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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS
BRUNO MARIANI DE SOUZA AZEVEDO
A APOSTA NO ENCONTRO PARA A PRODUÇÃO DE REDES DE
PRODUÇÃO DE SAÚDE
CAMPINAS
2016
BRUNO MARIANI DE SOUZA AZEVEDO
A APOSTA NO ENCONTRO PARA A PRODUÇÃO DE REDES DE
PRODUÇÃO DE SAÚDE
Tese apresentada à Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos
exigidos para a obtenção do título de Doutor em Saúde Coletiva,
na área de concentração Política, Planejamento e Gestão em
Saúde.
ORIENTADOR: SÉRGIO RESENDE CARVALHO
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO
FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO
ALUNO BRUNO MARIANI DE SOUZA AZEVEDO, E ORIENTADO PELO
PROF. DR. SÉRGIO RESENDE CARVALHO.
CAMPINAS
2016
BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE DOUTORADO
BRUNO MARIANI DE SOUZA AZEVEDO
ORIENTADOR: SÉRGIO RESENDE CARVALHO
MEMBROS:
1. PROF. DR. SÉRGIO RESENDE CARVALHO
2. PROF. DR. RICARDO RODRIGUES TEIXEIRA
3. PROFA. DRA. LIANE BEATRIZ RIGHI
4. PROF. DR. RICARDO SPARAPAN PENA
5. PROF. DR. GUSTAVO TENÓRIO CUNHA
Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências
Médicas da Universidade Estadual de Campinas.
A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca
examinadora encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno.
Data: DATA DA DEFESA 18/02/2016
A Meus Mestres:
O mestre transmite-lhe alguma
sabedoria com qual os anos o brindaram.
Não só isso, o mestre constrói contigo
um conhecimento útil a você. E mais, não
se apega a isso, deixa-o passar por seus
próprios caminhos, não exige filiação,
quer mais é que tenha suas próprias
pernas e suas próprias pérolas de saber.
A meus mestres Avô Souza, A Sérgio.
Teria aqui, um s/cem número de pessoas a que agradecer, que passaram, de
alguma maneira, por essa pesquisa nesses 4 anos, que compuseram a vida vivida de
cada dia e também se tornaram autoras deste trabalho. Definitivamente, esses
parágrafos não são apenas meus…
A Julia, pelos anos de inocente paciência, amor e generosidade. Esse “livro”
também é teu. Papai te agradece muito.
Aos muitos familiares que de alguma maneira apoiaram este trabalho, pais,
avós, tias, tios, irmão, primos e primas.
Aos amigos de muitos anos e os de nem tantos anos assim, fundamentais na
caminhada da vida. Lorena, Mirela, Yuri, Milu, Israel, Claus, Gama, Dé, Ju, Mari, Elton,
Pedro, Ellen, Carina, Rachel, Nilton, Helga, Ana Luiza, Marcinha, Luís, Raphael, Bel,
Thaís, Henrique, Sarah, Fabrício, Cathana, Cecília, Michele, Camila, Fran, Julia,
Núbia, Ludimila, Marie, Mariana, Ari, Ana…
A Débora, pelo carinho, cuidado e amor, a força do Sprint final.
A Felipe e Tania, pela acolhida, carinho e cuidado tão generosos no tempo da
delicadeza.
A Nina, por tantos anos de companheirismo e amor.
Aos Conexões, que aqui passaram e aqui ficaram. Beth, Flávia, Yara, Ricardo
T., Ricardo P., Sabrina, Tadeu, Renato, Bruna, Gustavo N e os vários outros que
passaram mais temporariamente.
Aos professores e professoras e amigos com quem aprendi muito nestes anos
de Saúde Coletiva, Gustavo T., Juliana, Gastão, Rosana, Nelsinho, Solange, Heleno,
Ana, Herling, Silvia, Rita, Everardo, Liane, Emerson, Cecílio…
A Marga por haber hecho lo posible recibiendo un alumno brasileño un poco
loco, el soporte y generosidad. Marta y Marc por la gran compañía y ayuda.
A Marcela, mi hermana. ¡Un amor muy grande por ti cariño! ¡Siempre! Arnau,
mi hermano amigo querido! ¡Gracias a los dos por los grandes momentos en
Barcelona y por haberme presentado lo cuanto la Cataluña es linda! Enamoré de
Cataluña, de Barcelona y de vosotros.
A los amigos de Barcelona que me acompañaran en la locura. Lucía, Inés,
Núria, Alba, Saïda, Maria, Pere, Bea, Sergio, Diana, Giazú, Laura, Neus! ¡Gracias por
lo lindo que fue 2014!
A Du e Ana, diretores, professores, amigos, pelo carinho, cuidado, confiança,
pelos anos de inspiradora parceria criativa!
Aos Insólitos Travessos, Amanda, Gabi, Matheus, Pati, Rodrigo e Valter pelo
intenso e lindo aprender conjunto nos palcos e salas de trabalho da vida.
Aos arakianos, que também passaram e também ficaram! Jeff, Lucas,
Carminha, Rodrigo, Glauco, Zé, Thaisa.
Aos muitos amigos e amigas conhecidos e construídos nos anos de Curso Livre
de Teatro! Grato pela confiança e amizade.
Aos colegas da Política Nacional de Humanização e Ministério da Saúde, que
também inspiraram o começo desse trabalho, em especial Cleusa, Pedro, Stela,
Ricardo, Cecília, Cathana, Tadeu, Laura, Daniel. E os vários parceiros e parceiras dos
trabalhos no território, de apoio.
Aos amigos e amigas de Consultório na Rua. Foi um ano de intenso trabalho e
estreitamento de amizades, conhecimento mútuo e cumplicidade. Alcyone, Carol,
Suzy, Tiago, Tina, Alice, Fran, Magna, Renata, Lívia, Gilson, Fabi, Chay, Flávio,
Impera, Karina, Rachel, Thaís, Felipe. Definitivamente esse doutorado não teria sido
possível sem vocês.
As alunas e alunos que também me inspiraram nesse trabalho ao longo desse
ano.
Aos moradores de rua de Campinas, excluídos dentre os excluídos, que me
incluíram em suas vivências e têm possibilitado experiências incríveis, encontros
potentes e alegres, ainda que que frequentemente com dor e no sofrimento. A máxima
intensidade da vida vivida a cada minuto!
Aos que certamente eu esqueci de citar, mas não menos importantes…
RESUMO
Tese de Doutorado que explora o tema Redes de Saúde. Realiza-se uma revisão das
políticas públicas adotadas no Brasil para a constituição das Redes de Saúde e das
definições adotadas, fazendo-se uma problematização do arcabouço teórico-prático
ali implicado, a partir de experiências relativas à Política Nacional de Humanização e
à uma pesquisa do sistema de saúde catalão. Em seguida faz-se uma abordagem
cartográfica da equipe de Consultório na Rua de Campinas, com diários de campo e
oficinas, sistematizadas em fluxogramas analisadores, como um campo de práticas
que vem inserindo novos modos de fazer clínica e de fazer redes. Por fim, ante essas
experiências discute-se a ideia de redes a partir de teóricos como Spinoza, Deleuze e
Negri, em especial utilizando os conceitos de corpo, noção comum, amor, produção
do comum e rizoma operado por esses autores, propondo as redes-rizomas como
ferramenta metodológica para a construção de redes de produção de saúde.
Metodologicamente, para realizar a escrita exploramos a ideia de Interpolação de
Olhares, a partir de conceitos como cartografia, antropofagia e perspectivismo.
Palavras-chave: Sistemas de Saúde. Saúde Coletiva. População em Situação de Rua.
Filosofia. Pesquisa Qualitativa.
ABSTRACT
Doctoral thesis that explores the theme of Health Networks. We do a review of public
policies adopted in Brazil for the creation of Health Networks and definitions adopted,
making a problematization of theoretical-practical aspects there involved, from
experiences of National Policy of Humanization from Brazil and a research of the
Catalan health system. Then we do a cartographic approach of Street’s Clinic in
Campinas, with workshops and field journals, systematized in flowcharts parsers, as a
field of practice that helps inserting new ways of doing clinical and creates networks.
Finally, revising these experiences we discuss the idea of networks from theorists like
Spinoza, Deleuze and Negri, in particular using the concepts of body, common idea,
love and common production and Rhizome operated by these authors, proposing the
health networks-like rhizomes methodological tool for building networks of health
production. Methodologically, to perform this thesis we explored the idea of
interpolation looks, from concepts such as cartography, Anthropophagy and
perspectivism.
Keywords: Health Systems. Public Health. Homeless Persons. Philosophy. Qualitative
Research.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 Detalhe Park Guell - http://www.aspasios.com/descubre-
barcelona/wp-content/uploads/2015/01/gaudi-architecture.png - Acessado em
25/01/16 .................................................................................................................... 64
Figura 2 Detalhe Casa Batlló - https://images.trvl-
media.com/media/content/shared/images/travelguides/destination/179992/Casa-
Batllo-52406.jpg - Acessado em 25/01/16 ................................................................. 67
Figura 3 Campo no Largo da Catedral - Acervo da Equipe ............................ 87
Figura 4 Campo na Linha do Trem - Acervo da Equipe .................................. 95
Figura 5- Mapa da Rede Construída pelo CnaR para 6 pessoas atendidas. As
setas pretas representam fluxos e relações predominantemente conflituosos. ...... 109
Figura 6 Campo no Largo do Pará - Acervo da Equipe ................................ 110
Figura 7 - Galathea de Esferas (1952), Salvador Dalí -
https://en.wikipedia.org/wiki/File:Galaofspheres.JPG - Acessado em 27/01/16 ...... 123
Figura 8 - Rachael from the Enchanted Forest (2012) - Instalação e fotografia
de Garth Knight -
http://www.garthknight.com/portfolios/2012enchantedforest/05red/08.html - Acessado
em 27/01/16 ............................................................................................................ 143
Figura 9 - Muchacha en la Ventana (1925), Salvador Dalí -
https://www.salvador-
dali.org/media/upload/gif/cache/f0046_noiaalafinestra_1411574278_1024.jpg -
Acessado em 27/01/16 ............................................................................................ 160
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AB – Atenção Básica
CAPS AD – Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas
CAPS III – Centro de Atenção Psicossocial 24 horas
CGR – Colegiado de Gestão Regional
CIR – Comissão Intergestores Regional
CnaR – Consultório na Rua
COAP – Contrato Organizativo de Ação Pública
CS – Centro de Saúde
DR – Doenças Raras
DRS – Departamentos Regionais de Saúde
DST – Doença Sexualmente Transmissível
INAMPS – Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social
NOAS – Norma Operacional da Assistência à Saúde
NOB – Normas Operacionais Básicas
PNDR – Política Nacional de Atenção integral às Pessoas com Doenças Raras
PNH – Política Nacional de Humanização
PNPR – Política Nacional para a População em Situação de Rua
PSR – População em Situação de Rua
PTS – Projeto Terapêutico Singular
RAS – Redes de Atenção à Saúde
SES – Secretaria Estadual de Saúde
SUDS – Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde
SUS – Sistema Único de Saúde
UBS – Unidade Básica de Saúde
SUMÁRIO
PRÓLOGO ...................................................................................................... 14
CAPÍTULO 1 – UM MODO E UM PERCURSO DO PESQUISAR:
Considerações éticas, estéticas e políticas ............................................................... 17
Pesquisa Intervenção, Cartografia e Antropofagia ...................................... 18
As Regras da Prudência ou sobre Ética em investigação ........................... 22
Levantamento Bibliográfico ......................................................................... 26
Diários de Campo........................................................................................ 28
Interpolação de olhares – a escrita como um registrar, intervir e pesquisar 31
As oficinas e o fluxograma analisador ......................................................... 39
CAPÍTULO 2 – REDES EM SAÚDE – A Construção de um Problema .......... 42
CAPÍTULO 3 – UMA REDE EM CONSTRUÇÃO E EM MOVIMENTO: A
Experiência do Consultório na Rua ........................................................................... 74
Mais alguns detalhes dos percursos éticos, estéticos e metodológicos do
pesquisar ............................................................................................................... 82
Caminhando pela rua e pensando a vida .................................................... 86
Considerações Finais ................................................................................ 114
CAPÍTULO 4 – SOBRE NOÇÕES COMUNS E REDES .............................. 119
Spinozando uma ontologia ........................................................................ 120
Corpos ....................................................................................................... 123
Afeto afeta ................................................................................................. 129
Comum? .................................................................................................... 133
Das redes de saúde e da produção de comum ......................................... 137
Tecnologias, necessidades e integralidade ............................................... 139
O Singular e o Coletivo nas Redes ........................................................... 143
A Gestão, o Comum e a Multidão ............................................................. 147
Redes rizomas .......................................................................................... 154
EPÍLOGO ...................................................................................................... 161
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................. 164
ANEXOS ....................................................................................................... 183
ANEXO 1: TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO .... 183
14
PRÓLOGO
No final a gente escreve o começo. Após escrever toda essa tese volto ao
começo dela, não para fazer uma introdução, mas para fazer alerta ou um
manual de uso deste trabalho.
Não me ocupo, aqui, em responder a todas as questões por mim mesmo
abertas ou as que suponho que o leitor levantará. Também não pretendo explicar
todos os conceitos que tangencio, não minuciosamente e, na verdade, às vezes
não gasto nem uma palavra com alguns. Deixo que parte desses conceitos
apenas apareçam, instigam e partam. Conceitos são incríveis constelações e
seria muita pretensão achar-se capaz de descrever a todas as estrelas em
apenas uma tese de doutorado. Várias delas demandariam suas próprias teses.
A escrita aqui tem um papel fundamental. Não é apenas um relato de
pesquisa. Tem sua vida própria, seu ritmo, sua cadência e sua própria
investigação. Não me pretendo literato (e nem filósofo, há que se dizer), mas
também não tenho pudor em galantear essas linguagens, pensamentos,
inspirações, ideias.
Cada capítulo tem sua vida própria, mas dialogam entre si
constantemente. Se estiver muito apressado na leitura ou no entendimento de
um ou outro conceito ou expressão, alguns deles tem hiperlinks (benefício de
quem está lendo a versão virtual) para te fazer avançar no texto (ou até
retroceder caso já tenha se esquecido de algo). Pode se perder. Por sua conta
e risco.
Falando nisso, faça a leitura com calma, talvez a suposta ausência que
se anuncia em um parágrafo esteja explicada alguns tantos à frente. Talvez não,
mas não feche julgamentos a priori.
Aliás, a tese está recheada de vírgulas, de pontos de parada, de
divagações, até mesmo de tentativas minuciosas de explicação que derivam
para outros campos. Não são metáforas! Não são meras ilustrações! Nenhum
julgamento para quem as emprega, mas aqui, não são. São experiências. É a
pesquisa sendo vivida e a vida vivida sendo pesquisada. Uma pornográfica
transposição, permuta, entre os diversos aspectos da existência de um
pesquisador, supostamente separados.
15
Os capítulos não começam nem terminam, vão pelo meio. Talvez com
alguma delicadeza de transição para não impactar muito ao leitor. Ainda assim,
eventualmente haja uma sensação de “opa, será que perdi um parágrafo inicial”
ou “acabou aqui? Comi uma página? ” Desculpa, eu mesmo não controlo bem
esse texto. Ele começa e termina quando quer, mas sempre no meio.
São quatro. Os capítulos. Encerrando-se com um Epílogo. Cada qual com
sua temporalidade, seu tema, seu tempo de escrita. Poderia dizer que alguns
chegam a ser bem datados. Outros totalmente atravessados pelos 2 anos de
mestrado e 4 de doutorado. Este é o caso do primeiro e do quarto, reflexo de
construções teóricas, metodológicas e filosóficas de todo esse tempo, a cada
momento marcadas, inflexionadas, agenciadas e modificadas… certamente, se
meu ponto final fosse daqui um ano, ainda teria o que falar nesses capítulos e
certamente seriam bem diferentes.
Começamos falando do caminho do pesquisar, das explorações
metodológicas. Uma escolha estratégica, pois talvez, só talvez, auxilie ao leitor
a cumprir o restante de sua função.
O segundo capítulo, o datado, traz revisões sobre nosso tema Redes de
Saúde, expressões governamentais e de experiências do pesquisador no
governo, cruzadas com experiências do pesquisador no próprio pesquisar.
O terceiro capítulo é aquele que não acaba. Tem mais e mais a ser dito,
poderia ele mesmo ser uma tese inteira e, no final, suas produções acabam
atravessando essa aqui mesma, por completo. É a rua. Eu sempre disse que
temos que sujar os sapatos de lama para viver, para aprender… pois aqui a lama
vem como todo o seu poder e deixa máculas em todas as suas roupas, mesmo
naquelas que você ainda não comprou! O trabalho com o Consultório na Rua, o
trabalho com a População em Situação de Rua, com as pessoas, é um trabalho
cheio de carinho, tensão, emoção. Um trabalho que inevitavelmente te arrebata
para dentro e modifica seu olhar sobre tudo, o mundo, as pessoas, os serviços,
as maneiras de fazer clínica, de cuidar, de produzir o mundo. Qualquer desenho
feito sobre esse trabalho é apenas uma foto, absolutamente temporária e que
encaixa como uma luva nessa maneira de proceder pesquisa, gestão, vida, que
venho propondo, tentando, experimentando…
16
Por fim, o quarto capítulo, segue como uma provocação. Alimentado pelo
terceiro, mas absolutamente transversal a todo meu percurso como investigador.
Um capítulo marcado pelos amores na vida, pelas questões que me produzem
inquietação e potência. As relações, a produção de saúde, de vida, os amores,
o comum. A produção de outros possíveis, mais ou menos novos, mas possíveis.
Talvez apenas pequenas gotas, mas que me parecem de profunda capacidade
interventiva nas pessoas, nos modos elas se relacionam, na organização de
serviços e sistema de saúde, na organização da sociedade. No fim… tudo isso
fala da mesma coisa.
17
CAPÍTULO 1 – UM MODO E UM PERCURSO DO
PESQUISAR: Considerações éticas, estéticas e políticas
De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para se continuar a olhar ou a refletir (1)
Não lembro de nenhuma reportagem que não tivesse me dado medo. Sinto medo até hoje. Medo de não dar certo, medo de não ver nada, medo de não conseguir, medo. Tenho insônia e, quando durmo, pesadelos. Antes, durante, depois. (...) Medo é necessário, faz sentido. Só não dá para ter medo de ter medo, paralisar e deixar as histórias passarem sem encontrar quem as conte. Ficar escondido atrás de um computador, achando que o fato de escolher em que mundo virtual entrar, quando sair, quais e-mails responder e quais deletar é ter a vida sob controle configura, talvez, a grande ilusão contemporânea. Por mais que você escolha não viver, a vida te agarra em alguma esquina. O melhor é logo se lambuzar nela, enfiar o pé na jaca, enlamear os sapatos. Se quiser um conselho, vá. Vá com medo, apesar do medo. Se atire. Se quiser outro, não há como viver sem pecado. Então, faça um favor a si mesmo: peque sempre pelo excesso. (2)
Essa tese trabalha na perspectiva de uma atividade investigativa que
reconhece o contexto situacional, a localização e a implicação do observador, de
tal forma que lançará mão de um conjunto de práticas para dar visibilidade às
suas questões transformando a realidade na investigação. Iniciamos então com
um caráter desarticulador do próprio campo científico ao reconhecer a reversão
do esquema “conhecer para transformar” em um “transformar para conhecer” (3).
Entendemos que a presença do pesquisador no campo a ser pesquisado
já, por si só, produz interferências nos processos como um agente externo que
trará outras ideias e forças para os diagramas já ali instaurados. Além disso, o
pesquisador não se esquivará de opinar e intervir na medida que julgar
necessário. A coletividade do processo, seja na construção de uma
horizontalidade de participação dos outros envolvidos na pesquisa, seja no
18
compartilhamento e discussão do produzido com o grupo de pesquisa, apoia a
formulação crítica da pesquisa e a análise das implicações do pesquisador.
De modo que, incorporados do desejo-composição, nos propomos a
experimentar a produção coletiva de forma bastante intensiva, um modo de fazer
que não só nos arranca do velejar solitário como também nos conecta com
outras questões, redirecionando problemas e colocando os tais corpos-
pesquisadores-jangadas num barco comum. Munidos de certo querer criar nos
deslocamos dos problemas únicos tangenciando problemas em comum (4).
Pesquisa Intervenção, Cartografia e Antropofagia
Como intervenção estamos nos vinculando a uma ideia de “interpor-se”,
de “vir entre”. Falamos também de uma “intervenção como um caminhar mútuo
por processos mutantes” (5). Tal caminhar, com um olhar para a processualidade
permite perceber conflitos, divergências, ações que produzem diferenças, certa
produção de sentidos junto ao grupo pesquisado (3).
Trabalhamos com uma noção de produção de subjetividade/sujeito em
que o sujeito seria uma “forma que dá passagem” a linhas de força/poder e de
produção de subjetividades que nos atravessam. Uma noção que nega o caráter
essencialista do sujeito afirmando, antes e principalmente, o processo dinâmico,
mutante, acontecimental e provisório que o constitui. Somos vários “sujeitos” e,
ao mesmo tempo, estamos deixando de ser aquilo que somos. Somos, portanto,
um “efeito de um entre”. Somos aquilo que se produz a partir de nossos
encontros com as coisas (homens e não homens).
Abordaremos isso em momento apropriado, agora fiquemos com essa
ideia de que os sujeitos são, portanto, implicados (6) e, através de nossa lente,
uma implicação que é profunda e mutante à medida que afirma que nos
encontros cotidianos intervimos sobre o mundo (cuidamos dos outros),
intervindo/cuidando de nós mesmos (7). Para o processo de investigação isso
tem uma consequência importante, pois evidencia a inseparabilidade entre
sujeito e objeto de pesquisa, que se engendram no ato de pesquisar, em um
processo de invenção de si e do mundo.
19
A ação crítica e implicativa da pesquisa-intervenção produz, em potência,
desnaturalizações das práticas instituídas. Coloca-se em análise as práticas
cotidianas, as relações, produzindo desterritorialização e permitindo a criação de
novas práticas (3).
Entendemos, como Paulon (5) a partir de Nietzsche, que o acontecimento
implica sempre uma nova interpretação, um redirecionamento das questões
anteriores ao acontecimento. Interessa-nos essa espontaneidade rebelde, que
produz diferença, podendo colocar em questão inclusive a própria pesquisa. E é
aí que a pesquisa-intervenção interessa à Saúde Coletiva, pois, para operar no
plano dos acontecimentos, a pesquisa deve guardar a possibilidade do
ineditismo da experiência humana, valorizando as multiplicidades e diversidades
existenciais.
A análise é feita pelo analisador, ou seja, por aquilo que permite revelar a
estrutura da instituição, forçando-a a falar (8): “o analisador deve substituir o
analista” (6). Assim, a pesquisa-intervenção trabalha no sentido de produzir ou
identificar possíveis analisadores (9) para que a intervenção se dê.
Na pesquisa-intervenção, a relação pesquisador/objeto pesquisado é dinâmica e determinará os próprios caminhos da pesquisa, sendo uma produção do grupo envolvido. Pesquisa é, assim, ação, construção, transformação coletiva, análise das forças sócio-históricas e políticas que atuam nas situações e das próprias implicações, inclusive dos referenciais de análise. É um modo de intervenção, na medida em que recorta o cotidiano em suas tarefas, em sua funcionalidade, em sua pragmática – variáveis imprescindíveis à manutenção do campo de trabalho que se configura como eficiente e produtivo no paradigma do mundo moderno (10).
Assim, interessará à pesquisa-intervenção os movimentos e mudanças, o
acompanhamento de tal processo de diferenciação (11). Isso nos conduz às três
inversões no modo de se fazer pesquisa. Então, será necessário orientar-se pelo
próprio modo de se fazer pesquisa, o que nos leva a direcionar a pesquisa mais
para um fazer-saber do que um saber-fazer (12,13).
Contra o mundo reversível e as ideias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas (14).
Voltamos à ideia de que pesquisar é intervir, de forma que produzir
conhecimento é, indissociavelmente, também transformar a realidade e a nós
mesmo. Assim, a intervenção em saúde terá sempre um caráter clínico-político.
20
E é isso o que interessa à cartografia, as relações de força e as forças liberadas
nessas relações, o que se produz a partir delas. Para isso o pesquisador, em
construção, também deve estar permissivo ao atravessamento pelo próprio
processo de pesquisar e de cuidar, dando condições de visibilidade e dizibilidade
ao que se passa individual e coletivamente nos processos de produção de
saúde, de cuidado e de vida (12).
Espera-se do cartógrafo que ele dê passagem aos afetos1, mergulhado
às intensidades de seu tempo, devorando qualquer linguagem que o encontre
para a composição de cartografias (15).
O cartógrafo é um verdadeiro antropófago: vive de expropriar, se apropriar, devorar e desovar, transvalorado. Está sempre buscando elementos/alimentos para compor suas cartografias. Este é o critério de suas escolhas: descobrir que matérias de expressão, misturadas a quais outras, que composições de linguagem favorecem a passagem das intensidades que percorrem seu corpo no encontro com os corpos que pretende entender. Aliás, "entender", para o cartógrafo, não tem nada a ver com explicar e muito menos com revelar (…) e o que ele quer é mergulhar na geografia dos afetos e, ao mesmo tempo, inventar pontes para fazer sua travessia: pontes de linguagem (15).
Sobre o “entender”: não existe teoria físico-matemática que lhe explique
o momento exato de furar ou de pegar uma onda. Também não existe explicação
físico-química que dê conta de explicar totalmente como você se apaixona por
estas ou por aquelas pessoas. O entendimento das relações não passa por
grandes teorias explicativas, passa pela experimentação do que pode um (e
cada um) corpo.
O antropófago, índio tupi, é aquele que se alimenta do guerreiro vencido,
mas não qualquer guerreiro, apenas os mais fortes e valorosos. Uma seleção
pela alteridade, uma ideia da decomposição de outro corpo para compor o seu
próprio ainda mais poderoso, com mais potência vital. A orgia alimentar
antropofágica deleita-se de quaisquer ingredientes, mas não sem um critério
ético imprescindível, apenas são aceitos aqueles que trazem inquietantes ideias
revigoradoras da mente. Não é nem adotar um padrão como certo, nem o negar,
1 “por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções” (37). Nesse sentido spinozano, não há como o cartógrafo nem qualquer outro ser vivo não dar passagem aos afetos.
21
“apenas” desloca-lo, mudar de centro. Nos jogos teatrais de improvisação ou na
composição de cenas, sob certas perspectivas, não falamos em certo ou errado,
buscamos aquilo que funciona ou não como linguagem teatral e na relação com
o público, mil maneiras poderiam ser compostas de modo a funcionar. Essa é a
seleção do antropófago, vai para a mesa, sem conotação identitária ou hierarquia
de valor, qualquer coisa que funcione, que permita passar intensidades e
produzir sentidos (16).
Visibiliza-se outro movimento antropofágico caro à cartografia, e à
investigação, que o toma como modo de operar. Não existe uma verdade a ser
significada, explicada ou interpretada, mas sim mapas de sentido a serem
traçados e construídos com o território, com o campo de pesquisa (16). Quando
tomamos a construção de redes (da maneira como a hipotetisamos) e os campos
com os quais vamos trabalhar (como o Consultório na Rua, as ruas) essas duas
operações antropofágicas interessam-nos sobremaneira já que tomam como
linha de frente a afirmação da vida, em maiores ou menores graus (mesmo até
sua quase negação), movidas por diferentes vetores de força, atualizando
diferentes estratégias do desejo (16).
O trabalho e a pesquisa da construção de rede e cuidado na rua, como
veremos, demanda não temer contaminar-se, demanda enxergar e querer a
singularidade do outro (16). A produção afetiva, de boas relações, é
determinante para o que aqui queremos afirmar e é uma das pistas para a
construção dessas redes que as ruas apontam. É necessário ter um corpo para
ir a campo, um corpo capaz de vibrar às conexões, aos inusitados afetos
provocados, capaz de querê-los, enxerga-los e devorá-los, recriando a si mesmo
(16).
O cartógrafo, como antropófago, está em campo aberto às múltiplas
conexões, na emergência e contato entre os mundos agenciados. “Só me
interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago” (14). Guiado por
alianças e contatos rizomáticos, por uma mestiçagem, não teme perder a si,
resguardado pelos princípios éticos de seleção e pela regra de prudência.
“O desafio de uma subjetividade antropofágica é o de se lançar sempre em busca de novos encontros, novas experiências que possam potencializar modos de vida ainda não codificados em extratos dominantes das culturas” (17).
22
No contexto do capitalismo, a aquisição de conhecimento e a formação
permanente aparecem como obrigação de cada um e conduzem à produção de
uma subjetividade e um modo de vida que se encaixa bem na estrutura do
mercado globalizado, uma prática antropofágica narcísica, que esvazia a
singularidade de quem é devorado, instrumentalizando-o a serviço de interesses
particulares (16). Ao tensionar essas práticas, em uma reengenharia dos modos
de produção de conhecimento, conferem-se, em potência, resistência aos
modelos de “produtividade”. Tal reversão política tensiona os limites de
pesquisas, práticas e políticas públicas atuais a uma mudança paradigmática
radical, pois se subjetividade é coletiva e cria territórios de vida, a maneira como
se expressam nossas relações, neste caso o modo de produção de pesquisas,
pode modificar radicalmente nossas redes de vida e trabalho (4).
O problema do antropófago, é o problema da composição. Eis então, que
o encontro passa, nesse caso, a ser também imperativo da pesquisa, com intuito
de experimentar outras formas de se produzir saberes. A nossa questão, passa
a encontrar e ativar uma zona de trocas que torne possível, de acordo com e em
diferentes contextos, outros modos de trabalho (4). Falamos aqui de práticas que
possam inserir barricadas no tempo, invadir espaços, e ocupar um espaço-tempo
intensivo do acontecimento, fazendo as intensidades afetivas atravessarem a
instituição, pegá-la no contrapé (18), como, por exemplo, fazer oficinas para
discussão dos processos de trabalho, fazendo parte da pesquisa, dentro do
próprio processo de trabalho da equipe, atuando como provocação às práticas
cristalizadas, colocando em questão modos de fazer e trazendo outras
possibilidades de atuação.
As Regras da Prudência ou sobre Ética em investigação
Rolnik (15) sintetiza bem a ética e o cuidado que devem ser adotados ao
orientar-se na cartografia como um modo de fazer pesquisa (e porque não, dizer,
que de uma ética de qualquer pesquisa?). Primeiro ter como critério “o grau de
abertura para a vida que cada um se permite a cada momento” (p.68), tendo
assim, um princípio extramoral, a expansão da vida como parâmetro básico e
23
exclusivo do processo de pesquisa. De forma que situações e ações que
produzam decomposição, afetos de morte, precisam ser revistas e
redirecionadas. O que coloca uma regra fundamental: tem que se estar atento
ao “limite do quanto se suporta, a cada momento, a intimidade com o finito
ilimitado” (p.68), com a desterritorialização, com a intervenção. Há
Um limite de tolerância para a desorientação e a reorientação dos afetos, um ‘limiar de desterritorialização’. Ele [o cartógrafo] sempre avalia o quanto as defesas que estão sendo usadas servem ou não para proteger a vida. Poderíamos chamar esse seu instrumento de avaliação de ‘limiar de desencantamento possível’, na medida em que, afinal, trata-se, aqui, de avaliar o quanto se suporta, em cada situação, o desencantamento das máscaras que estão nos constituindo, sua perda de sentido, nossa desilusão. (...) A regra do cartógrafo, então, é muito simples: é só nunca esquecer de considerar esse ‘limiar’. Regra de prudência (15).
Regra ética essencial para os procedimentos de investigação e que, por
isso, merece algumas linhas a mais.
Era uma vez certo casal de irmãos. Orgulho dos pais e da cidade onde moravam. Sim, aprontavam lá suas molequices, para as quais todos faziam vistas grossas, afinal eram bons alunos, conseguiam boas notas. Estavam presentes nas mais diversas atividades, das esportivas às culturais, das beneficentes às festivas. Mas eles tinham um hábito, um hobby, um gosto, muito peculiar... criavam aranhas caranguejeiras! A maior parte das pessoas mal se atrevia a olhar para os terrários onde elas ficavam, quanto mais se aproximar ou alimentá-las. Certa vez, ele foi para uma cidade no interior do Amazonas desenvolver um projeto relativo à saúde. Era sua primeira vez na grande selva e o espanto que toda aquela vida lhe causou não foi pequeno. Inúmeros insetos incomuns ao seu habitual olhar atento. Inúmeras aranhas, seja na zona urbana, seja na mata. Inofensivas ou perigosas, pequenas ou grandes. E, finalmente, o encontro com uma caranguejeira! Um espécime bonito! Não se conteve! Seria o presente perfeito para sua irmã! Com muita habilidade capturou-a, ainda era pequena. Com uma garrafa de plástico fez uma pequena acomodação para transporta-la. Sim, ele a trouxe para casa e deu, para enorme felicidade de ambos, para a irmã. A amazônica aranha logo dominou o terrário em que foi colocada, matou as outras duas que já viviam ali calmamente. Seu apetite era voraz! Uma barata, dada às outras aranhas, passeava por um bom tempo pelo terrário antes de virar alimento para um dia inteiro. Para esta, uma barata não bastava, eram necessárias duas no dia, que tinham mortes rápidas sob sua voracidade. Uma aranha forte, com certos tons de agressividade, construiu uma densa teia por todo o seu espaço. E cresceu. Essas aranhas podem crescer muito! Bem, a menina, mais nova, talvez ainda não entendesse muito sobre a biologia
24
desses aracnídeos, ou talvez apenas fosse tomada pelo afobamento próprio de sua jovialidade. Espantava-lhe e alegrava-lhe o crescimento de seu animal. Um dia, surpreendeu-se ao acordar e ver que sua aranha tinha feito uma muda. O velho e já pequeno exoesqueleto estava descartado em um canto do terrário. Mais do que rapidamente a voluntariosa menina providenciou um terrário maior. Sem teia, sem exoesqueleto, sem território, a aranha morreu em meio à confecção de seu novo habitat... exaurida no esforço2 (19).
Assim, Deleuze e Guattari, ao falar sobre a composição de um corpo-sem-
órgãos3 (CsO) e a necessidade de prudência, afirmam:
É necessário guardar o suficiente do organismo para que ele se recomponha a cada aurora; pequenas provisões de significância e de interpretação, é também necessário conservar, inclusive para opô-las a seu próprio sistema, quando as circunstâncias o exigem, quando as coisas, as pessoas, inclusive as situações nos obrigam; e pequenas rações de subjetividade, é preciso conservar suficientemente para poder responder à realidade dominante. Imitem os estratos. Não se atinge o CsO e seu plano de consistência desestratificando grosseiramente. Por isto encontrava-se desde o início o paradoxo destes corpos lúgubres e esvaziados: eles haviam se esvaziado de seus órgãos ao invés de buscar os pontos nos quais podiam paciente e momentaneamente desfazer esta organização dos órgãos que se chama organismo. Havia mesmo várias maneiras de perder seu CsO, seja por não se chegar a produzi-lo, seja produzindo-o mais ou menos, mas nada se produzindo sobre ele e as intensidades não passando ou se bloqueando. Isso porque o CsO não pára de oscilar entre as superfícies que o estratificam e o plano que o libera. Liberem-no com um gesto demasiado violento, façam saltar os estratos sem prudência e vocês mesmos se matarão, encravados num buraco negro, ou mesmo envolvidos numa catástrofe, ao invés de traçar o plano. O pior não é permanecer estratificado — organizado, significado, sujeitado — mas precipitar os estratos numa queda suicida ou demente, que os faz recair sobre nós, mais pesados do que nunca (20).
2 Ficcional, baseado em fatos reais. 3 “Eis então o que seria necessário fazer [um CsO]: instalar-se sobre um estrato, experimentar
as oportunidades que ele nos oferece, buscar aí um lugar favorável, eventuais movimentos de desterritorialização, linhas de fuga possíveis, vivenciá-las, assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar segmento por segmento dos contínuos de intensidades, ter sempre um pequeno pedaço de uma nova terra. É seguindo uma relação meticulosa com os estratos que se consegue liberar as linhas de fuga, fazer passar e fugir os fluxos conjugados, desprender intensidades contínuas para um CsO. Conectar, conjugar, continuar: todo um "diagrama" contra os programas ainda significantes e subjetivos. Estamos numa formação social; ver primeiramente como ela é estratificada para nós, em nós, no lugar onde estamos; ir dos estratos ao agenciamento mais profundo em que estamos envolvidos; fazer com que o agenciamento oscile delicadamente, fazê-lo passar do lado do plano de consistência. É somente aí que o CsO se revela pelo que ele é, conexão de desejos, conjunção de fluxos, continuum de intensidades" (20).
25
O Corpo-sem-Órgãos é um bom conceito-dispositivo para se discutir
pesquisa, clínica e construção de redes, poderia ter sido uma de nossas
escolhas conceituais. Está em nossa constelação de conceitos, ainda que não
seja central. De toda forma, vale notar que é disso que se trata: conectar,
conjugar, continuar, produzir fluxos, produzir um diagrama, significantes e
significados. Para a clínica, é refazer uma clínica, um passo para a Grande
Saúde (21). Para a pesquisa é conectar múltiplos elementos, não buscando
desvendar uma verdade primeira, mas fazendo ver múltiplas perspectivas sobre
o problema de manter-se na existência e todos os outros relacionados a esse.
Em todos esses âmbitos, também é um cuidar de si.
A questão da prudência é um cuidado primeiro da pesquisa-intervenção,
de uma cartografia. Há de se fazer uma permanente análise de qual o nível de
questionamento, problematização, enfim, até onde é possível intervir
provocando deslocamentos e desterritorialização. O que importa é, antes de
tudo, uma afirmação da vida, portanto, não nos interessam movimentos bruscos
que provoquem destruição dos parceiros de pesquisa (e de suas relações) que
já habitam aquele território investigativo.
Ao tratar sobre os cuidados éticos de uma pesquisa, Ferigato (22)
relaciona-os diretamente à cartografia ao atentar que ética em pesquisa tem a
ver como modo de produção de conhecimento, entendendo ética como encontrar
o melhor modo de viver e conviver. Assim, a pesquisa também é um cuidado.
Cuidado que também temos que ter com os liames burocráticos e
institucionais. De tal forma que o projeto deste doutorado foi aprovado em todas
as instâncias pertinentes da Secretaria Municipal de Saúde de Campinas, do
Serviço de Saúde Candido Ferreira e da Comissão de Ética em Pesquisa, sendo
aprovado, por esta, sob o parecer 1.028.025.
Tendo todo este arcabouço em consideração, reenfatizando a reversão
metodológica do primado do caminho sobre o das metas (13), a necessidade da
análise coletiva (8) e de metodologias coletivas como favorecedoras de
discussões e produção cooperativa (3) e o caráter antropofágico do cartógrafo
(15), propusemos um desenho, uma estratégia metodológica, para esta pesquisa
que também abre espaço para que ela própria seja colocada em questão.
26
Por fim, há também um posicionamento ético-político a ser tomado pelo
investigador. E sobre isso, Foucault traduz com clareza de que posição falamos:
O que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não se encontra somente nas instâncias superiores da censura, mas que penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade. Os próprios intelectuais fazem parte deste sistema de poder, a ideia de que eles são agentes da "consciência" e do discurso também faz parte desse sistema. O papel do intelectual não é mais o de se colocar "um pouco na frente ou um pouco de lado" para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da "verdade", da "consciência", do discurso. E por isso que a teoria não expressará, não traduzirá, não aplicará uma prática; ela é uma prática. Mas local e regional, como você diz: não totalizadora (23).
Levantamento Bibliográfico
Para construir o processo investigativo lançamos mão de diversas
ferramentas metodológicas. Uma pesquisa bibliográfica inicial ajudou a
aprofundar conceitos e metodologia para ir a campo, o que se expressa neste
material desde o prólogo. Todo o processo investigativo é entremeado por uma
exploração bibliográfica que dialoga com o que a própria pesquisa e vai se
produzindo nessa relação entre pesquisador, parceiros de investigação e o
problema abordado. De forma que referências teóricas surgem do começo ao
final… pautadas numa ideia de caixa de ferramentas, ou seja, entram na
conversa na medida em que servem, funcionam, que dialogam com o campo de
pesquisa.
