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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ (UNESA)
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSIOCOLOGIA JUNGUIANA
PATRÍCIA ROCHA
A INFLUÊNCIA DO TAOISMO NA FORMAÇÃO DE CONCEITOS
JUNGUIANOS: SELF, ENERGIA PSÍQUICA E O PROCESSO DE
INDIVIDUAÇÃO
RIO DE JANEIRO
2016
2
UNIVESIDADE ESTÁCIO DE SÁ (UNESA)
PATRÍCIA ROCHA
A INFLUÊNCIA DO TAOISMO NA FORMAÇÃO DE CONCEITOS
JUNGUIANOS: SELF, ENERGIA PSÍQUICA E O PROCESSO DE
INDIVIDUAÇÃO
Trabalho de Conclusão de Curso (TCC)
apresentado à Universidade Estácio de Sá
(UNESA), como exigência para a obtenção
do título de Especialista em Psicologia
Junguiana, sob a orientação do Profº.
Doutor Alexandre Schmitt.
4
AGRADECIMENTOS
À Maria da Penha Rangel Rocha, minha sábia avó, por ter me criado desde os seis
meses e contribuindo para a formação de meu caráter e de valores como respeito,
justiça, determinação, coragem e solidariedade.
À Áurea Rangel da Rocha, minha tia, pelo incentivo e apoio incondicional às
minhas escolhas.
Clara Rocha Iannelli e a Breno Rocha Iannelli, meus queridos filhos, por terem me
apoiado e compreendido, com amor, os inúmeros finais de semana dedicados
exclusivamente à pesquisa.
A Alexandre Schmitt, meu orientador, pelo incansável apoio e incentivo, o carinho, a
leitura atenta e a disponibilidade para o esclarecimento de dúvidas.
Aos meus pacientes que me fazem acreditar, a cada dia, que valem a pena a
determinação e as renúncias, e que a minha escolha não poderia ter sido outra.
5
O ocultismo experimenta atualmente um renascimento sem precedentes,
quase obscurecendo a luz do espírito ocidental. Não penso em nossas academias e
seus representantes. Sou médico e lido com pessoas simples. Sei, por isso, que as
universidades não são mais fontes de conhecimentos. As pessoas estão cansadas da
especialização e do intelectualismo racional. Elas querem ouvir a verdade que não
limite, mas amplie; que não obscureça, mas ilumine; que não escorra como água,
mas que penetre até os ossos. Essa busca ameaça atingir erroneamente um público
anônimo, porém extenso.
Dando uma esmola a um pobre, certamente não o estaremos ajudando,
mesmo se for isso o que ele realmente deseja. No entanto, o ajudaríamos muito mais,
se lhe indicássemos o caminho de um trabalho, através do qual ele se libertasse de
sua miséria. Infelizmente os mendigos espirituais de nossos tempos estão por demais
inclinados a aceitar as esmolas do Oriente e a imitar irrefletidamente seus costumes.
Devemos estar prevenidos contra esse perigo. Se quisermos possuir a sabedoria,
precisamos aprender a obtê-la.
O que o Oriente tem a nos oferecer é simplesmente uma ajuda numa tarefa
que devemos realizar. Mas de que serve o conhecimento da ioga chinesa, se
abandonamos nossos próprios fundamentos para nos lançarmos em terras estranhas
como piratas sem pátria? Os conhecimentos do Oriente não terão nenhum sentido, se
nos fecharmos para nossa própria problemática, estruturando nossas vidas a partir de
preconceitos tradicionais, escondendo de nós mesmos nossa real natureza humana,
com suas trevas e subterrâneos.
A luz dessa sabedoria só brilha na escuridão e não sob os refletores da
consciência e da vontade artificial dos europeus. Tal sabedoria surgiu dentro de um
contexto, cujos horrores podemos imaginar, quando lemos sobre os massacres
chineses ou sobre o obscuro poder das sociedades secretas da China. Precisamos de
uma vida tridimensional, se quisermos vivenciar a sabedoria chinesa. Precisamos
saber sobre nós mesmos. Nosso caminho começa em nossa realidade, e não nos
exercícios de ioga que nos desviam dela.
Assim como WILHELM traduziu o termo Tao por sentido. Transpor para a
vida este sentido, ou seja, realizar o Tao constitui a grande tarefa. Entretanto, o Tao
não se realiza por palavras ou bons ensinamentos. Seria imitação? Ou seria pela
razão? Ou ainda por vontade? Parece-me que a realização do Sentido, a busca do Tao
já se tornou uma manifestação do coletivo muito mais forte do que imaginamos.
O Oriente penetra implacavelmente por todos os poros, atingindo a Europa
em seu ponto mais vulnerável. Poderia ser uma perigosa infecção, mas talvez seja um
remédio. O emaranhado babilônico do espírito ocidental produziu uma tal
desorientação, que todos anseiam por verdades mais simples ou, pelo menos, por
ideias que falem não somente ao intelecto, como também ao coração, trazendo
clareza ao espírito observador e paz ao incessante turbilhão de sentimentos.
O poder da consciência ocidental e sua aguda problemática cederam à
natureza serena e universal do Oriente; e o racionalismo europeu, e sua diferenciação
unilateral, à simplicidade e amplitude da China.
CARL GUSTAV JUNG & R. WILHELM
O segredo da Flor de Ouro - Um livro de vida chinês
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RESUMO
ROCHA, Patrícia. A influência do taoismo na formação de conceitos junguianos: Self,
Energia Psíquica e o Processo de Individuação. Rio de Janeiro, 2016. Universidade
Estácio de Sá (UNESA).
Este estudo tem o objetivo de estabelecer um paralelo entre o taoismo chinês e alguns
conceitos junguianos, destacando a importância e a influência do pensamento oriental
na teoria de Jung. O trabalho pretende conduzir o leitor à reflexão sobre a necessidade
do mundo ocidental aprender com o homem interiorizado que respeita e valoriza o
mundo interno. O homem oriental lida com os processos psíquicos de forma atenciosa
e natural ao valorizá-los, alcançando mais equilíbrio nos aspectos físico, psíquico e
emocional.
A ideia é destacar a relação entre o centro regulador Self e o conceito do Tao,
demonstrando a força de ambos no desenvolvimento da personalidade. Demonstrar a
relação entre Energia Psíquica e o cultivo de Te no mundo contemporâneo, onde existe
uma crise ética e moral e torna-se necessário o resgate de valores essenciais. E,
finalmente, associar a filosofia taoista ao Processo de Individuação numa época em
que parece fundamental deslocar os holofotes para o interior de si mesmo e questionar
a forma como estamos vivendo.
Levar o leitor a observar como a postura oriental voltada para a interiorização, a
reflexão e a meditação – o oposto do ocidente racional - foi decisiva na formação de
alguns conceitos junguianos.
Palavras-chave: Processo de Individuação. Taoismo. Self. Te. Energia Psíquica.
Tao.
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ABSTRACT
ROCHA, Patrícia. The influency of taoism in the formation of jungian concepts: Self,
psychic energy and the individuation process. Rio de Janeiro, 2016. Universidade
Estácio de Sá (UNESA).
The objective of this study is to establish a parallel between chinese taoism and some
jungian concepts, highlighting the importance and the influence of the eastern thought
in the Jungian theory. This research intends to take the reader to reflect about the need
of western man to learn from the inner man, who respects and values the inner world.
The eastern man deals with the psychic processes in an attentive and natural way,
thereby reaching more balance in physical, psychic and emotional aspects.
The idea is to highlight the relation between the self regulator center and the concept of
tao, showing the strengh of both forces for the development of the personality. The
research examines the relation between psychic energy and the cultivation of Te in the
contemporary world, where a great ethic and a moral crisis exists, and it becomes
necessary to recover essential values. Finally, it associates the taoist philosophy and
the individuation process in an age when questioning ourselves and questioning the
way we are living seems to be fundamental.
The aim is to show to the reader how the oriental way of life directed to
internalization, reflection and meditation – the opposite of the western way – was a
decisive influence in the formation of some jungian concepts.
Keywords: Individuation process. Taoism. Self. Te. Psychic Energy. Tao.
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ______________________________________________ 10
2 A RELAÇÃO ENTRE TAO E SEF ______________________________15
3 UMA PONTE ENTRE TE E ENERGIA PSÍQUICA _______________36
4 UM PARALELO ENTRE O TAOISMO E O PROCESSO DE
INDIVIDUAÇÃO _______________________________________________43
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ____________________________________58
REFERÊNCIAS ________________________________________________59
10
1 INTRODUÇÃO
A era cibernética e os aparatos tecnológicos típicos da modernidade
reforçam a cultura do espetáculo em que vivemos. Nela, as mídias de massa e redes
sociais têm seus lugares cativos em cada residência, em cada posto de trabalho e em
cada palma da mão. A distância entre países se estreitou. China e Estados Unidos.
Brasil e Índia ficaram próximos com o advento da internet, das redes sociais e dos
sistemas de comunicação instantânea.
Estamos todos num mesmo barco. A grande arca de um mundo globalizado.
E em crise. Um espetáculo de vitrines, de exposições, onde a ditadura da felicidade
impõe um desfile plástico e impecável de sorrisos, corpos esbeltos, paisagens e
ostentações de toda natureza. Todos aparentam alegria e felicidade. Mas nem tudo
que reluz é ouro, diz o ditado.
Não há lugar para o sofrimento, angústia ou tristeza. Apenas o imperativo da
alegria e da beleza. Em contrapartida, o cenário é o pior possível: crise política,
financeira, social e também psicológica. Um nítido e progressivo adoecimento da
sociedade, empobrecida de valores essenciais como integridade, transparência,
respeito, compaixão e honestidade. Basta passar os olhos nos jornais. A palavra atual
é desordem política, corrupção, crise moral e caos econômico e social.
Diante dessa realidade, tornou-se necessário olhar para dentro de si e refletir.
Algo deve ser transformado. A crise não se estabelece em vão. Ela chegou para
promover uma transformação radical. Mas antes de afetar o coletivo, é preciso iniciar
a mudança no indivíduo.
O relógio parece rodar em sentido contrário, os dias e os anos parecem mais
curtos e o tempo voa como se estivesse em contagem regressiva, para desespero
coletivo. Nesse ritmo, não há tempo nem espaço para a busca pelo
autoconhecimento, a autorrealização e o desenvolvimento psíquico. Para isso, é
necessário trilhar o caminho oposto ao das massas; interiorização, certa dose de
solidão, paciência e algumas renúncias.
11
Diante de um quadro mundial de crise política, econômica e social,
proponho um paralelo entre o taoismo chinês e alguns conceitos junguianos como
self, energia psíquica e o processo de desenvolvimento psíquico que Jung chamou de
individuação.
A ideia é reforçar a importância do pensamento oriental na obra de Jung
num cenário mundial onde o materialismo e a busca desmedida pela tecnologia e o
sucesso levaram o homem ocidental a uma crise avassaladora que o atinge
profundamente em todos os aspectos.
O taoismo é uma tradição filosófica originária da China. Sua visão holística
e a afinidade com o mundo natural, como será visto neste trabalho, foram
importantes para a construção de alguns conceitos junguianos como self e processo
de individuação. A civilização ocidental, sempre preocupada com o progresso
material e o desenvolvimento econômico, voltou-se para o exterior, afastando-se do
mundo interior, de sua essência.
Surgiu então um período de renascimento espiritual e a busca por uma
reflexão, numa reação contra o racionalismo científico, o positivismo e o
materialismo. Uma reação que se manifesta pelo interesse crescente no
mundo do espírito, do oculto e no misticismo oriental (CLARKE, 1994, p.
58, tradução nossa)
Em seu estudo sobre a consciência europeia na virada do século, H.Stuart-
Hugh (1979) justifica o interesse do homem ocidental pelo pensamento oriental:
“Uma reação contra o culto à satisfação do progresso material da época, e surge o
poder do irracional, do não-lógico, do incivilizado, do inexplicável, tanto no mundo
acadêmico como num nível popular (CLARKE, 1994, p. 58, tradução nossa)
Há uma necessidade, portanto, do homem voltar-se para dentro com objetivo
de obter uma transformação. E é em função dessa análise que Jung resolve estabelecer
uma ponte entre o ocidente e o pensamento oriental - em especial o taoismo -, com o
objetivo de desenvolver seus conceitos.
Ele demonstra o quanto a postura introspectiva e de valorização do mundo
interior – negligenciada pelo Ocidente durante séculos – contribui para a melhor
qualidade de vida do ser humano nos aspectos psicológico, mental e físico.
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O homem oriental¹ é voltado para o interior, assumindo uma
responsabilidade com sua qualidade de vida, sendo guiado pelo seu interior. Para ele,
o processo de transformação interna leva ao desenvolvimento, à autorrealização e ao
sentimento de plenitude e totalidade. Jung explica o sentido de individuação:
Uso a palavra “individuação” para designar um processo através do qual um
ser torna-se um individuum psicológico, isto é, uma unidade autônoma e
indivisível, uma totalidade. A individuação significa tender a tornar-se um
ser realmente individual: na medida em que entendemos por
individualidade a forma de nossa unicidade, a mais íntima, nossa unicidade
última e irrevogável; trata-se da realização de seu si-mesmo. (JUNG, 1994,
p. 355)
O processo e seu movimento devem ocorrer de forma natural, sem a
utilização de força. E, para o taoismo, a vida deve ser apreciada como ela é: um
simples deixar fluir. A individuação, por sua vez, também é um processo natural que,
ao longo da vida, conduz o homem a tornar-se aquilo que deve ser. É importante
respeitar esse movimento, que pode não ser linear, mas que leva o homem à
realização de si mesmo.
Ao falar de perfeição, totalidade e realização completa no Tao, somos
remetidos ao conceito junguiano de individuação.
Minha vida é a história de um inconsciente que se realizou. Tudo o que nele
repousa aspira a tornar-se acontecimentos, e a personalidade, por seu lado,
quer evoluir a partir de suas condições inconscientes e experimentar-se
como totalidade. (JUNG, 1994, p. 19)
___________________
¹ Clarke adverte que o ‘homem oriental’ é um conceito criado pelo Ocidente, reforça a importância de
não se criar fantasias e mitos sobre o Oriente e afirma que Jung incorre neste erro algumas vezes. O
próprio Jung reconhece o perigo de nós tentarmos escapar de nossos problemas ocidentais no Oriente,
ao tentar encobrir nossa nudez com as deslumbrantes pompas daquela região, e simplesmente
empilhar tesouros simbólicos, os quais a visão cristã de mundo empalideceu para muitas pessoas
(CLARKE, 1994).
