
relevante na vida cotidiana, por meio da utilização de formas variadas de
linguagem não-literal: existem muitas formas de se dirigir de maneira indireta a
um interlocutor (por exemplo, os pedidos indiretos, a ironia e o sarcasmo, as
expressões idiomáticas, as metáforas, os provérbios, etc.). Nesta perspectiva,
a linguagem não-literal, caracterizada por uma defasagem entre o que é dito
(significação literal) e o que se quer dizer (significação não-literal), constitui um
verdadeiro desafio aos pesquisadores que se interessam pelos usos sociais da
linguagem. O interesse pelo estudo da linguagem não-literal permite
reconhecer a parte respectiva da estrutura da mensagem e das características
da situação de comunicação, no momento do processo de interpretação.
Assim, esta forma de linguagem não-literal contribui para elucidar a
problemática do papel do contexto na compreensão.
Finalmente, Laval e Guidetti (2004) consideram que o estudo do
raciocínio é um dos domínios onde a Pragmática tem renovado mais os
conhecimentos adquiridos. No passado, a maior parte das investigações
focalizou o estudo do raciocínio lógico. Hoje, diversos trabalhos (cf. Noveck e
Politzer, 2002) mostram como a pragmática assume um papel fundamental no
raciocínio humano. Os autores se interessam, particularmente. pelos papéis e
pelos estatutos respectivos da lógica e da pragmática no desenvolvimento do
raciocínio. Eles colocam em evidência que considerar apenas os processos
lógicos não é suficiente para explicá-lo. A análise das respostas não-
normativas é igualmente necessária para se apreender os processos
subjacentes ao raciocínio. Por exemplo, em provas relativas aos
quantificadores e aos modais (Noveck, 2001), constata-se que as crianças de
sete a nove anos são capazes de dar uma resposta normativa (fundamentada
em um raciocínio lógico), enquanto que as respostas do adulto às mesmas
provas testemunham a aplicação de capacidades pragmáticas que lhe
permitem ir além das considerações lógicas. Assim, os princípios pragmáticos,
devido às inferências que autorizam, desempenham um papel central no
raciocínio humano.
1.4 A Sociolinguística Interacional
Conforme expusemos anteriormente, a Pragmática pode ser
considerada como a ciência do uso linguístico, pois apresenta, como objeto de
investigação, as condições que regem a prática linguística. Na esteira do
surgimento da Pragmática Linguística, observamos, a partir da década de 60, o
interesse pelo estudo da língua situada na interação social, ou seja, pela
Sociolinguística Interacional. Gumperz e Cook-Gumperz (1982) salientam que
o modelo da Sociolinguística Interacional visa a analisar a conversação
contextualmente situada, associando construtos sociais, sócio-cognitivos e
linguísticos e concentrando-se em estratégias discursivas.
O sociólogo norte-americano Erving Goffman é considerado como um
dos precursores mais influentes de tal corrente e, dentre suas inúmeras obras
sobre o estudo da ação social na interação conversacional (e em diferentes
contextos situacionais), destacamos o estudo de 1970 (original americano:
1967), no qual verificamos a conceituação de face elaborada pelo autor, bem
como os modos pelos quais as pessoas, em uma interação conversacional,
tendem a preservar a sua face e evitar ameaças à face do interlocutor. Para
Goffman (1970), a face é a auto-imagem pública que todos nós nos
preocupamos em preservar, ou seja, a imagem que desejamos manter
socialmente:
Pode-se definir o termo face como o valor social positivo que
uma pessoa reclama efetivamente para si por meio da linha que
os outros supõem que ela seguiu durante determinado contato.
A face é a imagem da pessoa delineada em termos de atributos
sociais aprovados, ainda que se trate de uma imagem que
outros podem compartilhar, como quando uma pessoa enaltece
sua profissão ou sua religião graças a seus méritos (p.13).
Nas interações conversacionais, o indivíduo espera que os seus
interlocutores respeitem sua auto-imagem assim como ele respeita a dos
demais. Goffman (1970) compreende, assim, dois aspectos que são
complementares: respeito à própria face e consideração pela do outro, como
verificamos a seguir:
Assim como se espera de um membro de qualquer grupo que
ele tenha respeito próprio, assim também se espera que ele
mantenha um padrão de consideração; espera-se que ele se
esforce por resguardar os sentimentos e a imagem dos outros
presentes [...]. O efeito combinado da regra de auto-respeito e
da regra de consideração é que a pessoa tende a conduzir-se
durante um encontro de modo a sustentar tanto a sua imagem
como a dos demais participantes (p.15-16).
Tal noção de face seria posteriormente retomada e ampliada por Brown
e Levinson (1987) com os conceitos de face positiva e face negativa para uma
teoria sobre a polidez linguística (ou cortesia verbal).
Goffman (2002) também sugere aos pesquisadores, sejam eles da área
de Linguística, da Sociolinguística, da Antropologia ou da Sociologia, que
atentem ao fenômeno da situação social engendrada na comunicação face a
face, o que implica o abandono do exame exclusivo das correlações entre as
variáveis linguísticas e as variáveis sociais, ou mesmo do estudo exclusivo de
variantes inerentes ao comportamento linguístico — para o autor (2002, p.17),
tal situação social seria ―um ambiente que proporciona possibilidades mútuas
de monitoramento, qualquer lugar em que um indivíduo se encontra acessível
aos sentidos nus de todos os outros que estão presentes, e para quem os
outros indivíduos são acessíveis de forma semelhante‖.
Para que haja de fato interação, há estratégias bem definidas a serem
seguidas pelos interactantes. Estas estratégias podem ser conscientes ou não,
mas são sempre adotadas; seguem um acordo institucionalizado a partir do
status social de cada participante. Conforme Meireles (1999) espera-se que
cada participante mantenha certo nível de consideração pela face dos demais,
baseando-se na identificação dos sentimentos alheios.
A aceitação deste conjunto de desejos e respeito a sentimentos
transforma-se em estratégias de comportamento que estabilizam os encontros
sociais, onde os participantes evitam ou minimizam situações que possam
romper ou desestabilizar as interações, situação que Goffman (1970, p.18)
descreve como ―acontecimentos, cujas implicações simbólicas efetivas
ameaçam a face‖. Quando há uma invasão de privacidade ou de espaço do
outro ocorrerá o que o autor denominou de perda da face. Aqui, os
interactantes se valem de técnicas de trabalho da face (face-work) para
minimizarem os efeitos desgastantes que a ameaça à face traz:
Assim, existem técnicas específicas que visam a restabelecer o
equilíbrio das faces frente a tais situações. Goffman menciona
como técnicas de Trabalho da Face os processos evasivos,
pelos quais temas e situações constrangedoras são evitados
totalmente ou apresentados de forma dissimulada ou indireta, e
os processos corretivos, (nos quais comportamentos ritualísticos
são adotados para compensar o dano causado à Face de um ou
mais participantes), sendo que a intensidade e duração de tais
correções correspondem à intensidade da ameaça. (MEIRELES,
1999, p. 56)
Estas técnicas auxiliam no acordo tácito da relação interpessoal: são
saídas que mantêm a própria face e a do outro. Conforme afirma Goffman
(1970, p.20-21): ―Algumas práticas serão principalmente defensivas e outras
principalmente protetoras‖. As regras do jogo de manutenção da face parecem
ser respeitadas na maioria dos casos.
Em relação ao conflict talk, ou seja, aos conflitos que podem surgir nas
interações conversacionais, Leung (2002) salienta que variáveis sociais, como
poder, gênero dos interactantes, e o grau de influência que caracteriza as
relações entre os interlocutores, podem ser determinantes nesse processo.
Nessa direção, Grimshaw (1990) propõe que quanto maior a discrepância de
poder entre os participantes da conversação, menor é a possibilidade de que o
participante de maior poder seja desafiado. Ainda que o desafio ocorra, é mais
provável que, nesse caso, ele seja mais indireto e de menor intensidade.
A diferença de gênero dos interactantes constitui uma variável social
considerável quando falamos em conversações que envolvem conflitos. Preti
(2003, p.55-58) lembra que o diálogo entre homem e mulher, bem como a
provável influência do gênero no discurso de cada um, é uma questão
amplamente estudada pela Sociolinguística Interacional e pensa que, apesar
das grandes transformações socioculturais das últimas décadas do século XX,
que permitiram algumas alterações da posição subordinada em que, na maioria
das vezes, encontrava-se a mulher, é possível que, em sociedades
masculinistas, como a brasileira, ainda notemos uma atuação mais ativa do
homem nas interações.
O autor ressalta a necessidade de analisarmos os diversos fatores
envolvidos em um diálogo, que constitui uma produção linguística articulada.
Assim, no diálogo homem-mulher analisado por Preti neste mesmo artigo, o
grande número de frases incompletas e sobreposições que ocorrem nesta
interação, em virtude dos constantes assaltos ao turno promovidos pelo locutor
do sexo masculino, leva-nos a pensar num diálogo assimétrico, o que poderia
representar um indício da dominância/poder exercido pelo locutor do sexo
masculino nesta interação. Ao mesmo tempo, poderíamos pensar que:
... a sobreposição ou interrupção do discurso pode
decorrer, também, do estilo dos falantes, do maior
conhecimento do assunto tratado, da intenção de
contribuir com o discurso do interlocutor, visando a uma
continuidade natural do diálogo.
Além disso, o estudioso cita Tannen (1996, p.72) ao afirmar que as
sobreposições de tal diálogo podem ser vistas como casos de sobreposições
cooperativas, isto é, que têm como objetivo mais o apoio que a obstrução e,
assim, não seriam indício de poder ou de dominação, mas sim de solidariedade
na interação conversacional.
O assunto é extensamente discutido em Tannen (1993,1996). A
pesquisadora demonstra, neste estudo, que estratégias linguísticas específicas
têm significados potenciais amplamente divergentes, e a sua própria pesquisa
anterior (Tannen, 1984, 1986, 1990) mostra que as diferenças culturais não se
limitam ao nível aparente do país de origem e da língua nativa, mas também
existem níveis subculturais de herança étnica, classe, região geográfica, idade
e gênero, que também exercem influência no discurso de um indivíduo.
Tal questão é particularmente significante para a pesquisa sobre
linguagem e gênero, já que grande parte destas investigações têm se dedicado
a descrever os meios linguísticos pelos quais homens dominam mulheres
numa interação. Assim, Tannen (1993, p.166) examina, por exemplo, o
paradigma teórico da questão poder/solidariedade em uma interação
homem/mulher, mostrando que as estratégias linguísticas são potencialmente
ambíguas (elas podem significar tanto o poder de um indivíduo sobre o outro,
quanto a sua solidariedade) e polissêmicas (elas podem significar ambos,
simultaneamente).
O que a autora procura problematizar é a fonte da dominação e os seus
mecanismos linguísticos, além de outras intenções e seus efeitos. Em outro
estudo (Tannen, 1990, p.16), afirma que não há como negarmos que os
homens, como classe, exercem um papel dominador em nossa sociedade, bem
como que muitos, individualmente, dominem as mulheres em sua vida;
contudo, para Tannen, a dominação masculina não é o único fato suficiente
para explicar tudo aquilo que pode ocorrer em uma interação conversacional
entre homens e mulheres, já que o efeito da dominação nem sempre é o
resultado de uma intenção de dominar:
A abordagem sociolinguística que adoto neste livro
mostra que muitos atritos aparecem porque meninos e
meninas são criados em culturas essencialmente
diferentes; assim, a conversa entre homens e mulheres
torna-se uma comunicação de culturas opostas.
Além disso, a autora explica que há interrupções não-intencionais,
provenientes do estilo de conversação de cada indivíduo. Dentre os diferentes
estilos, Tannen salienta o estilo de ―alta consideração‖, que dá prioridade à
consideração com o outro interlocutor, permitindo que ele fale e aguardando
pausas para falar, e o estilo de alto envolvimento, em que se dá mais valor à
demonstração de um entusiástico envolvimento na interação — o que pode
culminar em algumas interrupções não-intencionais.
Eckert (1993), ao analisar a especificidade de um típico girl talk
(conversação entre garotas) americano, observa que as diferenças de gênero
na interação devem ser estudadas no âmago do contexto de situações nas
quais elas são observadas, com uma compreensão do significado destas
situações tanto para os homens quanto para as mulheres daquele grupo
cultural.
Outros estudos demonstram a evidência de uma maior utilização dos
recursos/estratégias da polidez linguística pelas mulheres, em diferentes
contextos culturais. Assim, Brown e Levinson (1987) consideram relevante para
a pesquisa da correlação gênero-polidez aquela linha de estudos que realiza
tentativas de descrição dos estilos comunicativos que diferenciam os gêneros
— chamados de ―genderlects‖, ou dialetos de gênero — tal como os
argumentos popularizados por Lakoff (1975, 1977 a, 1979) de que as mulheres
são mais polidas que os homens.
Embora as alegações específicas dos testes empíricos de Lakoff, como
as que afirmam que as mulheres utilizam mais tag questions e marcadores de
hesitação, por exemplo, tenham sido contestadas por um grande número de
pesquisas, para Brown e Levinson (op. cit.), no entanto, continua válido o
argumento de que a mulher tem um estilo de conversação distinto, em virtude
de sua distinta posição na sociedade.
2. Relações entre linguagem, cultura e cognição no discurso infantil.
O discurso é uma prática, não apenas de representação do
mundo, mas de significação do mundo, constituindo e
construindo o mundo em significado.
(Norman Fairclough)
Tomasello (2003, p.227) considera que "processos sociais e culturais -
de um tipo comum a todas as culturas - são parte integrante e essencial das
vias ontogenéticas normais de muitas das mais fundamentais e universais
habilidades cognitivas dos humanos, sobretudo aquelas únicas da espécie".
Contudo, podemos observar que o estudo de alguns desses processos, tais
como os discursivos ou de comunicação linguística (nos quais as crianças
incluem outras mentes de modo dialógico/interativo), tem sido negligenciado
nas pesquisas acerca da questão, tanto por teóricos individualistas que, em
geral, consideram que a linguagem não interage de maneira significativa com
outras competências cognitivas, como pelos psicólogos culturais que, muitas
vezes, não exploram todas as implicações da comunicação linguística no
desenvolvimento de habilidades cognitivas complexas.
Nesta direção, Tomasello (op. cit., p.230) apresenta-nos três dimensões
do papel que a comunicação linguística exerce no desenvolvimento cognitivo:
1) A transmissão cultural do conhecimento às crianças por meio da
comunicação linguística;
2) As maneiras pelas quais a estrutura da comunicação linguística
influencia a construção de categorias cognitivas, relações, analogias e
metáforas por parte das crianças;
3) As maneiras pelas quais a interação linguística com outros (discurso)
induz as crianças a adotarem diferentes - às vezes conflituosas, às
vezes complementares - perspectivas conceituais sobre fenômenos.
Com referência à dimensão de número 1, o autor explica que,
justamente pelo fato de parecer um dado tão óbvio, as pesquisas sobre
desenvolvimento raramente mencionam tal questão. Todavia, é importante
lembrar que os adultos de todas as sociedades humanas fornecem às suas
crianças enormes quantidades de instrução e explicação diretas, pelo menos
em parte por meio da linguagem e de outros meios simbólicos, ressaltando,
neste processo de transmissão, um campo de conhecimento valorizado pela
cultura em que se inserem, em detrimento de outro. Podemos observar que o
processo pelo qual os conhecimentos e aptidões são transmitidos para as
crianças é variável de acordo com o contexto cultural; assim, as crianças
pertencentes às culturas ocidentais modernas, por exemplo, recebem muito
mais instrução oral e escrita do que as crianças de muitas culturas orais, que
costumam aprender através da simples observação do desempenho dos
adultos em alguma prática especializada.
A segunda dimensão abordada pelo autor se relaciona à questão da
função estruturante da linguagem. Quando as crianças tentam compreender
atos de comunicação linguística dirigidos a elas, ocorre, simultaneamente, a
sua entrada em processos muito especiais de categorização e perspectivação
conceitual, com vistas à comunicação linguística. Por exemplo, cada vez que
um falante deseja se referir a alguma coisa para outra pessoa, ele terá de fazer
uma escolha entre chamá-la de cachorro, aquele animal lá, ele, o cocker
spaniel, Fido, etc. As categorias que podem ser encontradas na linguagem,
pelas crianças, podem constituir entidades estáticas, como os objetos, assim
como podem compreender entidades dinâmicas, como eventos e relações.
Para Tomasello (op. cit., p.234-235), a manifestação mais interessante e
cognitivamente mais significativa de categorias relacionais na linguagem é a
que se refere às analogias e metáforas: "compreender esses modos figurados
de falar abre para as crianças a possibilidade de tecer analogias entre
domínios concretos que elas conhecem a partir de suas experiências sensório-
motoras e os domínios mais abstratos da interação e da vida social e mental
adultas sobre as quais estão justamente aprendendo".
Entretanto, por vezes, o conteúdo semântico do discurso pode expressar
interpretações conflituosas sobre os fatos, o que propicia às crianças, em
situação de interação conversacional com os adultos, perspectivas
explicitamente divergentes/discordantes sobre determinado fenômeno. Em
outros momentos, o adulto pode não entender o que a criança disse, ou vice-
versa, e pede um esclarecimento, para verificar a forma do discurso que
acabou de ser proferido. Finalmente, pode ocorrer que uma criança expresse
uma opinião sobre algo e que, em seguida, seu interlocutor emita uma outra
opinião sobre ela, ou seja, emita um proferimento relativo ao conteúdo do que o
falante acabou de dizer. Esta seria a terceira dimensão sobre a qual a
comunicação linguística atua, no decorrer do desenvolvimento cognitivo da
criança. Esses três tipos de discurso fazem parte do cotidiano das crianças e,
de acordo com o autor, cada um deles exige delas a adoção de uma
perspectiva em relação à outra pessoa, de uma maneira que ultrapassa a
tomada de perspectiva inerente à compreensão de símbolos lingüísticos
isolados do discurso. Dessa forma, tais discursos exerceriam um papel
constitutivo no desenvolvimento de representações cognitivas dialógicas e
auto-reflexivas na primeira infância (crianças de zero a seis anos de idade).
2.1 A “teoria da mente” na criança.
Tomasello (2003) considera que, por volta dos quatro anos, a criança
adquire uma nova maneira de compreender seus próprios pensamentos e
crenças. No entanto, não se trata de uma mudança significativa que ocorra
precisamente aos quatro anos idade, fazendo com que as crianças entendam
suas mentes de modo mais profundo que antes: na verdade, ocorre uma
mudança gradual, ao longo da primeira infância, que permite às crianças
ganharem experiência com o interjogo entre suas próprias mentes e as dos
outros, sobretudo por meio de vários tipos de interações discursivas.
Um fato particularmente importante para a compreensão infantil das
relações entre os próprios estados mentais e os dos outros, refere-se aos
desacordos e mal-entendidos que acontecem, por exemplo, nas interações
cooperativas, das quais crianças de uma mesma família participam
diariamente: irmãos apresentam desejos e necessidades conflituosos com
regularidade, seja ao desejarem o mesmo brinquedo, ao intentarem realizar a
mesma atividade ao mesmo tempo ou, ainda, ao viverem conflitos envolvendo
crenças, isto é, quando um expressa a opinião de que se trata de X e outro
discorda, afirmando que se trata de Y.
Outro tipo de discurso que pode ser importante, na visão de Tomasello
(2003, p. 248), para que as crianças consigam compreender os outros como
agentes mentais, é o processo de pane e retificação na comunicação.
Podemos observar que, quando as crianças começam a conversar com os
adultos, em torno dos dois ou três anos de idade, é comum o fato de alguém
não entender o que foi dito. Já ao ficarem mais velhas, as crianças podem
vivenciar:
Mal-entendidos, em que o adulto interpreta o enunciado da criança de
uma maneira que não corresponde ao que ela quis dizer;
Pedidos de esclarecimento, em que a criança diz algo que o adulto não
entende e por isso ele pede um esclarecimento.