A exploração bibliográfica passa por produções, mas não se atendo a
eles, dos campos da Saúde Coletiva, da Psicologia, da Filosofia, da
Antropologia, da Análise Institucional e da Pesquisa Qualitativa.
Isso se dá colocando a leitura como gesto, como um exercício de
aproximação, de estudo, de aprofundamento nos temas de interesse. Uma
abordagem que coloca os textos em diálogo, talvez rizomaticamente, para a
27
produção de outras leituras e novos textos (24). Antropofagamos tantas
referências, quanto nos sirva à pesquisa. Não buscamos uma repetição
identitária, uma saturação, mas sim explorar as diferenciações que se abrem
para nós no processo de investigação.
Exploramos, a frente, como entendemos a escrita como mais um
processo da pesquisa, como um pesquisar, um produzir conhecimento no próprio
momento de escrever. Desse modo, entendemos que o levantamento
bibliográfico, a construção de um certo caminho, um roteiro teórico, é também
prático. A revisão teórica não só a antecede, mas também é ela própria. Da
mesma maneira encaramos que tal procedimento apoia nossos impulsos
criativos, não permitindo que certa abordagem, considerada mais “prática”, se
torne demasiadamente autorreferente (25) e perca o reconhecimento em
aspectos mais abrangentes de pesquisa, incluindo o conhecimento já produzido
sobre o tema (26).
Consideramos, portanto, que, em consonância com nossos princípios
éticos-políticos anteriormente anunciados, que este levantamento bibliográfico-
teórico é também uma pesquisa empírica. Um entendimento que nos remete a
Foucault quando em seus trabalhos de campo filosóficos ao ‘invés de procurar
justificativas filosóficas abstratas’ em suas investigações busca ‘investigar
empiricamente as formas práticas e efetivas através das quais a filosofia produz
o nosso mundo’.
Ao tomarmos o texto como um corpo imaterial que encontra com o corpo
do investigador, ao ‘agarra-lo’ como uma caixa de ferramenta no qual buscamos
produzir bons encontros, nos afetamos e deixamos de ser aquilo que somos
afirmando um outro devir. Ao
”defrontarmo-nos com um exercício de aproximações e confrontos com os textos, nos aprofundando e mergulhando nas linhas do nosso interesse – produção-criação-re-criação no ato de ler e escrever” (24).
Trata-se de uma abordagem rizomática dos textos (27), que os coloca em
diálogo, em acoplamento. Um diálogo intercessor na qual a intercessão,
segundo Carvalho et al. (24).
Se dá quando a relação que se estabelece entre os termos que se intercedem é de interferência, de intervenção através do atravessamento desestabilizador de um domínio qualquer (disciplinar, conceitual, artístico, sócio-político, etc.) sobre outro.
28
A relação de intercessão é uma relação de perturbação, e não de troca de conteúdos. Embarca-se na onda, ou aproveita-se a potência de diferir do outro para expressar (28).
Uma compreensão que convalida a afirmação de que a teoria – na qual o
texto escrito constitui uma de suas múltiplas concretudes - ‘não expressará, não
traduzirá, não aplicará uma prática; ela é uma prática’ (23)!. Uma prática
discursiva que nos transforma, um discurso-texto que é, em última instância, é
uma força (i)material que busca conduzir a conduta dos sujeitos em relação.
As relações de poder que se estabelecem entre o discurso escrito e o
leitor pesquisador constitui, em nosso entendimento, uma possibilidade de
exercício disciplinar e normatizador mas, também, de afirmação de práticas de
liberdade e linhas de fuga daquilo que barra, proíbe e invalida discursos e
saberes que afirmam a vida no limite de suas possibilidades.
Diários de Campo
A entrada no campo não é algo que possa ser feita levianamente, há
cuidados a serem tomados. Entendo que entrar no campo nunca é uma atitude
inerte que apenas recolhe dados para pesquisa. Essa entrada é interventora e
coprodutora do próprio campo. Reconhece-se aqui, que todos, de uma ou outra
maneira, estamos implicados em qualquer atividade que exerçamos (13). A ideia
de implicação (e sobreimplicação) deriva da Análise Institucional francesa.
Diante da noção de corpo e de singularidade com que trabalhamos nesta
pesquisa (abordada em outro momento), nos faz pouco sentido apoiar-nos em
uma ideia de implicação individualizante, calcada apenas nos movimentos do
pesquisador, aqui diferenciamos. O duplo estatuto pesquisador-trabalhador, o
pesquisador também tem uma inserção como médico na mesma equipe em que
ocorre parte do campo de pesquisa, por um lado garante a permeabilidade ao
cotidiano do trabalho, por outro acrescenta complexidade à tarefa de dar
visibilidade a certos processos. O que nos leva a lançar mão de discussões com
o grupo de pesquisa para fazer análise do material produzido a partir do diário
como parte do trabalho com este método.
29
É fundamental que façamos uma análise de nossas implicações em
atividades como pesquisas e intervenções buscando refletir e assinalar o lugar
que se ocupa, que se busca ocupar e que somos designados a ocupar (11). A
despeito do que dialogamos acima, sobre o que entendemos por implicação,
cuja análise se dará ao longo dos capítulos, conforme cada situação de pesquisa
seja discutida, convém, também, dizer de onde escrevo e por onde passei para
chegar a este produto-tese.
Inicio esse doutorado em 2012, provocado pelo trabalho de apoiador da
Política Nacional de Humanização, pelo Ministério da Saúde, neste momento
desenvolvíamos trabalhos no estado de São Paulo visando o fortalecimento das
redes regionais intermunicipais, de tal forma que apoiávamos,
predominantemente, as áreas adscritas por Comissões Intergestoras Regionais.
Em seguida, buscando dedicar mais tempo ao doutorado, saio desta função e
passo a perceber uma rede municipal de saúde a partir de plantões dados em
um Pronto Socorro de Campinas. Daí parto rumo a um estágio sanduíche em
Barcelona/Espanha, buscando aprofundar a discussão sobre metodologia
qualitativa e sobre redes, experimentando um pouco de um outro tipo de
construção de rede municipal.
Por fim, ao retornar a Campinas, inicio trabalho com uma equipe de
Consultório na Rua, a partir da qual decidimos realizar um trabalho de campo
empírico deste doutorado. O referencial teórico aqui utilizado vem sendo
aprofundado desde a Residência Médica em Medicina Preventiva e Social,
quando já participava de investigação sobre Ensino Médico e de coletivo de
pesquisa que desenvolvia leituras e pesquisas baseadas na filosofia pós-
estruturalista.
Neste sentido, operando este cuidado, o diário de campo poderá servir
como ferramenta para expressar e dar visibilidade, a movimentos de
aproximação e de distanciamento do campo de pesquisa (29), podendo revelar
as implicações do investigador neste processo de trabalho/pesquisa, seja no
momento em que ele retoma suas anotações e faz o ordenamento daquilo que
escreveu, seja no momento em que torna público seu escrito(6).
Assim, vemos o uso do diário de campo como uma aposta de ter na escrita
uma forma de dar visibilidade, de fazer falar, de fazer contar, de trazer algo que
30
é pessoal, mas que pode se extrapolar e trazer outras coisas à cena. Aparece
como uma ótima ferramenta, no referencial teórico-metodológico de pesquisa
qualitativa no qual estamos trabalhando, para fazer um acompanhamento de
processos na/da vida real na análise das linhas de forças (relações de poder e
vetores de produção de subjetividade) (30).
Observação, produção de dados e análise de implicação são movimentos
simultâneos que se entrelaçam, aqui, com especulações, projeções e
construções teóricas para conformar a existência do diário da pesquisa. Este
diário é, nas palavras de Lourau (6), uma “narrativa (...) ao mesmo tempo
anterior, presente e futura”, é a produção de um texto “erudito” com a projeção e
os esboços do que está para ser descoberto.
A possibilidade de releitura das notas do diário traz acréscimos à
autorreflexão e à auto avaliação a partir dessa (re) construção à distância em
relação ao vivido ou ao objeto de pesquisa. Ao realizá-la é que se pode fazer
uma reflexão sobre a prática e servir de fonte para trabalhar a congruência entre
teoria e prática – ainda que para nós teoria e prática não se dissociem – um
conceito só serve se ele opera na prática. É no momento em que se constrói
essa “distância” que o diário pode ser considerado um instrumento para a
pesquisa científica, tanto quanto serviria para a coleta de dados (31), ou,
poderíamos dizer, instrumento para a expressão da produção dos dados no
campo de pesquisa.
Sem negar a utilidade que o diário pode, em qualquer situação, ter para
seu autor, Hess afirma que a utilização do mesmo pode servir a outros sujeitos
e esferas da vida social. Assim, o diário pode tornar-se uma ferramenta coletiva
de análise de uma determinada situação ou problema. Para isto é importante
que o esforço de sua leitura seja empreendido por um grupo que busque, nas
suas reflexões, vivenciar e entender conflitos e contradições em oposição a uma
postura de recusa das mesmas (32). E é assim que o diário tem o potencial de
se caracterizar como dispositivo que explicite as linhas de força e de tensão, o
texto, o contexto e o extratexto de uma dada situação social que, ao serem
expostas, afetam e deixam-se afetar, produzem e transformam a realidade (33).
Escrever é a composição de paisagens e enunciados que se atualizam ao
31
passarem pela mão do autor. É a tradução de histórias, da descoberta, do novo,
revelado em ato (34).
O trabalho da reescrita, ou seja, a tentativa de tornar compreensível para
outros leitores todas as anotações feitas no calor do vivenciado, é complexo. O
processo de criação que se dá ao se contar aqueles momentos não é isento de
“interpretações”, ao se escrever é inevitável a busca por explicações, tentativas
de compreensões, trazendo para fora puro devir (34). Escrever, ou refazer o
passado no presente, é uma ação de trazer à superfície certa vontade ou ato de
vir a ser, de transformação. Por sua vez é na (re) leitura, feita por aqueles que
não são autores do material, que se dá o processo de intervenção, de análise,
de clareamento das relações instituídas. É também na releitura que o método
pode se tornar coletivo, caso haja, neste processo, um esforço conjunto para
fazer saltar concepções coletivas sobre a instituição, um processo ativo de
compreensão, e não de recusa, das contradições postas às vistas (32).
Para nós a escrita não é “apenas” um modo de registro da investigação,
uma ferramenta, ela é mais um modo de pesquisar que se compõe com os
demais. É o correr por uma página para descobrir o que virá na seguinte, na
construção antropofágica dos diversos elementos que constituem a pesquisa e
o pesquisador. O conhecimento se produz no escrever, tanto quanto o
pesquisador e tanto quanto este mesmo se modificou e produziu reflexões na
vivência do campo. Esses diversos aspectos, na vida, não podem ser separados.
Interpolação de olhares – a escrita como um registrar, intervir e
pesquisar
"Por eso mi pluma se puso a correr en un determinado momento. Corría a su encuentro; sabía que no iba a tardar en llegar. La página tiene su bondad sólo cuando la pasas y está detrás la vida empujando y descomponiendo todas las hojas del libro. La pluma corre impulsada por el mismo placer que te hace correr los caminos. El capítulo que empiezas y aún no sabes qué historia contará es como la esquina que doblarás al salir del convento, que no sabes si te pondrá frente a un dragón, una banda berberisca, una isla encantada, un nuevo amor." sor Teodora. (35)
32
Habitando esse território investigativo, em um plano de intensidades onde
pulam freneticamente experiências variadas anunciando um campo de forças em
torno do problema de pesquisa, fica sempre a questão sobre como dar letras e
linhas a esse furor vívido do vivido.
Encontramos na escrita performática um caminho, uma pista sobre como
escrever uma cartografia, ou mesmo uma pesquisa, diria talvez mesmo uma
literatura. A escrita precisa de movimento, tanto quanto a música de silêncio ou
a dança de pausas (36). É preciso que a escrita dê passagem a intensidades, a
afetos, a emoções do vivido. Sempre começamos nossa escrita, nos mais
diversos pontos, não apenas no começo, por aquilo que flui, por aquilo que dá
passagem ao que percebe nosso corpo vibrátil naquele momento.
Escrever significa então, também pensar sobre o movimento das
palavras, das letras, em uma variação relacional e gradual (36), prudentemente
não se pode compor-se apenas de “movimento” e, por outro lado, o próprio
movimento também é feito de pausas, estar em “perfeito descanso” ainda é
mover-se (25). Assim, a escrita também é um corpo (na definição de corpo que
veremos em outro capítulo), composto de relações que se fazem e desfazem-
se, variações de movimento e repouso, variações de intensidades (37–39).
Se vamos trabalhar nessa lógica, entendemos que o trabalho da escrita é
um trabalho conectivo permanente, a fazer-se e refazer-se. De tal forma, como
ainda reenfatizaremos várias vezes, consideraremos a escrita como, por si
mesma, fazendo parte da pesquisa. Terá um papel fundamental na investigação
seja como validação (40) ou como método da investigação que se produz a partir
de sucessivos movimentos de autorreflexão. Isso se coloca como um desafio ao
pesquisador, ao cartógrafo. Como tornar-se capaz de expressar a força da
experiência, que possibilidades de escrita poderemos explorar para fazer saltar
ao leitor a intensidade do vivido?
Muitas vezes, a escrita formal e a linguagem discursiva mostram-se
insuficientes, sendo necessária abertura para performances, vídeos, fotografias
e outras formas de linguagem (12). A escrita nos deixará saber a importante
questão: os afetos estão ou não podendo passar e como (15)?
“Não há modelo para se produzir a escrita literária de uma subjetividade antropofágica. Assim como não pode haver exemplo para se construir um modo de vida. A concepção de tal
33
escrita só pode funcionar como uma sugestão, um convite para se entregar aos devires e escapar à representação” (17)
Sem nenhum pudor lançaremos mão, antropofagicamente, de qualquer
que seja o dispositivo, estímulo, que dê passagem a esses afetos, que nos apoia
a dar palavras ao que precisa ser dito e associado para a construção do
conhecimento, para dar expressão e produzir modos de vida.
A linguagem, enquanto força constitutiva, produz significado e cria
realidade social. Nesta concepção, o processo e o produto da escrita estão
profundamente imbricados, não podem ser separados, de maneira que o modo
de produção, o produtor e o método de conhecimento também não podem ser
separados (40). Retomamos a ideia de que intervimos para conhecer, ou melhor,
que intervir e conhecer são processos que se dão simultaneamente. Aqui
Deleuze e Guattari trazem-nos uma pista interessante ao afirmar que escrever
nada tem a ver com significado, mas com um cartografar, mesmo em se tratando
de regiões ainda por vir (27).
Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita é inseparável do devir…(41).
Com as várias técnicas de investigação que uma cartografia pode lançar
mão, teremos a produção de vasto e rico material, não queremos aqui trabalhar
com uma ideia de interpretação destes “dados”. Queremos discutir como
trabalhar com o material produzido em campo e traduzir toda a processualidade
para um texto que não apenas possa dar retorno, ou continuar intervindo, ao
grupo participante da pesquisa, mas que também sirva (e force o sentido) aos
próprios requisitos acadêmicos. Um texto que seja investigação por si e que
também possa escapar por aquilo que não foi escrito através daquilo que foi
coletado, que seja um caminho para pensar e também para analisar (40).
Nesta perspectiva propomos a “Interpolação de Olhares” como uma
atividade de pesquisa e um modo de escrita. Uma forma de apresentar e
reconstruir uma narrativa a partir dos fragmentos de falas, opiniões e
apontamentos diversos, que se cruzam, inclusive, com as considerações feitas
pelo autor do texto.
A relatividade do espaço e do tempo tem sido imaginada como se dependesse da escolha de um observador. É perfeitamente legítimo incluir o observador, se ele facilita as explicações. Mas
34
é do corpo do observador que precisamos, não da sua mente (42).
É uma escrita que percorre um caminho em que conexões fortuitas podem
acontecer, até mesmo fora de controle, já que o pensamento também ocorre no
ato de escrever. Qualquer ponto, qualquer fala, qualquer conversa pode se
conectar com qualquer outra, de diversas maneiras, em uma conexão singular,
no percurso da produção (ou contestação ou reafirmação ou negação…) de uma
ideia. Talvez um trabalho rizomático (40).
Exploraremos o conceito “rizoma” em outro texto, aqui cabe pontuar o que
nos interessa do rizoma enquanto método (ou anti-método). Este coloca o
pensamento remetendo-o à experiência, uma decisão que nos coloca três
consequências: pensamento não é representação, é efeito real que desloca vida
e pensamento; não tem relação com uma gênese, com um começo, o
pensamento dá-se no meio dos processos da vida; por fim, todo encontro é
possível e não pode ser desqualificado a priori, o que não significa que não será
selecionado pela experiência. Quer-se dizer que nem todo encontro é
interessantemente produtivo, faz parte da experiência do pensamento, da
exploração cega da experimentação, discernir entre o útil e o improdutivo. Não
se colam quaisquer coisas, quaisquer camadas, o rizoma tem a “crueldade do
real, e só cresce onde efeitos determinados têm lugar” (43).
Retomando, aquelas autoras já propuseram exercício semelhante, seria
o “texto em camadas”, no qual se produz uma pequena narrativa onde vai se
inserindo elementos teóricos, diferentes teorias, múltiplos interlocutores,
podendo-se produzir um texto em diferentes caminhos. “A escrita é um campo
de jogo onde qualquer coisa pode acontecer – e acontece” (40). Esse trabalho
de escrita pode desmistificar o próprio processo de investigação, em um trabalho
de aproximação e confrontação dos textos produzindo uma mudança
metodológica na qual não se busca representar o mundo, mas sim apresentá-lo
(24).
O Animal é um ser à espreita… O escritor está à espreita, o filósofo está à espreita (44).
Na “Pesquisa Avaliativa sobre a Gestão do Trabalho e a Formação de
Graduandos e Trabalhadores de Saúde: explorando fronteiras”, Carvalho (45) e
equipe indicam, em seu relatório final, o que queremos aqui dizer ao relatarem o
processo de construção de narrativas a partir das falas que emergiram dos
35
grupos de discussão para retorna-la aos grupos participantes da pesquisa.
Lembram que era necessário um cuidado com a escrita para que o leitor não a
tomasse como uma interpretação dos pesquisadores sobre os argumentos
lançados na conversa, de forma que optaram por transcrição literal de diversos
trechos para a composição dessas narrativas. Escrever, pesquisar, é cuidar e
demanda certa prudência.
Talvez pensar uma triangulação metodológica não seja suficiente para
essas pesquisas. Desestruturando, vamos desconstruindo uma ideia de
validação dos achados, de um ponto fixo ou de um objeto no qual incidem luzes
advindos de três diferentes lados (40). Desconstruímos essa estrutura ao
pensarmos que talvez os objetos sejam múltiplos, assim como os problemas são
múltiplos. Não triangularemos, interpolaremos. Desdobrando… queremos trazer
para a pesquisa a ideia perspectivista de que não é um ponto de vista que cria
um objeto, mas sim o agenciamento sujeito-ponto de vista(46). Desmontamos a
ideia de uma questão a priori, de um conhecimento já dado, para habitar um
campo de investigação em que reconhecemos que os problemas postos à vida
são diferentes, ou, colocando na forma de pergunta, a que problema (e de quem)
o que percebemos está respondendo?
O que a antropologia, nesse caso, põe em relação são problemas diferentes, não um problema único (‘natural’) e suas diferentes soluções (‘culturais’). A “arte da antropologia”, penso eu, é a arte de determinar os problemas postos por cada cultura, não a de achar soluções para os problemas postos pela nossa (42).
Entendendo que o afeto experimentado por um corpo fala muito mais da
natureza do corpo afetado do que daquele que o afeta (37), uma fala expressa
a maneira como determinado corpo resiste ao que lhe ocorre, como ele resolve
um problema posto a sua existência. Assim, entendemos que cada fala expressa
a maneira como cada uma das posições (ou categorias) colocadas nesse estudo
resolve o problema de perseverar em ser diante da situação em que estão
inseridos (47).
Um encontro entre diversos trabalhadores, com usuários e/ou gestores,
de alguma maneira assumindo um desafio de produzir saúde (o que por si só
pode ter uma multiplicidade de significados para os envolvidos nesses processos
36
produtivos) coloca diversos problemas para conversar, trata-se da criação de
conceitos para colocar em ressonância essa heterogeneidade.
De toda maneira, colocar essas pessoas em relação e colocar questões
sobre isso desestabiliza alguma formulação cristalizada abrindo espaço para
novas construções. Um momento de desmanchar e despir máscaras, para
descobrir não um rosto, qualquer verdade primeira, mas a necessidade de criar
novas máscaras. Descobrir que atrás da máscara só há um tipo de força e de
vontade: a de criar máscaras (15). Produção de outras formas de ser e de estar.
Conhecer para Espinosa é o caminho para aumentar nossa potência de
agir, saber mais sobre nós e estarmos mais ativos e criativos. Não conhecer
nossas causas internas nos distancia de nosso impulso espontâneo para
perseverar na existência, do movimento intrínseco a nós, e nos coloca numa
posição vulnerável, numa submissão às causas externas, diminuindo nossa
potência de agir, nos tornando passivos. Então somos um grau de potência,
definido por nosso poder de afetar e de ser afetado, e não sabemos o quanto
podemos afetar e ser afetados, é sempre uma questão de experimentação (37).
Assim, não queremos “desvendar” qualquer verdade geral ou genérica.
Entendemos que os problemas colocados pelos diversos envolvidos na
problemática estudada (neste caso, a produção de redes) são diversos. Não são,
necessariamente, pontos de vista diferentes sobre o mesmo problema, mas sim,
problemas diferentes (48).
Todos os serem veem ("representam") o mundo da mesma maneira - o que muda é o mundo que eles veem (49).
Viveiros de Castro traz esse debate a partir da discussão da Cosmologia
Ameríndia, do perspectivismo ameríndio, mas podemos trazer para “mais perto”
de nosso cotidiano esse debate. Ainda pegando extremos, não é difícil perceber,
em um dia de trabalho junto a uma equipe de Consultório na Rua, que o mundo
percebido por aqueles e aquelas que habitam praças, marquises, terminais de
ônibus, esgotos, prostíbulos, terrenos baldios, imóveis abandonados é
completamente diferente do percebido pelos que vivem em suas casas e
confortáveis camas. O problema da sobrevivência é outro, o problema do vício é
outro, da comida, do sono, da saúde, da vida.
37
Em certa conversa, Márcia4, travesti, vivendo na rua desde os 8 anos de
idade, atualmente já passada dos 30 anos de idade, informa-nos outras nuances
disso: “uma coisa sou eu vivendo na rua. A única ideia de família que tenho é
essa aí, que tá na rua, outra coisa é seu Joaquim, que vem pra rua aos 50! Não
dá para vocês acharem que a gente vive na rua do mesmo jeito! ”. E se vamos
buscar detalhar as nuances, valorizar as diferenças, percebemos que, em muitos
aspectos, o mundo de uma pessoa com diabetes é diferente do de uma pessoa
com depressão, ou de uma considerada hígida e assim por diante. Seria, então,
a pesquisa (e a clínica) um aproximar de mundos, buscando visibilizar, valorizar,
a riqueza de suas diferenças para entender (ou sentir) os diferentes problemas
que os permeiam.
De tal forma que confiamos na metodologia apresentada para a
desestabilização destes problemas já que “O outrem para mim introduz o signo
do não-percebido naquilo que percebo, determinando-me a apreender o que não
percebo como perceptível para outrem” (50). Ou seja, tangenciamos aqui uma
ideia de que o sujeito não é causa, mas sim resultado de uma relação da qual
ele é interior, de forma que outrem não é um ponto de vista, mas sim o próprio
conceito de ponto de vista, a possibilidade de que ele exista (48). “Será sujeito
quem se encontrar ativado ou ‘agenciado’ pelo ponto de vista”(42). Mais do que
isso, outrem, como estrutura perceptiva também nos coloca outras
possibilidades de existências, um acontecimento por vir, todo um campo de
virtualidades e potencialidades a se atualizarem a qualquer momento (21).
Isso desloca-nos do procedimento de saber em que conhecer é objetivar
para um procedimento em que conhecer demanda personificar, tomar o ponto
de vista daquilo que precisa ser conhecido. Levando à necessidade não de
suprimir a intencionalidade, mas de apresentá-la ao máximo tornando cada fato
uma ação expressiva de estados ou predicados de algum agente (42).
Retornamos ao começo do capítulo reforçando a afirmação de que pesquisador
e objeto não são dissociáveis. E refazendo a pergunta de linhas acima, a que
problema posto a vida tais pontos de vista respondem?
4 Nome fictício
38
Na interpolação de olhares vamos exercitar o constante cruzamento de
ideias, produzindo camadas não retilíneas, rizomáticas, entre os materiais de
pesquisa produzidos. Seguimos apresentando o outrem. Reafirmando não um
relativismo, mas um perspectivismo, em que “a verdade do relativo é a relação”
(48). Percebendo que não há apenas um objeto sobre o qual “lançar luzes”, mas
múltiplos problemas e que mesmo um objeto que recebe luzes de diversos
pontos, comportar-se-á como um cristal, refletindo fragmentos de luz para
lugares não pensados(40).
Existe somente um olhar respectivo, um conhecer perspectivo; e quanto mais afetos nós deixamos transparecer a respeito de uma coisa, quanto mais olhos diferentes sabemos empregar para uma e mesma coisa, tanto mais completa se torna a compreensão desta coisa, a nossa “objetividade”(51).
A escrita acompanha o processo de pesquisa, tentando produzir em si
mesma uma zona de trocas, colocando os diversos grupos de interesse para
dialogar através do texto e, quem sabe, começando a tangenciar conceitos em
comum para os distintos problemas ressaltados pela clareza da diferença posta
à mesa. O próprio texto produzirá um relacionamento entre as diversas
entidades, não uma ideia de análise ou de exame, também produzindo um efeito
de aproximação entre pretensos pesquisadores e supostos pesquisados (48).
Parece-nos bastante coerente com todo este referencial que todo o
material produzido, de uma escrita intuitiva e ao mesmo tempo comprometida
com a produção de conhecimento, deva ser apresentado aos participantes, ou
diria, coprodutores, da pesquisa. Um movimento que por si só produziria até
mesmo outras pesquisas – outros diários, oficinas etc. – outros textos…
Não temos o direito de viver isolados. Não nos é permitido enganar-nos isoladamente, nem encontrar isoladamente a verdade. Ao contrário, assim como é necessário que uma árvore dê frutos, assim nós frutificamos ideias, apreciações: e o nosso “sim” ou “não”, nossos porém e ser desenvolvem-se, aparentados e relacionados, como testemunhas de uma vontade, de uma saúde, de uma terra, de um sol (51).
O exercício de pesquisar escrevendo, aqui realizado, usa múltiplas fontes
de inspiração e de experiência, como já mencionamos. Buscamos, com a própria
pesquisa, conectar distintos saberes e posições, acionando diversos olhares
para problemas que vamos levantando no percurso investigativo. Isso não é feito
aleatoriamente, lançamos mão de diversas ferramentas. Uma delas é a revisão
39
bibliográfica, em que enredamos experiências, ideias e conceitos que funcionem
à nossa investigação, reforçando-os ou questionando-os ou reconstruindo-os.
Outra foram os diários de campo, escritos na vivência intensiva do
presente, da experiência cotidiana que vibra no corpo do pesquisador e que lhe
fala de seu problema de pesquisa. Os diários, redigidos de múltiplas maneiras
ao longo desse tempo, são mais do que descritivos da experiência vivida, são
maneiras de conectar a experiência da vida do pesquisador com a experiência
presentificada na investigação. Falando de redação de diários, emendamos na
ideia do escrever como um ato de pesquisa e de análise, firmando a ideia
perspectivista na escrita, a qual nomeamos como interpolação de olhares
Por fim, falta discutir o instrumento coletivo de construção da investigação.
Por onde elaboramos e construímos a pesquisa com nosso campo de interesse,
com o plano onde se cruzam vivências e ideias que podem nos fazer
experimentar e sentir outros pontos relacionados ao tema da pesquisa. São as
oficinas com, no caso desse doutorado, os trabalhadores e trabalhadoras de uma
equipe de Consultório na Rua de Campinas.
As oficinas e o fluxograma analisador
Entendemos as oficinas como um espaço de intervenção e de produção
de conhecimento pelos participantes, visa ter um certo produto ao final de cada
momento ou de uma sequência de momentos. Aqui, no caso, sobre o
funcionamento da própria equipe e de seus processos de trabalho no sentido da
construção de uma rede. Vimos essa ferramenta metodológica operando como
um reforço à grupalidade, incluindo os vários trabalhadores, abrindo espaços
para a fala, para a visualização de problemas e para a criação de alternativas
para lidar com eles (52). As oficinas têm um caráter produtivo, além da circulação
de ideias, esses grupos trabalham na construção de algum produto para uso pelo
próprio grupo.
Na última fase deste doutorado, da pesquisa, a proposta foi realizar
oficinas com os trabalhadores do Consultório na Rua de Campinas para discutir
40
o material produzido pelos diários de campo realizados a partir da vivência
pessoal, profissional e de investigação junto ao trabalho desta equipe. Propôs-
se sistematizar os processos de análise através da construção de fluxogramas
analisadores adaptados – mapas da rede acionada pela equipe a partir do
seguimento de um paciente real – para dar visibilidade à rede construída pela
equipe. O fluxograma consiste em mapear, em representação gráfica, os fluxos
e os processos de trabalho, fazendo disso uma ferramenta para reflexão da
equipe (53).
Na apresentação da pesquisa aos trabalhadores colocamos que a
construção desse mapa também serviria para identificar pontos críticos,
facilitadores, fluxos, em uma visão esquemática dos processos de trabalho do
serviço de saúde em relação com os outros equipamentos da saúde ou de outros
setores (54–56).
Esse traçado esquemático constrói uma imagem do processo de
trabalho que coletiviza as percepções dos trabalhadores acerca do tema,
permitindo-lhes a gestão do próprio trabalho e costuma servir-se a visibilizar o
processo de trabalho, pontuando seus nós críticos, dando elementos para seu
planejamento e reorganização; a analisar o modelo assistencial praticado pela
equipe; coletivizar processo de autoanálise na equipe e funcionando como
produção de memória dos trabalhadores (53).
Este diagrama é um “fluxograma-resumo”, uma primeira entrada no
processo produtivo básico do um serviço de saúde, acessando a abertura de
outros processos que podem ser detalhados, acionados, a partir dele, mediante
as questões que se façam com a análise desse trabalho (55). Assim,
Fazemos uma aposta na possibilidade de se constituir tecnologias da ação do trabalho vivo em ato e mesmo de gestão deste trabalho que provoquem ruídos, abrindo fissuras e possíveis linhas de fuga nos processos de trabalho instituídos, que possam implicar na busca de processos que focalizem o sentido da “captura” sofrido pelo trabalho vivo e o exponham às possibilidades de "quebras" em relação aos processos institucionais que o operam cotidianamente (55).
Espera-se, também, realizar uma análise, com esta ferramenta, das
relações estabelecidas entre os trabalhadores e deles com os usuários, além de
acessar as percepções a respeito das tecnologias utilizadas, seus modos de
operar e as dificuldades no processo de trabalho da equipe (57).O que faríamos
41
aqui seria traçar um fluxograma, a partir do material propiciado pelos diários de
campo, mapeando o percurso da equipe entre os distintos serviços
(intersetorialmente, se for o caso) acionados na busca de constituir redes que
apoiem o cuidado integral de seus usuários. Nossa adaptação, então, foi colocar
a equipe do Consultório na Rua de Campinas no lugar do usuário cujo percurso
é acompanhado nos fluxogramas “tradicionalmente” utilizados. Assim,
esperávamos traçar um mapa da rede construída por esse serviço de saúde,
dando visibilidade aos seus processos tecnologias para realizar esse processo.
Ainda que reconheçamos a importância crucial da escuta do usuário
para fazer um projeto terapêutico e para olhar para as associações que ele
mesmo produz, o que nos interessou aqui, neste momento, foi as perspectivas
dos trabalhadores. Indicamos que as perspectivas dos usuários merecem uma
investigação específica (ainda que certamente pontos de tensão aparecerão
aqui também).
Entretanto, ao propormos esse trabalho investigativo para a equipe, o
caráter interventivo da pesquisa surge de maneira clara! Com a investigação
intervindo nos processos de trabalho e vice-versa. Reconheceu-se que o método
poderia também servir à gestão da clínica, à gestão de casos complexos, bem
como à visibilidade das práticas do serviço. Assim, a equipe apropriou-se do
método, contrapropondo que os casos fossem escolhidos por ela própria.
Avaliando o método, na última oficina, a equipe ponderou que ele permitiu
que os projetos terapêuticos fossem revisitados, olhando para o que já foi feito,
para o que “deu certo” e o que não e pensando novas possibilidades para o
seguimento dessas histórias. Também foi levantado que alguns dos casos
ficaram mais claros para a equipe como um todo. Por outro lado, apontam uma
limitação da construção do mapa: ele faz um retrato do acesso da rede, mas não
descreve, no esquema, os diversos momentos em que ela foi sendo construída,
ou que caminho exato foi percorrido pelo usuário dentro do sistema. Coloca-se
que o método também permitiu avaliar os movimentos dos trabalhadores e a
maneira, mais produtiva ou mais dolorida, como cada um está se relacionando
com seu trabalho.
42
CAPÍTULO 2 – REDES EM SAÚDE – A Construção
de um Problema
A Constituição de 1988 traz importantes pontos para as políticas públicas,
especialmente para as políticas de saúde. Marcada pelo movimento da 8ª
Conferência Nacional de Saúde (1986), aquela considera a saúde como direito
de todo o cidadão e responsabiliza o Estado a prover as formas pelas quais ela
pode ser preservada, alcançada ou produzida, as quais devem ser equânimes e
abordar as pessoas e seus processos de saúde e doença integralmente. Assim,
a constituinte já prevê que ações e serviços de saúde devem integrar uma rede
regionalizada e hierarquizada (58).
Isso traz complexas implicações: expandiu-se o conceito de saúde,
reconhecendo diversos determinantes e a necessidade de bem-estar físico,
psíquico e social. O sistema de saúde passou a englobar, legalmente, além da
assistência à saúde de qualquer nível de complexidade a qualquer cidadão que
necessite, a prevenção de agravos e a reabilitação da saúde. E, ainda, a
vigilância sanitária, epidemiológica, nutricional, ambiental e de saúde do
trabalhador, a formulação de políticas, saneamento básico, formação de
recursos humanos e a assistência farmacêutica (59).
Para enfrentar esse desafio, a legislação previu diretrizes organizativas
para o sistema, dos trezes princípios e diretrizes elencados na lei 8080/90
destaquemos que a “descentralização político-administrativa, com direção única
em cada esfera de governo” já traz em claras letras a necessidade de
regionalização e hierarquização de uma rede de serviços de saúde. Dentro de
uma mesma esfera de governo fala-se em integração das ações de saúde, meio
ambiente e saneamento básico e a organização dos serviços públicos evitando
duplicidade de ofertas com o mesmo objetivo. Diretrizes que nos falam da
construção de relações entre serviços de saúde e entre entes federados (59).
E essa não é uma conversa tão recente, vale a pena destacar algumas
influências que permeiam essa construção. Em 1963, na 3ª Conferência
Nacional de Saúde, já se falava em descentralização e construção de rede entre
43
os municípios e os serviços, na época com a criação de leis municipais para a
instituição de serviços sob gestão das cidades, como nos informa Wilson Fadul,
ministro da saúde à época, em entrevista à revista Saúde em Debate (60):
“a ideia fundamental era criar uma rede flexível, que a nível municipal se adequasse à realidade do município e que fosse se tornando mais complexa, à medida em que o próprio município se desenvolvesse”.
O relatório desta Conferência lembra-nos que a intenção de
descentralização remonta a primeira Constituição Federativa do Brasil, de 1891,
a qual estabelecia aos Estados a responsabilidade pela administração sanitária
e aos municípios autonomia na organização e administração dos serviços locais
de seu interesse. Este movimento deu-se de forma precária e pós Primeira
Guerra Mundial passou a ser entremeado por períodos em que movimentos que
pautavam uma ação mais centralizadora ganhavam mais força e com governos
autoritários. A Constituição de 1946 reestabelece a autonomia dos Estados e a
possibilidade de organização de serviços públicos locais pelos municípios. Já na
3ª Conferência se fala em uma cobertura ampla, do “total da população”,
municipalizando para “aproximar a saúde pública das populações”(61).
A necessidade de aproximar serviços de saúde da população já era citada
em 1920 no importante documento conhecido como Informe Dawson, um
relatório que influenciou sobremaneira a constituição do sistema de saúde inglês
e muitos dos sistemas públicos de saúde que surgiram ao longo do século XX,
inclusive a ideia de construção de redes no SUS (62). Nele coloca-se o médico
clínico geral como o primeiro contato do paciente em qualquer cadeia de
serviços. É a partir de um centro primário de serviços que se organizaria a
atenção ao usuário. Fala-se em uma organização de serviços hierarquizada, em
crescente grau de complexidade.
Para compor uma rede de serviços, Dawson considera importante que os
profissionais não fiquem isolados, mas que possam formar uma “corrente
intelectual e de camaradagem” entre profissionais de diferentes serviços, de
forma atuar na formação dos mesmos e na eficiência das unidades de saúde
(seja de atenção domiciliar, centros primários, secundários ou hospitais escola)
(63).
Ressalto aqui três pontos que são recorrentes nas discussões sobre
redes. Primeiro a lógica de organização da atenção e da gestão de maneira
44
hierarquizada, como pirâmide. Essa é uma concepção ainda muito presente nos
diversos âmbitos da gestão em saúde, mas que tem sido desconstruída há anos,
como já comentamos. Continuaremos desconstruindo. Junto com isto
questionamos a necessidade, que também aparece repetidamente, de que a
Atenção Básica5 teria que ser, necessariamente – para todo e qualquer caso, o
centro ordenador da rede. Não pretendemos discutir a inquestionável
importância da chamada “rede básica” ser muito fortalecida para o mínimo bom
funcionamento do sistema, mas tomar, como a priori, de que este nível de
assistência deva coordenar o cuidado de todo e qualquer usuário parece-nos
mais um movimento de valorização da estrutura antes da singularização da
necessidade do usuário. A discussão sobre Doenças Raras, por exemplo, feita
com uma investigação sobre sua rede de atenção na Catalunha, aponta que, na
prática, outros pontos da rede fazem esse ordenamento e de maneira
interessante.
Por outro lado, o que o relatório Dawson chama de “corrente intelectual e
de camaradagem” parece-nos um aspecto indispensável da construção de
redes. O isolamento do profissional nas Unidades Básicas frequentemente
aparece como um dos motivos para que os médicos pretiram esse posto de
trabalho. Mas também, vimos importantes experiências desenvolvidas a partir da
construção dessas correntes, por exemplo, várias experiências de apoio
matricial têm sido marcantes para o profissional de Atenção Básica. Outra
experiência foi conhecer, em 2008, algumas Áreas de Saúde Integral e
Comunitária na Venezuela – um arranjo que reunia semanalmente os médicos
de família adscritos na região de determinados serviços secundários e de apoio
diagnóstico para discutir os fluxos dos pacientes, os problemas do território, a
integração entre venezuelanos e cubanos do programa Barrio Adentro
(reconhecendo a heterogeneidade na implantação desse arranjo). Por fim, já na
Política Nacional de Humanização vimos trabalhadores de diferentes municípios
produzirem uma rede de relações e de apoios mútuos intermunicipais, a partir
dos encontros provocados entre eles, que potencializou tanto a Educação
5 Neste trabalho não faremos distinção entre os termos Atenção Básica e Atenção Primária.
45
Permanente em Saúde quanto a própria assistência mais diretamente. Esse é
um aspecto importante dessa pesquisa!