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A relação de Jung com o Oriente teve o ápice em sua visita à Índia, em
1938, a convite do governo britânico para participar da celebração do aniversário de
25º ano da Universidade de Calcutá. Jung visitou vários templos, conheceu gurus e
eruditos indianos, e ministrou palestras em várias universidades. Jung visitou
importantes lugares históricos e religiosos da Índia e ficou maravilhado com o senso
de inteireza e completude do povo, e a facilidade do homem oriental em lidar com a
própria natureza.
A ideia de opostos complementares permeia o pensamento oriental tanto
na Índia como na China, e isso foi significativo para Jung, pois ele encontrou
ressonância em seu próprio pensamento. Em O Segredo da Flor de Ouro, de
Wilheim, Jung pôde observar o ideal da reconciliação de elementos conscientes e
inconscientes para se chegar a um equilíbrio. Ele traça então um paralelo entre seu
método terapêutico e a prática espiritual do Oriente.
Também estão presentes no texto taoista a disciplina com o objetivo de
se obter uma mente saudável, a filosofia do “deixar fluir” e conceitos como ação e
não-ação (wu-wei). O livro descreve um caminho onde as forças interiores podem ser
reconhecidas, integradas e direcionadas em benefício da psique, induzindo o homem
ao estado de inteireza.
Clarke reforça o encontro de Jung com o texto taoista:
O livro taoista demonstra que podemos ter poder sobre as forças psíquicas,
que devem ser reconhecidas e assimiladas. Do contrário, elas levam à
destruição. Esta consciência nos confere a liberdade de escolher não
sucumbir a sua dominação. (...) A inabilidade de reconhecer as forças
inconscientes, em nós, e a ilusão da supremacia de uma consciência
racional leva a formas de possessão que se traduzem em doenças como
fobias, obsessões e sintomas neuróticos (CLARKE, 1994, p. 87, tradução
nossa).
O interesse de Jung pelo Oriente não foi pela prática ou crença, mas pelo
compromisso com a exploração do mundo interno, pois observou, na literatura e no
contato com essa cultura, que o homem oriental dá uma atenção especial ao mundo
subjetivo. “(..) Lá, a psique não é secundária. É a essência e a base de todas as
coisas”, resume Clarke (1994, p. 70, tradução nossa).
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De acordo com Clarke (1994, p. 77), a concepção junguiana da psique
humana como uma realidade dinâmica no processo de transformação encontra
ressonância nas ideias do budismo e do taoismo. O mesmo ocorre com a abordagem
holística em relação ao ser humano, e a visão de mundo onde se busca a integração
entre matéria e espírito como opostos complementares, ao invés de separar estas
realidades.
O taoismo traz em sua essência o conceito de contrários e dualismos, a
combinação de dois princípios básicos do universo: yin e yang; masculino e
feminino, luz e sombra, ativo e passivo, movimento e quietude. Sendo nenhum deles
mais importante que o outro. Na verdade, nenhum pode existir sem o outro porque
são opostos e complementares. Um só existe com o outro.
Jung recorreu ao taoismo chinês e ao dualismo yin-yang para se referir aos
opostos.
Segundo a lei da enantiodromia, dos fluxos contrários, tão bem interpretada
pelos chineses, ao final de um ciclo ocorre o início de seu oposto. Assim,
yang em seu limite transforma-se em yin, e o positivo em negativo.
(WILHEM; JUNG, 1984, p. 19)
Clarke refere-se à importância do taoismo para Jung:
O Ocidente tende a desvalorizar a qualidade imaginativa da vida humana,
relegando à poesia e à arte. E, às vezes, ao fenômeno anormal. Uma das
mais importantes contribuições de Jung para o pensamento moderno foi sua
tentativa de valorizar o papel do símbolo e do imaginário na vida psíquica.
E a interpretação do texto taoista O Segredo da Flor de Ouro teve um papel
significativo nesse sentido (CLARKE, 1994, p. 84, tradução nossa).
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2 A RELAÇÃO ENTRE TAO E SELF
A tradução do ideograma chinês Dào ou Tao é caminho, que dá origem à
palavra taoismo. Entretanto, “É impossível atribuir um nome ao Dào porque ele está
numa dimensão além de todos os nomes e de todas as linguagens” (LAO TSE, 2011,
p.28). Segundo Lao Tse, essa atribuição não o descreve nem torna possível
compreender seu sentido.
Os mestres taoistas ensinam que para o Dào se tornar real, precisa da
atuação simultânea de três elementos: “o próprio Caminho, o caminhante que busca a
realização no Dào através da caminhada, e o ato de caminhar como a permanente
prática espiritual que conserva a estrada em boas condições de circulação” (LAO TSE,
2011, p.28).
A busca pelo Dào também demanda do caminhante:
Buscar o Dào, portanto, é trilhar com constância, humildade e paciência o
Caminho do Dào manifestado, através da prática diária dos seus preceitos,
para chegar à plena realização espiritual e alcançar o ponto inicial comum a
todas as existências, o Dào como absoluto. Somente vivendo e se integrando
ao Dào será possível compreender seu verdadeiro significado (LAO TSE,
2011, p.28)
Lao Tse chama de Sem-Nome o Absoluto Taoista, uma energia pura onde
não existe manifestação, também chamado de Sopro Inicial porque é a origem única
de todas as existências. Ele fala da importância da união dos opostos e da Unidade
como totalidade.
(...) o céu e a terra representam, respectivamente, o yang e o yin, dois
elementos opostos e complementares que são a origem da dualidade do
mundo manifestado, mas quando se manifestam como Unidade simbolizam a
totalidade das existências criadas a partir do Sopro Inicial (LAO TSE, 2011,
p.29)
O Dào é a estrada que pode levar uma pessoa de volta à dimensão do Sem-
Nome, onde se encontram as Maravilhas (miàu):
Alcançar essa dimensão é alcançar a plena realização espiritual e para isso é
preciso exercitar simultaneamente a meditação da contemplação e da
concentração, tentando unir no seu interior consciência e energia, ou espírito
e sopro (LAO TSE, 2011, p.29)
16
Segundo Lao Tse, Maravilhas são todas as manifestações do Caminho
compreendidas e assimiladas através da plena lucidez da consciência.
No estado contemplativo, a consciência adquire a qualidade da ausência de
intenção ou não aspiração e a pessoa se torna capaz de perceber as
manifestações do Dào, todas ao mesmo tempo, como expressões indivisíveis
da Unidade (LAO TSE, 2011, p.30)
Ele aponta para a problemática da dualidade e antecipa sobre a necessidade
da integração dos opostos. Lao Tse sugere os exercícios de concentração como forma
de se chegar à Unidade:
A força poderosa gerada pelos exercícios de concentração disciplinadamente
repetidos sobre um ponto fixo é capaz de perfurar orifícios sucessivos nesses
muros transformando, aos poucos, a consciência do praticante, que se libera
gradualmente de uma visão dual de mundo para compreender todas as
manifestações do Universo como Unidade (LAO TSE, 2011, p. 30).
Lao Tse explica que concentrar é fixar a mente num ponto, uma ação
predominantemente Yang, que diz respeito ao controle da mente. Por outro lado,
contemplar é perceber de forma sutil todas as manifestações do Caminho, uma atitude
yin e diz respeito ao relaxamento da mente. “Mas apesar da aparente contradição,
ambos têm algo em comum; a origem que se chama mistério (xuán), onde yang e yin
encontram-se unidos” (LAO TSE, 2011, p. 31)
Não-ação (wu wéi) e não-palavra (bù Yan) são conceitos taoistas que
representam a ação e a palavra não intencionais, de acordo com o que ele chama de
Naturalidade: a ação realizada sem intenção e a palavra proferida sem intenção.
Agir com a não-intenção não significa deixar de agir ou agir sem objetivo,
mas atuar efetivamente no mundo através da orientação que nasce
diretamente da Consciência Universal, sem considerar as intenções do ego.
(...) Quem realiza a ação da não-ação não fica ansioso para agir, nem cria a
expectativa pelos resultados do seu ato: não espera pela glória dos
reconhecimentos e agradecimentos, nem sente medo antecipado pela
humilhação ou pela tristeza causados pela incompreensões. Apenas age,
naturalmente, no momento, lugar e intensidade certos, sem fugir do que for
indispensável, e sem acrescentar tarefas desnecessárias; sem insistir em fazer
o que não está em seu alcance, e sem deixar de executar as tarefas que lhe
competem (LAO TSE, 2011, p.36)
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Da mesma forma, uma pessoa orientada pelo Self é guiada por seu interior,
não dá importância a estímulos externos nem às opiniões alheias, pois o mais
importante é aquilo que está vivendo em conformidade com seu movimento de alma,
com o seu processo de individuação, sendo guiada pelo centro de sua personalidade.
Praticar o ensinamento através da não-palavra não significa silenciar:
Proferir apenas palavras corretas, não intencionais, que nascem da
consciência pura e são dirigidas na intensidade e no momento certo para a
pessoa que necessita ouvi-las. Significa usar da palavra que se inspira na
Consciência Universal, e não nos interesse do Ego; dizer o que precisa ser
dito dentro das condições adequadas para a pessoa certa; e calar quando o
momento ou a pessoa não forem os adequados. Este é o ensinamento através
da não-palavra que está concorde com a Naturalidade (LAO TSE, 2011, p.
36)
A não-ação e a não-palavra são de acordo com a Naturalidade e inspiradas
na Consciência Universal, e não nos interesses do Ego. Assim, somos remetidos ao
conceito de Self, o centro regulador da personalidade. As ações direcionadas pelo Self
não estão a serviço do Ego, mas direcionadas por este núcleo que impulsiona o ser
humano para seu desenvolvimento psicológico.
O desapego também é outro elemento essencial para se viver o Tao:
Quem cultiva o apego às obras que realiza, cria laços invisíveis com
manifestações ilusórias e impermanentes. As manifestações passam e se
transformam como a correnteza de um rio e arrastam consigo a energia da
pessoa presa a elas pelos laços do apego; esta pessoa também será levada
pela correnteza da vida, passará e se transformará. Isso acontece com todas as
expressões do mundo manifestado: juventude, fama, riqueza, poder,
sentimento de amor e ódio ou de paixão por objetos de admiração. (LAO
TSE, 2011, p. 37)
Desapegar-se de valores do mundo também é necessário para se permitir ser
guiado pelo Self, pois este está no interior do sujeito e é determinado por uma força
interior. É importante também desapegar-se de valores mundanos e do que a sociedade
entende como importante. O guia está dentro e de acordo com valores internos.
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Com a mesma importância, esvaziar o coração é fundamental para se viver o
Tao:
O Homem Sagrado esvazia seu coração dos sentimentos exacerbados para
não se tornar prisioneiro das turbulências emocionais incontroláveis. (...)
Esvaziar o coração significa esvaziar a mente das impurezas, que representam
o somatório dos desejos do ego ou de todos os desequilíbrios físicos,
energéticos e mentais que são a causa das doenças de uma pessoa (...) Quanto
mais vazio de impurezas o coração, maior transparência e paz interior a
pessoa encontrará (LAO TSE, 2011, p. 40)
Para o taoismo, uma pessoa é a soma dos princípios que habitam seu
coração.
Viver o Dào é encontrar e cultivar a semente dessa essência no seu interior e
se aproxima do Dào para compreender seus preceitos, aprender com suas leis,
copiar seus métodos e aplicar suas normas nas suas ações cotidianas em seu
próprio benefício, trazendo para a vida mundana a dimensão sagrada que não
se esgota porque é infinita. Este é o sentido de se usar o Dào sem esgotá-lo,
quanto mais a pessoa usa ou consome o Dào, mais se aproxima da Sagração
(LAO TSE, 2011, p. 45)
Caminhar no Dào exige aprofundamento interior e disposição para o
desconhecido. “É como uma pessoa entrar numa caverna e descobrir, na medida em
que aprofunda a exploração, passagens secretas e ambientes desconhecidos que
surgem inesperadamente revelando as infinitas dimensões” (LAO TSE, 2011, p. 44).
A profundidade diz respeito ao mergulho solitário que o indivíduo empreende na
direção de seu interior.
Quem busca a realização espiritual através da integração com o Dào,
necessita, a exemplo dessa essência profunda e ampla do Vazio, aprofundar-
se no Caminho consistente que dará suporte a sua prática interior, e
desenvolver a característica de um coração abrangente na relação com o
mundo, o que sustentará sua prática exterior (LAO TSE, 2011, p. 44).
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Para o taoismo, todos os seres possuem uma semente de Consciência
Universal no seu interior. No entanto, essa luz permanece encoberta no coração do ser
humano pela sombra de seus apegos. “Assim, para harmonizar-se com a Luz, é preciso
primeiro encontrar e resgatar sua própria luz interior, aumentar gradativamente a
iluminação da sua consciência, e em seguida unir-se à luz da Consciência Universal”
(LAO TSE, 2011, p. 45).
O homem deve buscar a sacralidade dentro de si:
O Homem Sagrado não possui ego, por isso sua atuação é espontânea e não-
intencional, e suas manifestações, como um espelho, refletem naturalmente
as ações do mundo, através da consciência pura e transparente (LAO TSE,
2011, p. 49).
Em suas ações não existe a intenção de promover o bem ou o mal e dirigir
desastres ou benefícios para a humanidade, conforme critérios que escolhem o mal ou o
bem como opostos um ao outro. “Como o céu e a terra, o Homem Sagrado trata os
homens indistintamente, com a bondade não preferencial que dirige para todos os seres,
sem exceções” (LAO TSE, 2011, p.49).
Segundo Lao Tse, agir assim é viver a Naturalidade do Dào:
Os Homens iluminados da antiguidade compreenderam a atuação dessa lei
sobre a vida humana e vêm ensinando, desde então, esses preceitos para que
o ser humano aprenda a viver no mundo de acordo com as normas do Dào:
integrando-se à naturalidade do céu e da terra, ele também agirá com a não-
intenção; e havendo naturalidade nas suas ações, estas estarão concordes com
o movimento do céu e da terra, o que trará para o indivíduo a permanente
sensação de alcance e boa fortuna (LAO TSE, 2011, p. 49)
Podemos estabelecer um diálogo entre o Homem Sagrado do taoismo com
o Homem Cósmico a que Jung se refere para designar o indivíduo que entra em
contato com o Self e permite ser orientado por ele. No Oriente e em alguns círculos
gnósticos do Ocidente, as pessoas compreenderam que o Homem Cósmico seria uma
imagem psíquica interior.
Ele é algo que vive dentro do ser humano, sendo a sua única parte imortal.
Este Grande Homem interior age como um redentor, retirando o indivíduo do
mundo e de seus sofrimentos para levá-lo de volta a sua esfera original eterna.
