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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas Área de Filologia e Língua Portuguesa Giovanna Wrubel Brants Investigação do processo de negociação interpessoal infantil em situação lúdica: aspectos interacionais e cognitivos (Versão Corrigida) Orientador: Prof. Dr. Luiz Antonio da Silva São Paulo 2010

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas Área de Filologia e Língua Portuguesa

Giovanna Wrubel Brants

Investigação do processo de negociação interpessoal infantil em situação lúdica: aspectos interacionais e

cognitivos

(Versão Corrigida)

Orientador: Prof. Dr. Luiz Antonio da Silva

São Paulo 2010

GIOVANNA WRUBEL BRANTS

Investigação do processo de negociação interpessoal infantil em situação lúdica: aspectos interacionais e

cognitivos

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas de São Paulo, para obtenção do título de Doutora em Letras (versão corrigida). Área de concentração: Filologia e Língua Portuguesa. Orientador: Prof. Dr. Luiz Antônio da Silva

São Paulo 2010

BRANTS, G. W. Investigação do processo de negociação interpessoal infantil em situação lúdica: aspectos interacionais e cognitivos. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas de São Paulo, para obtenção do título de Doutora em Letras.

Aprovado em:

Banca Examinadora

Prof. Dr. _______________________________________Instituição: ______________

Julgamento: ____________________________________ Assinatura: ______________

Prof. Dr. _______________________________________Instituição: ______________

Julgamento: ____________________________________ Assinatura: ______________

Prof. Dr. _______________________________________Instituição: ______________

Julgamento: ____________________________________ Assinatura: ______________

Prof. Dr. _______________________________________Instituição: ______________

Julgamento: ____________________________________ Assinatura: ______________

Prof. Dr. _______________________________________Instituição: ______________

Julgamento:____________________________________ Assinatura: ______________

"Como é por dentro outra pessoa

Quem é que o saberá sonhar?

A alma de outrem é outro universo

Com que não há comunicação possível,

Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma

Senão da nossa;

As dos outros são olhares,

São gestos, são palavras,

Com a suposição de qualquer semelhança

No fundo."

Fernando Pesssoa

Dedico este trabalho

à memória de meu pai,

Vilmar E. Wrubel

e ao meu marido, Erich Brants.

Agradecimentos

Ao caríssimo Prof. Dr. Luiz Antônio da Silva, por ter aceitado o desafio de

dar prosseguimento à minha orientação no doutorado. Desde os tempos do

mestrado tenho sido agraciada com sua generosidade, sabedoria e sugestões

preciosas na condução de meus trabalhos.

À Profa. Dra. Lélia Erbolato Melo. A sua orientação na primeira fase de meu

doutorado teve um valor inestimável para a definição dos alicerces e para o

desenvolvimento da presente pesquisa.

À Profa. Dra. Sueli Cristina Marquesi e à Profa. Dra. Clara Brandão, pelas

valiosas sugestões e indicações no momento do Exame de Qualificação.

À Profa. Dra. Idméa Semeghini-Siqueira que, ao me orientar no período de

Iniciação Científica, plantou as sementes de meu apreço pela pesquisa

acadêmica.

À CAPES, pela bolsa de fomento à pesquisa que viabilizou o término deste

projeto, na medida em que possibilitou minha dedicação em tempo integral ao

doutorado, e pela bolsa do doutorado-sanduíche do qual participei na UFRN.

Aos caros colegas do Departamento de Linguística e do Departamento de

Letras Clássicas e Vernáculas – Renata Palumbo, Priscila Fiorindo, Renira

Cirelli, Artarxerxes Modesto, Daniela Pannuti, Andressa Barboza e Liliana

Moretti, pela amizade e pelos ricos diálogos acadêmicos.

Aos professores e colegas que fiz no decorrer Doutorado-Sanduíche,

realizado no Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande

do Norte, no âmbito do projeto intitulado Análise de Textos e Discursos:

Gêneros, Interação, Sociocognição e Ensino de Língua Portuguesa, financiado

pela CAPES, Edital PROCAD/NF 21/2009.

Aos amigos: Giuliano, Alexandre, Karina, César, Andrés, Marceli e

Katyuscia que, mesmo distantes fisicamente, acompanharam minha trajetória

ao longo do doutorado de muito perto no sentido afetivo, ouvindo-me e

incentivando-me.

À minha mãe Rosita, à minha irmã Gianna e ao meu marido Erich, pelo

constante incentivo e apoio carinhoso ao longo de todo este processo.

Resumo

O objetivo principal da presente pesquisa é a investigação das estratégias interacionais e cognitivas adotadas por crianças nas suas conversações, em situação lúdica, a fim de que a negociação interpessoal seja estabelecida. Pretendemos, dessa forma, observar como as crianças procederam para desfazer as eventuais complicações que surgiram no curso da negociação, até o restabelecimento de uma troca conversacional equilibrada. Nesse sentido, o estudo em questão nos permitiu compreender melhor a transição entre os momentos de acordo e de desacordo/conflito instaurados nas interações sociais entre as crianças, nos processos de diferenciação ―eu–outro‖ (Wallon, 1987). A partir da análise de amostras de interações conversacionais de crianças de 5, 8 e 10 anos, no contexto do evento lúdico (jogo de construção), identificamos as ocorrências de implicaturas conversacionais (Grice, 1982), conflitos, equívocos, regulações discursivas (Caron, 1983) e mecanismos de ameaça e preservação das faces (Goffman, 1967) durante o processo discursivo, que estimularam a criança a argumentar em favor de suas próprias crenças a respeito dos fatos, culminando, muitas vezes, no surgimento da negociação interpessoal com a outra criança e/ou com o adulto. Foi igualmente possível verificar, nesse contexto, a percepção que as crianças têm dos estados mentais (desejos, crenças, intenções, etc.) dos outros − que, por sua vez, diferem de seus próprios estados mentais (Perner & Wimmer, 1985). Foram realizadas gravações em áudio de seis pares de crianças, de ambos os sexos, na presença da pesquisadora. Cada sessão foi constituída da gravação de um evento lúdico completo, isto é, pela abertura, desenvolvimento e finalização do jogo. Tais gravações foram transcritas posteriormente, de acordo com as Normas para Transcrição, comumente utilizadas pelos pesquisadores do Projeto NURC/SP — Projeto de Estudo da Norma Linguística Urbana Culta de São Paulo. Posteriormente à transcrição dos dados coletados, empreendemos uma análise de cunho qualitativo de amostras de conversação entre as crianças e/ou entre as crianças e a pesquisadora. Considerando-se todos os exemplos analisados, foi possível concluir que há traços interacionais que se sobressaem no contexto conversacional de cada idade observada, o que se reflete na mobilização de diferentes estratégias de negociação interpessoal.

Palavras-chave: interação conversacional infantil; negociação interpessoal; psicolinguística.

Abstract

The main objective of this research is to investigate interactional and cognitive strategies adopted by children in their conversations, on a playing situation, in order to establish an interpersonal negotiation. We intend, therefore, to observe how children proceeded to undo eventual complications that arise in the course of negotiation until a balanced conversation is restored. Accordingly, the present study allowed us to better understand the transition between moments of agreement and disagreement/conflict which happens at social interactions among children, described by Wallon in 1987 as the process of differentiating "self-other". Analyzing samples from conversational interactions among children aged 5, 8 and 10 years, in a context of a playing event (building game), we have identified instances of conversational implications (Grice, 1982), conflicts, misunderstandings, discursive regulations (Caron , 1983) and mechanisms of threat and face-saving (Goffman, 1967) during the discursive process, which encouraged children to argue for their own beliefs about facts, resulting often in the emergence of interpersonal negotiation with another child and/or with adults. In this context, it was also possible to verify the perception that children have about mental conditions of others (desires, beliefs, intentions, etc.), which differ from their own mental conditions (Perner & Wimmer, 1985). Audio recordings were made of six pairs of children from both sexes, in the presence of the researcher. Each session consisted on a recording of a complete playing event, which encompasses the opening, development and completion of the game. These recordings were transcribed later, according to the Standards for transcription, commonly used by researchers from the NURC / SP - Project for the Study of the Cult Urban Language Standard of São Paulo. After the transcription of data collected, we undertook a qualitative analysis of samples from conversation between children and/or between children and researcher. Considering all samples analyzed, it was possible to conclude that there are interactional traces which stand out in conversational context on each observed age, which is reflected in the utilization of different interpersonal negotiation strategies. Keywords: child conversational interaction; interpersonal negotiation; psycholinguistics.

Apresentação Pessoal

A motivação inicial para a realização desta pesquisa de doutorado se

inscreve no âmbito das indagações surgidas no decorrer do processo de

elaboração de nossas pesquisas de Iniciação Científica e de Mestrado. A

primeira, realizada na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo,

sob a orientação da Profª Drª Idméa Semeghini-Siqueira, versava sobre um

estudo exploratório das violências, conscientes ou não, que subjazem às

práticas pedagógicas de linguagem, bem como do clima relacional construído

em sala de aula para realização de atividades de oralidade, leitura e escrita em

diferentes disciplinas. Nessa investigação, pudemos realizar um primeiro

contato com o campo teórico da Psicolinguística (aplicada ao meio

educacional), que respaldou a análise dos dados coletados na pesquisa de

campo.

A seguir, na pesquisa em nível de Mestrado, desenvolvida no

Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH-USP (área de

Filologia e Língua Portuguesa), sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Antônio da

Silva, investigamos o processo de constituição das relações de poder nas

interações conversacionais entre professor e alunos em sala de aula, com o

olhar voltado para a questão da polidez linguística1, da simetria/assimetria na

interação, da argumentação com vistas à manutenção do poder da fala, etc.

Nesse sentido, a análise dos corpora desta pesquisa apoiou-se essencialmente

no campo teórico da Análise da Conversação e da Pragmática Linguística

aplicada à Educação.

Ao ingressarmos no programa de Doutorado em Semiótica e Linguística

Geral da Universidade de São Paulo e, a partir de sugestões de nossa primeira

orientadora, a Profª Drª Lélia Erbolato Melo, optamos pelo estudo das

interações conversacionais infantis, imbricando os campos teóricos da

Psicolinguística, da Análise da Conversação e da Pragmática. A escolha do

tema desta pesquisa (condutas de negociação interpessoal em situações

conversacionais infantis) ocorreu, portanto, em decorrência de nossa

experiência acadêmica anterior.

No decorrer da pesquisa, sentimos a necessidade de um

aprofundamento dos subsídios teóricos e metodológicos concernentes à área

de atuação do Prof. Dr. Luiz Antônio da Silva – a Análise da Conversação e,

mais especificamente, os estudos sobre polidez linguística - motivo pelo qual

julgamos ser conveniente a realização de transferência de nossa orientação

para o Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas.

1 Utilizaremos daqui em diante a expressão polidez linguística como sinônimo para a expressão cortesia

verbal. As duas expressões são igualmente utilizadas por pesquisadores da área de Análise da

Conversação.

SUMÁRIO

Considerações Iniciais...............................................................................14

1. As interações conversacionais infantis. .................................................20

1.1. Sobre a Análise da Conversação......................................................20

1.2. Sobre a Pragmática Linguística..........................................................30

1.3. A Pragmática Desenvolvimental.........................................................35

1.4. A Sociolinguística Interacional...........................................................43

2. Relações entre linguagem, cultura e cognição no discurso infantil.....52

2.1. A “teoria da mente” na criança...........................................................56

3. Considerações acerca do desenvolvimento pragmático-linguístico da

criança, e sua correlação com o “brincar”..............................................73

4. Explorando as condutas de negociação interpessoal nas interações

conversacionais infantis............................................................................81

4.1. Acordos e desacordos no processo de negociação........................84

4.2. A regulação do discurso.....................................................................90

4.3. Os FTAs (Face Threatening Acts) e a cortesia verbal no discurso

infantil...................................................................................................94

5. Material e Método.....................................................................................107

5.1. Material................................................................................................107

5.2. Método................................................................................................109

6. Análise qualitativa do corpus..................................................................117

6.1. S e M – 05 anos..................................................................................118

6.2. C e T – 05 anos...................................................................................132

6.3. Ma e Ge – 08 anos..............................................................................147

6.4. Gi e Mx – 08 anos...............................................................................154

6.5. Ga e H – 10 anos................................................................................163

6.6. R e Pd – 10 anos.................................................................................169

Considerações Finais....................................................................................179

Referências bibliográficas............................................................................184

Anexo - Fotos das crianças em situação lúdica com os brinquedos

selecionados para a pesquisa......................................................................199

Considerações iniciais

Pudemos verificar, por meio de longa revisão da literatura, que os

estudos relativos à análise da conversação infantil, sob o ponto de vista teórico

que empreendemos nesta pesquisa (imbricando os campos teóricos da Análise

da Conversação, Pragmática e Psicolinguística) são extremamente raros. Hage

et. al. (2007), por exemplo, consideram que os estudos sobre o

desenvolvimento das competências pragmáticas pelas crianças é recente, se

comparado à profusão de estudos sobre o desenvolvimento de habilidades

fonológicas, semânticas ou sintáticas.

Nesta direção, a realização desta pesquisa se justifica em virtude de

nossa intenção de contribuir com o desenvolvimento de uma metodologia de

pesquisa que leve em conta as contribuições teóricas de tais campos, quando

se tem como objetivo a análise das competências linguísticas (pragmático-

discursivas) e cognitivas, nas interações conversacionais entre criança-adulto e

criança-criança.

Além disso, esperamos que os resultados advindos desta pesquisa

possam constituir uma fonte de contribuição científica aos educadores e outros

profisssionais (psicólogos, psicolinguistas, fonoaudiólogos, etc.) que atuam na

área da linguagem oral infantil, e aos seus respectivos cursos de formação.

Nesta perspectiva, o objetivo geral da presente pesquisa é a

investigação das estratégias interacionais e cognitivas adotadas por crianças,

em situação de interação conversacional em contexto lúdico, a fim de que a

negociação interpessoal seja estabelecida.

Paralelamente, apresentamos os seguintes objetivos específicos:

a) Observar como as crianças procedem para desfazer, pouco a pouco, as

situações ambíguas e as eventuais complicações que surgem no curso da

negociação, até o restabelecimento de uma troca conversacional equilibrada.

Nesse sentido, o estudo em questão nos permitirá compreender melhor a

transição entre os momentos de acordo e de desacordo/conflito, instaurados

nas interações sociais entre as crianças, nos processos de diferenciação ―eu–

outro‖. Em outras palavras, esses momentos de interação oferecem indícios do

modo como a criança passa a reconhecer o outro como um agente mental

diferente de si, isto é, que possui crenças, intenções, perspectivas sobre os

fatos, etc., que diferem das suas (as chamadas teorias da mente). Dessa

forma, a intenção é correlacionar as condutas linguageiras/pragmáticas com a

teoria da mente na criança.

b) Identificar as ocorrências de implicaturas conversacionais (pressupostos,

subentendidos, inferências, etc.), conflitos, equívocos e desacordos, durante o

processo discursivo, que estimulam a criança a argumentar em favor de suas

próprias crenças a respeito dos fatos, culminando, muitas vezes, na

emergência da negociação interpessoal com a outra criança e/ou com o adulto.

c) Descrever as estratégias linguísticas de cortesia verbal e dos FTAs (Face

Threatening Acts, ou atos ameaçadores da face) que podem ser observadas

nesse processo.

A partir da revisão da literatura realizada, formulamos as seguinte

hipóteses:

a) A observação do comportamento linguístico de crianças em situações de

interação conversacional, em contexto lúdico, permite que avaliemos a

emergência de condutas comunicativas/linguísticas em direção ao

estabelecimento de uma negociação interpessoal.

b) Consideramos, ainda, que seja possível verificar, nesse contexto, a

percepção que as crianças têm dos estados mentais (desejos, crenças,

intenções, etc.) dos outros − que, por sua vez, diferem de seus próprios

estados mentais.

No decorrer da análise dos dados coletados, buscaremos respostas para

as seguintes questões:

a) A ocorrência de equívocos, mal-entendidos, conflitos, desacordos e

ambiguidades durante a interação promove um direcionamento da interação

para o surgimento da negociação interpessoal? Quais são as estratégias

interacionais mobilizadas pelas crianças nesse processo?

b) A escolha das verbalizações pela criança, durante a brincadeira, está

associada às crenças, intenções, desejos e perspectivas que ela assume

diante das verbalizações de seus interlocutores (criança ou adulto), ou seja, às

suas teorias da mente? É possível correlacionar os momentos de emergência

de teorias da mente na criança com o desenvolvimento da negociação

interpessoal na interação?

c) Em quais momentos da interação a regulação discursiva/tutela exercida pela

pesquisadora torna-se necessária para o direcionamento/orientação da

brincadeira? De que maneira essas intervenções contribuem (ou não) para o

processo de negociação interpessoal entre as crianças, e entre as crianças e a

pesquisadora?

d) Quais as diferenças observadas em relação às estratégias linguísticas e

cognitivas que emergem no discurso das crianças de 5, 8 e 10 anos de idade?

e) Há diferenças em relação ao sexo das crianças, no que diz respeito às

verbalizações observadas? Observaremos, nesse sentido, se há uma

predominância das verbalizações de meninos ou de meninas, ao buscarem o

acordo e a negociação interpessoal, em uma situação de conflito.

Nessa direção, dividimos o presente trabalho em seis capítulos: no capítulo

1, discorreremos sobre os pressupostos teóricos básicos da Análise da

Conversação, da Pragmática e da Sociolinguística Interacional, que servirão de

esteio à análise que empreenderemos, posteriormente, das interações

conversacionais infantis. Deteremo-nos especialmente na questão da

Pragmática Desenvolvimental, uma vez que tal área de estudo se situa no

entrecruzamento de diversas disciplinas fundamentais ao exame das

peculiaridades das interações dialógicas entre as crianças.

No capítulo 2, trataremos das relações entre linguagem, cultura e cognição

no discurso infantil, incluindo um subcapítulo especial dedicado à teoria da

mente na criança.

O capítulo 3 abrange considerações acerca do desenvolvimento

pragmático-linguístico da criança, e sua correlação com o ―brincar‖.

O capítulo 4 é dedicado à exploração da questão das condutas de

negociação interpessoal nas interações conversacionais infantis. Nesse

capítulo, trataremos dos acordos e desacordos no processo de negociação, da

questão da regulação do discurso e, finalizando a fundamentação teórica de

nossa pesquisa, discorreremos sobre os FTAs e a polidez linguística no

discurso infantil.

O capítulo 5 será dedicado à descrição da metodologia de pesquisa que

utilizamos neste projeto, bem como o material selecionado para a coleta de

dados na pesquisa de campo. Finalizamos este capítulo com um quadro

referente às categorias de análise selecionadas a partir da fundamentação

teórica da pesquisa.

Finalmente, no capítulo 6, realizaremos a análise qualitativa do corpus,

tendo como referência as categorias de análise selecionadas no capítulo 5.

Serão analisadas amostras de transcrição referentes a seis pares de crianças

em situação de interação conversacional: 02 pares de crianças de 05 anos, 02

pares de crianças de 08 anos e 02 pares de crianças de 10 anos de idade,

respectivamente.

1. As interações conversacionais infantis.

A verdadeira substância da língua não é constituída por um

sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação

monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua

produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal.

(Mikhail Bakhtin)

Refletiremos, no presente capítulo, a respeito dos estudos concernentes à

Análise da Conversação, à Pragmática e à Sociolinguística Interacional, que

servirão de esteio à análise que empreenderemos, posteriormente, das

interações conversacionais infantis. Deteremo-nos especialmente na questão

da Pragmática Desenvolvimental, uma vez que tal área de estudo se situa no

entrecruzamento de diversas disciplinas fundamentais ao exame das

peculiaridades das interações dialógicas entre as crianças.

1.1 Sobre a Análise da Conversação

Consideramos que, para o exame detalhado das negociações interpessoais

em situações conversacionais infantis, torna-se necessária a utilização de

conceitos advindos de teorias pertencentes à Análise da Conversação, já que a

língua falada possui características específicas de organização textual.

De acordo com Marcuschi (1998), a Análise da Conversação (AC) teve

início na década de 60 com estudos de Etnometodologia e de Antropologia

Cognitiva, preocupando-se principalmente com a descrição das estruturas da

conversação e seus mecanismos organizadores. Atualmente, há uma

tendência em se observar outros aspectos envolvidos na atividade

conversacional. Assim, de acordo com Gumperz (1982), a AC deveria se

preocupar, sobretudo, com a especificação dos conhecimentos linguísticos,

paralinguísticos e socioculturais que devem ser partilhados para que a

interação seja bem sucedida. Para Marcuschi (1998), esta perspectiva

ultrapassa a análise das estruturas e atinge os processos cooperativos

presentes na atividade conversacional, fazendo com que o problema central

passe da organização para a interpretação.

Quanto à metodologia da AC, o autor afirma que o procedimento é o da

indução, já que não existem modelos a priori. A AC parte de dados empíricos

em situações reais e, por isso, possui uma vocação naturalística com poucas

análises quantitativas, prevalecendo as descrições e interpretações

qualitativas. É também em virtude desta vocação empirista que a AC se

distingue da Análise do Discurso e da Pragmática Filosófica, já que a sua

motivação histórica é de proveniência etnometodológica, etnográfica e

sociológica: ―a AC estabeleceu desde o início sua preocupação básica com a

vinculação situacional e, em consequência, com o caráter pragmático da

conversação e de toda atividade linguística diária‖ (MARCUSCHI, 1998. p.8).

Marcuschi (1998, p.15) ressalta as cinco características básicas

constitutivas da organização elementar da conversação:

(a) interação entre, pelo menos, dois falantes;

(b) ocorrência de, pelo menos, uma troca de falantes;

(c) presença de uma sequência de ações coordenadas;

(d) execução numa identidade temporal;

(e) envolvimento numa ―interação centrada‖.

O autor ainda discute a organização turno a turno das conversações; o

turno conversacional pode ser considerado como aquilo que um falante faz ou

diz enquanto tem a palavra, incluindo a possibilidade do silêncio.

Sacks, Schegloff e Jefferson, no artigo clássico de 1974, discorrem

sobre a sistemática elementar para a organização da tomada de turnos na

conversação. Para os autores, este é um tópico de relevante importância aos

pesquisadores interessados em estudar os aspectos sociológicos dos sistemas

de trocas de fala, uma vez que a tomada de turnos é usada nas mais diversas

situações cotidianas: na ordenação de movimentos em jogos, no atendimento a

clientes em estabelecimentos comerciais, na fala em entrevistas, reuniões,

debates, cerimônias, conversas, etc.

A conclusão de um turno, para os autores, pode se dar a qualquer

momento em que ocorra um lugar relevante para a transição (LRT). O LRT

seria um ponto em que o ouvinte percebe que o turno do interlocutor está

concluído. Assim, as pausas, os silêncios e as hesitações, podem configurar

lugares relevantes para a transição de um turno a outro.

Para Galembeck (1999, p. 72), contudo, o conceito de lugar relevante

para a transição (LRTs) é intuitivo e, por esse motivo, o analista da

conversação pode encontrar dificuldades na determinação dos LRTs, mesmo

que assuma a perspectiva do ouvinte:

Essas dificuldades decorrem da circunstância de não ser

o final do turno algo que se evidencie por si, assim, é

preciso identificar os LRTs pelo maior número possível de

pistas ou marcadores de final de turno: a entoação

ascendente e a descendente, a pausa conclusa, os

marcadores verbais (sabe?, né?, entende?, não é?), os

gestos.

De acordo com Galembeck (1999, p. 72), há duas modalidades de

passagem de turno: a passagem requerida pelo falante (caracterizada por uma

pergunta direta ou pela presença de marcadores que testam a atenção ou

buscam a confirmação do ouvinte), e a passagem consentida, que consiste em

uma entrega implícita do turno, em que o lugar relevante para a transição é

assinalado pelo final de uma frase declarativa

Pode ainda ocorrer a situação de ―assalto ao turno‖, que é marcado pelo

fato de o ouvinte intervir sem que sua participação seja direta ou indiretamente

solicitada. O assalto ao turno pode se manifestar a partir de ―uma deixa‖ ou

não. No caso do assalto ao turno com ―deixa‖, o ouvinte aproveita-se de um

momento de hesitação do falante caracterizado por pausas, alongamentos,

repetições de palavras ou sílabas.

Já o caso do assalto sem ―deixa‖ é caracterizado pela entrada brusca e

inesperada do ―assaltante‖ no turno do interlocutor, o que determina o

surgimento da sobreposição de vozes.

Marcuschi (1998, p. 25) afirma que a sobreposição de vozes também

pode ocorrer, por exemplo, nos casos em que o ouvinte concorda, discorda,

endossa, etc. o falante com pequenas produções, como "sim‖, "tá bom", ―é‖,

―ahã‖, ―claro‖, etc.

Ainda sobre a questão das sobreposições de vozes, Preti e Urbano

(1990) consideram que em qualquer diálogo sempre haverá a predominância

de um interlocutor sobre o outro, em virtude dos fatores psicossociais que

agem sobre a interação. Assim, de acordo com os autores, a simetria absoluta

em uma interação conversacional é impossível sempre ocorre uma luta pela

palavra:

(...) o que significa, de certa forma, a luta pela supremacia

de opiniões, a qual deve ser entendida em última análise

como um dos tantos capítulos da luta pelo poder social,

mesmo quando se limita às fronteiras da família. E dessa

luta fazem parte os vários fatores que cercam os falantes,

seu verdadeiro background psicossocial: seu status, nível

cultural, poder econômico, faixa etária, temperamento,

relações de dependência na escala social, etc. Esses

fatores podem ter influência sobre fenômenos como a

sobreposição de vozes na conversação (PRETI e

URBANO, 1990, p. 100-101).