Aparte feito, temos, a partir de 1964, com os governos militares, um recuo
das intenções de descentralização. A assistência individual e as ações de saúde
pública (vacinação, prevenção e promoção de saúde) ficam em órgãos
separados, mas mesmo nesse período surgem várias experiências de
integração dessas atividades em unidades básicas de saúde. Uma lei criando o
Sistema Nacional de Saúde, em 1975, coloca como atribuição de nível local o
atendimento às urgências (por Pronto Socorro ou por transferência dos
pacientes) e, a partir de 1983, a incorporação da assistência médica individual
passa a ser importante estratégia em nível municipal para o cumprimento de
diretrizes políticas (64).
Através de medidas de controle de produtividade, focados na atenção
médica individual, ambulatorial e hospitalar, e pagamento por produção, o
INAMPS reforçou a universalização de uma modalidade de atenção por pronto-
atendimento. O repasse para custeio de serviços municipais aparece como uma
tendência com o programa Atenção Integrada à Saúde (AIS, em 1983), quando
também houve várias experiências de modelos de atenção e de gestão. A
descentralização de custeio ganha força com a implantação do SUDS (em 1985),
entretanto, governos federal e estaduais mantém a gerência da maior parte dos
hospitais e do recurso de investimento, de forma que as expansões nos
municípios só se davam mediante acordos políticos para a liberação de verbas
(64).
Essa lógica se mantém nos primeiros anos do SUS, transformando
Conselhos Interinstitucionais para a integração entre entes federados e a
elaboração de seus Planos Diretores em espaços, na maior parte das vezes,
meramente formais ou legais. A situação começa a se reverter com o
estabelecimento de critérios para o repasse de recursos (64). Neste quadro,
após um momento com tanta tendência ao controle, centralização e
uniformização, Campos, em 1991, faz interessante análise do que representaria
a Descentralização para SUS e para as políticas de saúde Brasil afora:
Essa autonomia relativa do nível local criou uma situação inusitada para os padrões brasileiros de administração pública. Ao menos enquanto possibilidade, estariam criando condições
46
para a construção de experiências diferentes, conforme a linha política de cada governo local, o quadro epidemiológico prevalente em cada região, a sua disponibilidade financeira, ou ainda o grau de controle político que cada comunidade conseguia impor à direção do sistema local. Como tendência, pode-se prever com antecipação um desenvolvimento heterogêneo das várias regiões e municípios. (...) Ou seja, o SUS provavelmente não será um serviço nacional com características, normas e programas uniformes. Os modos de organização das unidades de saúde, política de recursos humanos e de gerência certamente serão distintos, dependendo do contexto local e de sua relação com as políticas mais globais (64).
E assim, ao longo dos anos 90 e 2000, repasses fundo a fundo cresceram
e municípios assumiram crescentes responsabilidades através de inúmeros
mecanismos de pactuação de gestão, os quais reconheciam a importância da
descentralização e da regionalização (nas NOB 01/93 e 01/96, nas NOAS 01/01
e 01/02 e no Pacto pela Saúde (2006) (65)). Tudo isso foi se dando com muitos
solavancos, avanços, retrocessos e resistências. Avalia-se que a instituição
constitucional do SUS, por si só, pouco contribuiu para a integração regional.
Para lidar com isso, entre outras coisas, instituiu-se as Normas Operacionais
Básicas e as Normas Operacionais de Assistência à Saúde. A rigidez de regras
muito parametrizadas e pouco contactuantes com a realidade dos municípios e
a falta de um sistema de governança regional e intermunicipal são apontados
como fatores relacionados à dificuldade de implantação dessas normas (66).
De toda forma, os municípios foram se tornando não apenas gestores e
ordenadores do sistema, mas também a esfera federativa que
proporcionalmente mais gasta com saúde (quase todos os municípios cumprem
com a Emenda Constitucional - 296 e muitos chegam a investir bem mais de 20%
de sua receita em saúde, quando o mínimo seria 15%), além de formuladores de
políticas de saúde a serem executadas localmente.
Esse processo tem sido conflituoso e com diversos paradoxos. Ainda que
a Constituição preveja que o sistema de saúde seja “único” também prevê que
os entes federados sejam autônomos conferindo excepcional complexidade na
relação entre os múltiplos modelos que cada unidade federativa pode adotar
(67). Tais modelos de atenção são
6 Emenda promulgada em 2000, que fixa percentuais mínimos de gastos em saúde para cada esfera federativa, além de especificar o que é considerado gasto em saúde.
47
Formas de organização das relações entre sujeitos (...) mediadas por tecnologias (...), utilizadas no processo de trabalho em saúde, cujo propósito é intervir em problemas (...) e necessidades sociais de saúde historicamente definidas (68).
Assim, esses modelos resultam de uma complexa interação das relações
causais que conformam certa compreensão de saúde-doença e das respostas
tecnológicas que advém (69). Constituem os elementos que interditam ou
permitem que determinados assuntos sejam abordados ou mesmo elencados
como problemas que precisam de atenção das equipes (70). Esses autores
levantam distintas correntes tais como Ações Programáticas em Saúde,
Estratégia de Saúde da Família, Vigilância em Saúde, Cidades Saudáveis,
Promoção da Saúde e Defesa da Vida, entre outras. A definição do que será
adotado em cada ente federado vai além de avaliação de risco ou de
vulnerabilidade ou de necessidade da população. São vários os condicionantes,
como a vontade política do dirigente local, a pressão da sociedade civil (mais ou
menos corporativa), o clientelismo, as práticas políticas degradadas e as
múltiplas relações de poder que atravessam o município (71).
Ao passo em que a Descentralização surge como uma aposta na
autonomia dos entes federados para adequar as políticas às suas realidades
locais, também tem o rompimento da frágil linha que os mantém unidos para a
constituição de redes. O processo de descentralização foi tomado, muitas vezes,
como um movimento exclusivamente de municipalização, o que isolou o
município e dificultou o desenvolvimento de uma rede de cuidados (72). E, como
adiantado por Campos, cada cidade adotou um modelo de atenção, às vezes
com vários modelos coexistindo no mesmo município e até no mesmo serviço.
Santos e Andrade (67) colocam, em debate recente, que a construção de redes
(tratando em especial das redes interfederativas, mas também abordando redes
de serviços) é construção fundamental e inevitável para a correta operação do
SUS, à sua maturidade institucional “impõe-se” a institucionalização das redes.
Circulando pelo interior do Estado de São Paulo presenciamos várias
situações advindas dessa história. Na discussão interfederativa, ao fazer oficinas
sobre os dispositivos da PNH, sempre era necessário trazer formas deles
operarem nos distintos modelos de atenção existentes na região onde o trabalho
estava ocorrendo. Isso frequentemente gerava tensionamento entre os próprios
participantes das atividades e emperrava ações de apoio intermunicipal. Mas
48
mesmo dentro de um mesmo município situações curiosas foram vistas, por
exemplo, as várias antigas unidades básicas de gestão estadual, que
dedicavam-se a tratamento de tuberculose e hanseníase ou a pronto
atendimento, foram municipalizadas mas muitas vezes a gestão do trabalho não
era modificada, com o tempo foram-se agregando “puxadinhos” como sala para
agente comunitário de saúde, para Programa de Saúde da Família etc, novas
necessidades programáticas foram sendo adicionadas produzindo múltiplas
equipes apartadas, de trabalho fragmentado em um mesmo prédio (às vezes até
o prontuário era diferente). Situação comum também é a baixa capacidade de
diálogo entre serviços de um mesmo território, em especial quando estão sob
gestões diferentes (municipal, estadual, filantrópica, privada). A construção e a
institucionalização das redes é um desafio não apenas para a cooperação entre
as esferas federativas, mas também entre serviços ou mesmo intra-serviços!
Como abordamos, o desenvolvimento dessa “descentralização” e da
construção de redes mostrou-se tarefa muito complexa, com avanços
insuficientes o que foi tornando o assunto cada vez mais pautado. Em âmbito
federal, o Ministério da Saúde, em 2006, no Pacto pela Saúde, publica o capítulo
denomidado Pacto de Gestão, o qual dedica sessões específicas à
descentralização, à regionalização e suas operacionalizações. Em suas
Diretrizes Operacionais (pactuadas com a Comissão Intergestores Tripartite e
aprovadas pelo Conselho Nacional de Saúde) institui os Colegiados de Gestão
Regionais que, ainda que não estejam plenamente implantados em sua
potencialidade, têm servido para buscar deliberações, planejamentos e metas
comuns na região adscrita, compromissos de gestão regionais, articulação entre
municípios e desses com o Estado etc. A instituição do Pacto também buscou
fortalecer o processo trabalhando com ferramentas como Plano Diretor Regional,
Programação Pactuada Integrada, Colegiado de Gestão Regional, Centrais
Reguladoras (73).
Ainda assim, considera-se que mudanças mais concretas no sentido da
integração regional, da pactuação entre os gestores, pouco ocorreram (66).
Outras avaliações colocam que ainda que o processo de descentralização tenha
tido uma grande importância para expansão da cobertura dos serviços de saúde,
induziu o aumento de gastos de municípios e estados, mas não resolveu as
49
desigualdades no acesso, não deu eficiência à gestão, nem conduziu a arranjos
mais cooperativos (74). Tem-se proposto, para lidar com essa fragilidade
institucional, a instituição de contratos interfederativos que mediariam as
responsabilidades entre os entes federados, produzindo uma rede
interfederativa (75), o que começou a se concretizar em 2011, quando o decreto
7508 institui o Contrato Organizativo de Ação Pública (COAP) como um de seus
instrumentos.
As redes se tornaram cada vez mais presentes na formulação das
políticas públicas, de forma que, diante de avaliações que apontavam o pouco
avanço do Pacto pela Saúde na construção de Redes de Atenção à Saúde (75),
no final de 2010, foi publicada uma portaria (4.279, de 30/12/2010)
especificamente para estabelecer diretrizes para a organização de Redes de
Atenção à Saúde. Já em 2011, o decreto que regulamenta a lei 8080/90, nº
7.508/2011 (76), as define como conjunto de ações e serviços de saúde
articulados em níveis de complexidade crescente, com a finalidade de garantir a
integralidade da assistência à saúde (art. 2º, inciso VI), e, por sua vez, define
Região de Saúde como
O espaço geográfico contínuo constituído por agrupamentos de Municípios limítrofes, delimitado a partir de identidades culturais, econômicas e sociais e de redes de comunicação e infraestrutura de transportes compartilhados, com a finalidade de integrar a organização, o planejamento e a execução de ações e serviços de saúde (art. 2º, inciso I).
Na Seção I do Capítulo II deste decreto regulamenta-se, em consonância
com a Constituição, as Regiões de Saúde como aspecto organizativo essencial
do SUS, a serem pactuadas nas Comissões Intergestores. As Redes de Atenção
à Saúde estarão, então, contidas nas Regiões de Saúde ou articularão diversas
regiões.
O pleno funcionamento das Regiões de Saúde exige a instalação dos
Colegiados de Gestão Regional (CGRs – chamados, nesse decreto, de
Comissão Intergestores Regional - CIR). Desde sua criação, no Pacto pela
Saúde, em 2006, esta instância de gestão tem sido cada vez mais adotada, de
forma que mesmo os municípios que possam não ter aderido ao Pacto
participam do colegiado de sua região. Até 2011, dos 5.565 municípios
50
brasileiros, 4.236 aderiram ao Pacto (76,12%) e 5.307 (95,36%) estavam
organizados em 415 Colegiados de Gestão Regional (77).
Esse tema da regionalização e da construção de redes ocupou importante
parte da agenda dos governos federal e estaduais iniciados em 2011 e, ainda
que a ênfase nisso, tenha esmorecido nos arranjos políticos das gestões
seguintes (2015 em diante), o tema segue na pauta. O governo federal trabalhou
com a discussão de construção de redes para todas as suas políticas prioritárias,
tendo iniciado com as diretrizes organizativas, de financiamento, etc., para
Redes de Saúde Materno-infantil, Urgência e Emergência, Atenção Psicossocial
e Atenção à Pessoa com Deficiência. Retornaremos a isso com um pouco mais
de atenção.
Nesse cruzamento de influências começamos a entender a necessidade
de se iniciar uma discussão sobre redes pela diretriz Descentralização, apenas
uma entrada. Santos e Andrade (67) tratam tal diretriz, em associação com o
princípio da Integralidade, como conduzindo inevitavelmente à discussão sobre
a produção de redes dentro da gestão pública, nomeando estas como Redes
Interfederativas, ou seja, redes de gestão intergovernamental, as quais contêm
redes de serviços e que operam por cogestão, buscando o consenso das
decisões, sendo capaz de garantir ao cidadão a integralidade da atenção à sua
saúde.
Ainda que, do ponto de vista desses autores, seja inevitável a produção
de redes para o cumprimento dos liames constitucionais, também a justificam
como sendo capaz de melhorar eficiência, reduzir custos, expandir acesso,
interligar políticas sociais intersetoriais. Tem em vista a obtenção de ganhos na
qualidade, eficiência, economicidade e alcance de seus fins (75). Motivos
semelhantes fariam com que o capitalismo também se organize em redes
financeiras, fabris, internacionais e globalizadas (abordaremos isso com mais
cuidado em momento oportuno), na área pública trocar-se-ia o interesse pelo
lucro pela “efetividade da garantia de direitos sociais” (67). Tais autores
assumem que, na arena pública, trabalhar na lógica de redes serviços tem
vantagens, mas também potenciais problemas, como:
51
Vantagens: Riscos:
• Democratização do
conhecimento
• Descentralização integrada
• Processos administrativos
horizontais
• Cooperação
• Surgimento de novas lideranças
• Planejamento integrado
• Reconhecimento das
dependências e
interdependências
• Conhecimento das múltiplas
realidades
• Respeito às diversidades
socioculturais
• Fortalecimento contra pressões
externas
• Aumento da eficiência
administrativa e técnica
• Otimização dos recursos
• Negociação/consenso
• Valorização das relações de
confiança
• Solidariedade e
compartilhamento
• Descentralização concentrada
• Fragmentação da autoridade
• Desinteresse diante de novas
informações e conhecimentos
• Perda de controle dos
processos
• Perda da autonomia política dos
mais fracos
• Individualismo e personalismo
• Conflitos permanentes
• Negociação infindável
• Cooptação dos mais fracos
• Acomodação diante das
negociações
• Falta de capacidade gerencial
para novas atribuições
• Excesso de controles diante da
complexidade do sistema de
rede
• Desequilíbrio de poder
1Vantagens e Desvantagens do trabalho em rede (67,75)
Ou seja, e nunca é demais deixar claro, que não devemos encarar os
debates sobre redes de saúde de maneira leviana, seja como modismo ou como
panaceia. Apostamos que avançar nessa exploração conceitual (que também é
prática) pode impulsionar compromissos éticos de defesa da vida e dos
princípios dos SUS.
52
Em Silva (75) enfatiza-se que as redes sempre serão de serviços de
saúde, definindo rede de serviços de saúde, ou de atenção à saúde, como:
Forma de organização das ações e serviços de promoção, prevenção e recuperação da saúde, em todos os níveis de complexidade, de um determinado território, de modo a permitir a articulação e a interconexão de todos os conhecimentos, saberes, tecnologias, profissionais e organizações ali existentes, para que o cidadão possa acessá-los, de acordo com suas necessidades de saúde, de forma racional, harmônica, sistêmica, regulada e conforme uma lógica técnico-sanitária. (75).
Estes autores fazem uma contribuição sistemática sobre rede que vale a
pena abordarmos devido à influência que esta publicação e seus autores
exercem no SUS nos últimos anos. Ressaltam a importância de construção de
redes como estratégia para lidar com o aumento da incidência e prevalência de
doenças crônicas e com os custos crescentes no tratamento das doenças, dando
maior perspectiva de avanços na integralidade e na construção de vínculos.
Atribuem à rede de serviços de saúde um conjunto de responsabilidades
relativas à relação entre os serviços, desses com seus usuários e ao fluxo dos
usuários entre os serviços:
1. Definir suas portas de entrada; 2. Ordenar o acesso por ordem cronológica e de risco; 3. Oferecer atendimento adequado às necessidades do
paciente; 4. Racionalizar a oferta de serviços e a incorporação
tecnológica; 5. Definir as linhas de cuidados; 6. Integrar os sistemas de informação; 7. Evitar a repetição de exames e de anamneses; 8. Permitir aos profissionais o acesso a prontuários e
exames de modo informatizado e integrado; 9. Permitir o monitoramento do paciente para evitar
complicações, quando for o caso; 10. Criar uma hierarquia de complexidade de serviços e
organizar os referenciamentos e contra-referenciamentos, de acordo com uma inteligência epidemiológica;
11. Oferecer educação sanitária ao paciente, para fomentar maior responsabilidade do cidadão com a própria saúde; e outros elementos que criem eficiência, resolubilidade dos serviços, melhoria da qualidade e coíbam a duplicidade de meios para o mesmo fim (75).
Tais responsabilidades implicam em um desafio concreto e complexo para
o cotidiano do trabalho nas redes, exige competências relacionais complexas
53
daqueles que produzem encontros em cada nó das redes. Assim, ao longo deste
trabalho faremos sutis deslocamentos nessas responsabilidades,
problematizando-as. Por exemplo, ainda que seja imprescindível uma
inteligência epidemiológica para a organização do sistema, essa imagem não
pode anular as necessidades concretas e cotidianas de usuários e serviços de
saúde. Nesse mesmo item 10, precisaremos retirar a ideia de hierarquia, tão
tradicional, que remete à pirâmide. Afirmaremos que não são graus de
complexidade, mas sim, diferentes complexidades, todas igualmente
indispensáveis, essa hierarquização talvez obedeça mais uma necessidade de
controle do que a do usuário concreto. Enfim, o que ou quais necessidades
operam como conectivos das redes?
Esses autores consideram essencial não subdividir os sistemas de saúde
em subsistemas de cuidados crônicos e agudos sob o risco de reforço de um
modelo hospitalocêntrico pouco eficaz, pouco econômico e que não atinge ao
princípio da integralidade. Sobre Integralidade, devido à polissemia e
importância desse conceito nessa discussão, vale um aparte. Em Silva (75) ela
é abordada sob três sentidos: o vertical – um olhar sobre todas as necessidades
do usuário -, o horizontal – que trata da articulação de vários pontos de cuidado
– e na construção com outras políticas públicas, produzindo intersetorialidade.
Elencam quatro componentes para uma Rede de Atenção à Saúde: 1.
Espaço territorial definido e população adscrita; 2. Existência de serviços e ações
de saúde de diferentes densidades tecnológicas e com distintas características
instalados nesse território de forma articulada e integrada mediante critérios de
custo, benefício, oferta e necessidade; 3. Sistema logístico que contribua para
identificar e orientar os usuários em seu percurso entre os serviços de saúde e
4. Sistemas de regulação.
A partir desses componentes é necessário produzir modelos operacionais
de implantação que dialoguem com a definição de qual o território adscrito pela
mesma, vinculada a um diagnóstico situacional deste, tanto estrutural quanto
epidemiológico, que apoie a criação de sistemas logísticos de suporte, de
regulação e de governança, tendo em vista certa situação desejada para os
serviços que compõe essa rede. Toda essa construção leva em consideração
que a Atenção Primária em Saúde seria a ordenadora dessa rede, é a partir dela
54
que o usuário se insere no serviço e é ela que coordena seu cuidado, tendo as
linhas de cuidado como uma estratégia para o enfrentamento de determinados
riscos, agravos ou outras condições específicas (75).
Como viemos argumentando, temos que tomar com precaução esse lugar
de ordenação da rede. Entendemos sim a necessidade de uma forte Atenção
Primária para um bom sistema público de saúde, entretanto, há que se cuidar
para colocá-la como porta de entrada preferencial do usuário no sistema, não
como exclusiva. Temos visto, por exemplo, que dentro de um contexto em que
serviços de urgência/emergência e pronto-atendimentos já são tão disseminados
e até acessados prioritariamente, essa pode sim ser uma importante porta de
entrada para o seguimento de determinados usuários. Um exemplo muito claro
é o serviço de urgência/emergência sendo o primeiro acesso ao sistema, ou o
único serviço acessado por moradores de rua e profissionais do sexo, essa pode
ser a porta de entrada deles a um sistema cuidador.
Também temos visto Centros de Atenção Psicossocial, Centros de
Referência de Saúde do Trabalhador e Centros de Referência em DST/AIDS
serem importantes pontos de primeiro acesso e de início do fluxo usuário no
sistema. Vários exemplos poderiam ser dados, mas chama-nos a atenção que
uma rede de saúde interessada nas necessidades dos usuários deve ser capaz
de produzir redes para as situações singulares, não se engessando em
pretensas soluções estanques. Em nossa prática, pudemos ver isso operando
ao reunir trabalhadores de diferentes serviços para discutir casos clínicos, gestão
e/ou os dispositivos e diretrizes da Política Nacional de Humanização.
Por outro lado, reconhece-se que
A rede fortalece os vínculos entre os envolvidos, por se associarem com a intenção de cooperar, e não de impor; de colaborar e compartilhar as atividades e os recursos, sem hierarquia; além de trazer para perto das autoridades centrais a realidade dos territórios (75).
Deixando, entretanto, pouco claro, concretamente, como isso se daria. A
avaliação de que o Pacto pela Saúde pouco avançou na construção de Redes
de Atenção à Saúde (RAS) transparece dificuldades na execução desses
processos: fala-se em falta de pactuação entre os entes federados ou
descompromisso com os mesmos, com dificuldade de planejamentos conjuntos
e grande heterogeneidade nos modos de operar, ou também, podemos dizer,
55
dificuldades em fazer efetivamente acontecerem as Programações Pactuadas
Integradas, os Planos Diretores de Regionalização e os Planos Diretores de
Investimentos.
Analisando tais dificuldades Silva (75) faz um exercício analítico em que
se classifica os desafios e entraves para a construção de redes de atenção à
saúde em níveis macro, meso e microssociais. Uma análise interessante que
apenas nos reforça que tais dimensões estão absolutamente imbricadas, intervir
em uma é produzir intervenção em outra. Dessa forma eles colocam como
desafios macrossociais fortalecer a Atenção Básica como coordenadora do
cuidado e ordenadora da rede; implementar uma política de regulação e
fortalecer a capacidade de gestão regional, afirmando que “a construção de
coerência entre a formulação e a implementação de políticas, projetos e
programas é um grande desafio, especialmente em uma área tão complexa
como a política pública do SUS” (p. 122).
Sobre os desafios mesossociais problematizam a hegemonia de uma
cultura organizacional e de técnicos voltada para sistemas fragmentados;
apontam equipes técnicas insuficientemente capacitadas e lideranças não
motivadas para promover mudanças; com a inexistência ou insuficiência de
sistemas logísticos de suporte às redes; tendo que lidar com políticas de
investimento e custeio e marco jurídico-legal inadequados para o propósito de
consolidação de redes.
Dentre os desafios microssociais entendem que há imperiosa
necessidade de qualificar a Atenção Básica, para que a coordenação do cuidado
ao usuário e a ordenação de atenção em rede aconteçam. Assim, espera-se que
se abordem os problemas relacionados à organização do cuidado clínico, ao
vínculo com os usuários e à longitudinalidade da atenção, propiciando
consolidação para o trabalho em rede. Também ressaltam a necessidade
qualificação da gestão local, o trabalho com clínica ampliada e a adoção de
algumas estratégias organizativas como gestão colegiada, unidades de
produção, equipes de referência, apoio matricial e núcleos de saúde coletiva.
O gerenciamento das organizações de modo coletivo e a valorização do modelo usuário-centrado seriam as estratégias principais [para superar os nós críticos do micro] (...) implementação das políticas de educação permanente em saúde do SUS, cuja centralidade é a aprendizagem significativa
56
com foco no processo de trabalho, com base em avaliação crítica feita pelos trabalhadores, que se incorporam ao processo como sujeitos da mudança (75).
Tudo isso foi escrito antes da portaria sobre Rede de Atenção à Saúde de
2010, da regulamentação da lei 8080 em 2011, que traz algumas definições,
seguranças jurídicas e instrumentos para a construção de redes interfederativas
(formulações, inclusive, influenciadas por esses autores), mas a questão é
complexa, um problema histórico e, em 2013, Campos (78) aponta construção
de redes e de regiões de saúde que garantam a integralidade como um dos seis
principais desafios do SUS.
Outro autor que logrou uma publicação sistemática sobre Redes, com
considerável influência no SUS hoje, é Mendes, que tem trabalhado com o termo
Redes de Atenção à Saúde, às quais define como:
organizações poliárquicas de conjuntos de serviços de saúde, vinculados entre si por uma missão única, por objetivos comuns e por uma ação cooperativa e interdependente, que permitem ofertar uma atenção contínua e integral a determinada população, coordenada pela atenção primária à saúde – prestada no tempo certo, no lugar certo, com o custo certo, com a qualidade certa, de forma humanizada e com equidade – e com responsabilidades sanitária e econômica e gerando valor para a população (79).
Fazendo uma análise a respeito das condições de saúde da população e
da organização do SUS, avalia que as RAS têm enorme potencial para lidar com
o que ele chama de crise dos sistemas de saúde do século XXI, decorrente de
sistemas voltados para o atendimento de condições agudas ou de agudizações
das condições crônicas, quando temos importante quadro de mudança na
situação epidemiológica. Isso é especialmente crítico no Brasil, com a chamada
tripla carga de doenças, ou seja, a ainda presença do combate a infecções,
desnutrição e problemas de saúde reprodutiva, somado ao aumento das
doenças crônicas e seus fatores de risco e o crescimento da morbimortalidade
por causas externas (80).
Assim, credita-se importância a uma organização dos sistemas de saúde
em rede de forma a superar uma fragmentação da atenção caracterizada por
pontos de assistência isolados, com fragilidade na comunicação e incapacidade
de seguir o paciente de modo a ter uma atenção contínua à população (80). Seria
uma forma de garantir acesso equitativo aos serviços de saúde (62). Diversos
57
estudos têm demonstrado o impacto positivo de uma organização em rede sobre
os custos, o uso de recursos e resultados clínicos (79).
Em uma revisão na literatura internacional, feita por este autor, traz-se
discussões iniciadas nos Estados Unidos da América (EUA), no início dos anos
90, como disparadores deste movimento de organização de sistemas em rede
(79). Diversos termos são utilizados para comentar a implantação e
desenvolvimento de certa forma de fazer em rede no EUA, Canadá e diversos
países da Europa – Sistemas Integrados de Saúde, Serviços Integrados de
Saúde, Organizações Integradas de Atenção à Saúde, cadeias de cuidados,
Redes Regionais de Atenção. Conceitualmente, essas denominações
apresentam diversas pequenas variações e múltiplos descritivos são
empregados relacionando-se a processos integrativos, constituindo um espectro
de 175 definições e conceitos (62).
Em sua sistematização Mendes (79) coloca que os processos de
descentralização se definem por modos singulares de organizar as Redes de
Atenção à Saúde, estruturadas sobre uma rede de pontos de atenção à saúde,
os serviços de saúde, e que devem atender a alguns fundamentos visando
eficiência, eficácia e qualidade. Sobre Economia de Escala, pondera que os
serviços e sistemas precisam ter diferentes gradientes de concentração e
dispersão visando níveis ótimos de eficiência dos gastos, sem comprometer
acesso e qualidade dos serviços. Outro fundamento trata sobre o sentido da
integração da rede, Integração Horizontal e Vertical, a primeira se dá entre
unidades produtivas iguais, visando adensamento da cadeia produtiva para obter
ganhos de escala, maior eficiência e competitividade. Já a integração vertical se
dá pela unificação da gestão de diferentes unidades produtivas, comunicadas
através de sistemas de informação e logísticos.
Já os Processos de Substituição são para manter certa mobilidade dos
recursos dentro das redes, de forma que eles possam ser realocados na busca
de melhores resultados sejam econômicos, sejam sanitários (79).
Ainda que os Territórios Sanitários sejam colocados como fundamento
das RASs algumas podem prescindir desta articulação como o sistema privado
ou sistemas públicos baseados em competição gerenciada. Por outro lado,
58
sistemas como o SUS e outros sistemas públicos necessariamente convocam
essa articulação territorial (79).
Por fim, Mendes coloca os Níveis de Atenção à Saúde como mais um
fundamento das RAS nos quais se conformam arranjos produtivos por
densidades tecnológicas, considerando a Atenção Primária à Saúde como a de
menor densidade e a atenção terciária a de maior densidade tecnológica. Com
outro nome, retoma-se aqui a discussão realizada anteriormente sobre a
hierarquização da rede. Entendemos que não existem maiores ou menores
densidades tecnológicas, mas sim densidades de tecnologias distintas, em
complexos arranjos. Podemos tomar a ideia de tecnologias leves, leve-duras e
duras, explicada mais à frente, para dizer, de maneira um pouco grosseira, que
a Atenção Básica tem alta densidade de tecnologias leves e um hospital terciário
de tecnologias duras e leve-duras (reconhecendo que se sairmos da
representação e analisarmos o cotidiano, encontraremos múltiplas combinações
dessas densidades tecnológicas em cada processo dos serviços de saúde).
Por outro lado este autor também afirma que as redes hierarquizadas
rígidas organizadas por pirâmides hierárquicas e modos de produção tayloristas
e fordistas tendem, em um “contexto de complexificação das questões sociais,
de processos de privatização, de descentralização acelerada, de globalização,
de proliferação de organizações não governamentais e de fortalecimento do
controle público” (p.79), a se modificarem em estruturas mais flexíveis,
compartilhadas e interdependentes em seus objetivos, informações,
compromissos e resultados. Ainda que termos como “compartilhada” e
“interdependente” possam nos remeter a uma ideia de multiplicidades, enfatiza-
se que redes eficazes são as produtoras de consensos, buscando “ganhos para
todos os atores”, “harmonizando decisores” políticos e administrativos, nas quais
as soluções são negociadas e os processos são permanentemente monitorados
e avaliados (79). Há que se reconhecer que em qualquer rede existem múltiplos
interesses em disputa, que vão de interesses privados a múltiplas concepções
sobre saúde, doença e vida, de modo que consensos, quando obtidos, são
absolutamente temporários. Talvez, mais do que consensos, seja necessário
estabelecer as bases éticas de trabalho a partir das quais esses múltiplos
interesses e perspectivas podem coexistir.
59
A questão do comando único, de uma coadunação de objetivos, unidade
de ideias e propósitos não aparece apenas nestes referenciais mais recentes,
mas sim desde o Relatório Dawson. Assim como a ênfase na importância de a
Atenção Primária à Saúde ser a ordenadora, ou a organizadora, dessa rede de
saúde. De forma que a recomendação para a condução de processos de
mudança no sistema de atenção à saúde trazidas por Mendes (79) já tem quase
100 anos, como pode ser inferido das alíneas 24, 50, 93 do centenário relatório
(63).
As mudanças no sistema de atenção à saúde deverão fazer-se nas seguintes direções: voltar o sistema para a atenção às condições crônicas, fazer uso intensivo da tecnologia da informação, eliminar os registros clínicos feitos à mão, promover a educação permanente dos profissionais de saúde, coordenar a atenção ao longo da rede de atenção, incentivar o trabalho multidisciplinar e monitorar os processos e os resultados do sistema (79).
Parece-nos que tais operações conceituais ainda não escapam de um
modo de produzir preso em redes frias, ou seja, com efeitos de homogeneização
e de equivalência (81). Parece-nos que as comunicações, as linguagens, postas
em comum, ainda o fazem não para produzir potência, mas talvez, elas se façam
emergir para continuar trabalhando por um certo comando central (82), em prol
de uma unidade de ideias, ou de um “clima organizacional” como diriam algumas
correntes.
Não podemos nos pautar por um súbito ponto no tempo em que todo o
sistema esteja organizado de maneira ideal, assim que até lá temos que lidar
com afecções agudas e agudizações das crônicas. Isso é tema constante de
conflito mesmo dentro das equipes ao se pensar a organização do processo de
trabalho em que se polariza o atendimento do crônico ao agudo, o programático
à demanda espontânea. Entretanto, para dialogar com integralidade com as
necessidades de saúde dos grupos populacionais é imprescindível trabalhar na
articulação entre o espontâneo e o programado (83).
Mesmo com esses textos já nos trazendo referências a outros
pensamentos dentro da Saúde Coletiva, vale a pena agora olharmos para
algumas dessas institucionalizações recentes das redes pois já veremos muitos
elementos se cruzando.
60
A Portaria 4.279, de 30 de Dezembro de 2010 (84), estabelece diretrizes
para as Redes de Atenção à Saúde no SUS definindo-as como “arranjos
organizativos de ações e serviços de saúde, de diferentes densidades
tecnológicas, que integradas por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e
de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado” reconhecendo-as como
mecanismo adequado para superar a fragmentação sistêmica e enfrentar os
desafios do contexto socioeconômico, epidemiológico, sanitário e demográfico.
Considera que a reestruturação do sistema em rede representa o acúmulo e
aperfeiçoamento das políticas de saúde, avançando na consolidação do SUS,
possibilitando “a construção de vínculos de solidariedade e cooperação”.
A portaria traz os mesmos fundamentos já citados na obra de Mendes. Dá
especial atenção à gestão da clínica entendendo-a como a aplicação de
tecnologias de micro gestão visando padrões clínicos ótimos, eficiência,
efetividade, redução de riscos e melhoria da qualidade. Coloca-a em posição de
integrar verticalmente os pontos de atenção dando forma à RAS. Nesse escopo
são entendidas as Diretrizes Clínicas e as Linhas de Cuidado.
Também entende a Atenção Primária em Saúde como centro de
comunicação das redes, que também terão como componentes estruturadores
os pontos de atenção secundária e terciária; os sistemas de apoio; os sistemas
logísticos e o sistema de governança. Nesse contexto os Colegiados de Gestão
Regional são entendidos como fóruns privilegiados para o exercício da
governança, de negociação e construção de consensos.
Também é interessante notar que, apesar de não aparecer na definição
de redes utilizada, o texto da portaria traz a importância do trabalho e do
componente relacional para a construção de redes – “É necessário visualizar o
trabalho como um espaço de construção de sujeitos e de subjetividades, um
ambiente que tem pessoas, sujeitos, coletivos de sujeitos, que inventam mundos
e se inventam e, sobretudo, produzem saúde. (...) O foco do trabalho vivo deve
ser as relações estabelecidas no ato de cuidar que são: o vínculo, a escuta, a
comunicação e a responsabilização com o cuidado”.
Seis meses depois, o Decreto 7.508, de 28 de junho de 2011 (76) traz
uma definição bem mais sucinta de Redes de Atenção à Saúde: “conjunto de
ações e serviços de saúde articulados em níveis de complexidade crescente,
61
com a finalidade de garantir a integralidade da assistência à saúde” (item VI, art.
2º), que estarão compreendidas ou farão a relação entre as Regiões de Saúde,
conforme pactuação da Comissões Intergestores. A pactuação da rede e a
relação entre os atores da mesma (entes federados) passam a ser feitas através
de Contratos Organizativos de Ação Pública da Saúde, junto com a definição de
responsabilidades, indicadores, metas, critérios de avaliação, recursos
financeiros e formas de controle e fiscalização.
Este decreto também ratifica o “acesso universal, igualitário e ordenado”
deve iniciar-se por Portas de Entrada previamente definidas e pactuadas e
estender-se nesta rede regionalizada e hierarquizada. Parece que o caminho já
está previamente traçado e acordado entre os gestores. O trabalho e os
trabalhadores não estão entrando nisso, tão pouco os usuários. Insiste-se
veemente (e com sua parcela de razão) que a Atenção Primária em Saúde deve
ser a coordenadora do cuidado e ordenadora das Redes de Atenção à Saúde,
sendo a base do sistema (85–87), do que não devemos discordar, mas
acrescentar nuances.
O que queremos chamar a atenção é que trabalho, solidariedade,
cooperação, cogestão são constantemente evocados nos textos de referência
para os aparatos legais, mas tanto uns quanto outros parecem carecer de uma
discussão prática sobre como isso se daria. Chama-se a atenção para o fato de
que propostas de constituição de redes pautadas por modelos prescritivos, sem
elementos contextuais e sem as estratégias para mudanças têm poucas chances
de produzirem avanços, reconhecendo-se que o arranjo piramidal e que os
clássicos instrumentos de referência e contra referência não são adequados
para os diferentes fluxos com elevados graus de interdependência que, na
prática, os serviços precisam traçar (66). Insistir nisso é aprofundar uma
segmentação dos serviços de saúde, que pouco logra aumentar produtividade.
Pelo contrário, o excesso de burocratização restringe o trabalho de cada equipe
ou trabalhador produzindo mais desestímulo, ceifando a capacidade produtiva e
criativa desses profissionais (64). Talvez um princípio importante fosse o de
instituir linhas de cuidado levando em conta a singularidade das demandas e
necessidades dos usuários, em torno dos quais estaria centrada a rede (66).
62
Coloca-se a necessidade de se instituir redes com relações mais
horizontalizadas, entre os serviços, tendo a Atenção Básica como ponto central
a ser fortalecido, operando como centro ordenador, comunicador e articulador
do sistema. Um dispositivo importante, nesse sentido, seriam as cartas de
serviços e compromissos que clareariam fluxos e facilitariam a regulação.
Aproximando-se dessas formulações, desde 2011, foram sendo criadas redes
temáticas em uma pactuação entre Ministério da Saúde e gestores estaduais e
municipais tais como Rede Cegonha, Rede de Atenção à Saúde de Pessoas
com Doenças Crônicas, Rede de Urgência e Emergência, Rede de Atenção
Psicossocial e Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência. Para concretizar
tais redes foram instituídos grupos condutores regionais e/ou estaduais para
pactuações bi ou tripartites, formulação, apoio à implantação e monitoramento
das redes temáticas (85).
Nesse sentido, o que vimos, enquanto trabalhando pela Política Nacional
de Humanização no Estado de São Paulo (2010 a 2013), foi essa iniciativa de
construção de redes se desenvolvendo quase que exclusivamente em fóruns de
gestores. Isso não parecia estar sendo discutido com trabalhadores, exceto raras
exceções, tampouco com usuários. Seus planos de ação muitas vezes
obedeciam a uma lógica matemática de distribuição leitos, procedimentos e
serviços entre os municípios de forma que todos saiam ganhando o máximo
possível de recursos (financeiros e políticos) diante de suas próprias
possibilidades estruturais. Novamente, são redes que conectam ofertas de
serviços, mas que na prática não reúnem as pessoas responsáveis pelo cuidado,
pelo fluxo do usuário. Parecem pouco ouvir as necessidades dos próprios
usuários. Não negamos que há um avanço importante já que a construção dos
planos de ação demanda um esforço regional e uma negociação entre os entes
federados muito mais efetiva do que vimos sendo desenvolvida até então. Há
avanços e heterogeneidades no processo, mas paira a sensação de que uma
forma foi desenhada dentro da qual tudo deveria se encaixar, o que é pouco
provável que aconteça.
Da mesma maneira, é frequente o argumento de que a consolidação das
redes e sua articulação depende de um robusto sistema de informação clínica,
com protocolos assistenciais pactuados (85). Não negamos a importância de tal
63
medida, ainda que a colocar como a solucionadora dos problemas (como vimos
sendo feito em diversos debates) é reduzir enormemente a complexidade da vida
real, da saúde e das doenças das pessoas, dos processos de trabalho dos
serviços, dos contextos locais e da permanente mutabilidade desses elementos
todos. Essas formulações que têm sido colocadas acabam por pautar uma rede
como se fosse algo homogêneo (ou homogeneizável), inteira, sólida e
controlável, totalmente previsível e manejável nessa lógica, mas o que temos
visto, se tomamos o cotidiano do trabalho como parâmetro, é uma rede
fragmentária, a despeito dos investimentos, que está em permanente
modificação, sempre se refazendo e se reconectando (88).
Meu diário de campo realizado no reconhecimento de serviços de saúde
em Barcelona, em 2014, por exemplo, registra um importante sistema
informatizado, que compartilha trechos de prontuários e receitas emitidas no
sistema público. A despeito das deficiências estruturais ainda presentes – como
por exemplo sistemas diferentes e que se comunicam deficitariamente a cada
entidade gestora do sistema (a gestão do sistema catalão inspira a Organizações
Sociais em Saúde brasileiras e tem o território dividido entre diferentes empresas
públicas e privadas gestoras dos serviços) – a conversa com os trabalhadores
deixa claro que tal informatização não substitui, por exemplo, as discussões de
caso realizadas presencialmente.