Mas só pode fazê-lo quando o homem o reconhece e ergue-se de seu sono para
segui-lo. Nos mitos simbólicos da velha Índia esta figura é conhecida como
Purusha, que significa “homem”. Purusha vive dentro do coração de cada
indivíduo, e ocupa, ao mesmo tempo, todo o cosmos (JUNG, 1964, p. 202)
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O Homem Cósmico não representa apenas o começo da vida, mas também o
seu alvo final, a razão de ser de toda a criação. “A realidade interior de cada indivíduo é
orientada, em última instância, em direção a este símbolo arquetípico do Self” (JUNG,
1964, p. 202). Na prática, isso significa que a existência do ser humano nunca será
satisfatoriamente explicada por meios de instintos isolados ou de mecanismos
intencionais como a fome, o poder, o sexo, a sobrevivência, a perpetuação da espécie
etc.
Existe algo que transcende a consciência e os instintos e que atravessa a
existência humana. “Acima e além desses impulsos, nossa realidade psíquica interior
manifesta um mistério vivente que só pode ser expresso por um símbolo; e para
exprimi-lo o inconsciente escolhe a poderosa imagem do Homem Cósmico” (JUNG,
1964, p. 202).
Na nossa civilização ocidental, o Homem Cósmico tem sido identificado
com Cristo, e na oriental com Krishna ou com Buda. “Como todos os símbolos, esta
imagem revela um segredo impenetrável – o sentido extremo e desconhecido da
existência humana” (JUNG, 1964, p. 202)
Chegar ao Homem Cósmico não é tarefa fácil nem uma realização de ordem
externa. “A orientação extrovertida do ego em direção ao mundo exterior há de
desaparecer para dar lugar ao Homem Cósmico” (JUNG, 1964, p. 203). Isso acontece
quando o ego se incorpora ao Self. É uma viagem ao mundo interior e a novas
descobertas. O fluxo discursivo das representações do ego e seus desejos acalmam-se
quando é encontrado o Grande Homem interior.
Jung descobriu que o Self pode enviar mensagens aos homens através de
sonhos, fantasias ou imagens, estabelecendo um diálogo com o ego e a fornecendo a
orientação de que ele necessita para a solução dos problemas de sua vida interior e
exterior:
Nossos sonhos não têm uma preocupação dominante com a adaptação à vida
exterior. A maioria dos sonhos cuida do desenvolvimento (pelo ego) da
atitude interior ‘correta’ em relação ao self, pois devido a nossa moderna
maneira de pensar sofremos muito mais perturbações neste relacionamento
do que os povos primitivos (JUNG, 1964, p. 208).
21
Jung afirma que a única aventura ainda válida para o homem moderno está
no reino interior da sua psique inconsciente. Porém, há duas razões que fazem o homem
perder contato com o centro regulador da sua alma:
Uma delas é algum impulso instintivo ou imagem emocional que o leve a uma
unilateralidade e o faça perder o equilíbrio. Também o devaneio excessivo que
rodeia o homem em relação a seus complexos seria outra ameaça a sua
consciência. O segundo obstáculo seria um excesso de consciência do ego.
Apesar de necessária para a realização de atividades, o excesso pode bloquear
a recepção de impulsos e imagens vindos do centro psíquico. Por isso que
muitos sonhos cuidam de restaurar esta receptividade, tentando corrigir a
atitude da consciência em relação ao centro inconsciente do self (JUNG, 1964,
p. 213).
Entre as representações mitológicas do self quase sempre encontramos a
imagem dos quatro cantos do mundo e muitas vezes o Grande Homem, representado
num centro de um círculo dividido em quatro. Jung usou a palavra hindu mandala
(circula mágico) para designar esse tipo de estrutura, que é uma representação simbólica
do ‘átomo nuclear’ da psique humana.
Nas civilizações orientais são utilizadas imagens análogas para consolidar o
ser interior ou favorecer uma meditação profunda. A contemplação de uma
mandala deve trazer paz interior, uma sensação de que a vida voltou a
encontrar a sua ordem e seu significado (JUNG, 1964, p. 213)
Para o taoismo, o homem deve buscar a natureza celestial dentro de si. O
caminho do Tao é viver esta natureza, cultivando-a em seu interior. A natureza
celestial manifesta-se através da consciência equilibrada de quem pratica as ações de
acordo com a Naturalidade; e a natureza humana manifesta-se através de todo o tipo
de ação excessiva, resultado de uma consciência em desequilíbrio, de acordo com Lao
Tse.
O homem vive entre essas duas qualidades, e para se aproximar da natureza
do céu e da terra e adquirir suas qualidades celestiais, precisa despertar em si
mesmo essência celestial que existe no seu âmago, adormecida pela sombra
de seu ego. Essa é a tarefa que cabe ao seguidor do Dào, quando ele busca a
autorrealização (LAO TSE, 2011, p. 57)
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Na verdade, Lao Tse está se referindo à união dos opostos que habitam
dentro de nós e que devemos integrar, como mais tarde reafirmou e valorizou Jung em
sua teoria. Lao Tse aponta também a bondade como uma das virtudes necessárias para
se viver o Tao:
A bondade é a perfeita virtude que alcança a abrangência do Vazio, e sendo o
Vazio, sua ação se inspira na não-intenção. O Caminho também se inspira no
Vazio ou na não-intenção; por isso a bondade assemelha-se ao Caminho
(LAO TSE, 2011, p. 58).
Ele a chama de bondade sublime que beneficia todos com igualdade, e esta
qualidade de pureza não-intencional a distancia do conceito corrente de bondade em
oposição à maldade, que costumamos utilizar. Ele compara a ação da água à bondade:
Como a água que abraça o que encontra em seu caminho sem escolher quem
irá se beneficiar, ela também não escolhe para quem dirige suas ações
bondosas porque tem a benevolência ilimitada, que nasce da consciência não-
intencional (LAO TSE, 2011, p. 58).
O taoismo, assim como a maioria das filosofias orientais, se utiliza de
elementos da natureza para simbolizar o processo de transformação interior a que nos
propomos ao longo da vida.
A água pode ser compreendida como símbolo da naturalidade e símbolo da
vida. Como naturalidade, ela é espontânea porque tem a consciência não-
intencional de um movimento que não planeja e não escolhe o caminho que
irá percorrer ou a transformação pela qual irá passar; e como símbolo da vida,
representa o fundamento da renovação do organismo vivo: sem água, a terra
se torna estéril e a humanidade não sobrevive (LAO TSE, 2011, p. 59).
Segundo Lao Tse, caberia ao ser humano compreender as características da
virtude da água e seguir o seu exemplo de comportamento no mundo, “Tratando todos
os seres de igual maneira, com a espontaneidade e a naturalidade da bondade sublime
que alcança a todos sem distinção” (LAO TSE, 2011, p. 59). Na representação do Yi
Jing, o Tratado das Mutações, o lago é caracterizado pelas qualidades de solidez e
profundidade no interior, suavidade e alegria exterior.
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Por isso, representa a pessoa sólida, quieta e profunda interiormente com um
exterior que se assemelha ao espelho d’água do lago, cuja superfície, em
momentos de serenidade, reflete as formas que lhe são confrontadas. Esta,
portanto, é a bondade do lago: um aglomerado de água que se coloca como
suporte permanente de vida para todos que o procuram, e que reflete como
um espelho, os sentimentos dos seres que o contemplam (LAO TSE, 2011, p.
60)
Assim, segundo Lao Tse, pensar com a bondade do lago significa colocar a
mente a serviço de um pensamento forte, quieto e profundo em sua essência, mas
suave, receptivo e alegre em sua manifestação. Ele aponta a bondade constante como
virtude sublime e explica que ela é alcançada através da expansão da consciência:
A qualidade da ‘bondade todo o tempo’ é a virtude incorporada ao espírito da
pessoa bondosa através do trabalho constante de expansão da sua consciência
e que se dirige para ela mesma e para todos os seres que o rodeiam. Agir com
bondade todo o tempo é a pessoa adotar uma forma benevolente de viver, um
modo permanente de viver que jamais a abandona. Assim, gesto bondoso
nela é recebido como algo ordinário, cotidiano, simples e natural, em vez de
ser tomado pelo mundo como a expressão de uma ação extraordinária (LAO
TSE, 2011, p. 62)
Lao Tse aponta a existência de opostos complementares no homem, se
referindo a duas naturezas: a celestial e a humana. Quando a natureza celestial se
expressa, o ser é benevolente, equilibrado, harmonioso e compassivo. No entanto,
quando manifesta sua natureza humana, ele pode se aproximar do comportamento de
uma pessoa malévola, desequilibrada, rancorosa, desarmoniosa e cruel.
Todos os homens vivem entre essas duas naturezas porque possuem, no seu
íntimo, as duas essências. Mas devido à predominância de seu ego, o ser
humano não consegue viver em plenitude a sua essência celestial. Por outro
lado, devido à força que a natureza celestial exerce sobre ele,m também não
consegue entregar-se completamente a sua natureza humana. Assim, as
pessoas vivem equilibrando-se entre as duas naturezas (LAO TSE, 2011, p.
69)
Da mesma forma, Jung estabelece em sua obra a importância da integração
dos opostos no processo de individuação e da integração da sombra de forma que o
sujeito não se identifique com ela. Para Lao Tse, o caminho trilhado pelo homem
comum é o caminho do homem dual, onde o ego é o governante:
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O homem planta suas bases numa tríplice fronteira: a satisfação dos desejos
egoístas e insaciáveis, a obediência a regras sociais que orientam a boa
convivência em grupo; e os princípios de uma ética espiritual (LAO TSE,
2011, p. 69).
Para Lao Tse, o Caminho do Céu se contrapõe ao caminho do homem. O
primeiro representa a Naturalidade ou ausência de intenção e de egoísmo, o último
representa a intenção e o apego. “Quanto mais o ser humano se afasta das qualidades
humanas para adquirir as qualidades celestiais - que nascem de um coração afetivo
com relação aos outros seres -, mais ele se aproxima do Caminho do Céu” (LAO TSE,
2011, p. 69).
Restaurar a natureza celestial é encontrar e reconhecer, em si mesmo, a
essência celestial e passar a cultivá-la para viver em plenitude.
Trata-se de um caminho de expansão de consciência, que leva à integração
do ser humano com as leis da natureza e se expressa através da harmonia de
gestos e palavras em sua interação com o mundo (LAO TSE, 2011, p. 69).
É compreender a essência dos princípios do Dào e ter a força de vontade
para segui-las. Quem consegue trilha o Caminho do Céu. Alcançar a Unidade através
da integração dos opostos é fundamental na visão de Lao Tse:
Abraçar a Unidade tem o sentido de interiorização que busca o estado onde
as duas polaridades yin e yang encontram-se indissoluvelmente unidas: uma
dimensão onde não há dispersão a partir da qual tudo se contempla são as
manifestações como Unidade, não mais como expressões dualizadas do
mundo. Como vontade única, abraçar a unidade é a pessoa transcender suas
vontades múltiplas, para ancorar-se numa única vontade que se encontra em
um só objetivo (LAO TSE, 2011, p. 70)
Para Lao Tse, essa vontade não se fragmenta porque nasce de um coração
de um homem sincero “Abraçar a unidade é quando alguém procura o comum quando
está vivendo em discordância, sejas nas diferenças entre pessoas de um grupo, seja nas
diferenças entre seus desejos íntimos” (LAO TSE, 2011, p. 71).
25
A ideia é que os opostos complementares das energias yin e yan estejam
mesclados sem jamais se separarem, promovendo a união dos opostos
complementares.
Nessa condição, a consciência estará simultaneamente no mundo racional e
no mundo intuitivo, em atividade e em quietude, plenamente lúcida e em
estado meditativo, em todas essas expressões ao mesmo tempo. Por isso, este
estado se chama indivisível (LAO TSE, 2011, p.71)
Para o taoismo, o conceito de não-ação (wü wei) é muito importante.
É a ação que se realiza através de um coração sincero que pratica as ações da
não-intenção; iluminar significa despertar a consciência, estado em que a
compreensão de todas as manifestações torna-se lúcida e abrangente; e
clarear é levar o brilho da consciência iluminada para realçar lugares ou
pessoas que careçam de luz (LAO TSE, 2011, p. 73)
Para Lao Tse, é necessário iluminar a consciência através do trabalho
espiritual de interiorização e a prática das virtudes no mundo através da não-ação ou a
ação ausente da intenção do ego. “Esta capacidade resultará na iluminação da
consciência, que consegue enxergar a causa do gesto e desenvolver a capacidade de
distinguir, no outro, as expressões sinceras e perceber o que move aquele gesto” (LAO
TSE, 2011, p. 73).
Lao Tse explica:
O Dào está na essência de todas as existências, visíveis ou invisíveis,
imagináveis ou inimagináveis. Esta semente existe como uma semente
celestial plantada no interior de todos os seres para ser cultivada e
desenvolvida pelo ser humano em direção à sua realização espiritual. Quem
consegue cultivá-la, inicia seu caminho espiritual em busca da plena
realização e se torna capaz de desenvolver no seu âmago, para além dos
sentidos físicos humanos, o sentido do coração ou o sentido da não-forma
(LAO TSE, 2011, p. 87)
A partir desse ponto e através da prática de meditação, a pessoa inicia um
processo de expansão da consciência e de purificação de sua energia, “até alcançar o
grau elevado em que será capaz de compreender e assimilar o que não pode ser revelado
através dos sentidos físicos, mas pode ser compreendido e assimilado pelo sentido do
coração” (LAO TSE, 2011, p. 86).
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O Dào encontra-se em todas as existências, das grandiosas às minúsculas. Ele
é tão grande que dentro dele cabem todos os tempos do passado, do presente e
do futuro, todos os corpos celestes, todas as galáxias, todo os Universos, que
possam existir, todos os seres, todas as formas, pensamentos, as existências e
inexistências, imagináveis e inimagináveis (LAO TSE, 2011, p. 87).
Lao Tse adverte que o estado de iluminação não pode ser confundido com a
experiência mística em que a pessoa assume, a partir daquele momento, uma
luminosidade repentina. A plena iluminação não é um estado luminoso, mas a
transparência da simplicidade que não pode ser descrito ou explicado, apenas sentido.
Aqui a luz está no interior da pessoa, e não na sua exteriorização; por isso
ela não sente necessidade de falar sobre a compreensão que adquire no
mundo. O que ela exterioriza é apenas a transparência que adquire em seus
modos, pensamentos e acertos de análises, na medida correta e nos
momentos adequados, com as pessoas certas (LAO TSE, 2011, p. 87)
Uma pessoa que vive o Dào age com simplicidade e não perde sua
retidão ou sabedoria. Age com simplicidade, transparência e responsabilidade.