Tais incompreensões podem fornecer pistas sobre como as crianças
percebem que uma perspectiva linguística difere de outra, indicando,
possivelmente, a sua compreensão a respeito dos agentes mentais. Vale
ressaltar que, de acordo com o autor, esses tipos de discurso ocorrem com
frequência na aprendizagem da língua natural de praticamente todas as
crianças pequenas.
Tomasello afirma que, na ontogênese cognitiva dos seres humanos, fica
claro que, entre os nove e doze meses de idade, acontece uma revolução na
maneira como os bebês entendem seus mundos (principalmente seus mundos
sociais), iniciando uma série de comportamentos de atenção conjunta que
parecem indicar uma compreensão emergente das outras pessoas como
agentes intencionais iguais a si próprios. Contudo, em relação à compreensão
que as crianças mais velhas têm dos outros como agentes mentais, isto é, as
suas ―teorias da mente‖, ainda há muita discussão, a começar pela própria
confusão relativa aos termos utilizados para se referir aos estados mentais. O
autor, desta forma, tenta simplificar e organizar os termos para estados mentais
que se aplicam à compreensão social de crianças em idade pré-escolar, como
verificaremos na Tabela 1.
Tabela 1. Três níveis da compreensão humana dos seres sociopsicológicos, expressos em termos dos três principais componentes que têm de ser entendidos: input (percepção), output (comportamento) e estado dos objetivos. (p.251)
Compreensão
de input
perceptual
Compreensão
de output
comportamental
Compreensão
de estado dos
objetivos
Compreender
outros como
seres animados
(bebês pequenos)
Olhar
Comportamento
Direção
Compreender
outros como
agentes
intencionais
(9 meses)
Atenção
Estratégias
Objetivos
Compreender
outros como
agentes mentais
(4 anos)
Crenças
Planos
Desejos
Observamos, de acordo com a tabela, que Tomasello (2003, p.250)
concebe uma progressão contínua do desenvolvimento da compreensão que
as crianças têm dos outros, quando estudamos a cognição social da primeira
infância, formulando a seguinte sequência:
1. Agentes animados — em comum com todos os primatas (bebês);
2. Agentes intencionais — uma maneira singular da espécie de
compreender os co-específicos, que inclui a compreensão dos
comportamentos voltados para um objetivo e da atenção dos outros (um
ano);
3. Agentes mentais — a compreensão de que as outras pessoas não
têm apenas intenções e atenção, tal como se manifestam em seu
comportamento, mas também pensamentos e crenças que podem estar
expressos ou não no comportamento — e que podem diferir da situação
―real‖ (quatro anos).
Além disso, o autor considera como hipótese básica que as crianças têm
a capacidade de começar a participar de conversas com os outros, um pouco
depois de os entenderem como agentes intencionais (com um ano de idade). E
só passariam a entender as outras pessoas como agentes mentais alguns anos
mais tarde, pois:
(...) para entender que as outras pessoas têm crenças sobre o
mundo que diferem das suas próprias, as crianças têm de
entabular com elas conversas nas quais essas diferentes
perspectivas ficam claras — seja por um desacordo, um mal-
entendido, um pedido de esclarecimento ou uma conversa
reflexiva. Isso não exclui outras formas de interação com outros
e de observação de seu comportamento como elementos
importantes para a construção por parte da criança de uma
“teoria da mente”; a questão é que a troca lingüística proporciona
uma fonte particularmente rica de informação sobre outras
mentes. (TOMASELLO, 2003, p.254)
Os psicólogos Flavell, Miller e Miller (1999) ressaltam que a mente é a
diferença principal entre as pessoas e as outras entidades e que as crianças
não podem fazer muitos progressos em direção ao entendimento dos eventos
cotidianos que envolvem pessoas até que tenham algum entendimento da
mente. Assim, um exemplo seria o de uma menina que dá sentido ao
comportamento de seu amigo de revirar deliberadamente a sua caixa de
brinquedos, supondo que ele quer um brinquedo em particular, acredita que ele
pode ser encontrado ali, já que está procurando por ele, pretende brincar com
ele, vai se sentir triste se não o encontrar, etc. Dessa forma, a criança
compreende como a mente funciona, conferindo ordem aos eventos sociais à
sua volta. Ao mesmo tempo, oferece explicações do comportamento dos
outros, permitindo a ela prever suas ações, referindo-se a suas crenças,
desejos, percepções, pensamentos, emoções e intenções.
Os pesquisadores citados denominam estas noções infantis implícitas a
respeito do reino psicológico de teoria da mente e apresentam os seguintes
postulados vinculados a esta teoria:
1. a mente existe;
2. tem conexões com o mundo físico;
3. é separada e diferente do mundo físico;
4. pode representar objetos precisa e imprecisamente;
5. medeia ativamente a interpretação da realidade e das
emoções experimentadas. (p. 87)
Os autores, ainda, afirmam que as evidências que temos até agora
sugerem que algum entendimento mínimo de cada postulado pode ser
necessário antes que o próximo possa começar a ser adquirido, mas o
desenvolvimento de cada postulado continua mesmo depois que os posteriores
tenham surgido. Para esses autores, por volta dos três anos, as crianças
possuem um conhecimento de conexões cognitivas a respeito da mente —
postulados 1 a 3 — ou seja, ―elas compreendem que elas mesmas e os outros
têm experiências internas (estados mentais) que conectam os humanos
cognitivamente a objetos e eventos externos‖ (p. 97). Posteriormente, quando
compreendem as representações mentais (postulado 4), elas passam a
entender que um mesmo objeto ou evento pode ser realmente representado
mentalmente de maneiras diferentes, e não apenas no faz-de-conta:
As pessoas constroem ativamente representações simultâneas e
por vezes conflitantes, de crenças e da realidade, da expressão
manifesta e do sentimento oculto, da aparência e da identidade
real, e dos motivos e do comportamento. O pré-escolar ingênuo
e confiante se transforma na criança e no adolescente mais
desconfiado e esperto. De modo geral, as crianças entendem
que uma experiência em particular proporciona acesso a certas
informações, que causam uma representação particular e
mesmo uma interpretação particular (postulado 5) a qual, por
sua vez, causa um comportamento particular (p.97-98).
Wood (2003, p.161) reforça a posição dos autores citados, afirmando
que a criança de 3 anos ainda não possui uma "teoria da mente":
Ela não consegue reconhecer que outra pessoa possa manter
uma crença que esteja em desacordo com o que ela própria
sabe ser a verdade. Em outras palavras, ela ainda não percebe
que as pessoas mantêm representações do mundo em sua
mente e que essas representações (que podem incluir falsas
crenças) ajudam a explicar o que as pessoas fazem, dizem e
sentem.
Nesse sentido, Tomasello (2003, p.264) ressalta que os processos
sociais e culturais durante a ontogênese não criam as habilidades cognitivas
básicas, mas sim, transformam habilidades cognitivas básicas em habilidades
cognitivas extremamente complexas e sofisticadas. Ao interagirem
linguisticamente com os outros, as crianças entram em contato com uma série
de crenças e pontos de vista conflituosos sobre as coisas - este processo, de
acordo com o autor, constitui, provavelmente, um ingrediente essencial para
que as crianças possam enxergar as outras pessoas como seres com mentes
semelhantes, mas, simultaneamente, diferentes das delas.
Para entendermos a importância dos processos discursivos que as
crianças estabelecem com os que as rodeiam, para a constituição dessa
ontogênese, poderíamos imaginar o exemplo de uma criança solitária numa
ilha deserta, que possuísse um ano de idade, fosse cognitivamente normal,
capaz de compreender relações intencionais e causais e que estivesse, assim,
pronta para adquirir linguagem, sem, contudo, ter sido exposta a pessoas ou
símbolos. Tomasello (2003, p. 265) afirma que esta criança, certamente,
reuniria por conta própria informações, categorizaria e perceberia relações
causais, por exemplo, até determinado ponto, mas:
Não vivenciaria nenhuma informação reunida por outros assim como
tampouco receberia qualquer instrução dos outros sobre causalidade no
mundo físico ou sobre mentalidade no mundo sociopsicológico (isto é,
não haveria "transmissão" de informação);
Não vivenciaria as muitas formas complexas de categorização, analogia,
causalidade e construção de metáforas incorporadas numa língua
natural que evoluiu historicamente;
Não vivenciaria diferentes pontos de vista, ou pontos de vista
conflituosos, ou opiniões expressas sobre suas próprias opiniões, em
interação dialógica com outras pessoas.
Assim, podemos presumir que essa criança, em uma fase posterior, teria
o seu pensamento em termos causais e matemáticos reduzidos, assim como
raciocinaria pouco sobre os estados mentais dos outros e teria um raciocínio
moral pobre - isso devido ao fato de que, para o autor, todos esses tipos de
pensamento e raciocínio só aparecem, ou aparecem preferencialmente, em
interações discursivas dialógicas da criança com outras pessoas.
Desta forma, torna-se interessante observar a natureza perspectiva dos
símbolos linguísticos utilizados pelas crianças em interações discursivas nas
quais diferentes perspectivas são contrastadas e compartilhadas. Contudo, os
estudos sobre o desenvolvimento cognitivo das crianças pequenas têm se
voltado para uma abordagem endógena desta questão, como observamos nas
pesquisas de Karmiloff-Smith (1992). A autora propõe o conceito de
redescrição representacional, que consiste na exploração interna da
informação já armazenada (redescrevendo, internamente, as representações
em diferentes formatos representacionais). Este processo proporciona uma
reorganização sistemática da cognição, permitindo, posteriormente, que
generalizações sejam estabelecidas.
Tomasello (2003), todavia, oferece uma explicação alternativa para o
processo de redescrição representacional, ressaltando a participação dos
fatores sociais e culturais. Para ele, um dos responsáveis pelo processo seria a
mudança do ponto de vista do indivíduo, que se coloca numa perspectiva
externa em relação ao seu próprio comportamento e cognição, ou seja, como
se ele observasse o comportamento de outra pessoa. O autor afirma que este
processo tem suas origens nos metadiálogos reflexivos, sobretudo naqueles
em que os adultos instruem as crianças que, então, internalizam as instruções
recebidas. O autor frisa que, tal como ocorre com muitas habilidades
cognitivas, a criança se aprimora cada vez mais nesse processo de
internalização, até conseguir generalizá-lo e, "consequentemente, refletir sobre
seu próprio comportamento e cognição como se fosse outra pessoa olhando
para ele" (p.274).
De acordo com Veneziano e Hudelot (2005, p.10), a avaliação do
surgimento e desenvolvimento de diferentes tipos de utilizações informativas da
linguagem revela o modo pelo qual a criança passa a trazer ao conhecimento
do seu interlocutor, os acontecimentos/aspectos que não são perceptíveis de
modo direto na situação de enunciação:
(...) é na criança, sobretudo entre 18 e 24 meses, que os
autores relacionam as primeiras utilizações
descontextualizadas e informativas da linguagem, tais
como as referências a acontecimentos passados (...) e a
produção linguageira de significações subjetivas que o
locutor atribui aos objetos e às ações, como é o caso das
transformações simbólicas do jogo de faz-de-conta.
Assim, o surgimento dessas utilizações informativas da linguagem, por
volta dos 18-24 meses, poderia sugerir que ocorre, nessa fase, uma mudança
qualitativa na capacidade da criança em considerar os estados internos do seu
interlocutor, ou seja, ela começa a perceber que, durante a situação de
interação conversacional, o seu interlocutor possui estados internos, tais como
a atenção, intenção e outros estados de conhecimento que podem diferir dos
seus próprios estados, e que a linguagem utilizada pode ser capaz de
influenciá-los e, consequentemente, de mudar o seu comportamento.
Melo (2005), nesse sentido, ressalta que, a partir dos anos 80, uma série
de estudos a respeito da representação que a criança faz da vida mental
(theory of mind) começou a surgir, evidenciando que, precocemente, a criança
dispõe de conhecimentos e representações relativas à mente humana:
Estas crianças são igualmente capazes, por um lado, de
especificar algumas relações entre a mente e o mundo e,
por outro lado, são capazes de explicar e predizer
algumas ações e/ou emoções referentes a estados
mentais como os desejos, as intenções e, em alguns
contextos, as crenças (p.26).
Para ilustrar as considerações de Melo (op. cit.), citamos o estudo de
Perner e Wimmer (1985), sobre a verificação das crenças de segunda ordem
atribuídas pelas crianças. Segundo os autores, na explanação do senso-
comum das ações humanas, frequentemente atribuímos estados epistêmicos
às pessoas e as descrevemos como se soubessem ou pensassem sobre algo
que existe em cada caso/situação. Embora descrever o que as pessoas
pensam sobre eventos reais (as crenças de primeira ordem) represente um
papel crucial na explicação de sua interação física com objetos e com outras
pessoas, esta descrição não pode capturar inteiramente a interação social. A
interação entre as pessoas, de acordo com os autores citados, é baseada em
grande parte em uma interação das mentes, as quais só podem ser
corretamente compreendidas quando se leva em conta o que as pessoas
pensam sobre os pensamentos de outras pessoas (crenças de segunda
ordem) e até o que as pessoas pensam que as outras pensam sobre seus
pensamentos, etc. (crenças de ordem mais elevada).
Assim, nesse estudo, Perner & Wimmer tiveram como objetivo, a partir
de uma série de experiências, estabelecer um paradigma experimental para
investigar a compreensão das crianças do primeiro passo na conceitualização
da interação social.
De acordo com os autores, a importância das crenças de segunda
ordem, e crenças de ordem mais elevada para a nossa compreensão da
sociedade humana foi enfatizada por teóricos em diversos campos. Grice
(1975) e Lewis (1969) analisaram o papel de intenções de uma ordem mais
elevada na formação de convenções linguísticas e como pré-requisitos para a
comunicação. Este tipo de análise conduziu à definição de conceitos como
―conhecimento mútuo‖ (Schiffer, 1972), que é um conceito nuclear na
Psicolinguística.
Apesar da importância teórica óbvia das crenças de uma ordem mais
elevada, existem muito poucos dados experimentais sobre como elas são
compreendidas por crianças.
Depender de relatos introspectivos para a evidência sobre a habilidade
de raciocínio conduz à subestimação das competências de crianças pequenas
(Flavell, 1977). Todos os estudos sobre jogo competitivo, entretanto, tiveram de
confiar em tal evidência, porque nenhuma resposta simples era indicativa de
todo o nível particular do raciocínio. A razão para este fato é que a estrutura
dos jogos era circular (Perner, 1979), de modo que a análise das crenças de
uma ordem mais elevada conduzia ao mesmo resultado que uma análise de
dois níveis abaixo. Portanto, além da dificuldade geral dos relatórios
introspectivos, a ineficácia da atribuição de crenças de uma ordem mais
elevada em jogos circulares pode ter impedido que a maioria de crianças mais
novas relatasse sua análise intricada, uma vez que o resultado não poderia ser
distinto de uma análise mais simples. Assim, não é de se surpreender que
estudos sobre o jogo competitivo detectassem crenças de segunda ordem
somente em um número insignificante das crianças abaixo de 10 anos.
Miller, Kessel, e Flavell (1970) introduziram uma técnica diferente que
evitou problemas de circularidade e de relatos introspectivos. As crianças
tiveram que descrever os ―balões‖ encaixados nos quadrinhos, por exemplo,
―Johnny está pensando que papai pensa em mamãe.‖ Entretanto, as respostas
corretas requereram ainda construções sintaticamente incomuns de sentenças
de duplo encaixe, e os autores sugeriram que esta característica pode ter
esclarecido o desempenho relativamente ruim das crianças. Eliot, Lovell,
Dayton, & McGrady (1979) testaram esta possibilidade e encontraram uma
performance melhorada na tarefa invertida. Foi dada às crianças uma
descrição, e elas tiveram que, simplesmente, apontar o quadrinho
correspondente ao ―balão‖. Infelizmente, seu procedimento experimental não
excluiu estratégias alternativas óbvias, como combinar a complexidade da
sentença com o quadrinho. Aparte esta crítica específica, o paradigma do
―balão‖ geral apresenta a falha fatal de que as respostas corretas não
demonstram a ―compreensão‖ de crenças, além de um exercício sintático de
combinar sentenças encaixadas com os balões encaixados.
O paradigma experimental usado no presente estudo de Perner e
Wimmer (1985) foi projetado de forma a superar estas fragilidades
metodológicas. As respostas do teste não foram baseadas em relatos
introspectivos e não requereram habilidades verbais elaboradas. Apontar uma,
entre duas posições, era suficiente. Assegurou-se que as respostas corretas
refletiram a habilidade das crianças em inferir crenças de segunda ordem de
uma história, e não raciocínios de ordem mais baixa ou respostas parciais. Um
método de compreensão de história similar para testar a atribuição de crenças
de segunda ordem das crianças foi usado com sucesso em crianças de 3 a 6
anos por Perner e Wimmer (1983). Em torno da idade de 6 anos, as crianças
não somente eram capazes de inferir sobre a falsa crença do protagonista, mas
eram também completamente capazes de estabelecer um raciocínio intricado
sobre como o protagonista agirá em razão de sua falsa crença. Uma vez que o
método da história era apropriado para a compreensão das crenças de primeira
ordem das crianças pequenas, ela pareceu uma ferramenta promissora para se
obter a evidência positiva de compreensão das crenças de segunda ordem, em
uma idade muito inferior ao que se pensou previamente.
Este trabalho sugere que determinados tipos dos estados epistêmicos
de segunda ordem podem ser compreendidos em uma idade inferior aos 6 ou 7
anos.
Na visão de Grice (1975) sobre a conversação, as pessoas não
respondem simplesmente a perguntas mas, tentando ser cooperativas, ajustam
sua resposta ao que pensam que o questionador quer saber. A partir desse
ponto de vista, pode tornar-se relevante perceber que uma examinadora (ou
uma pesquisadora) não faz perguntas porque ela quer saber a resposta, mas
porque quer saber se a criança sabe a resposta. Embora em muitas situações
não seja necessário que a criança compreenda claramente essa intenção
epistêmica de segunda ordem, em algumas situações pragmaticamente
ambíguas, isso pode ser crucial.
Problemas de conversação similares podem ser encontrados na maior
parte das tarefas de raciocínio de Piaget, e é notável que a idade entre os 5 e 8
anos, em que as crianças do presente estudo começaram a atribuir as crenças
de segunda ordem, é vista por Piaget (1972) como a idade na qual as crianças
mudam do pensamento pré-operacional para o pensamento operacional
concreto. Isso pode não ser pura coincidência. Em algum grau a mudança
observada nas respostas das crianças com os testes de raciocínio lógico de
Piaget, pode acontecer em função de qual intenção epistêmica de segunda
ordem elas são capazes de atribuir ao experimentador.
Nesse sentido, Marquesi e Cabral (2005, p. 50), afirmam que a
capacidade de reconhecer os outros como seres intencionais, ou seja, que
desejam, pensam e tentam, por exemplo, surge muito cedo no
desenvolvimento psicológico infantil:
Noções como fazer e tentar, que indicam o reconhecimento de
que a conduta das pessoas tem uma direção, um propósito,
indicam uma certa compreensão da intencionalidade. Entretanto,
inicialmente, as crianças caracterizam as crenças e as intenções
daqueles que falam e ouvem exclusivamente do seu próprio
ponto de vista.
3. Considerações acerca do desenvolvimento pragmático-linguístico da
criança, e sua correlação com o “brincar”.
É brincando, e somente brincando, que o indivíduo, criança
ou adulto, é capaz de ser criativo e utilizar sua
personalidade integral. É somente sendo criativo que o
indivíduo descobre o eu (self).
(Winnicott)
De acordo com a teoria vigotskiana do desenvolvimento cognitivo da
criança, conforme a sua maturidade, a função do adulto (mãe, pai, professor,
etc.) seria a de regular as formas culturais/sociais de comportamento que, uma
vez internalizadas pela criança, dispensariam a mediação. Assim, com o intuito
de discutir a relação geral entre aprendizado e desenvolvimento cognitivo,
Vigotski (2003, p. 112) elabora a noção de Zona de Desenvolvimento Proximal
(ZDP), ou seja, ―a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se
costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível
de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas
sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais
capazes‖. Desta forma, seria interessante se o adulto conseguisse atuar nessa
ZDP ao interagir com as crianças, a fim de impulsionar as suas competências
cognitivas emergentes.