E aqui que concordamos com Merhy et (88):
Nos últimos anos, o debate tem crescido tanto no panorama brasileiro quanto na América Latina onde “a proliferação de redes de gestão é explicada por uma multiplicidade de fatores que atuam simultaneamente, conformando uma nova realidade administrativa”. (...) No entanto, o que prevalece nos discursos e práticas é uma forma de entender as redes como um conceito representação; retirando das mesmas aquilo que produz os seus sentidos: os sujeitos nas suas experiências vividas, no seu mundo de afecções em intensos processos de conexões a cada encontro (p.157).
Parece-nos que os modos de fazer das tais “Redes de Atenção à Saúde”,
do que depreendemos a partir desses textos, ainda precisam ser aprofundadas
teórica e praticamente, de forma que se faz necessário avançar no debate para
além de práticas e condutas formalizadas ou formalizadoras. Não podemos
deixar de reconhecer os avanços nestes 25 anos de SUS, entretanto, também
64
devemos reconhecer que não há como prescrever um modelo organizacional
único para o SUS.
Mesmo nas normativas algo sobre isso já é reconhecido quando, por
exemplo, se coloca para a RAPS a existência de duas dimensões, uma
normativo-institucional e outra operacional, que se caracteriza pelas relações
efetivas e concretas entre as pessoas, sendo temporária, fazendo-se e
refazendo-se permanentemente, dependendo de projetos que mobilizam um
certo agir comum (89).
Em vários pontos do texto trazemos que é importante relativizar os lugares
que os serviços de saúde ocupam na rede. Que um desenho estabelecido a priori
obedece mais às necessidades da gestão do que as de saúde dos usuários,
incluindo nisso o lugar ocupado pela Atenção Primária em Saúde. Não, não
discordamos que, como orientação geral, ela deva ser o centro ordenador e
coordenador do cuidado e do sistema, mas que isso também precisa ser olhado
mediante o contexto e o caso-a-caso. Como exemplo prático podemos citar o
cuidado à pessoa com Doença Rara (DR).
Figura 1 Detalhe Park Guell - http://www.aspasios.com/descubre-barcelona/wp-content/uploads/2015/01/gaudi-architecture.png - Acessado em 25/01/16
65
Em 2014 foi estabelecida a Política Nacional de Atenção Integral às
Pessoas com Doenças Raras (PNDR), construída na mesma lógica das redes
temáticas já citadas neste texto. Objetiva organizar a atenção às pessoas com
DR, reduzindo o sofrimento de pacientes e familiares e visando uma
racionalização de recursos (90).
Tal política e alguma literatura ressaltam a Atenção Básica como porta de
entrada dos pacientes, a partir de onde seriam disparados os processos de
diagnóstico e de cuidado. Estima-se que um médico de família, com seus 2000
pacientes, atenderia de 15 a 20 afetados por DR distintas, os quais teriam dentre
suas principais necessidades as de coordenação entre os níveis assistenciais e
acompanhamento (91), além de diversas outras, que mudam no transcurso da
enfermidade e da vida (92). Assim, tem-se considerado o profissional (médico)
da AB como o mais capacitado para as tarefas de coordenação do caso e
acompanhamento (90–92).
Tivemos acesso ao relatório de uma pesquisa catalã sobre a assistência
às pessoas com Doenças Raras que nos dão outra perspectiva sobre o assunto.
Nessa investigação observou-se que esta é uma rede centrípeta, sempre
acionada pelo usuário e/ou sua família e que, muitas vezes, é grandemente
apoiada pela associação de portadores da enfermidade em questão, a qual
desempenha um papel central de articulação, ativação e coordenação da rede.
São acionados de 23 a 31 atores diferentes! E ao se olhar para a densidade de
tais redes vemos que a AB tem uma posição periférica, sendo um dos pontos
menos acionados. Na prática, o que se nota é que, em termos gerais, nesse nível
do sistema, não se tem conseguido ofertar acolhimento e acompanhamento ao
enfermo e sua família. O desconhecimento das enfermidades e a dificuldade do
problema invisibilizam esses casos. Mesmo quando se trata da função de dar
entrada ao sistema, na prática, usuários e familiares relatam que frequentemente
se recorre muito mais a vias informais e aos serviços de Urgência e Emergência
para atendimento e devidos encaminhamentos. Existe também um vazio
estrutural na relação desta com a atenção especializada, que geralmente é
intermediada apenas através de documentos (54).
Diante disso, seria mesmo a Atenção Básica que deveria ter um papel tão
central na rede de cuidado da pessoa com DR? Quando olhamos para a
66
densidade das redes desenhada pela pesquisa vemos uma grande importância
das associações de pacientes e familiares portadores destas patologias, que tem
um crucial papel de suporte ao paciente e sua família, sendo efetivamente uma
das principais articuladoras. Elas desempenham um papel de apoio aos
envolvidos informando sobre quais recursos estão disponíveis nessa rede, seja
em termos assistenciais, seja de suporte material ou de inserção escolar. Além
delas próprias cumprirem papéis de suporte afetivo e de questões para a vida
diária (54). O papel das associações como pilar na construção dos mapas de
cuidado que os usuários produzem para si merece um olhar mais detalhado, elas
têm cumprido um papel chave como nós multiplicadores e conectores (93).
Ainda que as associações tenham participado da formulação da PNDR,
perguntamo-nos se elas próprias não deveriam ter um reconhecido papel no
cuidado a ser produzido para cada paciente. Quando a PNDR explicita para cada
serviço suas “interfaces recomendadas” essas entidades não aparecem (1). Por
outro lado, sabemos que os mapas de cuidado criados pelos usuários são
móveis, contingentes e impermanentes, conectando seus pontos a partir de suas
necessidades. Talvez nesse diálogo entre equipes e
usuários/familiares/associações que pode residir um profundo avanço do SUS,
em uma experimentação radical de uma gestão conjunta do cuidado entre
equipes e usuários (94).
Diante disso podemos pensar em revisitar certas responsabilidades
atribuídas a AB na PNDR: não podemos inverter o fluxo do Apoio Matricial? Com
a AB matriciando seus saberes à especializada? Ou mudar o local onde se
conduzirá um Projeto Terapêutico Singular? Porque não o fazer a partir da
Atenção Especializada, por exemplo? Porque não produzir uma linha de cuidado
a partir do hospital de modo que a equipe especializada, que tem contato mais
frequente e tem mais prática com as especificidades desse tipo de enfermidade,
possa construir e coordenar de maneira mais protagonista os projetos
terapêuticos desses usuários? São pontos práticos para a construção de redes,
para o que se faz essencial esse fortalecimento das relações e de seus pontos.
Claro que não estamos tratando de uma legitimação de qualquer modelo
hospitalocêntrico, mas sim que cada caso é um caso e que o melhor local para
se operar a gestão da clínica pode variar de um para o outro, e no tempo, tendo
67
em vista a necessidade concreta do usuário (95), implicando a responsabilização
de cada lugar da rede com cada caso.
Por fim, em se falando de dispositivos de gestão do trabalho e da clínica,
cabe comentar algo sobre as experiências que disparam as questões
instigadoras desse doutorado: o trabalho junto à Política Nacional de
Humanização (PNH) realizado de 2010 a 2013. Foram três anos como apoiador
do Ministério da Saúde no Estado de São Paulo, atuando junto a Secretaria
Estadual de Saúde (SES) e inúmeras secretarias municipais, acessadas via
Departamentos Regionais de Saúde (DRSs) e Comissões Intergestoras
Regionais (CIRs) do interior do estado e da capital.
Tal política advoga para si um trabalho com uma ideia de humanização
que não passa pela idealização do homem, mas sim a partir do "SUS que dá
certo", ou seja, de experiências nas quais se observa um reposicionamento dos
sujeitos implicados nas práticas de saúde. Desta forma pleiteia trabalhar com a
interferência nestas práticas, considerando que os sujeitos que dela participam,
quando mobilizados, são capazes de transformar a si mesmos e as suas
realidades. Pretendem investir naqueles que constituem, usufruem, transformam
o sistema de saúde, acolhendo e promovendo seus protagonismos (96).
Figura 2 Detalhe Casa Batlló - https://images.trvl-media.com/media/content/shared/images/travelguides/destination/179992/Casa-Batllo-52406.jpg - Acessado em 25/01/16
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Numa perspectiva de ruptura com a concepção de humanização a partir
de uma visão da benesse, a PNH busca a reflexão sobre a qualidade de serviços
prestados à população e fragilidades na rede de atenção em saúde, bem como
um novo olhar para as demandas dos trabalhadores da saúde, buscando nas
experiências concretas de um “SUS que dá certo” o referencial para a construção
dos princípios e diretrizes dessa política que entra no cenário nacional a partir
de 2003 (97), saída de formulações e experiências diversas da Saúde Coletiva
brasileira, para a institucionalidade da política pública, pretendendo “contagiar”
serviços de saúde, propagando certo modo de fazer o trabalho em saúde.
A PNH busca se construir como uma política transversal no sistema de
saúde, ou seja, ela intenciona se concretizar tanto nas rotinas dos serviços, como
também nas instâncias de gestão, fomentando rodas de conversa que busquem
a reflexão sobre os processos de trabalho, a produção de serviços, as trocas de
saberes e, principalmente, as mudanças de práticas de saúde (96). Tal política
se constitui por princípios e diretrizes, operando certo modo de fazer através de
dispositivos (98).
Aqui, por princípio, entende-se o que alavanca ações, dispara
movimentos no plano das políticas públicas. Neste caso, o movimento proposto
é o da mudança dos modelos de atenção e gestão fundados na racionalidade
biomédica (fragmentados, hierarquizados, centrados na doença e no
atendimento hospitalar) (99). Assim, afirma-se como política pública de saúde a
partir de: inseparabilidade entre clínica e política, implicando em inseparabilidade
entre atenção e gestão dos processos de produção de saúde; transversalidade,
ou o aumento do grau de abertura comunicacional nos grupos e entre os grupos,
isto é, a ampliação das formas de conexão intra e intergrupos, promovendo
mudanças nas práticas de saúde; e protagonismo dos sujeitos e dos coletivos
(98). As diretrizes, institucionalmente colocadas, são as orientações gerais da
política, tais como: clínica ampliada, cogestão, valorização do trabalho,
acolhimento, defesa dos direitos do usuário etc. Já os dispositivos atualizam
essas diretrizes através de estratégias construídas nos coletivos concretos para
promoção de mudanças nos modelos de atenção e de gestão em curso, sempre
que tais modelos estiverem na contramão do que preconiza o SUS. Desses
podemos citar: acolhimento com classificação de risco, colegiado gestor, visita
69
aberta e direito a acompanhante, equipe de referência, projetos terapêuticos
singulares, apoio matricial etc. (99).
Com relação ao método, seu "modo de caminhar", diz que é o da "tríplice
inclusão": inclusão de diferentes sujeitos; dos analisadores sociais e inclusão dos
coletivos (98). Não é algo tão simples de se fazer, produz movimentos ambíguos
e contraditórios que precisam de práticas de gestão capazes de suportar o
convívio com a diferença produzindo comum e construindo projeto coletivo. Não
é fácil, mas é exatamente esse efeito desestabilizador que torna a inclusão tão
interessante. As tensões produzidas serão matéria-prima para a construção de
modos de gestão mais próximos de interesses coletivos e de práticas clínicas
mais ligadas à produção de vida. Incluir para reforçar a prática democrática,
ampliar as redes e potencializar serviços, equipes e sujeitos.
Trata-se da produção de novos sujeitos e novas práticas. Uma produção
que se advoga necessária para construir possibilidades para além dos limites de
saberes e práticas estanques. Parece-nos uma exigência para se produzir mais
e melhor saúde. Pode-se considerar esse um dos nós de uma rede, sujeitos em
produção que se encontram na diferença para produzir projetos comuns (100).
Ainda que as redes sejam compostas de sujeitos, também podemos
visualizar outros nós delas. As equipes são redes em si, precisam ser
fortalecidas e ousarem sair de seus lugares de saber e poder para encarar as
fronteiras disciplinares podendo ser capazes de expor suas fragilidades, de
compartilhar suas clínicas e seus cuidados, ampliando seus horizontes e
melhorando sua produção de saúde.
Serviços e redes de atenção se reinventam cotidianamente, mas para que
isso possa ocorrer precisam de seus espaços de compartilhamento de gestão,
pois assim espera-se que possam construir modos de trabalhar que promovam
maior impacto, melhores indicadores de saúde, soluções mais criativas, maior
satisfação com o trabalho, tanto por parte do trabalhador como dos usuários e
gestores. Os próprios territórios são nós da rede e para eles também deve ser
dada a atenção, pois também estão em reinvenção e afirma-se, então, a ideia
de que esse território deve abrigar redes sem hierarquia, espalhadas
horizontalmente e que propiciem bons encontros (100).
70
Muitos desses nós seguem funcionando de formas mais ou menos
convenientes à produção de saúde de qualidade e de amplo acesso, diversas
vezes a reflexão sobre a produção dos fluxos, das conexões, dos encontros entre
esses nós provocou inquietude. Consideramos que o agenciamento, as tensões,
os conflitos, os acordos e os consensos produzidos a partir desses encontros
agem a favor da melhoria da qualidade da produção de saúde dos serviços de
saúde individualmente e de sua composição enquanto rede.
Nesta prática, encontramos no apoio matricial um potente dispositivo
nesse sentido. Dispositivo com a potencialidade de reforçar os nós e aproximar
as pessoas e as equipes. Uma estratégia para subverter a hierarquia piramidal
do sistema, reforçando conexões e apoiando o desenvolvimento do território
(72).
A personificação, presencial, da referência e da contra referência, através
do apoio matricial, com o compartilhamento do caso, pode ter uma diversidade
de efeitos interessantes. A abertura para intervenções multi e interprofissional, a
co-responsabilização das equipes pelos projetos terapêuticos e planos de
cuidado, a articulação dos diversos saberes clínicos e de saúde coletiva, o
clareamento da coordenação do cuidado etc. (101).
Em seu próprio termo, apoio matricial, carrega dois conceitos operadores.
O apoio, entendido como aquele que ampara, sustenta, apoia, empodera. E a
matriz, pensando na equação matemática, que permite operações na vertical e
na horizontal (102). Assim, conceitualmente, esse dispositivo se pretende (não
garante) superador de hierarquias.
Além de atuar na aproximação das equipes, como já dito, pode auxiliar a
organização e ampliação da oferta de ações de saúde, oferece retaguarda
assistencial e técnico-pedagógica às equipes e produz uma responsabilização
pactuada, reorganizando os fluxos e fortalecendo a rede de atenção (101). Ainda
assim, temos visto, diversas vezes, o local do apoio ser tomado como um local
de poder e produzir mais hierarquização ao invés da pretendida horizontalização.
Qualquer linha de fuga produzida, se institucionaliza em certo território e pode
voltar a compor um certo cenário capturado e vertical. Pode-se superar
hierarquias e/ou produzir novas.
71
Tal dispositivo pode ser operado de diversas formas, seja o atendimento
conjunto de casos, a discussão de caso ou a construção de projetos terapêuticos
singulares e/ou coletivos. Muitas vezes atuando na perspectiva teórica da
educação permanente, mas também na das atividades de capacitação, se
necessário for. Pode abordar temas clínicos, de saúde coletiva ou de gestão do
sistema, da unidade ou da equipe (102).
A principal pauta desses 3 anos de trabalho na PNH foi justamente a
construção de redes e o fortalecimento da regionalização. De tal forma que o
dispositivo Apoio Matricial era constantemente colocado em debate. Chamava-
me atenção o quanto a produção de encontros entre os serviços, através desse
dispositivo era impactante. As discussões eram feitas através de oficinas, em
geral por CIR, envolvendo trabalhadores e gestores dos diferentes municípios.
As oficinas tornaram-se regulares por algum período de tempo, em cada DRS,
em geral mensais por pouco mais de um ano.
Verificávamos que trabalhadores que frequentavam as oficinas que
desenvolvíamos e posteriormente atuavam junto a suas redes como apoiadores
reforçavam as gestões locais colocando no debate a possibilidade de aumentar
a autonomia dos sujeitos e também de ampliar a capacidade de produção da
clínica e das ações coletivas, da produção de mudanças no desenho da rede de
atenção e no aumento da capacidade para dialogar com outros setores. Este se
colocava como um trabalho inventivo e criativo.
E então, para além dos efeitos que sentíamos de dispositivos como o
Apoio Matricial sendo implantados, começamos a notar outros movimentos
interessantes. Um comum começava a se produzir entre os trabalhadores que
participavam das oficinas com mais frequência. Os assuntos variavam entre o
compartilhamento das angústias geradas pelos casos difíceis até as dificuldades
com a gestão para implementar as ações que eram discutidas nas oficinas. E a
partir dessa troca sobre os problemas, variadas soluções eram construídas para
responde-los. Em cada contexto local, as possíveis soluções ganhavam novas
nuances.
Em vários desses espaços a reverberação municipal dos trabalhos
tornou-se pouca para os anseios dos participantes. Uma certa formalidade que
girava em torno da instauração de trabalhos de apoio matricial já não era
72
suficiente para responder às demandas de gestão e processos de trabalho.
Nesse momento que vimos novos espaços sendo criados, sem a minha
presença (do apoiador do Ministério da Saúde), ou das referências do DRS para
o debate. Eram caminhos laterais, que conectavam iniciativas de cidades
vizinhas, em geral as menores, em um auxílio mútuo para processos formativos
ou para compartilhamento da agenda de profissionais especialistas.
Trazer o micropolítico é trazer os lugares onde as existências furam os muros institucionais, conectando relações com o fora que é constitutivo dos processos; processo este intensamente produtor de novos sentidos no viver e no conhecimento. É trazer o lugar dos processos de encontros e suas atualizações das relações de poder. É trazer a micropolítica do encontro e a produção viva das redes de conexões existenciais, multiplicidades em agenciamento (88).
Apostamos que esse movimento de produzir, com o coletivo, processos
de escuta, análise, construção de textos coletivos, definição de tarefas, redes de
responsabilização e avaliação resulta, efetivamente, em mudanças nas formas
de se gerir, em exigências sobre as condições de trabalho e de gestão, no
aumento da capacidade de manejo de casos complexos e em uma construção
sistêmica da rede de atenção à saúde (103).
A organização do SUS excessivamente normatizada impõe amarras ao
trabalho em rede e revela a ineficácia das estruturas de uma organização que
ignora a contribuição efetiva, micropolítica, de determinadas práticas de saúde
para além de uma rede de serviços de saúde. Construções conceituais e
operativas para qualificar a gestão de práticas de cuidado, uma gestão em rede,
exigem mais do que espaços que ofertem determinados serviços, exigem uma
produção singular, que passa pela mobilização de uma produção comum e que
por sua vez passa por outro modo de apreender o coletivo, que seja pela criação
e valorização de espaços coletivos nas práticas cotidianas de atenção e gestão.
Assim, se os espaços coletivos são conceitos, ou, arranjos que podem
tomar a forma de equipes de trabalho, entre outras, a ativação dessa rede
nesses espaços de construção de políticas públicas pode tensionar uma
organização social que tem aprisionado modos de produção coletiva. No
reconhecimento desses desafios de trabalho e gestão em saúde vem se
buscando construir certa institucionalização deste debate, através de diversas
políticas, programas, arranjos, iniciativas. Mas estes arranjos, para serem
73
dispositivos de construção dessa rede, dependem do modo como serão
operados no cotidiano, da dinâmica coletiva do trabalho em saúde, do modo
como as redes se expressam nos encontros. E para além dos espaços coletivos,
como se tem gerenciados os encontros para a produção de redes? Ou, como
produzir redes, concretamente, poderia passar por arranjos mais do que
burocráticos ou de gestão, mas sim pautados nos encontros, nas dinâmicas
cotidianas, nas necessidades de trabalhadores e usuários?
74
CAPÍTULO 3 – UMA REDE EM CONSTRUÇÃO E EM
MOVIMENTO: A Experiência do Consultório na Rua
É meu segundo dia de trabalho. Combino de encontrar a equipe e a Kombi
em uma praça no centro da cidade, perto da qual eu morava. Em cima da hora,
cruzo uns 5 quarteirões correndo. Perto da principal avenida do centro da cidade
está uma das redutoras de dano conversando com um homem alto, magro, de
cabelos curtos bastante cacheados, de castanho claros a brancos. Era Seu
Joaquim7, o primeiro paciente com o qual me vincularia (sim, me vinculo com
eles, não só eles comigo). Olhei ao redor, vi o que sempre havia visto sem
perceber… os oito bancos, tipo jardineiras, sob árvores, estavam ocupados por
pessoas maltrapilhas, de olhar baixo, conversando pouco animadamente
naquela manhã fresca. Seu Joaquim já estava bêbado. Para nós é pouco
importante o motivo, mas curioso contar que foi para a rua procurando um irmão
“boleiro” que sumiu. Encontrou apenas corpos, violência, roubo e cachaça…
mais de quinze anos e não tinha mais conseguido voltar (foi o que ele me disse…
talvez a história tenha sido um “pouco” diferente).
Ele estava sob investigação de um quadro pulmonar ainda pouco claro,
possivelmente uma tuberculose. A missão do momento era leva-lo para realizar
uma radiografia de tórax. Vamos com ele a um Pronto Atendimento da cidade, o
único, naquele momento, com serviço de imagem funcionando. Conversamos
com a recepção e somos colocados na fila de atendimento geral dos demais
usuários. Ficamos nós, e nossa manhã de trabalho, travados naquela sala de
espera. Fazemos sucessivas conversas com a recepção, com a enfermeira
responsável do plantão e não conseguimos sair do lugar. “Bruno, vai ter que dar
uma carteirada, senão a gente vai passar a manhã toda aqui” avisou-me uma
colega8. Os outros usuários do serviço já haviam se afastado de nós, um círculo
de proteção contra o mal cheiro. O desconforto do seu Joaquim era evidente.
Iríamos perder a oportunidade de fazer o exame e fragilizar o vínculo dele com
7 Todos os nomes utilizados são fictícios. 8 Para proteger a identidade dos trabalhadores participantes da pesquisa não referiremos sua categoria profissional, a gestora também será identificada como trabalhadora, também, com este propósito, não estaremos atentos ao gênero ao nos referir a trabalhadores e trabalhadoras.
75
a equipe caso continuássemos naquela espera estéril. “Sou médico, de um
serviço do SUS, e quero falar com o responsável do plantão! ”.
A “carteirada” funcionou. Não foi a última.
Seu Joaquim segue na rua. Naquele momento, não estava adoecido por
tuberculose, já esteve, voltaria a estar… naquela mesma praça, dias depois,
identificamos uma agudização de icterícia e constatamos um quadro
consumptivo importante. Foi internado em hospital secundário9. Ao menor
esboço de melhora, ele “evade” do nosocômio. A terapêutica medicamentosa e
a investigação médica ficam incompletas, ainda que se tenha algum avanço. Na
nossa experiência só existem duas coisas que fazem com que uma pessoa, que
dorme sob o céu e cuja circulação é limitada apenas pelos cassetetes da Guarda
Municipal, fique em um quarto hospitalar por muitos dias, com horários
controlados para tudo... ou o afeto, ou a sedação. A semana da internação foi
atribulada, não foi possível visita-lo. Sem o vínculo com a equipe do hospital e
sem a nossa companhia ele, naturalmente, foi embora.
Conseguir uma contra referência mínima, ao menos os resultados dos
exames de imagem e dos laboratoriais especializados, foi um trabalho quase
hercúleo de várias semanas e que demandou a ativação de uma rede de
contatos interna ao hospital, ainda que totalmente externa ao caso e ao setor de
internação. Enquanto isso, Seu Joaquim, com fôlego renovado, suporta mais
algumas semanas na rua, antes de vir pedir-nos ajuda para manter-se
abstinente. Até então, também havia recorrido a entidades beneficentes
religiosas e a serviços da Secretaria de Assistência Social. Conseguiu caminhos
para investir na própria vida e fazer algo além de ‘manguear’, beber e ficar na
praça. Outros desejos, em especial o pela vida, haviam surgido. Outras
articulações são feitas e seguimos na “marcação homem-a-homem” dele e dos
serviços que o assistem ou deveriam fazê-lo…
Essa é uma dentre tantas outras histórias que nos instigam a pesquisar a
construção de rede realizada pela equipe do Consultório na Rua de Campinas.
9 Nesse capítulo nos referimos aos hospitais como “secundário” ou “terciário” para dar ao leitor uma ideia do porte da instituição e da complexidade tecnológica dura, sem querer voltar a um paradigma hierarquizado de rede.
76
De imediato intuímos uma construção de rede pautada na construção de
relações entre pessoas, pouco protocolar e muito ligada à demanda do usuário
e, mais, que a construção de rede é indispensável para este trabalho (104–107).
O tema do Consultório na Rua, do cuidado à população em situação de
rua, da clínica de Redução de Danos é extremamente instigante e necessitamos
de um esforço para não abandonar a discussão da rede para ficar na discussão
sobre essas temáticas tão pouco estudadas e que ainda tem muito a nos dar em
reflexões sobre a clínica, a organização dos serviços, a política pública etc. De
uma maneira ou de outra, acabamos abordando isso ao longo do texto, mas o
foco é trazer o consultório na rua como um dispositivo para fazer ver e falar como
se constroem as redes de cuidado, as relações entre os serviços, no cotidiano,
claro que dentro de uma constelação de conceitos, de um diagrama de forças
que compõem essa ideia.
A Política Nacional para População de Rua (PNPR) foi criada em 2009,
definindo população em situação de rua como o grupo populacional heterogêneo
que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos
ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os
logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de
sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de
acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória (108). Uma
situação, portanto, de vulnerabilidade social, programática e individual. Seus
princípios de integralidade, equidade, dignidade, convivência social, respeito à
vida e à cidadania, atendimento humanizado e respeito às diferenças se
atualizam em 10 diretrizes, para operar 14 objetivos. Achamos relevante citar
alguns deles aqui.
Art. 6º - São diretrizes da Política Nacional para a População em Situação de Rua: I - Promoção dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais; II - Responsabilidade do poder público pela sua elaboração e financiamento;
III - articulação das políticas públicas10 federais, estaduais,
municipais e do Distrito Federal; IV - Integração das políticas públicas em cada nível de governo;
10 Grifos nossos
77
VIII - respeito às singularidades de cada território e ao aproveitamento das potencialidades e recursos locais e regionais na elaboração, desenvolvimento, acompanhamento e monitoramento das políticas públicas; X - Democratização do acesso e fruição dos espaços e serviços públicos. Art. 7º - São objetivos da Política Nacional para a População em Situação de Rua: I - Assegurar o acesso amplo, simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as políticas públicas de saúde, educação, previdência, assistência social, moradia, segurança, cultura, esporte, lazer, trabalho e renda; II - Garantir a formação e capacitação permanente de profissionais e gestores para atuação no desenvolvimento de políticas públicas intersetoriais, transversais e intergovernamentais direcionadas às pessoas em situação de rua; IV - Produzir, sistematizar e disseminar dados e indicadores sociais, econômicos e culturais sobre a rede existente de cobertura de serviços públicos à população em situação de rua; VI - Incentivar a pesquisa, produção e divulgação de conhecimentos sobre a população em situação de rua, contemplando a diversidade humana em toda a sua amplitude étnico-racial, sexual, de gênero e geracional, nas diversas áreas do conhecimento; X - Criar meios de articulação entre o Sistema Único de Assistência Social e o Sistema Único de Saúde para qualificar a oferta de serviços;
Tais diretrizes e objetivos já nos dão a perceber que o cuidado à
População em Situação de Rua (PSR) é bastante complexo e que demanda o
acionamento de múltiplas variáveis e pontos de acesso. Tensiona-nos práticas
de saúde que vão além dos princípios e diretrizes do SUS, objetivando responder
às singulares demandas dessa população, atualizando, de passagem, estes
eixos que podem ser inspiradores das práticas de saúde.
“Articulação de políticas públicas”, “integração de políticas públicas”,
“Respeito às singularidades de cada território”, “assegurar o acesso amplo,
simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as políticas
públicas de …”, “formação e capacitação permanente (…) para políticas públicas
intersetoriais, transversais e intergovernamentais”, “criar meios de articulação
entre o SUAS e o SUS” – essas são algumas das expressões contidas nesses
dois artigos que nos remetem à necessidade, e talvez inevitabilidade, da
construção de redes para o cuidado dessas pessoas.
78
Acrescentamos à vulnerabilidade social, em complexidade para a
situação, a grande heterogeneidade dessa população e o espectro enorme de
condições de saúde e doença que a acomete (109,110). Podemos citar o senso
comum, em que encontramos uma grande população em uso nocivo de álcool e
outras drogas, mas sem esquecer que temos alta prevalência de outras
condições psiquiátricas, de leves a graves. Também encontramos com
frequência doenças infectocontagiosas como as sexualmente transmissíveis e a
tuberculose, enormemente mais prevalentes do que entre a população geral
(que chega a ser 57 vezes mais frequente (111)). Em um levantamento,
encontrou-se que os problemas de saúde mais prevalentes seriam: hipertensão
(10,1%), problema psiquiátrico/mental (6,1%), HIV/AIDS (5,1%) e problemas de
visão/cegueira (4,6%) (106). No frio, a hipotermia, no calor, a desidratação. Vale
ressaltar a condição delicada das mulheres que além de todas essas questões,
também precisam lidar com uma grande violência de gênero (somada à violência
da rua) e com as gravidezes (até 6 vezes mais frequente do que na população
geral (111)) – as quais costumeiramente recebem um “não” de serviços de
obstetrícia pelas condições psiquiátricas e um “não” dos serviços saúde mental
e psiquiatria devido à condição obstétrica.
Em se falando sobre portas fechadas, percebemos que a PNPR também
busca garantir o mínimo de direitos a essa população tão descriminada. No
cotidiano, verificamos frequentes situações de descaso, negligência e até
mesmo de agressividade contra a população em situação de rua, mesmo nos
serviços de saúde que frequentemente os recebem (104). Outro dia, um usuário
relatava um atendimento ocorrido em um Pronto Socorro, após cerca de 18 horas
de espera: “Aí a médica perguntou se eu usava droga. Uso! Se bebia. Bebo!
Então ela apertava aqui [seu tórax, com uma possível contusão de costela]. Ei,
dói! E aí ela apertou de novo! E de novo! ”. E em uma reunião de equipe relatam:
“Ligaram avisando que o Roberto fugiu do PA! ”, disse um trabalhador.
Interpelado por outro: “Mas ele mal consegue andar, bêbado e de andador! ”.
Esclarece o primeiro: “Deixaram ele ali na porta, umas horas. Aí ele foi né…”.
Conta-se que um dos trabalhos dos seguranças de determinado Pronto
Atendimento, alguns anos atrás, era, literalmente, jogar moradores de rua para
fora do serviço.
79
Poderíamos preencher páginas e mais páginas de relatos cotidianos
sobre as violências contra essas pessoas, esses são apenas alguns muito
claros. Mesmo quando a assistência se dá, verifica-se que é muito pontual, sem
uma continuidade do cuidado (112). Assim, não é de se espantar que tal política
paute formação de trabalhadores para o atendimento delas, bem como a criação
de centro de defesa dos direitos humanos e serviços específicos para o
atendimento da PSR.
Diante da complexidade dos casos e da resistência dos serviços já
instituídos, a solução de criação de serviços de saúde específicos tem sido vista
como uma possibilidade de construção de saídas para essas problemáticas
(109). Isso também tem sido levantado como uma possibilidade diante das
inexistências de protocolos de atendimento a essa população, que esbarra em
muitas recusas à demanda por assistência (104). A resposta institucional do SUS
ante esse desafio passa, entre outras, pela criação de uma rede “especializada”
de atenção.
Criam-se os consultórios de rua, experiências heterogêneas no país, ora
como uma equipe de saúde da família específica de um centro de saúde que
tem em seu território grande população moradora de rua (Programas de Saúde
da Família sem Domicílio), ora como equipes com essa especificidade de
trabalho ligados a equipes de Saúde Mental. De um modo ou de outro sempre
trabalhando com a Redução de Danos como uma tecnologia de cuidado, e
operando técnicas de produção de conversa, essencial (106,113,114).
A Portaria 122, de 25/01/2011, consolida essas experiências com o
estabelecimento das diretrizes de organização e funcionamento de equipes de
Consultório na Rua (CnaR) na Atenção Básica. Aqui se estabelece uma atuação
itinerante – os trabalhadores vão até os usuários, com ações compartilhadas
com unidades básicas de saúde, centros de atenção psicossocial, urgência e
emergência etc. Prevê-se que as Unidades Básicas de Saúde que adscrevem
os territórios onde estão os usuários atendidos pelas equipes de CnaR disporão
de suas estruturas físicas para apoiar tal trabalho (115).
Na revisão da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), o Consultório
na Rua é colocado como uma equipe de Atenção Básica para população
específica. Reconhece-se que a responsabilidade pela atenção à PSR é de todo
80
e qualquer profissional de saúde, mas que se faz necessário ampliar o acesso,
em situações específicas, à essa população, uma questão de equidade. Reforça-
se o caráter móvel e itinerante do trabalho e a necessidade do estabelecimento
de parcerias com os diversos pontos de atenção de rede de saúde e de
assistência social.
Recente texto sobre a Rede de Atenção Psicossocial reconhece:
A mudança de gestão do serviço Consultório de Rua da Saúde Mental para o Departamento de Atenção Básica, momento em que passa a se chamar Consultório na Rua, significa mais do que uma simples passagem de responsabilidade. O vínculo possibilitado entre profissionais e usuários, a partir da abordagem da equipe do consultório, cria condições de oferta de cuidado integral ao usuário, favorecendo, sobretudo, o acesso deste aos demais serviços do SUS, a depender de sua demanda em saúde. A compreensão de que a população em situação de rua possui necessidades de saúde que vão além do cuidado relacionado diretamente ao uso de álcool e outras drogas contribuiu para que se tomasse a decisão sobre a referida alteração (89).
O Manual Sobre o Cuidado à Saúde junto a População em Situação de
Rua, do Ministério da Saúde, prevê a necessidade de articulação com outras
Unidades Básicas de Saúde e de construção de espaços de gestão
(planejamentos, projetos terapêuticos, discussão de casos) Inter equipes e
articulado com os NASF. A reunião de equipe é importante momento de gestão
e de cuidado do trabalho e do trabalhador. Nesse sentido outros espaços
também podem ser criados seja dentro do próprio CnaR ou incluindo outros
serviços da rede, tais como grupo focais, rodas de conversa, grupos de apoio,
terapias comunitárias etc. (106). Em Campinas o CnaR foi criado em 2012
contando, hoje, com concepções, estratégias, tecnologias e práticas que
constituem, ou que deveriam constituir, uma rede de atenção à saúde de
usuários do SUS em condições extremas de marginalidade.
Atualmente o CnaR/Campinas opera com cerca de 20 trabalhadores e
trabalhadoras entre médicos e médicas, psicóloga e psicólogo, terapeuta
ocupacional, enfermeiras, técnicas de enfermagem, redutor e redutoras de dano,
motoristas, assistente social e a gerência (116). Em nossa experiência temos
visto a equipe lidando com usuários de alta complexidade clínica e social,
recorrendo à produção de uma rede para o atendimento integral dessas pessoas
feita no contato entre os trabalhadores de diferentes equipes, inclusive, e talvez
81
principalmente, pessoalmente. Com uma sala (base) em um Centro de Atenção
Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD) e uma Kombi para os deslocamentos
pelo município, vemos a equipe realizar, além de suas buscas ativas em diversos
espaços, o acompanhamento desses pacientes e a interlocução presencial com
diversos outros serviços da cidade. O caráter itinerante da equipe a municiou
com os recursos do encontro presencial, da conversa, da negociação e da
disputa com as diversas outras equipes buscando garantir a integralidade do
cuidado de sua população adscrita (116).
Ao conhecer o trabalho deste serviço e olhar para seu processo de
trabalho, essa itinerância logo chama a atenção. A equipe está em permanente
deslocamento. De sua base para locais onde tem campos fixos de atendimento
à PSR – pontos de referência onde essas pessoas podem encontrá-la sempre
nos mesmos horários da semana – ou para circular pela cidade buscando
gestantes, pessoas com tuberculose, respondendo a demandas de outros
serviços por atendimento de usuários em específico ou grupos de pessoas
ocupando determinado ponto (de casas abandonadas a bueiros, até mesmo a
marquise de um hospital, pelo qual só é visto da porta para fora, como um
mendigo que estende a mão impertinente).
Esse movimento também coloca a equipe com a possibilidade de
acompanhar os pacientes aos exames que precisam fazer ou às consultas com
especialistas, ou visita-los em internações. Encaminhar uma pessoa em alguma
situação de urgência, costumeiramente, significa ir com ela até os serviços de
referência e apresentar o caso, contar a história da pessoa, informar o que acha
que é necessário ser feito e perguntar pela opinião da equipe que está
recebendo.
Mas não estou cometendo nenhum spoiler. Isso se percebe em um
qualquer dia em que se acompanhe a equipe. E é isso que traz tal trabalho para
essa pesquisa. Como se dá, então, uma construção de rede no cotidiano, na
construção de relação entre usuários e trabalhadores e entre trabalhadores de
diferentes equipes? Pegando aqui casos que nos permitem produzir um
conhecimento a respeito das maneiras pelas quais uma rede de produção de
saúde pode ser construída. Discutir Seu Joaquim, e os demais que se seguirão,
e redes de cuidados em saúde é, portanto, uma oportunidade de contribuir para
82
a qualificação da atenção a estas populações portadoras de “necessidades
especiais”.
E, não menos importante, uma oportunidade de invadir aquilo que
tomamos como natural, certa rede, certo cuidado, determinado modo de operar
a clínica e de operar os processos de trabalho em saúde.
Mais alguns detalhes dos percursos éticos, estéticos e
metodológicos do pesquisar
Essa pesquisa faz parte de um doutorado que tem como eixo central de
debate a produção de redes. Identificamos nesse campo de investigação a
potencialidade para verificar a construção de uma rede relacional, micropolítica,
em ato, em um curto espaço de tempo, com um acompanhamento feito em
grande intensidade – o intenso é do tempo do investigador implicado, é da
intensidade das vidas vividas. A equipe foi acompanhada por 12 horas semanais
em atividades de campo, além de mais 3 horas semanais da reunião da própria
equipe, por 6 meses. Outros espaços e reuniões também foram frequentados,
como reuniões de debate sobre a relação entre serviços ou discussões de casos
com a participação de mais de um serviço, espaços de matriciamento, reuniões
entre serviços para debater fluxos.
O trabalho de acompanhamento, com produção de diários de campo,
seguiu até os últimos momentos de construção desse texto, buscando
apreender, captar, a amplitude da rede acionada pela equipe do CnaR, dando
atenção aos casos atendidos, e às necessidades por eles evocadas, e à maneira
como, a partir destes, a rede é tecida. Aqui não demos atenção apenas a
contatos produtores de boas relações ou de relações de cuidado, mas também
às portas fechadas, às negativas, aos conflitos etc.
Aqui retomamos algo sobre o qual temos nos debruçado a respeito de um
referencial metodológico, o trabalho da escrita, que começa no registro dos
trabalhos de campo, o diário de campo. Vemos o uso desta ferramenta de
pesquisa como uma aposta de ter na escrita uma forma de dar visibilidade, de
fazer falar, de fazer contar, de trazer algo que é pessoal, mas que pode se
83
extrapolar e trazer outras coisas à cena. Tem sido apontado como importante
meio para fazer um acompanhamento de processos na/da vida real enfatizando
não apenas os processos dos quais o pesquisador está tomando parte, mas
também ressaltando as linhas de forças (relações de poder e vetores de
produção de subjetividade) que neles se fazem presentes no campo e no
trabalho do investigador nele, suas implicações (30).
Em um segundo momento de escrita (já não presencialmente no campo
de pesquisa), a possibilidade de releitura das notas do diário traz acréscimos à
reflexão a partir dessa (re) construção à distância em relação ao experimentado.