Ela consegue ser assim porque seus atos e pensamentos, sua lucidez, retidão e
consistência encontram-se agora referidos à essência de alto nível espiritual de
energia e de consciência que ela cultivou no seu interior, e que se expressa
como vitalidade de uma energia consciente ou uma consciência plenamente
energética. Essa qualidade a acompanha por onde quer que ela vá (LAO TSE,
2011, p. 87)
Para o Caminho espiritual taoista, o sagrado encontra-se em todos os
momentos e circunstâncias da vida da pessoa, ele não está separado da sua vida
cotidiana porque é o princípio espiritual que deu origem a todas as existências do tempo
e do espaço, o que inclui as tarefas do dia a dia.
O princípio sagrado que se encontra dentro de uma pessoa e acompanha seus
movimentos não está isolado ou separado do que é profano, pois profano e
sagrado têm a mesma origem, e essa origem é sagrada. Os seres humanos, os
animais, as montanhas e as estrelas, todas as existências que se encontram
dentro ou fora do ser humano, têm a mesma origem (LAO TSE, 2011, p. 112).
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Lao Tse diz que é necessário se viver o sagrado com a mesma naturalidade
com que se vive o mundano, em todas as situações da vida. Para ele, quem trata todas as
existências como sagradas porque compreende que cada uma delas contém em si uma
semente divina, abandona o uso da inteligência intencional para agir com a não-
intenção, “e beneficia a todas as pessoas porque dissemina pelo mundo as três virtudes
do Dão: simplicidade, humildade e afetividade” (LAO TSE, 2011, p. 113)
O caminho seguido pelo praticante que alcança a virtude do Orifício durante a
meditação é o “Dão Dè”, caminho e virtude, uma referência ao nome desta
obra. “Como caminho exterior, esta pessoa estará buscando sempre a virtude
nas ações, gestos e palavras que dirige para o mundo, buscando ser mais
compreensiva e receptiva com as manifestações do mundo. E como caminho
interior, ela estará sempre pavimentando e mantendo conservada a estrada
construída através da abertura de um orifício que comunica sua consciência do
nível dual, própria do mundo manifestado, com a consciência da Unidade ou
Consciência Universal, que está no nível do Tài Jí (LAO TSE, 2011, p. 124)
Lao Tse diz que o Dào é uma força invisível que está presente em todas as
existências e expressões da vida: em todas as suas manifestações e em todos os tempos
e espaços. “Enquanto houver vida, a essência do Dão será lembrada, e esta é a razão da
busca pelo seu alcance, que a Humanidade empreende até hoje” (TSE, LAO, 2011, p.
126). Para Lao Tse, encontrar essa essência é encontrar a fonte da vida, com a qualidade
da energia capaz de reconhecer a beleza em tudo que existe. Mas só se consegue
alcançar este estado através de uma prova.
Significa que o praticante do Caminho espiritual taoista, quando encontra a
essência do Dào, bebe do néctar eterno da vida, e esta é a prova através da qual
ele será capaz de compreender a ordem harmoniosa de todos os mundos, cuja
essência é a bondade e a beleza. Somente a partir dessa vivência, ele se torna
um mestre de alto nível, afetuoso com a vida, com todos os seres e com a
própria natureza, capaz de identificar, observar e contemplar a beleza e a
bondade que há em tudo que é gerado pelo Dão (LAO TSE, 2011, p. 126)
Esvaziar-se e praticar o desapego é fundamental para a realização do Dão:
Esvaziar-se para permitir o preenchimento é como a xícara que precisa estar
vazia para receber o chá, como a memória de um computador que precisa estar
vazia para receber os dados ou como o coração de uma pessoa que precisa ser
esvaziado de impurezas para ser preenchido com energia do nível de pureza do
Tài Jí. (LAO TSE, 2011, p. 129)
28
A prática do desapego se for seguida com perseverança, aliada a outras
práticas do Caminho Espiritual Taoista, pode levar uma pessoa ao alcance da realização
do Dão, observa Lao Tse.
Ele alerta:
O ser humano precisa desfazer-se, por exemplo, dos fluidos de seu corpo, dos
restos dos alimentos que ingeriu, das roupas e sapatos que usa, dos rancores
que cultiva, e das idéias em que acredita, para se renovar constantemente,
física e espiritualmente, como indivíduo e como seguidor do Caminho,
integrando-se às mudanças de seu destino e acompanhando harmoniosamente
as infindáveis transformações que ocorrem no mundo manifestado (LAO TSE,
2011, p. 129)
Para seguir e se realizar através do Caminho é preciso adotar na vida a
prática da interiorização através dos exercícios da meditação e da reflexão, que levam
gradualmente o praticante a se realizar no Dão. “E para adquirir a virtude, é preciso
exercitar a prática da virtude na interação com o mundo, até alcançar o estado da
Virtude como manifestação do Dão em sua totalidade ou Tài Jí” (LAO TSE, 2011, p.
135)
A palavra Dào, em chinês, traduzida como Caminho, tem o sentido de
movimento, de algo indefinido como o devir, um rumo ou um destino para as
manifestações. “No sentido filosófico, Caminho ou Dão assume a ideia de uma
transcendência no mundo manifestado, como a energia do Absoluto, raiz de todas as
existências e meta espiritual de chegada do ser realizado no Dão” (LAO TSE, 2011, p.
143).
A questão dos opostos é fundamental no conceito do Tao, pois masculino e
feminino representam as energias Yang e yin, duas polaridades complementares, cuja
movimentação incessante governa e estimula as transformações também incessantes de
todas as existências.
“Alcançar a dimensão do Dão como Unidade é unir Yang e Yin, onde habita
o nível da consciência plenamente harmoniosa e perene, que não se esgota porque não
tem princípio nem fim” (LAO TSE, 2011, p. 157). Yang simboliza a força ativa e o
estímulo da iniciativa, características predominantemente masculinas; e o yin simboliza
a força receptiva e o estímulo da passividade, características predominantemente
femininas.
29
Conhecer o masculino e resguardar o feminino significa a pessoa reconhecer
em si mesma as manifestações dessas duas polaridades e atuar no mundo
através da harmonização desses dois canais: conhecendo o alcance de sua
porção yang, ela se torna capaz de usar essa força como sustentação, quando
precisa se manter firme diante dos obstáculos da vidae dos impedimentos a
sua caminhada espiritual. Resguardando a sua porção Yin, ela preserva a
força de suas qualidades de tolerância e afetividade diante do mundo (LAO
TSE, 2011, p. 158)
A filosofia oriental tem muito a nos acrescentar em tempos como os atuais,
pois assistimos a um espetáculo de corrupção política escandalosa, desvios de verbas
públicas, uma sociedade doentia sem valores essenciais e onde o desejo pessoal se
sobrepõe ao interesse público. A cultura do ‘jeitinho brasileiro’ e do ‘vou me dar bem’
está abertamente disseminada e enraizada em nossa sociedade, passa pela política, pela
sociedade, na vizinhança, e permeia as relações de comércio, serviços e emprego.
Os conceitos de não-ação ou ação não intencional, noção de verdade,
transparência e ética cabem como uma luva num momento como este que estamos
atravessamos no Brasil. Ainda que pertençamos a outra cultura e não seja possível
imitar a filosofia oriental, como Jung sempre advertiu. No entanto, há de se aprender
com o pensamento oriental.
Não podemos nos colocar mais no pedestal do mundo e assumir a posição de
donos da razão, de senhores da verdade, da Filosofia, do pensamento e do saber. E Jung
também alertou para isso, pois esta postura nos levou a uma unilateralidade absoluta, à
neurose, à doença, à repressão e ao radicalismo. Uma atitude unilateral que radicaliza,
reprime e encoberta as emoções e a capacidade de sentir. Estamos vivendo a sombra.
No nível individual e no coletivo.
Jung afirma que o poder da consciência ocidental e sua aguda problemática
cederam à natureza serena e universal do Oriente; “e o racionalismo europeu, e sua
diferenciação unilateral, à simplicidade e amplitude da China” (WILHELM: JUNG,
1984, p. 19).
O Oriente penetra implacavelmente por todos os poros, atingindo a Europa em
seu ponto mais vulnerável. Poderia ser uma perigosa infecção, mas talvez seja
um remédio. O emaranhado babilônico do espírito ocidental produziu uma tal
desorientação, que todos anseiam por verdades mais simples ou por idéias que
falem não somente ao intelecto, como també4m ao coração, trazendo clareza
ao espírito observador e paz ao turbilhão de sentimentos (WILHELM: JUNG,
1984, p. 20)
30
Para Jung, a missão de Wilhelm foi realizada em seu mais amplo sentido,
pois nos tornou acessíveis os tesouros da cultura oriental e plantou em solo europeu as
raízes do espírito chinês. “O exagero do ponto de vista consciente e a reação correlativa
do yin do inconsciente constituem uma boa parte da clientela dos psiquiatras; tudo por
causa da supervalorização da vontade consciente” (WILHELM: JUNG, 1984, p. 30).
O colapso é o efeito de uma consciência exaltada e unilateral, que se afastou
demasiado das imagens primordiais, afirmou Jung. Devemos deixar as coisas
acontecerem como o princípio wu wei do Taoismo. “Devemos deixar as coisas
acontecerem psiquicamente. Eis uma arte que muita gente desconhece. É que muitas
pessoas sempre querem ajudar, corrigir e negar, sem permitir que o processo psíquico se
cumpra calmamente” (WILHELM: JUNG, 1984, p. 33)
Deve-se criar uma nova atitude, a qual aceita o irracional e incompreensível
simplesmente porque é aquilo que ocorre.
Quando ocorrem coisas na nossa vida, devemos aceitá-las, quando as coisas
acontecem, devemos compreendê-las até o fundo. Esta conversão do próprio
ser significa uma ampliação, elevação e enriquecimento da personalidade, uma
vez que os valores iniciais sejam mantidos ao lado da conversão. Se não forem
mantidos com firmeza, o indivíduo sucumbirá á unilateralidade oposta, caindo
da aptidão para a inaptidão, da adaptabilidade para a inadaptabilidade, e
mesmo da racionalidade para a loucura (WILHELM: JUNG, 1984, p. 34)
Lao Tse chama de Homem Sagrado aquele ser realizado que alcançou a
plena integração com o Caminho do Céu e permanece no mundo vivendo em perfeita
harmonia com o Dão. “Seu coração é como o vazio: assim, o mundo está dentro dele e,
por isso, ele conhece sem caminhar, reconhece sem ver e realiza sem agir” (LAO TSE,
2011, p. 235)
O Homem Sagrado não precisa ir para longe para buscar o conhecimento, nem
caminhar para conhecer o mundo porque o mundo e toda a sua sabedoria,
todos os conhecimentos de todos os livros e de todos os Homens Sábios estão
dentro dele, no Vazio em que se transformou seu coração (LAO TSE, 2011, p.
235)
31
Para Lao Tse, realizar-se no Caminho é simplificar a vida cada vez mais até
o praticante praticar a não-ação. E para chegar a esse estado é preciso seguir os
preceitos do Dão: “meditar com constância e disciplina, purificando seu coração e
esvaziando a mente dos pensamentos excessivos que provocam o tumulto e a
insensatez, e afastam a pessoa da simplicidade dos raciocínios” (LAO TSE, 2011, p.
237).
Na filosofia mahayana, essa divindade, o Eu profundo, era conhecido como
sendo a natureza búdica:
O princípio definitivo, eterno e universal, de que todas as coisas são
manifestações. Em sânscrito, chama-se Tathata ou “Essencialidade”, termo
que tem íntima afinidade com a expressão chinesa Tao ou Caminho das
Coisas”. Esse princípio é descrito como a natureza búdica, pois ser um Buda
significa que realizamos a nossa identidade com Tathata, com o único
verdadeiro Eu profundo que não é condicionado por diferenças entre “eu” e
“você”, entre “meu” e “minha”, entre “isso” e “aquilo” (WATTS, 1995, p. 30).
O conceito central do Taoismo original era o Tao – palavra que tem sido
traduzida como Caminho, Lei, Deus, Razão, Natureza, Significado e Realidade.
O Tao que pode ser descrito em palavras não é o verdadeiro Tao. Basta dizer
que a ideia geral que está por trás do Tao é a de crescimento e de movimento;
é o curso da natureza, o princípio governante e causador da mudança, o
perpétuo movimento da vida que nunca permanece imóvel por um segundo
(WATTS, 1995, p. 43)
Watts reforça a importância das transformações e do desapego no taoismo:
“Tudo o que está tranquilo ou perfeito está completamente morto, pois o que não tem a
possibilidade de crescimento e de mudança não pode ser o Tao” (WATTS, 1995, p. 43).
Daí a importância do desapego. Watts lembra que o homem se apega na vã esperança de
que elas possam permanecer imóveis e perfeitas.
(...) ele não se reconcilia com o fato da mudança; ele não deixa o Tao seguir o
seu curso. Assim, Lao Tse e seu expoente Chuang Tzu ensinaram que a mais
elevada forma do homem é a do que se adapta e mantém o passo com o0
movimento do Tao. Somente este homem poderá encontrar a paz (WATTS,
1995, p. 43).
32
O fato do homem se lamentar sobre as mudanças mostra que ele próprio não
está se movendo com o ritmo da vida. Se o homem acerta o passo com o Tao, encontra
a verdadeira tranquilidade, pois estará se movendo com a vida e não haverá atrito.
Uma vez perguntaram a um mestre zen ‘o que é o Tao?’, ele respondeu:
‘Caminhe!’, pois só podemos compreender a vida quando mantemos o nosso
passo com ela, através de uma completa afirmação e aceitação das suas
infindáveis mudanças e de suas mágicas transformações (WATTS, 1995, p.
60)
Assim como ninguém pode possuir a vida, nenhuma ideia que uma pessoa
possa possuir pode defini-la; “A ideia de posse é ilusória, pois todas as coisas passarão
para outra forma e nunca permanecerão no mesmo lugar por toda a eternidade. Na raiz
da posse está o desejo de que elas não se alterem” (WATTS, 1995, p. 68). A vida nunca
poderá ser capturada nem compreendida para o taoismo. “Poderá ser compreendida não
tentando captá-la ou defini-la, e esse é o ideal budista fundamental do desapego ou o
ideal taoista do wu-wei” (WATTS, 1995, p. 69)
O taoismo diz que nada poderá ser possuído, “pois aqueles que tentam
possuir estão, de fato, sendo possuídos, pois são escravos das suas próprias ilusões
acerca da vida” (WATSS, 1995, p. 69). Portanto, o não-apego do taoismo significa o
não fugir da vida, mas correr junto com ela, pois a liberdade vem da completa aceitação
da realidade.
Em O Segredo da Flor de Ouro, Wilhelm traduziu o termo Tao por sentido.