Outra característica importante a ser analisada nas interações

conversacionais são as sequências interativas. Marcuschi (1998), nesse

sentido, discorre sobre a organização de sequências na conversação,

enfatizando as sequências mínimas, que se estendem por dois ou três turnos e

podem aparecer em qualquer momento da conversação. Dessa forma, cita a

noção de par adjacente ou par conversacional, que constitui uma sequência de

dois turnos que co-ocorrem e servem para a organização local da conversação.

Dentre os exemplos de pares conversacionais, podemos citar:

Pergunta-resposta;

Ordem-execução;

Convite-aceitação/recusa;

Cumprimento-cumprimento;

Xingamento-defesa/revide;

Acusação-defesa/justificativa;

Pedido de desculpa-perdão.

De acordo com o autor (MARCUSHI, 1998, p. , os pares conversacionais

trazem uma importante consequência metodológica para a AC: indicam que

não é a simples ação linguística, mas sim a sequência de atividades que se

presta como unidade para análise; ou seja, o ato de fala não é a unidade mais

adequada para a análise dos mecanismos conversacionais.

Nesta direção, Wolf (1994, p. 200-201) afirma que o interesse pelos

pares adjacentes reside no fato de permitirem um trabalho de interação

negociada, que um só enunciado não pode explicar:

Mediante a segunda parte de um par adjacente, o Locutor

B pode mostrar, manifestar, comprovar que entendeu

aquilo para o que apontava o Locutor A, e, ao mesmo

tempo, estar disposto a caminhar na mesma direção.

Além do mais, por meio da segunda parte do par,

produzida imediatamente depois da primeira, o sujeito A

pode ver que o que ele pretendia foi compreendido e se é

ou não aceito. E do mesmo modo, o Locutor A pode

perceber que não foi entendido, que houve ambiguidade,

mal entendimento, etc.

Para Kerbrat-Orecchioni (2006, p.10), a interação face a face é fruto de

um trabalho colaborativo incessante, ou seja, uma espécie de sincronização

interacional que caracteriza, por exemplo:

o funcionamento dos turnos de fala;

os comportamentos corporais dos diferentes participantes presentes a

uma interação: as análises efetuadas a partir de gravações em vídeo por

alguns especialistas em comunicação não-verbal mostraram exatamente

que, em uma interação, os participantes ―parecem dançar um balé

perfeitamente ajustado, adaptando instintivamente suas posturas, gestos

e mímicas aos de seus parceiros‖;

as escolhas dos temas, do estilo da troca, do registro da língua, do

vocabulário utilizado etc.: vemos, assim, como o conjunto do material

discursivo, produzido durante a interação, pode ser objeto de

negociações (por vezes, explícitas; mais frequentemente, implícitas)

entre as diferentes partes em presença.

Quanto ao funcionamento dos turnos de fala, Kerbrat-Orecchioni (op.cit.)

afirma que, para que haja diálogo, é preciso que ao menos dois interlocutores

estejam presentes e revezem os seus turnos. Em outras palavras, a atividade

dialogal tem por fundamento o princípio da alternância, que pode ser resumido

pela fórmula ABABAB.

Assim, numa conversação ―ideal‖, uma única pessoa fala por vez.

Apesar dos casos de sobreposições de fala não serem raros nas conversações

espontâneas, tais casos não deveriam, a princípio, reproduzirem-se muito

frequentemente, nem tampouco se prolongar por muito tempo: para a autora

francesa, nesses casos, uma negociação deve imediatamente intervir entre os

falantes em competição, a fim de que somente um deles permaneça como

falante do turno.

Ao analisarmos a estrutura dos textos em língua falada, torna-se

fundamental observamos os marcadores conversacionais presentes nesses

textos, uma vez que eles funcionam como articuladores não só das unidades

cognitivo-informativas do texto como também de seus interlocutores, revelando

e marcando as condições de produção do texto. Em outras palavras, são

elementos que ―amarram o texto não só enquanto estrutura verbal cognitiva,

mas também enquanto estrutura de interação interpessoal‖ (Urbano, 1999, p.

86).

Assim, de forma esquemática, apresentamos a seguir os tipos de

marcadores conversacionais, de acordo com Urbano (1999, p. 87):

Finalmente, devemos ressaltar um conceito central para a abordagem de

textos conversacionais: o de tópico discursivo. Castilho (2010) afirma que

entende-se por tópico discursivo o assunto, o tema, à volta do qual giram as

marcadores

verbais

prosódicos (pausas, alongamentos, entonação

lexicalizados (ex.: sabe?)

não lexicalizados (ex.: ahn?)

marcadores marcadores

não- linguísticos ou paralinguísticos: olhar, risos, gesticulação

linguísticos

marcadores

intervenções. Caso seja inserido um tópico discursivo desviante ao tópico em

andamento na interação, verificamos o surgimento da digressão.

1.2 Sobre a Pragmática Linguística

Os estudos linguísticos concernentes ao que hoje conhecemos como

Pragmática foram originalmente desenvolvidos por trabalhos de filósofos da

linguagem, em particular John Austin e Paul Grice e John Searle, em meados

do século XX. Quando o primeiro começa a desenvolver sua teoria dos atos de

fala, através da obra clássica How to do things with words, de 1962, a

Linguística ainda privilegiava a descrição da língua em sua forma abstrata,

independentemente de seu contexto de uso — sabemos, por exemplo, que

para Ferdinand de Saussure, considerado o precursor da corrente linguística

estruturalista, importava a descrição sincrônica da langue, isto é, das unidades

pertencentes aos diversos níveis da língua, tais como fonemas, morfemas, etc.

Desta forma, os filósofos da linguagem supracitados promovem o

interesse da Linguística pelo estudo do uso concreto da língua, ou seja, pelo

exame das relações entre a língua e seus usuários e do contexto situacional

em que os eventos de fala ocorrem. Em nosso trabalho, particularmente,

interessa-nos o estudo pioneiro de Grice (1982) a respeito do Princípio de

Cooperação e das máximas conversacionais dele decorrentes, uma vez que tal

teoria serviria de esteio para uma série de outros estudos pragmáticos, como

os estudos sobre polidez linguística que, posteriormente, analisaremos em

detalhes.

O Princípio de Cooperação é, de acordo com o filósofo, o princípio

básico que rege a comunicação humana, ou seja, quando duas ou mais

pessoas se propõem interagir em uma conversação, há um acordo tácito entre

elas, pressupondo o respeito às regras do jogo conversacional e à cooperação

para que a interação transcorra de maneira adequada; nas palavras de Grice

(1982, p.86), este princípio poderia ser assim caracterizado: ―faça sua

contribuição conversacional tal como é requerida, no momento em que ocorre,

pelo propósito ou direção do intercâmbio conversacional em que você está

engajado‖. Ao Princípio da Cooperação, subordinam-se quatro máximas

conversacionais: da Quantidade, da Qualidade (ou da verdade), da Relação

(ou da pertinência) e do Modo, as quais, por sua vez, possuem certas máximas

mais específicas.

Dessa forma, a categoria da Quantidade pressupõe as seguintes

máximas: 1. ―Faça com que sua contribuição seja tão informativa quanto

requerido‖ e 2. ―Não faça sua contribuição mais informativa do que é

requerido‖. A categoria da Qualidade apresenta, como supermáxima, ―trate de

fazer uma contribuição que seja verdadeira‖ e como duas máximas mais

específicas: 1. ―Não diga o que você acredita ser falso‖ e 2. ―Não diga senão

aquilo para que você possa fornecer evidência adequada‖. Já sob a categoria

da Relação, o autor coloca uma única máxima: ―Seja relevante‖. Por fim, sob a

categoria Modo, Grice inclui a supermáxima ―seja claro‖ e uma série de

máximas como: 1. ―Evite obscuridade de expressão‖; 2. ―Evite ambiguidades‖;

3. ―Seja breve‖ (evite prolixidade desnecessária); 4. ―Seja ordenado‖.

Às vezes, tais máximas podem entrar em conflito, o que resulta em uma

predominância de uma delas. Ou, em outros casos, pode haver um

―desrespeito‖ intencional do locutor a uma das máximas — fato que nos conduz

a outra importante contribuição do autor aos estudos pragmáticos: a noção de

implicatura, que pode ser considerada como uma inferência que se obtém dos

textos. As implicaturas podem ser convencionais (quando desencadeadas por

uma expressão linguística) ou podem ser implicaturas conversacionais (quando

são provocadas por princípios gerais ligados à conversação).

Grice (1982, p. 93) afirma que, para deduzir que uma implicatura

conversacional determinada se faz presente, o ouvinte faz uso dos seguintes

dados: (1) o significado convencional das palavras usadas, juntamente com a

identidade de quaisquer referentes pertinentes; (2) o Princípio de Cooperação e

suas máximas; (3) o contexto, linguístico ou extralinguístico, da enunciação; (4)

outros itens de seu conhecimento anterior (background); e (5) o fato (ou fato

suposto) de que todos os itens relevantes cobertos por (1)-(4) são acessíveis a

ambos os participantes, e ambos sabem ou supõem que isso ocorra.

Armengaud (2006, p. 90) ressalta que a implicatura conversacional está

na base do procedimento comunicativo como um subentendido: ―Para

subentender q (que não se quer dizer abertamente por uma outra razão), basta

ter uma sentença p — não importa qual seja o assunto, desde que p implique

conversacionalmente q.‖

Marcondes (2005), nesse sentido, considera que o modelo proposto por

Grice é particularmente importante do ponto de vista do desenvolvimento da

Pragmática, por propor efetivamente um método de interpretação das

intenções do falante e de reconstrução de elementos contextuais que explicam

a constituição de um significado específico ao contexto de uso.

Dessa maneira, o autor (op.cit., p. 34) salienta que a ironia e a

insinuação são casos exemplares da implicatura de que nos fala Grice. Em

ambas as situações, há uma violação às máximas conversacionais de forma

intencional, sem que o falante possa ser de fato responsabilizado, pois nada foi

dito explicitamente: ―ele pode sempre recuar da intenção irônica e afirmar que

sua intenção foi outra, evitando assim a interpretação de ofensa ou agressão

verbal‖.

Ao estudo de Grice a respeito dos conteúdos implícitos em

conversações, seguiu-se uma série de outras explicações a tal fenômeno

linguístico, como a de Kerbrat-Orecchioni (1998), que discorre sobre o fato de

os atos de fala poderem ser explícitos ou implícitos. Para a autora, se um

enunciado for implícito, ele pode ser denominado como uma inferência e que,

por sua vez, divide-se em pressupostos e subentendidos. Fiorin (2002),

baseando-se no citado estudo de Kerbrat-Orecchioni, afirma que o pressuposto

é a informação que não é abertamente posta, ou seja, que não constitui o

verdadeiro objeto da mensagem, mas que é, todavia, desencadeada pela

formulação do enunciado. Já o subentendido seria uma informação veiculada

por determinado enunciado, cuja interpretação depende da situação de

comunicação, ou seja, depende do contexto extralinguístico da interação.

Assim, poderíamos afirmar que o pressuposto decorre de uma marca

linguística inscrita no enunciado, ao passo que o subentendido é uma

informação formulada sob responsabilidade do ouvinte. Para Fiorin (2002, p.

184): ―o subentendido é um meio de o falante proteger-se, porque, com ele, diz

o que quer sem se comprometer. Com os subentendidos, diz-se sem dizer,

sugere-se, mas não se diz‖. Exemplos de subentendidos são as insinuações e

as alusões.

1.3 A Pragmática Desenvolvimental

Como vimos, a Pragmática se refere aos usos sociais dos sistemas de

comunicação e permite o estudo das relações entre a forma das mensagens e

o seu contexto de produção. De acordo com Laval e Guidetti (2004), ela está

no cruzamento entre várias disciplinas das ciências cognitivas, como a

Linguística, a Antropologia, a Psicologia e a Inteligência Artificial, entre outras.

Ela permite estudar de maneira científica a linguagem e a cognição, como

comportamentos humanos realmente produzidos em situações cotidianas. No

âmbito deste espaço intelectual onde a interdisciplinaridade é uma regra,

compete aos pesquisadores destacar os processos mentais subjacentes à

utilização da linguagem e da comunicação, tanto no adulto, como na criança.

Nesse sentido, os processos mentais que a pragmática permite elucidar,

assinalam uma cognição que depende do ―aqui‖, ou seja, da situação em que

eles emergem para se manter.

Nesta perspectiva, falar, e mais amplamente, comunicar, é adotar um

comportamento determinado por regras complexas, inseridas num certo

contexto situacional. Uma parte importante destas regras que se referem à

correspondência entre a forma de uma mensagem e uma dada situação de

comunicação, diz respeito às convenções extralinguísticas que não repousam

sobre a estrutura do sistema de comunicação utilizado. Para Laval e Guidetti

(op. cit.), a concepção é particularmente heurística porque permite, por

exemplo, levar em conta e compreender a não-transparência das mensagens

linguísticas. Com efeito, o significado transmitido por um enunciado não

corresponde sempre àquele que se poderia deduzir, baseando-se unicamente

na sua estrutura formal. Por exemplo, um enunciado como ―tem hora?‖ ou

―pode passar-me o sal?‖ pede, de um ponto de vista formal, uma resposta

como ―sim‖ ou ―não‖. Ora, na maior parte das situações da vida diária, o

significado transmitido por estes enunciados é, respectivamente, ―que horas

são?‖, que pede por uma resposta do tipo ―são 9 horas e 20 minutos‖, ou ―me

dê o saleiro‖, pedindo para que lhe passem o saleiro.

A aplicação da pragmática à linguagem da criança foi inaugurada em

1977 pela obra doravante clássica de Ervin-Tripp e Mitchell-Kernan: Child

Discourse. Neste trabalho, a questão que é colocada é a de saber como a

criança se torna sensível às relações que podem existir entre a forma dos

enunciados e os contextos de comunicação. Em 1996, Ninio e Snow, em

Pragmatic development, propõem uma lista de temas que fazem parte do

desenvolvimento pragmático, como as intenções comunicativas, o

desenvolvimento da aplicação das formas linguísticas e a sua função social, as

capacidades conversacionais (ex.: os turnos de fala), as regras de polidez e o

seu caráter cultural, bem como os fatores pragmáticos que influenciam a

aquisição da linguagem e da comunicação (ex.: a linguagem dirigida à criança).

Para Laval e Guidetti (2004), esses temas constituem, de fato, os contextos do

desenvolvimento, e são contextos dinâmicos porque eles mesmos estão

sujeitos à ontogênese. Por exemplo, a conversação evolui entre dois e dez

anos, tanto nas suas formas como nas suas funções, e esta evolução é

paralela à aquisição de competências cognitivas mais gerais.

No plano metodológico, as investigações que são da competência da

Pragmática Desenvolvimental estudam as conversações naturais, os

comportamentos efetivamente realizados ―em contexto‖, onde a criança é

observada, seja em situações da vida cotidiana, seja em situações que

simulam a vida cotidiana. Às vezes, a organização/intervenção é necessária,

por exemplo, no processo de compreensão, ou quando a intenção é a de que

todos os assuntos sejam colocados nas mesmas condições, nas situações em

que a criança pode perceber o que está em jogo na interação. Unidades de

análise mais amplas do que a palavra ou a frase (como o turno de fala ou o ato

de linguagem) são levadas em conta, assim como o contexto extralingüístico,

as variações interpessoais ou intergrupais, ou ainda as diferentes funções da

linguagem. Neste quadro, a linguagem não é, por conseguinte, constituída

simplesmente da gramática e da sintaxe, mas também e, sobretudo, de um

conjunto de estratégias ulilizadas pela criança para comunicar e se adaptar ao

seu interlocutor e à situação de comunicação.

A Pragmática Desenvolvimental busca se apoiar sobre os

contextos teóricos de dois domínios: o da Pragmática e o da Psicologia do

Desenvolvimento. Por exemplo, as pesquisas realizadas por Bernicot (1992),

Laval (1999) e Guidetti (2002) articulam as teorias interacionistas do

desenvolvimento, como aquelas de Bruner (1975a e b) e Vigotski (1934/1997),

a uma teoria procedente da Linguística Pragmática: a teoria dos atos de fala

(Searle e Vanderveken, 1985; Trognon, 2001).

De acordo com Laval e Guidetti (2004), as investigações já realizadas

mostraram como a Pragmática Desenvolvimental permitiu levar em conta e

estudar os usos sociais da Iinguagem e da comunicação, renovar as

perspectivas teóricas que modelam o desenvolvimento da criança, aumentar os

nossos conhecimentos empíricos e, enfim, progredir na construção de

instrumentos metodológicos relevantes. A pragmática permite, assim, elucidar

os processos mentais que subjazem ao uso da comunicação e da linguagem

na criança, ancorando o seu desenvolvimento na interação social.

Se a Pragmática se interessa pelos usos sociais da comunicação, o

desenvolvimento das competências pragmáticas compreende igualmente a

capacidade das crianças de produzir e interpretar não somente os enunciados

verbais, como já foi abundantemente mostrado, mas também o comportamento

não verbal do outro, colocado em evidência pela comunicação gestual e

também pela expressão facial das emoções. No primeiro caso, isso pode

referir-se aos gestos convencionais que, para alguns (apontar, gestos de

consentimento e de recusas realizados ao movimentar a cabeça), são

produzidos antes que a criança disponha de palavras correspondentes, e

fazem parte dos únicos sinais que permitem à criança se comunicar antes da

emergência do léxico. Estes gestos que, posteriormente, vão combinar-se com

a linguagem, podem substituí-la nos casos de impossibilidade de sua utilização

(barulho, distância, etc.), mas podem também lhe conferir uma nuance ou

precisá-la (ex.: ―olhe ali‖ acompanhada da indicação da direção a mostrar).

Estes comportamentos, quase a partir do momento de sua emergência,

podem exprimir várias funções e vários usos, como o pedido ou a afirmação.

Estas variações vão permitir à criança dispor de vários registros e estratégias

de comunicação que vão lhe adaptar aos seus interlocutores e aos diferentes

contextos e situações aos quais ela será confrontada.

De acordo com Laval e Guidetti (2004, p. 125), saber interpretar

adequadamente as expressões faciais/vocais emocionais constitui igualmente

um aspecto importante da cognição social, fortemente solicitado por tratar dos

aspectos pragmáticos da comunicação. As emoções, em seu componente

cognitivo e comunicativo, permitem ampliar a problemática da intenção —

central na Pragmática — à compreensão e à expressão dos estados mentais.

Assim, no que diz respeito à natureza social do signo, o texto de

Wierzbicka (2000) propõe alterar de perspectiva o estudo da expressão facial

das emoções e passar da ―psicologia da expressão facial‖, tal como era

representada por Ekman (1973, por exemplo), para a ―semântica da expressão

facial‖. Neste quadro, a intenção não é mais interrogar-se sobre qual é a função

da contratura deste ou daquele músculo facial, mas sobre qual é o sentido de

um franzimento de sobrancelha; o autor nos fala de ―gestos faciais‖. Pode-se,

então, considerar que as expressões faciais podem exprimir significados

equivalentes àqueles dos enunciados verbais. São, por conseguinte, sinais

sociais, cujo sentido pode ser interpretado de maneira uniforme,

independentemente da linguagem e da cultura. Isso introduz a noção de

convenção; a pragmática não permite estudar quais sistemas convencionais

permitem atribuir intenções e estados mentais ao outro. Poder-se-ia, então,

falar de uma ―pragmática da expressão facial‖, e analisar as variações destes

comportamentos em função da situação de comunicação.

Os pontos de convergência entre a teoria pragmática e as teorias

interacionistas do desenvolvimento permitem, além disso, desenvolver a

análise da noção de intenção, estendê-la aos estados mentais e abordar, por

conseguinte, as relações entre desenvolvimento pragmático e um novo campo

em pleno desenvolvimento atual, no plano internacional: o das teorias da

mente. Trata-se de modelos de representações cognitivas que levam em conta

não somente os indivíduos isolados, mas que sejam capazes de definir as

representações individuais das representações de outras pessoas. Esta

corrente de investigações que mostra que aos cinco anos, a criança é capaz de

atribuir aos outros estados mentais diferentes dos seus, encontra a sua origem

no artigo de Premack e Woodruff, de 1978, intitulado; ―Does the chimpanzee

have a theory of mind?‖. Posteriormente, no capítulo 2, analisaremos

especificamente a questão da teoria da mente nas crianças.

Outro domínio privilegiado da investigação pragmática concerne ao

estudo da linguagem não-literal. O recurso às capacidades pragmáticas é

necessário em todas as situações de comunicação nas quais a interpretação

do enunciado depende do contexto. Em outros termos, cada vez que a

linguagem não é transparente, as capacidades pragmáticas devem ser

colocadas em prática, de modo que o sucesso da comunicação seja

assegurado. Esta falta de transparência da linguagem aparece de maneira

relevante na vida cotidiana, por meio da utilização de formas variadas de

linguagem não-literal: existem muitas formas de se dirigir de maneira indireta a

um interlocutor (por exemplo, os pedidos indiretos, a ironia e o sarcasmo, as

expressões idiomáticas, as metáforas, os provérbios, etc.). Nesta perspectiva,

a linguagem não-literal, caracterizada por uma defasagem entre o que é dito

(significação literal) e o que se quer dizer (significação não-literal), constitui um

verdadeiro desafio aos pesquisadores que se interessam pelos usos sociais da

linguagem. O interesse pelo estudo da linguagem não-literal permite

reconhecer a parte respectiva da estrutura da mensagem e das características

da situação de comunicação, no momento do processo de interpretação.

Assim, esta forma de linguagem não-literal contribui para elucidar a

problemática do papel do contexto na compreensão.

Finalmente, Laval e Guidetti (2004) consideram que o estudo do

raciocínio é um dos domínios onde a Pragmática tem renovado mais os

conhecimentos adquiridos. No passado, a maior parte das investigações

focalizou o estudo do raciocínio lógico. Hoje, diversos trabalhos (cf. Noveck e

Politzer, 2002) mostram como a pragmática assume um papel fundamental no

raciocínio humano. Os autores se interessam, particularmente. pelos papéis e

pelos estatutos respectivos da lógica e da pragmática no desenvolvimento do

raciocínio. Eles colocam em evidência que considerar apenas os processos

lógicos não é suficiente para explicá-lo. A análise das respostas não-

normativas é igualmente necessária para se apreender os processos

subjacentes ao raciocínio. Por exemplo, em provas relativas aos

quantificadores e aos modais (Noveck, 2001), constata-se que as crianças de

sete a nove anos são capazes de dar uma resposta normativa (fundamentada

em um raciocínio lógico), enquanto que as respostas do adulto às mesmas

provas testemunham a aplicação de capacidades pragmáticas que lhe

permitem ir além das considerações lógicas. Assim, os princípios pragmáticos,

devido às inferências que autorizam, desempenham um papel central no

raciocínio humano.

1.4 A Sociolinguística Interacional

Conforme expusemos anteriormente, a Pragmática pode ser

considerada como a ciência do uso linguístico, pois apresenta, como objeto de

investigação, as condições que regem a prática linguística. Na esteira do

surgimento da Pragmática Linguística, observamos, a partir da década de 60, o

interesse pelo estudo da língua situada na interação social, ou seja, pela

Sociolinguística Interacional. Gumperz e Cook-Gumperz (1982) salientam que

o modelo da Sociolinguística Interacional visa a analisar a conversação

contextualmente situada, associando construtos sociais, sócio-cognitivos e

linguísticos e concentrando-se em estratégias discursivas.

O sociólogo norte-americano Erving Goffman é considerado como um

dos precursores mais influentes de tal corrente e, dentre suas inúmeras obras

sobre o estudo da ação social na interação conversacional (e em diferentes

contextos situacionais), destacamos o estudo de 1970 (original americano:

1967), no qual verificamos a conceituação de face elaborada pelo autor, bem

como os modos pelos quais as pessoas, em uma interação conversacional,

tendem a preservar a sua face e evitar ameaças à face do interlocutor. Para

Goffman (1970), a face é a auto-imagem pública que todos nós nos

preocupamos em preservar, ou seja, a imagem que desejamos manter

socialmente:

Pode-se definir o termo face como o valor social positivo que

uma pessoa reclama efetivamente para si por meio da linha que

os outros supõem que ela seguiu durante determinado contato.

A face é a imagem da pessoa delineada em termos de atributos

sociais aprovados, ainda que se trate de uma imagem que

outros podem compartilhar, como quando uma pessoa enaltece

sua profissão ou sua religião graças a seus méritos (p.13).

Nas interações conversacionais, o indivíduo espera que os seus

interlocutores respeitem sua auto-imagem assim como ele respeita a dos

demais. Goffman (1970) compreende, assim, dois aspectos que são

complementares: respeito à própria face e consideração pela do outro, como

verificamos a seguir:

Assim como se espera de um membro de qualquer grupo que

ele tenha respeito próprio, assim também se espera que ele

mantenha um padrão de consideração; espera-se que ele se

esforce por resguardar os sentimentos e a imagem dos outros

presentes [...]. O efeito combinado da regra de auto-respeito e

da regra de consideração é que a pessoa tende a conduzir-se

durante um encontro de modo a sustentar tanto a sua imagem

como a dos demais participantes (p.15-16).

Tal noção de face seria posteriormente retomada e ampliada por Brown

e Levinson (1987) com os conceitos de face positiva e face negativa para uma

teoria sobre a polidez linguística (ou cortesia verbal).

Goffman (2002) também sugere aos pesquisadores, sejam eles da área

de Linguística, da Sociolinguística, da Antropologia ou da Sociologia, que

atentem ao fenômeno da situação social engendrada na comunicação face a

face, o que implica o abandono do exame exclusivo das correlações entre as

variáveis linguísticas e as variáveis sociais, ou mesmo do estudo exclusivo de

variantes inerentes ao comportamento linguístico — para o autor (2002, p.17),

tal situação social seria ―um ambiente que proporciona possibilidades mútuas

de monitoramento, qualquer lugar em que um indivíduo se encontra acessível

aos sentidos nus de todos os outros que estão presentes, e para quem os

outros indivíduos são acessíveis de forma semelhante‖.