Ao realizá-la pode-se produzir outras ideias sobre a prática e servir de fonte para
trabalhar a congruência entre teoria e prática – ainda que para nós teoria e
prática não se dissociem. Esse momento de construção “à distância” também
coloca o diário como um instrumento para a pesquisa, tanto quanto serviria para
a coleta de dados (31), ou, poderíamos dizer, instrumento para a expressão da
produção dos dados no campo de pesquisa.
Escrever é a composição de paisagens e enunciados que se atualizam ao
passarem pela mão do autor. É a tradução de histórias, da descoberta, do novo,
revelado em ato (34).
Como método de pesquisa e de escrita temos trabalhado com a ideia de
“interpolação de olhares”, desenvolvido e explicitado neste doutorado, um
trabalho rizomático em que qualquer ponto, qualquer fala, qualquer conversa
pode se conectar com qualquer outra, de diversas maneiras, em uma conexão
singular, no percurso da produção (ou contestação ou reafirmação ou
negação…) de uma ideia. É uma escrita que percorre um caminho em que
conexões fortuitas podem acontecer, até mesmo fora de controle, já que o
pensamento também ocorre no ato de escrever. O texto se dá em camadas (40),
de maneira a produzir uma narrativa que cruza elementos teóricos, diferentes
teorias, múltiplos interlocutores, a produção das diversas ferramentas de
pesquisa, antropofagando qualquer material que inspire e informe a pesquisa.
Pautados por Viveiros de Castro, Nietzsche, Espinosa, entre outros,
trabalhamos, dessa maneira, com um perspectivismo, colocando-se para
84
conversar com os diversos problemas criadores de conceitos, tentando tomar
contato com os diversos mundos que apenas tangenciamos no cotidiano do
trabalho e de uma investigação. Não é um relativismo, mas sim um contato com
as diferentes perspectivas que compõem a vida, o mundo, as verdades,
reconhecendo que cada produção é a resposta para um problema diferente,
colocado diferentemente nos mundos. Quais camadas colocaremos para
conversar aqui? Serão os diários de campo do investigador – também um dos
médicos da equipe Consultório na Rua -, os diálogos e reflexões produzidas
dentro do grupo de pesquisa a partir do material de campo, as sínteses e
transcrições das oficinas de construção dos mapas das redes produzidas pela
equipe e das oficinas de retorno à equipe do material produzido.
Sobre as oficinas, as entendemos como um espaço de intervenção e de
produção de conhecimento pelos participantes sobre seu próprio funcionamento
enquanto equipe e processos de trabalho e sobre o tema a ser debatido. Vimos
essa ferramenta metodológica operando como um reforço à grupalidade,
incluindo os vários trabalhadores, abrindo espaços para a fala, para a
visualização de problemas e para a criação de alternativas para lidar com eles
(52). Outra característica das oficinas é seu caráter produtivo, além da circulação
de ideias, esses grupos trabalham na construção de algum produto para uso pelo
próprio grupo.
A proposta feita à equipe CnaR foi a de realizar oficinas com seus
trabalhadores e gerência para discutir o material produzido pelos diários de
campo, sistematizar os processos de análise, construindo uma adaptação de
fluxogramas analisadores – mapas da rede acionada pela equipe a partir do
seguimento de um paciente real. O fluxo seria desenhado a partir do CnaR
mediante o acionamento de rede demandado pelo caso. Propusemo-nos a
discutir o máximo de casos até que começássemos a ter uma saturação da
amplitude da rede, das possibilidades de conexões, cobrindo a maior parte da
rede de relações estabelecida pelo Consultório na Rua. Com as seis oficinas e
o compilado do diário de campo, sabemos que, atualmente, a equipe tem algum
grau de conversa com instituições da saúde, assistência social e jurídico, sendo,
no total, mais de 40. A construção dos mapas dos casos permitiu-nos discutir a
relação com a maior parte desses serviços.
85
Explicamos a proposta da pesquisa e propusemos construir um
fluxograma analisador a partir do material compilado pelo diário de campo.
Colocamos que a construção desse mapa como uma ferramenta também serviria
para identificar pontos críticos, facilitadores, fluxos, em uma visão esquemática
dos processos de trabalho do serviço de saúde em relação com os outros
equipamentos da saúde ou de outros setores (54–56), além de ser um
provocador de mudanças nos processos de trabalho da equipe (117).
O que faríamos aqui seria traçar um fluxograma, a partir do material
propiciado pelos diários de campo, mapeando o percurso da equipe entre os
distintos serviços (intersetorialmente, se for o caso) acionados na busca de
constituir redes que apoiem o cuidado integral de seus usuários.
Resumindo, a ideia foi construir um mapa a cada oficina a partir da história
de um paciente acompanhado pelo CnaR, tomando por base as anotações do
diário de campo do pesquisador. Só que ao propormos isso para a equipe,
identificou-se que o método poderia também servir à gestão da clínica, à gestão
de casos complexos, bem como ao reconhecimento e mudança das práticas do
serviço. Assim, a equipe apropriou-se do método, contrapropondo que os casos
fossem escolhidos por ela própria, entre uma oficina e outra, variando entre
alguns tipos de casos comuns de serem atendidos:
Seu Joaquim – homem, 46 anos, dormia principalmente em uma
das praças do centro da cidade, usuário de álcool, histórico de
tuberculose tratada, em investigação de outra infecção por
micobactéria;
Carlos – homem, 38 anos, transita pelo centro da cidade,
ostomizado, com história nebulosa sobre a cirurgia, usuário de
álcool e eventual de outras drogas;
Angel – mulher, 24 anos, resistente a seguimento, itinerante,
usuária de múltiplas drogas, principalmente crack, gestante,
quadro de saúde mental a esclarecer;
Ângela – mulher, 41 anos, dorme na marquise de um banco, no
centro da cidade, resistente a seguimento, não usuária de qualquer
tipo de droga, em investigação de déficit cognitivo, tem uma relação
86
com atividade sexual em troca de dinheiro, ainda que não se
coloque como profissional do sexo;
Antônio – homem, “idoso” – idade desconhecida, com dificuldade
de relatar história de vida, sem documentação, sem informações
precisas sobre idade, origem etc. Com colostomia, pneumopatia a
esclarecer e déficit cognitivo (demência?);
Pedro Ogro – homem, adulto, itinerante, histórico de seguimento
com diversas internações psiquiátricas e em hospital geral, uso de
bebida alcoólica, crack e cocaína, crises convulsivas com agitação
severa em pós-ictal, analfabeto, com dificuldade para
desenvolvimento de atividades da vida diária.
Produzimos, assim, importante material para a discussão a que nos
pretendemos. Encerramos esse momento de campo fazendo uma síntese das
oficinas que foi apresentada à equipe em mais um momento de oficina, em que
se pôde discutir o material produzido e avaliar o processo.
Caminhando pela rua e pensando a vida
87
Seu Joaquim foi e voltou várias
vezes da rua. Entre internações em
hospitais e em CAPS, a rua era o lugar
certo. Na praça tinha seus camaradas.
“Seu Joaquim, o problema é sério, seu
fígado tá doente”. “Se alguém der corote
pro Seu Joaquim, tá fudido! ” – grita para
a praça toda ouvir, alguém a alguns
metros de mim. “Todo mundo” na rua
sabe que o fígado doente é culpa da
cachaça… e que isso mata. Depois
disso, passamos dias sem encontra-lo,
isso nos preocupou muito, teria piorado?
Quase um mês depois
recebemos um chamado de uma
entidade caritativa religiosa11, haviam recebido um morador de rua que não
estava passando bem. O caso era outro, mas ao chegar lá encontramos com
Seu Joaquim! Estava bem, almoçando, havia engordado. Diante da falta de
alternativas institucionais que garantissem a ele o direito a uma cama e a um
prato de comida, foi buscar seus próprios caminhos. Passava o dia nessa
entidade beneficente, o que lhe garantia as refeições, e um tempo de sossego
fora da rua. De noite voltava para aquela mesma praça onde dormia há anos.
Em que pese a importante divergência conceitual entre o trabalho da entidade e
o trabalho da saúde – uma na lógica do caritativismo religioso e da indução da
abstinência e a outra em uma lógica de redução de danos, tomando a assistência
como um direito da pessoa – a entrada da entidade na relação foi crucial para a
vida dele.
A população em situação de rua é especialista em redes. Sendo invisíveis
e sem direitos garantidos, sofrendo preconceitos da maior parte das pessoas,
criam seus caminhos para conseguir o que precisam para viver, seja um prato
de comida, seja um lugar para dormir, seja uma dose de cachaça ou uma pedra
11 Que trabalha com moradores de rua oferecendo refeições, roupas etc., as doações são feitas na rua, mas também recebem algumas pessoas em sua sede.
Figura 3 Campo no Largo da Catedral - Acervo da Equipe
88
de crack. Ainda que tenham seus pontos preferenciais para dormir ou para
qualquer outra atividade, trata-se de um grupo profundamente nômade. No
limite, a cidade é seu território de vida. Uma equipe que vai atender a essa
população precisa se aproximar dela, assim, também precisa ser nômade, diz
um trabalhador: “a gente sofre um pouco dessa necessidade de acompanhar o
usuário nesse movimento, mas de poder acompanha-lo nessa experiência da
vida dele, da circulação dele”, enfatizando: “ou o consultório opera em rede ou
ele não existe”.
O território tomado como produção de agenciamentos, majoritariamente desconhecido pelas equipes de saúde, instaura uma rede rizomática não linear, que não se apresenta capturada em um território único, em um espaço geográfico definido. Como um nômade, o usuário produz e protagoniza, de forma singular, os acontecimentos, no seu processo de cuidado. Nômade na produção de sua vida e, por isso mesmo, capaz de circular em territórios muitas vezes imperceptíveis para as equipes de saúde, construindo múltiplas conexões na vida. Esta forma de circulação dos usuários, tecendo suas próprias redes de sociabilidades e cuidado, comporta movimentos de desterritorialização, que afetam e convidam as equipes a esta mesma experimentação desterritorializante (88).
Convite necessariamente aceito, nesse mimetismo que a equipe faz de
seus usuários, já aproveitamos para destacar um limite do estudo. Não
abordamos a perspectiva do usuário sobre a construção de redes. E é algo que
realmente vale uma pesquisa específica para esse fim. Os trabalhadores
anunciam constantemente: “A Bianca fez a rede dela. Ela criou a rede que ela
queria”, diz uma. “Acho que é movimento que o Pedro Ogro está fazendo”,
responde outra. “Talvez seja o que o Carlos está fazendo também”, completa a
terceira.
Também já se começa a anunciar de que rede estamos falando, sendo
uma atividade tão intrínseca à sobrevivência dessa população. Para Seu
Joaquim e, em geral, para todos aqueles que tivemos a oportunidade de
ouvir/cuidar no território das ruas, fazer rede não é algo controlável ou contível,
ela se dá a despeito de tentativas de ordenamento. A vida vai revirando projetos
e princípios ético-políticos de distintos projetos de cuidado a partir da invenção
dos sujeitos-pacientes. Os usuários criam seus movimentos na medida que lhes
faz sentido, na direção em que encontram alguma porta aberta. Na radicalidade,
89
acabamos por reforçar o achado em investigação de Cecílio e grupo, em que
afirmam:
São os usuários, portanto, a partir das suas distintas experiências de encontro ou desencontro com os serviços de saúde, que vão construindo novos agenciamentos para conseguir o acesso à rede de serviços, fazendo usos variados da Atenção Básica em Saúde em função de suas singulares necessidades e as ofertas reais feitas por ela. Cabe-nos escutar esse saber assessor que vai sendo produzido de forma irreprimível pelos usuários, e utilizá-lo para o permanente e necessário aperfeiçoamento das redes de cuidado de saúde(118).
Aqui encontramos uma primeira pista importante. Construir redes é uma
atividade que precisaria ser necessariamente singular, pautada pela
necessidade de cada pessoa a cada momento. De uma maneira ou de outra elas
buscarão compor o que lhes é ofertado mediante o que lhes parece mais
significativo. Da mesma maneira que vivem em movimento, também estão o
tempo todo produzindo redes e novas possibilidades de “redes vivas de si
próprio”, descobrindo maneiras de sobreviver e, em alguma medida, cuidando
de si e daqueles com quem compartilham o dia a dia (88). Só que quando se
trata da PSR, muitas portas estão fechadas, notaremos que o CnaR acaba tendo
a importante função de abrir essas portas e garantir que permaneçam abertas
até que o usuário seja atendido.
Retomemos o caso do Seu Joaquim, ao escapar do hospital em que
estava internado, nota que sua situação de saúde é delicada. No hospital
haviam-lhe dito que precisaria iniciar seguimento no “postinho” e assim o faz.
Começa a frequentar o Centro de Saúde (CS) mais próximo de onde dorme,
passa por acolhimento, consultas e retorno com a médica. Ignora (ele e a equipe
que o atende) completamente o fato de que, teoricamente, sua equipe de
Atenção Básica de referência seria o CnaR. Acompanha em ambas. A conversa
entre os dois serviços: nula. Ainda que tenham vínculos burocráticos, já que é
essa mesma unidade a responsável por receber e dar destino para maior parte
do material de coleta de exame feito na rua, receber e agendar especialidades e
exames específicos e receber os insumos utilizados pelo CnaR. Inclusive, à
criação deste serviço, a base era neste mesmo Centro de Saúde.
Sobre essa relação uma trabalhadora comenta: “Começou a acontecer
uma coisa muito interessante. Tinha horário do dextro e horário da pressão [no
90
fluxo do CS] e os nossos usuários não tinham. Aí os usuários do CS começaram
a burlar, dizendo que eram moradores de rua e aí os nossos técnicos de
enfermagem atendiam. (…) A gente começou a colocar as pessoas em situação
de rua dentro do CS, enfeiando o serviço, passando na frente, fedendo, aí eles
foram tirando a gente de dentro do CS.”
O fato era que aquele CS compunha uma rede construída pelo usuário,
não por sua equipe de referência e lhe funcionava bem, ainda que provocasse
uma duplicata de uso de recursos do sistema. Reconhecemos que certas
organizações, tomadas como mais burocráticas, podem ser úteis para evitar
essa duplicação de acesso a serviços e o gasto desnecessário de recursos
públicos. Entretanto, mais importante do que a “mera” economia de recursos
seria a efetiva comunicação entre as equipes, para que possa ser avaliado o que
pode ser feito, ainda que até mesmo seja necessário duplicar o uso de certos
recursos no caso de um paciente em específico. O puro bloqueio, por via sistema
de informática, por exemplo, responde apenas à necessidade da gestão e não
dialoga com a do usuário e do trabalhador (e é necessário dialogar com todas).
Neste caso vemos que tanto investimento em sua vida, incrementou sua
capacidade de perseverar na existência (37). Produzir saúde com ele estava
para além de trabalhar sobre a abstinência do álcool, estava em produzir
desejos, em produzir uma relação de cuidado com ele e que ele pudesse tê-lo
com sua própria vida. A abstinência foi uma consequência. E talvez tenha sido
importante, para esse processo, sentir-se acompanhado cotidianamente por
duas equipes, investimentos que talvez tenham se potencializado.
Nossos encontros eram alegres. Frequentes no momento em que estava
passando por um período de leito-noite no CAPS AD III, onde também fica a
sala-base do CnaR. Nessa época, pouco se conseguiu avançar nas
investigações clínicas ou na busca por alternativas junto à assistência social para
apoiar Seu Joaquim em seu desejo de sair das ruas. Estava estabelecida ali,
com aquele CAPS, tal relação de confiança que seus cuidados foram um pouco
deixados para segundo plano, “soltou-se a bola”. Tal confiança permite uns dias
de “respiro” para a equipe. Não dá para ficar no investimento intensivo sobre
todos os casos o tempo todo. A equipe avalia como importante essa parada para
respirar, o não ter que se preocupar permanentemente com todos os casos que
91
estão sob sua responsabilidade e que estão sob a iminência de uma deterioração
do estado de saúde.
Por fim Seu Joaquim voltou para a rua uma última vez. Após algum tempo
dormindo naquela mesma praça foi levado por seus colegas para o Pronto
Atendimento da região com intensa falta de ar. Logo a equipe foi avisada da
situação grave em que ele se encontrava. A relação com este serviço aponta-
nos outra pista sobre a construção de redes no cotidiano dos serviços. Nos três
anos de existência do CnaR foram várias as cenas presenciadas que apontavam
uma incapacidade desse equipamento de urgência em atender morador de rua.
As fichas não eram abertas caso não possuíssem documentação,
costumeiramente os usuários recebiam uma atenção muito sumária e eram logo
dispensados. O uso do crack e do álcool colocavam-se como barreiras
importantes, pelos pré-conceitos. Não que a situação tenha melhorado
totalmente, ainda é frequente cena como a do Roberto, relatada algumas
páginas atrás, mas “no início [a relação] foi pessoa dependente, mas o nosso
fluxo forçou uma discussão municipal, quando a gente foi pra lá com o distrito foi
um novo olhar de gestão mediante a crise que a gente despencou lá dentro”.
Hoje existe um trabalhador de referência para o atendimento dessa população e
para a relação com o CnaR, tendo melhorado muito a comunicação, a
negociação sobre a manutenção de pacientes em observação, a transferência
para um leito de internação ou a alta. A presença de um trabalhador de referência
para fazer essa articulação de rede tem se mostrado muito importante, ainda que
sua ausência (como em férias) também signifique um rompimento quase total da
relação (104)
Outra pesquisadora, que ajuda a conduzir uma das oficinas, sintetiza:
“serviços que são difíceis de acessar, mas que tem alguma pessoa sensível,
alguma pessoa que é parceira, alguma pessoa que é referência. Parece que é
uma característica geral do caminho na rede”. Ao que os trabalhadores
complementam “também é função do consultório ser um agente instigador”, “a
partir desses encontros a gente vai criando esses protocolos de
encaminhamento”. “A gente estimula o que está engessado (…) consegue
acessar algumas pessoas que estão dentro de um equipamento engessado que
tem esse desejo também e tá ali, mas tá guardado”. O CnaR coloca a existência
92
de outras possibilidades de funcionamento, de um processo de trabalho e de
uma relação de uma equipe com seus usuários. Produz uma relação de contágio.
Coloca-se na estrutura outrem (50), na estrutura do perceptível de outras
possibilidades, afetando o campo de possíveis percebidos pela equipe com a
qual se relaciona. Tensiona a rede de cuidados em seu próprio cotidiano de
trabalho (114).
As relações pessoais de trabalhadores de diferentes serviços ao mesmo
tempo em que estreita a rede e acaba por tornar-se elemento fundamental para
a coesão da mesma também se apresenta como um fator dificultador caso as
relações dessas equipes resumam-se a isso. Nas férias dessas pessoas, ou no
caso de demissão ou adoecimento, a relação acaba. Talvez seja preciso que os
serviços caminhem das necessárias relações de camaradagem interindividuais,
para a construção de trabalhadores de referência para a produção dessas redes.
E de aí, quem sabe, para fluxos mais institucionalizados, temporários, mas que
dão conta de colocar em questão os processos de trabalho visando o melhor
atendimento possível da população, reforçando as “correntes intelectuais e de
camaradagem”(63). Já vamos indicando, então, que uma pista para a construção
cotidiana de redes é a relação entre os trabalhadores das equipes para
discussão de casos concretos. Mas também, indicamos que é necessário
trabalhar na capacidade de afetar e ser afetado das equipes, isso potencializa a
existência das relações. Não se pode depender de poucos corpos na
constituição dessas relações, afinal de quantos mais corpos (trabalhadores,
equipes) um corpo (relação, rede, sistema) é composto, maior é sua capacidade
de perseverar na existência (37).
Seu Joaquim foi transferido para a UTI de um hospital municipal, hospital
secundário a terciário, de grande porte.
Um ou outro contato, amigos de trabalhadores, costuma facilitar a
circulação da equipe neste hospital, mas não dessa vez. Outra cadeia de
contatos que tende a dinamizar a discussão sobre pacientes do CnaR internados
é a comunicação entre as Assistentes Sociais. Tais profissionais têm facilitado a
entrada para discussão de caso tanto em hospitais próprios quanto nos
conveniados, com substantiva maior facilidade nestes do que naqueles. Nesses
meses foram frequentes as vezes que fomos debater a história, prognóstico,
93
proposta terapêutica e alta de nossos pacientes nessas enfermarias de hospitais
secundários da cidade.
Cabe aqui uma pequena anedota, porque essa rede de comunicação
entre as Assistentes Sociais não é sem ruído, é paradoxal! Nas distintas
concepções de saúde e de cuidado que atravessam as composições de equipes
e trabalhos. Seu Geraldo foi internado em hospital secundário conveniado. Em
certo dia, a assistente social nos chamou, a conversa de bastidores nos
informava que ela precisava de nossa ajuda na conversa com a médica da
enfermaria para que ele não recebesse alta. Bem, ele estava quase dopado, mal
conseguia falar, de fralda e “contido ao leito” (amarrado). “Doutora, esse homem
receberá alta nesse estado, para a rua? Nós não nos responsabilizamos. E a
senhora? Não temos para onde enviá-lo, portanto, ele precisa sair daqui
andando e com capacidade de autocuidado, só assim apoiamos a alta! ” Ele
seguiu internado. Na semana seguinte já estava muito melhor e a Assistente
Social também queria sua alta. Duas possibilidades, alta para a rua, o que ela
não queria, ou para um abrigo municipal, em região especialmente vulnerável,
com tráfico de drogas em frente. Muitos moradores de rua se recusam
terminantemente a ir para lá. E a Assistente Social tenta convencê-lo: “Seu
Geraldo! O senhor já tem condições de alta! Já temos lugar para o senhor ir, o
senhor quem não quer! ”, ele responde: “Para lá não vou mesmo, me deixa na
rua”. Ela segue tentando: “Mas o senhor tem que entender que está segurando
vaga de quem tá precisando mais do que o senhor! ”. Ele acha graça (nós
também!), e intervém, apontando para o outro leito do quarto, vazio: “Eu não!
Morreram dois aí essa semana! ”.
Voltando à UTI, dessa vez não tivemos nenhum desses facilitadores. Mas
a mobilidade da equipe e a flexibilidade de seu processo de trabalho permitiu
que médico e assistente social fossem à UTI no horário das visitas familiares,
surpreendendo a médica de plantão, que de outra forma não os receberia.
Também foi surpreendida com a quantidade de detalhes que os dois
trabalhadores sabiam sobre o caso, ajudando-a a pensar a conduta que poderia
tomar. Foi patente o desconhecimento sobre o serviço e suas funções já que
perguntou por qual entidade beneficente fazíamos aquele “trabalho voluntário”.
94
Tal discussão de caso reforça o caráter “atenção básica” do CnaR,
entendido como aquele serviço de referência que conhece sua população e seu
território (nesse caso se misturando com o próprio território – “a gente é o
território”, assevera um trabalhador). Cumpre com o colocado por vários teóricos
da Atenção Básica, um serviço que gerencia o cuidado e que defende seu
usuário. Há que se dizer, que segundo boatos, a equipe da UTI já estava
“desistindo” do paciente e pensando em “desligar os aparelhos” que o
mantinham com vida, as visitas e telefonemas do CnaR parece tê-los dissuadido
dessa ideia.
Seu Joaquim sobreviveu, melhorou, recebeu alta da UTI e a equipe do
hospital, com apoio da Polícia Militar, conseguiu descobrir o contato dos
familiares. Contato feito à revelia do usuário, mas que se mostrou crucial para o
desenrolar do caso. Ao receber alta ele foi embora com os irmãos para uma
cidade no norte do estado, saiu das ruas.
Aproveitando esse tema. A relação com a Segurança Pública é
interessante para se pensar sobre a construção de rede. Se por um lado a PM
foi importante nesse caso, bem como também foi acionada para se tentar
descobrir a identidade e a idade de Seu Antônio. Na maior parte do tempo a
relação se dá em uma exclusão voluntária – onde um está atuando o outro não
está. E “constantemente tem que refazer esse combinado”. A violência da
abordagem da Guarda Municipal (GM) também é sempre lembrada por
moradores de rua e por equipe. Ações são violentas, mas já se reconhece uma
melhora a partir de interferências na formação dos novos guardas junto aos
serviços de saúde. Assim, eles visitam os CAPS AD e passam uma tarde em
conversa com trabalhadores do CnaR. Não tem sido suficiente, mas tem
melhorado vagarosamente.
O contato com a família, feito contra a vontade do Seu Joaquim, produziu
importante inflexão, aparentemente positiva, em sua vida. Poderia não ter sido
assim. Aqui vamos que uma rede cuidadora, de produção de encontros
aumentativos de potência, e uma rede de captura se aproximam até se
confundirem. Até onde é cuidado e até onde é uma captura para levar o usuário
95
a cumprir com algo que os trabalhadores acham que lhe é melhor e não a opinião
dele próprio?
A história da Angel, 24 anos, também nos coloca a refletir exatamente
sobre esse ponto. A equipe a acessa já no segundo trimestre de sua nona
gestação! Toma conhecimento dela ao ir visitar outra gestante em uma
maternidade, onde ela também está internada após ser agredida na rua. Faz-se
o contato, inicia-se o trabalho de se colocar à disposição e construir vínculos e
laços de confiança. Ela evade da internação. Nas semanas que se seguem,
equipe e ela jogam um jogo de gato e rato. Angel pede auxílio, ao chegarmos
com a Kombi ela já não está no lugar combinado. Movimento que se repete
diversas vezes.
Dois serviços da Assistência Social, que tem como foco o trabalho com a
PSR, também a buscam. Ficam atentos aos seus movimentos. Constitui-se, para
este caso, uma relação de parceria e troca de informação, quando um serviço
sabe notícias o outro é informado e demandado. Nem sempre essa parceria é
tão boa. Fica flagrante as divergências de concepções sobre o trabalho e sobre
Figura 4 Campo na Linha do Trem - Acervo da Equipe
96
o que precisa ser feito com os moradores de rua. São questões que passam pelo
não entendimento da função de cada equipamento da saúde – o que foi
melhorando muito ao longo do semestre através de ações de campo e
atendimentos conjuntos – o CnaR costumava ser acionado como se fosse um
serviço de urgência e, sem uma avaliação de risco, demandava-se, muitas
vezes, atuação imediata para casos sem gravidade. As negativas, com poucas
explicações práticas, estressava as relações frequentemente. Uma trabalhadora
chega a afirmar “assistência social não respeita direitos” – ainda que essa fala
possa ser motivada por conflitos em casos específicos e não possa ser tão
generalizada assim, de fato os frequentes desentendimentos sobre o que seria
necessário fazer ou não para cada usuário alimenta tais disputas.
Processos de trabalho, mecanismos de defesa, limitações e fragilidades
de cada equipe são vistos com indignação pela outra – isso passa, por exemplo,
pela recusa por um serviço da assistência de levar pacientes a serviços da
saúde, ou pelo outro serviço bloqueando acesso de moradores de rua em
condições de higiene muito precárias que dificultam o uso do chuveiro pelos
usuários seguintes, ou pelas recusas da saúde de demandas dadas como
imediatas e a dificuldade de fazer um seguimento de alguns usuários.
Mas com a Angel, a relação entre os três serviços foi mais “azeitada” (e
isso também contribui para que a relação melhore ao longo do tempo) – o que
se faz essencial, visto que essa relação entre os dois setores é tida, em algumas
experiências, como fundamental para o cuidado da PSR (111). Só que a Angel
não queria assistência. Ou não queria a assistência que era ofertada para ela.
Usuária intensa de crack, colocava-se frequentemente em situação de risco.
A equipe móvel da assistência social a encontra, certo dia, em péssimas
condições. Aciona o resgate do Corpo de Bombeiros (era o que chegaria mais
rápido ao local) para leva-la a um serviço de saúde. Passa a noite em uma
maternidade da cidade. Não existe construção de rede com esse serviço, na
verdade, poucas vezes se viu tal serviço acolhendo moradoras de rua ou
usuárias de droga. Angel recebe alta no dia seguinte sem nenhuma articulação
com os serviços de referência. É encontrada pelo CnaR na calçada, do lado de
fora.
97
A gestação avança e a percepção de urgência do caso começa a mobilizar
cada vez mais agentes da rede. Ela segue recusando e demandando
assistência. Ao ter contato com ela de novo, em condições clínicas ruins, a
Central de Regulação é acionada. De lá, um regulador parceiro, identificado
como sensível ao trabalho com morador de rua, briga por atendimento hospitalar,
por vaga de internação para ela. Acaba por conseguir leito em enfermaria de
psiquiatria de hospital secundário. O CnaR e a Assistência Social acompanham
cotidianamente a internação, sob diversas reclamações de que aquela
enfermaria e aquele hospital não são adequados para aquele tipo de paciente,
visto que não tinha serviço de obstetrícia, apesar do uso de crack altamente
prejudicial à saúde e da suspeita de outras afecções psiquiátricas associadas
(ou não) ao uso. A avaliação obstétrica, sempre sem sinais de complicações ou
trabalho de parto, é feita pelos médicos e enfermeiras do CnaR e, aos finais de
semana, por um hospital terciário próximo…
Em uma dessas transferências para avaliação, ela evade novamente.
Quando é reencontrada, é levada para um CAPS AD III. O problema está
colocado no sistema – o bode está na sala e o CnaR toca sinos ao redor dele!
Ninguém quer recebe-la! Os serviços de psiquiatria dizem que não estão aptos
a receber gestantes, os de obstetrícia advogam que não é um problema
obstétrico. Esferas de gestão são acionadas, a Central de Regulação, o SAMU.
As múltiplas evasões são mais um motivo para resistência em recebe-la.
A mobilidade do CnaR e a prática de ir com o paciente até o serviço para
o qual o está encaminhando, acompanhar a internação etc., faz com que se dê
visibilidade a problemas até então ignorados. Gestantes pariam na rua, sem pré-
natal, ou, na melhor das hipóteses, eram levadas pelo SAMU, no último minuto
antes do parto. O cuidado com elas não era um problema das maternidades, tão
pouco o manejo das questões relacionadas ao uso de drogas – fissura ou
abstinência. A intervenção do CnaR junto à PSR também produz uma
intervenção sobre a própria equipe, que precisa constantemente rever seus
processos de trabalho para dar conta desse tipo de caso. E essa dupla, CnaR-
usuário, fazem uma ponte com o resto da rede de saúde, sofrem intervenção e
intervém na maneira como a rede opera, talvez tornando mais públicas as
políticas (119).
98
Uma das maternidades da cidade estava sendo, até então, porta
preferencialmente acionada pelo CnaR por não se recusar tão prontamente a
atender as gestantes nessa situação. A sobre demanda que isso provocou no
serviço estressou a relação. Afinal de contas, a cidade tem uma territorialização
das maternidades e apenas uma estava efetivamente assumindo esses casos.
Bloqueios nos fluxos pré-estabelecidos provocam um esgarçamento nas
relações que podem ser construídas no cotidiano, mas as gestantes precisavam
de atendimento, não importava onde. A construção da rede precisa obedecer a
necessidade do usuário, mas talvez acabe obedecendo mais à necessidade dos
serviços (algumas vezes coincidente com a do usuário). Por outro lado, a não
pactuação de fluxos mínimos ou o desrespeito a eles, também provoca
desassistência. Estabelecer linhas de referência e contra-referência pode não
ser suficiente, mas é indispensável, bem como cumpri-las.
A maternidade em questão chama uma reunião para debater essa rotina
de atendimento de gestantes moradoras de rua. Esses problemas são expostos,
é explicado o funcionamento do CnaR e a complexidade do atendimento e do
pré-natal, realizado na rua, mesmo em casos de pacientes de alto risco, já que
muitas vezes não era possível leva-las periodicamente para consultas nos
serviços de referência. As limitações da maternidade também são expostas. E é
colocado muito claramente, eles não sabem o que fazer com uma gestante que
começa a ficar agitada por abstinência ou por fissura, não sabem como contê-la
e reconhecem que esse é um saber mais específico do CnaR – este pode ser
um serviço de Atenção Básica, mas possui um saber singular importante (assim
como outras unidades básicas de saúde). Fica uma oferta de apoio, ainda pouco
utilizada, talvez a estrutura de gestão deste hospital pouco permita que os
trabalhadores de plantão tomem essas iniciativas.
No dia a dia notamos que o grande instrumento para contornar essas
crises é o vínculo. A relação de confiança com o usuário, um encontro e uma
clínica (de redução de danos, podemos dizer) que investem na potência do
usuário, na sua capacidade de perseverar na existência (37), na produção de
outros desejos além da droga, são um importante diferencial. De uma maneira
ou de outra, esta clínica busca apoiar o usuário a reconstruir redes relacionais
que ampliem sua capacidade de ser afetado e de afetar o mundo. Saúde, então,
99
passa a ser um estado em movimento, que é construído constantemente nesse
reforço da capacidade de fazer variar o corpo para modificar e lidar com as
modificações postas pela vida. Se a rede não está dada, é constantemente
produzida, a saúde também – produção de redes de produção de saúde.
Essa relação feita com os usuários também é transmitida, algumas vezes,
para a relação com os outros serviços. “Chamem que nós viremos apoiá-los no
controle da crise”, dizem os trabalhadores presentes na tal reunião. Convidamos
a instituição hospitalar a abrir-se para um matriciamento cruzado (107). A rede
se constrói nessa troca de “favores”, de conhecimento e reconhecimento do
trabalho do outro, nessas relações de confiança, nessa aposta na potência.
Nesse sentido, produzir redes, também é produzir saúde da rede, dos serviços
e dos trabalhadores, também é uma clínica da aposta na potência do outro.
Seguimos com Angel e com a relação tensa e frágil entre os serviços.
Depois do CAPS AD III, ela acaba sendo transferida para a urgência da
psiquiatria de um hospital terciário. Fica nos melindres entre equipes de
obstetrícia e de psiquiatria, em idas e vindas, em tensões, em pedidos
protocolares de interconsultas, em negativas e confissões de incapacidades e
impossibilidades. A equipe de Atenção Básica, acompanha todos os movimentos
da internação e acaba por servir de intermediador de duas equipes distintas de
serviços hospitalares vizinhos.
A internação aparece como uma proteção. Sua relação tão intensa, cada
vez mais, com o crack a estava expondo a situações de muita violência. “Por
fim”, o parto acontece em segurança. A alta é programada e pactuada e ela vai
para um leito em um hospital psiquiátrico. A ideia é tentar “organiza-la”12 um
pouco, construir a relação com essa função de mãe (ainda em risco devido ao
acionamento da Vara da Infância por parte da maternidade) e buscar construir
uma outra relação com o crack, um pouco menos danosa. Após um mês de
internação, ela pede alta e volta para as ruas, ficando, em um primeiro momento,
em um abrigo da assistência social. Vale dizer que após o parto, não fica com a
12 Termo frequentemente utilizado nos serviços de saúde para referir-se a pessoas que não estão conseguindo lidar com as atividades da vida diária e de sobrevivência, seja devido ao agravamento de alguma questão psiquiátrica seja devido ao uso intenso de álcool e/ou outras drogas.
100
criança, passa a usar menos crack (metade ou menos das pedras) e a colocar-
se em menos risco de violência e de vida do que durante a gestação.
A rede aqui, produziu diversos movimentos bastante paradoxais. Se por
um lado produziu cuidado e potência, por outro capturou a usuária dentro da
lógica de serviços de saúde e dentro de seus conflitos. Parece indiscutível que
se fazia necessário intervir para preservar a vida. Parece que, em um caso como
esse, é legítimo capturar o usuário nas teias de uma lógica de cuidado que pouco
respeita, em geral, seus desejos e sua lógica de produção de singularidade. Se,
para além do apagamento do incêndio, outros cuidados e outros caminhos não
estão sendo ofertados, não estaríamos produzindo apenas capturas? Ofertando
apenas formatações – as portas não estarão fechadas caso o usuário não se
enquadre? (E a PSR frequentemente não se enquadra) E quando se coloca em
questão pontos tão delicados como uma gestação e o desejo de se ficar com a
criança – poderíamos assumir, a despeito de valores morais muitíssimo
arraigados, que uma gestação “desorganiza” uma mulher e que a oferta
pertinente pode não ser trabalhar para que ela assuma a criança, mas, talvez,
justamente o contrário?
Os usuários produzem modos de existências que são, muitas vezes, julgados e cerceados pelas equipes de saúde, e estas ficam aprisionadas a um modo de saber tão preponderante, que não possibilita perceber que certas atitudes, comportamentos, expressões são modos de existência, ainda que se apresentem cheios de tensões e problemas (88).
Pois eis que aqui entramos em um tema caro e polêmico dentro da
filosofia. O que é e até onde vão desejo e liberdade? Não pretendo aqui detalhar-
me nessa questão, mas cabe anunciar que, a partir de Espinosa, entenderemos
que um ser é tão mais potente, mais capaz de criar alternativas para sua própria
vida e para preservá-la, quanto mais afetos é capaz de ter, ou seja modificar e
ser modificado por outros corpos sem mudar sua própria natureza. Explicitando
que afeto aqui, não é sentimento, é relação, a maneira espinosana (37,112).
Assim, um corpo que só se relaciona com o crack é pouco capaz de produzir
outras alternativas para sua própria vida. Nossa clínica, sobre esse território
empobrecido (120), pode pautar-se em apoiá-lo a construir outros desejos que
alavanquem sua capacidade de perseverar na existência, o que aqui estamos
identificando como a clínica da redução de danos, é entrar na vida dessas
101
pessoas sem tirá-las de onde estão, mas oferecendo outras opções, com ou sem
o uso de drogas, simplesmente se relacionando com elas (121).
Analogamente, uma equipe que só se relaciona consigo mesma e com
determinadas ideias pré-concebidas sobre o usuário pouco será capaz de variar
seus modos de fazer para lidar com as singularidades de cada caso. Da mesma
forma, se esta fica presa apenas em suas próprias concepções morais, pouco
enxergará dos problemas que movem o usuário e as outras equipes, cuja
proximidade é essencial para se fazer uma clínica que investe na potência.
A clínica das ruas, da busca pela produção de desejo, também é a clínica
da produção de rede. Em sua itinerância, o Consultório na Rua acaba levando
novos problemas para as portas dos serviços, problemas e questões que não
podem mais ser ignorados. Outra clínica com esses usuários precisará ser
produzida, bem como outra clínica entre os serviços. Um cuidado com os
usuários, com os trabalhadores e com a rede. Como já dissemos, a produção de
saúde dos usuários, dos trabalhadores e da rede está profundamente imbricada.
E na fragilidade dessas redes, o CnaR acaba se tornando um dispositivo para a
problematização dos modos de cuidado que estão operando nessas redes (114).
Sobre isso mais uma nota, que trazemos de Espinosa:
Os homens enganam-se ao se julgarem livres, julgamento a que chegam apenas porque estão conscientes de suas ações, mas ignoram as causas pelas quais são determinados. É, pois, por ignorarem a causa de suas ações que os homens têm essa ideia de liberdade. Com efeito, ao dizerem que as ações humanas dependem da vontade estão apenas pronunciando palavras sobre as quais não tem a mínima ideia (37).
Como dizer que é a vontade de um usuário, que só se relaciona com o
crack, ser cuidado ou não? Até onde respeitamos essa vontade do usuário? Uma
questão ético-política! Mas… em igual teor, até onde respeitamos a vontade, ou
a liberdade, de um serviço em atender ou não, ou atender de certa forma estes
usuários, se ele se relaciona apenas consigo mesmo e está surdo para o grande
entremeado de forças que leva aquele usuário a estar ali daquela forma e àquele
outro serviço a encaminhar este usuário de determinada maneira? Se os
serviços não ofertam outra coisa, a rede que estão construindo não é uma rede
apenas de captura, deixando o cuidado em plano completamente secundário?
Uma questão ético-política!
102
Uma trabalhadora faz uma reflexão interessante a esse respeito: “Ela
[coordenadora] esperava, espera, e respeita o limite de cada um. E a gente faz
isso com o usuário. A gente aprendeu a fazer isso com o usuário. Quando você
chega num trabalho formal você quer que todo mundo faça tudo igual e não é
assim… se respeitando aqui, a gente consegue levar isso para o nosso usuário.
(…) A gente exercita uma coisa que a gente busca fazer”. Então, estamos
anunciando que um sistema de saúde que cuida de seus usuários,
necessariamente, também cuida de seus trabalhadores. Um processo de
trabalho burocratizado provavelmente também criará uma assistência
burocratizada.