“Transpor para a vida este sentido, ou seja, realizar o Tao constitui a tarefa dos
discípulos (...). Parece-me que a realização do sentido, a busca do Tao já se tornou uma
manifestação do coletivo muito mais forte do que imaginamos” (WILHEIM: JUNG,
1984, p. 17)
Mas o caminho não é isento de perigo e o desenvolvimento da personalidade
é uma das tarefas mais árduas. “Trata-se de dizer sim a si mesmo, de se tomar com a
mais séria das tarefas, tornando-se consciente daquilo que se faz e não fechando os
olhos para a própria dubiedade, tarefa que de fato faz tremer” (WILHELM: JUNG,
1984, p. 34). O ocidental se quiser trilhar esse caminho tem tudo contra si: a autoridade
intelectual, moral e religiosa.
33
“O indivíduo deve entregar-se ao Caminho com toda a sua energia, pois só
mediante sua integridade poderá prosseguir e só ela será uma garantia de que tal
caminho não se torne uma aventura absurda” (WILHELM: JUNG, 1984, p. 35). Se
compreendermos o Tao como método ou caminho consciente, que deve unir o separado,
estaremos bem próximos do conteúdo psicológico do conceito.
Para Wilhelm, é uma questão de conscientizar os opostos para uma
reunificação com as leis inconscientes da vida. “A meta dessa unificação é a obtenção
da vida consciente ou como dizem os chineses; a realização do Tao” (WILHELM:
JUNG, 1984, p. 37). A união dos opostos num nível mais alto da consciência não é uma
questão racional ou uma questão de vontade, mas um processo de desenvolvimento
psíquico, e que se exprime em símbolos, segundo Jung.
O Self é o centro inteiro da psique total, tem um forte poder criador e de
renovação, e traz uma nova orientação espiritual para o homem, através da qual tudo se
torna cheio de vida e de iniciativa.
O Self aparece nos sonhos usualmente em momentos críticos da vida do
sonhador – instantes decisivos em que suas atitudes básicas e todo o seu modo
de vida estão em processo de mutação. A própria mudança é, muitas vezes,
simbolizada pelo ato de atravessar um curso d’água (JUNG, 1964, p. 198).
Jung alerta que quando um homem segue as instruções do seu inconsciente
pode receber e aplicar este dom que permite, de repente, fazer de sua vida
desinteressante e apática, uma aventura interior sem fim, repleta de possibilidades
criadoras. Assim como ocorre com o Tao, é como se o Self abrisse uma nova janela que
desse para uma paisagem infinita de possibilidades e beleza, e isso reflete no interior do
ser, no mundo a sua volta e nas relações com outros seres.
Tomar a forma humana de um jovem ou de um velho é um dos modos através
dos quais o self pode aparecer nos sonhos ou visões. Ao adquirir várias idades
mostra não que nos acompanha por toda a vida, mas que subsiste além do
fluxo da vida consciente (JUNG, 1964, p. 199)
34
Embora o Self não esteja inteiramente contido em nossa experiência
consciente de tempo, ele é onipresente, pois se manifesta frequentemente e de forma
especial.
Pode aparecer como um ser humano gigantesco e simbólico que envolve e
contém o cosmos inteiro. Quando esta imagem surge nos sonhos, podemos ter
esperanças de uma solução criadora para o seu conflito, pois está ativado o
centro psíquico vital de modo a vencer as suas dificuldades (JUNG, 1964, p.
200)
A força reguladora e criativa do Self é tão poderosa que por vezes se torna
imperativa dentro de nós. “Temos, algumas vezes, uma poderosa sensação de que o
Grande Homem quer alguma coisa de nós, estabelecendo algumas tarefas especiais para
cumprirmos” (JUNG, 1964, p. 218). Dessa forma, nossa reação positiva a esta
experiência pode nos ajudar a adquirir forças para nadar contra a corrente do
preconceito coletivo, levando a sério nossa própria alma.
É importante observar que nem sempre há de ser uma tarefa agradável. “O
sentimento e a ideia de dever, de obrigação ligada ao processo de individuação parece-
nos, muitas vezes, mais um peso do que uma benção imediata” (JUNG, 1964, p. 218).
Por isso que quando uma pessoa tenta obedecer ao inconsciente, fica muitas vezes
impossibilitada de fazer o que quer.
Da mesma forma, a pessoa estará incapacitada de fazer o que as outras
pessoas querem que ela faça. “Pode sentir necessidade de se separar do seu grupo –
família, parceiro e outras relações pessoais – a fim de encontrar-se. Por isso que se diz
que atendendo ao inconsciente, as pessoas podem se tornar antissociais e egocêntricas”
(JUNG, 1964, p. 219).
O Self ordena e regula nosso processo interior e os relacionamentos
humanos, e o ego consciente deve se dar ao trabalho de detectar as projeções irreais,
ocupando-se delas no seu íntimo, e não no exterior. Pessoas que têm afinidades
espirituais e uma mesma orientação descobrem-se umas às outras, criando um novo
grupo, que se sobrepõe às organizações e estruturações comuns.
As relações são transformadas pelo self. “O processo de individuação
conscientemente realizado modifica as relações humanas do indivíduo. Laços de
parentesco ou de interesses comuns são substituídos por um tipo de união diferente,
vinda do self” (JUNG, 1964, p. 221).
35
A psique é constituída pelo consciente e pelo inconsciente e pela relação
entre eles, é um sistema autorregulador. “Contém um impulso à totalidade e tem a
tendência a se equilibrar através da função compensatória do inconsciente” (WEINRIB,
1993, p. 31). Para Jung, o impulso para a realização e para a totalidade (self) sugere que
a psique, assim como o corpo, tem a tendência de curar a si própria.
O Self é a totalidade da personalidade e seu centro diretor. É o fator
organizador central da psique, da qual o ego, que é somente o centro da consciência, se
desenvolve. Assim como o inconsciente, o self existe a priori, segundo Jung. Por isso
estar conectado ao Self e se permitir ser guiado por este centro da personalidade confere
à pessoa um estado diferenciado de percepção com relação a si, às pessoas em geral e ao
mundo.
Da mesma forma que se busca o Tao, a chegada ao Self é uma meta da
prática da psicoterapia junguiana. O processo de individuação consiste na transformação
da vida consciente do indivíduo na medida em que ele integra os conteúdos
inconscientes, reconhece e integra sua sombra. É um processo que demanda uma vida
toda. Dessa forma, sua percepção modifica e sua forma de ser mundo também, pois
estará mais afinado consigo mesmo, com aquilo que realmente se é na essência.
Na medida em que o ser se aproxima do Self, ele é tocado por uma série de
transformações, ao mesmo tempo em que também provoca transformações no ambiente
e em suas relações. Quanto mais aproximado do ego for sua percepção de si mesmo e
do mundo, mais atrofiada ela é, pois os conteúdos inconscientes estarão mais afastados
e, por isso, distantes. Quanto mais em contato com o Self ele estiver, mais integrado e
afinado consigo mesmo ele estará.
A medida que a consciência moderna evoluiu, o ego ganhou preponderância
sobre o self, especialmente no desenvolvimento intelectual do Ocidente. A
primazia do intelecto resultou numa personalidade desequilibrada,
exageradamente racional, sujeita a neurose. A autonomia do ego é limitada, já
que suas raízes estão no inconsciente. O ego é vulnerável às influências dos
complexos emocionalmente carregados que agem de maneira compensatória
(WEINRIB, 1993, p. 32)
36
3 UMA PONTE ENTRE TE E ENERGIA PSÍQUICA
A palavra chinesa Te significa para o taoismo virtude, poder interior,
integridade:
Te não é forçado, é natural. O Te ensina viver na bondade, na compaixão e
na graça. É ser fiel a si mesmo e lidar com as pessoas, pois Te ajuda a
equilibrar as forças sociais. É aprender a lidar consigo mesmo e com outras
pessoas (KOCHMER, 2016)
A tradução para Te é virtude. “Te foi pronunciado dugh durante o período
Chou (cerca de 1100-600 aC). Os significados transmitidos em textos daquela época são
‘caráter’, ‘qualidade’, ‘disposição’, ‘personalidade’, ‘força pessoal’ e ‘vale a pena”
(WIKIPEDIA, 2016).
Com ele é usado no Tao Te Ching, te significa as qualidades pessoais ou
pontes fortes do indivíduo, sua personalidade. Te é determinada pela soma
total de suas ações, boas ou más. Por isso, é possível falar em “cultivar o
Te”. Como Karma, te é o peso moral de uma pessoa, o que pode ser
negativo ou positivo. Em suma, te é o que você é. Te representa auto-
natureza ou auto-realização, apenas em relação ao cosmos. É de fato, a
realização do princípio cosmos no eu. Te é a personificação do caminho e é
o caráter de todas as entidades do universo. Cada criatura, cada objeto tem
um te que é a sua própria manifestação do Tao. (WIKIPEDIA, 2016)
Para os taoistas, uma pessoa virtuosa é aquela que vivencia o Tao em
tudo o que faz, tem no Tao o seu companheiro constante. “Essa pessoa imersa no
Absoluto é chamada de Junzi, o Ser Perfeito” (SILVA, G, 2016). O taoismo denomina
a virtude comum de Inferior, pois ela precisa de ações para ser efetivada, é aprendida
por regras e respeitada por medo de represálias.
“Entretanto, a virtude que se vive com o Tao é chamada Superior, e não
precisa de ação para ser atingida. Ao contrário, ela tem a ver com wu wei, o conceito
de não-ação” (SILVA, G, 2016). Assim, o Ser Superior taoista seria alguém que
atingiu a comunhão com o tao, que age sem agir (wu wei) e que se mantém uno com
todo o universo. “Portanto, o que faz uma pessoa um Junzi é o Te, a virtude. Ele se
torna perfeito por estar em ressonância com o Tao” (SILVA, 2016).
37
O te não é seguido pelo exterior mas pelo interior de cada pessoa. Os três
tesouros do Tao (humildade, simplicidade e benevolência) são objetivos a
serem incorporados ao próprio praticante. Deve fazer parte dele, ser a sua
essência. Só aí a pessoa atingiu a virtude (SILVA, 2016)
Lao Tse explica qual a vantagem de se possuir o Te:
Quem possui a Virtude em abundância é como um recém-nascido. Os
insetos não o picam. As aves de rapina e os animais bravos não o agarram.
Tem ossos leves e cartilagens macias. Mas pegam com firmeza. Desconhece
a união de macho e fêmea. Mas seu órgão se desperta pela plenitude da
essência. Grita até o fim do dia. Mas não fica rouco, pela plenitude da
harmonia (LAO TSE, 2011, p. 263)
Caminho é o que nós realizamos interiormente e Virtude é o que nós
realizamos exteriormente. Ela se expressa nas ações externas.
Ao encontrarmos o Caminho dentro de nós, transformamos os atos externos
em atos virtuosos. O Caminho interno é o caminho da autorrealização, o
caminho da consciência. Nesse caminho procuramos retirar as impurezas da
consciência para que ela volte a ser lúdica e transparente. É um processo de
busca de lucidez e de prática de meditação como um momento dedicado à
busca da iluminação (CHERNG, 2011)
Assim, o Caminho externo ou a prática externa, a Virtude, se traduz por uma
maneira honesta e verdadeira de se viver com as pessoas, com o mundo, com o
trabalho e com tudo que faça parte do cotidiano. “Virtude são atos e gestos de acordo
com o princípio, com o fundamento e com a sabedoria. Distribuir virtudes é fazer o
bem, é praticar atos e gestos concretos, é fazer coisas pelas necessidades dos outros”
(CHERNG, 2011).
Pensador e filósofo chinês, Confúncio (551aC a 479aC), faz a seguinte
distinção: “O Homem Superior se preocupa com virtude; o homem inferior se
preocupa com as coisas materiais. O homem superior se preocupa com disciplina; o
homem inferior busca favores” (WIKIPEDIA, 2016).
Semelhante ao alerta de Jung sobre a responsabilidade do médico,
Confúncio já sinalizara:
Se um homem não é constante em seu auto-cultivo, ele não pode ser um
xamã ou curandeiro. Se você não está constantemente desenvolvendo sua
virtude, o que você pode dar aos outros? Você não vai mesmo ser capaz de
dar um diagnóstico (WIKIPEDIA, 2016)
38
Tao é o caminho e Te é a virtude. Lao Tse afirma que “Tao produz uma
coisa. Te mantém” (LAO TSE, 2011, p. 51). A espontaneidade total de todas as coisas
é Tao. A espontaneidade que uma coisa individual recebe do Tao é Te. A relação entre
Te e Tao é como a água no rio ou lago, e água em geral.
Para uma sociedade que atravessa uma grave crise - e que sempre
valorizou o mundo exterior e a matéria -, proponho o cultivo do Te ao utilizar a energia
psíquica. A ideia é desenvolver as qualidades individuais, os pontos fortes de cada
pessoa e sua personalidade, permitindo que o indivíduo expresse sua forma de ser no
mundo, independente de atender ou não às expectativas ou às convenções da
sociedade.
Te não é seguido pelo exterior, mas pelo interior de cada pessoa. Daí a
importância dos três tesouros do Tao - humildade, simplicidade e benevolência – a
serem incorporados pelo praticante. Simplicidade interior é acalentar poucos desejos,
tem a ver com o conceito de wu wei ou a não-ação, o deixar fluir, e com a prática do
desapego.
Afinal, a ânsia de querer obter coisas complica a vida e prejudica a
naturalidade, conceito universal do taoismo. Portanto, a atitude interior deve ser a de
simplicidade. Na medida em que se adota uma atitude simples, a pessoa atinge a
Virtude ou o Te, e passa a agir de acordo com a sua natureza, respeitando a si mesmo e
ao outro.
Jung utiliza os conceitos de progressão e regressão ao se referir à
adaptação interna e externa do indivíduo no mundo. Para ele, a verdadeira adaptação
só ocorre a partir da consciência, através de funções dirigidas. Não existe adaptação
definitiva, pois há uma constante modificação do ambiente e uma nova adaptação. “A
progressão da libido consistiria assim em dar contínua satisfação à exigência das
condições do ambiente” (JUNG, 2013a, § 61).
Durante a progressão da libido os pares de opostos estão unidos
coordenando os processos psicológicos. Sua ação conjunta possibilita a
regularidade equilibrada do processo, que se tornaria unilateral e
despropositado sem uma ação contrária anterior. Esta é a razão por que
concebemos toda extravagância e exagero como uma perda de equilíbrio,
visto que fica faltando a ação coordenada do impulso oposto (JUNG, 2013a,
§ 61).