Nesta direção, outro conceito introduzido por Vigotski, que se articula
com nossa proposta de estudo, é o de tutela. De acordo com Bitar (2002, p.89),
a tutela poderia ser definida como um conjunto de intervenções entre o adulto e
a criança, ou ainda entre crianças, que culmina na realização de uma tarefa
que ela não conseguiria realizar sem esta colaboração. A autora salienta que é
justamente na Zona de Desenvolvimento Proximal que a tutela se torna mais
útil, já que é nela que o adulto pode estimular uma criança a dominar uma
determinada tarefa. Se esta colaboração ocorrer aquém dessa zona (onde as
crianças podem realizar tarefas sozinhas), ou além, isto é, onde a tarefa se
torna muito complexa, a tutela poderá se converter em contra-tutela.
Sob o ponto de vista do desenvolvimento cognitivo, Vigotski (2003,
p.136) considera que a criação de uma situação imaginária — através de um
jogo ou de uma brincadeira — pode ser considerada como um meio para
desenvolver o pensamento abstrato. Para o autor, o que define o brincar é a
situação imaginária criada pela criança. O brincar preenche necessidades que
mudam de acordo com a evolução da idade da criança (por exemplo: um
brinquedo que interessa a um bebê, deixa de interessar a uma criança mais
velha). A maturação dessas necessidades é de suma importância para
entendermos as brincadeiras da criança como uma atividade singular, nas
quais elas podem satisfazer desejos que, muitas vezes, não podem ser
satisfeitos imediatamente (ex.: uma criança que quer ocupar o papel da mãe,
simulando tal papel durante a brincadeira de faz-de-conta).
Vigotski (op. cit.) salienta que o brinquedo que comporta uma situação
imaginária, também comporta uma regra; não uma regra explícita, mas uma
regra que a própria criança cria. À medida que a criança vai se desenvolvendo,
há uma modificação: nas brincadeiras das crianças mais novas predomina a
situação imaginária e as regras não se mostram explícitas; conforme elas vão
ficando mais velhas, predominam as regras (explícitas) e a situação imaginária
fica oculta. Além disso, conforme a própria natureza do brinquedo se
desenvolve, e começam a surgir regras mais complexas inerentes a ele,
podemos observar um movimento em direção à realização consciente de seu
propósito: ―no final do desenvolvimento, surgem as regras e, quanto mais
rígidas elas são, maior a exigência de atenção da criança, maior a regulação
da atividade da criança, mais tenso e agudo se torna o brinquedo‖ (p.136).
Dessa forma, o ato de correr, por exemplo, sem algum propósito ou regras
estabelecidas, torna-se uma atividade sem atrativos para a criança. Mas, se
existe um propósito nessa atividade, como objetivo final, a atitude afetiva da
criança fica associada ao brinquedo/jogo.
Esta atitude afetiva mencionada pelo autor russo nos remete aos
estudos de Henri Wallon. O estudioso francês contribuirá com nosso estudo,
justamente em virtude do lugar central que a afetividade ocupa em sua teoria,
tanto do ponto de vista da construção da pessoa, quanto do conhecimento. O
autor elabora uma teoria da emoção com uma nítida inspiração darwinista: ela
é vista como o instrumento de sobrevivência típico da espécie humana e
considerada fundamentalmente social, uma vez que fornece o primeiro e mais
forte vínculo entre os indivíduos e supre a insuficiência da articulação cognitiva
nos primórdios da história do ser e da espécie.
Wallon (1987) considera que, aos três anos de idade, a criança já é
capaz de compreender que as relações interpessoais e os papéis assumidos
pelos interlocutores podem variar em função da situação. Assim, conseguem
estabelecer uma diferenciação entre o ―eu‖ e o ―outro‖, modificando seus atos
de fala em função da resposta de seu interlocutor. Nesse sentido, Galvão
(2004), inspirando-se em Wallon (op. cit.), salienta que o terceiro ano de vida
marca o início de uma reviravolta nas condutas da criança e nas suas relações
com o meio, em que se torna frequente, por exemplo, a utilização do pronome
―eu‖. Além disso, há uma tendência ao desaparecimento dos diálogos da
criança consigo mesma, o que anuncia uma fase de afirmação do ―eu‖. De
acordo com a autora, nesta etapa, os conflitos interpessoais são frequentes,
uma vez que a criança se opõe, sistematicamente, ao que se apresenta como
distinto dela, ou seja, como ―não-eu‖. Assim, ela tende a rejeitar qualquer
ordem, convite ou sugestão que venha do ―outro‖ e, dessa maneira, busca o
confronto, com o intuito de testar a independência de sua personalidade recém
- descoberta.
Esta dimensão socioafetiva nas relações interpessoais também foi
desenvolvida por Gregory Bateson (2000), na obra já considerada clássica,
Steps to an Ecology of Mind. O autor introduz a noção da existência de dois
níveis de comunicação: cada ato comunicativo contribui não somente para
fornecer informações sobre o conteúdo e sobre o objeto da conversação, mas
contribui, igualmente, para qualificar a natureza da relação interpessoal.
Bateson (op. cit.) utilizou a teoria dos tipos lógicos de Russel para
salientar que a mensagem sobre a forma da relação se coloca em um nível de
abstração diferente da mensagem sobre o conteúdo. Dessa forma, o autor
considera que a comunicação verbal humana pode operar em diversos níveis
contrastantes de abstração e um desses níveis mais abstratos seria o
metalinguístico, que incluiria mensagens explícitas ou implícitas nas quais o
tema do discurso é a própria linguagem. Outro nível de abstração abordado
pelo autor é o metacomunicativo, em que o tema do discurso é a relação
pessoal/afetiva entre os interlocutores.
Na mesma obra, Bateson discute a questão da natureza do "brincar"
que, para o autor, só pode ser entendida nos termos de uma ecologia de
idéias. É o que observamos no metálogo "Sobre os jogos e o ser sério", em
que uma filha discute com o pai sobre a definição de suas interações
conversacionais; afinal, essas conversações devem ser levadas a sério, ou são
um tipo de jogo/brincadeira? O pai argumenta que tais conversações são
sérias; contudo, elas são, ao mesmo tempo, um tipo de brincadeira em que
ambos "brincam" juntos. Dessa forma, esclarece a sua idéia de jogo: "Eu sei
que eu estou sendo sério - seja qual for o significado disso - a respeito das
coisas sobre as quais falamos. Nós falamos sobre ideias. E eu sei que eu
brinco com as idéias, a fim de compreendê-Ias e de fazer com que elas se
encaixem umas nas outras. Isto é um jogo, no mesmo sentido em que uma
criança pequena brinca com blocos ... E uma criança que constrói com blocos é
sempre muito séria em sua brincadeira".
A filha, então, questiona o pai se, uma vez que a conversação é um
jogo, ele estaria jogando contra ela. O pai explica que não: eles jogam juntos,
contra "os blocos de construção" - neste caso, as idéias. Pode haver um pouco
de competição, ou de ataques e defesas, mas, no final, eles sempre estarão
trabalhando juntos, no sentido da construção das idéias.
O autor, nesse sentido, ressalta que, para que em um jogo os
desacordos/conflitos sejam evitados, é preciso que os participantes façam um
―pacto‖, isto é, aceitem as regras e entrem no contexto imaginário do jogo.
Prosseguindo no campo da filosofia da linguagem, lembramos que
Wittgenstein (2005, p.53) reflete a respeito da palavra jogo - o que ela pode
denominar, quando a proferimos? O autor explica que os processos a que
chamamos jogos, sejam eles os jogos de tabuleiro, os jogos de cartas, os jogos
de bola, jogos de combate, etc., relacionam-se a uma complicada rede de
semelhanças, em grande e em pequena escala, que se sobrepõem umas às
outras e se entrecruzam - seriam as "semelhanças familiares". Verificamos que
a compreensão do jogo, per si, é dificultosa, uma vez que diferentes
significações podem ser atribuídas ao mesmo termo. Assim o autor questiona:
de que modo explicaríamos para alguém o que é um jogo? Poderíamos
descrever os jogos para explicá-Ios, mas poderíamos acrescentar a tal
descrição: "isto e coisas semelhantes são os jogos".
Kishimoto (2003, p.3), interpretando essas proposições de Wittgenstein,
lembra-nos que o filósofo questiona a lógica da linguagem, ao afirmar que
certas palavras só adquirem significado preciso quando interpretados dentro do
contexto em que são utilizados. Assim, com referência particular aos jogos, a
autora afirma:
(...) por pertencer a uma grande família com semelhanças e
diferenças, o termo jogo apresenta características comuns e
especificidades. Dentro da variedade de significados, são as
semelhanças, que permitem classificar jogos de faz-de-conta, de
construção, de regras, de palavras, políticos e inúmeros outros,
na grande família denominada jogos.
Ao interpretarmos o significado do jogo dentro do contexto em que ele
está inserido, verificamos que Wittgenstein aponta para a natureza perspectiva
da palavra "jogo" e, dessa maneira, estabelece uma analogia entre o jogo e a
linguagem, inclusive, em relação ao modo com que ambos são guiados por
regras - Wittgenstein considera que se pode aprender um jogo assistindo como
outros jogam. E, desta forma, dizemos que ele é jogado de acordo com tais
regras, porque um observador pode ler estas regras a partir da prática do jogo -
tal como ocorre na linguagem, nos contextos comunicativos.
A contribuição de Bruner (1991) ao nosso estudo relaciona-se às suas
pesquisas que correlacionam o jogo e o desenvolvimento de competências
cognitivas e linguísticas pelas crianças, já que o pesquisador americano aponta
a potencialidade da brincadeira para a descoberta das regras e aquisição da
linguagem: ao repetir a brincadeira nos contatos interativos com adultos, a
criança descobre a regra, ou seja, a sequência de ações que compõem a
modalidade do brincar, e não só a repete, mas toma iniciativa, altera sua
sequência ou introduz novos elementos. Tais brincadeiras interativas
contribuem com o desenvolvimento cognitivo e, ao mesmo tempo, com o
aprendizado dos atos de linguagem que o acompanham.
Para o autor, a utilização combinatória da linguagem, durante as
brincadeiras, funciona como instrumento de pensamento e ação. Assim, para
ser capaz de falar sobre o mundo, de explicar e argumentar sobre ele (e, dessa
forma, desenvolver suas competências cognitivas/linguísticas), a criança
precisa saber brincar com o mundo com a mesma desenvoltura que caracteriza
a ação lúdica.
4.Explorando as condutas de negociação interpessoal nas interações
conversacionais infantis.
É quando a criança habitua-se a agir do ponto
de vista dos próximos, e preocupa-se mais em
agradá-los do que a eles obedecer, que ela
chega a julgar em razão das intenções.
(Piaget)
De acordo com Kerbrat-Orecchioni (2006), a construção das
conversações é regida por regras de natureza diversa e culturalmente
variáveis. Todavia, a aplicação dessas regras permite que os interlocutores
improvisem e construam um texto conversacional de tal modo que nunca
saberemos, num tempo T1, como ele se parecerá em um tempo T2. Nesse
sentido, quanto mais flexível for um sistema de regras, mais ele deixará espaço
para a negociação.
A autora (op. cit., p.141) considera que as negociações podem ser
encontradas em todos os níveis de funcionamento da interação e, dessa forma,
podemos negociar:
- o contrato de comunicação;
- o tipo de troca no qual nos encontramos envolvidos;
- seu cenário global;
- sua organização local;
- a alternância dos turnos de fala;
- os temas da conversação;
- a adequação dos signos produzidos;
- a significação das palavras e dos enunciados;
- as opiniões emitidas de ambos os lados;
- os diversos aspectos da relação interpessoal
Tannen (1994, p.9) considera que existem estratégias linguísticas
observadas nas interações que são capazes de refletir e de, ao mesmo tempo,
criar o envolvimento interpessoal em uma conversação. Dentre tais estratégias,
a autora ressalta a utilização da repetição, da criação de imagens pelos
interlocutores para construir o sentido daquilo que está sendo comunicado e do
diálogo — entendido aqui não como o diálogo em si, que seria a troca de
turnos conversacionais, mas como a natureza polifônica de cada proferimento,
de cada palavra. Assim, o diálogo seria construído por diferentes vozes
(polifonia) a que os falantes se referem para construir o sentido da conversação
e, simultaneamente, criar envolvimento interpessoal.
Contudo, algumas vezes, os participantes de uma conversação
simplesmente não querem colaborar um com o outro. Nesse sentido, Roulet et
alii (1985, p. 203) estabelecem distinção entre atividade colaborativa e
atividade cooperativa:
Cooperar é agir dentro dos pressupostos racionais dos
empreendimentos mútuos, ao passo que colaborar é agir de
acordo com a natureza substantiva das demandas
conversacionais. (...) A cooperação é uma espécie de
fundamento da interação ao passo que a colaboração é um traço
qualitativo.
Por isso, um comportamento colaborativo ou não-colaborativo é
necessariamente cooperativo; um comportamento não-cooperativo não é
colaboração nem não-colaboração. Quando, na interação, um interlocutor
intervém e se nega a colaborar com outro interlocutor, ele está cooperando e
mantendo a interação.
A seguir, discutiremos estratégias linguísticas e interpessoais que
podem ser observadas nos processos de negociação das interações
conversacionais infantis analisadas, a saber: a presença do desacordo (ou
conflito) como estimulador das negociações interpessoais; a emergência da
regulação do discurso do interlocutor; os movimentos de ameaça e
preservação das faces dos interactantes, e as estratégias de polidez linguística
que podem ser observadas pelos participantes da interação, rumo à
negociação de um acordo.
4.1 Acordos e desacordos no processo de negociação.
Bonica (1990), em seu estudo sobre as negociações interpessoais entre
crianças, no contexto do jogo de ficção, considera que, do ponto de vista da
forma da interação, cada mensagem pode veicular quatro tipos de informações
possíveis:
o acordo (―você tem razão‖);
o desacordo (―você não tem razão‖);
a desvalorização (―eu não te reconheço como emissor‖, ―eu ignoro o que você diz‖,
ou ainda: ―eu não te reconheço como um ser que pode ter pensamentos,
intenções, emoções que podem influenciar o outro‖);
a dupla injunção (―eu exprimo sentimentos contraditórios que te impedem de
compreender se eu estou de acordo ou não‖).
Para a autora, a finalidade principal da negociação, a propósito da relação
interpessoal, é a defesa da integridade cada participante. Cada réplica entre os
pares é assim interpretada em função do seu valor de perigo ou de
preservação e podemos, aqui, estabelecer uma analogia com a teoria de
ameaça/preservação das faces de Goffman (1970).
Cada réplica contribui com a definição das características da relação
(por exemplo: mais ou menos simétrica ou complementar) e com o
desenvolvimento da coordenação das significações, através das
transformações trazidas ao conteúdo da interação. A dimensão interpessoal,
por isso, está sempre presente, mesmo quando não há conflitos e mesmo que
ela seja mais visível ao observador. Neste último caso, os participantes se
confirmam reciprocamente nas suas interpretações e este equilíbrio, no nível
interpessoal, permite-lhes avançar nas trocas, o que é mais ou menos
dificultoso no nível dos conteúdos. O conflito, todavia, pode surgir a qualquer
momento, tanto devido à interpretação do conteúdo, como devido à definição
da relação interpessoal. Quando o desequilíbrio atinge a segurança emocional,
o objeto da negociação se desloca para a relação interpessoal, a fim de que o
desequilíbrio seja reduzido. Se os participantes desejam permanecer juntos,
eles se encontram obrigados a abordar o problema de uma mudança que diga
respeito aos estados intra- e interpessoais. Neste caso, as estratégias para
mudar a situação interativa vão interferir nas estratégias de coordenação a
respeito do conteúdo.
A discriminação entre o valor do acordo e do desacordo das proposições
trocadas mostra, acima de tudo, a capacidade dos interlocutores para entrarem
em um acordo no nível da comunicação: afinal, discute-se o conteúdo ou a
relação? Neste contexto teórico, os conflitos e suas resoluções parecem
particularmente reveladores dos mecanismos reguladores das relações
interpessoais.
Nessa direção, Aquino (2008, p. 362) considera que acordo e desacordo
são constitutivos da interação verbal:
(...) seu encaminhamento depende de quem sejam os
interlocutores, dos objetivos da interação, do contexto em que se
desenvolve a ação, das regras que determinado evento
comporta e das normas sociais estabelecidas, por um grupo, por
determinada cultura.
Em sua tese de doutorado sobre conversação e conflito, Aquino (1997,
p.127) se inspira em Goffman (1967) ao questionar se toda negociação seria
associada ao conflito (ou desacordo):
Um conflito inicial dá origem a uma ―iniciativa‖ a qual provoca
uma ―reação‖ que pode ser favorável ou desfavorável. Se
favorável, haverá um acordo‖, encerrrando-se a negociação;
caso contrário, continuam as iniciativas até que surja um acordo,
ainda que ―parcial‖, ou até mesmo um acordo sobre a
impossibilidade de se chegar a um acordo.
Retornando ao estudo de Bonica (1990), verificamos que certas
competências pragmáticas podem emergir durante as conversações entre
crianças, nos jogos de ficção, principalmente em virtude da negociação
interpessoal que se associa às interações nesse contexto, após o surgimento
de um desacordo/conflito. No início do jogo, é comum o aparecimento da
ambiguidade, devido ao estabelecimento da posição inicial dos jogadores e da
exploração recíproca dos espaços de tolerância, podendo gerar, inclusive, os
mal-entendidos.
Em seguida, a autora cita o aparecimento do controle retroativo sobre o
processo de interação, ou seja, podem ocorrer operações através das quais os
sujeitos adquirem as informações sobre o desenvolvimento da interação
precedente e utilizam essas informações para introduzir mudanças na
interação em curso. Um exemplo desse controle retroativo se refere à repetição
das estratégias precedentes, quando surge a proposta de reestruturação do
cenário do jogo.
Na sequência da interação, verifica-se a ativação dos mecanismos de
autocorreção do sistema interacional, também chamado de metanegociação. A
autocorreção emerge com o intuito de que haja o restabelecimento das
condições de comunicação, após um conflito com o outro. Finalmente, como
uma consequência, estabelece-se a negociação produtiva na interação.
Embora verifiquemos que a negociação seja um aspecto central para a
produção de sentidos na interação verbal enquanto projeto conjunto, isto é,
construída conjuntamente pelos interactantes, Marcuschi (1998, p.19) nos
lembra que nem tudo é negociável:
(...) por exemplo, não negociamos crenças nem convicções, o
que tem consequências por vezes relevantes na continuidade de
um tópico e pode ditar sua morte. Pois a atenção dos falantes
para a qualidade de suas relações (preservação das faces, por
exemplo) pode sacrificar um tópico ao perceberem que não há
condições de consenso: a única forma de cooperar é o aborto do
tópico.
Todavia, antes que o tópico/assunto em questão seja definitivamente
abandonado, sempre há a possibilidade da tentativa do acordo, da negociação,
como se os interactantes fizessem parte de um jogo: ―interagir é jogar com
regras dinamicamente escolhidas, por isso é um jogo perigoso: nem sempre se
escolhe a regra certa‖ (MARCUSCHI, 1998, p.30).
Para Hilgert (2008), em uma conversação, os interlocutores se
empenham em buscar, conscientemente, a intercompreensão, a fim de
atingirem uma comunicação bem-sucedida. Contudo, muitas vezes, pode
ocorrer que, apesar das estratégias preventivas utilizadas pelos interlocutores
para se fazerem compreender, problemas de compreensão se instalem no
decurso da interação:
Denuncia-se esse fato quando, por exemplo, um interlocutor
sinaliza, verbalmente ou não, um problema de compreensão no
enunciado do outro. Este, então, geralmente reformula, em parte
ou no todo, o seu enunciado, com vistas tanto a resolver o
problema, quanto a viabilizar o prosseguimento da interação.