Uma cogestão apenas anunciada e pouco praticada, ainda produzirá uma
assistência autoritária. Se as ferramentas de controle são mais importantes do
que as ferramentas de produção de vida, tendencialmente buscaremos controlar
os usuários – se coagimos os trabalhadores a determinados processos de
trabalho, não conseguiremos sair da produção do medo, ou seja, da impotência,
para lidar com a adesão ao tratamento e com a gestão dos infinitos riscos que a
vida traz à vida… A rua demanda radicalidade nessa cogestão, é preciso ser
contaminado pela rua, é preciso manejar a lógica da rua para o cuidado, legitimá-
la, entende-la, habitá-la. Busca-se oferecer acesso a direitos e não impor
determinadas maneiras de se viver (122).
Se por um lado a extensa rede construída pela Angel suscitou intensas
conversas, por outro, a não-rede do Carlos fez o mesmo. A história dele é trazida
pela equipe sob o argumento de que seria um caso para o qual era necessário
construir outras alternativas. Ele é encontrado sempre bastante etilizado,
vagando pelas ruas do centro da cidade. Ao mesmo tempo em que desperta a
empatia de alguns transeuntes por sua louca simpatia etílica, também aflora o
asco e repulsa por estar constantemente sujo e malcheiroso pelo vazamento de
sua bolsa de ileostomia – sempre mal ajustada seja por estar etilizado, seja pela
irregularidade abdominal fruto de múltiplas cicatrizes de acidentes e abordagens
cirúrgicas.
O cuidado dele é permeado por muitos conflitos. Além de todos os
preconceitos que carrega como morador de rua, ainda desperta a repulsa das
103
pessoas, inclusive trabalhadores, por seu estado de higiene. A equipe de certo
serviço da Assistência Social recusava-se em recebe-lo para o banho e para
cuidados de higiene. Argumentavam que o banheiro ficava inusável sem
seguida. O Pronto Atendimento, do qual já se esperava, nesse momento, um
tratamento mais empático com esse tipo de paciente, também chegou a
apresentar posturas mais agressivas e de rechaço.
Foram necessários muitos debates institucionais para se avançar em
alternativas de cuidado para essa pessoa. A construção do mapa da rede feita
pela equipe para o atendimento dele evidenciou que poucos equipamentos
haviam sido acionados.
Há que se afirmar uma gestão do cuidado e do trabalho em saúde que
busque superar práticas autoritárias e disciplinares, se contrapondo a
dispositivos que, em nome da dialética, minimizam diferenças, homogeneizando-
as, e que tendo a norma como pressuposto busca alcançar uma composição
afirmadora de uma identidade pouco afeita ao cuidado de si e do outro. Trata-
se, portanto, de resistir a relações de poder que nos submetem e nos produzem
como sujeitos sujeitados. E, indo além, delinear estratégias, tecnologias e
dispositivos que, na afirmação da diferença, produzam o comum no processo de
criação daquilo que somos enquanto coletivos. É a celebração da diferença na
produção de uma subjetividade que resista e rejeite discursos disciplinadores e
controlistas.
Em um momento de brecha, em que aceitou assistência, ele foi internado
em enfermaria de hospital psiquiátrico, para desintoxicação. Em um mês em que
estava recuperando o vigor físico, foi possível detalhar sua história e ir com ele
até uma unidade de saúde em cidade vizinha na qual estava seu histórico médico
cirúrgico, onde tem vínculo com uma enfermeira que lhe dispensa as bolsas de
ostomia mensalmente. Foi possível transferir essa relação de vínculo e de
cuidado daquela equipe para a do CnaR, que o acompanha mais
cotidianamente. Com esses dados também foi possível iniciar seguimento com
proctologista para avaliar reconstrução do trânsito intestinal – um caminho aberto
fora das vias protocolares institucionais, tal médico verbaliza entender a
necessidade de priorizar o momento de abertura do morador de rua ao cuidado.
As especificidades do atendimento à PSR colocam que uma brecha dada para
104
o cuidado é sempre a oportunidade para produzir vínculo e começar a produção
de outras subjetividades na vida dessa pessoa. A abordagem precisa ser feita
no tempo oportuno (106).
Construiu-se um Projeto Terapêutico Singular (PTS) que incluía
enfermaria de psiquiatria, CAPS AD III, serviço da Assistência Social e
proctologia. Havia pressa, não era possível mantê-lo internado por muito tempo.
E, enquanto estava na sala de espera para colonoscopia, ele fugiu e voltou para
a rua.
Um caso como este deixa clara a necessidade de construção de projetos
de cuidado em rede. Apenas um serviço não daria conta disso tudo. A equipe de
Atenção Básica, Consultório na Rua, esteve como articulador do cuidado entre
os especialistas, buscando conectar as diferentes ofertas e demandas.
Acompanhando-o onde quer que fosse necessário. Uma estrutura de redes
previamente arranjada dificilmente preveria algo que pudesse dialogar com as
necessidades que esse caso evoca. Ir à cidade vizinha com o paciente, discutir
seu caso em um serviço fora do arranjo habitual fez-se essencial para construir
um Projeto Terapêutico para o mesmo, bem como para auxiliar nas definições
com relação às possibilidades de conduta cirúrgica.
Carlos voltou para a rua, voltou a beber, voltou a ficar imundo. Mas hoje,
Carlos está aderindo ao acompanhamento em um CAPS AD III e talvez seu PTS
volte a se constituir, coordenado por ele mesmo, dentro de seu tempo, não no
tempo institucional.
Outra rede pequena, discutida pela equipe, foi a construída em torno de
Ângela. Reativa a aproximações, é atendida pelo CnaR, por uma equipe móvel
da Assistência Social e, aparentemente, por uma unidade básica de saúde de
uma cidade vizinha, perto de onde mora uma tia. Acompanhada principalmente
através de oficinas de terapia ocupacional, a equipe supõe que ela sofra de
déficit intelectual.
A parca rede composta para sua assistência tem um motivo distinto da de
Carlos, sua equipe de referência não conhece equipamentos de saúde que
possam apoiar o seu cuidado e a sua produção de outras maneiras de viver a
vida. Não há serviços que atendam adultos com déficit intelectual, muito menos
sem estrutura familiar de suporte. Ou seja, também não há rede se não existem
105
os nós, os pontos dessa rede. A falta de alternativa, de acesso a serviços
especializados necessários, também faz com que a rede possa ser pequena e
frágil. Ou estaria a equipe refém de um sentimento de impotência com relação à
situação desta usuária e assim, pouco capaz de criar outras alternativas para
ela? Uma ‘primeira alegria’ espinosana necessária a uma equipe é acreditar em
sua própria capacidade interventiva para poder produzir alternativas ao que não
se apresenta dentro de algum protocolo previamente estabelecido.
Mas quando há portas a serem abertas, os trabalhadores do CnaR
parecem tomar isso como um de seus trabalhos. As maneiras sobre como fazer
isso e em que radicalidade ainda é polêmica inconclusa (se é que demanda
alguma conclusão). Por um lado, se reconhece que a insistência na parceria com
serviços que estão resistentes à assistência ao morador de rua pode provocar
mudanças em suas práticas. Seja pelo incômodo, seja pelo constrangimento,
seja pelo convencimento, seja pela formação, seja pela contaminação de outros
possíveis nos modos de se trabalhar.
Entretanto, a equipe também, no cotidiano, acaba avaliando que esse ou
aquele serviço não é adequado para receber esse ou aquele usuário. E aí, o que
fazer? Responsabilizar o serviço que deveria receber tal encaminhamento,
buscar outra alternativa ou tentar assumir o que se supõe que tal serviço deixará
de fazer? Está claro que quando o apoio é solicitado e é necessário fazer
reuniões, discutir o caso, elaborar projetos terapêutico em conjunto, acompanhar
os profissionais, faz-se junto (122), o problema é quando existem poucas (ou
nenhuma) opções de encaminhamento e o serviço com o qual é necessário
dialogar não está aberto para conversar sobre as necessidades específicas dos
casos em questão.
Um exemplo de onde temos visto isso operar claramente é na Saúde
Mental. Atualmente Campinas conta com mais de 10 CAPS (entre infantis, álcool
e outras drogas e III), que têm um rodízio pactuado entre si para receber, acolher
e inserir no serviço, os moradores de rua. Existe importante heterogeneidade
nos processos de trabalho desses serviços e aberturas para acolher esses
usuários. Pouco se fala disso, mas no cotidiano podemos nos defrontar com
decisões como: “é aquele CAPS quem vai receber? Ih! É melhor internar no
hospital então! ” Ou “vamos tentar segurar para semana que vem, porque aí é
106
aquele outro quem recebe, não esse dessa semana”. A equipe debate isso como
uma tentativa de dar a melhor resposta possível à necessidade do usuário, mas
também como uma maneira de se proteger dos problemas e sobre trabalhos que
imagina que terá com o encaminhamento para unidades que julga mais
problemáticas. A crítica que se fazem é, operando a rede dessa maneira, não
estão deixando de tencioná-la para melhorá-la?
Essa discussão é trazida na conversa sobre o caso de Pedro Ogro. Ele
tem uma importante dificuldade para lidar com as atividades diárias, para lidar
com dinheiro, além de ser analfabeto. Suas crises convulsivas e pós-ictais
bastante exuberantes (e às vezes violentas, por isso o apelido) colocam a ele e
outras pessoas em risco. Assim, discussões sobre o mesmo consideravam que
a melhor opção seria conseguir tirá-lo da rua o mais urgentemente possível. Não
bastaria um simples abrigamento, ele precisaria de algum suporte para lidar com
a vida. Foi então tencionado (e conseguida), de maneira bastante incisiva, uma
vaga para ele em uma unidade de acolhimento.
Apesar das preocupações, Pedro Ogro já estava vivendo nas ruas, entre
São Paulo e Campinas, há uns tantos anos. Ele não se adaptou às regras do
serviço e as regras do serviço não se adaptaram a ele. Acabou sendo desligado,
expulso. Um trabalhador revela “A gente, ele na rua, a gente morre de medo por
causa das convulsões. Então, vamos tentar. Ninguém apostou de verdade que
a unidade de acolhimento daria certo”. De alguma maneira já se sabia que o
processo de trabalho daquela unidade não daria conta dele. E assim, refletem:
“A gente tem que ver exatamente de qual usuário a gente tá falando, de qual
equipe a gente tá falando e como a gente constrói muito singularmente a rede
para aquele usuário”.
Forçou-se uma entrada até o limite do possível em um serviço e ainda
assim não deu certo. De modo que as questões do quanto forçar ou não um
serviço a receber determinado usuário, o quanto estar junto, o quanto
responsabilizar o outro ou assumir para si as omissões seguem em aberto. No
final das contas, essa conversa faz mais sentido se feita singularmente, caso a
caso, do que se pensada enquanto comportamento geral previamente
estabelecido.
107
“Quando a gente faz isso [força a entrada], por exemplo com a unidade
de acolhimento, a gente também não vai garantir o cuidado do cara, entendeu?
Por que às vezes a gente fala, ‘é o CAPS AD III’ que tem que atender, então nós
vamos lá e vamos forçar pro cara atender goela abaixo, nós fizemos isso na
unidade de acolhimento e não foi o dos melhores”, reflete uma trabalhadora,
sobre essa questão.
Vários serviços se mobilizaram buscando tirar Pedro Ogro da rua, lidar
com sua polidependência e com sua suposta dificuldade para resolver as
atividades da vida cotidiana, foi-se ao ponto de nenhum desses serviços
seguirem investindo nas diversas morbidades ortopédicas advindas de
atropelamentos passados e não investigarem causas de base para as crises
convulsivas. Se por um lado o CnaR tensiona a rede, levando os problemas,
antes invisíveis (114), diretamente às portas de cada ponto da rede – e essa
tensão faz-se necessária para atender a PSR – por outro lado também é
importante que as equipes consigam dialogar e negociar mesmo diante de
concepções de cuidado muito distintas (mas, às vezes, não excludentes). Da
mesma maneira como é necessário se conectar com a diferença da lógica da
rua, também é necessário conectar-se com a diferença na relação entre as
equipes (122), assim, a redução de danos pode ser também uma diretriz para a
articulação de rede (113).
Discutia-se o caso entre vários serviços, com propostas variando entre
internações em CAPS AD III, hospital psiquiátrico e oficinas terapêuticas. A inicial
adesão sempre era seguida de evasão. A equipe CnaR começa a considerar um
caso de fracasso de atuação, visto que não consegue seguir com nenhuma
proposta realizada. As conversas entre os serviços, sobre ele, ocorriam com
facilidade, os trâmites não eram emperrados por burocracias, muita gente já o
conhecia e lhe abria as portas. Ainda assim, avalia-se que nada funcionou muito
bem. Uma trabalhadora reflete: “quando a gente vê que as setas funcionam para
gente e não funcionam para o usuário, a gente fala que é do nosso desejo e não
do desejo do usuário".
E completa: “E a gente constrói uma rede em cima do nosso desejo e não
do desejo dele. E a gente constrói uma rede que não é nem do nosso desejo, é
das nossas opções, das opções que a gente tem. Ou seja, não é rede, é um
108
arranjo. Por mais que às vezes a gente possa falar que é rede”. Assim,
emendamos a necessidade de sair de uma esfera representacional e ir para a
vida das pessoas, concretas, fora de uma extrapolação generalizante. É a partir
daí que podemos construir noções comuns e sair de uma reatividade para a
produção de um conhecimento em ato, que responda a necessidade reais por
ser capaz de olhar para a cadeia de ações e efeitos da vida das pessoas e das
relações delas com os serviços e destes uns com os outros. Ou seja, saímos de
uma ideia abstrata para a construção de uma ideia de conveniência entre os
corpos, a produção de uma noção comum menos universal, mas que já nos
permite avançar no entendimento, na seleção de encontros e afetos para a
produção de potência de vida, de saúde (37,38).
Interessante dizer que o Pedro Ogro, apesar de monstro: "Como ele
sobreviveu na rua?", "Pelo afeto!". Construiu sua maneira de viver e de
sobreviver, na relação com os taxistas e engraxates da “sua” praça, que cuidam
dele e o apoiam a lidar com a vida. Essas pessoas também balizam o serviço
sobre o estado de saúde de Pedro e o quanto ele está usando de drogas, como
está manejando isso. As relações são tão estreitas e de confiança que ele recusa
ir para uma pensão, por exemplo, porque sabe que pode ser enganado e ter seu
dinheiro levado pois não perceberia mentiras quanto a valores e cobranças.
"Foi engraçado ouvir isso. O Pedro Ogro viveu na rua pelo afeto. Ele
conseguiu se colocar pelo afeto." Colocação que reforça a necessidade de
construção de autonomia trazida por grupo de pesquisadores do Rio, ou seja,
como sendo a capacidade de o indivíduo dialogar com a cidade e esta com ele,
uma capacidade de estabelecer relações. Uma ideia de que autonomia é coletiva
(122).
Abaixo temos uma composição dos mapas construídos nas oficinas sobre
essas pessoas. Interessante notar o tamanho e heterogeneidade da rede
acionada com apenas 6 usuários do serviço.
109
Figura 5- Mapa da Rede Construída pelo CnaR para 6 pessoas atendidas. As setas pretas representam fluxos e relações predominantemente conflituosos.
110
Vale levantar outros pontos e discussões bastante interessantes de serem
registradas, ainda que não tão diretamente vinculadas aos casos, mas que
aparecem no diário de campo e na oficina de fechamento.
Sobre alguns aspectos que dificultam a construção de redes, além do que
já foi mencionado ao longo do texto, a equipe ressalta algo relacionado com os
movimentos de apropriação das pessoas e dos espaços dentro dos serviços.
Estamos falando dos momentos em que determinado usuário é atendido por
algum outro serviço (da Saúde ou não) e a equipe deste local passa a considerar
a pessoa que estão atendendo como sendo quase uma propriedade, não
aceitam dialogar sobre as condutas, não estão abertos a interferências externas
no caso, tão pouco comunicam qualquer mudança relativa a ele. É encontrar
uma barreira quase intransponível. Não existe gestão coletiva se a outra parte
não deseja abrir espaço para diálogo ou até mesmo considera ao outro como
inimigo.
Tal qual narrada por Souza (113), o CnaR, por vezes, sofre da sensação
de isolamento na rede, tal qual os CAPS AD, por motivos muito semelhantes,
aqui transcritos:
i) política proibicionista que se intensificou a partir da disseminação do crack; ii) despreparo técnico e visão predominantemente moralista dos profissionais da rede básica; iii) política intersetorial pautada pela lógica da abstinência e criminalização do usuário, pautada pelo modelo de internação; iv) demanda familiar por cura do usuário a partir de internação de longa duração; v) sobreimplicação dos profissionais pela atenção integral dos usuários no CAPS AD (p.266).
Figura 6 Campo no Largo do Pará - Acervo da Equipe
111
Como este autor, entendemos que estes aspectos se relacionam e se
fortalecem uns aos outros. Em acréscimo, ponderamos que o despreparo técnico
e a visão moralista é predominante em praticamente todos os serviços de saúde
(certo dia o residente de psiquiatria de um hospital terciário “confessou” à equipe
que naquela enfermaria não sabiam tratar usuários de drogas), a dificuldade na
produção de corresponsabilização é geral, ainda que as discussões de caso
acabem mudando pontualmente esse panorama frequentemente.
A despeito da falta de vagas, a pressão social e de outros serviços por
internação é usual, obrigando o CnaR a tomar decisões solitárias quanto ao
cuidado do usuário na rua. A solidão coloca o serviço a propor alternativas
criativas para dar conta das demandas cotidianas, algumas ousadas demais
para o moralismo reinante na rede, por vezes aprofundando mais a sensação de
isolamento.
Por outro lado, no cotidiano, pudemos verificar a composição, ainda que
mais intuitiva do que planejada, de equipes multirreferenciais para atender
alguns casos (113,123). Para tentar acompanhar o Leo, jovem de 18 anos, com
muita dificuldade de adesão a qualquer proposta, temos eu, as redutoras de
dano de nossa equipe, uma trabalhadora de equipe móvel da assistência social
e uma psicóloga de CAPS III. Ainda assim ele nos escapa entre os dedos e seu
cuidado segue sendo muito frágil. Vários casos têm referências compartilhadas
entre equipe CnaR e equipe móvel da Assistência Social buscando dar conta
das diferentes demandas que colocam. É uma experiência bastante concreta de
construção de redes vivas, caso a caso, pautadas pelas necessidades do
usuário.
Por fim, interessante trazer que houve uma polêmica durante a última
oficina. Seria mesmo o Consultório na Rua um equipamento da Atenção Básica?
Um trabalhador opina: “se me perguntasse assim, ‘você acha que é atenção
básica’, ‘não! ’, mas também não falaria que é da Saúde Mental, o consultório é
outra coisa. Talvez seja um serviço ponte, ora é mais uma coisa, horas é outra,
hora ele é meio assistência. Tem um tanto do instituinte daquilo que pulsa da
prática do consultório que extrapola seu campo formal no processo, eu acho que
isso é muito visível no consultório, talvez por ser um serviço meio nômade, por
circular, ser meio despojado dos protocolos, a gente consegue dizer de uma
112
flexibilidade e de uma maleabilidade maior da gente furar os protocolos que em
outros lugares isso não é tão possível. Se transmuta né. As nossas questões
não passam por uma dificuldade de oferecer assistência de se relacionar com as
pessoas, isso é o motor dessa máquina, dessa máquina de produção”.
Outra dialoga: “A gente acessa muito equipamento da Assistência
[Social], a gente acessa mais que da Saúde Mental, e o quanto a gente não tem
parceria na Saúde Mental, ou poucos casos. Por mais tortuosos que tenham sido
ali em cima, os azuis13, são os que mais a gente acessa, então a gente é muito
atenção básica”
Mais uma trabalhadora emenda: “as relações conflituosas são as mesmas
que a atenção básica como unidade de saúde tem, porque o centro de saúde é
sempre visto como o postinho, o encaminhador, o que só encaminha os
problemas, o que não é resolutivo e os trabalhadores que estão na atenção
básica estão o tempo todo sendo cobrados e tem uma dificuldade enorme de
lidar com o secundário, a contra-referência que não volta, o feedback do hospital
que foi internado e não sai relatório de alta e ninguém sabe o que aconteceu.
Então a gente tem as mesmas dificuldades que a atenção básica e a gente acaba
ampliando o que Atenção Básica faz por conta de outros fatores. A gente tem
muita dificuldade também de conversar com os outros setores”. Só que, quando
a equipe de referência do usuário é o CnaR, devido à sua mobilidade, se a
contra-referência não é feita, a equipe vai buscar. Se a alta não é referenciada a
UBS “tradicional”, ser referenciada ao CnaR é, inclusive, uma solução para um
dos argumentos de negativa de vaga de internação – o leito ficaria “preso” por
não ter para onde dar alta ao usuário (110) – se a articulação de um abrigamento
não é possível, a garantia de que o cuidado será continuado na rua ajuda na
negociação da internação e do tempo ótimo para alta.
E se não é Atenção Básica, também não é a porta de entrada, ou o
encaminhador para ela, segundo outra trabalhadora: “A única [questão] que eu
defendo completamente no consultório. O Consultório não é ponte para a
Atenção Básica, [pensando] na Unidade Básica. E ouso dizer que a gente só
consegue fazer isso porque a gente trabalha no caso a caso. ”
13 A trabalhadora estava olhando para o mapa compilado das oficinas e os serviços especializados da saúde estavam em azul no quadro.
113
E pensando sobre as diferenças com relação a Atenção Básica
“tradicional”, dizem:
“A gente é o território. O Agente de Saúde vai na casa das pessoas. A
gente vai na praça, vai na linha do trem, vai ali onde eles moram. E a gente tem
que resolver e dá maior resolutividade pro nosso trabalho. Tem essa
diferenciação mesmo da AB. A gente faz rede, a gente bate porta, a gente sai
quebrando porta quando é necessário, mas a gente tem um jeito diferente de
trabalhar”
Nesse sentido Souza e Carvalho pontuam, falando do redutor de danos,
mas também poderíamos pensar em um profissional de referência de qualquer
categoria:
Ao se colocarem como referência para os casos acessados em situação de rua, os redutores de danos passaram a ofertar um apoio em que a dimensão territorial do caso passou a ser incluído na rede. O território exerce, portanto, uma função sobre a rede, uma abertura que exige reconstrução de modos de atender e gerir. Para que a dimensão territorial da experiência com as drogas seja inserida como matéria para articulação da rede, é necessário que a ação inicial disparada pelos redutores de danos siga sendo apoiada em outros espaços. Se a equipe de Atenção Básica der seguimento à articulação do cuidado de um usuário de drogas nessa perspectiva, ou seja, em que o desejo e o modo existencial do usuário seja incluído, o território com suas características se presentificam na rede de serviços (123).
“A gente vê que o caráter itinerante da equipe dá uma outra perspectiva
sobre isso [construção de rede] (…). Facilita a construção de rede e facilita a
longitudinalidade do cuidado (...) e nenhum médico [de UBS] vai fechar a agenda
e falar 'vou lá acompanhar o paciente'”
Não encerrando, mas com um argumento de peso, outra trabalhadora
afirma categoricamente: “Mas eu discordo que a gente não é atenção básica. A
gente é o que a Atenção Básica deveria ser. A Atenção Básica se engessa em
tanta coisa… Eu acho que a questão da escuta, da porta aberta, que deveria ser
atenção básica, acaba não sendo”. O território também é uma singularidade
dessa equipe que a diferencia das demais de Atenção Básica. Produz-se aí,
nessa mistura com o território, saberes singulares, que dialogam diretamente
com a capacidade de construir redes e com seus nomadismos (112), saindo de
114
um lugar em que é pura produção de demanda e a rede “só” uma oferta técnica
de cuidado que vai ao isolamento temático (123).
E sobre esses engessamentos, não dá para deixar de trazer relatos
importantes de duas trabalhadoras, da capacidade instituinte desse porta-a-
porta feito pelo Consultório na Rua:
“A gente estimula o que está engessado. A gente chega com pedidos que
a pessoa, na hora que você tá falando, você vê a cara dela de ‘não, isso é
impossível’, e aí por fim você acaba percebendo que ela vai também tentar um
jeito, ali meio subversivo, ‘vamos encaixar essa, vamos ver esse’ e aí consegue
atender aquele que a gente encaminhou. A gente consegue acessar algumas
pessoas que estão dentro de um equipamento engessado que tem esse desejo
também e tá ali, mas tá guardado”.
É nessa abertura de corpo para o outro que o próprio trabalhador do CnaR pratica novas formas de cuidado até então não visibilizadas e com as quais passa a processar encontros de maneira inventiva. É num acompanhar afetivo que se torna possível “ressignificar a existência do sujeito, criando modos de subjetivação inéditos”, ponto de inflexão entre os afetos do cuidador e do sujeito em situação de rua. Contato tomado em apreensão corporal que faz reverberar, um no outro, quantas de potência de vida, emergência de um bom encontro, troca afetiva que ponha os corpos em movimento de composição (114).
“A gente tem muito entusiasmo no que a gente faz. E isso acaba
contaminando. Tenho essa impressão que qualquer lugar que a gente vai, a
gente vai com muito entusiasmo, com muito tesão. Sabe, falar do usuário e você
não vai se contentar com um ‘não posso’, ‘não é dia de fazer tal coisa’, então
tem essa coisa”.
Parece que de maneira mais ou menos formal essa equipe acaba por
produzir um matriciamento cruzado (107,122) com os outros serviços com os
quais dialoga. Os tensionamentos da rede vão abrindo espaços de conversa e
de mútua formação, se a cada caso discutido incorpora-se um pouco do saber
daquele trabalhador especialista, também se coloca um pouco da rua para
dentro do funcionamento deste equipamento de saúde e da rede.
Considerações Finais
115
Damos um ponto final temporário. Não que já tenhamos explorado tudo o
que a pesquisa produziu de intervenção e conhecimento, mas sim porque seriam
assuntos em demasia para abordar em apenas um capítulo e escaparíamos
sobremaneira do problema que nos levou à investigação.
A rua nunca dorme. Está sempre em movimento, mesmo quando parece
parada. Seus moradores são artistas na permanente criação de modos de se
levar a vida. A cada dia, a cada momento, uma nova invenção para dar conta
das necessidades do momento, mesmo que seja necessidade de morte.
Existências possíveis pelas conexões produzidas, mesmo que perversas,
sempre móveis e temporárias, carregadas aos sabores das marés. Ainda que os
laços temporários desenvolvidos, de alguma forma, sejam permanentes.
Esses pequenos territórios se fazem e desfazem são as redes vivas de
seus moradores, construídas por eles mesmos, em muito caracterizadas pela
incorporação das linhas de fuga em novos mapas de sobrevivência. A equipe de
Consultório na Rua precisa incorporar essa dinâmica para se aproximar dessas
pessoas. Invadida por esse nomadismo, repete o movimento para o resto da
rede, de saúde ou intersetorial, invadindo-a com a lógica da rua, do informal,
impermanente, sempre a se construir.
Trazer o micropolítico é trazer os lugares onde as existências furam os muros institucionais, conectando relações com o fora, que é constitutivo dos processos; processos estes intensamente produtores de novos sentidos no viver e no conhecimento. É trazer o lugar dos processos de encontros e suas atualizações das relações de poder. É trazer a micropolítica do encontro e a produção viva das redes de conexões existenciais, multiplicidades em agenciamento (88).
Percebemos que poucas coisas são tão eficazes quanto a conversa olho-
no-olho, em que se estabelecem relações bastante concretas entre os
trabalhadores e trabalhadoras da rede. É necessário que as equipes se
conheçam e se reconheçam, que conquistem legitimidade umas com as outras,
estabelecendo laços de confiança para que o trabalho se desenvolva da melhor
maneira possível.
Nesse sentido, a figura do trabalhador de referência para a relação de
rede mostra-se como fundamental para um fluxo mais fácil no cotidiano. Ainda
que, e necessário pontuar, isso deva ir permitindo a produção de uma nova
116
configuração de rede formalizada e bem estabelecida, que reduza certa
fragilidade existente nas trocas dependentes de uma pessoa.
Assim, temos de maneira bastante clara e concreta a temporalidade dos
desenhos de rede. Se assim não for, estaremos falando sempre de um desenho
representacional, uma fotografia que não condiz com os movimentos das
necessidades dos usuários. As linhas de fuga ocorrem, permitidas ou não. Uma
virada, que talvez seja muito útil, seja a de dar visibilidade a estas linhas,
permitindo que tracem um novo plano de composição dessa rede.
Claro que isso traz um dificultador bastante importante, já que também
coloca frequentemente em questão o processo de trabalho dos serviços
envolvidos nessas redes, as quais estão em permanente tensão. Além das
múltiplas lógicas de trabalho que circulam e contagiam, também ganham
visibilidade problemas de saúde, vulnerabilidades que estavam fora do alcance
das equipes, muitas vezes excluídas até propositalmente. As equipes reagem a
isso, questões que também evidenciam suas próprias insuficiências, às vezes
de maneira pouco construtiva.
As diferentes concepções sobre o direito à saúde, a saúde, a vida, o
cuidado etc. podem ser importantes motivos de conflitos, mas também podem
atuar complementarmente. As diferenças devem ser incluídas, enriquecem as
redes do usuário e das próprias equipes. Ainda que ideias parecidas possam
agilizar e facilitar muito o diálogo (como, por exemplo, a linguagem comum das
Assistentes Sociais que facilitam nossa circulação pelos hospitais). O que é
importante frisar é que, ao contrário do que defendem alguns, não é necessário
“alinhamento” de objetivos e ideias para que a rede possa funcionar bem, o que
é sim necessário são espaços de negociação e conversa que permitam que as
diversas perspectivas possam se confrontar, se reconhecerem como válidas e
negociarem as medidas necessárias singulares a cada caso.
Para isso, nos parece importante falar de uma clínica para construção de
redes, tal qual a clínica da redução de danos. Ou seja, uma atividade pouco
atenta a prescrições morais, a normas comportamentais, a regras ou a normas.
A clínica para a construção de redes também precisa ser uma clínica atenta à
produção de potência das equipes em diálogo, à produção de saúde dos
trabalhadores tanto quanto à produção de saúde dos usuários. É necessário
117
fomentar bons encontros, criar condições para que eles se deem, ou seja,
produzir espaços de conversa em que o comum possa ser construído a partir do
trabalho visando gradientes cada vez maiores de saúde dos usuários.
Estamos pesando nas cores da necessidade da inclusão de redes
informais, da mobilidade das equipes e da conversa entre elas sem, entretanto,
descartar a imprescindibilidade da construção de redes formais, como dito
parágrafos acima. O que é necessário reconhecer é que a vida vivida não cabe
em um desenho estruturado de rede e que, se queremos responder às
necessidades dos usuários tanto quanto às necessidades de gestores e/ou
trabalhadores, é crucial abrir esses desenhos. Anunciam Londero et al e,
acreditamos, que aqui esboçamos algumas pistas no sentido de responder
também as suas questões:
Como investir numa lógica de atenção em saúde que seja porosa à imprevisibilidade? Como provocar trabalhadores e serviços de maneira que a implicação com a prática de cuidado seja aberta à imprevisibilidade, conectada ao desejo e atenta às particularidades? São questões-desafio que perpassam o desenvolvimento desses trabalhadores e o acolhimento dessa população; questões cada vez mais anunciadas à rede de saúde (114).
Por fim, urge que a Atenção Básica revisite seus processos tomando as
experiências dos Consultórios na Rua como produtoras de novas tecnologias de
gestão do trabalho e do cuidado, para que se desburocratizem e se reencontrem
com os usuários, para que possa construir outro tipo de rede, menos engessada
e mais compromissada com o acompanhamento do usuário. Algumas pistas que
reconhecemos são: a necessidade de flexibilidade e mobilidade das equipes,
para que circulem em seus territórios e nas unidades de referência com as quais
precisam dialogar; a proposição de matriciamentos cruzados que contaminem
os especialistas com os saberes do território e que empoderem as equipes da
Atenção Básica; reconhecer e operar a função de intermediadora entre os
saberes, serviços de especialidades e suas disputas. Mas também é
fundamental reconhecer os limites dessa função de referência e cuidado
continuado do usuário. Se formos olhar singularmente mais às necessidades dos
usuários do que às formas colocadas a priori facilmente chegaremos a casos em
que talvez atue melhor uma equipe de especialista operando todas essas ideias
118
do que uma equipe de atenção básica que encontra com o usuário apenas muito
ocasionalmente.
119
CAPÍTULO 4 – SOBRE NOÇÕES COMUNS E REDES
O que são e como podemos construir redes de produção de saúde e de
vida? Essa dupla pergunta também subentende que precisamos explorar um
para quê das redes. Ou seja, para que os municípios, ou os serviços, ou as
pessoas, precisariam agrupar-se em rede? Que problemas postos à vida esse
tipo de organização busca responder? Respostas “oficiais”, colocadas em
portarias e outros documentos institucionais talvez tragam visibilidade para
motivos de alguma suposta praticidade político-gerencial, através dos quais
governos buscariam responder certos tipos de anseios populares, ou de grupos
politicamente dominantes. Essa discussão, digamos, governamental, foi
abordada em outro texto, evidentemente já contaminado pela discussão que
faremos aqui. Buscaremos, neste, a ousadia de surfar, de compor com a filosofia
para questionar e, quem sabe, redesenhar conceitos. Um trabalho que será
direcionado pelas questões: porque as pessoas se organizam em rede? A que
problema isso responde?
Para tentar acercarmo-nos de uma das tantas linhas de respostas
possíveis iremos iniciar recorrendo a Spinoza, desde sua ontologia, procurando
fazer os ganchos necessários com o campo da saúde e com o restante da
pesquisa. Sabemos que tal debate nos conduzirá a meandros complexos, uma
trama de conceitos vastamente interconectados. Procuraremos explorá-los da
melhor maneira possível sem, entretanto, abordar cada um deles em sua
complexidade e vastidão.
Todo conceito é irregular, abarca alguns tantos componentes, é uma
multiplicidade. Remete a um problema, ou a uma encruzilhada de problemas aos
quais se refere. Aqui procuraremos explicitar algo de sua endo-consistência,
traçando conceitos vizinhos (124) tentando percorrer a tênue linha entre uma
clara explicitação e a exaustão do texto.
É como uma viagem, com data marcada para início e para término, sem
a definição exata dos caminhos a serem percorridos, na qual resvalamos por
uma imensidade de pontos interessantes e na qual decisões difíceis devem ser
tomadas, pois a viagem não pode ser eterna ou o texto será exaustivamente
120
longo. Certa vez viajamos pelo Sul do Brasil de carro. Sabíamos ter cerca de 20
dias para esse percurso e que uma parada era imprescindível, o Natal com
amigas perto de Porto Alegre. Dormir em Curitiba era crucial, uma visita familiar
inestimável. Passar por Florianópolis se fazia necessário (sempre se escuta
sobre o quão incrível é) e lá chegando nos disseram, “vocês têm que passar pela
Praia do Rosa”. E para lá fomos, ainda havia muito o que explorar para captar
algo sobre a história, cultura etc. de Floripa, mas partimos. A Praia do Rosa foi
o descanso necessário que ventilou as ideias e o coração, mas o Natal se
avizinhava e partimos. Nessa viagem toda não podíamos deixar de captar um
pouco mais dos sentidos da colonização alemã, passamos por Santa Cruz do
Sul, visitamos Joinville. Visitamos amigas em Porto Alegre e Santa Maria. Assim,
se compôs uma das várias viagens-conceito que fizemos. A viagem é seus 3000
quilômetros, não a explicação infindável de cada uma de suas paradas,
tampouco seu destino final. Chequem seus assentos e afivelem seus cintos.
Spinozando uma ontologia
Partimos da ideia que a Natureza (ou Deus) é uma substância
infinitamente infinita, que existe em si e por si, é causa de sua própria existência
(causa sui).
3. Por substância compreendo aquilo que existe em si mesmo e que por si mesmo é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não exige o conceito de outra coisa do qual deva ser formado (37) (p. I, def. 3)14.
Da Natureza tudo se segue necessariamente15, em infinitos Atributos de
infinita variação qualitativa (38), cada um dos quais exprime uma essência, um
existir, eterna e infinita (37).
14 Ao citar literalmente a Ética, de Spinoza, diversos textos costumam citar o ponto do livro em
que a citação se encontra ao invés da página (as múltiplas edições levam a numerações diferentes), assim p. = Livro/Parte – numerado em algarismo romano, def. = Definição, ax. = Axioma, prop. = Proposição, cor. = Corolário, post. = Postulado. 15 Diz-se livre a coisa que existe exclusivamente de sua natureza e que por si só é determinada a agir [o que se diz apenas da Substância]. E diz-se necessária, ou melhor, coagida, aquela coisa que é determinada por outra a existir e a operar de maneira definida e determinada (37) (p. I, def.7).
121
Nosso intelecto é capaz de perceber apenas dois Atributos, o Pensamento
e a Extensão, cujas naturezas nada têm em comum e são essências na
substância na medida em que seus conceitos não envolvem o conceito de nada
mais, ou seja, não demanda outras ideias para que existam.
Conhecemos apenas dois porque só podemos conceber como infinitas as qualidades que envolvemos em nossa essência: o pensamento e a extensão, na medida que somos espírito16 e corpo (38).
Disso se seguem os modos, ou seja, as modificações de uma substância
(37). Os modos diferem-se em existência e essência, sendo produzidos dentro
desses mesmos atributos que os constituem, de maneira que são efeitos não
separáveis de suas causas, não estão fora dos atributos nos quais são
produzidos (38), ou seja, aquilo que existe em outra coisa, por meio da qual é
também concebido (37) (p.I, def.5). Seguem sendo parte da Natureza.
Uma parada. Que queremos dizer com atributo, essência e modo? Vamos
tentar entender um pouco mais. Assim Spinoza os define:
4. Por atributo compreendo aquilo que, de uma substância, o intelecto percebe como constituindo a sua essência (37)(p.I, def.4).
Deleuze (38) entende que o Atributo é expressivo, se referindo ao
entendimento, e é imanente o que o coloca com uma característica unívoca, os
Atributos dizem da Substância a qual compõem na mesma medida que dos
Modos que contêm, ou seja, tudo o que há para ser expresso de um Atributo já
o é, não advém de um plano distinto, mas sim desse nosso mesmo plano de
experiência. Estando expresso, dele se pode entender características da
Substância, da qual são continentes, assim como se pode perceber
características dos modos que dele derivam.
Como dissemos, os Atributos são infinitos, mas percebemos apenas dois
(pensamento e extensão), os que se relacionam com nossa essência. Essência
é uma potência de existir, singular, cada indivíduo tem seu grau de potência.
O que constitui necessariamente a essência de uma coisa é aquilo que, se dado, a coisa é posta e que, se retirado, a coisa é retirada, ou aquilo sem o qual a coisa não pode existir nem ser concebida, e inversamente, aquilo que sem a coisa não pode existir nem ser concebido (37)(p.II, prop.10, esc.).
16 Algumas traduções preferem a expressão “mente”, a tradução de Tomaz Tadeu em Spinoza, 2008, na Proposição 1 da Parte II se refere a “ente pensante”, outras traduções usam “alma”.
122
Não entenderemos, aqui, como essência, jargões do tipo “é da essência
do homem ser generoso” (ou ser egoísta, ser alegre, etc.), pois esses modos do
pensamento não são condição inequívoca para a existência do homem. Esses
qualificativos entenderemos como modos do pensamento ou afetos do ânimo,
não existem por si mesmo, nem necessariamente:
3. Os modos do pensar, tais como o amor, o desejo, ou qualquer outro que se designa pelo nome de afeto do ânimo, não podem existir se não existir, no mesmo indivíduo, a ideia da coisa amada, desejada etc. (37)(p.II, ax.3).
Sobre os modos, além do já dito, podemos acrescentar que os modos não
são separáveis por sua existência de suas causas nas diversas relações de
causa e efeito em que se implicam. Tampouco podem ser considerados
separados das diversas partes extensivas (corpos) a que possuem sob suas
relações constitutivas, ou das relações constitutivas de partes extensivas por
quais são possuídos.