Para que haja de fato interação, há estratégias bem definidas a serem

seguidas pelos interactantes. Estas estratégias podem ser conscientes ou não,

mas são sempre adotadas; seguem um acordo institucionalizado a partir do

status social de cada participante. Conforme Meireles (1999) espera-se que

cada participante mantenha certo nível de consideração pela face dos demais,

baseando-se na identificação dos sentimentos alheios.

A aceitação deste conjunto de desejos e respeito a sentimentos

transforma-se em estratégias de comportamento que estabilizam os encontros

sociais, onde os participantes evitam ou minimizam situações que possam

romper ou desestabilizar as interações, situação que Goffman (1970, p.18)

descreve como ―acontecimentos, cujas implicações simbólicas efetivas

ameaçam a face‖. Quando há uma invasão de privacidade ou de espaço do

outro ocorrerá o que o autor denominou de perda da face. Aqui, os

interactantes se valem de técnicas de trabalho da face (face-work) para

minimizarem os efeitos desgastantes que a ameaça à face traz:

Assim, existem técnicas específicas que visam a restabelecer o

equilíbrio das faces frente a tais situações. Goffman menciona

como técnicas de Trabalho da Face os processos evasivos,

pelos quais temas e situações constrangedoras são evitados

totalmente ou apresentados de forma dissimulada ou indireta, e

os processos corretivos, (nos quais comportamentos ritualísticos

são adotados para compensar o dano causado à Face de um ou

mais participantes), sendo que a intensidade e duração de tais

correções correspondem à intensidade da ameaça. (MEIRELES,

1999, p. 56)

Estas técnicas auxiliam no acordo tácito da relação interpessoal: são

saídas que mantêm a própria face e a do outro. Conforme afirma Goffman

(1970, p.20-21): ―Algumas práticas serão principalmente defensivas e outras

principalmente protetoras‖. As regras do jogo de manutenção da face parecem

ser respeitadas na maioria dos casos.

Em relação ao conflict talk, ou seja, aos conflitos que podem surgir nas

interações conversacionais, Leung (2002) salienta que variáveis sociais, como

poder, gênero dos interactantes, e o grau de influência que caracteriza as

relações entre os interlocutores, podem ser determinantes nesse processo.

Nessa direção, Grimshaw (1990) propõe que quanto maior a discrepância de

poder entre os participantes da conversação, menor é a possibilidade de que o

participante de maior poder seja desafiado. Ainda que o desafio ocorra, é mais

provável que, nesse caso, ele seja mais indireto e de menor intensidade.

A diferença de gênero dos interactantes constitui uma variável social

considerável quando falamos em conversações que envolvem conflitos. Preti

(2003, p.55-58) lembra que o diálogo entre homem e mulher, bem como a

provável influência do gênero no discurso de cada um, é uma questão

amplamente estudada pela Sociolinguística Interacional e pensa que, apesar

das grandes transformações socioculturais das últimas décadas do século XX,

que permitiram algumas alterações da posição subordinada em que, na maioria

das vezes, encontrava-se a mulher, é possível que, em sociedades

masculinistas, como a brasileira, ainda notemos uma atuação mais ativa do

homem nas interações.

O autor ressalta a necessidade de analisarmos os diversos fatores

envolvidos em um diálogo, que constitui uma produção linguística articulada.

Assim, no diálogo homem-mulher analisado por Preti neste mesmo artigo, o

grande número de frases incompletas e sobreposições que ocorrem nesta

interação, em virtude dos constantes assaltos ao turno promovidos pelo locutor

do sexo masculino, leva-nos a pensar num diálogo assimétrico, o que poderia

representar um indício da dominância/poder exercido pelo locutor do sexo

masculino nesta interação. Ao mesmo tempo, poderíamos pensar que:

... a sobreposição ou interrupção do discurso pode

decorrer, também, do estilo dos falantes, do maior

conhecimento do assunto tratado, da intenção de

contribuir com o discurso do interlocutor, visando a uma

continuidade natural do diálogo.

Além disso, o estudioso cita Tannen (1996, p.72) ao afirmar que as

sobreposições de tal diálogo podem ser vistas como casos de sobreposições

cooperativas, isto é, que têm como objetivo mais o apoio que a obstrução e,

assim, não seriam indício de poder ou de dominação, mas sim de solidariedade

na interação conversacional.

O assunto é extensamente discutido em Tannen (1993,1996). A

pesquisadora demonstra, neste estudo, que estratégias linguísticas específicas

têm significados potenciais amplamente divergentes, e a sua própria pesquisa

anterior (Tannen, 1984, 1986, 1990) mostra que as diferenças culturais não se

limitam ao nível aparente do país de origem e da língua nativa, mas também

existem níveis subculturais de herança étnica, classe, região geográfica, idade

e gênero, que também exercem influência no discurso de um indivíduo.

Tal questão é particularmente significante para a pesquisa sobre

linguagem e gênero, já que grande parte destas investigações têm se dedicado

a descrever os meios linguísticos pelos quais homens dominam mulheres

numa interação. Assim, Tannen (1993, p.166) examina, por exemplo, o

paradigma teórico da questão poder/solidariedade em uma interação

homem/mulher, mostrando que as estratégias linguísticas são potencialmente

ambíguas (elas podem significar tanto o poder de um indivíduo sobre o outro,

quanto a sua solidariedade) e polissêmicas (elas podem significar ambos,

simultaneamente).

O que a autora procura problematizar é a fonte da dominação e os seus

mecanismos linguísticos, além de outras intenções e seus efeitos. Em outro

estudo (Tannen, 1990, p.16), afirma que não há como negarmos que os

homens, como classe, exercem um papel dominador em nossa sociedade, bem

como que muitos, individualmente, dominem as mulheres em sua vida;

contudo, para Tannen, a dominação masculina não é o único fato suficiente

para explicar tudo aquilo que pode ocorrer em uma interação conversacional

entre homens e mulheres, já que o efeito da dominação nem sempre é o

resultado de uma intenção de dominar:

A abordagem sociolinguística que adoto neste livro

mostra que muitos atritos aparecem porque meninos e

meninas são criados em culturas essencialmente

diferentes; assim, a conversa entre homens e mulheres

torna-se uma comunicação de culturas opostas.

Além disso, a autora explica que há interrupções não-intencionais,

provenientes do estilo de conversação de cada indivíduo. Dentre os diferentes

estilos, Tannen salienta o estilo de ―alta consideração‖, que dá prioridade à

consideração com o outro interlocutor, permitindo que ele fale e aguardando

pausas para falar, e o estilo de alto envolvimento, em que se dá mais valor à

demonstração de um entusiástico envolvimento na interação — o que pode

culminar em algumas interrupções não-intencionais.

Eckert (1993), ao analisar a especificidade de um típico girl talk

(conversação entre garotas) americano, observa que as diferenças de gênero

na interação devem ser estudadas no âmago do contexto de situações nas

quais elas são observadas, com uma compreensão do significado destas

situações tanto para os homens quanto para as mulheres daquele grupo

cultural.

Outros estudos demonstram a evidência de uma maior utilização dos

recursos/estratégias da polidez linguística pelas mulheres, em diferentes

contextos culturais. Assim, Brown e Levinson (1987) consideram relevante para

a pesquisa da correlação gênero-polidez aquela linha de estudos que realiza

tentativas de descrição dos estilos comunicativos que diferenciam os gêneros

— chamados de ―genderlects‖, ou dialetos de gênero — tal como os

argumentos popularizados por Lakoff (1975, 1977 a, 1979) de que as mulheres

são mais polidas que os homens.

Embora as alegações específicas dos testes empíricos de Lakoff, como

as que afirmam que as mulheres utilizam mais tag questions e marcadores de

hesitação, por exemplo, tenham sido contestadas por um grande número de

pesquisas, para Brown e Levinson (op. cit.), no entanto, continua válido o

argumento de que a mulher tem um estilo de conversação distinto, em virtude

de sua distinta posição na sociedade.

2. Relações entre linguagem, cultura e cognição no discurso infantil.

O discurso é uma prática, não apenas de representação do

mundo, mas de significação do mundo, constituindo e

construindo o mundo em significado.

(Norman Fairclough)

Tomasello (2003, p.227) considera que "processos sociais e culturais -

de um tipo comum a todas as culturas - são parte integrante e essencial das

vias ontogenéticas normais de muitas das mais fundamentais e universais

habilidades cognitivas dos humanos, sobretudo aquelas únicas da espécie".

Contudo, podemos observar que o estudo de alguns desses processos, tais

como os discursivos ou de comunicação linguística (nos quais as crianças

incluem outras mentes de modo dialógico/interativo), tem sido negligenciado

nas pesquisas acerca da questão, tanto por teóricos individualistas que, em

geral, consideram que a linguagem não interage de maneira significativa com

outras competências cognitivas, como pelos psicólogos culturais que, muitas

vezes, não exploram todas as implicações da comunicação linguística no

desenvolvimento de habilidades cognitivas complexas.

Nesta direção, Tomasello (op. cit., p.230) apresenta-nos três dimensões

do papel que a comunicação linguística exerce no desenvolvimento cognitivo:

1) A transmissão cultural do conhecimento às crianças por meio da

comunicação linguística;

2) As maneiras pelas quais a estrutura da comunicação linguística

influencia a construção de categorias cognitivas, relações, analogias e

metáforas por parte das crianças;

3) As maneiras pelas quais a interação linguística com outros (discurso)

induz as crianças a adotarem diferentes - às vezes conflituosas, às

vezes complementares - perspectivas conceituais sobre fenômenos.

Com referência à dimensão de número 1, o autor explica que,

justamente pelo fato de parecer um dado tão óbvio, as pesquisas sobre

desenvolvimento raramente mencionam tal questão. Todavia, é importante

lembrar que os adultos de todas as sociedades humanas fornecem às suas

crianças enormes quantidades de instrução e explicação diretas, pelo menos

em parte por meio da linguagem e de outros meios simbólicos, ressaltando,

neste processo de transmissão, um campo de conhecimento valorizado pela

cultura em que se inserem, em detrimento de outro. Podemos observar que o

processo pelo qual os conhecimentos e aptidões são transmitidos para as

crianças é variável de acordo com o contexto cultural; assim, as crianças

pertencentes às culturas ocidentais modernas, por exemplo, recebem muito

mais instrução oral e escrita do que as crianças de muitas culturas orais, que

costumam aprender através da simples observação do desempenho dos

adultos em alguma prática especializada.

A segunda dimensão abordada pelo autor se relaciona à questão da

função estruturante da linguagem. Quando as crianças tentam compreender

atos de comunicação linguística dirigidos a elas, ocorre, simultaneamente, a

sua entrada em processos muito especiais de categorização e perspectivação

conceitual, com vistas à comunicação linguística. Por exemplo, cada vez que

um falante deseja se referir a alguma coisa para outra pessoa, ele terá de fazer

uma escolha entre chamá-la de cachorro, aquele animal lá, ele, o cocker

spaniel, Fido, etc. As categorias que podem ser encontradas na linguagem,

pelas crianças, podem constituir entidades estáticas, como os objetos, assim

como podem compreender entidades dinâmicas, como eventos e relações.

Para Tomasello (op. cit., p.234-235), a manifestação mais interessante e

cognitivamente mais significativa de categorias relacionais na linguagem é a

que se refere às analogias e metáforas: "compreender esses modos figurados

de falar abre para as crianças a possibilidade de tecer analogias entre

domínios concretos que elas conhecem a partir de suas experiências sensório-

motoras e os domínios mais abstratos da interação e da vida social e mental

adultas sobre as quais estão justamente aprendendo".

Entretanto, por vezes, o conteúdo semântico do discurso pode expressar

interpretações conflituosas sobre os fatos, o que propicia às crianças, em

situação de interação conversacional com os adultos, perspectivas

explicitamente divergentes/discordantes sobre determinado fenômeno. Em

outros momentos, o adulto pode não entender o que a criança disse, ou vice-

versa, e pede um esclarecimento, para verificar a forma do discurso que

acabou de ser proferido. Finalmente, pode ocorrer que uma criança expresse

uma opinião sobre algo e que, em seguida, seu interlocutor emita uma outra

opinião sobre ela, ou seja, emita um proferimento relativo ao conteúdo do que o

falante acabou de dizer. Esta seria a terceira dimensão sobre a qual a

comunicação linguística atua, no decorrer do desenvolvimento cognitivo da

criança. Esses três tipos de discurso fazem parte do cotidiano das crianças e,

de acordo com o autor, cada um deles exige delas a adoção de uma

perspectiva em relação à outra pessoa, de uma maneira que ultrapassa a

tomada de perspectiva inerente à compreensão de símbolos lingüísticos

isolados do discurso. Dessa forma, tais discursos exerceriam um papel

constitutivo no desenvolvimento de representações cognitivas dialógicas e

auto-reflexivas na primeira infância (crianças de zero a seis anos de idade).

2.1 A “teoria da mente” na criança.

Tomasello (2003) considera que, por volta dos quatro anos, a criança

adquire uma nova maneira de compreender seus próprios pensamentos e

crenças. No entanto, não se trata de uma mudança significativa que ocorra

precisamente aos quatro anos idade, fazendo com que as crianças entendam

suas mentes de modo mais profundo que antes: na verdade, ocorre uma

mudança gradual, ao longo da primeira infância, que permite às crianças

ganharem experiência com o interjogo entre suas próprias mentes e as dos

outros, sobretudo por meio de vários tipos de interações discursivas.

Um fato particularmente importante para a compreensão infantil das

relações entre os próprios estados mentais e os dos outros, refere-se aos

desacordos e mal-entendidos que acontecem, por exemplo, nas interações

cooperativas, das quais crianças de uma mesma família participam

diariamente: irmãos apresentam desejos e necessidades conflituosos com

regularidade, seja ao desejarem o mesmo brinquedo, ao intentarem realizar a

mesma atividade ao mesmo tempo ou, ainda, ao viverem conflitos envolvendo

crenças, isto é, quando um expressa a opinião de que se trata de X e outro

discorda, afirmando que se trata de Y.

Outro tipo de discurso que pode ser importante, na visão de Tomasello

(2003, p. 248), para que as crianças consigam compreender os outros como

agentes mentais, é o processo de pane e retificação na comunicação.

Podemos observar que, quando as crianças começam a conversar com os

adultos, em torno dos dois ou três anos de idade, é comum o fato de alguém

não entender o que foi dito. Já ao ficarem mais velhas, as crianças podem

vivenciar:

Mal-entendidos, em que o adulto interpreta o enunciado da criança de

uma maneira que não corresponde ao que ela quis dizer;

Pedidos de esclarecimento, em que a criança diz algo que o adulto não

entende e por isso ele pede um esclarecimento.

Tais incompreensões podem fornecer pistas sobre como as crianças

percebem que uma perspectiva linguística difere de outra, indicando,

possivelmente, a sua compreensão a respeito dos agentes mentais. Vale

ressaltar que, de acordo com o autor, esses tipos de discurso ocorrem com

frequência na aprendizagem da língua natural de praticamente todas as

crianças pequenas.

Tomasello afirma que, na ontogênese cognitiva dos seres humanos, fica

claro que, entre os nove e doze meses de idade, acontece uma revolução na

maneira como os bebês entendem seus mundos (principalmente seus mundos

sociais), iniciando uma série de comportamentos de atenção conjunta que

parecem indicar uma compreensão emergente das outras pessoas como

agentes intencionais iguais a si próprios. Contudo, em relação à compreensão

que as crianças mais velhas têm dos outros como agentes mentais, isto é, as

suas ―teorias da mente‖, ainda há muita discussão, a começar pela própria

confusão relativa aos termos utilizados para se referir aos estados mentais. O

autor, desta forma, tenta simplificar e organizar os termos para estados mentais

que se aplicam à compreensão social de crianças em idade pré-escolar, como

verificaremos na Tabela 1.

Tabela 1. Três níveis da compreensão humana dos seres sociopsicológicos, expressos em termos dos três principais componentes que têm de ser entendidos: input (percepção), output (comportamento) e estado dos objetivos. (p.251)

Compreensão

de input

perceptual

Compreensão

de output

comportamental

Compreensão

de estado dos

objetivos

Compreender

outros como

seres animados

(bebês pequenos)

Olhar

Comportamento

Direção

Compreender

outros como

agentes

intencionais

(9 meses)

Atenção

Estratégias

Objetivos

Compreender

outros como

agentes mentais

(4 anos)

Crenças

Planos

Desejos

Observamos, de acordo com a tabela, que Tomasello (2003, p.250)

concebe uma progressão contínua do desenvolvimento da compreensão que

as crianças têm dos outros, quando estudamos a cognição social da primeira

infância, formulando a seguinte sequência:

1. Agentes animados — em comum com todos os primatas (bebês);

2. Agentes intencionais — uma maneira singular da espécie de

compreender os co-específicos, que inclui a compreensão dos

comportamentos voltados para um objetivo e da atenção dos outros (um

ano);

3. Agentes mentais — a compreensão de que as outras pessoas não

têm apenas intenções e atenção, tal como se manifestam em seu

comportamento, mas também pensamentos e crenças que podem estar

expressos ou não no comportamento — e que podem diferir da situação

―real‖ (quatro anos).

Além disso, o autor considera como hipótese básica que as crianças têm

a capacidade de começar a participar de conversas com os outros, um pouco

depois de os entenderem como agentes intencionais (com um ano de idade). E

só passariam a entender as outras pessoas como agentes mentais alguns anos

mais tarde, pois:

(...) para entender que as outras pessoas têm crenças sobre o

mundo que diferem das suas próprias, as crianças têm de

entabular com elas conversas nas quais essas diferentes

perspectivas ficam claras — seja por um desacordo, um mal-

entendido, um pedido de esclarecimento ou uma conversa

reflexiva. Isso não exclui outras formas de interação com outros

e de observação de seu comportamento como elementos

importantes para a construção por parte da criança de uma

“teoria da mente”; a questão é que a troca lingüística proporciona

uma fonte particularmente rica de informação sobre outras

mentes. (TOMASELLO, 2003, p.254)

Os psicólogos Flavell, Miller e Miller (1999) ressaltam que a mente é a

diferença principal entre as pessoas e as outras entidades e que as crianças

não podem fazer muitos progressos em direção ao entendimento dos eventos

cotidianos que envolvem pessoas até que tenham algum entendimento da

mente. Assim, um exemplo seria o de uma menina que dá sentido ao

comportamento de seu amigo de revirar deliberadamente a sua caixa de

brinquedos, supondo que ele quer um brinquedo em particular, acredita que ele

pode ser encontrado ali, já que está procurando por ele, pretende brincar com

ele, vai se sentir triste se não o encontrar, etc. Dessa forma, a criança

compreende como a mente funciona, conferindo ordem aos eventos sociais à

sua volta. Ao mesmo tempo, oferece explicações do comportamento dos

outros, permitindo a ela prever suas ações, referindo-se a suas crenças,

desejos, percepções, pensamentos, emoções e intenções.

Os pesquisadores citados denominam estas noções infantis implícitas a

respeito do reino psicológico de teoria da mente e apresentam os seguintes

postulados vinculados a esta teoria:

1. a mente existe;

2. tem conexões com o mundo físico;

3. é separada e diferente do mundo físico;

4. pode representar objetos precisa e imprecisamente;

5. medeia ativamente a interpretação da realidade e das

emoções experimentadas. (p. 87)

Os autores, ainda, afirmam que as evidências que temos até agora

sugerem que algum entendimento mínimo de cada postulado pode ser

necessário antes que o próximo possa começar a ser adquirido, mas o

desenvolvimento de cada postulado continua mesmo depois que os posteriores

tenham surgido. Para esses autores, por volta dos três anos, as crianças

possuem um conhecimento de conexões cognitivas a respeito da mente —

postulados 1 a 3 — ou seja, ―elas compreendem que elas mesmas e os outros

têm experiências internas (estados mentais) que conectam os humanos

cognitivamente a objetos e eventos externos‖ (p. 97). Posteriormente, quando

compreendem as representações mentais (postulado 4), elas passam a

entender que um mesmo objeto ou evento pode ser realmente representado

mentalmente de maneiras diferentes, e não apenas no faz-de-conta:

As pessoas constroem ativamente representações simultâneas e

por vezes conflitantes, de crenças e da realidade, da expressão

manifesta e do sentimento oculto, da aparência e da identidade

real, e dos motivos e do comportamento. O pré-escolar ingênuo

e confiante se transforma na criança e no adolescente mais

desconfiado e esperto. De modo geral, as crianças entendem

que uma experiência em particular proporciona acesso a certas

informações, que causam uma representação particular e

mesmo uma interpretação particular (postulado 5) a qual, por

sua vez, causa um comportamento particular (p.97-98).

Wood (2003, p.161) reforça a posição dos autores citados, afirmando

que a criança de 3 anos ainda não possui uma "teoria da mente":

Ela não consegue reconhecer que outra pessoa possa manter

uma crença que esteja em desacordo com o que ela própria

sabe ser a verdade. Em outras palavras, ela ainda não percebe

que as pessoas mantêm representações do mundo em sua

mente e que essas representações (que podem incluir falsas

crenças) ajudam a explicar o que as pessoas fazem, dizem e

sentem.

Nesse sentido, Tomasello (2003, p.264) ressalta que os processos

sociais e culturais durante a ontogênese não criam as habilidades cognitivas

básicas, mas sim, transformam habilidades cognitivas básicas em habilidades

cognitivas extremamente complexas e sofisticadas. Ao interagirem

linguisticamente com os outros, as crianças entram em contato com uma série

de crenças e pontos de vista conflituosos sobre as coisas - este processo, de

acordo com o autor, constitui, provavelmente, um ingrediente essencial para

que as crianças possam enxergar as outras pessoas como seres com mentes

semelhantes, mas, simultaneamente, diferentes das delas.

Para entendermos a importância dos processos discursivos que as

crianças estabelecem com os que as rodeiam, para a constituição dessa

ontogênese, poderíamos imaginar o exemplo de uma criança solitária numa

ilha deserta, que possuísse um ano de idade, fosse cognitivamente normal,

capaz de compreender relações intencionais e causais e que estivesse, assim,

pronta para adquirir linguagem, sem, contudo, ter sido exposta a pessoas ou

símbolos. Tomasello (2003, p. 265) afirma que esta criança, certamente,

reuniria por conta própria informações, categorizaria e perceberia relações

causais, por exemplo, até determinado ponto, mas:

Não vivenciaria nenhuma informação reunida por outros assim como

tampouco receberia qualquer instrução dos outros sobre causalidade no

mundo físico ou sobre mentalidade no mundo sociopsicológico (isto é,

não haveria "transmissão" de informação);

Não vivenciaria as muitas formas complexas de categorização, analogia,

causalidade e construção de metáforas incorporadas numa língua

natural que evoluiu historicamente;

Não vivenciaria diferentes pontos de vista, ou pontos de vista

conflituosos, ou opiniões expressas sobre suas próprias opiniões, em

interação dialógica com outras pessoas.

Assim, podemos presumir que essa criança, em uma fase posterior, teria

o seu pensamento em termos causais e matemáticos reduzidos, assim como

raciocinaria pouco sobre os estados mentais dos outros e teria um raciocínio

moral pobre - isso devido ao fato de que, para o autor, todos esses tipos de

pensamento e raciocínio só aparecem, ou aparecem preferencialmente, em

interações discursivas dialógicas da criança com outras pessoas.

Desta forma, torna-se interessante observar a natureza perspectiva dos

símbolos linguísticos utilizados pelas crianças em interações discursivas nas

quais diferentes perspectivas são contrastadas e compartilhadas. Contudo, os

estudos sobre o desenvolvimento cognitivo das crianças pequenas têm se

voltado para uma abordagem endógena desta questão, como observamos nas

pesquisas de Karmiloff-Smith (1992). A autora propõe o conceito de

redescrição representacional, que consiste na exploração interna da

informação já armazenada (redescrevendo, internamente, as representações

em diferentes formatos representacionais). Este processo proporciona uma

reorganização sistemática da cognição, permitindo, posteriormente, que

generalizações sejam estabelecidas.

Tomasello (2003), todavia, oferece uma explicação alternativa para o

processo de redescrição representacional, ressaltando a participação dos

fatores sociais e culturais. Para ele, um dos responsáveis pelo processo seria a

mudança do ponto de vista do indivíduo, que se coloca numa perspectiva

externa em relação ao seu próprio comportamento e cognição, ou seja, como

se ele observasse o comportamento de outra pessoa. O autor afirma que este

processo tem suas origens nos metadiálogos reflexivos, sobretudo naqueles

em que os adultos instruem as crianças que, então, internalizam as instruções

recebidas. O autor frisa que, tal como ocorre com muitas habilidades

cognitivas, a criança se aprimora cada vez mais nesse processo de

internalização, até conseguir generalizá-lo e, "consequentemente, refletir sobre

seu próprio comportamento e cognição como se fosse outra pessoa olhando

para ele" (p.274).

De acordo com Veneziano e Hudelot (2005, p.10), a avaliação do

surgimento e desenvolvimento de diferentes tipos de utilizações informativas da

linguagem revela o modo pelo qual a criança passa a trazer ao conhecimento

do seu interlocutor, os acontecimentos/aspectos que não são perceptíveis de

modo direto na situação de enunciação:

(...) é na criança, sobretudo entre 18 e 24 meses, que os

autores relacionam as primeiras utilizações

descontextualizadas e informativas da linguagem, tais

como as referências a acontecimentos passados (...) e a

produção linguageira de significações subjetivas que o

locutor atribui aos objetos e às ações, como é o caso das

transformações simbólicas do jogo de faz-de-conta.