4.2 A regulação do discurso
Para a análise de nossa pesquisa, privilegiaremos também a importante
noção de ―regulação do discurso‖, desenvolvida por Caron (1983).
O autor considera que, na conversação, podemos estabelecer uma
analogia com o ―jogo‖: cada ―jogada‖ (cada ato de enunciação) estabelece uma
situação nova ou, mais exatamente, uma modificação mais ou menos radical
da situação precedente; a partir daí, definem-se as restrições/regulações que
permitirão ou proibirão uma ou outra ―jogada‖ posterior, e assim
sucessivamente. Contudo, em um jogo, o objetivo é ganhar — e no discurso, o
objetivo seria o mesmo?
A fim de responder a essa questão, o autor considera que o discurso,
em geral, inscreve-se em um conjunto de atividades, físicas ou sociais, com a
intenção de induzir ou modificar atitudes, comportamentos, crenças, etc. Assim,
o seu objetivo, na maioria das vezes, é extralinguístico ou perlocutório.
Contudo, pode-se conceber uma finalidade interna no discurso: a de criar uma
certa situação discursiva em que as relações entre os enunciadores e
referentes se estabeleçam conforme o objetivo buscado, supondo, dessa
forma, uma cooperação, no sentido das máximas conversacionais — teoria
proposta inicialmente por Grice, em 1975. E essa ideia de construção
progressiva de uma situação discursiva permite, de acordo com Caron,
introduzir a noção de regulação.
Para o autor, as regulações discursivas podem exercer duas funções ao
longo do processo discursivo: uma função de guia, coordenando os sucessivos
atos pelos quais se constrói a situação discursiva buscada; e uma função de
compensação, corrigindo as perturbações (reais ou virtuais) introduzidas pelo
interlocutor, ou os erros cometidos pelo locutor. Assim, verificamos que a
noção de regulação do discurso se refere ao conjunto das intervenções
discursivas que permitem que a atividade dialógica se desenvolva, de acordo
com as respectivas intenções dos interlocutores.
Nesta direção do estudo de Caron, buscaremos também apoio teórico
em Préneron (2004), que considera a regulação do discurso como um gênero
dialógico, quando existe uma dominância da função reguladora das
intervenções discursivas. A autora estabelece três tipos diferentes de regulação
presentes nas interações conversacionais: a regulação da atividade em que os
interlocutores estão engajados, a regulação da comunicação e a regulação do
comportamento. Em relação à regulação da atividade, Préneron relaciona
ainda três tipos de modos interativos, a saber: ―posicionar-se‖, ―demandar‖ e
―dar sentido‖.
A autora afirma que, quando está engajada em uma atividade com o
outro, a criança aprende a utilizar a linguagem para fazer, para dizer, para
manifestar seu acordo ou desacordo, sua compreensão ou incompreensão
daquilo que lhe é comunicado. Além disso, as crianças, para serem entendidas,
devem se fazer compreender e regular a comunicação e, assim, diferentes
procedimentos estão à sua disposição. Por fim, as suas intervenções podem
dizer respeito à regulação do comportamento, ou seja, a adequação das
atitudes às normas sociais. Para fazer isso, a criança pode intervir de acordo
com modalidades variáveis e utilizando diferentes tipos de atos de linguagem.
Assim definida, a regulação participa daquilo que se pode designar como
um gênero dialógico, no sentido que se trata de um diálogo e não de uma
atividade. O diálogo orienta e organiza a atividade, efetuando assim uma
regulação linguageira dela. É a dominância da função reguladora das
intervenções discursivas que permite que se fale da regulação como um
gênero dialógico. Outros contextos interativos (o interrogatório, a descrição, a
discussão, a argumentação...) podem implicar a dominância de outros gêneros
dialógicos. Além disso, os diálogos se distinguem entre eles segundo o
conteúdo sobre o qual tratam e segundo o modo como a progressão da troca
está organizada (pergunta/resposta, afirmação/afirmação, iniciativa/reação...).
Mesmo quando a interação se inscreve no contexto de uma atividade
específica, as trocas verbais se desdobram em torno de diferentes campos
temáticos iniciados pelo adulto ou pela criança, relacionados à situação
presente ou a outros objetos do discurso. Contudo, a noção de gênero
dialógico e de tema não se confundem totalmente: um mesmo tema pode ser
―dialogado‖ de acordo com diferentes gêneros ou, para dizer as coisas de outro
modo, e retomando o ponto de vista de François (1987), existem muitas
oportunidades para se organizar o que se pretende falar.
4.3 Os FTAs (Face Threatening Acts) e a cortesia verbal no discurso
infantil.
Entendemos, assim como Brait (1999, p.194), que a abordagem
interacional de um texto permite que verifiquemos relações interpessoais,
intersubjetivas que subjazem a um determinado evento conversacional, e isto
significa:
(...) observar no texto verbal não apenas o que está dito, o que
está explícito, mas também as formas dessa maneira de dizer
que, juntamente com outros recursos, tais como entoação,
gestualidade, expressão facial etc., permitem uma leitura dos
pressupostos, dos elementos que, mesmo estando implícitos se
revelam e mostram a interação como um jogo de subjetividades.
Nesse sentido, torna-se interessante observar que, nas interações
conversacionais espontâneas, os interlocutores, em geral, pretendem que sua
imagem pública seja preservada, ou ainda que aquilo que eles desejam
comunicar seja respeitado e valorizado, sem que sofram imposições. Assim,
com o intuito de efetivar a auto-preservação de sua imagem, um falante pode
utilizar recursos que tornem a interação com o outro mais equilibrada, de modo
que se evitem as imposições/contrariedades tanto em relação à sua fala (e,
mais amplamente, à sua pessoa), quanto em relação ao seu interlocutor. Um
desses recursos é o da cortesia (ou polidez) linguística.
Dentre os estudos sobre polidez linguística, a teoria da preservação das
faces é a que se mostra mais claramente articulada. Tal visão da polidez fora
preconizada por Brown e Levinson (1987), que retomam e ampliam a
conceituação de face proposta por Goffman (1970), para quem aquela poderia
ser definida como o valor social positivo que uma pessoa reivindica para si
mesma. Assim, todo ser social possuiria uma face negativa e uma positiva e,
aqui, recorremos a Silva (1998, p.13) para diferenciá-las:
a) face negativa: envolve a contestação básica aos territórios, reservas
pessoais e direitos; em outras palavras, a liberdade de ação e liberdade de
sofrer imposição. É o desejo de não ser impedido em suas ações, por isso a
preservação da face negativa implica a não-imposição do outro;
b) face positiva: representa a auto-imagem definida ou personalidade (incluindo
principalmente o desejo de que esta auto-imagem possa ser aprovada e
apreciada) de que os interlocutores necessitam. É o desejo de aprovação
social e de auto-estima.
Brown e Levinson (1987), a partir da teoria de ameaça/preservação das
faces, diferenciam e caracterizam as diferentes estratégias lingüísticas de
polidez da seguinte maneira:
polidez positiva: quando se observa uma compensação em relação à
face positiva do interlocutor, isto é, uma satisfação parcial das
aspirações do interlocutor;
polidez negativa: utilização de expressões com o intuito de se evitar
imposições/contrariedades em relação ao interlocutor;
polidez off record: representada por atos comunicativos indiretos,
evasivos.
Brown e Levinson (1987) ainda exemplificam as estratégias linguísticas
correspondentes a cada um dos três tipos de polidez. Assim, para que a
polidez positiva esteja inscrita em um enunciado, pode-se lançar mão das
seguintes iniciativas:
Manifeste atenção ao interlocutor;
Exagere na aprovação e simpatia pelo interlocutor;
Intensifique seu interesse pelo interlocutor, por exemplo, recorrendo aos
fáticos;
Utilize marcadores de identidade intragrupo;
Busque acordo com o interlocutor, repetindo parte do que ele diz, para
mostrar que o entende e aprova;
Evite discordância;
Dê a entender que os conhecimentos são compartilhados;
Pressuponha, assevere;
Pressuponha familiaridade na relação locutor-interlocutor;
Faça-lhe oferecimentos e promessas;
Seja otimista;
Inclua tanto locutor como interlocutor na atividade conversacional
Dê ou peça razões, justifique-se;
Reivindique reciprocidade;
Satisfaça as aspirações e necessidades do interlocutor com presentes.
Para que a polidez negativa seja colocada em prática, os autores
afirmam que as seguintes medidas podem ser tomadas:
Seja convencionalmente indireto;
Recorra aos modalizadores (hedges), isto é, seja evasivo, não se
comprometa;
Seja pessimista;
Minimize a imposição;
Mostre deferência;
Peça desculpas;
Impessoalize locutor e interlocutor para indicar que o locutor não quer
impingir algo ao interlocutor;
Afirme o FTA (ato ameaçador da face) como uma regra geral;
Nominalize;
Ofereça compensações.
Mas, caso o intuito seja utilizar a polidez off record, os autores
apresentam as seguintes possibilidades:
Forneça pistas e sugestões indiretas;
Dê pistas de associação;
Pressuponha;
Minimize a expressão, isto é, não diga tudo;
Exagere sua expressão (hipérbole);
Recorra à tautologia;
Recorra a contradições;
Seja irônico;
Use metáforas;
Utilize perguntas retóricas;
Seja ambíguo;
Seja vago;
Generalize;
Faça uma substituição do destinatário;
Recorra à elipse.
Também é necessário reconhecermos que tipo de ato linguístico é capaz
de produzir uma ameaça à face, positiva ou negativa, do interlocutor ou do
próprio locutor. Dessa forma, Fraser (1990, p. 229-230) exemplifica os
diferentes FTAs (Face Threatening Acts, ou, em português: atos ameaçadores
da face), que podem ser:
atos que ameaçam a face negativa do ouvinte (ex.: pedidos, avisos,
ameaças, advertências);
atos que ameaçam a face positiva do ouvinte (ex.: queixas, críticas,
desaprovação, levantamento de assuntos ―tabu‖);
atos que ameaçam a face negativa do falante (ex.: aceitar um
oferecimento, aceitar um agradecimento, prometer relutantemente)
atos que ameaçam a face positiva do falante (ex.: pedidos de desculpa,
aceitar elogios, confessar-se).
Também são importantes para nosso estudo as distinções que Goffman
estabelece entre três tipos de responsabilidade diante da ameaça à face.
Assim, de acordo com Silva (1998, p.112), no primeiro tipo, o interlocutor que
ameaça a face do outro age com certa ingenuidade, ou seja, a ameaça à face é
involuntária — caso o indivíduo tivesse previsto as consequências ofensivas,
teria evitado a situação. Já no segundo tipo, a ameaça provém da malícia ou
da clara intenção de provocar um insulto. O terceiro tipo é caracterizado por
uma ameaça provocada por ofensas acidentais, nas quais o indivíduo que
ameaça sabe da possibilidade de se colocar em risco a face, mas não o faz
intencionalmente, e sim porque a situação exige a ameaça.
Há, contudo, uma importante distinção entre polidez e atenuação,
estabelecida por Fraser (1980). Enquanto a atenuação implica a redução dos
efeitos indesejados daquilo que é dito para o ouvinte, a polidez, por outro lado,
refere-se a um fenômeno mais extenso, envolvendo a adequação do que foi
dito pelo falante em determinado contexto. Atenuar significaria, assim, suavizar
os efeitos de uma ordem, facilitar o anúncio de más notícias ou fazer uma
crítica de modo mais aceitável.
Para o autor, embora polidez e atenuação frequentemente sejam
encontradas juntas, podemos, ainda assim, ilustrar suas diferenças. Assim, em
uma situação em que, por exemplo, o autor seja o moderador de um pequeno
seminário, se ele dissesse a um dos participantes ―eu apreciaria se você
pudesse se sentar‖, estaria atenuando a força de seu pedido e, do mesmo
modo, tê-lo-ia feito de modo polido. Se, contudo, ele dissesse: ―sente-se e cale
a boca‖, não teria realizado uma atenuação nem teria sido cortês em seu
proferimento. Já ao dizer ―por favor, sente-se‖ , teria feito um pedido com uma
certa polidez mas que teria sido proferido de modo relativamente não-
atenuado.
Fraser (1980) destaca que atenuação não é o mesmo que fazer ―rodeios‖
ou ―esquivas‖. Lakoff (1972), por exemplo, propõe que expressões como ―do
tipo de”, ―mais ou menos”, ―um pouco”, ―em grande medida”, etc, podem ser
agrupadas sob o termo ―esquivas‖. Mas estas expressões, para Farser (1980)
artigo, não constituem, por si, exemplos de atenuação — palavras de
esquiva/imprecisas podem apenas contribuir com a criação de um efeito
atenuante.
A motivação para que a atenuação ocorra, de acordo com Fraser (op. cit)
recai sobre duas categorias: a autosservidora e a altruísta. A primeira
considera os efeitos de um ato de fala no ouvinte, como ao ordená-lo a realizar
uma tarefa desagradável. Neste caso, ao atenuar seu enunciado, o falante
indica um desejo de ser dispensado da execução deste ato. Há um segundo
tipo de atenuação autosservidora na qual o falante quer se esquivar de um
problema, fazendo com que o ato de fala tenha implicações sobre suas
crenças.
Já na atenuação altruísta, ao invés de o falante modificar um efeito que
em última instância pode afetá-lo, a intenção é a de apenas suavizar o efeito
que o proferimento causa diretamente no ouvinte.
A pesquisadora Pridham (2001) considera que, para estruturar
claramente uma conversação e para assegurar que a informação seja
transmitida eficientemente, falantes e ouvintes trabalham juntos, utilizando o
princípio da cooperação. Assim, em uma conversação cooperativa, os falantes
trabalham conjuntamente de forma a tranquilizar e ajudar uns aos outros.
Existem muitas técnicas usadas para mostrar concordância com o falante, com
o objetivo de encorajar novas falas. Os falantes também checam
constantemente se eles estão sendo compreendidos adequadamente, bem
como modificam o que eles disseram a fim de melhorar a compreensão do
interlocutor. Os falantes ainda podem compartilhar pressuposições mútuas e
podem se unir em uma avaliação conjunta da conversação. A autora considera
que, às vezes, o papel social de um falante lhe dá a autoridade para desafiar
os outros, como acontece em uma relação professor/alunos. No entanto,
existem maneiras de se apresentar o desafio que são mais ou menos
aceitáveis pelo interlocutor que está sendo desafiado: esses métodos mostram
a necessidade de se respeitar as convenções de polidez de cada cultura.
Pridham (2001) afirma que, na prática, nós temos de fazer uma escolha
e sustentar um balanço entre transmitir uma mensagem diretamente, o que
deve desafiar alguém, e transmitir uma mensagem indiretamente, o que é mais
polido, mas, algumas vezes, pode significar que a própria mensagem é
perdida.
Na verdade, podemos escolher uma variedade de expressões que
refletem diferentes graus de polidez e preservação de face. O comando direto:
―feche a porta‖, por exemplo, não respeita o direito da outra pessoa de ter
controle sobre seu próprio corpo. Para a autora, comandos diretos como este
são emitidos somente por pessoas de nível hierárquico superior em relação
aos seus inferiores.
O número de esquivas ou fatores de polidez em um pedido ou comando
é proporcional à quantidade de imposição que o falante sente que está
praticando sobre o ouvinte. Assim, a frase: ‖se não for muito incômodo, quero
dizer, se você não se importar, eu ficaria muito grato se você pudesse digitar
este texto‖, parece ridícula porque existem muitos fatores de polidez utilizados
em relação à dificuldade da tarefa solicitada. Às vezes, para preservar a face, o
falante faz um pedido tão impessoal e indireto quanto possível, como no
exemplo: ―se esta carta fosse datilografada, eu ficaria muito grato‖.
Para Pridham, um falante também pode respeitar o sistema de valores
do ouvinte insinuando que é um membro do grupo de seu interlocutor. Isso
pode ser feito das seguintes maneiras:
Utilizando pronomes pessoais, como nós.
Utilizando o vocabulário do ouvinte.
Utilizando pseudo-concordâncias que evitam dizer ―não‖ ou discordar do
falante.
Lakoff (1998) afirma que a comunicação de idéias, que alguns
poderiam considerar como um aspecto mais sociológico que linguístico,
produz-se por meios linguísticos. Portanto, na opinião da autora, o conteúdo
pragmático de um ato de fala deveria ser considerado ao se determinar a sua
aceitabilidade, da mesma forma como se tem feito em relação ao material
sintático e, mais recentemente, ao material semântico. Nesse sentido, Lakoff
resumiu a polidez em três máximas:
Não importune.
Ofereça alternativa ao ouvinte (dê opção).
Faça com que o ouvinte se sinta bem — comporte-se amigavelmente.
As máximas de polidez, de acordo com este pesquisador, são
universais. O que pode variar é o distinto predomínio de cada uma delas, de
acordo com os costumes de cada cultura.
Haverkate (1994) pondera que a cortesia representa um tipo de
comportamento regido por princípios de racionalidade e os participantes da
conversação atuam sempre guiados por esses princípios, justamente para
evitar que a conversação se deteriore.
No que se refere à realização polida do ato de fala, estão em vigência as
seguintes correlações:
1. A cortesia aumenta na medida em que é maior a distância entre falante
e ouvinte;
2. A cortesia aumenta na medida em que é maior o poder do ouvinte sobre
o falante;
3. A cortesia aumenta na medida em que é maior o grau de imposição.
No caso específico das interações conversacionais infantis, torna-se
necessário considerar que as estratégias linguísticas de cortesia verbal
empreendidas associam-se ao contexto sociocultural no qual elas se
desenvolvem.
Em uma pesquisa empírica com crianças de 6, 9 e 12 anos, La Taille
(2001) constata que a polidez faz parte do universo moral da criança desde
muito cedo, já que os dados da citada pesquisa mostraram que:
a) a polidez pertence ao universo moral das crianças de 6 a 12 anos, mas
com a peculiaridade de sua ausência não merecer castigo;
b) que a falta de polidez é, para as crianças de 6 anos, um indício para se
julgar o caráter moral de uma pessoa e deixa de sê-lo para as crianças
de 12 anos, com uma fase de transição aos 9 anos e
c) que a falta de polidez é vista como conduta de uma certa gravidade nas
três faixas etárias.
Snow et al. (1990), por outro lado, investigaram o modo como as crianças
adquirem esse complexo e abstrato sistema da polidez linguística. Os autores
consideram que, tal como a gramática, por exemplo, o sistema de polidez é
mais um sistema linguístico que está disponível às crianças nas interações em
que elas estão imersas no cotidiano. Portanto, elas aprendem as estratégias
linguísticas da cortesia verbal pela observação e pela própria interação com
seus pares e com os adultos.
5. Material e Método
A ciência é a tentativa de fazer com que a
diversidade caótica da nossa experiência sensível
corresponda a um sistema lógico uniforme do
pensamento.
(Einstein)
Neste capítulo descreveremos a metodologia de pesquisa que utilizamos
neste projeto, bem como o material selecionado para a coleta de dados na
pesquisa de campo.
5.1 Material
Como instrumento para a coleta de dados de nossa pesquisa, utilizamos
jogos de construção adequados para a idade dos pares de sujeitos a serem
analisados (pares de crianças de 5, 8 e 10 anos de idade). Com o objetivo de
realizar esta adequação dos jogos, realizamos observações na ―Brinquedoteca‖
da Faculdade de Educação da USP (FEUSP), preocupando-nos também com a
aceitação dos jogos, tanto por meninas, quanto por meninos, uma vez que a
interação ocorreu em pares heterogêneos em relação ao sexo das crianças. A
partir dessas observações realizadas na Brinquedoteca da FEUSP, foram
propostos os seguintes jogos aos sujeitos de nossa pesquisa:
para as crianças de 5 anos: “Brincando de Engenheiro” - jogo de
construção, com peças de madeira;
para as crianças de 8 anos: “Lego” – jogo de construção, com peças de
plástico;
para as crianças de 10 anos: “Lego” e “Megamag” – jogo de construção,
com a utilização de barras e imãs.