39
O problema se dá quando a adaptação ao meio externo ou a progressão
não é possível, e aí ocorre o represamento da libido, o que pode levar o indivíduo ao
desacordo consigo mesmo, podendo gerar a neurose.
O sim e o não não podem mais unir-se num ato coordenado, pois o sim e o
não passam a adquirir valores iguais, que se equilibram reciprocamente.
Quanto mais durar o represamento, mais se elevará o valor das posições
opostas. Esta tensão leva ao conflito; o conflito leva a tentativa de reprimir-
se e, quando se consegue reprimir o partido oposto, instala-se a dissociação,
a cisão da personalidade, o desacordo consigo mesmo, criando a
possibilidade da neurose (JUNG, 2013a, § 61).
Os atos resultantes deste estado se manifestam em desequilíbrio, podendo
se expressar de forma patológica e adquirir o aspecto de ações sintomáticas. Diferente
do que ocorre no fenômeno progressivo, o indivíduo não age de forma equilibrada,
mas ao contrário, se sente perturbado.
Através do embate dos opostos, começa uma desvalorização gradual dos
pares dos opostos. Na mesma medida, aumenta a perda de valor dos
opostos conscientes, aumenta o valor dos processos psíquicos que não
atingem o nível consciente. A valoração dos panos de fundo da
consciência, bem como do inconsciente, vai crescendo e é de se esperar que
o inconsciente adquira uma maior influência sobre a consciência (JUNG,
2013a, § 62)
A manifestação indireta do inconsciente aparece sob a forma de
perturbações, de complexos ou até sob condutas sintomáticas, como afirmou Freud, em
estados neuróticos, sob a forma de sintomas. Na medida em que a regressão aumenta o
valor daqueles conteúdos anteriormente excluídos do processo de adaptação
consciente, e que eram obscuramente conscientes ou inteiramente inconscientes, os
elementos psíquicos são forçados a ultrapassar o limiar da consciência.
De acordo com Freud, esses conteúdos não são apenas de ordem sexual
infantil, mas são tendências e conteúdos irracionais, não estéticos, da ordem do
irracional. “O que a regressão traz à luz é realmente um fundo de lodo” (JUNG, 2013a,
§ 63). Entretanto, nela há a possibilidade de uma transformação:
Um dos maiores valores da Psicanálise consiste no fato dela trazer à luz,
corajosamente, os conteúdos incompatíveis, o que seria um empreedimento
inteiramente inútil, e até condenável. Se essas coisas reprimidas não
contivessem as possibilidades de uma renovação existencial (JUNG, 2013a,
§ 63).
40
A progressão e a regressão são igualmente importantes no processo de
adaptação do homem aos meios externo e interno. A adaptação ao meio ambiente pode
falhar devido à unilateralidade da função adaptativa, assim como o ajustamento ao
mundo interior também pode não dar certo devido à unilateralidade da função que a ela
se dedica.
A regressão ativa um fato inconsciente e faz com que a consciência se
defronte com o problema da alma, diante do problema da adaptação
externa. É natural que a consciência resista à aceitação dos conteúdos
regressivos, mas ela será finalmente obrigada a submeter-se àqueles valores
regressivos porque a progressão fica impossibilitada; em outras palavras: a
regressão leva à necessidade de adaptação à alma, ou seja, ao mundo
psíquica interior (JUNG, 2013a, § 66)
Jung fundamenta:
Após fortes oscilações iniciais, os opostos vão se equilibrando, e pouco a
pouco surge uma nova atitude, cuja estabilidade resultante é tanto maior
quanto maiores eram as diferenças iniciais. Quanto maior a tensão dos
opostos, tanto maior é a energia produzida; e quanto maior a energia, tanto
mais forte é a força de atração constelada (...) (JUNG, 2013a, § 49)
O objetivo é desafiar e superar a crise instalada, crise que está também
dentro de cada um de nós. Só haverá reflexos positivos no coletivo se a mudança
iniciar a partir do indivíduo. Do contrário, poderão ser devastadoras as consequências.
Jung lembra:
(...) os mais graves conflitos, quando superados, deixam uma segurança e
tranquilidade difícil de perturbar ou então uma ruptura, quase impossível de
curar, e vice-versa: são justamente as maiores oposições e sua conflagração
que vão produzir resultados valiosos e estáveis (JUNG, 2013a, § 50)
Considerando o conceito de energia psíquica, a ideia seria utilizá-la para o
cultivo do Te no resgate de si mesmo com o objetivo do indivíduo afirmar-se no
mundo e assim, propiciar uma melhor adaptação aos mundos interno e externo, e levar
também ao melhor convívio em sociedade, onde o respeito, a ética, a transparência e a
compaixão existam nas relações.
41
Afinal, quando há o respeito por si mesmo e a aceitação da própria
singularidade e personalidade, o indivíduo adquire maior segurança e liberdade para
ser o que ele é. Sentindo-se livre e seguro para ser e respeitar sua essência,
consequentemente a relação com o outro também sofre modificação, pois terá
compreendido a noção de respeito pela sua individualidade. Deve-se, no entanto, fazer
uma distinção entre energia psíquica e força psíquica.
Para T. Lipps, “Força psíquica é a possibilidade de surgirem processos na
alma e atingirem certo grau de efeito”(JUNG, 2013a, § 26). Ele reforça ainda:
“Energia psíquica é a possibilidade inerente aos processos de atualizar essa força neles
mesmos ”(JUNG, 2013a, § 26).
Jung explica como a energia psíquica se manifesta atualizada:
(...) na experiência a energia está sempre especificamente presente como
movimento e força, quando atualizada, e como situação ou condição,
quando em potencial. Quando atualizada, a energia psíquica aparece nos
fenômenos dinâmicos, específicos da alma, tais como instintos, desejos,
vontade, afeto, atenção, rendimento de trabalho etc, que são justamente
forças psíquicas. Quando em potencial, a energia aparece nas conquistas
específicas, nas possibilidades, disposições, atitudes, que são condições.
(JUNG, 2013a, § 26)
Ele resume: “A energia é um conceito quantitativo que adiciona as forças e
condições” (Jung, 2013a, § 27). Dessa forma, estende-se o conceito restrito de uma
energia psíquica para o conceito mais amplo de uma energia de vida, a qual engloba a
chamada energia psíquica como componente específico, segundo Jung.
Sem uma concepção simbolista dos fatos, os mesmos são substâncias
imutáveis, cujos efeitos não cessam, como acontece com a antiga teoria do
trauma de Freud. A causa não permite o desenvolvimento. Para a alma, a
reductio ad causam (redução á causa) é o oposto do desenvolvimento, ela
prende a libido aos fatos elementares (JUNG, 2013a, § 46).
Mas para Jung, a alma não pode ficar retida aí:
(...) tem que continuar sua evolução, transformando as causas em meios
para atingir um fim, ou seja, em expressões simbólicas para um caminho a
ser percorrido. O significado exclusivo da causa, ou seja, seu valor
energético,desaparece assim, reaparecendo no símbolo, cuja força de
atração representa a porção de libido correspondente (JUNG, 2013a, § 46)
42
O símbolo que transformará a energia em símbolo, provocando
transformações.
O primeiro produto que o homem primitivo conquista através da formação
análoga da energia instintiva é a magia. Uma cerimônia é mágica quando
não é realizada com a finalidade de fazer um trabalho efetivo, mas fica retida
na expectativa. A vantagem da cerimônia mágica é que o objeto “recém-
ocupado” obtém a possibilidade de exercer influência sobre a psique. O valor
desse objeto faz com que atue de forma determinante, suscitando a
imaginação de um modo tal, que a mente seja por ele atraída e dele se ocupe
durante um longo período de tempo (JUNG, 2013a, § 89)
Quanto maior a tensão entre os opostos, maior é a quantidade de energia
produzida. “A natureza dos opostos constituem a base da energia psíquica” (JUNG,
2013a, § 104). Jung afirma que o choque entre a instintividade infantil e o ético nunca
poderá ser evitado. “Este choque é a condição sine qua non da energia psíquica”
(JUNG, 2013a, § 105).
O grande desafio que se coloca é que a energia psíquica seja canalizada
para o cultivo de Te; a aceitação de si mesmo, o cultivo da Virtude e da boa intenção
através da não-ação ou da não-intenção. Que haja conflito entre os opostos – sempre
haverá -, que haja o choque entre a instintividade infantil e o ético, mas que os opostos
existam e que isso seja a favor de uma sociedade mais justa onde haja menos egoísmo
e menos favoritismos.
Uma política mais limpa, uma sociedade mais igualitária, mais humana,
mais ética. Não poderia haver momento mais oportuno para a reflexão sobre qual o
tipo de sociedade que estamos construindo e baseada em quais valores.
E para isso, a energia psíquica deve ser investida e canalizada para outros
valores, diversos daqueles que durante toda a História dominaram o Ocidente. Se não
há como mudar a realidade nem o curso da vida, pois somos e respiramos nossa
História - como bem sabia Jung, e ele nunca teve esta pretensão. Podemos aprender
com a visão oposta, com o olhar e a postura do oriental. Realizar o Tao em nós, como
ele também afirmou. Este é o grande desafio do homem contemporâneo.
43
4 UM PARALELO ENTRE O TAOISMO E O PROCESSO DE
INDIVIDUAÇÃO
Para o taoismo, todo excesso é perverso, pois leva ao desequilíbrio e ao
esgotamento de energia. Lao Tse entende por excesso conceitos, ideologias,
sentimentos, juízos e preconceitos. Ele sugere o esvaziamento do coração e da mente
para o equilíbrio do organismo:
Quem pratica a meditação do silêncio e aprende a se desapegar dos excessos,
adquire um coração que passa a ter a capacidade de se expandir para receber
todas as manifestações que contempla, e em seguida, se contrair para
processar e selecionar as novas informações, assimilando sua essência e
descartando o que não é essencial. Com isso, nesse coração haverá sempre
um lugar reservado para acomodar todo o conhecimento que o mundo lhe
oferece, sem jamais se tornar cheio (LAO TSE, 2011, p. 64)
Quem mantém o coração cheio precisa, portanto, aprender a praticar o
desapego para se tornar capaz de descartar excessos, conservando-se íntegro até o final
de sua jornada, segundo Lao Tse. “Para transformar a consciência do ego num tesouro
eterno, é preciso desenvolver dentro de si a constância, a sinceridade e a naturalidade,
virtudes que só podem ser cultivadas através da não-intenção”(LAO TSE, 2011, p.
66).
Entende-se como tesouro o brilho de uma luz pessoal desenvolvida com o
trabalho espiritual de expansão de consciência. Lao Tse explica:
A luz como qualquer tesouro precisa ser preservada e protegida no íntimo de
cada pessoa, em vez de ser mostrada incessantemente para o mundo. É
preciso escolher ser a luz suave, que não fere nem se desgasta, em lugar da
luz ofuscante, que desperta a cobiça de ladrões e o excesso de solicitações do
mundo”(LAO TSE, 2011, p. 67)
Lao Tse nomeia “caminho do céu” para dizer que é o percurso que o
homem faz no mundo quando observa atenta e passivamente as Leis da Naturalidade,
assimila seus significados e concretiza suas ações, guiando seus passos conforme esse
movimento.
É o caminho que pode levar a pessoa à realização espiritual. A realização
pode ocorrer nos mais diversos níveis e o mais alto deles é quando a pessoa
alcança a outra ponta do caminho, une-se ao DÀO e se dilui nessa energia
para se transformar, ela mesma, no Caminho do Céu (LAO TSE, 2011, p.
68)
44
Os mestres taoistas ensinam que todas as ações e reações, atitudes de
suavidade e fraqueza, como contrárias à força bruta, vencem as ações de força e rigidez.
“Numa tempestade, as vegetações suaves e flexíveis se curvam e voltam aos seus
lugares após o temporal, enquanto as árvores rígidas e secas ficam sujeitas a se partirem
pelo caule ou terem galhos quebrados pela força dos ventos fortes” (LAO TSE, 2011, p.
192).
Da mesma forma deve acontecer nas tempestades emocionais:
A pessoa deve ter a sabedoria de se colocar como pequeno, suave e flexível,
evitando demonstrar força e rigidez para não ser o primeiro a se quebrar. E
colocar um vazio receptivo no lugar da sua vaidade e orgulho, de forma que
qualquer crítica exterior e qualquer tipo de ação hostil cheguem a ele como
palavras e gestos atirados ao vento, que não lhe trarão o desconforto das
flechas que atingem seus alvos (LAO TSE, 2011, p. 192)
Este é o ensinamento taoista que ensina a valorizar a suavidade e a
brandura, em lugar da força. A não-ação é outro conceito muito importante dentro do
caminho do Tao. Não-ação é a tradução literal do termo chinês wü wéi. Wü siginifica
não e wéi significa ação, mas o sentido é a ação não intencional que se realiza através da
naturalidade e do não egoísmo.
“Wü wéi não é uma ação que deixa de ser praticada, mas a ação que se
concretiza quando o seu autor segue o impulso comandado diretamente pela
Consciência Universal, desconsiderando a intenção ou os interesses do seu ego” (LAO
TSE, 2011, p. 195). Ela é ao contrário de uma ação premeditada ou intencional, de um
ato de engenhosidade que traz escondida a expectativa das vantagens futuras que serão
recebidas por quem executa.
Ações engenhosas nascem da falta de sinceridade, e conforme os resultados
esperados são alcançados pela pessoa, ela começa a correr o risco de se viciar nas
artimanhas para conseguir o que deseja. “Este poder de sedução é tão grande, que ela
passa a enxergar a engenhosidade como um jogo, e passa arquitetar planos para levá-las
a conquista de seus objetivos” (LAO TSE, 2011, p. 195). Para Lao Tse, este
comportamento cultiva em seu coração a falta de sinceridade, domina sua vida e
aprisiona sua consciência.
45
O termo ‘superior’ é utilizado no Taoismo para indicar o que é verdadeiro e
íntegro, e ‘inferior’ ao que é fragmentado, fazendo referência à questão dos opostos:
A virtude superior é a perfeita harmonia que existe no Tái Ji ou Dão
manifestado em sua totalidade, onde todas as manifestações encontram-se
unidas ou integradas, antes da fragmentação; e a virtude inferior é a
multiplicidade das expressões dualizadas, que representam a fragmentação do
mundo manifestado (LAO TSE, 2011, p. 199)
Na neurose, “o processo de adaptação é prejudicado ou poderíamos dizer que
a própria neurose é um processo é de adaptação prejudicado” (JUNG, 2011b, § 1087). A
adaptação às condições externas pode estar prejudicada pelo fato do sujeito procurar
adaptar-se apenas ao exterior, esquecendo totalmente o interior. Da mesma forma, a
adaptação às condições internas pode ser prejudicada pela adaptação exclusiva ao
exterior ou por negligência do exterior em benefício da adaptação ao interior.