Assim, o surgimento dessas utilizações informativas da linguagem, por

volta dos 18-24 meses, poderia sugerir que ocorre, nessa fase, uma mudança

qualitativa na capacidade da criança em considerar os estados internos do seu

interlocutor, ou seja, ela começa a perceber que, durante a situação de

interação conversacional, o seu interlocutor possui estados internos, tais como

a atenção, intenção e outros estados de conhecimento que podem diferir dos

seus próprios estados, e que a linguagem utilizada pode ser capaz de

influenciá-los e, consequentemente, de mudar o seu comportamento.

Melo (2005), nesse sentido, ressalta que, a partir dos anos 80, uma série

de estudos a respeito da representação que a criança faz da vida mental

(theory of mind) começou a surgir, evidenciando que, precocemente, a criança

dispõe de conhecimentos e representações relativas à mente humana:

Estas crianças são igualmente capazes, por um lado, de

especificar algumas relações entre a mente e o mundo e,

por outro lado, são capazes de explicar e predizer

algumas ações e/ou emoções referentes a estados

mentais como os desejos, as intenções e, em alguns

contextos, as crenças (p.26).

Para ilustrar as considerações de Melo (op. cit.), citamos o estudo de

Perner e Wimmer (1985), sobre a verificação das crenças de segunda ordem

atribuídas pelas crianças. Segundo os autores, na explanação do senso-

comum das ações humanas, frequentemente atribuímos estados epistêmicos

às pessoas e as descrevemos como se soubessem ou pensassem sobre algo

que existe em cada caso/situação. Embora descrever o que as pessoas

pensam sobre eventos reais (as crenças de primeira ordem) represente um

papel crucial na explicação de sua interação física com objetos e com outras

pessoas, esta descrição não pode capturar inteiramente a interação social. A

interação entre as pessoas, de acordo com os autores citados, é baseada em

grande parte em uma interação das mentes, as quais só podem ser

corretamente compreendidas quando se leva em conta o que as pessoas

pensam sobre os pensamentos de outras pessoas (crenças de segunda

ordem) e até o que as pessoas pensam que as outras pensam sobre seus

pensamentos, etc. (crenças de ordem mais elevada).

Assim, nesse estudo, Perner & Wimmer tiveram como objetivo, a partir

de uma série de experiências, estabelecer um paradigma experimental para

investigar a compreensão das crianças do primeiro passo na conceitualização

da interação social.

De acordo com os autores, a importância das crenças de segunda

ordem, e crenças de ordem mais elevada para a nossa compreensão da

sociedade humana foi enfatizada por teóricos em diversos campos. Grice

(1975) e Lewis (1969) analisaram o papel de intenções de uma ordem mais

elevada na formação de convenções linguísticas e como pré-requisitos para a

comunicação. Este tipo de análise conduziu à definição de conceitos como

―conhecimento mútuo‖ (Schiffer, 1972), que é um conceito nuclear na

Psicolinguística.

Apesar da importância teórica óbvia das crenças de uma ordem mais

elevada, existem muito poucos dados experimentais sobre como elas são

compreendidas por crianças.

Depender de relatos introspectivos para a evidência sobre a habilidade

de raciocínio conduz à subestimação das competências de crianças pequenas

(Flavell, 1977). Todos os estudos sobre jogo competitivo, entretanto, tiveram de

confiar em tal evidência, porque nenhuma resposta simples era indicativa de

todo o nível particular do raciocínio. A razão para este fato é que a estrutura

dos jogos era circular (Perner, 1979), de modo que a análise das crenças de

uma ordem mais elevada conduzia ao mesmo resultado que uma análise de

dois níveis abaixo. Portanto, além da dificuldade geral dos relatórios

introspectivos, a ineficácia da atribuição de crenças de uma ordem mais

elevada em jogos circulares pode ter impedido que a maioria de crianças mais

novas relatasse sua análise intricada, uma vez que o resultado não poderia ser

distinto de uma análise mais simples. Assim, não é de se surpreender que

estudos sobre o jogo competitivo detectassem crenças de segunda ordem

somente em um número insignificante das crianças abaixo de 10 anos.

Miller, Kessel, e Flavell (1970) introduziram uma técnica diferente que

evitou problemas de circularidade e de relatos introspectivos. As crianças

tiveram que descrever os ―balões‖ encaixados nos quadrinhos, por exemplo,

―Johnny está pensando que papai pensa em mamãe.‖ Entretanto, as respostas

corretas requereram ainda construções sintaticamente incomuns de sentenças

de duplo encaixe, e os autores sugeriram que esta característica pode ter

esclarecido o desempenho relativamente ruim das crianças. Eliot, Lovell,

Dayton, & McGrady (1979) testaram esta possibilidade e encontraram uma

performance melhorada na tarefa invertida. Foi dada às crianças uma

descrição, e elas tiveram que, simplesmente, apontar o quadrinho

correspondente ao ―balão‖. Infelizmente, seu procedimento experimental não

excluiu estratégias alternativas óbvias, como combinar a complexidade da

sentença com o quadrinho. Aparte esta crítica específica, o paradigma do

―balão‖ geral apresenta a falha fatal de que as respostas corretas não

demonstram a ―compreensão‖ de crenças, além de um exercício sintático de

combinar sentenças encaixadas com os balões encaixados.

O paradigma experimental usado no presente estudo de Perner e

Wimmer (1985) foi projetado de forma a superar estas fragilidades

metodológicas. As respostas do teste não foram baseadas em relatos

introspectivos e não requereram habilidades verbais elaboradas. Apontar uma,

entre duas posições, era suficiente. Assegurou-se que as respostas corretas

refletiram a habilidade das crianças em inferir crenças de segunda ordem de

uma história, e não raciocínios de ordem mais baixa ou respostas parciais. Um

método de compreensão de história similar para testar a atribuição de crenças

de segunda ordem das crianças foi usado com sucesso em crianças de 3 a 6

anos por Perner e Wimmer (1983). Em torno da idade de 6 anos, as crianças

não somente eram capazes de inferir sobre a falsa crença do protagonista, mas

eram também completamente capazes de estabelecer um raciocínio intricado

sobre como o protagonista agirá em razão de sua falsa crença. Uma vez que o

método da história era apropriado para a compreensão das crenças de primeira

ordem das crianças pequenas, ela pareceu uma ferramenta promissora para se

obter a evidência positiva de compreensão das crenças de segunda ordem, em

uma idade muito inferior ao que se pensou previamente.

Este trabalho sugere que determinados tipos dos estados epistêmicos

de segunda ordem podem ser compreendidos em uma idade inferior aos 6 ou 7

anos.

Na visão de Grice (1975) sobre a conversação, as pessoas não

respondem simplesmente a perguntas mas, tentando ser cooperativas, ajustam

sua resposta ao que pensam que o questionador quer saber. A partir desse

ponto de vista, pode tornar-se relevante perceber que uma examinadora (ou

uma pesquisadora) não faz perguntas porque ela quer saber a resposta, mas

porque quer saber se a criança sabe a resposta. Embora em muitas situações

não seja necessário que a criança compreenda claramente essa intenção

epistêmica de segunda ordem, em algumas situações pragmaticamente

ambíguas, isso pode ser crucial.

Problemas de conversação similares podem ser encontrados na maior

parte das tarefas de raciocínio de Piaget, e é notável que a idade entre os 5 e 8

anos, em que as crianças do presente estudo começaram a atribuir as crenças

de segunda ordem, é vista por Piaget (1972) como a idade na qual as crianças

mudam do pensamento pré-operacional para o pensamento operacional

concreto. Isso pode não ser pura coincidência. Em algum grau a mudança

observada nas respostas das crianças com os testes de raciocínio lógico de

Piaget, pode acontecer em função de qual intenção epistêmica de segunda

ordem elas são capazes de atribuir ao experimentador.

Nesse sentido, Marquesi e Cabral (2005, p. 50), afirmam que a

capacidade de reconhecer os outros como seres intencionais, ou seja, que

desejam, pensam e tentam, por exemplo, surge muito cedo no

desenvolvimento psicológico infantil:

Noções como fazer e tentar, que indicam o reconhecimento de

que a conduta das pessoas tem uma direção, um propósito,

indicam uma certa compreensão da intencionalidade. Entretanto,

inicialmente, as crianças caracterizam as crenças e as intenções

daqueles que falam e ouvem exclusivamente do seu próprio

ponto de vista.

3. Considerações acerca do desenvolvimento pragmático-linguístico da

criança, e sua correlação com o “brincar”.

É brincando, e somente brincando, que o indivíduo, criança

ou adulto, é capaz de ser criativo e utilizar sua

personalidade integral. É somente sendo criativo que o

indivíduo descobre o eu (self).

(Winnicott)

De acordo com a teoria vigotskiana do desenvolvimento cognitivo da

criança, conforme a sua maturidade, a função do adulto (mãe, pai, professor,

etc.) seria a de regular as formas culturais/sociais de comportamento que, uma

vez internalizadas pela criança, dispensariam a mediação. Assim, com o intuito

de discutir a relação geral entre aprendizado e desenvolvimento cognitivo,

Vigotski (2003, p. 112) elabora a noção de Zona de Desenvolvimento Proximal

(ZDP), ou seja, ―a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se

costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível

de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas

sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais

capazes‖. Desta forma, seria interessante se o adulto conseguisse atuar nessa

ZDP ao interagir com as crianças, a fim de impulsionar as suas competências

cognitivas emergentes.

Nesta direção, outro conceito introduzido por Vigotski, que se articula

com nossa proposta de estudo, é o de tutela. De acordo com Bitar (2002, p.89),

a tutela poderia ser definida como um conjunto de intervenções entre o adulto e

a criança, ou ainda entre crianças, que culmina na realização de uma tarefa

que ela não conseguiria realizar sem esta colaboração. A autora salienta que é

justamente na Zona de Desenvolvimento Proximal que a tutela se torna mais

útil, já que é nela que o adulto pode estimular uma criança a dominar uma

determinada tarefa. Se esta colaboração ocorrer aquém dessa zona (onde as

crianças podem realizar tarefas sozinhas), ou além, isto é, onde a tarefa se

torna muito complexa, a tutela poderá se converter em contra-tutela.

Sob o ponto de vista do desenvolvimento cognitivo, Vigotski (2003,

p.136) considera que a criação de uma situação imaginária — através de um

jogo ou de uma brincadeira — pode ser considerada como um meio para

desenvolver o pensamento abstrato. Para o autor, o que define o brincar é a

situação imaginária criada pela criança. O brincar preenche necessidades que

mudam de acordo com a evolução da idade da criança (por exemplo: um

brinquedo que interessa a um bebê, deixa de interessar a uma criança mais

velha). A maturação dessas necessidades é de suma importância para

entendermos as brincadeiras da criança como uma atividade singular, nas

quais elas podem satisfazer desejos que, muitas vezes, não podem ser

satisfeitos imediatamente (ex.: uma criança que quer ocupar o papel da mãe,

simulando tal papel durante a brincadeira de faz-de-conta).

Vigotski (op. cit.) salienta que o brinquedo que comporta uma situação

imaginária, também comporta uma regra; não uma regra explícita, mas uma

regra que a própria criança cria. À medida que a criança vai se desenvolvendo,

há uma modificação: nas brincadeiras das crianças mais novas predomina a

situação imaginária e as regras não se mostram explícitas; conforme elas vão

ficando mais velhas, predominam as regras (explícitas) e a situação imaginária

fica oculta. Além disso, conforme a própria natureza do brinquedo se

desenvolve, e começam a surgir regras mais complexas inerentes a ele,

podemos observar um movimento em direção à realização consciente de seu

propósito: ―no final do desenvolvimento, surgem as regras e, quanto mais

rígidas elas são, maior a exigência de atenção da criança, maior a regulação

da atividade da criança, mais tenso e agudo se torna o brinquedo‖ (p.136).

Dessa forma, o ato de correr, por exemplo, sem algum propósito ou regras

estabelecidas, torna-se uma atividade sem atrativos para a criança. Mas, se

existe um propósito nessa atividade, como objetivo final, a atitude afetiva da

criança fica associada ao brinquedo/jogo.

Esta atitude afetiva mencionada pelo autor russo nos remete aos

estudos de Henri Wallon. O estudioso francês contribuirá com nosso estudo,

justamente em virtude do lugar central que a afetividade ocupa em sua teoria,

tanto do ponto de vista da construção da pessoa, quanto do conhecimento. O

autor elabora uma teoria da emoção com uma nítida inspiração darwinista: ela

é vista como o instrumento de sobrevivência típico da espécie humana e

considerada fundamentalmente social, uma vez que fornece o primeiro e mais

forte vínculo entre os indivíduos e supre a insuficiência da articulação cognitiva

nos primórdios da história do ser e da espécie.

Wallon (1987) considera que, aos três anos de idade, a criança já é

capaz de compreender que as relações interpessoais e os papéis assumidos

pelos interlocutores podem variar em função da situação. Assim, conseguem

estabelecer uma diferenciação entre o ―eu‖ e o ―outro‖, modificando seus atos

de fala em função da resposta de seu interlocutor. Nesse sentido, Galvão

(2004), inspirando-se em Wallon (op. cit.), salienta que o terceiro ano de vida

marca o início de uma reviravolta nas condutas da criança e nas suas relações

com o meio, em que se torna frequente, por exemplo, a utilização do pronome

―eu‖. Além disso, há uma tendência ao desaparecimento dos diálogos da

criança consigo mesma, o que anuncia uma fase de afirmação do ―eu‖. De

acordo com a autora, nesta etapa, os conflitos interpessoais são frequentes,

uma vez que a criança se opõe, sistematicamente, ao que se apresenta como

distinto dela, ou seja, como ―não-eu‖. Assim, ela tende a rejeitar qualquer

ordem, convite ou sugestão que venha do ―outro‖ e, dessa maneira, busca o

confronto, com o intuito de testar a independência de sua personalidade recém

- descoberta.

Esta dimensão socioafetiva nas relações interpessoais também foi

desenvolvida por Gregory Bateson (2000), na obra já considerada clássica,

Steps to an Ecology of Mind. O autor introduz a noção da existência de dois

níveis de comunicação: cada ato comunicativo contribui não somente para

fornecer informações sobre o conteúdo e sobre o objeto da conversação, mas

contribui, igualmente, para qualificar a natureza da relação interpessoal.

Bateson (op. cit.) utilizou a teoria dos tipos lógicos de Russel para

salientar que a mensagem sobre a forma da relação se coloca em um nível de

abstração diferente da mensagem sobre o conteúdo. Dessa forma, o autor

considera que a comunicação verbal humana pode operar em diversos níveis

contrastantes de abstração e um desses níveis mais abstratos seria o

metalinguístico, que incluiria mensagens explícitas ou implícitas nas quais o

tema do discurso é a própria linguagem. Outro nível de abstração abordado

pelo autor é o metacomunicativo, em que o tema do discurso é a relação

pessoal/afetiva entre os interlocutores.

Na mesma obra, Bateson discute a questão da natureza do "brincar"

que, para o autor, só pode ser entendida nos termos de uma ecologia de

idéias. É o que observamos no metálogo "Sobre os jogos e o ser sério", em

que uma filha discute com o pai sobre a definição de suas interações

conversacionais; afinal, essas conversações devem ser levadas a sério, ou são

um tipo de jogo/brincadeira? O pai argumenta que tais conversações são

sérias; contudo, elas são, ao mesmo tempo, um tipo de brincadeira em que

ambos "brincam" juntos. Dessa forma, esclarece a sua idéia de jogo: "Eu sei

que eu estou sendo sério - seja qual for o significado disso - a respeito das

coisas sobre as quais falamos. Nós falamos sobre ideias. E eu sei que eu

brinco com as idéias, a fim de compreendê-Ias e de fazer com que elas se

encaixem umas nas outras. Isto é um jogo, no mesmo sentido em que uma

criança pequena brinca com blocos ... E uma criança que constrói com blocos é

sempre muito séria em sua brincadeira".

A filha, então, questiona o pai se, uma vez que a conversação é um

jogo, ele estaria jogando contra ela. O pai explica que não: eles jogam juntos,

contra "os blocos de construção" - neste caso, as idéias. Pode haver um pouco

de competição, ou de ataques e defesas, mas, no final, eles sempre estarão

trabalhando juntos, no sentido da construção das idéias.

O autor, nesse sentido, ressalta que, para que em um jogo os

desacordos/conflitos sejam evitados, é preciso que os participantes façam um

―pacto‖, isto é, aceitem as regras e entrem no contexto imaginário do jogo.

Prosseguindo no campo da filosofia da linguagem, lembramos que

Wittgenstein (2005, p.53) reflete a respeito da palavra jogo - o que ela pode

denominar, quando a proferimos? O autor explica que os processos a que

chamamos jogos, sejam eles os jogos de tabuleiro, os jogos de cartas, os jogos

de bola, jogos de combate, etc., relacionam-se a uma complicada rede de

semelhanças, em grande e em pequena escala, que se sobrepõem umas às

outras e se entrecruzam - seriam as "semelhanças familiares". Verificamos que

a compreensão do jogo, per si, é dificultosa, uma vez que diferentes

significações podem ser atribuídas ao mesmo termo. Assim o autor questiona:

de que modo explicaríamos para alguém o que é um jogo? Poderíamos

descrever os jogos para explicá-Ios, mas poderíamos acrescentar a tal

descrição: "isto e coisas semelhantes são os jogos".

Kishimoto (2003, p.3), interpretando essas proposições de Wittgenstein,

lembra-nos que o filósofo questiona a lógica da linguagem, ao afirmar que

certas palavras só adquirem significado preciso quando interpretados dentro do

contexto em que são utilizados. Assim, com referência particular aos jogos, a

autora afirma:

(...) por pertencer a uma grande família com semelhanças e

diferenças, o termo jogo apresenta características comuns e

especificidades. Dentro da variedade de significados, são as

semelhanças, que permitem classificar jogos de faz-de-conta, de

construção, de regras, de palavras, políticos e inúmeros outros,

na grande família denominada jogos.

Ao interpretarmos o significado do jogo dentro do contexto em que ele

está inserido, verificamos que Wittgenstein aponta para a natureza perspectiva

da palavra "jogo" e, dessa maneira, estabelece uma analogia entre o jogo e a

linguagem, inclusive, em relação ao modo com que ambos são guiados por

regras - Wittgenstein considera que se pode aprender um jogo assistindo como

outros jogam. E, desta forma, dizemos que ele é jogado de acordo com tais

regras, porque um observador pode ler estas regras a partir da prática do jogo -

tal como ocorre na linguagem, nos contextos comunicativos.

A contribuição de Bruner (1991) ao nosso estudo relaciona-se às suas

pesquisas que correlacionam o jogo e o desenvolvimento de competências

cognitivas e linguísticas pelas crianças, já que o pesquisador americano aponta

a potencialidade da brincadeira para a descoberta das regras e aquisição da

linguagem: ao repetir a brincadeira nos contatos interativos com adultos, a

criança descobre a regra, ou seja, a sequência de ações que compõem a

modalidade do brincar, e não só a repete, mas toma iniciativa, altera sua

sequência ou introduz novos elementos. Tais brincadeiras interativas

contribuem com o desenvolvimento cognitivo e, ao mesmo tempo, com o

aprendizado dos atos de linguagem que o acompanham.

Para o autor, a utilização combinatória da linguagem, durante as

brincadeiras, funciona como instrumento de pensamento e ação. Assim, para

ser capaz de falar sobre o mundo, de explicar e argumentar sobre ele (e, dessa

forma, desenvolver suas competências cognitivas/linguísticas), a criança

precisa saber brincar com o mundo com a mesma desenvoltura que caracteriza

a ação lúdica.

4.Explorando as condutas de negociação interpessoal nas interações

conversacionais infantis.

É quando a criança habitua-se a agir do ponto

de vista dos próximos, e preocupa-se mais em

agradá-los do que a eles obedecer, que ela

chega a julgar em razão das intenções.

(Piaget)

De acordo com Kerbrat-Orecchioni (2006), a construção das

conversações é regida por regras de natureza diversa e culturalmente

variáveis. Todavia, a aplicação dessas regras permite que os interlocutores

improvisem e construam um texto conversacional de tal modo que nunca

saberemos, num tempo T1, como ele se parecerá em um tempo T2. Nesse

sentido, quanto mais flexível for um sistema de regras, mais ele deixará espaço

para a negociação.

A autora (op. cit., p.141) considera que as negociações podem ser

encontradas em todos os níveis de funcionamento da interação e, dessa forma,

podemos negociar:

- o contrato de comunicação;

- o tipo de troca no qual nos encontramos envolvidos;

- seu cenário global;

- sua organização local;

- a alternância dos turnos de fala;

- os temas da conversação;

- a adequação dos signos produzidos;

- a significação das palavras e dos enunciados;

- as opiniões emitidas de ambos os lados;

- os diversos aspectos da relação interpessoal

Tannen (1994, p.9) considera que existem estratégias linguísticas

observadas nas interações que são capazes de refletir e de, ao mesmo tempo,

criar o envolvimento interpessoal em uma conversação. Dentre tais estratégias,

a autora ressalta a utilização da repetição, da criação de imagens pelos

interlocutores para construir o sentido daquilo que está sendo comunicado e do

diálogo — entendido aqui não como o diálogo em si, que seria a troca de

turnos conversacionais, mas como a natureza polifônica de cada proferimento,

de cada palavra. Assim, o diálogo seria construído por diferentes vozes

(polifonia) a que os falantes se referem para construir o sentido da conversação

e, simultaneamente, criar envolvimento interpessoal.

Contudo, algumas vezes, os participantes de uma conversação

simplesmente não querem colaborar um com o outro. Nesse sentido, Roulet et

alii (1985, p. 203) estabelecem distinção entre atividade colaborativa e

atividade cooperativa:

Cooperar é agir dentro dos pressupostos racionais dos

empreendimentos mútuos, ao passo que colaborar é agir de

acordo com a natureza substantiva das demandas

conversacionais. (...) A cooperação é uma espécie de

fundamento da interação ao passo que a colaboração é um traço

qualitativo.

Por isso, um comportamento colaborativo ou não-colaborativo é

necessariamente cooperativo; um comportamento não-cooperativo não é

colaboração nem não-colaboração. Quando, na interação, um interlocutor

intervém e se nega a colaborar com outro interlocutor, ele está cooperando e

mantendo a interação.

A seguir, discutiremos estratégias linguísticas e interpessoais que

podem ser observadas nos processos de negociação das interações

conversacionais infantis analisadas, a saber: a presença do desacordo (ou

conflito) como estimulador das negociações interpessoais; a emergência da

regulação do discurso do interlocutor; os movimentos de ameaça e

preservação das faces dos interactantes, e as estratégias de polidez linguística

que podem ser observadas pelos participantes da interação, rumo à

negociação de um acordo.

4.1 Acordos e desacordos no processo de negociação.

Bonica (1990), em seu estudo sobre as negociações interpessoais entre

crianças, no contexto do jogo de ficção, considera que, do ponto de vista da

forma da interação, cada mensagem pode veicular quatro tipos de informações

possíveis:

o acordo (―você tem razão‖);

o desacordo (―você não tem razão‖);

a desvalorização (―eu não te reconheço como emissor‖, ―eu ignoro o que você diz‖,

ou ainda: ―eu não te reconheço como um ser que pode ter pensamentos,

intenções, emoções que podem influenciar o outro‖);

a dupla injunção (―eu exprimo sentimentos contraditórios que te impedem de

compreender se eu estou de acordo ou não‖).

Para a autora, a finalidade principal da negociação, a propósito da relação

interpessoal, é a defesa da integridade cada participante. Cada réplica entre os

pares é assim interpretada em função do seu valor de perigo ou de

preservação e podemos, aqui, estabelecer uma analogia com a teoria de

ameaça/preservação das faces de Goffman (1970).

Cada réplica contribui com a definição das características da relação

(por exemplo: mais ou menos simétrica ou complementar) e com o

desenvolvimento da coordenação das significações, através das

transformações trazidas ao conteúdo da interação. A dimensão interpessoal,

por isso, está sempre presente, mesmo quando não há conflitos e mesmo que

ela seja mais visível ao observador. Neste último caso, os participantes se

confirmam reciprocamente nas suas interpretações e este equilíbrio, no nível

interpessoal, permite-lhes avançar nas trocas, o que é mais ou menos

dificultoso no nível dos conteúdos. O conflito, todavia, pode surgir a qualquer

momento, tanto devido à interpretação do conteúdo, como devido à definição

da relação interpessoal. Quando o desequilíbrio atinge a segurança emocional,

o objeto da negociação se desloca para a relação interpessoal, a fim de que o

desequilíbrio seja reduzido. Se os participantes desejam permanecer juntos,

eles se encontram obrigados a abordar o problema de uma mudança que diga

respeito aos estados intra- e interpessoais. Neste caso, as estratégias para

mudar a situação interativa vão interferir nas estratégias de coordenação a

respeito do conteúdo.

A discriminação entre o valor do acordo e do desacordo das proposições

trocadas mostra, acima de tudo, a capacidade dos interlocutores para entrarem

em um acordo no nível da comunicação: afinal, discute-se o conteúdo ou a

relação? Neste contexto teórico, os conflitos e suas resoluções parecem

particularmente reveladores dos mecanismos reguladores das relações

interpessoais.

Nessa direção, Aquino (2008, p. 362) considera que acordo e desacordo

são constitutivos da interação verbal:

(...) seu encaminhamento depende de quem sejam os

interlocutores, dos objetivos da interação, do contexto em que se

desenvolve a ação, das regras que determinado evento

comporta e das normas sociais estabelecidas, por um grupo, por

determinada cultura.