Optamos pela utilização de jogos de construção nas três faixas etárias
(apenas variando o grau de dificuldade do jogo de construção em relação à
idade) em virtude de serem brinquedos que possibilitam a livre criação de
regras associadas a esses jogos, estimulando, assim, a interação
conversacional entre as crianças e, possivelmente, a emergência de situações
em que a negociação interpessoal/conversacional se fizesse necessária.
Além disso, o jogo de construção permite a mobilização de situações
imaginárias pelas crianças durante a interação, ou seja, possibilita o
surgimento de elementos de ficção/faz-de-conta.
Piaget (1971) introduz o termo ―jogo simbólico‖ para se referir às situações
que impliquem a representação de um objeto por outro, a atribuição de novos
significados a vários objetos, a sugestão de temas, ou a adoção de papéis. O
jogo simbólico, para Piaget, apresenta-se inicialmente solitário, evoluindo para
o estágio de jogo sociodramático, isto é, para a representação de papéis.
Os termos simbólico, representativo, imaginativo, fantástico, de simulação,
de ficção ou faz-de-conta podem ser vistos como sinônimos, desde que sejam
empregados para descrever o mesmo fenômeno: o da simulação (Bomtempo,
2005).
5.2 Método
A pesquisa compreendeu dois momentos distintos:
I. a etapa da realização da pesquisa-piloto, em que testamos as categorias de
análise propostas em situações interativas de jogo;
II. a etapa da pesquisa propriamente dita, que foi orientada pelos resultados
obtidos na pesquisa-piloto. Nesta fase, foi realizada a análise qualitativa dos
dados coletados na pesquisa de campo.
A seguir, citamos os procedimentos que foram adotados nestas duas
etapas.
a) A escolha dos sujeitos.
Para as gravações da pesquisa-piloto foi selecionado um par de
crianças, ambas com 5 anos de idade (um menino e uma menina), alunos da
Educação Infantil da Creche Central da Universidade de São Paulo.
Da pesquisa de campo definitiva, participaram doze crianças como
sujeitos: dois pares de crianças de 5 anos (alunos de Educação Infantil da
Creche Central da USP); 2 pares de crianças de 8 anos e dois pares de
crianças de 10 anos (alunos do Ensino Fundamental da Escola de Aplicação da
FE-USP), respectivamente, totalizando 6 gravações com 6 pares de crianças. A
intenção foi observar o comportamento discursivo — de meninos e meninas —
de maneira evolutiva, em relação à sua idade.
Optamos pela realização das gravações com sujeitos provenientes da
Creche Central da Universidade de São Paulo e da Escola de Aplicação da FE-
USP, em virtude da já tradicional aceitação de pesquisadores das mais
variadas áreas do conhecimento no dia-a-dia dessas instituições.
Ressaltamos que os procedimentos de escolha dos sujeitos e de
realização da coleta de dados obedeceram aos padrões éticos do Comitê de
Ética na Pesquisa da FEUSP, expostos no documento ―Padrões Éticos na
Pesquisa em Educação: primeiro documento‖, que pode ser acessado no
seguinte website: www.fe.usp.br.
b) A coleta e a transcrição dos dados.
Foram realizadas, tanto na etapa da pesquisa-piloto, como na coleta
definitiva dos dados, gravações em áudio de cada par de crianças, na presença
do adulto (pesquisadora). Utilizamos um gravador digital de voz para registrar
as sessões. Cada sessão foi constituída da gravação de um evento lúdico
completo - isto é, pela abertura, desenvolvimento e finalização do jogo – e teve
a duração média de 40 minutos. Para a análise definitiva foram utilizadas 6
gravações com 6 pares de crianças (2 pares de crianças de 5 anos de idade, 2
pares de 8 anos e 2 pares de 10 anos).
As gravações supracitadas foram transcritas posteriormente, de acordo
com as Normas para Transcrição, comumente utilizadas pelos pesquisadores
do Projeto NURC/SP — Projeto de Estudo da Norma Linguística Urbana Culta
de São Paulo — que constam em Preti (1999, p. 11), e que podemos conferir
na tabela a seguir:
Tabela 2. Normas para transcrição (Projeto NURC/SP)
OCORRÊNCIAS SINAIS
Incompreensão de palavras ou segmentos ( )
Hipótese do que se ouviu (hipótese)
Truncamento (havendo homografia, usa-se
acento indicativo da tônica e/ou timbre)
/
Entonação enfática Maiúscula
Prolongamento de vogal e consoante (como s, r) :: podendo aumentar para :::: ou mais
Silabação -
Interrogação ?
Qualquer pausa ...
Comentários descritivos do transcritor ((minúscula))
Comentários que quebram a sequência temática
da exposição; desvio temático. -- --
Superposição, simultaneidade de vozes
[ Ligando
as linhas
Indicação de que a fala foi tomada ou
interrompida em determinado ponto. Não no seu
início, por exemplo.
(...)
Citações literais ou leituras de textos, durante a
gravação
― ‖
Observações:
1. Iniciais maiúsculas: só para nomes próprios ou para siglas.
2. Fáticos: ah, éh, ahn, ehn, uhn, tá.
3. Nomes de obras ou nomes comuns estrangeiros são grifados.
4. Números: por extenso.
5. Não se indica o ponto de exclamação.
6. Não se anota o cadenciamento da frase.
7. Podem-se combinar sinais. Por exemplo: oh::::... (alongamento e
pausa).
8. Não se utilizam sinais de pausa, típicos da língua escrita, como
ponto-e-vírgula, ponto final, dois-pontos, vírgula. As reticências
marcam qualquer tipo de pausa.
c) Delimitação da natureza da pesquisa.
Posteriormente à transcrição dos dados coletados, empreendemos uma
análise de cunho qualitativo de amostras de conversação entre as crianças
e/ou entre as crianças e a pesquisadora. Entendemos a pesquisa qualitativa
conforme os termos de Patton (1986 apud Alvez-Mazzotti e Gewandsznajder,
1998, p. 131): para o autor, a principal característica das pesquisas qualitativas
é o fato de que estas seguem a tradição interpretativa. Dessa posição,
decorrem três características essenciais aos estudos qualitativos que nos
guiaram ao longo de todo o processo de nossa pesquisa:
a) visão holística: parte do princípio de que a compreensão do
significado de um comportamento ou evento só é possível em função
da compreensão das inter-relações que emergem de um dado
contexto;
b) abordagem indutiva: pode ser definida como aquela em que o
pesquisador parte de observações mais livres, deixando que
dimensões e categorias de interesse surjam progressivamente
durante os processos de coleta e análise dos dados;
c) investigação naturalística: é aquela em que a intervenção do
pesquisador no contexto observado é reduzida ao mínimo.
No caso da nossa pesquisa, mantivemo-nos presentes ao longo de todas as
gravações das brincadeiras entre os sujeitos. Todavia, procuramos intervir o
mínimo possível na interação, exercendo apenas uma função de tutela para
que a brincadeira ocorresse efetivamente entre as crianças.
Nesse sentido, Bruner (1991, p. 277-279) afirma que as exigências da
tutela condicionam-se à interação, e esclarece que as funções do tutor, nessa
interação com a criança, podem ser assim delineadas:
engajamento:motivação para que a criança realize a atividade;
redução dos graus de liberdade;
manutenção da orientação: cabe ao tutor manter o interesse da criança
pela atividade e pelo alcance do objetivo definido;
sinalização das características determinantes: o tutor assinala as
características da atividade que são pertinentes para sua execução;
controle da frustração: encorajamento da criança para que ela prossiga
a tarefa;
demonstração: apresentação de uma solução para uma tarefa
parcialmente executada pela criança, que não obteve êxito.
Após a coleta e transcrição dos dados, selecionamos para a análise os
excertos mais significativos em relação aos processos de negociação
interpessoal que eventualmente surgiram nas interações.
d) Categorias de análise.
A partir das áreas de estudo que elegemos para respaldar a nossa
pesquisa sobre a negociação interpessoal infantil (Análise da Conversação,
Psicolinguística e Pragmática), e dos respectivos autores selecionados,
extraímos as categorias de análise visualizadas na Tabela 3, que nos nortearão
no momento da análise e interpretação dos dados coletados — ainda que não
nos tenhamos limitado a tais categorias, devido à própria natureza qualitativa e
interpretativa do tratamento dos dados que adotamos na presente pesquisa.
Tabela 3: Categorias de Análise
Categoria selecionada Autor Área
Acordos e desacordos
durante a interação
conversacional infantil.
Bonica (1990)
Psicolinguística/Análise da
Conversação
Sobreposições de vozes,
interrupções, digressões,
assaltos ao turno.
Marcuschi (1998) e
Kerbrat-Orecchioni
(2006), Preti e Urbano
(1990), Castilho (2010)
Análise da Conversação
Teoria da mente
(adoção da perspectiva do
interlocutor/crenças de
segunda ordem)
Tomasello (2005), Perner
& Wimmer (1985)
Psicolinguística
Processos de regulação
discursiva: função de guia e
função compensatória.
Caron (1983); Préneron
(2004)
Psicolinguística
Implicaturas conversacionais Grice (1982) e Kerbrat-
Orecchioni (1998)
Pragmática
Polidez linguística e FTAs
(Face Threatening Acts)
Brown & Levinson
(1987), Goffman (1967)
Pragmática/Sociolinguística
Interacional
6. Análise qualitativa do corpus.
Aprenda o significado das palavras através de
seus empregos! (De modo semelhante, pode-
se dizer na matemática, frequentemente:
Deixe que a demonstração lhe ensine o que
foi demonstrado).
(Wittgenstein)
Neste capítulo realizaremos a análise qualitativa dos dados coletados,
tendo como referência as categorias de análise selecionadas no capítulo 5.
Serão analisadas amostras de transcrição referentes a seis pares de crianças
em situação de interação conversacional: 02 pares de crianças de 05 anos, 02
pares de crianças de 08 anos e 02 pares de crianças de 10 anos de idade,
respectivamente.
6.1 S e M – 05 anos
Iniciamos a gravação da interação conversacional entre as duas
crianças de cinco anos, (S) – a menina, e (M) – o menino, propondo que
construíssem um castelo — a partir das peças do jogo “Brincando de
Engenheiro” — e que selecionassem e colocassem uma peça de cada vez,
como verificamos a seguir:
Exemplo 1
P (pesquisadora) - então vamos lá...a Sophia vai começar...coloca uma
pecinha aqui... depois é o Matheus ((Sophia começa a montar o castelo,
colocando várias peças do jogo))... agora o Matheus ((Matheus coloca uma
peça))
S- ei...esse é assim ((Sophia corrige Matheus))
P- ah::: por que é assim Sophia?
S- porque é um relógio
P- ah...o relógio tem que ficar em pé?
S- ((afirma através de gesto))
P- ah:::... e o telhadinho...tá certo?
S- primeiro tem que pegar as:: pecinhas e colocar do lado...assim ((Sophia
recoloca as peças que Matheus havia colocado anteriormente))
P- uma do lado da outra...primeiro?
S- ((afirma através de gesto))
P- então deixa o Matheus agora colocar outra
[
M- posso ler livro?
Observamos que a regulação discursiva da pesquisadora (P),
assumindo uma função de guia, inicia-se com a proposta de que uma das duas
crianças inicie o jogo, por meio do marcador conversacional ―então‖. (S) toma
a iniciativa e começa a colocar mais de uma peça, não esperando que (M) o
fizesse. Foi necessário que (P) instigasse (M) para que agisse, através da
sugestão ―agora o Matheus‖, representada pelo advérbio de tempo ―agora”.
No entanto, (S) corrige a atuação de (M) e chama a sua atenção por
meio da interjeição ―ei‖, fazendo emergir uma regulação discursiva de
compensação, tal como nos fala Caron (1983). Posteriormente, por meio da
indagação de (P), marcada pelo pronome interrogativo ―por que‖, (S) justifica a
sua ação ao responder: ―porque é um relógio‖. Em seguida, verificamos que (S)
já estava estabelecendo/demandando novas regras para o jogo: ―primeiro tem
que pegar as:: pecinhas e colocar do lado...assim‖. Percebendo que (M) estava
sendo deixado de lado na brincadeira, (P) pede que (S) deixe (M) colocar uma
peça. A reação de (M), desviando do assunto ao perguntar se poderia ler um
livro – através do turno conversacional superposto (Marcuschi, 1998) -
demonstra, todavia, o seu desinteresse em entrar no contexto imaginário/
ficcional do jogo, ou seja, em assumir as suas regras (Bateson, 2000) — fato
que pode ter sido suscitado pela posição de ―comandante‖ das regras do jogo
assumida por (S), desde o início da brincadeira. Assim, o turno conversacional
superposto de (M) deixa subentendido (Armengaud, 2006) que ele não sentia
vontade de prosseguir com o jogo.
No entanto, o exemplo 2, abaixo, demonstra que (M) retorna à ficção,
contribuindo com o estabelecimento das regras que, antes, eram ―monopólio‖
de (S), afirmando (e regulando o discurso): ―e tem que fechar”. Ao constatar
que as duas crianças se encontravam em situação de acordo no jogo (Bonica,
1990), (P) mantém a posição de direcionar a interação, de modo a estimular o
interesse das crianças pela atividade, através do questionamento sobre qual
―papel‖ as crianças gostariam de exercer no castelo que estava sendo
construído:
Exemplo 2
S- olha...tem que fazer igual a esse ((aponta para a ilustração da caixa do
brinquedo))
P- é... igual ou parecido...o importante é ficar bem bonito o castelo
M- e tem que fechar ((coloca uma peça para fechar o castelo))
P- e o que é que tem no castelo Sophia?
S- aqui é a janela do castelo
P- você queria ser uma princesa no castelo:: Sophia?
M- ela queria porque ( )
S- ((nega através de gesto))
P- não?...queria ser o quê?
S- madrasta
P- ((risos)) é mais legal ser madrasta?
S- ((afirma através de gesto))
P- ela é mais poderosa? ((risos))
S- ((afirma através de gesto))
P- e você Matheus...no castelo que a gente vai construir...o que você vai querer
ser?
M- o príncipe
P- o príncipe::...ah...que príncipe LIN:::do
Aqui, (P), a fim de incitar a discussão, indaga se (S) gostaria de ser a
princesa no castelo. (M) se antecipa, afirmando que (S) gostaria, sim, de ser a
princesa. Além disso, justifica essa afirmação através do conector causal
―porque‖. O sujeito realiza, dessa forma, uma inferência sobre o pensamento
de (S), com base, provavelmente, no seu histórico anterior de convívio com a
colega, juntamente com o ―senso-comum‖ de nosso contexto cultural, que
pressupõe que as meninas, em geral, desejam ―ser‖ princesas. Trata-se de
uma crença de segunda ordem (Cf. Perner & Wimmer, 1985), uma vez que (M)
pensa que (S) tem a intenção de ser uma princesa.
Surpreendentemente, (S) não concorda com (M), afirmando que
preferiria ser a madrasta. (P), então, confirma com (S) o que já se mostrava
claro, desde o início da interação conversacional: (S) detém o poder na
interação linguística; é ela quem direciona tanto a interação conversacional,
como a negociação interpessoal (como veremos nos próximos exemplos), e
isso fica claro, metaforicamente, quando ela concorda que quer ser a
―madrasta poderosa‖. Neste momento, (S) posiciona-se na interação,
diferenciando-se de seu interlocutor (M), que assume querer ser o príncipe, e
demonstra a sua afirmação do eu, como sugere Wallon (1987).
No exemplo 3, abaixo, a voz de comando de (S) passa a se tornar ainda
mais evidente:
Exemplo 3
P- será que esse tá certo assim?
M- ((afirma através de gesto))
S- não... não tá não:::...usa a caBEça (sobrenome de Matheus) você não sabe
de NA::da...você não prestou atenção na au:::la ((Sophia imita um adulto
falando))... é assi::m
P- por que tá errado Sophia?
M- tá erRAdo SO:::phia
S- não tá não... é assim mesmo...tem que colocar uma janelinha em cima...eu
acho
P- a janelinha tava de cabeça pra baixo... é?
S- ((afirma através de gesto))
M- agora esses ( ) ficam embaixo que não dá mais pra pôr
S- os ( ) não:::
Verificamos que (P) pergunta às crianças se uma das peças havia sido
colocada corretamente. (M) responde com a cabeça que ―sim‖, mas (S) entra
em desacordo, incorporando a fala de um adulto — provavelmente o pai, a mãe
ou o(a) professor(a). É interessante notar como (S) assume a perspectiva de
um adulto, imitando seu modo de falar, ao realizar a ameaça à face (FTA) de
(M): ―você não sabe de NA::da...você não prestou atenção na au:::la‖. Este
turno conversacional de (S) só pode ser entendido no contexto sociocultural em
que ele se insere, e indica a compreensão de (S) a respeito de agentes
mentais dos adultos que lhe cercam, já que ela é capaz de assumir a
perspectiva de um deles (Tomasello, 2003). Ao mesmo tempo, (S) regula a
atividade, isto é, o jogo em si (Préneron, 2004), de forma a compensar o ―erro‖
cometido por (M), e determina: “é assim”.
Em seguida, (M) faz uma tentativa de regular a atividade, sem sucesso:
―agora esses ( ) ficam embaixo que não dá mais pra pôr‖. O advérbio de tempo
―agora‖ marca a intenção de (M) de contribuir com o desenvolvimento do jogo.
(S), contudo, entra em desacordo: ―os ( ) não:::”, reforçando a sua posição
através do prolongamento de vogal. Note-se que os proferimentos de ambas as
crianças são realizados de forma não atenuada, e que não se notam
estratégias de cortesia verbal nos turnos conversacionais analisados.
Os exemplos 4, 5 e 6, que analisamos a seguir, refletem as tentativas de
fuga do contexto ficcional do jogo por (M), seja ao tentar destruir todo o castelo,
ou ao derrubar peças que (S) havia colocado. Podemos verificar que,
inicialmente, no exemplo 4, (S) propõe uma resolução para o conflito incitado
por (M), que havia desmontado o castelo que acabara de ser construído:
Exemplo 4
S- não era pra desmonta::r ((Matheus havia desmontado o castelo construído))
P- éh::: agora vai ter que montar TUdo de novo::
S- vamo montá um diferente
P- vamos montar um diferente?...não precisa ser castelo
Verificamos que (S) busca o acordo, rumo à negociação
interpessoal/conversacional, através do turno: ―vamo montá um diferente”. (P)
reforça a tentativa de resolução do conflito: ―vamos montar um diferente?...não
precisa ser castelo”. Contudo, (M) não entra em acordo com (S), afirmando que
ele fará sozinho outro tipo de castelo:
Exemplo 5
M- eu vou fazer...OUtro tipo de castelo
S- ah não:::
M- ah você não tá montando o seu?... eu monto
P- mas um tem que ajudar o outro... vocês tem que chegar num acordo...o quê
vocês querem montar?
S- cada u/ já sei... a gente pode montar o que a gente quiser
P- is:::so...mas cada um ajuda o outro né?... senão....
M- eu tô montando um castelo bem maior que o do Chaves
S- eu vou pegar mais u:::m:: desse aqui ((Sophia pega uma peça que estava
perto de Matheus))
M- ( ) ((grita com Sophia))
P- mas você não quer ajudar a::: a Sophia a montar a parede?...você não é um
bom engenheiro?
M- óh o que eu vou fazer com o castelo dela ((ameaça derrubar o que Sophia
estava construindo))
S- não:: ((Matheus derruba algumas peças))...PÁ::ra...EU NÃO GOSTO DISSO
Diante da recusa de (M) em entrar no acordo, (S) muda mais uma vez a
regra do jogo, demandando: ―cada u/ já sei... a gente pode montar o que a
gente quiser‖. (M) passa a se posicionar na atividade, colocando em prática a
desvalorização (Bonica, 1990) da sua interlocutora, ignorando (S) ao construir
um castelo do seu modo. Além disso, ao afirmar —“eu to montando um castelo
bem maior que o do Chaves”—, (M) regula a sua atividade, dando um sentido a
ela.