A individuação retira a pessoa da conformidade pessoal e, com isso, da
coletividade. Esta é a culpa que o individualizado deixa para o mundo e que
precisa tentar resgatar. Em lugar de si mesmo, precisa pagar um resgate, isto
é, precisa apresentar valores que sejam um equivalente de sua ausência na
esfera coletiva e pessoal (JUNG, 2011b, § 1095)
Jung é implacável: “Quem não souber produzir valores deveria sacrificar-se
conscientemente ao espírito da conformidade coletiva” (JUNG, 2011b, § 1095).
Só na medida em que alguém produz valores objetivos, pode ele
individualizar-se. Todo passo para individuação gera nova culpa que precisa
de nova expiação. Por isso, a individuação só é possível enquanto são
produzidos valores substitutos. A individuação é exclusivamente adaptação à
realidade interna e, por isso, um processo mítico. A expiação é adaptação ao
mundo externo, com o pedido que de que a aceite (JUNG, 2011b, § 1095)
Jung sinaliza:
A sociedade não tem apenas o direito, mas o dever de desprezar o
individualizado enquanto não produzir valores equivalentes, pois ele é um
desertor (...). Para o mundo externo, só permanece visível a sombra da
personalidade. Por isso, o desprezo e o ódio por parte da sociedade (...)”
(JUNG, 2011b, § 1096 - §1097)
46
Entretanto, a adaptação interna possibilita a conquista de realidades internas.
Individualizar-se, portanto, exige solidão e abandono da coletividade. Exige a clausura e
o isolamento do si-mesmo interior. Portanto, trilhar o caminho da individuação é remar
contra a maré da sociedade, “que exige a imitação ou a identificação consciente, isto é,
trilhar por caminhos aceitos e autorizados” (JUNG, 2011b, § 1099).
Só está livre disso quem produz um equivalente. Há muitas pessoas
incapazes de produzir esse equivalente. Por isso estão presas ao caminho traçado.
“Quem tiver permissão de se individualizar devido a aptidões especiais tem que suportar
o desprezo da sociedade até que tenha produzido seu equivalente. Poucos são capazes
disso” (JUNG, 2011b, § 1099).
Estabelecendo um diálogo com o taoismo, o caminho espiritual a que ele se
refere é chamado de Caminho do Retorno porque o seguidor do Dão caminha ‘de volta’
em direção ao Absoluto, origem de todas as existências. “O destino do ser humano é
seguir em frente em direção a sua origem” (LAO TSE, 2011, p. 210)
A disciplina e olhar atento às próprias atitudes são essenciais para o
taoismo:
O importante é a suavidade, a qualidade de brandura e delicadeza. “O caminho
se concretiza através da suavidade, de gestos e palavras que o seguidor dirige
para o mundo e para si mesmo durante as práticas constantes e disciplinadas de
expressão de suas virtudes e de interiorização de sua consciência através da
meditação e reflexão (LAO TSE, 2011, p. 211)
Agir com simplicidade é fundamental para se viver o taoismo e alcançar a
não-ação, o wú wéi.
A simplicidade é a qualidade de uma pessoa que usa seu discernimento para
deliberar sobre a ação correta num determinado momento, retirando da mente
todo excesso de conceitos e informações. A realização do Tao é simplificar até
chegar à não-ação. E para chegar a este estado, é preciso seguir os preceitos do
Dão: meditar com constância e disciplina, purificar o coração e esvaziar a
mente dos pensamentos excessivos que provocam o tumulto e a insensatez
(LAO TSE, 2011, p. 237)
47
Jung diz que a personalidade já existe em germe na criança, mas “Só se
desenvolverá aos poucos por meio da vida e no decurso dela. Sem determinação,
inteireza e maturidade não há personalidade” (JUNG, 2013b, § 288). Atingir a
personalidade não é tarefa insignificante, segundo Jung, “mas o melhor
desenvolvimento possível da totalidade um indivíduo determinado” (JUNG, 2013b, §
289).
Requer-se para tanto a vida inteira de uma pessoa, em todos os seus aspectos
biológicos, sociais e psíquicos. Personalidade é realização máxima da índole
inata específica de um ser vivo em particular. Personalidade é a obra a que se
chega pela máxima coragem, pela formação absoluta do ser individual, e pela
adaptação, a mais perfeita possível, a tudo que existe de universal, e tudo isso
aliado à máxima liberdade de decisão própria (JUNG, 2013b, § 289)
Assim como o processo de individuação, a personalidade se desenvolve
durante a vida inteira.
(...) somente pela nossa ação é que se torna manifesto quem somos de verdade.
Somos como o Sol que alimenta a Terra e produz tudo o que há de belo, de
estranho e de mau; somos também como as mães que carregam no seio a
felicidade desconhecida e o sofrimento. De início não sabemos o que está
contido em nós, que feitos sublimes ou que crimes, que espécie de bem ou
mal. Somente o outono revela o que a primavera produziu, e somente a tarde
manifesta o que a manhã iniciou (JUNG, 2013b, § 290)
Entretanto, é necessária uma motivação, um ‘empurrão’ para que a
personalidade se desenvolva. “Somente algo que obrigue atuando como causa é que
move a natureza humana. (...) Só a necessidade premente consegue ativá-la” (JUNG,
2013b, § 293). O desenvolvimento da personalidade é ao mesmo tempo gratificante e
desafiador, pois exige renúncias:
(...) o indivíduo de maneira consciente e inevitável, se separa da grande massa,
que é indeterminada e inconsciente. Isto significa isolamento. (...) Nada evita
isso, nem a adaptação bem sucedida, nem a incorporação sem o menor atrito
ao meio ambiente, nem a família, nem a sociedade, nem a posição social. O
desenvolvimento da personalidade é uma tal felicidade, que se deve pagar por
ela um preço elevado ( JUNG, 2013b, § 294)
48
Jung diz que é importante ser fiel à própria lei e compara essa fidelidade à
atitude religiosa. “Fidelidade à própria lei significa confiar nessa lei, perseverar com
lealdade e esperar com confiança; enfim, é a mesma atitude que uma pessoa religiosa
deve ter para com Deus” (Jung, 2013b, § 296). Para ele, a personalidade jamais poderá
desenvolver-se se a pessoa não escolher seu próprio caminho, de maneira consciente.
O percurso é solitário e o ser tem que separar-se das massas:
A maioria esmagadora das pessoas não escolhe seu próprio caminho, mas a
convenção; por isso não se desenvolve a si mesma, mas segue um método,
que é algo coletivo, em prejuízo de sua totalidade própria (JUNG, 2013b, §
296).
Para Jung, a vida psíquica e social do homem que se encontra em uma etapa
primitiva, é exclusivamente a vida do grupo, e permanece num estado de inconsciência
com relação a si mesmo.
“A convenção é uma necessidade coletiva. É um expediente e não um ideal,
tanto do ponto de vista moral como religioso, pois a submissão a ela sempre significa
renúncia da totalidade e fuga diante de suas próprias e últimas consequências” (JUNG,
2013b, § 297). Desenvolver a personalidade, para Jung, é um risco nada popular e nada
simpático. “É como permanecer à margem da estrada larga, é viver recolhido em si
mesmo, à moda do eremita” (JUNG, 2013b, § 298).
Ao homem comum sempre se afigurou coisa estranha que alguém preferisse
seguir uma trilha estreita e íngreme, que leva ao desconhecido, em lugar de
seguir pelos caminhos planejados que conduzem a metas conhecidas. Por isso
sempre se julgou que tal pessoa, desde que não estivesse louca, fosse possuída
por um demônio (daimon) ou por um Deus. A razão disse é o fato de alguém
poder proceder de um modo diverso dos demais e como sempre se procedeu,
somente podia ser explicado por uma força demoníaca ou por um dom divino
(JUNG, 2013b, § 298).
Jung chama de designação o fator irracional, traçado pelo destino, que
impele a pessoa a emancipar-se da massa gregária.
Personalidade verdadeira sempre supõe designação e nela acredita e deposita
confiança como em Deus (...). Esta designação age como se fosse uma lei de
Deus, da qual não é possível esquivar-se. (...) Ele deve obedecer a sua
própria lei, como se um demônio lhe insuflasse caminhos novos e estranhos.
Quem tem designação, escuta a voz em seu íntimo. Por isso, a lenda atribui a
essa pessoa um demônio pessoal, que a aconselha e cujos encargos deve
executar (JUNG, 2013b, § 300)
49
Somente pode tornar-se personalidade quem é capaz de dizer um ‘sim’
consciente à ao poder de designação interior que se lhe apresenta. Quem sucumbe diante
dela fica entregue ao desenrolar cego dos acontecimentos e é aniquilado.
“O que cada personalidade tem de grande e de salvador reside no fato de ela,
por livre decisão, sacrificar-se a sua designação e traduzir conscientemente em sua
realidade individual aquilo que, se fosse vivido inconscientemente pelo grupo
unicamente, poderia conduzir à ruína” (JUNG, 2013b, § 308)
O surgimento da personalidade tem um efeito curativo para o indivíduo. “É
como se um rio que antes se perdesse em braços secundários e pantanosos,
repentinamente descobrisse seu verdadeiro leito” (JUNG, 2013b, § 317). A voz interior
é a voz de uma vida mais plena e de uma consciência mais ampla e abrangente.
Por isso, dentro da mitologia, o nascimento de um herói ou seu renascimento
simbólico costumam coincidir com o nascer do sol; é que o formar-se da
personalidade equivale ao aumento da consciência. Pelo mesmo motivo, a
maioria dos heróis é designada por atributos do sol, e o instante em que surge
sua grande personalidade é o chamado iluminação (JUNG, 2013b, § 318)
O novo caminho exige de modo absoluto ser descoberto, atormentando a
humanidade até ser achado.
O caminho por descobrir é como algo psiquicamente vivo, que a filosofia
clássica chinesa denomina ‘Tao’, e comparando-o a um curso de água que se
movimento inexoravelmente para a meta final. Estar dentro do Tao significa
perfeição, totalidade, desígnio cumprido, começo e fim, e a realização
completa do sentido inato da existência. Personalidade é Tao (JUNG, 2013b, §
323).
Existe um centro que não pode ser subordinado e que está acima do eu, a
este centro Jung chamou de “Si-mesmo”(selbst).
Experimentar e vivenciar esse si-mesmo é a meta mais nobre da ioga indiana.
Por este motivo, será bom para a piscologia do si-mesmo que nos
familiarizemos com os tesouros do saber indiano. Tanto aqui como na Índia, a
experiência do si-mesmo nada tem a ver com intelectualismo, mas é uma
experiência vital e profundamente transformadora. O processo que conduz a
ela foi por mim denominado de processo de individuação (JUNG, 2013b, §
219)
50
Jung recomenda o estudo da Ioga clássica:
Não é porque pertença àqueles tipos de pessoas que reviram os olhos em
êxtase quando ouvem falar palavras mágicas como dhyana, budhi e mukti,
mas porque psicologicamente podemos aprender muito com ela (JUNG,
2013c, § 219).
Ele sugere que busquemos informações nas traduções dos livros orientais e
refere-se à Alquimia como o único conhecimento que guarda algo em comum com a
Ioga.
A Alquimia designa aquilo que eu chamo de Si-mesmo, como incorruptibile,
isto é, a substância que já não pode ser mais decomposta, como o uno e o
simples, que já não pode ser reduzido a outra coisa, e ao mesmo tempo como
universal, a que um alquimista do século XVI até deu o nome de Filius
Macrocosmi (JUNG, 2013c, § 220).
Seguindo o caminho da evolução natural com persistência e coerência é que
chegamos à experiência do Si-mesmo e do simples “ser como se é” (Sosein). Jung se
refere à Paracelso: “Alterius non sit, qui suus esse potest (não pertença a outrem quem
pode pertencer-se a si próprio). Mas o caminho que leva até aí é penoso, e nem todos
pode trilhá-lo” (JUNG, 2013c, § 221).
(...) vamos perceber a ação de uma espécie de tendência reguladora ou
direcional oculta, gerando um processo lento e imperceptível de
crescimento psíquico – o processo de individuação. Surge, gradualmente,
uma personalidade mais ampla e amadurecida que, aos poucos, torna-se
mais efetiva e perceptível mesmo a outras pessoas (JUNG, 1964, p. 161).
Para Jung, o homem prossegue naturalmente em direção ao seu caminho de
desenvolvimento, onde ele realiza sua personalidade. Ele reforça: “(...) este
processo ocorre no homem de maneira espontânea e inconsciente; é um processo
através do qual subsiste a sua maneira humana inata” (JUNG, 1964, p. 162).
Entretanto, Jung lembra que o processo só é real se o indivíduo estiver
consciente dele, ou seja, se estiver conectado a este movimento. É como se uma
força o impulsionasse para isto.
51
Ele detalha:
O processo de individuação é, na verdade, mais que um simples acordo
entre a semente inata da totalidade e as circunstâncias externas que
constituem o seu destino. Sua experiência subjetiva sugere a intervenção
ativa e criadora de alguma força suprapessoal. Por vezes, sentimos que o
inconsciente nos está guiando de acordo com um desígnio secreto (JUNG,
1964, p. 162)
É necessário que o ego entre em contato com uma dimensão mais
profunda e se entregue ao impulso interior de desenvolvimento, como esclarece
Jung:
O aspecto ativo e criador do núcleo psíquico só pode entrar em ação quando
o ego se desembaraça de todo projeto determinado e ambicioso em
benefício de uma forma de existência mais profunda, fundamental. O ego
deve ser capaz de ouvir atentamente e de entregar-se, sem qualquer outro
propósito ou objetivo, ao impulso interior de crescimento (JUNG, 1964, p.
162)
Jung explica que existem povos que encontram menos dificuldade em
compreender que é necessário renunciar à atitude utilitarista de planejamentos
conscientes para poder dar lugar a um crescimento interior da nossa personalidade
(JUNG, 1964, p. 163).
Para realizar o processo de individuação, é preciso nos submetermos,
conscientemente, ao poder do inconsciente, em lugar de pensarmos em que
devemos fazer ou o que se considera ou o que se faz habitualmente etc. É
preciso apenas ouvir para poder compreender o que a totalidade interior – o
self – quer que façamos, aqui e agora em uma determinada situação.
(JUNG, 1964, p. 163)
É preciso uma atitude de entrega ao impulso dominador do Self:
Devemos nos entregar a este impulso quase imperceptível e, no entanto,
poderosamente dominador – um impulso que vem do nosso anseio por uma
autorrealização criadora e única. É um processo no qual é necessário,
repetidamente, buscar e encontrar algo ainda não conhecido por ninguém.