Em sua tese de doutorado sobre conversação e conflito, Aquino (1997,

p.127) se inspira em Goffman (1967) ao questionar se toda negociação seria

associada ao conflito (ou desacordo):

Um conflito inicial dá origem a uma ―iniciativa‖ a qual provoca

uma ―reação‖ que pode ser favorável ou desfavorável. Se

favorável, haverá um acordo‖, encerrrando-se a negociação;

caso contrário, continuam as iniciativas até que surja um acordo,

ainda que ―parcial‖, ou até mesmo um acordo sobre a

impossibilidade de se chegar a um acordo.

Retornando ao estudo de Bonica (1990), verificamos que certas

competências pragmáticas podem emergir durante as conversações entre

crianças, nos jogos de ficção, principalmente em virtude da negociação

interpessoal que se associa às interações nesse contexto, após o surgimento

de um desacordo/conflito. No início do jogo, é comum o aparecimento da

ambiguidade, devido ao estabelecimento da posição inicial dos jogadores e da

exploração recíproca dos espaços de tolerância, podendo gerar, inclusive, os

mal-entendidos.

Em seguida, a autora cita o aparecimento do controle retroativo sobre o

processo de interação, ou seja, podem ocorrer operações através das quais os

sujeitos adquirem as informações sobre o desenvolvimento da interação

precedente e utilizam essas informações para introduzir mudanças na

interação em curso. Um exemplo desse controle retroativo se refere à repetição

das estratégias precedentes, quando surge a proposta de reestruturação do

cenário do jogo.

Na sequência da interação, verifica-se a ativação dos mecanismos de

autocorreção do sistema interacional, também chamado de metanegociação. A

autocorreção emerge com o intuito de que haja o restabelecimento das

condições de comunicação, após um conflito com o outro. Finalmente, como

uma consequência, estabelece-se a negociação produtiva na interação.

Embora verifiquemos que a negociação seja um aspecto central para a

produção de sentidos na interação verbal enquanto projeto conjunto, isto é,

construída conjuntamente pelos interactantes, Marcuschi (1998, p.19) nos

lembra que nem tudo é negociável:

(...) por exemplo, não negociamos crenças nem convicções, o

que tem consequências por vezes relevantes na continuidade de

um tópico e pode ditar sua morte. Pois a atenção dos falantes

para a qualidade de suas relações (preservação das faces, por

exemplo) pode sacrificar um tópico ao perceberem que não há

condições de consenso: a única forma de cooperar é o aborto do

tópico.

Todavia, antes que o tópico/assunto em questão seja definitivamente

abandonado, sempre há a possibilidade da tentativa do acordo, da negociação,

como se os interactantes fizessem parte de um jogo: ―interagir é jogar com

regras dinamicamente escolhidas, por isso é um jogo perigoso: nem sempre se

escolhe a regra certa‖ (MARCUSCHI, 1998, p.30).

Para Hilgert (2008), em uma conversação, os interlocutores se

empenham em buscar, conscientemente, a intercompreensão, a fim de

atingirem uma comunicação bem-sucedida. Contudo, muitas vezes, pode

ocorrer que, apesar das estratégias preventivas utilizadas pelos interlocutores

para se fazerem compreender, problemas de compreensão se instalem no

decurso da interação:

Denuncia-se esse fato quando, por exemplo, um interlocutor

sinaliza, verbalmente ou não, um problema de compreensão no

enunciado do outro. Este, então, geralmente reformula, em parte

ou no todo, o seu enunciado, com vistas tanto a resolver o

problema, quanto a viabilizar o prosseguimento da interação.

4.2 A regulação do discurso

Para a análise de nossa pesquisa, privilegiaremos também a importante

noção de ―regulação do discurso‖, desenvolvida por Caron (1983).

O autor considera que, na conversação, podemos estabelecer uma

analogia com o ―jogo‖: cada ―jogada‖ (cada ato de enunciação) estabelece uma

situação nova ou, mais exatamente, uma modificação mais ou menos radical

da situação precedente; a partir daí, definem-se as restrições/regulações que

permitirão ou proibirão uma ou outra ―jogada‖ posterior, e assim

sucessivamente. Contudo, em um jogo, o objetivo é ganhar — e no discurso, o

objetivo seria o mesmo?

A fim de responder a essa questão, o autor considera que o discurso,

em geral, inscreve-se em um conjunto de atividades, físicas ou sociais, com a

intenção de induzir ou modificar atitudes, comportamentos, crenças, etc. Assim,

o seu objetivo, na maioria das vezes, é extralinguístico ou perlocutório.

Contudo, pode-se conceber uma finalidade interna no discurso: a de criar uma

certa situação discursiva em que as relações entre os enunciadores e

referentes se estabeleçam conforme o objetivo buscado, supondo, dessa

forma, uma cooperação, no sentido das máximas conversacionais — teoria

proposta inicialmente por Grice, em 1975. E essa ideia de construção

progressiva de uma situação discursiva permite, de acordo com Caron,

introduzir a noção de regulação.

Para o autor, as regulações discursivas podem exercer duas funções ao

longo do processo discursivo: uma função de guia, coordenando os sucessivos

atos pelos quais se constrói a situação discursiva buscada; e uma função de

compensação, corrigindo as perturbações (reais ou virtuais) introduzidas pelo

interlocutor, ou os erros cometidos pelo locutor. Assim, verificamos que a

noção de regulação do discurso se refere ao conjunto das intervenções

discursivas que permitem que a atividade dialógica se desenvolva, de acordo

com as respectivas intenções dos interlocutores.

Nesta direção do estudo de Caron, buscaremos também apoio teórico

em Préneron (2004), que considera a regulação do discurso como um gênero

dialógico, quando existe uma dominância da função reguladora das

intervenções discursivas. A autora estabelece três tipos diferentes de regulação

presentes nas interações conversacionais: a regulação da atividade em que os

interlocutores estão engajados, a regulação da comunicação e a regulação do

comportamento. Em relação à regulação da atividade, Préneron relaciona

ainda três tipos de modos interativos, a saber: ―posicionar-se‖, ―demandar‖ e

―dar sentido‖.

A autora afirma que, quando está engajada em uma atividade com o

outro, a criança aprende a utilizar a linguagem para fazer, para dizer, para

manifestar seu acordo ou desacordo, sua compreensão ou incompreensão

daquilo que lhe é comunicado. Além disso, as crianças, para serem entendidas,

devem se fazer compreender e regular a comunicação e, assim, diferentes

procedimentos estão à sua disposição. Por fim, as suas intervenções podem

dizer respeito à regulação do comportamento, ou seja, a adequação das

atitudes às normas sociais. Para fazer isso, a criança pode intervir de acordo

com modalidades variáveis e utilizando diferentes tipos de atos de linguagem.

Assim definida, a regulação participa daquilo que se pode designar como

um gênero dialógico, no sentido que se trata de um diálogo e não de uma

atividade. O diálogo orienta e organiza a atividade, efetuando assim uma

regulação linguageira dela. É a dominância da função reguladora das

intervenções discursivas que permite que se fale da regulação como um

gênero dialógico. Outros contextos interativos (o interrogatório, a descrição, a

discussão, a argumentação...) podem implicar a dominância de outros gêneros

dialógicos. Além disso, os diálogos se distinguem entre eles segundo o

conteúdo sobre o qual tratam e segundo o modo como a progressão da troca

está organizada (pergunta/resposta, afirmação/afirmação, iniciativa/reação...).

Mesmo quando a interação se inscreve no contexto de uma atividade

específica, as trocas verbais se desdobram em torno de diferentes campos

temáticos iniciados pelo adulto ou pela criança, relacionados à situação

presente ou a outros objetos do discurso. Contudo, a noção de gênero

dialógico e de tema não se confundem totalmente: um mesmo tema pode ser

―dialogado‖ de acordo com diferentes gêneros ou, para dizer as coisas de outro

modo, e retomando o ponto de vista de François (1987), existem muitas

oportunidades para se organizar o que se pretende falar.

4.3 Os FTAs (Face Threatening Acts) e a cortesia verbal no discurso

infantil.

Entendemos, assim como Brait (1999, p.194), que a abordagem

interacional de um texto permite que verifiquemos relações interpessoais,

intersubjetivas que subjazem a um determinado evento conversacional, e isto

significa:

(...) observar no texto verbal não apenas o que está dito, o que

está explícito, mas também as formas dessa maneira de dizer

que, juntamente com outros recursos, tais como entoação,

gestualidade, expressão facial etc., permitem uma leitura dos

pressupostos, dos elementos que, mesmo estando implícitos se

revelam e mostram a interação como um jogo de subjetividades.

Nesse sentido, torna-se interessante observar que, nas interações

conversacionais espontâneas, os interlocutores, em geral, pretendem que sua

imagem pública seja preservada, ou ainda que aquilo que eles desejam

comunicar seja respeitado e valorizado, sem que sofram imposições. Assim,

com o intuito de efetivar a auto-preservação de sua imagem, um falante pode

utilizar recursos que tornem a interação com o outro mais equilibrada, de modo

que se evitem as imposições/contrariedades tanto em relação à sua fala (e,

mais amplamente, à sua pessoa), quanto em relação ao seu interlocutor. Um

desses recursos é o da cortesia (ou polidez) linguística.

Dentre os estudos sobre polidez linguística, a teoria da preservação das

faces é a que se mostra mais claramente articulada. Tal visão da polidez fora

preconizada por Brown e Levinson (1987), que retomam e ampliam a

conceituação de face proposta por Goffman (1970), para quem aquela poderia

ser definida como o valor social positivo que uma pessoa reivindica para si

mesma. Assim, todo ser social possuiria uma face negativa e uma positiva e,

aqui, recorremos a Silva (1998, p.13) para diferenciá-las:

a) face negativa: envolve a contestação básica aos territórios, reservas

pessoais e direitos; em outras palavras, a liberdade de ação e liberdade de

sofrer imposição. É o desejo de não ser impedido em suas ações, por isso a

preservação da face negativa implica a não-imposição do outro;

b) face positiva: representa a auto-imagem definida ou personalidade (incluindo

principalmente o desejo de que esta auto-imagem possa ser aprovada e

apreciada) de que os interlocutores necessitam. É o desejo de aprovação

social e de auto-estima.

Brown e Levinson (1987), a partir da teoria de ameaça/preservação das

faces, diferenciam e caracterizam as diferentes estratégias lingüísticas de

polidez da seguinte maneira:

polidez positiva: quando se observa uma compensação em relação à

face positiva do interlocutor, isto é, uma satisfação parcial das

aspirações do interlocutor;

polidez negativa: utilização de expressões com o intuito de se evitar

imposições/contrariedades em relação ao interlocutor;

polidez off record: representada por atos comunicativos indiretos,

evasivos.

Brown e Levinson (1987) ainda exemplificam as estratégias linguísticas

correspondentes a cada um dos três tipos de polidez. Assim, para que a

polidez positiva esteja inscrita em um enunciado, pode-se lançar mão das

seguintes iniciativas:

Manifeste atenção ao interlocutor;

Exagere na aprovação e simpatia pelo interlocutor;

Intensifique seu interesse pelo interlocutor, por exemplo, recorrendo aos

fáticos;

Utilize marcadores de identidade intragrupo;

Busque acordo com o interlocutor, repetindo parte do que ele diz, para

mostrar que o entende e aprova;

Evite discordância;

Dê a entender que os conhecimentos são compartilhados;

Pressuponha, assevere;

Pressuponha familiaridade na relação locutor-interlocutor;

Faça-lhe oferecimentos e promessas;

Seja otimista;

Inclua tanto locutor como interlocutor na atividade conversacional

Dê ou peça razões, justifique-se;

Reivindique reciprocidade;

Satisfaça as aspirações e necessidades do interlocutor com presentes.

Para que a polidez negativa seja colocada em prática, os autores

afirmam que as seguintes medidas podem ser tomadas:

Seja convencionalmente indireto;

Recorra aos modalizadores (hedges), isto é, seja evasivo, não se

comprometa;

Seja pessimista;

Minimize a imposição;

Mostre deferência;

Peça desculpas;

Impessoalize locutor e interlocutor para indicar que o locutor não quer

impingir algo ao interlocutor;

Afirme o FTA (ato ameaçador da face) como uma regra geral;

Nominalize;

Ofereça compensações.

Mas, caso o intuito seja utilizar a polidez off record, os autores

apresentam as seguintes possibilidades:

Forneça pistas e sugestões indiretas;

Dê pistas de associação;

Pressuponha;

Minimize a expressão, isto é, não diga tudo;

Exagere sua expressão (hipérbole);

Recorra à tautologia;

Recorra a contradições;

Seja irônico;

Use metáforas;

Utilize perguntas retóricas;

Seja ambíguo;

Seja vago;

Generalize;

Faça uma substituição do destinatário;

Recorra à elipse.

Também é necessário reconhecermos que tipo de ato linguístico é capaz

de produzir uma ameaça à face, positiva ou negativa, do interlocutor ou do

próprio locutor. Dessa forma, Fraser (1990, p. 229-230) exemplifica os

diferentes FTAs (Face Threatening Acts, ou, em português: atos ameaçadores

da face), que podem ser:

atos que ameaçam a face negativa do ouvinte (ex.: pedidos, avisos,

ameaças, advertências);

atos que ameaçam a face positiva do ouvinte (ex.: queixas, críticas,

desaprovação, levantamento de assuntos ―tabu‖);

atos que ameaçam a face negativa do falante (ex.: aceitar um

oferecimento, aceitar um agradecimento, prometer relutantemente)

atos que ameaçam a face positiva do falante (ex.: pedidos de desculpa,

aceitar elogios, confessar-se).

Também são importantes para nosso estudo as distinções que Goffman

estabelece entre três tipos de responsabilidade diante da ameaça à face.

Assim, de acordo com Silva (1998, p.112), no primeiro tipo, o interlocutor que

ameaça a face do outro age com certa ingenuidade, ou seja, a ameaça à face é

involuntária — caso o indivíduo tivesse previsto as consequências ofensivas,

teria evitado a situação. Já no segundo tipo, a ameaça provém da malícia ou

da clara intenção de provocar um insulto. O terceiro tipo é caracterizado por

uma ameaça provocada por ofensas acidentais, nas quais o indivíduo que

ameaça sabe da possibilidade de se colocar em risco a face, mas não o faz

intencionalmente, e sim porque a situação exige a ameaça.

Há, contudo, uma importante distinção entre polidez e atenuação,

estabelecida por Fraser (1980). Enquanto a atenuação implica a redução dos

efeitos indesejados daquilo que é dito para o ouvinte, a polidez, por outro lado,

refere-se a um fenômeno mais extenso, envolvendo a adequação do que foi

dito pelo falante em determinado contexto. Atenuar significaria, assim, suavizar

os efeitos de uma ordem, facilitar o anúncio de más notícias ou fazer uma

crítica de modo mais aceitável.

Para o autor, embora polidez e atenuação frequentemente sejam

encontradas juntas, podemos, ainda assim, ilustrar suas diferenças. Assim, em

uma situação em que, por exemplo, o autor seja o moderador de um pequeno

seminário, se ele dissesse a um dos participantes ―eu apreciaria se você

pudesse se sentar‖, estaria atenuando a força de seu pedido e, do mesmo

modo, tê-lo-ia feito de modo polido. Se, contudo, ele dissesse: ―sente-se e cale

a boca‖, não teria realizado uma atenuação nem teria sido cortês em seu

proferimento. Já ao dizer ―por favor, sente-se‖ , teria feito um pedido com uma

certa polidez mas que teria sido proferido de modo relativamente não-

atenuado.

Fraser (1980) destaca que atenuação não é o mesmo que fazer ―rodeios‖

ou ―esquivas‖. Lakoff (1972), por exemplo, propõe que expressões como ―do

tipo de”, ―mais ou menos”, ―um pouco”, ―em grande medida”, etc, podem ser

agrupadas sob o termo ―esquivas‖. Mas estas expressões, para Farser (1980)

artigo, não constituem, por si, exemplos de atenuação — palavras de

esquiva/imprecisas podem apenas contribuir com a criação de um efeito

atenuante.

A motivação para que a atenuação ocorra, de acordo com Fraser (op. cit)

recai sobre duas categorias: a autosservidora e a altruísta. A primeira

considera os efeitos de um ato de fala no ouvinte, como ao ordená-lo a realizar

uma tarefa desagradável. Neste caso, ao atenuar seu enunciado, o falante

indica um desejo de ser dispensado da execução deste ato. Há um segundo

tipo de atenuação autosservidora na qual o falante quer se esquivar de um

problema, fazendo com que o ato de fala tenha implicações sobre suas

crenças.

Já na atenuação altruísta, ao invés de o falante modificar um efeito que

em última instância pode afetá-lo, a intenção é a de apenas suavizar o efeito

que o proferimento causa diretamente no ouvinte.

A pesquisadora Pridham (2001) considera que, para estruturar

claramente uma conversação e para assegurar que a informação seja

transmitida eficientemente, falantes e ouvintes trabalham juntos, utilizando o

princípio da cooperação. Assim, em uma conversação cooperativa, os falantes

trabalham conjuntamente de forma a tranquilizar e ajudar uns aos outros.

Existem muitas técnicas usadas para mostrar concordância com o falante, com

o objetivo de encorajar novas falas. Os falantes também checam

constantemente se eles estão sendo compreendidos adequadamente, bem

como modificam o que eles disseram a fim de melhorar a compreensão do

interlocutor. Os falantes ainda podem compartilhar pressuposições mútuas e

podem se unir em uma avaliação conjunta da conversação. A autora considera

que, às vezes, o papel social de um falante lhe dá a autoridade para desafiar

os outros, como acontece em uma relação professor/alunos. No entanto,

existem maneiras de se apresentar o desafio que são mais ou menos

aceitáveis pelo interlocutor que está sendo desafiado: esses métodos mostram

a necessidade de se respeitar as convenções de polidez de cada cultura.

Pridham (2001) afirma que, na prática, nós temos de fazer uma escolha

e sustentar um balanço entre transmitir uma mensagem diretamente, o que

deve desafiar alguém, e transmitir uma mensagem indiretamente, o que é mais

polido, mas, algumas vezes, pode significar que a própria mensagem é

perdida.

Na verdade, podemos escolher uma variedade de expressões que

refletem diferentes graus de polidez e preservação de face. O comando direto:

―feche a porta‖, por exemplo, não respeita o direito da outra pessoa de ter

controle sobre seu próprio corpo. Para a autora, comandos diretos como este

são emitidos somente por pessoas de nível hierárquico superior em relação

aos seus inferiores.

O número de esquivas ou fatores de polidez em um pedido ou comando

é proporcional à quantidade de imposição que o falante sente que está

praticando sobre o ouvinte. Assim, a frase: ‖se não for muito incômodo, quero

dizer, se você não se importar, eu ficaria muito grato se você pudesse digitar

este texto‖, parece ridícula porque existem muitos fatores de polidez utilizados

em relação à dificuldade da tarefa solicitada. Às vezes, para preservar a face, o

falante faz um pedido tão impessoal e indireto quanto possível, como no

exemplo: ―se esta carta fosse datilografada, eu ficaria muito grato‖.

Para Pridham, um falante também pode respeitar o sistema de valores

do ouvinte insinuando que é um membro do grupo de seu interlocutor. Isso

pode ser feito das seguintes maneiras:

Utilizando pronomes pessoais, como nós.

Utilizando o vocabulário do ouvinte.

Utilizando pseudo-concordâncias que evitam dizer ―não‖ ou discordar do

falante.

Lakoff (1998) afirma que a comunicação de idéias, que alguns

poderiam considerar como um aspecto mais sociológico que linguístico,

produz-se por meios linguísticos. Portanto, na opinião da autora, o conteúdo

pragmático de um ato de fala deveria ser considerado ao se determinar a sua

aceitabilidade, da mesma forma como se tem feito em relação ao material

sintático e, mais recentemente, ao material semântico. Nesse sentido, Lakoff

resumiu a polidez em três máximas:

Não importune.

Ofereça alternativa ao ouvinte (dê opção).

Faça com que o ouvinte se sinta bem — comporte-se amigavelmente.

As máximas de polidez, de acordo com este pesquisador, são

universais. O que pode variar é o distinto predomínio de cada uma delas, de

acordo com os costumes de cada cultura.

Haverkate (1994) pondera que a cortesia representa um tipo de

comportamento regido por princípios de racionalidade e os participantes da

conversação atuam sempre guiados por esses princípios, justamente para

evitar que a conversação se deteriore.

No que se refere à realização polida do ato de fala, estão em vigência as

seguintes correlações:

1. A cortesia aumenta na medida em que é maior a distância entre falante

e ouvinte;

2. A cortesia aumenta na medida em que é maior o poder do ouvinte sobre

o falante;

3. A cortesia aumenta na medida em que é maior o grau de imposição.

No caso específico das interações conversacionais infantis, torna-se

necessário considerar que as estratégias linguísticas de cortesia verbal

empreendidas associam-se ao contexto sociocultural no qual elas se

desenvolvem.

Em uma pesquisa empírica com crianças de 6, 9 e 12 anos, La Taille

(2001) constata que a polidez faz parte do universo moral da criança desde

muito cedo, já que os dados da citada pesquisa mostraram que:

a) a polidez pertence ao universo moral das crianças de 6 a 12 anos, mas

com a peculiaridade de sua ausência não merecer castigo;

b) que a falta de polidez é, para as crianças de 6 anos, um indício para se

julgar o caráter moral de uma pessoa e deixa de sê-lo para as crianças

de 12 anos, com uma fase de transição aos 9 anos e

c) que a falta de polidez é vista como conduta de uma certa gravidade nas

três faixas etárias.

Snow et al. (1990), por outro lado, investigaram o modo como as crianças

adquirem esse complexo e abstrato sistema da polidez linguística. Os autores

consideram que, tal como a gramática, por exemplo, o sistema de polidez é

mais um sistema linguístico que está disponível às crianças nas interações em

que elas estão imersas no cotidiano. Portanto, elas aprendem as estratégias

linguísticas da cortesia verbal pela observação e pela própria interação com

seus pares e com os adultos.

5. Material e Método

A ciência é a tentativa de fazer com que a

diversidade caótica da nossa experiência sensível

corresponda a um sistema lógico uniforme do

pensamento.

(Einstein)

Neste capítulo descreveremos a metodologia de pesquisa que utilizamos

neste projeto, bem como o material selecionado para a coleta de dados na

pesquisa de campo.

5.1 Material

Como instrumento para a coleta de dados de nossa pesquisa, utilizamos

jogos de construção adequados para a idade dos pares de sujeitos a serem

analisados (pares de crianças de 5, 8 e 10 anos de idade). Com o objetivo de

realizar esta adequação dos jogos, realizamos observações na ―Brinquedoteca‖

da Faculdade de Educação da USP (FEUSP), preocupando-nos também com a

aceitação dos jogos, tanto por meninas, quanto por meninos, uma vez que a

interação ocorreu em pares heterogêneos em relação ao sexo das crianças. A

partir dessas observações realizadas na Brinquedoteca da FEUSP, foram

propostos os seguintes jogos aos sujeitos de nossa pesquisa:

para as crianças de 5 anos: “Brincando de Engenheiro” - jogo de

construção, com peças de madeira;

para as crianças de 8 anos: “Lego” – jogo de construção, com peças de

plástico;

para as crianças de 10 anos: “Lego” e “Megamag” – jogo de construção,

com a utilização de barras e imãs.

Optamos pela utilização de jogos de construção nas três faixas etárias

(apenas variando o grau de dificuldade do jogo de construção em relação à

idade) em virtude de serem brinquedos que possibilitam a livre criação de

regras associadas a esses jogos, estimulando, assim, a interação

conversacional entre as crianças e, possivelmente, a emergência de situações

em que a negociação interpessoal/conversacional se fizesse necessária.

Além disso, o jogo de construção permite a mobilização de situações

imaginárias pelas crianças durante a interação, ou seja, possibilita o

surgimento de elementos de ficção/faz-de-conta.

Piaget (1971) introduz o termo ―jogo simbólico‖ para se referir às situações

que impliquem a representação de um objeto por outro, a atribuição de novos

significados a vários objetos, a sugestão de temas, ou a adoção de papéis. O

jogo simbólico, para Piaget, apresenta-se inicialmente solitário, evoluindo para

o estágio de jogo sociodramático, isto é, para a representação de papéis.

Os termos simbólico, representativo, imaginativo, fantástico, de simulação,

de ficção ou faz-de-conta podem ser vistos como sinônimos, desde que sejam

empregados para descrever o mesmo fenômeno: o da simulação (Bomtempo,

2005).

5.2 Método

A pesquisa compreendeu dois momentos distintos:

I. a etapa da realização da pesquisa-piloto, em que testamos as categorias de

análise propostas em situações interativas de jogo;

II. a etapa da pesquisa propriamente dita, que foi orientada pelos resultados

obtidos na pesquisa-piloto. Nesta fase, foi realizada a análise qualitativa dos

dados coletados na pesquisa de campo.

A seguir, citamos os procedimentos que foram adotados nestas duas

etapas.

a) A escolha dos sujeitos.

Para as gravações da pesquisa-piloto foi selecionado um par de

crianças, ambas com 5 anos de idade (um menino e uma menina), alunos da

Educação Infantil da Creche Central da Universidade de São Paulo.

Da pesquisa de campo definitiva, participaram doze crianças como

sujeitos: dois pares de crianças de 5 anos (alunos de Educação Infantil da

Creche Central da USP); 2 pares de crianças de 8 anos e dois pares de

crianças de 10 anos (alunos do Ensino Fundamental da Escola de Aplicação da

FE-USP), respectivamente, totalizando 6 gravações com 6 pares de crianças. A

intenção foi observar o comportamento discursivo — de meninos e meninas —

de maneira evolutiva, em relação à sua idade.

Optamos pela realização das gravações com sujeitos provenientes da

Creche Central da Universidade de São Paulo e da Escola de Aplicação da FE-

USP, em virtude da já tradicional aceitação de pesquisadores das mais

variadas áreas do conhecimento no dia-a-dia dessas instituições.