123
Corpos
O modo, ou corpo, passa a existência quando suas partes são
determinadas (externamente) a certas relações características que o compõe.
Essas relações exprimem certa essência, ou seja, um grau de potência. Um grau
Figura 7 - Galathea de Esferas (1952), Salvador Dalí - https://en.wikipedia.org/wiki/File:Galaofspheres.JPG - Acessado em 27/01/16
124
de potência que mantém essas relações como tal, que fazem com que o corpo
persevere na existência - conatus.
São numerosas as partes que compõe um corpo, tanto para menor (mais
simples, compostos de menos partes), quanto tais corpos compõe outros
maiores (como um certo conjunto social, até toda a natureza). De maneira que
tão mais potente é um corpo quanto de mais partes é composto. Todavia, há de
se ter em consideração que ao encontrar outro corpo, este pode agir compondo
as relações daquele, ou seja, aumentando sua potência de existir, ou tomar
partes daquele, decompondo sua potência e até sua existência. Para uma
comparação simples e eficaz: os médicos dizem que é tão mais resistente um
coração a um infarto quanto mais vasos colaterais esse possuir, de modo que
uma obstrução em um vaso é rapidamente compensada pelos colaterais
reduzindo a área de isquemia miocárdica. Um coração é tão mais capaz de
preservar sua existência quanto mais vasos colaterais tiver e que sejam capazes
de substituir um que deixe de funcionar. Do mesmo modo, múltiplos trombos, ou
em locais críticos, podem fazer com que as partes que compõem um coração
abandonem suas relações, terminando com sua existência enquanto coração.
Sobre esse processo de individuação, a partir da composição de relações
que efetuam determinado grau de potência de existir, Deleuze explica:
Mas há duas individuações diferentes: a da essência, definida pela singularidade de cada grau de potência como parte intensiva simples, indivisível e eterna; a da existência, definida pelo conjunto divisível de partes extensivas que efetuam temporariamente a relação eterna de movimento e de repouso, na qual a essência de modo exprime-se (38).
Vamos nos deter um pouco mais nessa ideia de composição. Estamos
falando aqui da relação de partes, temporária – pelo tempo que permanecem
agrupadas, eterna – pela relação absolutamente singular que suas partes
desenvolvem. Átomos se compõem para formar alguma molécula química... um
Hidrogênio composto com dois Oxigênios sempre será água, ainda que o
Hidrogênio possa abandonar essa relação e compor com o Cloro para formar um
ácido. Um surfista compõe um corpo harmônico com sua boa onda, mas se
decompõe à menor distração. A composição de algumas sílabas formará uma
palavra, ainda que também possam rearranjar-se em outras. Que fique claro,
que falamos da relação que forma um corpo e não do retorno ao Uno
125
transcendental – um casal de amantes tem uma relação singular, mas não são
eles mesmos um só e não estão impedidos de compor com outros corpos. Assim,
compor nos fala da ideia de relação de partes para formar outra qualitativamente
diferente que se caracteriza pela relação dessas partes. O corpo humano pode
aprender a estabelecer composições, relações que fortaleçam sua existência e
a evitar as relações que o enfraqueçam, decomponham, possam destruí-lo (125).
Dessa maneira entenderemos que o corpo humano é um dentre vários
corpos existentes, individualizado em função das relações de movimento e
repouso entre suas inúmeras partes que o compõem. E mantém suas relações
de movimento e repouso ao passar pelas relações de movimento e repouso
impostas por outros corpos, exprimindo certo grau de potência no esforço em
perseverar na existência, ao que Spinoza chama de conatus. Todo corpo,
inclusive os coletivos, esforçam-se por perseverar na existência. Essas
modificações provocadas por uns corpos em outros são chamadas de afecções
(37). Do que depreendemos que a potência de existir também diz da capacidade
de suportar essas afecções e de provoca-las, sem que suas relações
constitutivas se decomponham.
Cabe ter claro que, seguindo nessa linha, entenderemos que os corpos
humanos também conformam partes de outros corpos maiores que si. E que não
tomaremos um corpo somente pelas partes orgânicas de que é composto, mas
também pelas diversas afecções que o modificam constantemente. Assim como
poderemos tomar instituições (uma equipe de saúde, por exemplo) por corpos
com funcionamentos semelhantes aos aqui explicitados. De tal forma que
determinado processo de trabalho, por exemplo, tende a permanecer como está,
preservando certo funcionamento de equipe tal como seus membros
habituaram-se a vivenciá-lo.
Como Espinosa define um corpo? Um corpo qualquer, Espinosa o define de duas maneiras simultâneas. De um lado, um corpo, por menor que seja, sempre comporta uma infinidade de partículas: são as relações de repouso e de movimento, de velocidades e de lentidões entre partículas que definem um corpo, a individualidade de um corpo. De outro lado, um corpo afeta outros corpos, ou é afetado por outros corpos: é este poder de afetar e de ser afetado que também define um corpo na sua individualidade. (…) são duas proposições (…): uma é cinética, e a outra é dinâmica (38).
126
A ideia que fazemos do nosso corpo é a ideia de um corpo existente em
ato, ou seja, de um corpo que está tomando parte de afecções. Assim,
conhecemo-lo a partir das ideias das afecções que constantemente o modificam.
Para entender melhor o que isso significa podemos olhar para a exploração
sobre o normal e o patológico feita por Canguilhem. Ele colocará que a doença
será a reveladora das funções normais de um corpo no momento em que o
impede de seguir com tais funções. Afirmando que a saúde é vida no silêncio
dos órgãos (p.39) e que a medicina existe porque há homens que se sentem
doentes (p.36), não o contrário. Assim, não há, portanto, nenhum paradoxo em
dizer que o anormal, que logicamente é o segundo, é existencialmente o primeiro
(126). Enfim, fazemos uma ideia do corpo pelas modificações que ele sofre o
tempo todo pelos encontros com outros corpos. A vida é inventada e criada em
ato, no próprio movimento do viver… a própria saúde é recriada a cada ruído
que nos arremata, que arremata nosso corpo, longe de ser um “estado de
completo bem-estar biopsicossocial” (isso existe?), vamos entendendo que
saúde é um contínuo movimento de produção, reinvenção, readaptação.
Aqui, um parêntesis, essa ideia de existir em ato é particularmente
interessante para o trabalho em saúde. Os leitores da Saúde Coletiva brasileira
não terão dificuldade de fazer a relação disso com a noção de trabalho vivo em
ato explorada por Merhy e por diversos outros investigadores, ainda que feita,
inicialmente, a partir de uma discussão dialética (conceito explorado desde Marx,
no qual não nos ateremos, apenas reconhecemos a complexidade do tema).
Dizer que algo existe em ato nos passa a ideia de que existe apenas quando em
relação. O trabalho vivo em ato é o trabalho criador de um produto novo,
relacionando diretamente o trabalhador com o produto de seu trabalho, o produto
do trabalho é consumido enquanto é produzido. É nesse plano relacional, onde
só o “em ato” pode atuar que se produzem relações, intercessões entre
trabalhador e usuário (127).
De maneira mais ampla, Virno (128) nos coloca que o elemento
constitutivo do trabalho pós-fordista é o compartilhamento de atitudes
linguísticas e cognitivas. A multidão contemporânea, e o trabalho, caracteriza-se
por essa fusão entre Política e Trabalho, ou seja, encontra seu próprio
comprimento em si mesma e sempre exige um aspecto relacional, demanda o
127
outro, necessita de um público. O que diz mais do processo produtivo em si, do
que de um produto acabado, em sua própria potencialidade.
El trabajo vivo orientado a la producción de bienes inmateriales, como el trabajo cognitivo o intelectual, siempre excede los límites que se le imponen y plantea formas de deseo que no son consumidas y formas de vida que se acumulan (129).
Ora, essa conversa remete-nos de volta às leituras spinozanas. Quando
falamos que conatus, a capacidade de perseverar na existência, passa pela
capacidade de se relacionar mantendo as relações que o compõe e que o corpo
é relação, definido também na capacidade de afetar e ser afetado, podemos
chegar a entender que a potência é ativa e em ato. É necessário, então, abrir-se
a uma aptidão em ser afetado, que não se trata de deixar-se modificar
aleatoriamente, pois, como já vimos, existem relações que descompõem os
corpos, mas sim saber que relações são compositivas. As figuras de afetos-
sentimentos evidenciam-se quando o conatus é determinado a fazer algo,
quando uma afecção lhe sobrevém, tomamos consciência disso da mesma
maneira que do corpo, à medida que somos afetados e isso diz do desejo (38),
1. O desejo é a própria essência do homem, enquanto esta é concebida como determinada, em virtude de uma dada afecção qualquer de si própria, a agir de alguma maneira. (…) por afecção da essência humana compreendemos qualquer estado dessa essência, quer seja inato ou adquirido, quer seja concebido apenas pelo atributo do pensamento ou apenas pelo da extensão (…) [ou] a ambos os atributos. Compreendo, aqui, portanto, pelo nome de desejo todos os esforços, todos os impulsos, apetites e volições do homem, que variam de acordo com o seu variável estado (37) (p.III, def. dos afetos). O esforço pelo qual cada coisa se esforça em perseverar em seu ser nada mais é do que a sua essência atual (p. III, prop. 7).
Quanto mais um corpo é capaz de preservar sua existência e agir a partir
e sobre as modificações provocadas por um maior número de coisas, mais
claramente a mente será capaz de compreender distintamente um maior número
de coisas (37)(p.II, prop.13). De tal modo que a mente percebe tanto mais coisas
quanto mais maneiras pelas quais seu corpo pode ser afetado, segue-se que a
mente poderá fazer tantas mais ideias claras e distintas quanto mais esse corpo
seja capaz de afetar e afetado.
O quanto uma equipe de trabalhadores de saúde é capaz de suportar e
(re)existir diante das modificações que seus usuários lhes provocam, ou ainda,
quanto de intervenção é possível na relação entre duas equipes que interferem
128
no trabalho uma da outra? E não seria essa interferência uma das importantes
ferramentas para estas equipes aumentarem seus graus de “compreensão” e,
portanto, sua capacidade de afetar (cuidando de seus usuários)? E uma rede de
saúde, uma rede de relações, não seria tão mais forte quanto mais conexões é
capaz de realizar?
O axioma 1 do corolário desta proposição nos faz uma consideração
importante para se pensar sobre encontro entre os corpos:
1. Todas as maneiras pelas quais um corpo qualquer é afetado por outro seguem-se da natureza do copo afetado e, ao mesmo tempo, da natureza do corpo que o afeta. Assim um só e mesmo corpo, em razão da diferença de natureza dos corpos que o movem, é movido de diferentes maneiras, e, inversamente, corpos diferentes são movidos de diferentes maneiras por um só e mesmo corpo (37)(p. II, prop. 13, Lema 3, ax. 1).
Os efeitos de um encontro entre dois corpos dizem respeito à natureza de
ambos, assim que a ideia que fazemos dos corpos exteriores também indicam o
estado do nosso próprio corpo (37)(p. II, props. 13 a 16). Segue-se disso que o
corpo pode arranjar-se com os exteriores de distintas maneiras, de tal forma que
se uma parte deixar de compor o conjunto de relações que caracteriza o corpo
humano, por exemplo, mas seja sucessivamente substituída por outra parte,
mantendo a natureza daquele corpo humano, este seguirá perseverando na
existência. Faça uma pilha de pedras e uma pilha de areia, despeje sobre ambas
a mesma quantidade de água, veremos desses encontros não apenas
propriedades da água, mas também da areia e da pedra. Uma praia segue sendo
praia, mesmo com uma onda puxando uma parte de sua areia se ainda a tiver
em quantidade suficiente e se for reposta em quantidade satisfatória na onda
seguinte.
Um corpo subjugado pela aleatoriedade dos encontros e reagindo aos
efeitos desses está exteriormente determinado a agir, ou seja, terá uma ideia
confusa de si e dos corpos que o afetam já que percebe a si e aos outros apenas
das modificações que lhes imprimem (37)(p. II, prop. 29). As partes disponíveis
para compor/decompor com seu conjunto de relações estão determinadas
externamente, de forma aleatória e este corpo simplesmente reage a elas.
Por outro lado, também entenderemos que os corpos estão em
concordância com relação a determinados elementos, ideias ou noções que lhes
são comuns. Supondo que um corpo seja afetado por outro, que lhe é exterior,
129
por aquilo que têm em comum, segue-se que o primeiro terá um conhecimento
adequado de sua própria propriedade. De maneira que a mente é tanto mais
capaz de perceber as coisas adequadamente quanto mais propriedades em
comum com os outros corpos tem o seu corpo (37)(p.II, prop.39, cor.).
Afeto afeta
(Arte de Amar) Se queres sentir a felicidade de amar, Esquece a tua alma. A alma é que estraga o amor. Só em Deus ela pode encontrar satisfação. Não noutra alma. Só em Deus — ou fora do mundo. As almas são incomunicáveis. Deixa o teu corpo entender-se com outro Corpo. Porque os corpos se entendem, mas as almas não (130).
A partir dessa ideia de conhecimento adequado podemos dizer que se
age no momento em que se sucede algo do qual somos a causa adequada, do
contrário padecemos, ou seja, somos determinados a agir por causas
inadequadas ou exteriores (37)(p. III, def. 2). O corpo humano pode ser afetado
de inúmeras maneiras pelas quais sua potência de agir é aumentada ou
diminuída, ao que Spinoza chama de afeto (p. III, def.3 e post. 1).
Cada coisa esforça-se em perseverar na existência (conatus), sendo esse
esforço atingido por coisas ou ideias que aumentam ou refreiam a potência de
agir do corpo. As que aumentam essa capacidade são chamados de alegrias e
as que a diminuem, de tristezas (37)(p. III, props. 6, 7, 10 e 11). Facilmente
podemos supor que tanto mais tristeza experimente um corpo tanto mais ele se
esforçará por afastar o que o entristece de si, da mesma maneira tanto mais
desejará manter um afeto de alegria quanto mais seja afetado pelo mesmo (p.
III, prop. 37). E da mesma maneira que a uma ideia adequada se segue uma
ideia adequada, quando a mente considera a si própria como capaz de agir
(conhece a si própria pelas ideias das afecções), tanto mais é afetada de alegria,
sendo tanto mais capaz de imaginar a si própria e a agir por si mesma (p. III,
prop. 53) – uma alegria relacionada com a percepção de sua própria potência de
interferir no mundo e em si mesmo.
130
A alegria é a prova dos nove (14).
Teremos, assim, que o desejo que surge da alegria é aumentado pelo
próprio afeto de alegria, e que a força do desejo proveniente da alegria é
exponencial, provém da própria potência humana e da potência da causa
exterior. Por outro lado, o desejo que surge da tristeza depende apenas da
potência humana (37)(p. IV, prop. 18). Se retomamos que para se conservar na
existência um corpo precisa de muitos outros para se reconstituir ou manter as
relações que o caracteriza (p. II, post. 4) e que a compreensão adequada de si
e das coisas depende das afecções a que um corpo está submetido (como dito
acima), logo teremos que existem muitas coisas úteis fora de nós, especialmente
aquelas que concordam com a nossa natureza (com a qual temos alguma noção
comum), de maneira que indivíduos de naturezas convenientes entre si tornam-
se duplamente mais potentes juntos do que o seriam separadamente (p. IV, prop,
18, esc.). Ao que decorre que:
Nada é mais útil ao homem que o próprio homem. (...) Disso se segue que os homens que se regem pela razão, isto é, os homens que buscam, sob a condução da razão, o que lhes é útil, nada apetecem para si que não desejem também para os outros (37)(p. IV, prop. 18, esc.)
Retomamos a ideia de composição explorada acima, quando se
estabelece uma relação cria-se um terceiro corpo, que não é nem um indivíduo
nem o outro, tampouco a simples soma de ambos. Ampliar as possibilidades de
relações disponíveis ou dadas é também criar novos modos de vida, possibilitar
o aprendizado de tornar-se diverso do que se é, ou olhar para o que estamos em
vias de nos tornar. Nessa ética da construção de modos de vida este terceiro
corpo virtual, o da relação, há de ser zelado e cuidado. Poderíamos chamar isso
de amizade, dotando-a de um sentido político, a qual é condição indispensável
do pensar (131).
Talvez algum leitor já tenha percebido, também podemos chamar isso
sobre o que estamos falando de amor. Não um amor romântico ao estilo contos
de fada de princesas da Disney, tampouco um amor bíblico. Por favor, esqueça
qualquer ideia de jargões como “a tampa da panela” ou a “outra metade da
laranja”, não o definiremos assim! Estamos falando de um amor político! Assim
Spinoza define:
6. O amor é uma alegria acompanhada da ideia de uma causa exterior. (…) a vontade do amante de unir-se à coisa amada não
131
exprime sua essência, mas uma de suas propriedades. (…) por vontade compreendo a satisfação que a presença da coisa amada produz no amante, satisfação que fortalece a alegria do amante ou, ao menos, a intensifica (37)(p.III, def. dos afetos).
Ora, falamos aqui de uma força ontológica e política do amor, em que a
alegria produzida na constituição desse corpo relacional amoroso aumenta
nossa potência, nossa capacidade de agir, de produzir ideias adequadas – pela
alegria acompanhada da identificação de uma causa externa. Escapando do
identitário, o amor é produtor de singularidades e de comum.
El amor (…) es alegría, es el aumento de nuestra potencia de actuar y pensar, unida al reconocimiento de una causa exterior. Mediante el amor formamos una relación con esa causa y tratamos de repetir y ampliar nuestra alegría, formando cuerpos y mentes nuevos y más potentes. Dicho de otra manera, el amor es una producción del común que constantemente apunta hacia arriba17, tratando de crear más cada vez con más potencia, (…), el común en su forma más expansiva. Podríamos decir que todo acto de amor es un acontecimiento ontológico en la medida en que señala una ruptura con el ser existente y crea nuevo ser (…). Al fin y al cabo, el ser no es sino otra manera de decir lo que es ineluctablemente común, lo que niega a ser privatizado o cercado y permanece constantemente abierto a todos. (...). Así, pues, decir que el amor es ontológicamente constitutivo significa sencillamente que produce el común (129).
Ora, então aqui não estamos propondo nenhuma ideia piegas de que
todos têm que se amar, mas sim a ideia de que produzir relações potentes, ou
seja, que ampliam nossa capacidade de existir de intervir e de sermos
modificados, também é amor. Então, uma equipe que “permite” a intervenção do
usuário em si, ou que permite que outra equipe a questione em seu processo de
trabalho age amorosamente. Então, uma equipe que aposta na potência de seu
usuário e na potência da equipe com a qual precisa se relacionar também age
amorosamente. Amor político. E para que o amor dure é necessário reconhecer
a diferença, prezar ao outro justamente pela diferença, é preciso lidar com as
17 Apontar para cima não deve ser entendido como criação de “formas superiores”, mas como uma espiral crescente de produção de potência e comum. Quanto mais aumenta nossa potência de atuar, mais se produz comum e assim sucessivamente. De modo que também podemos descartar qualquer pretensão limitante da capacidade de amar, nesse sentido que aqui exploramos quanto mais amor há, mais se produz.
O homem amará com mais constância o bem que ama e apetece para si próprio se vê que outros também o amam. Portanto, ele se esforçará para que outros também o amem. E como esse bem é comum a todos os homens e todos podem desfrutá-lo, ele se esforçará, então, para que todos dele desfrutem; e tanto mais se esforçará quanto mais ele próprio desfruta desse bem (37)(p.IV, prop.37).
132
espontaneidades e necessidades do outro, sendo que nessa composição que
vai se moldando a criação conjunta (132).
Da capacidade de produção de singularidade vamos diretamente, na
mesma linha, para a capacidade de composição dessas singularidades. Não é
busca do Uno transcendental, mas sim, de um ato político e material de produção
de subjetividades e comuns compondo-se em contínua variação. Produção e
composição (129). Entendemos que Spinoza dá uma utilidade bastante prática
e política ao amor, o aumento da nossa potência, da nossa capacidade de
perseverar na existência, ou seja, o amor reforça o desejo por e pela vida e apoia
a consolidação das instituições comuns que o desejo busca construir.
De forma muito clara e sintética Hardt e Negri falam da potência do amor:
En primer y principal lugar, la potencia del amor es la constitución del común y en última instancia la formación de la sociedad. (…) componer [las diferencias de las singularidades] en la relación social y de tal suerte constituir el común. (…) la potencia del amor debe ser también, en segundo lugar, una fuerza para combatir el mal. El amor cobra ahora la forma de la indignación, la desobediencia y el antagonismo. (…) estos dos primeros aspectos de la potencia del amor - sus potencias de asociación y rebelión, su constitución del común y su combate contra la corrupción - funcionan conjuntamente en el tercero: hacer la multitud. Este proyecto debe reunir el proceso de éxodo con un proyecto organizativo encaminado a la creación de instituciones del común. El despliegue del amor tiene que ser enseñado y han de formarse nuevos hábitos mediante la organización colectiva de nuestros deseos, un proceso de educación sentimental y política (129).
Estamos, então, afirmando, que a produção de comum, a constituição de
corpos relacionais amorosos tem algo de excedente, criativo, não capturável – e
não previsível – com capacidade de resistência e de êxodo. Ainda que se tente
capturar, controlar ou normatizar algo transbordará. Há que se guardar essa
ideia, voltaremos nela pois já nos deixa pistas do porquê desenhos
excessivamente normativos de rede são insuficientes para a produção de vida
(do usuário e do trabalhador de saúde). O amor poderá produzir outras formas
de convívio, de viver junto, afirmando a autonomia e a composição de
singularidades no comum (129). Amamos os entes que alegram, ou seja, que
aumentam nossa capacidade de existir, nossa potência de agir e pensar, nossa
capacidade de afetar e ser afetado, enfim, o amor é profundamente criativo
(132).
133
Amo tanto mais quanto mais tenho potencial para me expressar ativamente; e menos nos momentos em que sou reativo. E como vimos, a atividade e a reatividade dependem da confiança em si mesmo, que vem diretamente da confiança no ambiente –na vida, na substância espinosiana (…). Em outras palavras, amo tanto mais quanto o amor que sinto vem do excesso, da confiança que trago em mim, que permite aceitar a diferença, sobreviver aos ataques, e permanecer criativo e espontâneo. (…). Amo porque tenho em excesso, porque transbordo; desejo se e porque minha capacidade de estabelecer vínculos espontâneos com os outros, com o objeto amado, é grande. Amo porque me enriqueço com o mundo e com a diferença (132).
Pedimos ao leitor a paciência de seguir na leitura e que não pense que
estamos procurando produzir algum conceito panaceico, reconhecemos, assim
como os autores a que recorremos, que tais produções não necessariamente
levam à produção de vida e de felicidade, mas que podem ser o caminho
necessário. Ainda que a cada página saltem novos conceitos, devemos lembrar
que nenhuma estrela deve ser considerada sem as forças gravitacionais e
magnéticas dos outros corpos celestes, assim, na medida do necessário, ao
longo deste capítulo, explicitaremos cada um destes conceitos.
Comum?
[Cósimo] Aprendió esto: que las asociaciones hacen al hombre más fuerte y ponen de relieve las mejores dotes de las personas aisladas, y dan una alegría que raramente se alcanza actuando por cuenta propia, la de ver cuánta gente honrada y valiente y capaz hay, para la que vale la pena querer cosas buenas (35).
Começamos a entender, aqui, a necessidade dos homens em se
associarem, se conectarem, formarem redes em que possam partilhar, trocar. É
necessário produzir relações e produzir comum. Seguimos conversando.
Entendemos que uma coisa não nos pode ser boa nem má se não tiver nada em
comum conosco, pois se assim não for tal coisa singular não será capaz nem de
estimular, nem de refrear, nossa própria potência (37)(p. IV, prop. 29). Ao passo
que ela será tão mais útil quanto mais concordar (ou tiver em comum) com nossa
própria natureza (p. IV, prop. 31). E é quando cada homem busca para si o que
lhe é de máxima utilidade que então cada um será de máxima utilidade para
outro (p. IV, prop. 35, cor. 2). Parece óbvio, mas é importante (e não sem
consequências) a conclusão de Spinoza acerca disso:
134
Por meio da ajuda mútua, os homens conseguem muito mais facilmente aquilo de que precisam, e que apenas pela união de suas forças podem evitar os perigos que os ameaçam por toda parte (37)(p. IV, prop. 35, esc.).
Sobre a utilidade, Spinoza considera, diante desses pontos já expostos,
que é útil ao corpo aquilo que o dispõe a ser afetado de múltiplas maneiras ou
incrementa sua capacidade de afetar os corpos exteriores e é tanto mais útil
quanto mais aumenta essas capacidades (37) (p. IV, prop. 38). Assim o será,
também, aquilo que faz com que os homens vivam em concórdia, apoiem-se
mutuamente (p. IV, prop. 40). Ora, dessa maneira, tanto mais um homem esteja
de posse de sua própria potência (ou seja, para Spinoza, seja mais livre) tanto
mais poderá unir-se a outros homens pela amizade (e não pela troca de favores)
(p. IV, prop. 70), ou pelo amor. E tanto mais um homem possa viver a partir dessa
verdade relacional, ou seja, segundo o ditame da razão, se esforça por viver
livremente, tanto mais desejará manter o princípio da vida e da utilidade comuns
(p. IV, prop. 73).
Quanto mais nos associamos por aquilo que temos em comum, tanto mais
aumentamos nossa capacidade de agir. Como de ideias adequadas seguem-se
ideias adequadas, logo, é na exploração dessas propriedades comuns (a partir
das quais produzimos conhecimentos adequados daquilo que nos afeta e
afetamos) que tanto mais poderemos compreender e ocupar nossa mente com
conhecimentos adequados (37) (p. IV, prop.12). Esse conhecimento Spinoza
chamará de conhecimento de segundo gênero (p. II, prop. 40, esc.2)(133), no
qual, em termos práticos, partimos de noções comuns singulares (entre
corpos/ideias) para chegar a essas ideias adequadas (134).
Será adequada na mente, além disso, a ideia daquilo que o corpo humano e certos corpos exteriores pelos quais o corpo humano costuma ser afetado têm de comum e próprio, e que existe em cada parte assim como no todo de cada um desses corpos exteriores (37) (p. II, prop. 39)
A ideia desse “algo em comum” é a primeira ideia adequada que
formamos e é a formação dessa ideia que marca a posse de nossa potência de
atuar. O sentido de noção comum que estamos procurando abordar aqui é o
menos universal, por onde chegamos a ser ativos. Ainda que noção comum seja
sempre a ideia de similitude de composição entre os modos existentes, as menos
universais representam uma similitude de composição entre corpos que convém
entre si diretamente e a partir de seu próprio ponto de vista, elas não
135
permanecem externas, mas sim encontram nessa similitude uma razão interna
e necessária da conveniência dos corpos (133).
Não abordaremos aqui que:
En el otro polo, las nociones comunes más universales representan una similitud o comunidad de composición, pero entre cuerpos que convienen desde un punto de vista muy general y no desde su propio punto de vista. Representan pues “lo que es común a todas las cosas”, por ejemplo, lo extenso, el movimiento y el reposo, es decir, la universal similitud en las relaciones que se componen al infinito desde el punto de vista de la naturaleza entera. Estas nociones tienen aún su utilidad; puesto que ellas nos hacen comprender las desconveniencias mismas, y nos dan una razón interna y necesaria. Ellas nos permiten en efecto determinar el punto de vista a partir del que cesa la conveniencia más general entre dos cuerpos; ellas muestran cómo y por qué la contrariedad aparece cuando nos situamos en el punto de vista “menos universal” de esos dos cuerpos mismos (133).
Reafirmamos que, com essa discussão, estamos em um plano de
concretude bastante importante. A ideia abstrata aqui é inadequada, ela é
representativa, fica em uma seleção de caracteres rasos, fáceis de se imaginar,
simplesmente separando os que os têm daqueles que não os têm. Assim, a ideia
abstrata engloba a nossa impotência, de não perceber as pequenas diferenças
que singularizam os corpos ficando dependente da variabilidade, da fortuidade
dos encontros (133). Ora percebemos isso muito cotidianamente, tratar de uma
generalidade “morador de rua” é assumir nossa incapacidade de perceber o
mundo de diferenças que existe nessa população, bem como falar
genericamente do “usuário de crack”, o “etilista”, o “paciente poliqueixoso”, a
“equipe de PSF pouco qualificada”, o “hospital pouco empático” etc. etc.
As noções comuns são ideias práticas, relacionadas a nossa própria
potência visto que a formação destas advém de um afeto de alegria que nos
afecta (aumenta nossa potência de ação). Assim, elas têm a ideia daquilo que
convém aos corpos, tomam por objeto relações de composição entre corpos
existentes. A ideia de uma composição deixa claro que é uma relação, não se
reduz à essência de um nem de outro, nem à essência de um todo (38), ela
abarca a própria multiplicidade das singularidades, as quais se constituem,
inclusive, na própria relação. Quando uma ou várias equipes se reúnem, para
compor, para discutir sobre um usuário, não está mais em jogo esta ou aquela
categoria profissional, a perspectiva deste ou daquele serviço, o que está em
136
jogo é a construção de um conhecimento singular para lidar com a situação
singular em que estes trabalhadores se encontram na relação com o/a usuário/a
e seu mundo.
Então, seguindo com Deleuze, ele nos instiga, a partir destes pontos:
Trata-se de saber se relações (e quais?) podem se compor diretamente para formar uma nova relação mais "extensa", ou se poderes podem se compor diretamente para constituir um poder, uma potência mais "intensa". Não se trata mais das utilizações ou das capturas, mas das sociabilidades e comunidades. Como indivíduos se compõem para formar um indivíduo superior, ao infinito? Como um ser pode se apoderar de outro no seu mundo, conservando-lhe ou respeitando-lhe, porém, as relações e o mundo próprios? (38)
Um corpo busca produzir comum com o que o cerca, é afirmação da
potência e da finitude. Para os modos finitos a dificuldade primeira é a do limite,
então, busca-se produzir um corpo mais potente, ou produzir comum. A ideia da
composição é um problema posto à vida. Isso é um jogo vital cuja única regra
imanente é a de buscar compor corpos mais potentes que perseverem na
existência. A potência político-criativa do amor, como discutido acima, pode dar-
nos pistas sobre como enfrentar essa questão.
Quando certa maternidade se defronta com gestantes e puérperas
moradoras de rua, usuárias de crack, pouco afeitas às lógicas regradas da
instituição hospitalar, ela flerta com seu próprio limite, com o caos ao qual não
está habituada. O medo é da decomposição. Produzir um corpo mais potente
para afrontar essa situação depende da construção de outras relações que
ajudem a produzir novos saberes para lidar com a singularidade da situação.
Consultório na Rua e maternidade podem aliar-se (e nosso caso o fizeram –
ainda que de maneira instável) buscando o melhor cuidado possível a essas
mulheres. O “sucesso” de cada caso, a alegria produzida nas equipes, reforça
esses laços. A alegria pela alegria do outro (amor político), a produção de
potência pelo aumento da potência de existir do outro. Não temos o direito de
viver isolados…(135)
Novamente afirmamos que essa é uma questão prática. Que redes
estamos formando? Que oportunidades de produção de encontros potentes, de
produção de bons afetos nossas redes estão proporcionando? Se as redes
servem para não deixar o homem na solidão, para que se associem na
construção de uma produção mais potente (de saúde, de vida, de cuidado), será
137
que nossas redes estão sendo construídas, concretamente, neste caminho?
Estaríamos avançando na construção de relações singulares, respeitosas da
diferença e produtoras de diferenciação, ou, para utilizar a linguagem desse
texto, para além de desenhos formais, nossas redes produzem relações
amorosas?
Das redes de saúde e da produção de comum
Temos o desafio de falar de redes reais, no que elas produzem de
interessante e no que elas aprisionam movimentos. Uma rede concreta que é
produzida e usada por usuários, trabalhadores e gestores, cada qual com seus
interesses postos mais, ou menos, claramente (136).
É necessário tornar visível o trabalho como um espaço de construção de
sujeitos e de subjetividades, de coletivos que inventam mundos, inventam-se e,
sobretudo, podem produzir alguma saúde. Os equipamentos devem se apropriar
deste lugar das relações de trabalho para encontrar modos efetivos de fazer
comunidade (137) e produzir redes, no que tange o permanente encontro de
zonas de trocas, ou seja produzir espaços em que as noções comuns possam
ser construídas entre os corpos, na experiência do trabalho.
Ao dizer isso, reconhecemos a necessidade de se pactuar minimamente
certo fluxo pré-estabelecido para os usuários em geral. É fundamental o
estabelecimento de protocolos de comunicação entre-serviços, mesmo que isso
seja apenas através de um formulário de Referência e Contrarreferência. É
necessário reconhecer que mesmo quando se trata da constituição de um
formato mínimo de rede, que permita o trânsito do usuário pelos serviços, o SUS
ainda tem muito no que avançar (138). O que queremos afirmar é que tais
formalizações, se conduzidas a um engessamento do trabalho e da vida, não
serão capazes de responder a esse incessante refazer das condições de vida. E
se retomamos a discussão que Deleuze faz sobre Spinoza poderemos entender
essas redes como estruturas, ou seja, um sistema de relação entre partes de um
corpo, de forma que se poderá buscar como as relações variam entre esses
138
corpos e determinar diretamente o quanto de semelhança pode haver entre eles
(133).
De modo que ferramentas como Programações Pactuadas Integradas,
determinações de referências e contrarreferências de serviços, etc., ainda que
úteis, não dão conta de um cuidado integral, das necessidades concretas de um
território, pois:
necessidades não nos são sempre imediatamente transparentes e nem jamais estão definitivamente definidas, mas são e desde sempre têm sido objeto de um debate interminável, de uma experimentação continuada, em que o que se discute e refaz sem cessar é a nossa própria humanidade (139).
A demanda de um território se define pela sua rede de relações e, o tempo
todo, (re) cria territórios de vida, é coletiva, de modo que exige agenciamentos
coletivos: defendemos que o esforço do trabalho em saúde caminhe no sentido
de entrelaçar uma comunidade e encontrar zonas de trocas para que,
mobilizando o que produz em comum, possa acolher diferentes necessidades e
fortalecer redes sociais. De modo que ocorra certa flexibilização da rede
orientada pela necessidade do usuário no momento do seu atendimento, uma
pauta mais prioritária do que regras enredadas estabelecidas a priori (140).
É neste ponto que a rede enrijecida, formalizada e abstrata nos é pouco
útil, pois este acolhimento de trocas demanda uma rede maleável que sustente
diferentes trajetos produzidos, os quais demandarão, a partir do momento deste
encontro, a produção de outros movimentos, outras redes. Redes que nos
conduzam a outros encontros e assim por diante: redes de produção de redes
(139). Como aparece na primeira parte deste texto, a produção de relações
potentes, encontros alegres que aumentam nossa capacidade de atuar,
necessariamente resistem a formatos estabelecidos que possam limitar sua
criatividade. A rede que se compõe com pelo menos alguns destes movimentos
escapa dela mesma!
O estabelecimento de redes piramidais e hierarquizadas de serviços de
saúde não só não dá conta dessas questões, como não responde a um território
onde pulsam necessidades, demandas e desejos. Radicalizando, passamos a
apostar naquelas redes mais horizontais, constituídas por nós de diferentes
funções, que fazem o movimento preciso, conforme seja mais adequado para
cada situação. O movimento de desmontagem da pirâmide permite, a um só
139
tempo, tirar o hospital do “topo” da rede e dessituar as portas de entrada ao
sistema, que devem ser múltiplas, conforme a conveniência de cada caso
singular (141). Não há um serviço em que, por excelência, concentre mais
tecnologia, o que há são diferentes tecnologias de cuidado. Da mesma forma,
seguindo este raciocínio, a Atenção Básica, ainda que seja a porta de entrada
preferencial não é nem a única e nem, necessariamente, a coordenadora da
rede, o que dependerá de cada usuário e de cada contexto loco regional, na
perspectiva da efetivação de uma rede de serviços funcionalmente integrada,
pautada pela integralidade do cuidado (140).
Dessa forma, a ideia de estrutura trazida por Deleuze nos é interessante.
Não se pensando em algo rígido, mas sim em algo que olha para o emaranhado
de relações entre os corpos que se produz a todo tempo, o que é,
necessariamente, móvel. E se essas relações são potentes, politicamente
amorosas, produzirão coisas que escaparão dos desenhos previamente
produzidos. O trabalho se dá em ato, a vida se produz em ato, as redes talvez
tenham que permitir que estes movimentos façam parte delas. Perceber e incluir
as linhas de fuga éticas que falam do cuidado ao usuário, dos afetos produzidos
entre equipes e dessas com seus usuários e que lhes permite, de alguma forma
e em alguma medida, colocar em questão seus próprios processos de trabalho.
Isso é mais do que simplesmente mudar modelos de gerência em saúde,
é uma plataforma reivindicatória social para a instituição da felicidade. Devemos:
exigir la igualdad contra la jerarquía, permitiendo que todo el mundo se vuelva capaz de participar en la constitución de la sociedad, el autogobierno colectivo y la interacción constructiva con otros. (...) Queremos un gobierno que no sólo esté abierto a la participación de todos, sino que capacite también a todo el mundo para participar en la toma de decisiones democrática, permitiendo a las personas atravesar las fronteras (129).
Tecnologias, necessidades e integralidade
Aqui cabe um breve aparte, o que estamos entendendo por “tecnologias”,
“necessidades” e “integralidade”?
140
Brevemente, nesta tese trabalhamos com a ideia de tecnologia a partir da
empregada por Merhy18, através da qual não a entenderemos apenas como
equipamentos ou instrumentos de uma produção, mas também como saberes
tecnológicos e composições de processos de trabalho. Desta forma, o
predomínio do manejo de instrumentos em um trabalho previamente planejado
pode ser uma organização do processo de trabalho tal que capture as
possibilidades criativas do trabalho, é trabalho morto. Já este trabalho criador é
chamado de trabalho vivo e lida com certa autonomia e capacidade de
autogoverno dos trabalhadores. Esses trabalhos comporão “caixas de
ferramentas tecnológicas” que fazem sentido para cada finalidade e lugar que
ocupam. As “tecnologias duras” são os equipamentos e medicamentos utilizados
nas intervenções terapêuticas, consomem trabalho morto. As “leve-duras” são
composições singulares de trabalhos mortos e vivos a partir de saberes bem
definidos e operam no ato clínico. Já as “leves” são colocadas como aquelas
constituídas em ato, na relação intercessora entre profissional de saúde e
usuário, onde também o usuário tem maiores possibilidades de atuar (127).
Tais tecnologias devem ser acionadas, ou compor-se, mediante as
necessidades dos usuários. Tais necessidades podem ser organizadas em
quatro grandes conjuntos, um dos quais é justamente a necessidade de se ter
acesso e se poder consumir toda a tecnologia necessária para melhorar e/ou
prolongar a vida. Ter boas condições de vida é outra categoria, se traduz em
diferentes necessidades conforme a maneira como se vive, no que podemos
incluir condições de moradia, transporte, alimentação etc. O terceiro conjunto é
relativo à necessidade de se produzir vínculos entre as pessoas e as equipes, o
que demanda ser bem acolhido e perceber profissionais responsabilizados por
seu atendimento. Por fim, a necessidade de se produzir graus crescentes de
autonomia para conduzir seus próprios modos de levar a vida, sendo capaz de
reconstruí-los diante das necessidades (142).
Nesse caminho, tal autor entenderá que:
A integralidade da atenção, no espaço singular de cada serviço de saúde, poderia ser definida como o esforço da equipe de saúde de traduzir e atender, da melhor forma possível, tais
18 Reconhecemos outras definições de tecnologia, como a de Nikolas Rose, a partir de Foucault.
141
necessidades, sempre complexas, mas, principalmente, tendo que ser captadas em sua expressão individual (142).
Tal princípio constitucional do SUS, além de emergir como princípio
organizador do processo de trabalho dos serviços de saúde em vistas das
necessidades dos usuários também pode ser compreendido dentro de mais dois
grandes grupos de sentidos, um relativo a atributos das práticas dos profissionais
de saúde, relacionado ao que poderia ser considerado como uma boa prática. O
outro grupo seria ligado às respostas governamentais aos problemas de saúde,
como princípio orientador das políticas (83).