Os sinais orientadores ou impulsos vêm não do ego, mas da totalidade da
psique: o self. (JUNG, 1964, p. 163).
52
O taoismo propõe esta atitude na medida em que prioriza uma atitude da
ação pela não-ação (wu-wei); o deixar fluir, permitir que a vida siga seu próprio curso
como um rio flui naturalmente para o mar, contornando os obstáculos, sem se opor a
eles e aceitando as mudanças:
(...) o homem se apega às coisas na vã esperança de que elas possam
permanecer imóveis é perfeitas; ele não se reconcilia com o fato da
mudança; ele não deixa o Tao seguir o seu curso. Assim, Lao Tsu, e seu
grande expoente, Chuang Tzu, ensinaram que a mais elevada forma do
homem é a do que se adapta e mantém o passo com o movimento do Tao
(...) (WATTS, 1995, p. 43).
É preciso aceitação das mudanças para viver o Tao:
Se for perguntado a um mestre zen “o que é o Tao”, ele responderá
imediatamente: “Caminhe!”, pois só podemos compreender a vida quando
mantemos o nosso passo com ela, através de uma completa afirmação e
aceitação das suas infindáveis mudanças e de suas mágicas transformações.
(WATTS, 1995, p. 60)
Watts continua:
(...) a ideia geral que está por trás do Tao é a de crescimento e de
movimento; é o curso da natureza, o princípio governante e causador da
mudança, o perpétuo movimento da vida que nunca permanece imóvel por
um momento. Para o taoismo, tudo o que está absolutamente tranquilo ou
absolutamente perfeito está completamente morto, pois o que não tem mais
a possibilidade de crescimento e de mudança não pode ser o Tao (WATTS,
1995, p. 43)
Na concepção oriental, da mesma forma que ninguém pode possuir a vida,
nenhuma ideia é capaz de defini-la. A ideia de posse é ilusória, pois todas as coisas
eventualmente passarão para outra forma e nunca vão permanecer no mesmo lugar
por toda a eternidade. Na raiz de posse está o desejo de que elas não se alterem, e isso
é impossível.
Se a vida nunca pode ser capturada, como poderá ser compreendida? O Zen
responderia: poderia ser compreendida não tentando captá-la ou defini-la, e
esse é o ideal budista fundamental do desapego, ou o ideal taoista do wu-
wei (WATTS, 1985, p. 69)
53
Watts fundamenta: “O budismo e o taoismo vão mais além, dizendo que
nada poderá ser possuído; e declaram que aqueles que tentam possuir estão sendo
possuídos, pois são escravos de suas próprias ilusões acerca da vida”. (WATT, 1985,
p. 69). O desapego do budismo e do taoismo significa o não fugir da vida, mas correr
junto com ela, pois a liberdade vem através da completa aceitação da realidade.
E aceitar a realidade é não lutar contra, não resistir às mudanças, mas
simplesmente seguir com a vida da forma que ela se apresenta. O desapego é um dos
pilares do pensamento oriental. “Os que desejam manter suas ilusões não se movem;
os que têm medo delas correm para trás caindo em ilusões maiores ainda; enquanto
os que a conquistam caminham para frente” (WATTS, 1985, p. 70).
Da mesma forma, no processo de individuação é essencial essa atitude de
entrega diante do impulso dominador do self.
O verdadeiro processo de individuação – isto é, a harmonização do
consciente com o nosso próprio centro interior (o núcleo psíquico) ou self –
em geral começa infligindo uma lesão à personalidade, acompanhada do
consequente sofrimento (JUNG, 1964, p. 166).
Desenvolver-se e individuar-se são processos dolorosos, não são tarefas
fáceis. É preciso o confronto consigo mesmo, com a própria essência, com as
qualidades e os defeitos, as falhas, as dificuldades. É preciso encarar as próprias
fragilidades para alcançar uma consciência mais elevada.
Desenvolver a personalidade não é tarefa das mais simples. Pelo contrário,
exige escolhas e renúncias, além da atitude de entrega e aceitação. A necessidade é
vital: “O desenvolvimento da personalidade não obedece a nenhum desejo, a
nenhuma ordem, a nenhuma consideração, mas somente à necessidade: ela precisa
ser motivada pela coação de acontecimentos internos e externos” (JUNG, 2013b, §
293).
Entretanto, o indivíduo também participa ativamente do processo: Jung
reforça: “A força para o desenvolvimento da personalidade não provém apenas da
necessidade, que é o motivo causador, mas também da decisão consciente e moral”
(JUNG, 2013b, § 296)
54
A individuação é o “tornar-se um” consigo mesmo, e ao mesmo tempo com
a humanidade toda, em que também nos incluímos.
Estando assim assegurada a existência individual de cada um, logicamente
também se garante que o conjunto dos indivíduos no Estado, ainda que este se
revista de uma autoridade maior, não mais continua uma massa anônima, mas
uma comunidade consciente (JUNG, 2013c, § 227).
Entretanto, há uma condição para isso: uma escolha consciente e livre, a
decisão individual. “Uma verdadeira comunidade não pode existir sem esta liberdade e
independência de cada um, e sem uma comunidade assim, o próprio indivíduo que se
fundamenta em si mesmo e é independente, não pode progredir por muito tempo”
(JUNG, 2013c, § 227).
A individuação, portanto, não pode ser confundida com a tomada de
consciência do eu, identificando-se este último com o si-mesmo. “A individuação não
passaria então de egocentrismo e auto-erotismo. O si-mesmo compreende infinitamente
mais do que um simples eu. A individuação não exclui o universo, ela o inclui” (JUNG,
1994, p. 355).
O indivíduo que vai se constituindo através do processo de individuação
não é um ser isolado, mas pressupõe um relacionamento coletivo. “O processo de
individuação deve levar a relacionamentos coletivos mais amplos e mais intensos e não
a um isolamento” (JUNG, 2011a, § 758). Carlos Bernardi (2003) ratifica a importância
do outro no processo de individuação e se refere a uma ética:
Ao invés de sugar a libido das imagens do inconsciente para o
engrandecimento do eu, tal qual um vampiro, a ética do processo de
individuação me diz, ao contrário, para doar meu sangue pacificamente
ofertando-me ao vizinho. Por isso, mudarei levemente a dicção do nosso
conceito central e passarei a pronunciar processo de individoação
(BERNARDI, 2003, p. 5)
Apesar de a individuação exigir solidão e renúncias, ela não exclui a relação
com o outro. Bernardi sugere:
Deixemos de pensar o processo de individoação como o movimento em
direção à totalidade, mas vamos pensá-lo como um movimento em direção
ao infinito, o reconhecimento da existência de um Outro que revela a sua
face. Ao eu cabe a tarefa enorme de dizer ao outro: aqui estou, colocando-me
à disposição de ouvir seu discurso (BERNARDI, 2003, p. 5)
55
Deve existir uma ética no processo de individuação de cada indivíduo e que
perpassa as relações com o outro. “(...) somos sempre devorados pelo Outro e nunca
capazes de decifrar seus enigmas” (BERNARDI, 2003, p. 5).
Apesar do mistério e da incapacidade de conhecer o outro, há de se ter ética
e respeito nas relações, começando pela capacidade de acolher o outro e ouvir o que ele
tem a nos dizer. Jung já afirmava que não é possível individua-se sem outros seres
humanos.
Dizer sim à vida, amar o destino, como propõe Nietzche, no processo infinito
de confrontá-lo, sem nenhum ponto de chegada, mas somente ceder ao
desejo de ir ao encontro dos Outros, caracteriza a plenitude de um processo
de individoação que deseja ser pensado como ético (BERNARDI, 2003, p.
7).
A questão da ética, transparência e respeito nas relações também são metas
do taoísmo e estão bem afinadas com o processo de individuação. Entretanto, o
processo deve iniciar com cada indivíduo. Embora pareça algo difícil e inatingível, a
meta do desenvolvimento e da maturação da personalidade individual está ao nosso
alcance. “É um trabalho executado discreto, mas de forma consciente com cada pessoa
em particular” (JUNG, 2013c, § 229).
“Na medida em que estamos convencidos de que o portador de vida é o
indivíduo, se conseguirmos que pelo menos uma única árvore dê frutos, ainda que mil
outras permaneçam estéreis, já teremos prestado um serviço ao sentido da vida” (JUNG,
2013c, § 229). Dessa forma, conceitos taoistas como esvaziar o coração e praticar o
desapego, a fim de se descartar os excessos, tornam-se facilitadores no processo de
maturação da personalidade.
Desapegar-se do que não está em conformidade consigo mesmo faz parte do
processo de individuação. Como afirmou Lao Tse (2011), “transformar a consciência do
ego num tesouro eterno, é preciso desenvolver dentro de si a constância, a sinceridade e
a naturalidade”. Para isso, o conceito de wu wei ou a não-ação é essencial na medida em
que a naturalidade pressupõe a não-ação, o deixar fluir, sem intervenções ou
intromissões.
56
O wu wei deve estar presente no processo de desenvolvimento da
personalidade, na relação com o outro e na vida como um todo. Lao Tse se refere à água
de um rio para explicar este conceito, pois o rio flui naturalmente e contorna os
obstáculos também de forma natural. Cada ser humano possui uma forma de ser, de
expressar seus sentimentos e opiniões, uma forma peculiar de se apresentar ao mundo e
de interagir com o outro.
Se a individuação não exclui o outro, a relação com o outro também deve
passar pelo conceito de wu wei ou não-ação. Seguindo esta mesma linha de raciocínio, o
não-agir também implica deixar o outro ser quem ele é, sem pressões ou exigências para
que ele siga este ou aquele padrão. O padrão deve ser o que for para ele confortável,
natural, espontâneo.
Sem pressões e sem entrar em choque ou conflito com o outro, devemos
deixar que o outro se manifeste na sua essência, e assim, permitir que ele contorne os
obstáculos de forma natural e aprenda sozinho a contorná-los, sem que seja imposta
uma forma determinada para ele ser ou agir. Para o taoismo, o wu wei está presente em
todos os aspectos da vida e na relação com o outro.
Jung afirma que “O processo de individuação é o desabrochar da vida, em
cada indivíduo, na maior plenitude possível, pois o sentido da vida só se cumpre no
indivíduo (...)” (JUNG, 2013c, § 229). Para ele, individuação é um processo através do
qual um ser torna-se um individuo psicológico, isto é, uma unidade autônoma e
indivisível, uma totalidade.
A individuação significa tender a tornar-se um ser realmente individual; na
medida em que entendemos por individualidade a forma de nossa unicidade,
a mais íntima, nossa unicidade última e irrevogável; trata-se da realização do
seu si-mesmo, no que tem de mais pessoal e de mais rebelde a toda
comparação. Poder-se-ia traduzir a palavra individuação por “realização de
si-mesmo”, “realização do si-mesmo. (JUNG, 1994, p. 355).
Assim como o Gnosticismo e depois a Alquimia, o pensamento oriental
adotou um modelo focado na exploração do mundo interior e no treinamento da mente.
“Dessa forma, a psique poderia ser investigada e cultivada. Isso significou o foco na
experiência direta, ao invés do foco no caminho da fé” (CLARKE, 1994, p. 71).
A ponte que liga o taoismo ao processo de individuação é exatamente a
bússola apontada para o interior de si mesmo, na busca da realização de si mesmo, da
plenitude, e de tornar-se aquilo o que se é e ser guiado por si mesmo.
57
Jung lembra:
Individuação significa tornar-se um ser único, na medida em que por
individualidade entendemos nossa singularidade mais íntima, última e
incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio si-
mesmo. Podemos traduzir ‘individuação’ como tornar-se si-mesmo
(Verselbstung) ou o realizar-se do si-mesmo (Selbstverwiklichung) (JUNG,
2015, § 266).
Da mesma forma, “Os exercícios psicológicos e espirituais contidos no
taoismo têm o objetivo de autotransformação através da realização de uma realidade
interior” (CLARKE, 1994, p. 81). Jung sempre esteve preocupado em salientar e
respeitar as diferenças culturais, sociais, geográficas e históricas entre Ocidente e
Oriente, e sempre fez questão de reforçar que o objetivo não é assimilar nem imitar a
cultura alheia.
Entretanto, é importante observar que o Ocidente se concentrou no
progresso material durante séculos e hoje paga um alto preço por isso. De acordo
com a concepção de Jung, é necessário aprendermos com uma postura de vida
diferenciada, guiada pelo mundo interior, onde o foco está dentro de si, e quem sabe,
fazer o caminho de volta, onde mundo interno é respeitado e forças psíquicas são
assimiladas, integradas e direcionadas, propiciando a saúde física, mental e
psicológica.
58
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS:
O atual caos político, econômico, social e por que não dizer psicológico,
enfrentado pelo homem contemporâneo o impulsiona a voltar-se para o interior.
Homem esse que não suporta mais viver num cenário de corrupções, caos político,
injustiças sociais, uma realidade onde o capital e o lucro imperam em detrimento de
vidas humanas, da dignidade e de valores éticos. O mundo está empobrecido de
valores como integridade, verdade, transparência.
Não poderia haver momento histórico mais apropriado para a pesquisa
deste trabalho, onde estabeleço uma ponte entre a energia psíquica e o cultivo de Te
no resgate de valores importantes para o convívio em sociedade como respeito pelo
outro, integridade e ética nas relações.
Ao estabelecer um diálogo entre o Tao chinês e o Self de Jung, o objetivo é
revelar a importância e a urgência de se manter alinhado com o centro organizador
da psique. Em tempos onde não há limites para as artimanhas políticas e sociais,
onde a ganância, a falta de ética e o desrespeito pelo outro viraram a palavra de
ordem de uma sociedade adoecida e que clama por socorro.
Finalmente, associo o taoismo ao processo de individuação na missão árdua
de buscar a realização máxima da personalidade. Empobrecida de valores e
massificada pelo consumismo e pela cultura do espetáculo, a sociedade se vê hoje
num contexto de crise e corrupção política. Estupefata e indignada, ela sobrevive ao
tentar driblar as dificuldades, na esperança de fazer a virada e mudar a História e os
rumos da humanidade.
Já não toleramos mais viver num cenário de injustiças e corrupções,
assistindo ao adoecimento psíquico e social de uma sociedade que mistura ganância,
desequilíbrio, desespero, violência, insensatez, desamparo, solidão e depressão. É
mais que chegada a hora de voltarmos para o interior de nós mesmos e fazermos uma
profunda reflexão.
As grandes transformações iniciam a partir de crises, tanto no âmbito
individual como no coletivo. E para chegar ao coletivo, é preciso que antes a
transformação inicie no indivíduo.
59
REFERÊNCIAS
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60
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Outros
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