Ressaltamos que os procedimentos de escolha dos sujeitos e de

realização da coleta de dados obedeceram aos padrões éticos do Comitê de

Ética na Pesquisa da FEUSP, expostos no documento ―Padrões Éticos na

Pesquisa em Educação: primeiro documento‖, que pode ser acessado no

seguinte website: www.fe.usp.br.

b) A coleta e a transcrição dos dados.

Foram realizadas, tanto na etapa da pesquisa-piloto, como na coleta

definitiva dos dados, gravações em áudio de cada par de crianças, na presença

do adulto (pesquisadora). Utilizamos um gravador digital de voz para registrar

as sessões. Cada sessão foi constituída da gravação de um evento lúdico

completo - isto é, pela abertura, desenvolvimento e finalização do jogo – e teve

a duração média de 40 minutos. Para a análise definitiva foram utilizadas 6

gravações com 6 pares de crianças (2 pares de crianças de 5 anos de idade, 2

pares de 8 anos e 2 pares de 10 anos).

As gravações supracitadas foram transcritas posteriormente, de acordo

com as Normas para Transcrição, comumente utilizadas pelos pesquisadores

do Projeto NURC/SP — Projeto de Estudo da Norma Linguística Urbana Culta

de São Paulo — que constam em Preti (1999, p. 11), e que podemos conferir

na tabela a seguir:

Tabela 2. Normas para transcrição (Projeto NURC/SP)

OCORRÊNCIAS SINAIS

Incompreensão de palavras ou segmentos ( )

Hipótese do que se ouviu (hipótese)

Truncamento (havendo homografia, usa-se

acento indicativo da tônica e/ou timbre)

/

Entonação enfática Maiúscula

Prolongamento de vogal e consoante (como s, r) :: podendo aumentar para :::: ou mais

Silabação -

Interrogação ?

Qualquer pausa ...

Comentários descritivos do transcritor ((minúscula))

Comentários que quebram a sequência temática

da exposição; desvio temático. -- --

Superposição, simultaneidade de vozes

[ Ligando

as linhas

Indicação de que a fala foi tomada ou

interrompida em determinado ponto. Não no seu

início, por exemplo.

(...)

Citações literais ou leituras de textos, durante a

gravação

― ‖

Observações:

1. Iniciais maiúsculas: só para nomes próprios ou para siglas.

2. Fáticos: ah, éh, ahn, ehn, uhn, tá.

3. Nomes de obras ou nomes comuns estrangeiros são grifados.

4. Números: por extenso.

5. Não se indica o ponto de exclamação.

6. Não se anota o cadenciamento da frase.

7. Podem-se combinar sinais. Por exemplo: oh::::... (alongamento e

pausa).

8. Não se utilizam sinais de pausa, típicos da língua escrita, como

ponto-e-vírgula, ponto final, dois-pontos, vírgula. As reticências

marcam qualquer tipo de pausa.

c) Delimitação da natureza da pesquisa.

Posteriormente à transcrição dos dados coletados, empreendemos uma

análise de cunho qualitativo de amostras de conversação entre as crianças

e/ou entre as crianças e a pesquisadora. Entendemos a pesquisa qualitativa

conforme os termos de Patton (1986 apud Alvez-Mazzotti e Gewandsznajder,

1998, p. 131): para o autor, a principal característica das pesquisas qualitativas

é o fato de que estas seguem a tradição interpretativa. Dessa posição,

decorrem três características essenciais aos estudos qualitativos que nos

guiaram ao longo de todo o processo de nossa pesquisa:

a) visão holística: parte do princípio de que a compreensão do

significado de um comportamento ou evento só é possível em função

da compreensão das inter-relações que emergem de um dado

contexto;

b) abordagem indutiva: pode ser definida como aquela em que o

pesquisador parte de observações mais livres, deixando que

dimensões e categorias de interesse surjam progressivamente

durante os processos de coleta e análise dos dados;

c) investigação naturalística: é aquela em que a intervenção do

pesquisador no contexto observado é reduzida ao mínimo.

No caso da nossa pesquisa, mantivemo-nos presentes ao longo de todas as

gravações das brincadeiras entre os sujeitos. Todavia, procuramos intervir o

mínimo possível na interação, exercendo apenas uma função de tutela para

que a brincadeira ocorresse efetivamente entre as crianças.

Nesse sentido, Bruner (1991, p. 277-279) afirma que as exigências da

tutela condicionam-se à interação, e esclarece que as funções do tutor, nessa

interação com a criança, podem ser assim delineadas:

engajamento:motivação para que a criança realize a atividade;

redução dos graus de liberdade;

manutenção da orientação: cabe ao tutor manter o interesse da criança

pela atividade e pelo alcance do objetivo definido;

sinalização das características determinantes: o tutor assinala as

características da atividade que são pertinentes para sua execução;

controle da frustração: encorajamento da criança para que ela prossiga

a tarefa;

demonstração: apresentação de uma solução para uma tarefa

parcialmente executada pela criança, que não obteve êxito.

Após a coleta e transcrição dos dados, selecionamos para a análise os

excertos mais significativos em relação aos processos de negociação

interpessoal que eventualmente surgiram nas interações.

d) Categorias de análise.

A partir das áreas de estudo que elegemos para respaldar a nossa

pesquisa sobre a negociação interpessoal infantil (Análise da Conversação,

Psicolinguística e Pragmática), e dos respectivos autores selecionados,

extraímos as categorias de análise visualizadas na Tabela 3, que nos nortearão

no momento da análise e interpretação dos dados coletados — ainda que não

nos tenhamos limitado a tais categorias, devido à própria natureza qualitativa e

interpretativa do tratamento dos dados que adotamos na presente pesquisa.

Tabela 3: Categorias de Análise

Categoria selecionada Autor Área

Acordos e desacordos

durante a interação

conversacional infantil.

Bonica (1990)

Psicolinguística/Análise da

Conversação

Sobreposições de vozes,

interrupções, digressões,

assaltos ao turno.

Marcuschi (1998) e

Kerbrat-Orecchioni

(2006), Preti e Urbano

(1990), Castilho (2010)

Análise da Conversação

Teoria da mente

(adoção da perspectiva do

interlocutor/crenças de

segunda ordem)

Tomasello (2005), Perner

& Wimmer (1985)

Psicolinguística

Processos de regulação

discursiva: função de guia e

função compensatória.

Caron (1983); Préneron

(2004)

Psicolinguística

Implicaturas conversacionais Grice (1982) e Kerbrat-

Orecchioni (1998)

Pragmática

Polidez linguística e FTAs

(Face Threatening Acts)

Brown & Levinson

(1987), Goffman (1967)

Pragmática/Sociolinguística

Interacional

6. Análise qualitativa do corpus.

Aprenda o significado das palavras através de

seus empregos! (De modo semelhante, pode-

se dizer na matemática, frequentemente:

Deixe que a demonstração lhe ensine o que

foi demonstrado).

(Wittgenstein)

Neste capítulo realizaremos a análise qualitativa dos dados coletados,

tendo como referência as categorias de análise selecionadas no capítulo 5.

Serão analisadas amostras de transcrição referentes a seis pares de crianças

em situação de interação conversacional: 02 pares de crianças de 05 anos, 02

pares de crianças de 08 anos e 02 pares de crianças de 10 anos de idade,

respectivamente.

6.1 S e M – 05 anos

Iniciamos a gravação da interação conversacional entre as duas

crianças de cinco anos, (S) – a menina, e (M) – o menino, propondo que

construíssem um castelo — a partir das peças do jogo “Brincando de

Engenheiro” — e que selecionassem e colocassem uma peça de cada vez,

como verificamos a seguir:

Exemplo 1

P (pesquisadora) - então vamos lá...a Sophia vai começar...coloca uma

pecinha aqui... depois é o Matheus ((Sophia começa a montar o castelo,

colocando várias peças do jogo))... agora o Matheus ((Matheus coloca uma

peça))

S- ei...esse é assim ((Sophia corrige Matheus))

P- ah::: por que é assim Sophia?

S- porque é um relógio

P- ah...o relógio tem que ficar em pé?

S- ((afirma através de gesto))

P- ah:::... e o telhadinho...tá certo?

S- primeiro tem que pegar as:: pecinhas e colocar do lado...assim ((Sophia

recoloca as peças que Matheus havia colocado anteriormente))

P- uma do lado da outra...primeiro?

S- ((afirma através de gesto))

P- então deixa o Matheus agora colocar outra

[

M- posso ler livro?

Observamos que a regulação discursiva da pesquisadora (P),

assumindo uma função de guia, inicia-se com a proposta de que uma das duas

crianças inicie o jogo, por meio do marcador conversacional ―então‖. (S) toma

a iniciativa e começa a colocar mais de uma peça, não esperando que (M) o

fizesse. Foi necessário que (P) instigasse (M) para que agisse, através da

sugestão ―agora o Matheus‖, representada pelo advérbio de tempo ―agora”.

No entanto, (S) corrige a atuação de (M) e chama a sua atenção por

meio da interjeição ―ei‖, fazendo emergir uma regulação discursiva de

compensação, tal como nos fala Caron (1983). Posteriormente, por meio da

indagação de (P), marcada pelo pronome interrogativo ―por que‖, (S) justifica a

sua ação ao responder: ―porque é um relógio‖. Em seguida, verificamos que (S)

já estava estabelecendo/demandando novas regras para o jogo: ―primeiro tem

que pegar as:: pecinhas e colocar do lado...assim‖. Percebendo que (M) estava

sendo deixado de lado na brincadeira, (P) pede que (S) deixe (M) colocar uma

peça. A reação de (M), desviando do assunto ao perguntar se poderia ler um

livro – através do turno conversacional superposto (Marcuschi, 1998) -

demonstra, todavia, o seu desinteresse em entrar no contexto imaginário/

ficcional do jogo, ou seja, em assumir as suas regras (Bateson, 2000) — fato

que pode ter sido suscitado pela posição de ―comandante‖ das regras do jogo

assumida por (S), desde o início da brincadeira. Assim, o turno conversacional

superposto de (M) deixa subentendido (Armengaud, 2006) que ele não sentia

vontade de prosseguir com o jogo.

No entanto, o exemplo 2, abaixo, demonstra que (M) retorna à ficção,

contribuindo com o estabelecimento das regras que, antes, eram ―monopólio‖

de (S), afirmando (e regulando o discurso): ―e tem que fechar”. Ao constatar

que as duas crianças se encontravam em situação de acordo no jogo (Bonica,

1990), (P) mantém a posição de direcionar a interação, de modo a estimular o

interesse das crianças pela atividade, através do questionamento sobre qual

―papel‖ as crianças gostariam de exercer no castelo que estava sendo

construído:

Exemplo 2

S- olha...tem que fazer igual a esse ((aponta para a ilustração da caixa do

brinquedo))

P- é... igual ou parecido...o importante é ficar bem bonito o castelo

M- e tem que fechar ((coloca uma peça para fechar o castelo))

P- e o que é que tem no castelo Sophia?

S- aqui é a janela do castelo

P- você queria ser uma princesa no castelo:: Sophia?

M- ela queria porque ( )

S- ((nega através de gesto))

P- não?...queria ser o quê?

S- madrasta

P- ((risos)) é mais legal ser madrasta?

S- ((afirma através de gesto))

P- ela é mais poderosa? ((risos))

S- ((afirma através de gesto))

P- e você Matheus...no castelo que a gente vai construir...o que você vai querer

ser?

M- o príncipe

P- o príncipe::...ah...que príncipe LIN:::do

Aqui, (P), a fim de incitar a discussão, indaga se (S) gostaria de ser a

princesa no castelo. (M) se antecipa, afirmando que (S) gostaria, sim, de ser a

princesa. Além disso, justifica essa afirmação através do conector causal

―porque‖. O sujeito realiza, dessa forma, uma inferência sobre o pensamento

de (S), com base, provavelmente, no seu histórico anterior de convívio com a

colega, juntamente com o ―senso-comum‖ de nosso contexto cultural, que

pressupõe que as meninas, em geral, desejam ―ser‖ princesas. Trata-se de

uma crença de segunda ordem (Cf. Perner & Wimmer, 1985), uma vez que (M)

pensa que (S) tem a intenção de ser uma princesa.

Surpreendentemente, (S) não concorda com (M), afirmando que

preferiria ser a madrasta. (P), então, confirma com (S) o que já se mostrava

claro, desde o início da interação conversacional: (S) detém o poder na

interação linguística; é ela quem direciona tanto a interação conversacional,

como a negociação interpessoal (como veremos nos próximos exemplos), e

isso fica claro, metaforicamente, quando ela concorda que quer ser a

―madrasta poderosa‖. Neste momento, (S) posiciona-se na interação,

diferenciando-se de seu interlocutor (M), que assume querer ser o príncipe, e

demonstra a sua afirmação do eu, como sugere Wallon (1987).

No exemplo 3, abaixo, a voz de comando de (S) passa a se tornar ainda

mais evidente:

Exemplo 3

P- será que esse tá certo assim?

M- ((afirma através de gesto))

S- não... não tá não:::...usa a caBEça (sobrenome de Matheus) você não sabe

de NA::da...você não prestou atenção na au:::la ((Sophia imita um adulto

falando))... é assi::m

P- por que tá errado Sophia?

M- tá erRAdo SO:::phia

S- não tá não... é assim mesmo...tem que colocar uma janelinha em cima...eu

acho

P- a janelinha tava de cabeça pra baixo... é?

S- ((afirma através de gesto))

M- agora esses ( ) ficam embaixo que não dá mais pra pôr

S- os ( ) não:::

Verificamos que (P) pergunta às crianças se uma das peças havia sido

colocada corretamente. (M) responde com a cabeça que ―sim‖, mas (S) entra

em desacordo, incorporando a fala de um adulto — provavelmente o pai, a mãe

ou o(a) professor(a). É interessante notar como (S) assume a perspectiva de

um adulto, imitando seu modo de falar, ao realizar a ameaça à face (FTA) de

(M): ―você não sabe de NA::da...você não prestou atenção na au:::la‖. Este

turno conversacional de (S) só pode ser entendido no contexto sociocultural em

que ele se insere, e indica a compreensão de (S) a respeito de agentes

mentais dos adultos que lhe cercam, já que ela é capaz de assumir a

perspectiva de um deles (Tomasello, 2003). Ao mesmo tempo, (S) regula a

atividade, isto é, o jogo em si (Préneron, 2004), de forma a compensar o ―erro‖

cometido por (M), e determina: “é assim”.

Em seguida, (M) faz uma tentativa de regular a atividade, sem sucesso:

―agora esses ( ) ficam embaixo que não dá mais pra pôr‖. O advérbio de tempo

―agora‖ marca a intenção de (M) de contribuir com o desenvolvimento do jogo.

(S), contudo, entra em desacordo: ―os ( ) não:::”, reforçando a sua posição

através do prolongamento de vogal. Note-se que os proferimentos de ambas as

crianças são realizados de forma não atenuada, e que não se notam

estratégias de cortesia verbal nos turnos conversacionais analisados.

Os exemplos 4, 5 e 6, que analisamos a seguir, refletem as tentativas de

fuga do contexto ficcional do jogo por (M), seja ao tentar destruir todo o castelo,

ou ao derrubar peças que (S) havia colocado. Podemos verificar que,

inicialmente, no exemplo 4, (S) propõe uma resolução para o conflito incitado

por (M), que havia desmontado o castelo que acabara de ser construído:

Exemplo 4

S- não era pra desmonta::r ((Matheus havia desmontado o castelo construído))

P- éh::: agora vai ter que montar TUdo de novo::

S- vamo montá um diferente

P- vamos montar um diferente?...não precisa ser castelo

Verificamos que (S) busca o acordo, rumo à negociação

interpessoal/conversacional, através do turno: ―vamo montá um diferente”. (P)

reforça a tentativa de resolução do conflito: ―vamos montar um diferente?...não

precisa ser castelo”. Contudo, (M) não entra em acordo com (S), afirmando que

ele fará sozinho outro tipo de castelo:

Exemplo 5

M- eu vou fazer...OUtro tipo de castelo

S- ah não:::

M- ah você não tá montando o seu?... eu monto

P- mas um tem que ajudar o outro... vocês tem que chegar num acordo...o quê

vocês querem montar?

S- cada u/ já sei... a gente pode montar o que a gente quiser

P- is:::so...mas cada um ajuda o outro né?... senão....

M- eu tô montando um castelo bem maior que o do Chaves

S- eu vou pegar mais u:::m:: desse aqui ((Sophia pega uma peça que estava

perto de Matheus))

M- ( ) ((grita com Sophia))

P- mas você não quer ajudar a::: a Sophia a montar a parede?...você não é um

bom engenheiro?

M- óh o que eu vou fazer com o castelo dela ((ameaça derrubar o que Sophia

estava construindo))

S- não:: ((Matheus derruba algumas peças))...PÁ::ra...EU NÃO GOSTO DISSO

Diante da recusa de (M) em entrar no acordo, (S) muda mais uma vez a

regra do jogo, demandando: ―cada u/ já sei... a gente pode montar o que a

gente quiser‖. (M) passa a se posicionar na atividade, colocando em prática a

desvalorização (Bonica, 1990) da sua interlocutora, ignorando (S) ao construir

um castelo do seu modo. Além disso, ao afirmar —“eu to montando um castelo

bem maior que o do Chaves”—, (M) regula a sua atividade, dando um sentido a

ela.

(P) realiza três tentativas de propor que as crianças voltassem a

cooperar uma com a outra na construção, em vão: (M) acaba derrubando

algumas peças colocadas por (S). Todavia, (S) se posiciona claramente

através da utilização do verbo no modo imperativo: ―PÁ::Ra‖. Finalmente, (P)

intenta estimular a negociação interpessoal/conversacional entre as crianças,

regulando o discurso ao propor que construíssem uma creche apenas, ao invés

de cada um construir a sua (como estavam fazendo após o castelo ser

derrubado):

Exemplo 6

P- vamos juntar as duas creches?...fazer um prédio só?

S- aqui vai se:::r...

P- estacionamento? ((Matheus desmonta o que Sophia estava começando a

construir))

S- AH...NÃO É PRA DESMONTAR

No exemplo 6, observamos que (S) responde prontamente à sugestão

de (P), começando a construir o estacionamento da creche e estabelecendo,

através do advérbio de lugar ―aqui‖, o local onde ele seria construído. (M),

todavia, desmonta mais uma vez o que (S) acabara de construir, gerando um

conflito e fazendo com que (S) ordene, gritando: ―AH...NÃO É PRA

DESMONTAR‖.

O próximo exemplo nos fará entender melhor um dos motivos da recusa

de (M) em entrar no jogo e respeitar suas regras:

Exemplo 7

S- eu vou faze:::r...hum... o relógio da/de dentro

P- tá bom

S- ((imita o som de um sino)) quando tocar o sino quer dizer que tá na hora de

jantar...vou colocar aqui ((o relógio))

M- ah::...alg/alguém diz pra mim?... eu não tô sabendo...((diz que não está

sabendo construir o carrinho com as peças))

P- eu te ajudo então... ah:: mas o teu ficou legal...olha... interessante,

né?...Sophia?

S- mas vai devagar...senão vai desmonTAR ((dirigindo-se a Matheus, que

constrói um carrinho para colocar no estacionamento))

P- olha...o estacionamento é aqui

S- vai ter que abrir a porta daqui

P- tem que abrir a porta...tem que ter um::: um porteiro ali, né?

M- POde ser você ((exclamando))

P- pode ser eu, né?... tá bom... então::... eu tô esperando o carro do Matheus

chegar:::

M- ah eu não tô conseguindo cons/cons/construir

S- faz do seu jeito ((exclamando))

Podemos observar que (M), na verdade, não aceita as regras do jogo

criadas por (S) por não saber exatamente como agir: ―ah::...alg/alguém diz pra

mim?... eu não tô sabendo...‖; e depois: ―ah eu não tô conseguindo

cons/cons/construir‖. Por esse motivo, (M) recusa-se a adentrar totalmente o

mundo ficcional, até aquele momento — ao contrário de (S), que transita muito

bem entre a realidade e o ―faz-de-conta‖ durante todo o jogo, dando um sentido

às suas ações, como percebemos neste turno conversacional: ―quando tocar o

sino quer dizer que tá na hora de jantar...‖, em que ela vincula a atividade

fictícia do jantar ao momento em que o sino for tocado.

Aos poucos, entretanto, (P) e (S) estimulam a participação de (M) no

jogo. (P) percebe que (M) havia se empolgado com a idéia de que ela

assumisse o papel de porteiro do estacionamento, e o estimula a construir o

carrinho com as peças para entrar neste local: ―pode ser eu, né?... tá bom...

então::... eu tô esperando o carro do Matheus chegar:::‖. Além disso, (S)

determina: ―faz do seu jeito‖, utilizando novamente o verbo no imperativo

(―faz‖). No exemplo 8, (M), finalmente, entra em um acordo momentâneo com

(S), como podemos observar:

Exemplo 8

M- deixa eu entrar ((Matheus leva o carrinho dele em direção à portaria do

estacionamento))

S- eu abro a porta

M- vummm

S- é AQUI

M- deixa eu vou arrumar meu carro ((Matheus derruba algumas peças da

construção, ao estacionar o carro))

S- você desmontou:: (sobrenome de Matheus)

M- desmontei o quê?

S- NADA não::

M- o meu tinha atirador pra matar a Sophia ((referindo-se ao carro))

S- não tinha nada

M- tinha sim

S- tinha não

P- o que você falou Matheus?

M- o meu tinha atirador

S- você era o policial... quer dizer?

P- então você era o policial?

M- era ((mexe o carro fazendo o som de carro de polícia))

P- ah::...virou um carro de polícia

Neste exemplo, verificamos que (M) tem uma atuação mais efetiva na

regulação da atividade e da comunicação, já que demanda, inicialmente: ―deixa

eu entrar”, utilizando o verbo no modo imperativo (―deixa‖). (S), por sua vez,

não se opõe e, inclusive, coopera com o colega, posicionando-se: “eu abro a

porta”. Todavia, logo o conflito se instaura novamente, uma vez que (S) corrige

a ação de (M): “é aqui”. (M) se justifica, dando um sentido à sua ação ao

afirmar: “deixa eu vou arrumar meu carro”. Mas, como (M) havia derrubado

algumas peças durante essa ação, (S) tenta regular novamente o discurso e

compensar o erro de (M), ao afirmar: ―você desmontou‖.

Também observamos, no exemplo 8, a dupla injunção de que nos fala

Bonica (1990), no turno de (M): ―desmontei o quê?‖. Este enunciado irônico

exprime uma ambiguidade, que impede que o interlocutor (S) compreenda se

ele está ou não de acordo com o que foi dito. (S), no entanto, demonstra querer

evitar um novo conflito, com a resposta: ―NADA não::‖. Verificamos aqui uma

implicatura conversacional (Grice, 1982), já que (S), apesar de dizer que (M)

não havia desmontado nada da construção, deixa subentendido (Armengaud,

2006) que ela sabe o que (M) havia feito, mas opta por não dar prosseguimento

à discussão.

Neste exemplo, (M) chega a imaginar que seu carro teria um atirador: ―o

meu tinha atirador pra matar a Sophia‖. Mais uma vez, podemos inferir que

este turno conversacional de (M) foi influenciado tanto pela situação de conflito

existente na interação entre as duas crianças, como por condições presentes

em seu histórico sociocultural (background). Finalmente, (S) estabelece mais

uma regulação discursiva, com a função de interpretar a fala do colega — que

afirma querer ser o atirador — e, ao mesmo tempo, efetuar um pedido de

esclarecimento (Tomasello, 2005): ―você era o policial... quer dizer?‖.

6.2 C e T – 05 anos

A pesquisadora (P) inicia a interação com as crianças (C) – o menino, e

(T) – a menina, propondo que elas construam um castelo conjuntamente:

Exemplo 9

P – Tarsila... você ajuda o Cássio? ... eu queria fazer o seguinte olha...

T – si::m:::

P – a gente constrói JUNtos um castelo porque eu tô fazendo um trabalho pra

escola... e::... eu preciso mostrar depois que eu construí um castelo com

vocês... e aí... um tem que ajudar o outro... vamos começar assim?... cada um

começa com uma pecinha...

C – um dia eu fiz um castelo que não dava pra ver nada...

P - ahn?

C – só dava pra ver esses negocinhos ((aponta para um tipo de peça do

jogo))... e tinha tanto disso...

P – o que é isso aqui?

T – éh::

P – a Tarsila sabe?

T – é um teLHA::do

P – um teLHA::do...isso:::

C – telhado... porque é assim ((indica com as mãos o formato da peça que

pode servir com telhado na construção))

P – ah::: entendi

No exemplo 9, verificamos que (T) entra em acordo imediatamente com

a pesquisadora, que a questiona se ela ajudaria (C) na construção. No entanto,

a construção do castelo, em si, não é iniciada em virtude da digressão de (C),

que comenta sobre um castelo que havia construído em outra situação.

Ao verificar que (C) estava tendo dificuldades em denominar

determinadas peças, (P) lança a questão, regulando o discurso com a função

de guia: “o que é isso aqui?”. (T), nesse momento, esboça uma resposta e,

então, (P) a incentiva a responder, ameaçando a sua face positiva com a

questão: “a Tarsila sabe?”. (T) responde que se trata de um telhado, e (C)

concorda com a colega, complementando a resposta com uma explicação.

Observemos o exemplo 10, a seguir:

Exemplo 10

P – vamos fazer uma coisa?... vamos trazer mais pra cá ((as peças do jogo))

pra você poder ajudar ele... tá bom? ((dirigindo-se à Tarsila))

C – é porque EU já tô começando

P – éh:: então... eu queria que vocês entrassem num acordo pode ser?... cada

um coloca uma pecinha...

T – eu sei fazer uma casa e um casTE::lo::

P – ai vai ficar LINdo:::... ((exclamando)) mas você não quer ajudar ele?