(P) realiza três tentativas de propor que as crianças voltassem a
cooperar uma com a outra na construção, em vão: (M) acaba derrubando
algumas peças colocadas por (S). Todavia, (S) se posiciona claramente
através da utilização do verbo no modo imperativo: ―PÁ::Ra‖. Finalmente, (P)
intenta estimular a negociação interpessoal/conversacional entre as crianças,
regulando o discurso ao propor que construíssem uma creche apenas, ao invés
de cada um construir a sua (como estavam fazendo após o castelo ser
derrubado):
Exemplo 6
P- vamos juntar as duas creches?...fazer um prédio só?
S- aqui vai se:::r...
P- estacionamento? ((Matheus desmonta o que Sophia estava começando a
construir))
S- AH...NÃO É PRA DESMONTAR
No exemplo 6, observamos que (S) responde prontamente à sugestão
de (P), começando a construir o estacionamento da creche e estabelecendo,
através do advérbio de lugar ―aqui‖, o local onde ele seria construído. (M),
todavia, desmonta mais uma vez o que (S) acabara de construir, gerando um
conflito e fazendo com que (S) ordene, gritando: ―AH...NÃO É PRA
DESMONTAR‖.
O próximo exemplo nos fará entender melhor um dos motivos da recusa
de (M) em entrar no jogo e respeitar suas regras:
Exemplo 7
S- eu vou faze:::r...hum... o relógio da/de dentro
P- tá bom
S- ((imita o som de um sino)) quando tocar o sino quer dizer que tá na hora de
jantar...vou colocar aqui ((o relógio))
M- ah::...alg/alguém diz pra mim?... eu não tô sabendo...((diz que não está
sabendo construir o carrinho com as peças))
P- eu te ajudo então... ah:: mas o teu ficou legal...olha... interessante,
né?...Sophia?
S- mas vai devagar...senão vai desmonTAR ((dirigindo-se a Matheus, que
constrói um carrinho para colocar no estacionamento))
P- olha...o estacionamento é aqui
S- vai ter que abrir a porta daqui
P- tem que abrir a porta...tem que ter um::: um porteiro ali, né?
M- POde ser você ((exclamando))
P- pode ser eu, né?... tá bom... então::... eu tô esperando o carro do Matheus
chegar:::
M- ah eu não tô conseguindo cons/cons/construir
S- faz do seu jeito ((exclamando))
Podemos observar que (M), na verdade, não aceita as regras do jogo
criadas por (S) por não saber exatamente como agir: ―ah::...alg/alguém diz pra
mim?... eu não tô sabendo...‖; e depois: ―ah eu não tô conseguindo
cons/cons/construir‖. Por esse motivo, (M) recusa-se a adentrar totalmente o
mundo ficcional, até aquele momento — ao contrário de (S), que transita muito
bem entre a realidade e o ―faz-de-conta‖ durante todo o jogo, dando um sentido
às suas ações, como percebemos neste turno conversacional: ―quando tocar o
sino quer dizer que tá na hora de jantar...‖, em que ela vincula a atividade
fictícia do jantar ao momento em que o sino for tocado.
Aos poucos, entretanto, (P) e (S) estimulam a participação de (M) no
jogo. (P) percebe que (M) havia se empolgado com a idéia de que ela
assumisse o papel de porteiro do estacionamento, e o estimula a construir o
carrinho com as peças para entrar neste local: ―pode ser eu, né?... tá bom...
então::... eu tô esperando o carro do Matheus chegar:::‖. Além disso, (S)
determina: ―faz do seu jeito‖, utilizando novamente o verbo no imperativo
(―faz‖). No exemplo 8, (M), finalmente, entra em um acordo momentâneo com
(S), como podemos observar:
Exemplo 8
M- deixa eu entrar ((Matheus leva o carrinho dele em direção à portaria do
estacionamento))
S- eu abro a porta
M- vummm
S- é AQUI
M- deixa eu vou arrumar meu carro ((Matheus derruba algumas peças da
construção, ao estacionar o carro))
S- você desmontou:: (sobrenome de Matheus)
M- desmontei o quê?
S- NADA não::
M- o meu tinha atirador pra matar a Sophia ((referindo-se ao carro))
S- não tinha nada
M- tinha sim
S- tinha não
P- o que você falou Matheus?
M- o meu tinha atirador
S- você era o policial... quer dizer?
P- então você era o policial?
M- era ((mexe o carro fazendo o som de carro de polícia))
P- ah::...virou um carro de polícia
Neste exemplo, verificamos que (M) tem uma atuação mais efetiva na
regulação da atividade e da comunicação, já que demanda, inicialmente: ―deixa
eu entrar”, utilizando o verbo no modo imperativo (―deixa‖). (S), por sua vez,
não se opõe e, inclusive, coopera com o colega, posicionando-se: “eu abro a
porta”. Todavia, logo o conflito se instaura novamente, uma vez que (S) corrige
a ação de (M): “é aqui”. (M) se justifica, dando um sentido à sua ação ao
afirmar: “deixa eu vou arrumar meu carro”. Mas, como (M) havia derrubado
algumas peças durante essa ação, (S) tenta regular novamente o discurso e
compensar o erro de (M), ao afirmar: ―você desmontou‖.
Também observamos, no exemplo 8, a dupla injunção de que nos fala
Bonica (1990), no turno de (M): ―desmontei o quê?‖. Este enunciado irônico
exprime uma ambiguidade, que impede que o interlocutor (S) compreenda se
ele está ou não de acordo com o que foi dito. (S), no entanto, demonstra querer
evitar um novo conflito, com a resposta: ―NADA não::‖. Verificamos aqui uma
implicatura conversacional (Grice, 1982), já que (S), apesar de dizer que (M)
não havia desmontado nada da construção, deixa subentendido (Armengaud,
2006) que ela sabe o que (M) havia feito, mas opta por não dar prosseguimento
à discussão.
Neste exemplo, (M) chega a imaginar que seu carro teria um atirador: ―o
meu tinha atirador pra matar a Sophia‖. Mais uma vez, podemos inferir que
este turno conversacional de (M) foi influenciado tanto pela situação de conflito
existente na interação entre as duas crianças, como por condições presentes
em seu histórico sociocultural (background). Finalmente, (S) estabelece mais
uma regulação discursiva, com a função de interpretar a fala do colega — que
afirma querer ser o atirador — e, ao mesmo tempo, efetuar um pedido de
esclarecimento (Tomasello, 2005): ―você era o policial... quer dizer?‖.
6.2 C e T – 05 anos
A pesquisadora (P) inicia a interação com as crianças (C) – o menino, e
(T) – a menina, propondo que elas construam um castelo conjuntamente:
Exemplo 9
P – Tarsila... você ajuda o Cássio? ... eu queria fazer o seguinte olha...
T – si::m:::
P – a gente constrói JUNtos um castelo porque eu tô fazendo um trabalho pra
escola... e::... eu preciso mostrar depois que eu construí um castelo com
vocês... e aí... um tem que ajudar o outro... vamos começar assim?... cada um
começa com uma pecinha...
C – um dia eu fiz um castelo que não dava pra ver nada...
P - ahn?
C – só dava pra ver esses negocinhos ((aponta para um tipo de peça do
jogo))... e tinha tanto disso...
P – o que é isso aqui?
T – éh::
P – a Tarsila sabe?
T – é um teLHA::do
P – um teLHA::do...isso:::
C – telhado... porque é assim ((indica com as mãos o formato da peça que
pode servir com telhado na construção))
P – ah::: entendi
No exemplo 9, verificamos que (T) entra em acordo imediatamente com
a pesquisadora, que a questiona se ela ajudaria (C) na construção. No entanto,
a construção do castelo, em si, não é iniciada em virtude da digressão de (C),
que comenta sobre um castelo que havia construído em outra situação.
Ao verificar que (C) estava tendo dificuldades em denominar
determinadas peças, (P) lança a questão, regulando o discurso com a função
de guia: “o que é isso aqui?”. (T), nesse momento, esboça uma resposta e,
então, (P) a incentiva a responder, ameaçando a sua face positiva com a
questão: “a Tarsila sabe?”. (T) responde que se trata de um telhado, e (C)
concorda com a colega, complementando a resposta com uma explicação.
Observemos o exemplo 10, a seguir:
Exemplo 10
P – vamos fazer uma coisa?... vamos trazer mais pra cá ((as peças do jogo))
pra você poder ajudar ele... tá bom? ((dirigindo-se à Tarsila))
C – é porque EU já tô começando
P – éh:: então... eu queria que vocês entrassem num acordo pode ser?... cada
um coloca uma pecinha...
T – eu sei fazer uma casa e um casTE::lo::
P – ai vai ficar LINdo:::... ((exclamando)) mas você não quer ajudar ele?
C – AH::: JÁ SEI... ela faz um um::: castelo dela desse lado e eu faço o meu
aqui só que (com menos peças)
P – mas::... tá bom... mas primeiro vamos tentar fazer um juntos?...vocês...
cada um coloca uma pecinha por vez... a Tarsila vai ter que chegar um
pouquinho mais pra cá...
Verificamos que (P) intenta regular a atividade em curso, ao solicitar que
as peças do jogo fossem trazidas para mais perto dos interactantes, a fim de
que (T) conseguisse auxiliar (C), que já havia iniciado a atividade sozinho.
Além disso, (P) solicita que as crianças entrem em acordo no sentindo de que
cada um deveria colocar uma pecinha por vez. (T), no entanto, não interage
com o colega e afirma o que ela saberia fazer: uma casa e um castelo. (P), não
satisfeita, regula mais uma vez a atividade por meio da ameaça à face negativa
de (T): ―((exclamando)) mas você não quer ajudar ele?”. Antes que (T)
respondesse, (C) propõe uma solução à questão: cada um construiria um
castelo de um lado. (P), todavia, regula mais uma vez a atividade ao reforçar o
pedido de que a construção fosse feita em conjunto.
Exemplo 11
P – então vamos lá... primeiro a Tarsila coloca uma pecinha do castelo
T – deixa eu te falar... quando eu era bebê minha mãe me chamava de
Tarsilinha:::
P – ah::: TarsiliNHA...que bonitinho:: ((risos))
C – é... essa peça ( ) ((concentrado no jogo))
T – um dia quando eu era bebê...
No exemplo 11 verificamos que (C) concentra-se mais na execução da
construção do que a sua interlocutora (T). Assim, enquanto (C) preocupa-se
com qual peça deveria ser colocada, (T) efetua digressões. Mesmo ao ter sua
face negativa ameaçada pela pesquisadora (“primeiro a Tarsila coloca uma
pecinha do castelo”), ela desloca o tema da conversação para o assunto sobre
o qual ela desejava falar (fatos relacionados à época em que ela era bebê).
Exemplo 12
P – primeira coisa... o que vocês querem montar?
T – eu quero montar uma ca::sa::
P – você concorda Cássio?... porque eu queria que vocês primeiro
construíssem uma coisa juntos... entendeu?
C – ah::: tudo bem
P – tudo bem? pode ser uma casa? não tem problema?
C – ((gesto afirmativo))
T – na minha casa eu tenho essas pecinhas e aí eu faço um castelão e um
castelinho... depois eu faço uma casinha e uma caSONA::
P – ah::: quer fazer isso também Cássio?
C – tudo bem mas eu quero fazer esse aqui ((apontando para a ilustração da
caixa do briquedo))
P – como esse aqui?... e a Tarsila concorda em fazer esse da caixa?
T – eu concordo fazer uma CAsa
C – mas esse aqui é uma casa... desse jeito ué
P – é um tipo de casa:::
T – eu SEI fazer uma casa do MEU JEIto
Uma vez que (P) verifica que não estava havendo acordo quanto à
construção em conjunto solicitada, efetua uma regulação da atividade e do
discurso (com a função de guia) através do seguinte turno do exemplo 12:
“primeira coisa... o que vocês querem montar?”. (T) manifesta-se
imediatamente afirmando que queria montar uma casa. (P) pergunta a (C) se
ele concordava e, a princípio, ele entra em acordo. Contudo, logo manifesta a
afirmação do seu ―eu‖ (Wallon, 1987), ao explicar que concorda em construir
uma casa, desde que seja aquela correspondente à ilustração da caixa do
brinquedo.
(T) Discorda, instaurando o conflito ao manifestar o seu desejo,
reforçado pelas entonações enfáticas de seus turnos conversacionais: ―eu
concordo fazer uma CAsa”, e depois: ―eu SEI fazer uma casa do MEU JEIto”.
Exemplo 13
T – eu coloco os dois telhados... os dois telhados... e aí... aí fica uma casa::
P – fica bonito também
C – é mas fica meio esquisito
P – é? você não gosta muito? (fica) meio esquisito?
C – é... já vi como que ela fez
P – e como você prefere?
C – mais ou menos DESse jeito
P – ((T faz gesto de que não concorda)) hum:: e a Tarsila não quer... desse
jeito?
T – não:::
P – ((risos)) e agora? como que a gente vai entrar num acordo... hein?
C – ué... faz uma casinha que ela também ache bonito ué
P – uma casa que ela também ache boni:::to...
T – eu eu posso fazer essa PEÇA... uma rainha ou um rei::
No exemplo 13, as crianças entram novamente em desacordo. (T)
sugere um tipo de construção com as peças do telhado; contudo (C) afirma que
ficaria ―meio esquisito‖, e justifica a sua discordância: ―é... já vi como que ela
fez‖. (P) então lhe indaga sobre sua preferência, e ele responde, ao mesmo
tempo em que executa a construção: ―mais ou menos DESse jeito”. Nesse
momento, é a vez de (T) discordar, primeiramente por meio de gesto negativo
e, posteriormente à indagação de (P), pelo uso do advérbio de negação. (P),
então, questiona como as crianças entrariam em acordo, e (C) imediatamente
propõe uma solução ao conflito: ―ué... faz uma casinha que ela também ache
bonito ué‖.
(T) Demonstra concordar, colaborando com a construção e adentrando o
mundo do faz-de-conta, o que se torna evidente com o turno conversacional:
―eu eu posso fazer essa PEÇA... uma rainha ou um rei::‖.
Exemplo 14
P – vocês estão entrando num acordo sim... tá ficando legal... agora é a Tarsila
C – se eu fosse ela não colocava essa pecinha agora não
P – se fosse você o que você faria?
C – colocava::: um quadradinho...porque senão...
P – esse pequenininho?
C – aham... e esse de uma outra cor
[
P - hum:::... você concorda Tarsila?
T – sim ((exclamando))
P – fica bonito né?
T – na minha casa um dia... sabe o que eu vou fazer?... sabe o que minha tia
fez?... ela me filMOU
No início do exemplo 14, constatamos que (C) assume a perspectiva da
colega, emitindo uma crença de segunda ordem (Perner & Wimmer, 1985): ―se
eu fosse ela não colocava essa pecinha agora não”. (P) Interroga (C) sobre o
que ele faria no lugar de (T) e ele, então, descreve o que faria, mas não
executa. Em seguida, (P) pergunta à (T) se ela concorda com o que (C)
pretendia fazer, e ela afirma, sem titubear, exclamando: ―sim‖. As crianças,
então, prosseguem com a construção do castelo e logo fica evidente o porquê
de (T) ser tão efusiva em sua resposta: sua intenção era a de fazer uma nova
digressão ao tópico conversacional em andamento. Dessa forma, a menina (T)
não responde à pergunta de (P), e inicia outro assunto: ―na minha casa um
dia... sabe o que eu vou fazer?... sabe o que minha tia fez?... ela me filMOU”.
Exemplo 15
T – é mas ela é irmã do meu pai::
C – ela concordou em (colocar) essa peça...
T – a minha TIa...
P – pode colocar? pergunta pra ela ((dirigindo-se ao Cassio))
[
T - POde
C – pode colocar essa peça aqui?
T – ((gesto afirmativo))
P – então tá bom... que bom... vocês entram num acordo fácil... né? ((risos))
T – é:: a minha TIA... ela é fi/ela é mãe da/da Ludmila
P – mas olha... só o Cassio tá... tá colocan/construindo
C – mas ela me pediu pra colocar essa peça aqui
P – ah:: tá bom... mas a Tarsila também tem que colocar
T – ((coloca a peça))
P – aí::: ficou bonito esse hein?.... olha SÓ ((exclamando))
C – eu já pus essa...
P – tá:: agora...
C - e ela pôs essa
P – já... agora é o Cássio de novo
No exemplo 15, a fuga ao tópico discursivo e ao contexto situacional da
brincadeira de (T), torna-se ainda mais evidente. Todavia, verificamos que (T)
não deixa de atuar na brincadeira, ajudando (C) na construção, ainda que sua
participação seja menos efetiva em virtude das digressões ao tópico lúdico em
questão. Assim, verificamos que é (C) quem realiza a regulação discursiva e da
atividade, a fim de que o objetivo da brincadeira seja alcançado. Neste
exemplo, podemos observar que (T) concorda prontamente com o que (C)
solicita: deixa que (C) coloque uma peça que ele escolheu como sendo melhor
para a construção, no momento em que a princípio seria a sua vez de
participar. Na verdade, (T) demonstra-se mais interessada em dar
prosseguimento ao assunto sobre sua tia, do que a participar de modo mais
ativo na brincadeira.
Em seguida, (P) realiza um FTA à face negativa de (T), com o intuito de
que ela não deixe de participar da brincadeira: ―mas a Tarsila também tem que
colocar”. Dessa forma, (T), imediatamente, retorna ao jogo, colocando uma
pecinha.
Exemplo 16
P – vocês querem minha ajuda ou não?
C – não né? ((dirigindo-se à Tarsila))
P – ou quer?
T – NÃO...
P – não? vocês...
[
T - precisamos fazer tudo SO-ZI-nhos
C – cada vez que ela colocar eu também vou colocar (mais um) pra ficar
melhor
No exemplo 16, é possível constatar que, como foi dito anteriormente,
(C) detém o poder de direcionamento da interação conversacional e da
atividade lúdica. (P) Indaga às crianças se elas gostariam de sua ajuda na
construção. (C) Imediatamente responde que não, mas ao mesmo tempo
busca a aprovação de sua colega por meio do marcador conversacional ―né?‖.
O uso deste marcador lhe permitiu atenuar a emissão de sua opinião e, ao
mesmo tempo, fazer com que (T) concordasse com ele.
No entanto, sabendo que a participação de (T) estava comprometida
pelas digressões ao tópico conversacional e à brincadeira, (C) afirma: ―cada
vez que ela colocar eu também vou colocar (mais um) pra ficar melhor”. Ou
seja, a cada vez que (T) colocasse uma pecinha na construção, (C) colocaria
mais uma peça (além da peça relativa ao seu turno no jogo). Assim,
constatamos que a intenção de (C) era realmente concluir a brincadeira sem,
contudo, causar um conflito com a colega. Verificamos aqui a emergência tanto
da teoria da mente (pois ao colocar-se no lugar da colega, sabendo de
antemão qual seria a sua atitude, ele direciona a sua própria ação), como do
princípio de cooperação de Grice (1982), uma vez que (C) evita o conflito na
conversação.
No entanto, no exemplo 17, (C) abandona a estratégia de evitar o
conflito:
Exemplo 17
T – você já ouviu essa música?... ―depois de::: acordar‖...tic-tc-tic
[
C - ela só tá falando
P – ((risos)) Tarsila:: vamos fazer assim:... você fica contando as historinhas
pra tia Giovanna e ao mesmo tempo constrói/ajuda o Cássio tá bom?
T – ((gesto afirmativo))
C – ai:: não acredito no que ela fez
P – por que você não acredita Cássio?
C – porque (ela pôs) outra verde
P – ahn?
T - ―depois de::: acordar‖ ((começa a cantar novamente a música))
[
C - você tá copiando ( )
P – ela tá fazendo igualzinho a você... é isso?
T – ―tic-tic-tic:::‖
C – depois a gente faz essa ((referindo-se à ilustração da caixa do jogo))
P – tá bom... mas esse tá ficando bonito
C – esse aqui:: depois a gente vai fazer a casa DEla
P - tá
T – sabe pra onde eu fui?