C – AH::: JÁ SEI... ela faz um um::: castelo dela desse lado e eu faço o meu

aqui só que (com menos peças)

P – mas::... tá bom... mas primeiro vamos tentar fazer um juntos?...vocês...

cada um coloca uma pecinha por vez... a Tarsila vai ter que chegar um

pouquinho mais pra cá...

Verificamos que (P) intenta regular a atividade em curso, ao solicitar que

as peças do jogo fossem trazidas para mais perto dos interactantes, a fim de

que (T) conseguisse auxiliar (C), que já havia iniciado a atividade sozinho.

Além disso, (P) solicita que as crianças entrem em acordo no sentindo de que

cada um deveria colocar uma pecinha por vez. (T), no entanto, não interage

com o colega e afirma o que ela saberia fazer: uma casa e um castelo. (P), não

satisfeita, regula mais uma vez a atividade por meio da ameaça à face negativa

de (T): ―((exclamando)) mas você não quer ajudar ele?”. Antes que (T)

respondesse, (C) propõe uma solução à questão: cada um construiria um

castelo de um lado. (P), todavia, regula mais uma vez a atividade ao reforçar o

pedido de que a construção fosse feita em conjunto.

Exemplo 11

P – então vamos lá... primeiro a Tarsila coloca uma pecinha do castelo

T – deixa eu te falar... quando eu era bebê minha mãe me chamava de

Tarsilinha:::

P – ah::: TarsiliNHA...que bonitinho:: ((risos))

C – é... essa peça ( ) ((concentrado no jogo))

T – um dia quando eu era bebê...

No exemplo 11 verificamos que (C) concentra-se mais na execução da

construção do que a sua interlocutora (T). Assim, enquanto (C) preocupa-se

com qual peça deveria ser colocada, (T) efetua digressões. Mesmo ao ter sua

face negativa ameaçada pela pesquisadora (“primeiro a Tarsila coloca uma

pecinha do castelo”), ela desloca o tema da conversação para o assunto sobre

o qual ela desejava falar (fatos relacionados à época em que ela era bebê).

Exemplo 12

P – primeira coisa... o que vocês querem montar?

T – eu quero montar uma ca::sa::

P – você concorda Cássio?... porque eu queria que vocês primeiro

construíssem uma coisa juntos... entendeu?

C – ah::: tudo bem

P – tudo bem? pode ser uma casa? não tem problema?

C – ((gesto afirmativo))

T – na minha casa eu tenho essas pecinhas e aí eu faço um castelão e um

castelinho... depois eu faço uma casinha e uma caSONA::

P – ah::: quer fazer isso também Cássio?

C – tudo bem mas eu quero fazer esse aqui ((apontando para a ilustração da

caixa do briquedo))

P – como esse aqui?... e a Tarsila concorda em fazer esse da caixa?

T – eu concordo fazer uma CAsa

C – mas esse aqui é uma casa... desse jeito ué

P – é um tipo de casa:::

T – eu SEI fazer uma casa do MEU JEIto

Uma vez que (P) verifica que não estava havendo acordo quanto à

construção em conjunto solicitada, efetua uma regulação da atividade e do

discurso (com a função de guia) através do seguinte turno do exemplo 12:

“primeira coisa... o que vocês querem montar?”. (T) manifesta-se

imediatamente afirmando que queria montar uma casa. (P) pergunta a (C) se

ele concordava e, a princípio, ele entra em acordo. Contudo, logo manifesta a

afirmação do seu ―eu‖ (Wallon, 1987), ao explicar que concorda em construir

uma casa, desde que seja aquela correspondente à ilustração da caixa do

brinquedo.

(T) Discorda, instaurando o conflito ao manifestar o seu desejo,

reforçado pelas entonações enfáticas de seus turnos conversacionais: ―eu

concordo fazer uma CAsa”, e depois: ―eu SEI fazer uma casa do MEU JEIto”.

Exemplo 13

T – eu coloco os dois telhados... os dois telhados... e aí... aí fica uma casa::

P – fica bonito também

C – é mas fica meio esquisito

P – é? você não gosta muito? (fica) meio esquisito?

C – é... já vi como que ela fez

P – e como você prefere?

C – mais ou menos DESse jeito

P – ((T faz gesto de que não concorda)) hum:: e a Tarsila não quer... desse

jeito?

T – não:::

P – ((risos)) e agora? como que a gente vai entrar num acordo... hein?

C – ué... faz uma casinha que ela também ache bonito ué

P – uma casa que ela também ache boni:::to...

T – eu eu posso fazer essa PEÇA... uma rainha ou um rei::

No exemplo 13, as crianças entram novamente em desacordo. (T)

sugere um tipo de construção com as peças do telhado; contudo (C) afirma que

ficaria ―meio esquisito‖, e justifica a sua discordância: ―é... já vi como que ela

fez‖. (P) então lhe indaga sobre sua preferência, e ele responde, ao mesmo

tempo em que executa a construção: ―mais ou menos DESse jeito”. Nesse

momento, é a vez de (T) discordar, primeiramente por meio de gesto negativo

e, posteriormente à indagação de (P), pelo uso do advérbio de negação. (P),

então, questiona como as crianças entrariam em acordo, e (C) imediatamente

propõe uma solução ao conflito: ―ué... faz uma casinha que ela também ache

bonito ué‖.

(T) Demonstra concordar, colaborando com a construção e adentrando o

mundo do faz-de-conta, o que se torna evidente com o turno conversacional:

―eu eu posso fazer essa PEÇA... uma rainha ou um rei::‖.

Exemplo 14

P – vocês estão entrando num acordo sim... tá ficando legal... agora é a Tarsila

C – se eu fosse ela não colocava essa pecinha agora não

P – se fosse você o que você faria?

C – colocava::: um quadradinho...porque senão...

P – esse pequenininho?

C – aham... e esse de uma outra cor

[

P - hum:::... você concorda Tarsila?

T – sim ((exclamando))

P – fica bonito né?

T – na minha casa um dia... sabe o que eu vou fazer?... sabe o que minha tia

fez?... ela me filMOU

No início do exemplo 14, constatamos que (C) assume a perspectiva da

colega, emitindo uma crença de segunda ordem (Perner & Wimmer, 1985): ―se

eu fosse ela não colocava essa pecinha agora não”. (P) Interroga (C) sobre o

que ele faria no lugar de (T) e ele, então, descreve o que faria, mas não

executa. Em seguida, (P) pergunta à (T) se ela concorda com o que (C)

pretendia fazer, e ela afirma, sem titubear, exclamando: ―sim‖. As crianças,

então, prosseguem com a construção do castelo e logo fica evidente o porquê

de (T) ser tão efusiva em sua resposta: sua intenção era a de fazer uma nova

digressão ao tópico conversacional em andamento. Dessa forma, a menina (T)

não responde à pergunta de (P), e inicia outro assunto: ―na minha casa um

dia... sabe o que eu vou fazer?... sabe o que minha tia fez?... ela me filMOU”.

Exemplo 15

T – é mas ela é irmã do meu pai::

C – ela concordou em (colocar) essa peça...

T – a minha TIa...

P – pode colocar? pergunta pra ela ((dirigindo-se ao Cassio))

[

T - POde

C – pode colocar essa peça aqui?

T – ((gesto afirmativo))

P – então tá bom... que bom... vocês entram num acordo fácil... né? ((risos))

T – é:: a minha TIA... ela é fi/ela é mãe da/da Ludmila

P – mas olha... só o Cassio tá... tá colocan/construindo

C – mas ela me pediu pra colocar essa peça aqui

P – ah:: tá bom... mas a Tarsila também tem que colocar

T – ((coloca a peça))

P – aí::: ficou bonito esse hein?.... olha SÓ ((exclamando))

C – eu já pus essa...

P – tá:: agora...

C - e ela pôs essa

P – já... agora é o Cássio de novo

No exemplo 15, a fuga ao tópico discursivo e ao contexto situacional da

brincadeira de (T), torna-se ainda mais evidente. Todavia, verificamos que (T)

não deixa de atuar na brincadeira, ajudando (C) na construção, ainda que sua

participação seja menos efetiva em virtude das digressões ao tópico lúdico em

questão. Assim, verificamos que é (C) quem realiza a regulação discursiva e da

atividade, a fim de que o objetivo da brincadeira seja alcançado. Neste

exemplo, podemos observar que (T) concorda prontamente com o que (C)

solicita: deixa que (C) coloque uma peça que ele escolheu como sendo melhor

para a construção, no momento em que a princípio seria a sua vez de

participar. Na verdade, (T) demonstra-se mais interessada em dar

prosseguimento ao assunto sobre sua tia, do que a participar de modo mais

ativo na brincadeira.

Em seguida, (P) realiza um FTA à face negativa de (T), com o intuito de

que ela não deixe de participar da brincadeira: ―mas a Tarsila também tem que

colocar”. Dessa forma, (T), imediatamente, retorna ao jogo, colocando uma

pecinha.

Exemplo 16

P – vocês querem minha ajuda ou não?

C – não né? ((dirigindo-se à Tarsila))

P – ou quer?

T – NÃO...

P – não? vocês...

[

T - precisamos fazer tudo SO-ZI-nhos

C – cada vez que ela colocar eu também vou colocar (mais um) pra ficar

melhor

No exemplo 16, é possível constatar que, como foi dito anteriormente,

(C) detém o poder de direcionamento da interação conversacional e da

atividade lúdica. (P) Indaga às crianças se elas gostariam de sua ajuda na

construção. (C) Imediatamente responde que não, mas ao mesmo tempo

busca a aprovação de sua colega por meio do marcador conversacional ―né?‖.

O uso deste marcador lhe permitiu atenuar a emissão de sua opinião e, ao

mesmo tempo, fazer com que (T) concordasse com ele.

No entanto, sabendo que a participação de (T) estava comprometida

pelas digressões ao tópico conversacional e à brincadeira, (C) afirma: ―cada

vez que ela colocar eu também vou colocar (mais um) pra ficar melhor”. Ou

seja, a cada vez que (T) colocasse uma pecinha na construção, (C) colocaria

mais uma peça (além da peça relativa ao seu turno no jogo). Assim,

constatamos que a intenção de (C) era realmente concluir a brincadeira sem,

contudo, causar um conflito com a colega. Verificamos aqui a emergência tanto

da teoria da mente (pois ao colocar-se no lugar da colega, sabendo de

antemão qual seria a sua atitude, ele direciona a sua própria ação), como do

princípio de cooperação de Grice (1982), uma vez que (C) evita o conflito na

conversação.

No entanto, no exemplo 17, (C) abandona a estratégia de evitar o

conflito:

Exemplo 17

T – você já ouviu essa música?... ―depois de::: acordar‖...tic-tc-tic

[

C - ela só tá falando

P – ((risos)) Tarsila:: vamos fazer assim:... você fica contando as historinhas

pra tia Giovanna e ao mesmo tempo constrói/ajuda o Cássio tá bom?

T – ((gesto afirmativo))

C – ai:: não acredito no que ela fez

P – por que você não acredita Cássio?

C – porque (ela pôs) outra verde

P – ahn?

T - ―depois de::: acordar‖ ((começa a cantar novamente a música))

[

C - você tá copiando ( )

P – ela tá fazendo igualzinho a você... é isso?

T – ―tic-tic-tic:::‖

C – depois a gente faz essa ((referindo-se à ilustração da caixa do jogo))

P – tá bom... mas esse tá ficando bonito

C – esse aqui:: depois a gente vai fazer a casa DEla

P - tá

T – sabe pra onde eu fui?

P – uhn?

T – eu fui lá no/ lá no zoológico

Verificamos que (C) critica a colega através de um FTA irônico, que

ameaça a sua face positiva: ―ai:: não acredito no que ela fez”. (T), todavia, não

demonstra se importar com a desaprovação do colega, e continua a cantar

uma música, mesmo após (C) explicar o que ela havia feito errado em sua

opinião.

Exemplo 18

C – ôh-ou:: ela pôs duas ((peças))

T – ((risos))

C – vou por duas também

T – sabe o que eu... sabe o que eu sei fazer na minha casa?

P – ahn?

T – eu sei fazer umas brincadeiras NOvas

C – conversa menos e coloca mais

P – ((risos)) a Tarsila é boa de papo né?

C – uhum

P, T e C – ((risos))

T – ( ) tá me chamando de sapo:: ?

P – não:::: boa de papo é que conversa basta:::nte... gosta de conversa:::r

T – sabe quem me trouxe com a minha mãe?

P – ahn?

T – o mestre Pato...

P – ah éh:::?

T – éh... ele sabe TUdo com capoeira... assim... ―tan-tan-tan...tan-tan-tan‖

P – ((risos))... olha mas até que tá terminando hein?... já já só vai faltar o

telhado

No exemplo 18, (C) deixa subentendida uma nova crítica à sua colega,

que havia colocado duas peças ao invés de uma, na sua vez de participar. (T)

apenas ri, o que faz com que (C) tome a atitude de colocar duas peças

também. (T), mais uma vez, sai do plano ficcional para interagir com a

pesquisadora, contando-lhe histórias aleatórias à brincadeira. Em seguida, ao

verificar que (T) estava mais conversando do que construindo, (C) realiza um

FTA direto e irônico ao mesmo tempo: ―conversa menos e coloca mais‖. Tal

enunciado provoca risos tanto na pesquisadora como em (T), que, por sua vez,

não modifica sua atitude: realiza uma nova digressão, contando à pesquisadora

sobre o mestre de capoeira.

Verificamos também, neste exemplo, a presença de um mal-entendido,

quando (P) comenta com as crianças sobre o fato de (T) ―ser boa de papo‖, e

(T) pensa que (P) a havia chamado de ―sapo‖. (P), então, explica

metalinguisticamente a (T) o significado dessa expressão.

6.3 Ma e Ge – 08 anos

(Ma) – a menina, e (Ge) – o menino, iniciam uma discussão para

decidirem o que iriam construir com o brinquedo Lego, como observamos no

exemplo 19, a seguir:

Exemplo 19

Ma- já sei… pode fazer uma casa?

P- vocês têm que entrar num acordo ((exclamando))

Ge- não pode fazer um navio?... casa é muito (fácil)

P- o Gabriel prefere o navio e a Mariana a casa...é isso?

Ma- já se:::i::: ((efusiva))

P- ahn?

Ma- a gente faz uma casa e um navio::

P- pode ser... desde que façam juntos... tá?...porque é assim... não é pra um

fazer a casa e o outro fazer o navio...

Ma- tá

P- o importante é um ajudar o outro...tá bom Gabriel?

Ge- ((gesto afirmativo))

P- tudo bem então... uma casa e um navio... ótimo... aí os dois entram num

acordo... né? ((risos))

Ma e Ge- ((começam a construir a casa))

Ma – espera aí

Ge – eu quero ver... empresta aqui rapidinho

P – então primeiro a casa... certo?

Ma – certo... porque é mais fácil

(Ma) sugere, inicialmente, que fosse construída uma casa. Trata-se de

uma regulação discursiva, que exerce a função de guia (Caron, 1983). (Ge),

entretanto, não concorda e propõe a construção de um navio, argumentando

que a casa era muito fácil. (P), então, confirma com as duas crianças que cada

uma desejava uma coisa, ou seja, ratifica o desacordo (Bonica, 1990) que

havia sido instaurado. Observamos que (P) evita dar uma solução pronta para

o conflito, deixando que as próprias crianças negociem e intenta, dessa forma,

atuar na Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) de que nos fala Vygotsky

(2003). É o que acontece: (Ma), de forma efusiva (que é manifestada pelos

prolongamentos de vogais) propõe um acordo – eles poderiam fazer uma casa

e um navio. Assim, as duas crianças ficariam satisfeitas. (P) concorda, mas

realiza uma regulação da atividade: ―pode ser... desde que façam juntos...”, e

utiliza o marcador conversacional ―tá?...‖, para buscar a confirmação das

crianças. (Ma) e (Ge) concordam – (Ma) marca a sua concordância com o

mesmo marcador conversacional, ―tá‖, e (Ge) com o marcador conversacional

paralingüístico (gesto afirmativo) - e imediatamente começam a construir a

casa. (P) confirma com as crianças: ―então primeiro a casa... certo?”; e (Ma)

explica que, de fato, a casa seria mais fácil de ser construída.

Os exemplos 20, 21 e 22 a seguir, refletem o engajamento das duas

crianças na atividade de construção da casa, seguindo as regras propostas por

um folheto de instruções que acompanhava o brinquedo Lego.

Exemplo 20

Ma – espera aí... agora a gente já fez essa PA::rte

Ge - aqui só tem isso?

Ma – não...tem um preto

Ge- então...agora é CINco...aqui...isso daqui olha (referindo-se à parte cinco do

modelo de construção da casa))

Ma – ah:::

Ge- vai colocando a parte de cima que eu vou colocando a de baixo

Exemplo 21

Ge- agora a seis... não::... não põe ali do lado

Ma- é sim... só um ((refere-se à peça que deveria ser colocada ao lado da

casa))

Ge- ah... é

Ma- a parte seis é BEM difícil

Exemplo 22

Ge- a parte seis a gente pega esse aqui e põe aqui::

Ma - toma esse

Ge- é esse OLHA

Ma- não... não é esse

Ge – aqui OLHA... aQUI...aQUI

Ma- ah::... mas tem que colocar embaixo

Ge - não... isso aqui teria que ser aqui OLHA

Ma- uhn::

Ge - aqui olha... um pra cá

Nestes três exemplos anteriores, observamos que as crianças se

encontram realmente inseridas no contexto de construção da casa, de acordo

com o modelo proposto no folheto do brinquedo. Não há criação de novas

regras para a brincadeira nesse momento e ambas as crianças entram em

acordo muito facilmente, pois as duas entraram no jogo, literalmente, tal como

nos fala Bateson (2000). Sendo assim, se há acordo no plano do

jogo/brincadeira, há acordo no plano conversacional/interativo. As regulações

da atividade do jogo estão presentes nos três exemplos, e são efetivadas pelas

duas crianças. Tais regulações são marcadas, em geral, por advérbios de

tempo ou de lugar, que funcionam como indicadores do próximo passo a ser

tomado na brincadeira: ―agora a seis‖, ―aqui olha‖, etc. Contudo, os desacordos

que surgem são logo solucionados, uma vez que a intenção das duas crianças

é cooperar uma com a outra para que a casa seja construída. Aqui, portanto, o

princípio de cooperação (Grice, 1982) se torna evidente.

No exemplo 23, todavia, o desafio do próprio jogo se torna maior, e o

aparente equilíbrio da interação pode ser deslocado para o conflito (Bonica,

1990).

Exemplo 23:

P- agora o navio vocês dão uma olhadinha e constroem sozinhos

Ge- a gente pode ficar olhando?... não tem passo a passo do navio

P- ah:: tem um pouco...sabe o que a Giovanna e o Marx fizeram?...eles não

fizeram exatamente assim... eles fizeram uma canoa... tem vários tipos

Ge- vamos fazer um jacaré? vamos fazer um jacaré?

P- é... o que vocês preferem?... não precisa ser um barco

Ma- um jacaré porque é mais fácil de fazer

P- sem olhar NÉ?... então tá

Ge e Ma- ((gesto afirmativo))

Ge- espera aí então...vamos pegar já as peci::nhas

P- o importante nesse momento é criAR... vocês tem que inventar... não

precisa ficar igual a esse ((referindo-se ao jacaré da foto do folheto))

A pesquisadora (P), agora, opta por propor uma nova regra: as crianças

deveriam construir o navio sem olhar o modelo proposto no folheto de

instruções. Trata-se de um momento de interrupção do jogo, que seria

retomado (Bonica, 1990) depois que as regras fossem reformuladas. (Ge), no

entanto, tenta negociar com (P): ―a gente pode ficar olhando?... não tem passo

a passo do navio‖. (P), a fim de estimular a negociação entre as próprias

crianças, não concorda com o argumento de (Ge) e afirma que havia, sim, um

pouco das instruções ―passo a passo‖ no folheto. Neste sentido, propõe uma

alternativa: não precisaria ser um navio exatamente como o que aparecia na

foto do folheto. Eles poderiam criar outros tipos de embarcações, assim como

outras crianças que participaram da pesquisa fizeram.

(Ge), dessa forma, faz uma proposta inusitada: construir um jacaré. O

menino marca a sua empolgação com a idéia, bem como a tentativa de

persuadir a colega, através da repetição da oração interrogativa: ―vamos fazer

um jacaré? vamos fazer um jacaré?‖ (Ma) concorda, já que ela considera que

seria mais fácil para construí-lo. Sendo assim, as duas crianças iniciam a

construção, concordando com a pesquisadora em não olhar para o modelo do

folheto.

Nestes exemplos de interação entre crianças de oito anos, verificamos o

seu total engajamento no propósito do jogo, o que limitou, de certa forma, a

liberdade para que elas criassem novas regras. Não houve uma incorporação

de elementos de faz-de-conta na brincadeira; as crianças foram extremamente

objetivas. (Ma), por exemplo, buscava sempre o caminho mais fácil para que a

atividade fosse concluída, evitando possíveis conflitos com o seu interlocutor.

Isso influenciou, certamente, a ausência de desacordos difíceis de serem

solucionados.

6.4 Gi e Mx – 08 anos

As crianças de 08 anos, (Gi) – a menina, e (Mx) – o menino, iniciam a

interação conversacional com a pesquisadora decidindo que iriam construir um

pinguim, inspirados pelo folheto explicativo do jogo Lego.

Exemplo 24

P – e agora hein? o que é que a gente vai fazer? vamos decidir?

Gi – (vamos) fazer uma casa por (causa) que tem esses negócios

Mx – pode ser casa

P – uma casa? uma casa com uma menininha::...

Gi – e ( )

P – e o quê?

Gi – um hominho

P – ah tá:::.... vamos ver se vocês conseguem montar juntos tá?... não cada um

faz o seu né?... um ajuda o outro

Gi e Mx – ((concordam com gesto afirmativo enquanto já começam a construir,

em silêncio))

É possível verificar que, desde o início da interação conversacional, (Gi)

e (Mx) cooperam um com o outro na realização da tarefa proposta, o que se

reflete no plano linguístico também: não observamos a presença de conflitos;

logo, os processos de negociação interpessoal na interação entre (Gi) e (Mx)

também não foram verificados.

As duas crianças concentraram-se de tal maneira na execução da

construção que raramente interagiram com a pesquisadora. Mesmo quando (P)

faz sugestões, como no exemplo 26 (―você vai ajudar o:: Marx?”), a interação é

limitada: neste caso, (Gi) apenas concordou com um gesto afirmativo e

prosseguiu com a construção.

Exemplo 25

P – vocês entram em acordo bem né?... um faz a jane:::la outro faz a po:::rta

Mx – ( ) eu acho que os arquitetos de verdade demoram pra fazer

P – demoram pra fazer né? os arquitetos de verdade mesmo... ((risos))... ai tá

ficando bonitinho hein?

Mx e Gi – ((apenas sorriem))

Exemplo 26

Mx – agora eu preciso da:: porta

Gi – eu consigo colocar a porta

P – você vai ajudar o:: Marx?

Gi – ((fica em silêncio e coloca a porta))

As crianças seguem o passo-a-passo da construção da casa que está

presente no folheto explicativo do jogo Lego. Permanecem em silêncio e

praticamente não interagem, apenas ―pensam em voz alta‖. As regulações

discursivas que ocorrem dizem respeito às regulações da atividade (Préneron,

2004), como verificamos nos exemplos 27 e 28.

Exemplo 27

Mx – aqui:: a porta tem que ficar na terceira... na terceira (bolinha)... e aqui ela

tá na segunda...por isso que não (cabia) a florzinha aqui... ( )

P – hum::... será? você concorda Giovanna?

Gi – ((esboça um gesto afirmativo))

P – concorda?

Gi – ((gesto afirmativo))

P – então tá bom ((exclamando))

Exemplo 28

Mx – agora falta a chamiNÉ e fechar essas ( )

P – vocês trabalham bem em dupla hein? ((risos))

Mx – ((procura a pecinha para a chaminé))

P – né? um vai ajudando o o::utro... não tem bri:::ga... porque... já teve gente

que não concordava um com o outro sabiam? ((risos))... mas vocês entram

num acordo fácil né Giovanna?

Gi - ((sorri e continua montando a casa))

Uma vez que (P) percebe que (Mx) e (Gi) entram em acordo muito

facilmente, ela decide propor um desafio às crianças, a fim de possivelmente

incitar uma negociação interpessoal: realizar uma construção sem observar o

folheto de instruções do jogo. No entanto, mais uma vez as crianças entram em

acordo muito facilmente, como verificamos nos exemplos 29 e 30. Assim que

um decide construir algo, o outro logo concorda e inicia a construção.

Exemplo 29

Mx – até que ficou lega:::l né?

P – MUIto legal...muito bonitinho

Gi e Mx – ((sorriem))

P – então agora eu queria:::agora é um desafio tá?

Mx – ( )

P - agora vai ser um desafio Marx e Giovanna...vocês vão ter que construir

alguma co:::Isa... pode ser até pra complementar a casinha né uma:::

Mx – uma janelinha

P – é alguma coisa pra complementar... alguma coisa que vocês queiram

construir em conJUNto... SEM as instruções... será que vocês conseguem?

Mx – consigo

P – é? o que vocês vão querer construir?

Gi – vamos fazer um BO-NE-quinho

Mx – um bonequinho... ((começa a procurar pelas peças))

P – você quer Marx? fazer um bonequinho também?

Mx – quero

P – quer mesmo? vocês que sabem...têm que entrar num acordo e construir

alguma coisa juntos... tudo bem para os dois?

Mx e Gi – uhum ((continuam a construir o bonequinho em conjunto))

Exemplo 30

Mx – aí... o boneco

P – prontinho... o bonequinho... que mais que podia ter agora?... só mais

alguma coisinha né?

Gi – ah::

P – o Marx agora porque a ideia da bonequinha foi da Giovanna... e agora

Marx... o que você pretende montar Marx?

Mx – hum:: um pinguim?

P – um pinguim? nossa esse é difícil hein? sem instrução? será que vocês

conseguem?

Gi – sim

P – é? é um desafio hein? ... então vamos lá... um tem que ajudar o outro

Gi – cadê os olhinhos...

Mx – dois olhinho::s

Gi – o bico dele

No exemplo 31, (P) observa que as crianças possuem um acordo tácito

entre elas: a princípio, pareceu-lhe que (Gi) detinha o poder conversacional,

direcionando os passos da construção. Todavia, (Mx) explica o acordo implícito

que havia entre eles neste turno conversacional: ―ela que tá construindo e eu

que to dando as peças”.

Exemplo 31

P – você não gostou do bico assim:: Giovanna?

Gi – ((gesto negativo))

P – ih::: mas tô achando que é a Giovanna que tá comandando essa/essa:::

construção hein?

Mx – ela que tá construindo e eu que to dando as peças

P – ah:: entendi... vocês entraram num acordo aí né? ela que constrói/ ela

monta e o Marx escolhe as peças... ok:::

Após finalizarem rapidamente a construção do pinguim sem olharem as

instruções do folheto, as crianças desejam fazer outra construção como

verificamos no exemplo 32:

Exemplo 32

P – vocês podem olhar... rapidinho... e depois fazem sem olhar ((referindo-se

às instruções do folheto do brinquedo))

Mx – ah::::: assim não dá::: ((risos))

P – ((risos)) ah::: mas é mais difícil... é um desafio né::... o que vocês querem

fazer daí?

Gi – dá pra fazer uma árvore

P – uma árvore e tem até um passarinho eu acho na árvore...né?

Gi – é... é um passarinho

Mx – eu:: quero tirar esse negócio daqui

P – você quer usar esse negócio da alavanca é isso?

Mx – é

P – tudo bem Giovanna? ou não?

Gi – a alavanca é a anteninha dele ((do barco))

P – ah:::: é mesmo

Mx – e também no barco ( )

P - aí olha

Mx – o barco ( ) a alavanca pode ser aqui... aqui

Gi – o corpinho dela:: ( )

Mx – pode também ser aqui no barco

P – também... então vocês vão fazer um barquinho agora?

Mx – é

P – tá bom...

Gi – cadê o barco ((procurando no folheto))

P - aí é a última coisa viu? infelizmente depois eu tenho que ir embora ((risos))

Mx – ah::: três horas

P – ai tem uns bem difíceis né

Gi – dá pra fazer árvore

P – é que o Marx quer porque quer usar a alavanca... e agora hein? vocês vão

ter que entrar num acordo

Gi – porque dá pra fazer esse aqui

Mx – ( ) ti::ra... tem que sair daqui ((mexendo nas pecinhas))... eu vou tirar a

alavanquinha ( )

Gi – olha... vamos fazer esse aqui que é mais fácil... bem mais fácil esse

((referindo-se a outro modelo de barco presente no folheto)

P – é::... é um barco::... mas é um pouquinho mais fácil né?

Dessa forma, (Gi) e (Mx) entram rapidamente em acordo a respeito do

que seria construído, e prosseguem montando o barco conjuntamente,

cooperando um com o outro sem a ocorrência de conflitos até o final da

gravação.

6.5 Ga e H – 10 anos

A gravação com as crianças de 10 anos, a menina (Ga) e o menino (H),

foi iniciada com a indagação da pesquisadora (P) a respeito de qual construção

seria realizada:

Exemplo 33

P- o que vocês têm em mente... pra construir juntos?...um ajuda o outro...tá?

H- um castelo...uma casa...uma torre::

Ga- UMA TORre...tipo Torre Eiffel

P- um castelo com uma torre...o que vocês acham?

Ga- ÉH::

H- dá pra ter uma idéia por aqui ((aponta um pôster da Torre Eiffel no mural da

sala de aula))

P- é mesmo...vocês têm francês aqui na Escola de Aplicação?

Ga- não...só na quinta

H- é... na quinta série

Observamos que (H) imagina as possibilidades de construções com as

peças dos jogos de que eles dispunham (Lego e peças de construção

compostas por barras e imãs). Poderia ser ―um castelo...uma casa...uma

torre::‖. (Ga) concorda efusivamente com a sugestão da torre, efetivando uma

entonação enfática que demonstra sua animação com a idéia: ―UMA TORre...‖,

e complementa: ―tipo Torre Eiffel‖. Nesse momento, (Ga) sanciona a face

positiva do colega. Em seguida, nota-se que (H) coopera com a colega,

preservando a sua face positiva (e, dessa forma, adotando uma estratégia de

cortesia positiva), ao falar que eles poderiam se inspirar no pôster da Torre

Eiffel que havia na sala em que ocorria a brincadeira. Nota-se que (H) coopera

com a colega, falando que eles poderiam se inspirar no pôster da Torre Eiffel

que havia na sala em que ocorria a brincadeira. (P), assim, faz uma digressão,

com a intenção de confirmar se as crianças cursavam aulas de Francês na

escola.

No exemplo 34, abaixo, (P) lembra que as crianças precisariam entrar

num acordo sobre o que iriam construir, mas faz uma ressalva, em tom de

brincadeira: ―ou não...‖. (H) entra no ―jogo‖ conversacional e no clima de humor

que estava permeando a interação:

Exemplo 34

P- vocês têm que entrar num aCORdo... ou não...né? ((tom de brincadeira))

H- é:: vamos partir pra BRIga (( brinca, fazendo gestos de quem vai brigar))

P, H e Ga – ((risos))

H- tá...então uma torre mesmo?

Ga- uma torre bem simples

H- éh::

P- é? os dois estão de acordo?

Fica clara, no exemplo 34, a incorporação da subjetividade e da

afetividade no discurso, através do enunciado em tom de brincadeira de (H):

―é:: vamos partir pra BRIga‖ e também dos marcadores conversacionais

paralinguísticos (gestos que insinuavam uma luta corporal). Verificamos que o

contexto da brincadeira permitiu a interrupção (Bonica, 1990) do

desenvolvimento das regras do jogo para que houvesse a introdução do

enunciado humorístico de (H). Posteriormente às risadas dos três interactantes,

(H) retoma a negociação sobre a definição do objeto da construção, buscando

a confirmação da colega: “tá...então uma torre mesmo?”. (Ga) entra em acordo

com (H), ratificando: “uma torre bem simples”.

Os exemplos 35 e 36, a seguir, são emblemáticos, no sentido da

demonstração da incorporação do ―faz-de-conta‖ e do pensamento abstrato

(Vygotsky, 2003), durante o desenvolvimento da brincadeira pelas crianças de

10 anos:

Exemplo 35

H- ah olha só que eu tive uma idéia... a prinCEsa... e o príncipe ((mostra que

uma barra com uma bolinha de imã grudada em cima poderia representar uma

princesa ou um príncipe))

Ga- aqui eu to montando um castelo... um castelo pequeno

P- é mesmo... e aí vocês fazem a torrezinha juntos aqui?

H- aqui olha

Ga- éh:: BOA::

P- muito bom... vocês são muito criativos

Exemplo 36

H- olha só... tive a idéia de fazer o bobo da co::rte

P- uhn:: legal... esse com os bracinhos assim pode ser o bobo da corte

Ga- eu vou por a bolinha ( )

H- não Gabi... sabe como você faz?... você tira esse porque o metal tanto faz o

lado... aí você pega este...VIra... e coloca

Ga- ah:: calma...o castelo tá torto

P- e como é que faz pra desentortar?

Ga- O CASTELO ((exclama ao ver o castelo caindo))

P- é como a Torre de Pisa... na Itália

Ga- éh:: a Torre de Pisa

P- o castelo torto ((risos))

H- o castelo de Pisa ((risos))

Verificamos nos exemplo 35 que (Ga) encontra uma solução para

representar a princesa e o príncipe no castelo que estava sendo construindo

através de uma barra, com uma bolinha magnética em cima. As duas crianças

permanecem em acordo na interação conversacional. No exemplo 36, (H)

expõe a idéia de fazer o bobo da corte, complementando os personagens

fictícios do castelo. (Ga) intenta ―montar‖ o bobo da corte, mas (H) não

concorda com o jeito que a colega estava fazendo e sugere: ―não Gabi... sabe

como você faz?... você tira esse porque o metal tanto faz o lado... aí você pega

este...VIra... e coloca‖. Trata-se, aqui, de uma regulação discursiva que exerce

a função de guia (pois H orienta a ação de Ga) e a função compensatória, ao

mesmo tempo, já que (H) corrige a atuação da colega. (Ga) não se opõe à

sugestão de (H), mas observa que o castelo estava ficando torto. O castelo,

posteriormente, começa a cair, o que faz com que (Ga) exclame, com

entonações enfáticas de seu enunciado: ―O CASTELO‖. Inicia-se nesse

momento mais uma série de enunciados humorísticos em que os três

interactantes comparam o castelo que estava sendo construído com a torre de

Pisa.

É possível verificar, portanto, nos fragmentos analisados, que as

crianças de dez anos cooperam uma com a outra no desenvolvimento das

regras e propósitos da brincadeira, o que se reflete na situação de acordo na

interação conversacional. Além disso, as crianças demonstram adentrar o

mundo ficcional com muita facilidade, engajando-se na atividade (Bateson,

2000).

6.6 R e Pd – 10 anos

As crianças (R) – a menina, e (Pd) – o menino, iniciam a brincadeira

decidindo com a pesquisadora (P) o que iriam construir juntos com os

brinquedos Lego e Megamag, como verificamos no exemplo 37:

Exemplo 37

P – e aí... o que vocês estão pensando... o que vocês acham que dá pra

construir com isso?

Pd – hum:::

P – tem que ser juntos tá? um ajuda o outro

R e Pd – ( )

P – um o quê?

R e Pd – um prédio

Pd – aqui olha... as quatro bolinhas ficam embaixo tipo assim equilibra::ndo

P – hum

Pd – uma em cima da outra e vai fazendo

R – e pra virar?

P – aí é com vocês... vocês é que são os engenheiros aí

R – olha dá pra fazer assim ó

Pd – tá assim por exemplo aí você coloca assi::m

P – hum::

Pd – eita...

Nos exemplos 38, 39 e 40 a seguir, as crianças de 10 anos prosseguem

discutindo o que poderia ser feito com todas as peças de que dispunham. Não

há presença de conflitos: ambos cooperam um com o outro, apresentam as

ideias do que pode ser construído, e tais ideias são complementadas ou

ratificadas pelo interlocutor (seja a outra criança, seja a pesquisadora).

Exemplo 38

R – que tal fazer um campo de futebol? ((risos))... ia ser engraçado

P – vocês que sabem

Pd – fa::z Rafaella um campo de futebol...prepara um gol aí... maior né?... tem

que ser igualzinho ao de rua... não tem goleiro... golzinho de rua

P – dá pra fazer por exemplo:: ( ) simular né?... aqui seria uma menininha...

né?

R – é::: é que não:: eu fiz o cabelinho aqui o cabelinho calma aí

P – é

Pd – ( )... oh::: descobriu o mundo ( )

R – ai:::

Pd – descobriu mesmo eu não sabia que existia isso aqui

Exemplo 39

R – não eu tava pensando... tem um Lego... aí a gente tava pensando tipo

construir a casa com o LEgo e tipo fazer o cenário com o Megamag

P – olha:: interessante hein?... porque dá pra usar os dois né?

R – é porque:: esse aqui:: é bom pra fazer tipo cenário entendeu? E aquele ali

é bom pra construir porque tem a peça ( )

P – ótimo

R – tipo você vai fazendo:: os prédios e eu vou fazendo o::: ah sei lá

Pd – ah dá pra fazer tipo assim uma casa ali um prédio aqui... um pequeno...

um campo de futebol... as pessoas andando::

R – então isso que eu tava pensando...

Exemplo 40

P – então como é afinal de contas? vocês vão fazer...

Pd – um prédio

R a gente vai faze::r... um cenário pro Magamag... e as construções com com

o:::

P – com o Lego

R – com o Lego

P – ó::timo... e o que vocês querem construir então?

R – a gente vai construi::r... um campo de futebo:::l

P – tá:::

R – um:::... e várias casinhas ( )

P – é... pode ser... porque em torno do campo de futebol tem prédios né...

tem... casas

As crianças finalmente acabam decidindo que utilizarão as peças do

Megamag (barras e imãs) para a montagem do cenário, e as peças do Lego

para as construções, em si. Dessa forma, iniciam a construção. Enquanto

constroem, cooperando uma com a outra, as crianças realizam digressões ao

tópico discursivo da brincadeira, como verificamos no exemplo 41, em que eles

imaginam o que as outras crianças que ficaram na sala de aula (e não

participaram da pesquisa) poderiam estar pensando naquele momento trata-

se da emergência de uma crença de segunda ordem (Perner & Wimmer, 1985),

já que elas ―pensam a respeito do pensamento de outras pessoas‖.

Além disso, verificamos o tom de humor nos turnos conversacionais das

duas crianças: neste exemplo, (R) ironiza a afirmação de (Pd) de que ―haveria

gente‖ que gostaria de perder aula para a realização da pesquisa, referindo-se

ao fato que o próprio (Pd), na verdade, gostaria de perder aula. Assim, no

enunciado ―é:: né:: Pacheco... “tem gente::”, (R) deixa subentendida a sua

ironia. Nesse caso, é uma forma de polidez positiva (Brown & Levinson, 1987),

já que (R) faz uso da ironia como uma forma de evitar a crítica direta, e assim

preserva a face positiva do colega.

Exemplo 41

R – todo mundo... AI que injusti::ça eles vão brincar e a gente vai ficar aqui::

fazendo lição::: ((risos))

P – ((risos) e vocês iriam ter aula do que agora?

Pd – matemática

R – CIÊNcias... a professora ia corrigir só... ah mas depois eu pego o caderno

da minha amiga

Pd – tem gente que gosta sabe por quê? porque perde aula ((fala baixinho)

P – é né ((risos))

R – é:: né:: Pacheco... ―tem gente::‖ ((risos))

P – tem gente::: ((risos))

Nos exemplos 42, 43, 44 e 45, verificamos que as crianças negociam

constantemente a maneira com que a construção deveria ser conduzida,

valendo-se, quase que invariavelmente, de turnos conversacionais

humorísticos, tais como: “o corpo tá fei:::to Jesus”, “(como) ficou muito

pequena? você queria que fosse o quê?”, começou... começou com esses

“tipo” aí (ironizando o costume da colega de falar constantemente a palavra

“tipo”), “o jardim é maior que a casa”, “não não quero fazer menina... não gosto

de meni::na... gosto...gosto de menina”. Todavia, apesar da menina (R)

adentrar o clima de humor que permeava a interação, pode-se verificar que o

menino (Pd) é o responsável pelo maior número de turnos conversacionais

humorísticos e/ou irônicos.

Exemplo 42

R – olha vai ficar assim o nosso jardim

Pd – e a cabeça da:: da menininha ali?

R – ta aqui ó... calma aí que eu não fiz o corpo... o corpo não os braços

Pd – o corpo tá fei:::to Jesus

R – não eu tô falando o BRAço... o braço não dá pra fazer

Pd – enTÃO... o corpo tá feito ali

R – ah então é só fazer a perna... depois eu faço calma ( )

Pd – ok::... esse aqui pode ser o:::

R – o::: a perna... dá aí

Exemplo 43

Pd – olha a casinha::...olha a casinha:::

R – AH Pacheco::... ficou muito peque::na:::

Pd – (como) ficou muito pequena? você queria que fosse o quê?

R - uma mansão ((risos))

Exemplo 44

R – não precisa faZER tipo::: assim:: faz::

Pd – olhá lá... ―TIPO‖...

R – ((risos))

Pd – começou... começou com esses ―tipo‖ aí ((ironia))

P e R – ((risos))

P – e você não fala ―tipo‖?

R – é::: não::: imagina:: ((ironia))

Exemplo 45

Pd – o jardim é maior que a casa

P – ((risos)) ah mas às vezes tem jardim que é maior que a casa mesmo

R – claro né... você quer que eu faça a casa?

Pd – não

R – você faz tipo::

Pd e R – ((risos))

R – tipo:::

P – eu vou colocar mais aqui no meio tá? ((o gravador))

R – ok::... tipo:::... ai eu vou desmontar es/esse coisinho aqui

Pd – não::... o caracol gigante::

R – ((risos)) ai ai ai:::... deixa eu fazer Pacheco... você faz a:: menina

Pd – não não quero fazer menina... não gosto de meni::na... gosto...gosto de

menina ((risos))

P – ((risos)) gosta ou não gosta? decide...

R – ((risos)) ―ele não gosta de menina‖... eu ―ahn?‖

Pd – eu amo eu amo:: eu não gosto

A partir do exemplo 46, e até o final da interação conversacional entre

(R) e (Pd), passamos a verificar digressões ao tópico discursivo da

brincadeira/construção. O assunto preferido passa a ser os relacionamentos

interpessoais com as outras crianças. Dessa forma, no exemplo 46 as crianças

imaginaram o que falariam aos seus colegas de classe quando voltassem à

sala de aula, após a brincadeira. Já no exemplo 47, o assunto era a diferença

entre meninos e meninas e o modo com que uns irritam os outros. Por fim, no

exemplo 48, o mote da discussão era a beleza física de outra coleguinha: (R)

estava curiosa para saber a opinião de (Pd) a respeito.

Exemplo 46

R – agora quando a gente chegar na classe todo mundo ―como que foi... o que

vocês fizeram?‖ ((risos))

Pd – fala assim fala assim é::: ―a gente tava estudando‖

R – (vou falar) que tinha que fazer uma prova... pra ver quanto que foi:: a

nossa::

Pd – ( ) viajou o mundo

R – viajou o mundo ((risos))

P – ((risos)) não... fala que a criatividade de vocês foi testada ((risos))

Exemplo 47

Pd – como é que ele fala mesmo é:::

R – mas ele fala engraçado... só que ele é muito chato

Pd – ele:::

R – as/os meninos têm o poDER de irritar as meninas

P – é né? ((risos))

Pd – e as meninas não alcançam::... não chegam nem perto dos meninos

R – é claro é que a gente é mais ( ) que vocês

Pd – ahn::: ((ironia))... mais rápida eu garanto que não

R – eu sou mais rápida que você Pacheco

Pd – ah há há

R – sou sim

Pd – eu sou o Bozo então... eu sou o Bozo

Exemplo 48

R – sabe a Luísa::... Pacheco? aquela da minha perua?

Pd – sei

R – ela é feia não é?

Pd – não:: ((ironia)) lógico

R – ―não lógico‖ ((risos))

Pd – ela passa um batom que ela parece a:::

R – Morticia

Pd – não a Morticia não... parece a Hebe... muito feia

R – ((risos))

Todavia, apesar das digressões permeadas de humor, a construção

lúdica, em si, era efetivada com a cooperação mútua entre as duas crianças.

Não verificamos estratégias de polidez/cortesia verbal novamente, no que diz

respeito ao contexto da brincadeira. Contudo, como verificamos no exemplo 41,

os enunciados irônicos, caso tenham o objetivo de minimizar uma crítica

direta/ofensiva, podem ser considerados uma forma de polidez positiva, e isto

foi verificado no exemplo 47, quando (Pd) afirma ironicamente: ―eu sou o Bozo

então... eu sou o Bozo‖.

Considerações Finais

O valor de praticar com rigor, por algum

tempo, uma ciência rigorosa não está propriamente

em seus resultados: pois eles sempre serão uma

gota ínfima, ante o mar das coisas dignas de saber.

Mas isso produz um aumento de energia, de

capacidade dedutiva, de tenacidade; aprende-se a

alcançar um fim de modo pertinente. Neste sentido é

valioso, em vista de tudo o que se fará depois, ter

sido um homem da ciência.

(Nietzsche)

Considerando-se todos os exemplos analisados, é possível concluir que

há traços interacionais que se sobressaem no contexto conversacional de cada

faixa etária observada. A análise dos exemplos selecionados de interação

conversacional entre as crianças de cinco anos, (S) e (M), demonstrou que, na

gravação realizada, a menina (S) buscou a negociação interpessoal/resolução

de conflitos sempre que possível, em virtude de sua disposição para adentrar o

mundo ficcional, isto é, entrar no jogo, literalmente, assumindo suas regras ou

criando outras novas. O menino (M), por sua vez, incitou o desacordo em

vários momentos do jogo, desmontando o que haviam construído para

instaurar o conflito, afirmando o seu ―eu‖ para se diferenciar do outro.

No caso específico dos exemplos analisados, podemos ainda concluir

que os modos interativos da regulação da atividade, em que as crianças estão

engajadas (o jogo de construção), aparecem no discurso dos dois interactantes

de cinco anos, embora com uma predominância no discurso da menina (S).

Isso demonstra que ambos se engajaram no ―jogo conversacional‖, cooperando

com a manutenção da interação, regulando seus respectivos discursos e, ao

mesmo tempo, regulando o discurso dos interlocutores.

Em alguns momentos, também pudemos constatar que a existência, ora

da negociação interpessoal (ou ao menos da tentativa de atingi-la), ora do

conflito/desacordo, está relacionada com o conhecimento que uma criança tem

das perspectivas e crenças da outra, já aos cinco anos de idade.

Tais crenças de segunda ordem também foram verificadas na interação

entre a outra dupla de crianças de cinco anos, (C) e (T). No entanto, nesse

caso, o menino (C) demonstrou mais engajamento ao propósito da brincadeira,

enquanto a menina (T) efetivou inúmeras digressões ao tópico discursivo em

andamento. Esse fato, que poderia causar conflitos na interação entre as duas

crianças, foi contornado pela atuação discursiva de (C), que efetuou a maior

parte das regulações discursivas a fim de que o jogo prosseguisse.

Assim, foi possível observar, através da análise dos exemplos extraídos

dos corpora, que a regulação discursiva é um fenômeno que pode emergir nas

interações conversacionais de crianças bem pequenas — aos cinco anos de

idade, nesse caso. Elas já conseguem, ao mesmo tempo, elaborar atos

comunicativos de regulação do discurso baseados na crença que elas têm dos

pensamentos dos outros, isto é, as crenças de segunda ordem. Tal fato nos

permite concluir que a teoria da mente, nessas crianças, já se encontra ativa e

participante do processo comunicativo, uma vez que elas são capazes de

assumir a perspectiva de seu interlocutor no processo de negociação

interpessoal.

A interação conversacional entre as crianças de oito anos, por outro

lado, caracterizou-se, essencialmente, pela cooperação entre as crianças, as

quais se mostravam realmente engajadas na atividade lúdica e, por isso,

entravam em acordo/negociavam muito facilmente. Não foram observadas

digressões ou introdução de elementos característicos do ―faz-de-conta‖ na

interação entre (Ma) e (Ge), tampouco na interação entre (Gi) e (Mx). Torna-se

interessante observar que as crianças de oito anos pouco interagiram com a

pesquisadora. Além disso, não foram observadas diferenças significativas

quanto ao gênero dos interactantes: meninos e meninas de oito anos

cooperavam uns com os outros de maneira relativamente semelhante, rumo à

negociação interpessoal.

Todavia, se nos exemplos analisados das crianças de oito anos houve

uma ausência de elementos ficcionais ao longo da brincadeira, podemos

afirmar exatamente o contrário em relação aos exemplos de (Ga) e (H), de dez

anos. Desde o início da interação, a imaginação, as digressões, as

comparações com o que pode ser observado em construções do mundo real,

enriquecem a comunicação entre as crianças, e entre as crianças e a

pesquisadora. A negociação interpessoal, nesse sentido, também é atingida

facilmente, uma vez que o contexto de ―faz-de-conta‖, no qual os três

interactantes adentram, possibilita a existência do acordo.

As digressões também marcaram a interação entre (R) e (Pd). No

entanto, ao contrário do que ocorreu com as crianças de cinco anos, (C) e (T),

tais digressões não interferiram na atuação lúdica: os tópicos discursivos

variavam, mas a construção lúdica era mantida, ao mesmo tempo. Os

enunciados humorísticos constituíram característica essencial do processo de

negociação interpessoal entre (R) e (Pd) e, sem dúvida, garantiram a ausência

de conflitos. Nesse sentido, o menino (Pd) utilizou-se mais da ironia ao interagir

com a colega, evitando as críticas diretas.

Também foi possível constatar que a regulação discursiva da

pesquisadora (P), tão necessária ao direcionamento da atividade nas

interações conversacionais com os dois pares de crianças de cinco anos, não

apresentou tanta importância na interação com as crianças de oito anos. Em

relação às crianças de dez anos, verificamos que a sua interação

conversacional com a pesquisadora ocorria muito mais no plano interpessoal,

isto é, fazendo emergir assuntos paralelos à atividade lúdica em si.

Finalmente, é importante salientar que o estudo da negociação

interpessoal infantil é cercado de nuances complexas, que dizem respeito tanto

a aspectos linguísticos, como cognitivos e que, eventualmente, podem não ter

sido observados em sua totalidade nos corpus da presente pesquisa. Além

disso, não podemos efetuar generalizações sobre a universalidade de nossas

conclusões, uma vez que este estudo apresentou um caráter metodológico

qualitativo. Entretanto, cremos que nosso objetivo de realizar uma análise que

levasse em conta tanto os aspectos interacionais como cognitivos desse tipo

de interação foi alcançado.

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Anexo: Fotos das crianças em situação lúdica com os brinquedos

selecionados para a pesquisa.

Crianças de 5 anos com o jogo “Brincando de Engenheiro”.

Crianças de 8 anos com o jogo “Lego”.

Crianças de 10 anos com os jogos “Lego” e “Megamag”.