P – uhn?
T – eu fui lá no/ lá no zoológico
Verificamos que (C) critica a colega através de um FTA irônico, que
ameaça a sua face positiva: ―ai:: não acredito no que ela fez”. (T), todavia, não
demonstra se importar com a desaprovação do colega, e continua a cantar
uma música, mesmo após (C) explicar o que ela havia feito errado em sua
opinião.
Exemplo 18
C – ôh-ou:: ela pôs duas ((peças))
T – ((risos))
C – vou por duas também
T – sabe o que eu... sabe o que eu sei fazer na minha casa?
P – ahn?
T – eu sei fazer umas brincadeiras NOvas
C – conversa menos e coloca mais
P – ((risos)) a Tarsila é boa de papo né?
C – uhum
P, T e C – ((risos))
T – ( ) tá me chamando de sapo:: ?
P – não:::: boa de papo é que conversa basta:::nte... gosta de conversa:::r
T – sabe quem me trouxe com a minha mãe?
P – ahn?
T – o mestre Pato...
P – ah éh:::?
T – éh... ele sabe TUdo com capoeira... assim... ―tan-tan-tan...tan-tan-tan‖
P – ((risos))... olha mas até que tá terminando hein?... já já só vai faltar o
telhado
No exemplo 18, (C) deixa subentendida uma nova crítica à sua colega,
que havia colocado duas peças ao invés de uma, na sua vez de participar. (T)
apenas ri, o que faz com que (C) tome a atitude de colocar duas peças
também. (T), mais uma vez, sai do plano ficcional para interagir com a
pesquisadora, contando-lhe histórias aleatórias à brincadeira. Em seguida, ao
verificar que (T) estava mais conversando do que construindo, (C) realiza um
FTA direto e irônico ao mesmo tempo: ―conversa menos e coloca mais‖. Tal
enunciado provoca risos tanto na pesquisadora como em (T), que, por sua vez,
não modifica sua atitude: realiza uma nova digressão, contando à pesquisadora
sobre o mestre de capoeira.
Verificamos também, neste exemplo, a presença de um mal-entendido,
quando (P) comenta com as crianças sobre o fato de (T) ―ser boa de papo‖, e
(T) pensa que (P) a havia chamado de ―sapo‖. (P), então, explica
metalinguisticamente a (T) o significado dessa expressão.
6.3 Ma e Ge – 08 anos
(Ma) – a menina, e (Ge) – o menino, iniciam uma discussão para
decidirem o que iriam construir com o brinquedo Lego, como observamos no
exemplo 19, a seguir:
Exemplo 19
Ma- já sei… pode fazer uma casa?
P- vocês têm que entrar num acordo ((exclamando))
Ge- não pode fazer um navio?... casa é muito (fácil)
P- o Gabriel prefere o navio e a Mariana a casa...é isso?
Ma- já se:::i::: ((efusiva))
P- ahn?
Ma- a gente faz uma casa e um navio::
P- pode ser... desde que façam juntos... tá?...porque é assim... não é pra um
fazer a casa e o outro fazer o navio...
Ma- tá
P- o importante é um ajudar o outro...tá bom Gabriel?
Ge- ((gesto afirmativo))
P- tudo bem então... uma casa e um navio... ótimo... aí os dois entram num
acordo... né? ((risos))
Ma e Ge- ((começam a construir a casa))
Ma – espera aí
Ge – eu quero ver... empresta aqui rapidinho
P – então primeiro a casa... certo?
Ma – certo... porque é mais fácil
(Ma) sugere, inicialmente, que fosse construída uma casa. Trata-se de
uma regulação discursiva, que exerce a função de guia (Caron, 1983). (Ge),
entretanto, não concorda e propõe a construção de um navio, argumentando
que a casa era muito fácil. (P), então, confirma com as duas crianças que cada
uma desejava uma coisa, ou seja, ratifica o desacordo (Bonica, 1990) que
havia sido instaurado. Observamos que (P) evita dar uma solução pronta para
o conflito, deixando que as próprias crianças negociem e intenta, dessa forma,
atuar na Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) de que nos fala Vygotsky
(2003). É o que acontece: (Ma), de forma efusiva (que é manifestada pelos
prolongamentos de vogais) propõe um acordo – eles poderiam fazer uma casa
e um navio. Assim, as duas crianças ficariam satisfeitas. (P) concorda, mas
realiza uma regulação da atividade: ―pode ser... desde que façam juntos...”, e
utiliza o marcador conversacional ―tá?...‖, para buscar a confirmação das
crianças. (Ma) e (Ge) concordam – (Ma) marca a sua concordância com o
mesmo marcador conversacional, ―tá‖, e (Ge) com o marcador conversacional
paralingüístico (gesto afirmativo) - e imediatamente começam a construir a
casa. (P) confirma com as crianças: ―então primeiro a casa... certo?”; e (Ma)
explica que, de fato, a casa seria mais fácil de ser construída.
Os exemplos 20, 21 e 22 a seguir, refletem o engajamento das duas
crianças na atividade de construção da casa, seguindo as regras propostas por
um folheto de instruções que acompanhava o brinquedo Lego.
Exemplo 20
Ma – espera aí... agora a gente já fez essa PA::rte
Ge - aqui só tem isso?
Ma – não...tem um preto
Ge- então...agora é CINco...aqui...isso daqui olha (referindo-se à parte cinco do
modelo de construção da casa))
Ma – ah:::
Ge- vai colocando a parte de cima que eu vou colocando a de baixo
Exemplo 21
Ge- agora a seis... não::... não põe ali do lado
Ma- é sim... só um ((refere-se à peça que deveria ser colocada ao lado da
casa))
Ge- ah... é
Ma- a parte seis é BEM difícil
Exemplo 22
Ge- a parte seis a gente pega esse aqui e põe aqui::
Ma - toma esse
Ge- é esse OLHA
Ma- não... não é esse
Ge – aqui OLHA... aQUI...aQUI
Ma- ah::... mas tem que colocar embaixo
Ge - não... isso aqui teria que ser aqui OLHA
Ma- uhn::
Ge - aqui olha... um pra cá
Nestes três exemplos anteriores, observamos que as crianças se
encontram realmente inseridas no contexto de construção da casa, de acordo
com o modelo proposto no folheto do brinquedo. Não há criação de novas
regras para a brincadeira nesse momento e ambas as crianças entram em
acordo muito facilmente, pois as duas entraram no jogo, literalmente, tal como
nos fala Bateson (2000). Sendo assim, se há acordo no plano do
jogo/brincadeira, há acordo no plano conversacional/interativo. As regulações
da atividade do jogo estão presentes nos três exemplos, e são efetivadas pelas
duas crianças. Tais regulações são marcadas, em geral, por advérbios de
tempo ou de lugar, que funcionam como indicadores do próximo passo a ser
tomado na brincadeira: ―agora a seis‖, ―aqui olha‖, etc. Contudo, os desacordos
que surgem são logo solucionados, uma vez que a intenção das duas crianças
é cooperar uma com a outra para que a casa seja construída. Aqui, portanto, o
princípio de cooperação (Grice, 1982) se torna evidente.
No exemplo 23, todavia, o desafio do próprio jogo se torna maior, e o
aparente equilíbrio da interação pode ser deslocado para o conflito (Bonica,
1990).
Exemplo 23:
P- agora o navio vocês dão uma olhadinha e constroem sozinhos
Ge- a gente pode ficar olhando?... não tem passo a passo do navio
P- ah:: tem um pouco...sabe o que a Giovanna e o Marx fizeram?...eles não
fizeram exatamente assim... eles fizeram uma canoa... tem vários tipos
Ge- vamos fazer um jacaré? vamos fazer um jacaré?
P- é... o que vocês preferem?... não precisa ser um barco
Ma- um jacaré porque é mais fácil de fazer
P- sem olhar NÉ?... então tá
Ge e Ma- ((gesto afirmativo))
Ge- espera aí então...vamos pegar já as peci::nhas
P- o importante nesse momento é criAR... vocês tem que inventar... não
precisa ficar igual a esse ((referindo-se ao jacaré da foto do folheto))
A pesquisadora (P), agora, opta por propor uma nova regra: as crianças
deveriam construir o navio sem olhar o modelo proposto no folheto de
instruções. Trata-se de um momento de interrupção do jogo, que seria
retomado (Bonica, 1990) depois que as regras fossem reformuladas. (Ge), no
entanto, tenta negociar com (P): ―a gente pode ficar olhando?... não tem passo
a passo do navio‖. (P), a fim de estimular a negociação entre as próprias
crianças, não concorda com o argumento de (Ge) e afirma que havia, sim, um
pouco das instruções ―passo a passo‖ no folheto. Neste sentido, propõe uma
alternativa: não precisaria ser um navio exatamente como o que aparecia na
foto do folheto. Eles poderiam criar outros tipos de embarcações, assim como
outras crianças que participaram da pesquisa fizeram.
(Ge), dessa forma, faz uma proposta inusitada: construir um jacaré. O
menino marca a sua empolgação com a idéia, bem como a tentativa de
persuadir a colega, através da repetição da oração interrogativa: ―vamos fazer
um jacaré? vamos fazer um jacaré?‖ (Ma) concorda, já que ela considera que
seria mais fácil para construí-lo. Sendo assim, as duas crianças iniciam a
construção, concordando com a pesquisadora em não olhar para o modelo do
folheto.
Nestes exemplos de interação entre crianças de oito anos, verificamos o
seu total engajamento no propósito do jogo, o que limitou, de certa forma, a
liberdade para que elas criassem novas regras. Não houve uma incorporação
de elementos de faz-de-conta na brincadeira; as crianças foram extremamente
objetivas. (Ma), por exemplo, buscava sempre o caminho mais fácil para que a
atividade fosse concluída, evitando possíveis conflitos com o seu interlocutor.
Isso influenciou, certamente, a ausência de desacordos difíceis de serem
solucionados.
6.4 Gi e Mx – 08 anos
As crianças de 08 anos, (Gi) – a menina, e (Mx) – o menino, iniciam a
interação conversacional com a pesquisadora decidindo que iriam construir um
pinguim, inspirados pelo folheto explicativo do jogo Lego.
Exemplo 24
P – e agora hein? o que é que a gente vai fazer? vamos decidir?
Gi – (vamos) fazer uma casa por (causa) que tem esses negócios
Mx – pode ser casa
P – uma casa? uma casa com uma menininha::...
Gi – e ( )
P – e o quê?
Gi – um hominho
P – ah tá:::.... vamos ver se vocês conseguem montar juntos tá?... não cada um
faz o seu né?... um ajuda o outro
Gi e Mx – ((concordam com gesto afirmativo enquanto já começam a construir,
em silêncio))
É possível verificar que, desde o início da interação conversacional, (Gi)
e (Mx) cooperam um com o outro na realização da tarefa proposta, o que se
reflete no plano linguístico também: não observamos a presença de conflitos;
logo, os processos de negociação interpessoal na interação entre (Gi) e (Mx)
também não foram verificados.
As duas crianças concentraram-se de tal maneira na execução da
construção que raramente interagiram com a pesquisadora. Mesmo quando (P)
faz sugestões, como no exemplo 26 (―você vai ajudar o:: Marx?”), a interação é
limitada: neste caso, (Gi) apenas concordou com um gesto afirmativo e
prosseguiu com a construção.
Exemplo 25
P – vocês entram em acordo bem né?... um faz a jane:::la outro faz a po:::rta
Mx – ( ) eu acho que os arquitetos de verdade demoram pra fazer
P – demoram pra fazer né? os arquitetos de verdade mesmo... ((risos))... ai tá
ficando bonitinho hein?
Mx e Gi – ((apenas sorriem))
Exemplo 26
Mx – agora eu preciso da:: porta
Gi – eu consigo colocar a porta
P – você vai ajudar o:: Marx?
Gi – ((fica em silêncio e coloca a porta))
As crianças seguem o passo-a-passo da construção da casa que está
presente no folheto explicativo do jogo Lego. Permanecem em silêncio e
praticamente não interagem, apenas ―pensam em voz alta‖. As regulações
discursivas que ocorrem dizem respeito às regulações da atividade (Préneron,
2004), como verificamos nos exemplos 27 e 28.
Exemplo 27
Mx – aqui:: a porta tem que ficar na terceira... na terceira (bolinha)... e aqui ela
tá na segunda...por isso que não (cabia) a florzinha aqui... ( )
P – hum::... será? você concorda Giovanna?
Gi – ((esboça um gesto afirmativo))
P – concorda?
Gi – ((gesto afirmativo))
P – então tá bom ((exclamando))
Exemplo 28
Mx – agora falta a chamiNÉ e fechar essas ( )
P – vocês trabalham bem em dupla hein? ((risos))
Mx – ((procura a pecinha para a chaminé))
P – né? um vai ajudando o o::utro... não tem bri:::ga... porque... já teve gente
que não concordava um com o outro sabiam? ((risos))... mas vocês entram
num acordo fácil né Giovanna?
Gi - ((sorri e continua montando a casa))
Uma vez que (P) percebe que (Mx) e (Gi) entram em acordo muito
facilmente, ela decide propor um desafio às crianças, a fim de possivelmente
incitar uma negociação interpessoal: realizar uma construção sem observar o
folheto de instruções do jogo. No entanto, mais uma vez as crianças entram em
acordo muito facilmente, como verificamos nos exemplos 29 e 30. Assim que
um decide construir algo, o outro logo concorda e inicia a construção.
Exemplo 29
Mx – até que ficou lega:::l né?
P – MUIto legal...muito bonitinho
Gi e Mx – ((sorriem))
P – então agora eu queria:::agora é um desafio tá?
Mx – ( )
P - agora vai ser um desafio Marx e Giovanna...vocês vão ter que construir
alguma co:::Isa... pode ser até pra complementar a casinha né uma:::
Mx – uma janelinha
P – é alguma coisa pra complementar... alguma coisa que vocês queiram
construir em conJUNto... SEM as instruções... será que vocês conseguem?
Mx – consigo
P – é? o que vocês vão querer construir?
Gi – vamos fazer um BO-NE-quinho
Mx – um bonequinho... ((começa a procurar pelas peças))
P – você quer Marx? fazer um bonequinho também?
Mx – quero
P – quer mesmo? vocês que sabem...têm que entrar num acordo e construir
alguma coisa juntos... tudo bem para os dois?
Mx e Gi – uhum ((continuam a construir o bonequinho em conjunto))
Exemplo 30
Mx – aí... o boneco
P – prontinho... o bonequinho... que mais que podia ter agora?... só mais
alguma coisinha né?
Gi – ah::
P – o Marx agora porque a ideia da bonequinha foi da Giovanna... e agora
Marx... o que você pretende montar Marx?
Mx – hum:: um pinguim?
P – um pinguim? nossa esse é difícil hein? sem instrução? será que vocês
conseguem?
Gi – sim
P – é? é um desafio hein? ... então vamos lá... um tem que ajudar o outro
Gi – cadê os olhinhos...
Mx – dois olhinho::s
Gi – o bico dele
No exemplo 31, (P) observa que as crianças possuem um acordo tácito
entre elas: a princípio, pareceu-lhe que (Gi) detinha o poder conversacional,
direcionando os passos da construção. Todavia, (Mx) explica o acordo implícito
que havia entre eles neste turno conversacional: ―ela que tá construindo e eu
que to dando as peças”.
Exemplo 31
P – você não gostou do bico assim:: Giovanna?
Gi – ((gesto negativo))
P – ih::: mas tô achando que é a Giovanna que tá comandando essa/essa:::
construção hein?
Mx – ela que tá construindo e eu que to dando as peças
P – ah:: entendi... vocês entraram num acordo aí né? ela que constrói/ ela
monta e o Marx escolhe as peças... ok:::
Após finalizarem rapidamente a construção do pinguim sem olharem as
instruções do folheto, as crianças desejam fazer outra construção como
verificamos no exemplo 32:
Exemplo 32
P – vocês podem olhar... rapidinho... e depois fazem sem olhar ((referindo-se
às instruções do folheto do brinquedo))
Mx – ah::::: assim não dá::: ((risos))
P – ((risos)) ah::: mas é mais difícil... é um desafio né::... o que vocês querem
fazer daí?
Gi – dá pra fazer uma árvore
P – uma árvore e tem até um passarinho eu acho na árvore...né?
Gi – é... é um passarinho
Mx – eu:: quero tirar esse negócio daqui
P – você quer usar esse negócio da alavanca é isso?
Mx – é
P – tudo bem Giovanna? ou não?
Gi – a alavanca é a anteninha dele ((do barco))
P – ah:::: é mesmo
Mx – e também no barco ( )
P - aí olha
Mx – o barco ( ) a alavanca pode ser aqui... aqui
Gi – o corpinho dela:: ( )
Mx – pode também ser aqui no barco
P – também... então vocês vão fazer um barquinho agora?
Mx – é
P – tá bom...
Gi – cadê o barco ((procurando no folheto))
P - aí é a última coisa viu? infelizmente depois eu tenho que ir embora ((risos))
Mx – ah::: três horas
P – ai tem uns bem difíceis né
Gi – dá pra fazer árvore
P – é que o Marx quer porque quer usar a alavanca... e agora hein? vocês vão
ter que entrar num acordo
Gi – porque dá pra fazer esse aqui
Mx – ( ) ti::ra... tem que sair daqui ((mexendo nas pecinhas))... eu vou tirar a
alavanquinha ( )
Gi – olha... vamos fazer esse aqui que é mais fácil... bem mais fácil esse
((referindo-se a outro modelo de barco presente no folheto)
P – é::... é um barco::... mas é um pouquinho mais fácil né?
Dessa forma, (Gi) e (Mx) entram rapidamente em acordo a respeito do
que seria construído, e prosseguem montando o barco conjuntamente,
cooperando um com o outro sem a ocorrência de conflitos até o final da
gravação.
6.5 Ga e H – 10 anos
A gravação com as crianças de 10 anos, a menina (Ga) e o menino (H),
foi iniciada com a indagação da pesquisadora (P) a respeito de qual construção
seria realizada:
Exemplo 33
P- o que vocês têm em mente... pra construir juntos?...um ajuda o outro...tá?
H- um castelo...uma casa...uma torre::
Ga- UMA TORre...tipo Torre Eiffel
P- um castelo com uma torre...o que vocês acham?
Ga- ÉH::
H- dá pra ter uma idéia por aqui ((aponta um pôster da Torre Eiffel no mural da
sala de aula))
P- é mesmo...vocês têm francês aqui na Escola de Aplicação?
Ga- não...só na quinta
H- é... na quinta série
Observamos que (H) imagina as possibilidades de construções com as
peças dos jogos de que eles dispunham (Lego e peças de construção
compostas por barras e imãs). Poderia ser ―um castelo...uma casa...uma
torre::‖. (Ga) concorda efusivamente com a sugestão da torre, efetivando uma
entonação enfática que demonstra sua animação com a idéia: ―UMA TORre...‖,
e complementa: ―tipo Torre Eiffel‖. Nesse momento, (Ga) sanciona a face
positiva do colega. Em seguida, nota-se que (H) coopera com a colega,
preservando a sua face positiva (e, dessa forma, adotando uma estratégia de
cortesia positiva), ao falar que eles poderiam se inspirar no pôster da Torre
Eiffel que havia na sala em que ocorria a brincadeira. Nota-se que (H) coopera
com a colega, falando que eles poderiam se inspirar no pôster da Torre Eiffel
que havia na sala em que ocorria a brincadeira. (P), assim, faz uma digressão,
com a intenção de confirmar se as crianças cursavam aulas de Francês na
escola.
No exemplo 34, abaixo, (P) lembra que as crianças precisariam entrar
num acordo sobre o que iriam construir, mas faz uma ressalva, em tom de
brincadeira: ―ou não...‖. (H) entra no ―jogo‖ conversacional e no clima de humor
que estava permeando a interação:
Exemplo 34
P- vocês têm que entrar num aCORdo... ou não...né? ((tom de brincadeira))
H- é:: vamos partir pra BRIga (( brinca, fazendo gestos de quem vai brigar))
P, H e Ga – ((risos))
H- tá...então uma torre mesmo?
Ga- uma torre bem simples
H- éh::
P- é? os dois estão de acordo?
Fica clara, no exemplo 34, a incorporação da subjetividade e da
afetividade no discurso, através do enunciado em tom de brincadeira de (H):
―é:: vamos partir pra BRIga‖ e também dos marcadores conversacionais
paralinguísticos (gestos que insinuavam uma luta corporal). Verificamos que o
contexto da brincadeira permitiu a interrupção (Bonica, 1990) do
desenvolvimento das regras do jogo para que houvesse a introdução do
enunciado humorístico de (H). Posteriormente às risadas dos três interactantes,
(H) retoma a negociação sobre a definição do objeto da construção, buscando
a confirmação da colega: “tá...então uma torre mesmo?”. (Ga) entra em acordo
com (H), ratificando: “uma torre bem simples”.
Os exemplos 35 e 36, a seguir, são emblemáticos, no sentido da
demonstração da incorporação do ―faz-de-conta‖ e do pensamento abstrato
(Vygotsky, 2003), durante o desenvolvimento da brincadeira pelas crianças de
10 anos:
Exemplo 35
H- ah olha só que eu tive uma idéia... a prinCEsa... e o príncipe ((mostra que
uma barra com uma bolinha de imã grudada em cima poderia representar uma
princesa ou um príncipe))
Ga- aqui eu to montando um castelo... um castelo pequeno
P- é mesmo... e aí vocês fazem a torrezinha juntos aqui?
H- aqui olha
Ga- éh:: BOA::
P- muito bom... vocês são muito criativos
Exemplo 36
H- olha só... tive a idéia de fazer o bobo da co::rte
P- uhn:: legal... esse com os bracinhos assim pode ser o bobo da corte
Ga- eu vou por a bolinha ( )
H- não Gabi... sabe como você faz?... você tira esse porque o metal tanto faz o
lado... aí você pega este...VIra... e coloca
Ga- ah:: calma...o castelo tá torto
P- e como é que faz pra desentortar?
Ga- O CASTELO ((exclama ao ver o castelo caindo))
P- é como a Torre de Pisa... na Itália
Ga- éh:: a Torre de Pisa
P- o castelo torto ((risos))
H- o castelo de Pisa ((risos))
Verificamos nos exemplo 35 que (Ga) encontra uma solução para
representar a princesa e o príncipe no castelo que estava sendo construindo
através de uma barra, com uma bolinha magnética em cima. As duas crianças
permanecem em acordo na interação conversacional. No exemplo 36, (H)
expõe a idéia de fazer o bobo da corte, complementando os personagens
fictícios do castelo. (Ga) intenta ―montar‖ o bobo da corte, mas (H) não
concorda com o jeito que a colega estava fazendo e sugere: ―não Gabi... sabe
como você faz?... você tira esse porque o metal tanto faz o lado... aí você pega
este...VIra... e coloca‖. Trata-se, aqui, de uma regulação discursiva que exerce
a função de guia (pois H orienta a ação de Ga) e a função compensatória, ao
mesmo tempo, já que (H) corrige a atuação da colega. (Ga) não se opõe à
sugestão de (H), mas observa que o castelo estava ficando torto. O castelo,
posteriormente, começa a cair, o que faz com que (Ga) exclame, com
entonações enfáticas de seu enunciado: ―O CASTELO‖. Inicia-se nesse
momento mais uma série de enunciados humorísticos em que os três
interactantes comparam o castelo que estava sendo construído com a torre de
Pisa.
É possível verificar, portanto, nos fragmentos analisados, que as
crianças de dez anos cooperam uma com a outra no desenvolvimento das
regras e propósitos da brincadeira, o que se reflete na situação de acordo na
interação conversacional. Além disso, as crianças demonstram adentrar o
mundo ficcional com muita facilidade, engajando-se na atividade (Bateson,
2000).
6.6 R e Pd – 10 anos
As crianças (R) – a menina, e (Pd) – o menino, iniciam a brincadeira
decidindo com a pesquisadora (P) o que iriam construir juntos com os
brinquedos Lego e Megamag, como verificamos no exemplo 37:
Exemplo 37
P – e aí... o que vocês estão pensando... o que vocês acham que dá pra
construir com isso?
Pd – hum:::
P – tem que ser juntos tá? um ajuda o outro
R e Pd – ( )
P – um o quê?
R e Pd – um prédio
Pd – aqui olha... as quatro bolinhas ficam embaixo tipo assim equilibra::ndo
P – hum
Pd – uma em cima da outra e vai fazendo
R – e pra virar?
P – aí é com vocês... vocês é que são os engenheiros aí
R – olha dá pra fazer assim ó
Pd – tá assim por exemplo aí você coloca assi::m
P – hum::
Pd – eita...
Nos exemplos 38, 39 e 40 a seguir, as crianças de 10 anos prosseguem
discutindo o que poderia ser feito com todas as peças de que dispunham. Não
há presença de conflitos: ambos cooperam um com o outro, apresentam as
ideias do que pode ser construído, e tais ideias são complementadas ou
ratificadas pelo interlocutor (seja a outra criança, seja a pesquisadora).
Exemplo 38
R – que tal fazer um campo de futebol? ((risos))... ia ser engraçado
P – vocês que sabem
Pd – fa::z Rafaella um campo de futebol...prepara um gol aí... maior né?... tem
que ser igualzinho ao de rua... não tem goleiro... golzinho de rua
P – dá pra fazer por exemplo:: ( ) simular né?... aqui seria uma menininha...
né?
R – é::: é que não:: eu fiz o cabelinho aqui o cabelinho calma aí
P – é
Pd – ( )... oh::: descobriu o mundo ( )
R – ai:::
Pd – descobriu mesmo eu não sabia que existia isso aqui
Exemplo 39
R – não eu tava pensando... tem um Lego... aí a gente tava pensando tipo
construir a casa com o LEgo e tipo fazer o cenário com o Megamag
P – olha:: interessante hein?... porque dá pra usar os dois né?
R – é porque:: esse aqui:: é bom pra fazer tipo cenário entendeu? E aquele ali
é bom pra construir porque tem a peça ( )
P – ótimo
R – tipo você vai fazendo:: os prédios e eu vou fazendo o::: ah sei lá
Pd – ah dá pra fazer tipo assim uma casa ali um prédio aqui... um pequeno...
um campo de futebol... as pessoas andando::
R – então isso que eu tava pensando...
Exemplo 40
P – então como é afinal de contas? vocês vão fazer...
Pd – um prédio
R a gente vai faze::r... um cenário pro Magamag... e as construções com com
o:::
P – com o Lego
R – com o Lego
P – ó::timo... e o que vocês querem construir então?
R – a gente vai construi::r... um campo de futebo:::l
P – tá:::
R – um:::... e várias casinhas ( )
P – é... pode ser... porque em torno do campo de futebol tem prédios né...
tem... casas
As crianças finalmente acabam decidindo que utilizarão as peças do
Megamag (barras e imãs) para a montagem do cenário, e as peças do Lego
para as construções, em si. Dessa forma, iniciam a construção. Enquanto
constroem, cooperando uma com a outra, as crianças realizam digressões ao
tópico discursivo da brincadeira, como verificamos no exemplo 41, em que eles
imaginam o que as outras crianças que ficaram na sala de aula (e não
participaram da pesquisa) poderiam estar pensando naquele momento trata-
se da emergência de uma crença de segunda ordem (Perner & Wimmer, 1985),
já que elas ―pensam a respeito do pensamento de outras pessoas‖.
Além disso, verificamos o tom de humor nos turnos conversacionais das
duas crianças: neste exemplo, (R) ironiza a afirmação de (Pd) de que ―haveria
gente‖ que gostaria de perder aula para a realização da pesquisa, referindo-se
ao fato que o próprio (Pd), na verdade, gostaria de perder aula. Assim, no
enunciado ―é:: né:: Pacheco... “tem gente::”, (R) deixa subentendida a sua
ironia. Nesse caso, é uma forma de polidez positiva (Brown & Levinson, 1987),
já que (R) faz uso da ironia como uma forma de evitar a crítica direta, e assim
preserva a face positiva do colega.
Exemplo 41
R – todo mundo... AI que injusti::ça eles vão brincar e a gente vai ficar aqui::
fazendo lição::: ((risos))
P – ((risos) e vocês iriam ter aula do que agora?
Pd – matemática
R – CIÊNcias... a professora ia corrigir só... ah mas depois eu pego o caderno
da minha amiga
Pd – tem gente que gosta sabe por quê? porque perde aula ((fala baixinho)
P – é né ((risos))
R – é:: né:: Pacheco... ―tem gente::‖ ((risos))
P – tem gente::: ((risos))
Nos exemplos 42, 43, 44 e 45, verificamos que as crianças negociam
constantemente a maneira com que a construção deveria ser conduzida,
valendo-se, quase que invariavelmente, de turnos conversacionais
humorísticos, tais como: “o corpo tá fei:::to Jesus”, “(como) ficou muito
pequena? você queria que fosse o quê?”, começou... começou com esses
“tipo” aí (ironizando o costume da colega de falar constantemente a palavra
“tipo”), “o jardim é maior que a casa”, “não não quero fazer menina... não gosto
de meni::na... gosto...gosto de menina”. Todavia, apesar da menina (R)
adentrar o clima de humor que permeava a interação, pode-se verificar que o
menino (Pd) é o responsável pelo maior número de turnos conversacionais
humorísticos e/ou irônicos.
Exemplo 42
R – olha vai ficar assim o nosso jardim
Pd – e a cabeça da:: da menininha ali?
R – ta aqui ó... calma aí que eu não fiz o corpo... o corpo não os braços
Pd – o corpo tá fei:::to Jesus
R – não eu tô falando o BRAço... o braço não dá pra fazer
Pd – enTÃO... o corpo tá feito ali
R – ah então é só fazer a perna... depois eu faço calma ( )
Pd – ok::... esse aqui pode ser o:::
R – o::: a perna... dá aí
Exemplo 43
Pd – olha a casinha::...olha a casinha:::
R – AH Pacheco::... ficou muito peque::na:::
Pd – (como) ficou muito pequena? você queria que fosse o quê?
R - uma mansão ((risos))
Exemplo 44
R – não precisa faZER tipo::: assim:: faz::
Pd – olhá lá... ―TIPO‖...
R – ((risos))
Pd – começou... começou com esses ―tipo‖ aí ((ironia))
P e R – ((risos))
P – e você não fala ―tipo‖?
R – é::: não::: imagina:: ((ironia))
Exemplo 45
Pd – o jardim é maior que a casa
P – ((risos)) ah mas às vezes tem jardim que é maior que a casa mesmo
R – claro né... você quer que eu faça a casa?
Pd – não
R – você faz tipo::
Pd e R – ((risos))
R – tipo:::
P – eu vou colocar mais aqui no meio tá? ((o gravador))
R – ok::... tipo:::... ai eu vou desmontar es/esse coisinho aqui
Pd – não::... o caracol gigante::
R – ((risos)) ai ai ai:::... deixa eu fazer Pacheco... você faz a:: menina
Pd – não não quero fazer menina... não gosto de meni::na... gosto...gosto de
menina ((risos))
P – ((risos)) gosta ou não gosta? decide...
R – ((risos)) ―ele não gosta de menina‖... eu ―ahn?‖
Pd – eu amo eu amo:: eu não gosto
A partir do exemplo 46, e até o final da interação conversacional entre
(R) e (Pd), passamos a verificar digressões ao tópico discursivo da
brincadeira/construção. O assunto preferido passa a ser os relacionamentos
interpessoais com as outras crianças. Dessa forma, no exemplo 46 as crianças
imaginaram o que falariam aos seus colegas de classe quando voltassem à
sala de aula, após a brincadeira. Já no exemplo 47, o assunto era a diferença
entre meninos e meninas e o modo com que uns irritam os outros. Por fim, no
exemplo 48, o mote da discussão era a beleza física de outra coleguinha: (R)
estava curiosa para saber a opinião de (Pd) a respeito.
Exemplo 46
R – agora quando a gente chegar na classe todo mundo ―como que foi... o que
vocês fizeram?‖ ((risos))
Pd – fala assim fala assim é::: ―a gente tava estudando‖
R – (vou falar) que tinha que fazer uma prova... pra ver quanto que foi:: a
nossa::
Pd – ( ) viajou o mundo
R – viajou o mundo ((risos))
P – ((risos)) não... fala que a criatividade de vocês foi testada ((risos))
Exemplo 47
Pd – como é que ele fala mesmo é:::
R – mas ele fala engraçado... só que ele é muito chato
Pd – ele:::
R – as/os meninos têm o poDER de irritar as meninas
P – é né? ((risos))
Pd – e as meninas não alcançam::... não chegam nem perto dos meninos
R – é claro é que a gente é mais ( ) que vocês
Pd – ahn::: ((ironia))... mais rápida eu garanto que não
R – eu sou mais rápida que você Pacheco
Pd – ah há há
R – sou sim
Pd – eu sou o Bozo então... eu sou o Bozo
Exemplo 48
R – sabe a Luísa::... Pacheco? aquela da minha perua?
Pd – sei
R – ela é feia não é?
Pd – não:: ((ironia)) lógico
R – ―não lógico‖ ((risos))
Pd – ela passa um batom que ela parece a:::
R – Morticia
Pd – não a Morticia não... parece a Hebe... muito feia
R – ((risos))
Todavia, apesar das digressões permeadas de humor, a construção
lúdica, em si, era efetivada com a cooperação mútua entre as duas crianças.
Não verificamos estratégias de polidez/cortesia verbal novamente, no que diz
respeito ao contexto da brincadeira. Contudo, como verificamos no exemplo 41,
os enunciados irônicos, caso tenham o objetivo de minimizar uma crítica
direta/ofensiva, podem ser considerados uma forma de polidez positiva, e isto
foi verificado no exemplo 47, quando (Pd) afirma ironicamente: ―eu sou o Bozo
então... eu sou o Bozo‖.
Considerações Finais
O valor de praticar com rigor, por algum
tempo, uma ciência rigorosa não está propriamente
em seus resultados: pois eles sempre serão uma
gota ínfima, ante o mar das coisas dignas de saber.
Mas isso produz um aumento de energia, de
capacidade dedutiva, de tenacidade; aprende-se a
alcançar um fim de modo pertinente. Neste sentido é
valioso, em vista de tudo o que se fará depois, ter
sido um homem da ciência.
(Nietzsche)
Considerando-se todos os exemplos analisados, é possível concluir que
há traços interacionais que se sobressaem no contexto conversacional de cada
faixa etária observada. A análise dos exemplos selecionados de interação
conversacional entre as crianças de cinco anos, (S) e (M), demonstrou que, na
gravação realizada, a menina (S) buscou a negociação interpessoal/resolução
de conflitos sempre que possível, em virtude de sua disposição para adentrar o
mundo ficcional, isto é, entrar no jogo, literalmente, assumindo suas regras ou
criando outras novas. O menino (M), por sua vez, incitou o desacordo em
vários momentos do jogo, desmontando o que haviam construído para
instaurar o conflito, afirmando o seu ―eu‖ para se diferenciar do outro.
No caso específico dos exemplos analisados, podemos ainda concluir
que os modos interativos da regulação da atividade, em que as crianças estão
engajadas (o jogo de construção), aparecem no discurso dos dois interactantes
de cinco anos, embora com uma predominância no discurso da menina (S).
Isso demonstra que ambos se engajaram no ―jogo conversacional‖, cooperando
com a manutenção da interação, regulando seus respectivos discursos e, ao
mesmo tempo, regulando o discurso dos interlocutores.
Em alguns momentos, também pudemos constatar que a existência, ora
da negociação interpessoal (ou ao menos da tentativa de atingi-la), ora do
conflito/desacordo, está relacionada com o conhecimento que uma criança tem
das perspectivas e crenças da outra, já aos cinco anos de idade.
Tais crenças de segunda ordem também foram verificadas na interação
entre a outra dupla de crianças de cinco anos, (C) e (T). No entanto, nesse
caso, o menino (C) demonstrou mais engajamento ao propósito da brincadeira,
enquanto a menina (T) efetivou inúmeras digressões ao tópico discursivo em
andamento. Esse fato, que poderia causar conflitos na interação entre as duas
crianças, foi contornado pela atuação discursiva de (C), que efetuou a maior
parte das regulações discursivas a fim de que o jogo prosseguisse.
Assim, foi possível observar, através da análise dos exemplos extraídos
dos corpora, que a regulação discursiva é um fenômeno que pode emergir nas
interações conversacionais de crianças bem pequenas — aos cinco anos de
idade, nesse caso. Elas já conseguem, ao mesmo tempo, elaborar atos
comunicativos de regulação do discurso baseados na crença que elas têm dos
pensamentos dos outros, isto é, as crenças de segunda ordem. Tal fato nos
permite concluir que a teoria da mente, nessas crianças, já se encontra ativa e
participante do processo comunicativo, uma vez que elas são capazes de
assumir a perspectiva de seu interlocutor no processo de negociação
interpessoal.
A interação conversacional entre as crianças de oito anos, por outro
lado, caracterizou-se, essencialmente, pela cooperação entre as crianças, as
quais se mostravam realmente engajadas na atividade lúdica e, por isso,
entravam em acordo/negociavam muito facilmente. Não foram observadas
digressões ou introdução de elementos característicos do ―faz-de-conta‖ na
interação entre (Ma) e (Ge), tampouco na interação entre (Gi) e (Mx). Torna-se
interessante observar que as crianças de oito anos pouco interagiram com a
pesquisadora. Além disso, não foram observadas diferenças significativas
quanto ao gênero dos interactantes: meninos e meninas de oito anos
cooperavam uns com os outros de maneira relativamente semelhante, rumo à
negociação interpessoal.
Todavia, se nos exemplos analisados das crianças de oito anos houve
uma ausência de elementos ficcionais ao longo da brincadeira, podemos
afirmar exatamente o contrário em relação aos exemplos de (Ga) e (H), de dez
anos. Desde o início da interação, a imaginação, as digressões, as
comparações com o que pode ser observado em construções do mundo real,
enriquecem a comunicação entre as crianças, e entre as crianças e a
pesquisadora. A negociação interpessoal, nesse sentido, também é atingida
facilmente, uma vez que o contexto de ―faz-de-conta‖, no qual os três
interactantes adentram, possibilita a existência do acordo.
As digressões também marcaram a interação entre (R) e (Pd). No
entanto, ao contrário do que ocorreu com as crianças de cinco anos, (C) e (T),
tais digressões não interferiram na atuação lúdica: os tópicos discursivos
variavam, mas a construção lúdica era mantida, ao mesmo tempo. Os
enunciados humorísticos constituíram característica essencial do processo de
negociação interpessoal entre (R) e (Pd) e, sem dúvida, garantiram a ausência
de conflitos. Nesse sentido, o menino (Pd) utilizou-se mais da ironia ao interagir
com a colega, evitando as críticas diretas.
Também foi possível constatar que a regulação discursiva da
pesquisadora (P), tão necessária ao direcionamento da atividade nas
interações conversacionais com os dois pares de crianças de cinco anos, não
apresentou tanta importância na interação com as crianças de oito anos. Em
relação às crianças de dez anos, verificamos que a sua interação
conversacional com a pesquisadora ocorria muito mais no plano interpessoal,
isto é, fazendo emergir assuntos paralelos à atividade lúdica em si.
Finalmente, é importante salientar que o estudo da negociação
interpessoal infantil é cercado de nuances complexas, que dizem respeito tanto
a aspectos linguísticos, como cognitivos e que, eventualmente, podem não ter
sido observados em sua totalidade nos corpus da presente pesquisa. Além
disso, não podemos efetuar generalizações sobre a universalidade de nossas
conclusões, uma vez que este estudo apresentou um caráter metodológico
qualitativo. Entretanto, cremos que nosso objetivo de realizar uma análise que
levasse em conta tanto os aspectos interacionais como cognitivos desse tipo
de interação foi alcançado.
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