De toda forma a Integralidade nunca se dá em um só lugar, ela passa pela
articulação de cada serviço de saúde a uma rede complexa composta por outros
serviços e instituições não só de saúde. A Integralidade demanda organização
para múltiplas entradas na rede, com múltiplos fluxos e circuitos, pautada pelas
necessidades reais das pessoas (142).
Essa rede é a que novamente coloca em questão o paradigma
hierarquizado e piramidal. Righi (143) problematiza a constituição de rede
afirmando que diante da indefinição e mutabilidade dos nós fica o desafio do
estabelecimento das conexões das redes, de como criar arranjos e dispositivos
que permitam o encontro, o contato e o acordo entre os diferentes nós. Este
encontro entre sujeitos identificados com diferentes saberes, com diferentes
ângulos sobre determinadas questões, pode permitir a construção de novas
questões e propor intervenções diferentes (muitas vezes mais eficazes, há que
se dizer), enfim, efetivas redes de produção de vida. Buscando sair de uma ideia
abstrata de rede entendendo, aqui, por exemplo, que os municípios que
constituirão uma região, um espaço concreto de existência de rede de saúde
(143) são municípios-multiplicidades, ou seja, compostos por múltiplos serviços,
gestores, trabalhadores e usuários, partes que necessitam compor no
movimento democrático e criativo no qual estamos apostando. Ou seja,
simplesmente um desenho de rede, rígido, feito de fora do trabalho vivo
cotidiano, é uma mera abstração representativa e acaba dizendo mais de uma
incapacidade de captar e dar passagem às singularidades, aos múltiplos
movimentos potentes que podem surgir a cada momento.
É importante uma atuação não apenas no campo macroestrutural, mas
também nas microesferas, nas relações de trabalho, com uma qualificação
142
contínua da gestão e incorporação de novos sujeitos nas lutas pelas mudanças
sociais. Pois, ainda que histórica e analiticamente tendamos a separar as macro
das microestruturas de rede, não existe “A” rede de antemão (pré-formatada,
pronta ou ideal). O que não quer dizer que existam dois tipos de rede, e sim
redes possíveis. Produzir permanentemente outros arranjos de rede exige,
então, produção de espaços coletivos que encontrem de fato zonas de trocas,
que ampliem os processos colaborativos. Assim, também reconhecemos que as
redes existentes são uma expressão de possível e que nenhuma forma será
suficiente ou acabada, sobre qualquer forma de rede poderá recair críticas, mas
é necessário olhar para o que determinado desenho está produzindo – produz
efetivos encontros entre os corpos para a produção das tais “noções comuns”?
De forma alguma, “rede” por si só, deve ser considerada um conceito, ou prática,
solucionador de todo e qualquer problema.
Uma criança, apaixonada por borboletas lamenta a perda das flores de seu jardim para a voracidade de um formigueiro. Impotente, chora vendo pétalas caírem na saudade daquelas cores dançantes no ar. Um mês depois, as formigas pareciam ter desaparecido. O que aconteceu pai? A aranha filha! Espantou as formigas. A pequena festejou a presença das finas teias entre os ramos das plantas. Algumas semanas depois, ela foi levada a um passeio no rio. Caçavam borboletas! Não para coleta-las, mas apenas para admira-las. Flutuavam, azuis, amarelas, brancas, coloridas, fluorescentes, grandes ou pequenas, às margens d’água. Algumas aranhas tinham suas teias nos limites da trilha e isso não lhe chamava a atenção. Até que, em alguns galhos pendentes sobre as pedras da margem armava-se uma grande e poderosa teia, nela uma larga borboleta morta. Tal cenário enredou a criança em pavor, que, com as pernas bambas, era capaz apenas de um choro profuso…
143
O Singular e o Coletivo nas Redes
Faz-se necessário o fortalecimento de uma democracia institucional que
incorpore ao usuário como sujeito da mudança - valorizando seu papel no
cotidiano de sua própria vida e dos serviços e sua atuação nos conselhos de
saúde e outras instâncias ditas de controle social -, e ao trabalhador, produzindo
seu espaço de autogestão, de autonomia e de criatividade (70). Incorporar o
trabalhador dessa forma passa por um entendimento do trabalho em saúde que,
inserindo-se em um contexto organizacional, estimule o compromisso das
equipes com a produção de saúde, facilitando, também, a satisfação profissional
e pessoal dos trabalhadores (144).
É nesse plano micropolítico, por exemplo, que podemos reconhecer uma série de experiências que, já há algum tempo,
Figura 8 - Rachael from the Enchanted Forest (2012) - Instalação e fotografia de Garth Knight - http://www.garthknight.com/portfolios/2012enchantedforest/05red/08.html - Acessado em 27/01/16
144
vêm criando algumas possibilidades reais de (...) efetivamente ampliarmos as chances de participação de todos nas escolhas que mais diretamente afetam a “poética social” que produzimos e que é, afinal, o modo como realizamos individual e coletivamente uma dada estética da existência (145).
Assim, a produção de rede pode vir a se constituir enquanto uma
democracia viva em ato, pois é imanente no processo de trabalho em saúde
(146), um trabalho que é potencialmente vivo (147), produz a vida,
necessariamente produz e reproduz afetos, cria linhas de contato entre agentes
sociais (146) e, logo, tem enorme potencial de ação biopolítica (148). E para que
essas redes de trabalho afetivo (121) possam ser efetivas precisam encontrar
zonas de singularização (o espaço de realização das potências individuais), o
que passa pelo encontro de zonas de comunidade (o espaço de realização das
potências “comunitárias”)(139).
O entendimento disso passa pela ideia de que a singularidade recusa
qualquer ideia de pertencimento ou de identidade, pensar uma zona de
comunidade é pensar em um comum imanente e em permanente construção
(82), é pensar a produção de noções comuns, que nos propicie um conhecimento
adequado do mundo neste corpo coletivo eterno e temporário. E todo tipo de
grupo, comunidade, sociedade é fruto de uma árdua e constante negociação
entre preferências e desejos “individuais” – sem esquecer que, via de regra, as
preferências ditas individuais são na verdade fruto dessa construção coletiva
(137).
E quando estamos falando de indivíduo aqui, falamos de um movimento,
de um processo de individuação que guarda em si todo um aparato pré-
individual. Assim, em que pese que esse entendimento de coletivo valorize toda
uma carga individual considera-se uma individualidade em processo que provém
de um universal e de um comum. Um primeiro campo pré-individual é o fundo
biológico da espécie, seu aparato sensitivo, motor e perceptivo. Um segundo é
a língua, em seu uso interpsíquico, cultural e público, ela é de todos e não é de
ninguém. Por fim, o terceiro lugar é o conjunto das forças produtivas. É a
cooperação social como tarefa, conjunto de relações poiéticas, cognitivas e
emotivas (44,128). De toda forma isso é redundante e coloca-se apenas para
dar mais uma abordagem dessa linha de pensamento sobre o indivíduo já
explicada acima através de Spinoza e que não é demais recordar… uma dada
145
coisa singular é um modo finito do pensamento ou extensão e um corpo se
caracteriza por uma mistura de partes extensivas organizadas sob dadas
relações. Um corpo é composto por infinitas partes menores e compõem infinitos
corpos maiores que ele mesmo.
Portanto, mesmo aqueles espaços coletivos que são lugares de práticas
planejadas, projetadas, programadas, como serviços de saúde, são, sobretudo,
lugares de encontro, de trocas, abertos a movimentos imprevistos, o que os
define, os articula, são redes de relações. Há uma reversão política: são os
lugares de encontro que dão a dinâmica dos espaços, constituindo territórios de
vida. Assim, é a ampliação de zonas de trocas, de graus de comunicação, de
construções conjuntas que confere resistência a esses espaços e seus usos
(149).
Estimular os coletivos (…) é procurar torná-los, nesse processo, sujeitos desejantes, capazes de atuar no mundo conforme os preceitos de um projeto de mudança, pautado pela ética do cuidado, em condições de revolucionar o que se impõe atualmente, como uma realidade que vive na repetição (146).
Esse plano coletivo, imanente, plano de criação, tem um poder instituinte
no coengendramento de formas individuais e sociais. Espaços que podem ser
formalmente instituídos, ou não, onde podem operar dispositivos (e experiências,
ideias, afetos etc.) que podem produzir um plano de afetabilidade coletiva, um
plano relacional (150), a produção de noções comuns. Aqui passamos por uma
ideia de agenciamento coletivo, ou seja, a produção de algo que está na relação,
nem em um, nem em outro, mas em certo espaço-tempo comum, impessoal e
partilhável. E assim poder-se-á produzir um espaço relacional que explicita
relações de poder e saber, transversalizam corporações profissionais, usuários
e territórios. Uma experiência coletiva permanente de problematizações,
identificações de perigos e escolhas ético-políticas (150). É a produção do
“terceiro corpo”, o relacional, que também precisa de atenção e cuidado, a linha
constitutiva das redes. Na aposta da construção de redes espera-se criar uma
malha de cuidados ininterruptos, organizados de forma progressiva, ampliando
o universo e a natureza dos serviços de saúde/nós conectados nessa rede (151).
Fica também, como desafio, oportunizar esses encontros de forma que
produzam laços de confiança a ponto desse trabalho tornar-se algo
intercomplementar, resolutivo, produtor de autonomia, com capacidade criativa
146
e gerador de responsabilização. As equipes precisarão desenvolver a
capacidade de criar alianças e de produzir um comum ante as divergências, há
um deslocamento sutil: são os pontos críticos comuns que fazem aparecer os
diferentes pontos de vista em torno de uma mesma questão (47). Produzimos,
assim, um deslocamento da ideia de que uma rede precisa de um único objetivo,
um pensamento uniforme que a conduza, passa também pela inclusão da
diferença e pela produção de diferenciação.
O caráter principal do sistema a-centrado é que as iniciativas locais são coordenadas independentemente de uma instância central, fazendo-se cálculo no conjunto da rede (multiplicidade)(27).
Estamos tratando da produção de sujeitos e práticas. Uma produção
necessária para construir possibilidades para além dos limites de saberes e
práticas estanques. Parece-nos uma exigência para se produzir, de mais a mais,
uma melhor saúde. Podemos considerar esse um dos nós e um dos desafios
para a constituição de uma rede produtora de vida: sujeitos em produção que se
encontram na diferença para produzir projetos comuns (100).
A construção de redes se apresenta como uma tarefa complexa, exigindo
a implementação de tecnologias que qualifiquem os encontros entre diferentes
serviços, especialidades e saberes. Ter mais serviços e mais equipamentos é
fundamental, mas não basta. É preciso também garantir que a ampliação da
cobertura em saúde seja acompanhada de uma ampliação da comunicação
entre os serviços, resultando em processos de atenção e gestão mais eficientes
e eficazes, que construam a integralidade da atenção. São estes processos de
interação entre os serviços e destes com outros movimentos e políticas sociais
que fazem com que as redes de atenção possam ser19 produtoras de saúde num
dado território (100).
A assimilação do conceito de rede representaria uma inovação importante para a organização da atenção no campo da saúde: responsabilidades diferentes, diferentes tipos de poder, diferentes funções sem hierarquizar complexidades ou importância no processo de produção do cuidado em processos mais flexíveis. É, portanto, diferente da organização em pirâmide, com sua base e sua cúpula. Não há hierarquia de
19 “Possam ser” porque, como explorado acima, não é possível dizer que a constituição de qualquer rede de atenção seja produtora de saúde, ela pode ser, por exemplo, endurecida a ponto de aprisionar o usuário ao invés de deixa-lo percorrê-la ou coconstruí-la, certamente prejudicando a continuidade de seu cuidado de forma integral.
147
importância estável ou permanente entre os que compõem a rede. Ou seja, na rede, a complexidade não tem endereço fixo (143).
Ou seja, as redes são singulares e suas conformações variam no tempo,
no espaço, no contexto e no diagrama de forças nos quais estão inseridas. Isso
passa pela concepção de que rede é um conjunto de nós interconectados, cuja
definição depende de que tipo de rede concreta se fala. Assim, nessa
concepção, a ideia de produção de redes de saúde sempre carrega certa
provisoriedade e inacabamento (143).
Romper com uma estrutura abstrata de rede possibilita pensar que
quando essa rede se rompe é para se refazer. E uma ruptura em certo lugar
pode ser abertura de linhas de fuga para construções não previstas
anteriormente, não dadas de antemão, o que pode aumentar a capacidade de
produção de si (146), de instituições sociais, como serviços de saúde,
providenciarem um modo de fazer rede, que é próprio de noção de rede que aqui
se pretende explorar. Estamos também falando, em outras palavras, em um
aumento da capacidade das equipes de afetar e serem afetadas pelo mundo.
Seria então a rede, além de um conector de pontos, uma aposta na potência (e
na produção dela) das pessoas e de seus corpos-equipes. Produzir redes é
também fazer uma clínica de redução de danos com os usuários, com as equipes
e com a própria rede.
Uma rede que funciona de acordo com processos produtivos, que são
políticos, operativos, subjetivos, um trabalho que se dá por comunicação
coletiva:
Nesse esquema a imagem é de uma rede da qual todos participam, entregue à deformação e ao esgarçamento. O sentido não flui de um ponto ao outro, é “o-que é-com”, o contexto, que está sempre em jogo, permanece alvo dos atos de comunicação (152).
A Gestão, o Comum e a Multidão
Há que se fazer uma torção semântica na discussão em torno da rede de
serviços de saúde ou de atenção à saúde, não estamos falando do
gerenciamento de pontos de atenção à saúde, estamos falando de um campo
148
de práticas que integrará uma rede, para além de serviços específicos, e de
zonas de saúde fixas, para encontrar zonas de produção de comum.
Estamos escapando de uma dicotomia entre a dimensão coletiva e a
individual, de relações de oposição, para retomar a organização do trabalho
interessada em tornar visível “os modos efetivos que temos encontrado de fazer
comunidade” (137), focando o fortalecimento de redes de vida, de redes sociais.
Entendemos esta manobra de visibilidade como uma reversão política que,
radicalmente, ou seja, fazendo os movimentos precisos, possa sustentar os
princípios do SUS, outras relações de trabalho e outros modos de se articular a
rede de serviços em saúde.
Apostamos que esse movimento de produzir, com o coletivo, processos
de escuta, análise, construção de textos coletivos, definição de tarefas, redes de
responsabilização e avaliação resulta, efetivamente, em mudanças nas formas
de se gerir, em exigências sobre as condições de trabalho e de gestão, no
aumento da capacidade de manejo de casos complexos e em uma construção
sistêmica da rede de atenção à saúde (103). Consideramos que o agenciamento,
as tensões, os conflitos, os acordos e os consensos produzidos a partir desses
encontros poderão agir a favor da melhoria da qualidade da produção de saúde
dos serviços de saúde individualmente e de sua composição enquanto rede.
Aportando esses conceitos-dispositivos ao campo da gestão podemos
passar a entendê-la também como uma prática democrática possível de ser
praticada colocando os atores que a fazem cotidianamente frente a frente.
Assim, entendo que a cogestão deixa de ser uma parte da gestão (em que se
partilha o gerenciamento de alguns projetos, de algumas áreas, de alguns
assuntos, mas não do todo ou do cotidiano em si), para ser a gestão. Uma radical
aposta na construção coletiva, na democracia institucional (e na democracia
direta), na corresponsabilização. Meio para o fortalecimento de uma rede, para
a produção de uma rede de produção de saúde, de produção de vida. Não
qualquer rede, mas sim uma que reconheça na diferença a potência da produção
coletiva. É uma plataforma revolucionária na direção da instituição da felicidade,
a reivindicação do acesso ao comum contra todas as barreiras que a propriedade
privada possa colocar (129).
149
Assim, é interessante pensar essa postura ético-política de gestão como
uma política dos encontros, afinal não é possível se partilhar gestão sem os
atores envolvidos se encontrarem. Esses encontros podem construir um comum,
podem ser potencializadores ou decompositores de sujeitos e coletivos, de
produção de vida e de alegrias ou de morte e tristezas.
Esses espaços e esses encontros podem tornar evidentes os ruídos, os
incômodos que atravessam as instituições. Esse “barulho” pode ser uma forma
de oprimir os anseios latentes, provocando imobilidade, mas também podem ser
percebidos como a existência de processos com uma potência instituinte, que
não estão tendo espaço para seu aparecimento. Neste sentido seria importante
lançar mão de ferramentas-dispositivos que deem voz a esses processos
instituintes, criando “olhares analisadores ruidosos”. Entendendo que essas
ferramentas precisariam ter a capacidade e a sensibilidade de dar visibilidade e
dizibilidade para o “como” se trabalha naquela equipe/instituição, analisando “o
quê” se está produzindo com essa forma de trabalhar e permitindo-se questionar
“para quê” se está trabalhando (147).
Vamos além! Não estamos falando apenas de práticas de cogestão,
estamos falando de uma atitude reivindicatória que seja capaz de exigir
igualdade, de exigir rompimento de hierarquias reconhecendo o autogoverno de
cada trabalhador, mas também o autogoverno dos coletivos. Estamos falando
de uma política do amor como sendo crucial para a construção de redes
produtivas de vida. É habitar dispositivos para além de ferramentas de gerência,
mas para a produção de subjetividade atentos ao processo de devir outro.
Produzir redes é produzir comum! O que podemos vir a ser se temos tal ousadia?
Todos esses apontamentos vão nos direcionando para construção do
nosso campo problemático: a que respondem os arranjos, desenhos, de nossas
redes de trabalho? O que os espaços coletivos estão produzindo – encontros
alegres e potentes ou um labirinto fantasmagórico em que as pessoas se
encontram, mas não conseguem cuidar e serem cuidadas percorrendo um
caminho de decomposição, de esgotamento? Os espaços coletivos produzem
zonas de trocas – uma produção de comum na linguagem, na produção de
conhecimento, no cuidado, nos afetos? Como transformar redes duras em redes
150
maleáveis, não fixas, que se arranjem mediante a produção singular que é
apresentada em cada território?
Acredito que com estes questionamentos radicais é que poderemos
mudar relações de poder, processos de trabalho e produzir outra lógica de
produção de subjetividade que leve em consideração essa produção de vida
(tanto do usuário, mas também do trabalhador e do gestor). E ao longo desta
pesquisa, acabamos mudando os questionamentos, passando de um “o que” –
que demandaria desenhar várias experiências e fazer consolidados, pois não há
uma rede ideal, não há um padrão de organização ou de comportamento -, para
um “como” – que nos levou a olhar para experiências e pensar como se estava
produzindo ali, no cotidiano concreto do trabalho em saúde.
Que tipo de rede estariam produzindo aquelas experiências concretas, ou
como elas estavam operando? Vimos a formulação de uma ideia de redes mais
abstrata (ainda que necessária), operando por ideias feitas a priori ao trabalho,
tendendo à burocratização e à não inclusão do trabalhador e, em especial, da
necessidade do usuário. Mas também vimos redes sendo produzidas em ato e
quebrando vários fluxos pré-estabelecidos para produzir novos e abrindo trilhas
onde antes só havia mato alto. Ainda que mais atenta à necessidade do usuário,
esse modo de fazer carrega-se de toda a frágil provisoriedade possível. De um
modo ou de outro, esse segundo modo de fazer, parece-me mais interessante
para a produção de saúde e de vida, um modo que sai de desenhos abstratos
representativos e passa à produção de mapas impermanentes, abertos, que
criam e capturam linhas de fuga constantemente, mas, sobretudo, que aposta
na potência de existir de usuários e equipes para criar e cuidar. Enfim, estamos
reafirmando que a produção de redes de produção de saúde precisa passar pela
afirmação da vida, da diferença, da produção de potência, da ampliação da
capacidade de afetar e ser afetado, da produção de noções comuns entre os
corpos.
Neste movimento de “pôr em comum”, de fazer comum, vamos
experimentando abrigar uma multiplicidade de singularidades associadas em
redes de afetos, instaurando uma guerrilha no/do sensível, numa exploração de
veredas de outros mundos possíveis. Partilhar alguma coisa é remar junto, é
estar no mesmo barco. Praticamos uma ética ao exercer composições nas quais
151
aqueles que estão envolvidos se mantêm diferentes, do começo ao fim da
relação. Descobrindo o desconhecimento de ser comunidade podemos esboçar
zonas de vizinhança e convergência na produção de novas questões em comum.
Neste campo pulsam forças afetivas que traçam linhas diagonais no tecido
social, escapando aos laços legais ou normalizadas pelas instituições (4).
Falar em “redes de vida” será quase redundante aqui quando entendemos
vida como o poder de afetar e ser afetado, a composição de uma sinergia
coletiva, cooperação social e subjetiva. Questões que passam pelas produções
de variações nos arranjos instituídos de modo a ampliar o grau de conexão entre
rede de serviços de saúde e territórios existenciais singulares e assim ampliar a
porosidade dos serviços para a potência inventiva gerada pelo encontro de
corpos e territórios singulares na aposta da potência do homem (82). Então
nesse sentido, produzir comunidade se relaciona à possibilidade de se produzir
esse corpo que, em não sabendo dos afetos de que é capaz (37), terá que saber
quais são as relações que o compõe na direção de uma “potência mais intensa”,
de tal forma que o comum se dá em um constante construir-se, engendrar-se
(82). Seguimos com a ideia espinosana de que tanto mais potente é um corpo
quanto mais ele é capaz de fazer variar suas relações e que, nesse sentido
produzir comum é produzir potência.
Nesse movimento de construção permanente interessa-nos a imagem da
espiral trazida por Hardt e Negri (153) ao afirmarem que
A subjetividade é produzida através da cooperação e da comunicação e, por seu turno, esta subjetividade produzida produz ela própria novas formas de cooperação e de comunicação, as quais por sua vez produzem de novo subjetividade, e assim por diante. Nesta espiral, cada momento da cadeia que parte da produção da subjetividade para a produção do comum é uma inovação que tem por resultado uma realidade mais rica. Talvez neste processo de metamorfose e constituição devamos reconhecer a formação do corpo da multidão, uma espécie fundamentalmente nova de corpo, um corpo comum, um corpo democrático (153).
Assim, a subjetividade carrega-se de força viva, uma potência política que
é a própria potência de vida da multidão. A multidão não é uma massa uniforme
(povo), mas um conjunto heterogêneo de subjetividades que, em sua
complexidade e multidirecionalidade, produz um corpo mais potente(82). Para
Pelbart se constitui, então, o comum como um espaço produtivo por excelência,
152
que é posto para trabalhar e apropriado pelo privado no movimento do
capitalismo pós-fordista.
Seria o caso de postular o comum mais como premissa do que como promessa, mais como um reservatório compartilhado, feito de multiplicidade e singularidade, do que como uma unidade atual compartida, mais como uma virtualidade já real do que como uma unidade ideal perdida ou futura. Diríamos que o comum é um reservatório de singularidades em variação contínua, uma matéria a-orgânica, um corpo-sem-órgãos, um ilimitado apto às individuações as mais diversas (82).
Se colocar a trabalhar aquilo que é comum torna fictícia divisões técnicas
impessoais do trabalho (o produto é inseparável do ato de produzir na multidão),
não tornar o comum público, apropria-lo, é provocar os mais elevados graus de
submissão (128). Por outro lado, para Negri e Hardt (153), justamente a
produção biopolítica da multidão mobiliza o que ela tem de comum e o que
produz em comum contra o capital imperial global. Seria a própria multidão o
único sujeito social capaz de realizar a democracia, fazer o governo de todos por
todos. Aqui o conceito de comum aparece enquanto atividade produtiva das
singularidades presentes na multidão, tendo por base a comunicação entre
essas e expressando seus processos sociais colaborativos. O comum é
produzido e é também produtivo (153). Trata-se, sobretudo, de defender uma
democracia não-representativa e as experiências plurais (128).
E Virno assevera e pondera:
A multidão é um modo de ser, o modo de ser prevalecente hoje em dia: mas como todo modo de ser é ambivalente, já contém, em si mesmo, perda e salvação, aquiescência e conflito, servilismo e liberdade. O ponto crucial, no entanto, é que essa possibilidade alternativa possui uma fisionomia peculiar, distinta daquela com a qual a comparamos na constelação povo/vontade geral/Estado (128).
É necessário reconhecer que toda estrutura de cooperação também pode
ser de controle e de comando, assim, não há milagre ou panaceia:
Os grupos e os indivíduos contêm microfascismos sempre à espera de cristalização. (…) O bom o mau são somente o produto de uma seleção ativa e temporária a ser recomeçada (27).
Ou seja, e nunca é demais dizer que, ainda que entendamos essa
construção como potente na afirmação da vida, nem todas as suas produções
são interessantes, nem todas as linhas de fuga asseveram isso… elas ainda
podem ser castradoras, aprisionadoras, excludentes…
153
Diante do estreitamento das possibilidades de vida, nos mais distintos
âmbitos, morando na rua, bebendo, usando crack e traficando, um grupo ocupa
um barracão em região próxima ao centro da cidade. É algo bem diferente do
que seria uma “crackolandia” alardeada pela mídia. Ali cada um tem sua função
no cuidado do espaço, “mangueando” (conseguindo dinheiro ou alimentos),
cozinhando, limpando, cuidando um do outro, fazendo festa. Assim, são mais
capazes de resistir às intempéries de uma vida marginal, à violência da polícia e
da sociedade. Não romantizemos, também produzem seus fascismos, tornam
possível seus tráficos (para o qual cada um também tem sua função), sua própria
violência uns com os outros (dentro dos códigos de condutas bem conhecidos e
adotados por ali) etc.
Cabe trazer mais um excerto do último livro de Negri e Hardt onde se
define muito claramente o comum:
Una democracia de la multitud es imaginable y posible sólo porque todos compartimos y participamos en el común. Por “el común” entendemos, en primer lugar, la riqueza común del mundo material – el aire, el agua, los frutos de la tierra y toda la munificencia de la naturaleza (…) Pensamos también que el común son también y con mayor motivo los resultados de la producción social que son necesarios para la interacción social y la producción ulterior, tales como saberes, lenguajes, códigos, información, afectos etc. Esta idea del común no coloca a la humanidad como algo separado de la naturaleza, como su explotador o su custodio, sino que se centra en las prácticas de interacción, cuidado y cohabitación en un mundo común que promueven las formas beneficiosas del común y limitan las perjudiciales (129).
Então, o que temos trabalhado por comum nesse texto vai para além da
ideia de algo que usamos em comum, ou que todos usam, mas fala,
principalmente, de algo que produzimos em comum. O comum está no produtivo
das relações que continuamente se fazem e desfazem, está em uma zona de
trocas, em um trabalho vivo em ato necessariamente coletivo. O comum está
neste corpo que não é um ou outro, mas a relação produzida entre estes corpos
‘primeiros’, singular e continuamente a refazer-se e modificar-se em sua
capacidade de afetar e ser afetado (o terceiro corpo virtual, da amizade, do
amor).
As subjetivações, as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos que se produzem e aparecem nas multiplicidades. Os princípios característicos das multiplicidades concernem a seus elementos, que são singularidades; a suas
154
relações, que são devires; a seus acontecimentos, que são hecceidades (quer dizer, individuações sem sujeito); a seus espaços-tempos, que são espaços e tempos livres; a seu modelo de realização, que é o rizoma (por oposição ao modelo da árvore); a seu plano de composição, que constitui platôs (zonas de intensidade contínua); aos vetores que as atravessam, e que constituem territórios e graus de desterritorialização (27).
Redes rizomas
Por fim, e se entendemos corpo, novamente à maneira de Espinosa, como
uma multiplicidade constituída por inúmeros outros corpos e que se define,
enquanto a singularidade da relação estabelecida entre estes corpos (37) parece
também fazer sentido entender Redes como rizomas. O encontro entre mundos
diferentes e as conexões entre estes corpos (de usuário, de profissional, de
gestor) são encontros singulares que dão sustentação à constituição de redes
que operam enquanto rizomas. Neles quaisquer pontos podem se conectar, de
forma que a análise da rede-rizoma se desloca dos pontos para a relação entre
eles (incluindo-os nisso), de modo que se um desenho de rede se estabelece é
apenas mais uma marca em um plano de consistência que também reconhece
suas linhas de fuga, de maneira que a rede opera atenta a seu rompimento
nestas linhas para se refazer remetendo-se a elas mesmas (ao invés de ignorá-
las ou tentar suprimi-las). Constituem territórios e graus de desterritorialização.
Um rizoma o é, mesmo sem um aparato que o centralize e organize (27).
A ideia de uma rede-rizoma parece-nos interessante, pois o rizoma
guarda sempre as diferenças, a multiplicidade, sendo assim regido pela
heterogeneidade. Importam menos as possibilidades de sentidos e mais as
possibilidades de linhas de fuga, de criação. A conexão de heterogêneos, pode,
por si só, ser produtora de outras formas inesperadas e inéditas, aí que
pensaremos o rizoma, a rede-rizoma, não por sua forma, mas pelas conexões
estabelecidas, feitas e desfeitas (154).
Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo "ser", mas o rizoma tem como tecido a conjunção "e… e…
155
e…" Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser (27).
Ao longo desse texto fomos explorando entradas para a discussão de
redes que nos parece interessante por estar inserida no mundo concreto da vida
de trabalhadores e usuários de saúde e que diante disso pode inventar-se e (re)
construir-se para atender às suas próprias necessidades. Franco (146) já
explorou a relação de uma ideia de rede com um funcionamento rizomático,
entendendo que dessa forma seria possível, potencialmente, ter sujeitos
desejantes pautados por uma ética do cuidado. De uma maneira ou outra já
abordamos/descrevemos as características do rizoma colocadas por Deleuze e
Guattari ao longo do texto, mas cabe explicitar em detalhes.
Tomando a rede por rizoma não temos um nível superior (nem o hospital,
nem a Atenção Básica), não estabelecemos uma hierarquia entre serviços,
buscamos descentrar a rede de saúde sem adotar um centro fixo, mas múltiplos
centros que se realçam mediante suas funções à necessidade de cada caso.
Dessa forma, qualquer ponto da rede pode se conectar a qualquer outro e deve
fazê-lo (1º Princípio – de Conexão) (27). Os corpos dos trabalhadores, das
diversas equipes, de seus usuários estabelecem corpos de relações singulares
buscando cuidado e produção de vida e quanto mais relações interessantes
estabelecerem, mais potentes serão seus corpos.
Um rizoma não cessaria de conectar cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais. Uma cadeia semiótica é como um tubérculo que aglomera atos muito diversos, linguísticos, mas também perceptivos, mímicos, gestuais, cogitativos: não existe língua em si, nem universalidade da linguagem, mas um concurso de dialetos, de patoás, de gírias, de línguas especiais (27).
É na diferença, (de práticas, de ideias, de objetivos etc.) que tais corpos
poderão compor, afetar e serem afetados, e constituir uma trama potente o
suficiente para lidar com a complexidade da vida e do sofrimento. Não existe
trabalhador ideal, tampouco usuário ideal para tal complexa atividade (2º
Princípio – de Heterogeneidade) (27). Novamente, é afirmar a diferença e
apostar na potência, na capacidade de afetar e ser afetado.
Assim, também não se faz necessário dar cabo de um frequente discurso
que apela à necessidade de homogeneidade da rede de serviços, de condutas
alinhadas e planificadas uniformemente, ou de uma missão única. As
156
multiplicidades são rizomáticas, nos rizomas esses corpos podem e devem
determinar-se, mudar de dimensão. É quanto mais crescem que mais são
capazes de múltiplas combinações. É transformar um sistema de pontos de
atenção em linhas de conexão de cuidado. Conforme ocupem-se mais e mais de
suas funções, alterem de dimensão e aumentem de potência, agenciem-se uns
com os outros, mais a capacidade criativa desses corpos será capaz de produzir
outras linhas, de fuga ao que já está pré-estabelecido e que podem responder
melhor às múltiplas situações singulares (3º Princípio – de Multiplicidade) (27).
Ora, quem já nadou em um rio ou em uma represa talvez perceba o que
estamos dizendo. Um rio não é suas margens, tampouco seu leito, nem as
árvores de suas matas ciliares ou as milhares de formas orgânicas que o habita.
O rio está entre, e ganha velocidade no meio, que não necessariamente é na
metade, é onde as águas se revoltam, esculpem o leito e movimentam as
margens fazendo um circular sem-fim do que ali existe.
Nesse momento muitas pessoas, inclusive as democraticamente “bem”
intencionadas, talvez estejam tendo síncopes imaginando a perda de controle e
o caos na “Rede” (já presenciamos alguns desses ataques de pânico frente a tão
“incerto” panorama). Alguns pontos precisam sim ser pactuados, entretanto, não
são os de condutas detalhadas, mas sim de uma ética, largamente explorada ao
longo deste texto, de produção de vida e felicidade (não só dos usuários, mas
também de trabalhadores e gestores). Claro, diante de tudo que já foi exposto,
estamos também pressupondo que é necessário criar e fomentar espaços de
linguagem, de comunicação, de conversa, ou seja, em que a produção de
comum seja possível. Importante ressaltar que se faz necessário uma atitude
profundamente democrática de apoiar e valorizar a potência criativa destes
corpos. Não podemos ter a pretensão e a ilusão de um controle absolutista
central, seja na ânsia pelo poder seja pelo medo da falha e do descontrole. É
necessário investir e confiar, apostar na potência.
Tão pouco é suficiente pautar-se na institucionalização de alguns espaços
coletivos pretensamente democráticos, na “garantia” de espaços de reunião
formalizados (e muitas vezes burocráticos e muitas vezes espaços de tentativa
de controle das conversas, tentativa de controle e apreensão do que pode ser
produzido), os encontros precisam e podem ser múltiplos, incontroláveis e,
157
inclusive, ter sua produção legitimada. Na cozinha, no corredor, na Kombi, na
rua, se faz tanta cogestão e se produz tanta rede (e às vezes até mais) quanto
numa reunião de equipe ou de matriciamento.
Fomentando a potência criativa e o trabalho vivo em ato perceberemos
uma rede capaz de produzir suas ações, de produzir as tais linhas. Mas não
tenhamos ansiedade em sedimentá-las como um novo desenho, é sabido e é
necessário aprender a lidar com isso, que as linhas se rompem! Movimentos de
territorialização, desterritorialização e re-territorialização fazem-se sem cessar!
Se uma linha se rompe é, necessariamente para traçar outra, uma linha de fuga.
E que se deixe as linhas variarem, produzirem outras rotas, outras conexões,
estender-se, conjugar-se (4º Princípio – de Ruptura a-significante) (27).
Estejamos atentos, como já dito, contra os microfascismos prontos a irromper-
se e a cristalizar-se que podem corromper e obstaculizar a produção do comum
e das relações político-amorosas.
Primeiro, caminhe até tua primeira planta e lá observe atentamente como escoa a água de torrente a partir deste ponto. A chuva deve ter transportado os grãos para longe. Siga as valas que a água escavou, e assim conhecerá a direção do escoamento. Busque então a planta que, nesta direção, encontra-se o mais afastado da tua. Todas aquelas que crescem entre estas duas são para ti. Mais tarde, quando estas últimas derem por sua vez grãos, tu poderás, seguindo o curso das águas, a partir de cada uma destas plantas, aumentar teu território (27).
Por fim, a rede-rizoma também fala de mais uma importante prática
metodológica. A rede de saúde, por exemplo, seu sistema de referência e contra-
referência, é um decalque, uma foto, um desenho, de um momento desta trama
de relações entre-serviços. Esse decalque organiza e expressa o rizoma em
determinado momento, dá-lhe estrutura, raízes e troncos, entretanto, reproduz
nada que não seja ele mesmo. É um instante, não mais a vida praticada e vivida.
Por isso é necessária a operação de ligar o decalque ao mapa, relacionar raízes
ou árvores ao rizoma. O mapa não reproduz um sistema fechado sobre ele
mesmo, ele o constrói, é voltado para a experimentação calcada no real, é
aberto, multiplamente conectável, reversível, rasgável, adaptável (5º e 6º
Princípios – de cartografia e decalcomania) (27).
Um mapa tem múltiplas entradas contrariamente ao decalque que volta sempre "ao mesmo". Um mapa é uma questão de
158
performance, enquanto que o decalque remete sempre a uma presumida "competência" (27).
Esse é um movimento crucial para a pragmática de um sistema de saúde,
por exemplo. As dificuldades e os impasses são múltiplos e constantes, é
necessário ressituá-los sobre o mapa, abrindo espaço para que as linhas de fuga
surjam, operem e sejam reconhecidas (pois seu movimento de criação e captura
não pode ser contido, ainda que possa buscar-se aprisiona-lo). Ainda assim, há
que cuidar, pois dentro do rizoma também operam linhas produtoras de
fenômenos de massificação, de burocracia, de fascistização etc.
Importante ressaltar que o decalque também tem sua função crucial,
servirá sempre e a todo momento de ponto de apoio para alcançar-se as
múltiplas entradas do mapa, ainda que também se possa apoiar-se diretamente
em linhas de fuga em algumas situações. Das árvores, dos decalques, a todo
momento podem saltar mapas-rizomas (27). De toda forma, como já pautamos,
fujamos do pensamento hierarquizado, arborescente, não julguemos a priori qual
é o caminho bom para o pensamento, recorramos à experimentação (43).
Saltemos das copas das árvores nos amores rizomórficos.
Cabe retomar que o problema do comum é um problema posto pela vida.
Conatus, uma questão de perseverar na existência. Sobretudo é uma aposta na
arte da composição, na possibilidade de uma real e efetiva democracia. É
necessário enfrentar o desafio de colocar a produção do comum no centro
constitutivo da esfera pública (das cidades, das redes de saúde, das redes de
vida…), uma prioridade política, uma afirmação ética.
Podemos considerar, então, que a essência das redes é produzir comum,
que aumentam ou diminuem a potência de seus corpos, mas que o interessante
seria as ver como produtoras de amor político, para o que demandaria operar
como um rizoma! Redes de encontros, que produzem e incluem a diferença,
interessadas nas pessoas que as constituem, em suas necessidades, redes que
apostam na potência para a permanente produção de saúde e de vida.
A cada movimento, novas composições. Cada nova relação que fazemos,
um mundo de possíveis que se abre e que pede acolhimento e envolvimento
para que possa ser desenvolvido. Sabendo que a efetuação de possíveis é, ao
mesmo tempo, um processo imprevisível, aberto e arriscado. Não podemos nos
159
furtar a este desafio. Nosso trabalho é vital e diz respeito às obras inerentes à
viagem que é a nossa vida (4).
160
Figura 9 - Muchacha en la Ventana (1925), Salvador Dalí - https://www.salvador-dali.org/media/upload/gif/cache/f0046_noiaalafinestra_1411574278_1024.jpg - Acessado em 27/01/16
161
EPÍLOGO
Dar um ponto final em uma tese é uma das coisas mais difíceis a se fazer
em um doutorado. Pelo menos quando se trabalha com este referencial e com
esta metodologia. Ainda há, sempre há, muito o que ser dito sobre o tema.
Certamente nossas revisões bibliográficas não deram conta de abarcar todas as
correntes de uma vasta produção sobre as Redes de Saúde (também não se
pretendia isso). E nem era necessário dar conta disso tudo.
Sempre fica a sensação de incompletude, natural do processo. Estamos
falando de uma pesquisa implicada na vida. Ela vai se fazendo enquanto a vida
vai acontecendo. E os movimentos da vida, mais ou menos rápidos, não cessam.
Permanentemente se estão criando novas maneiras para se resolver as
questões cotidianas, para lidar com os novos problemas que se apresentam. Da
mesma maneira a todo tempo também se cristalizam modos de operar que em
algum momento tornam-se apenas representativos de uma realidade que já não
é, um esboço do passado. E diante de cada nova realidade, novos problemas
são formulados.
Então a gente escolhe, ou o prazo decide, o momento de dar um basta à
escrita que reflete algumas camadas desse processo todo. E se a gente não
chega a conclusões, já que o processo não acaba, pode-se ao menos indicar
algumas pistas, algumas ideias.
O Sistema Único de Saúde permanece em uma disputa feroz pela sua
sobrevivência e pela sobrevivência de seus princípios. Os passos são lentos e
às vezes pequenos, mas consistentes. Parte dessa consistência vem da crítica
criativa e produtiva a esses mesmos passos. Assim, é indispensável reconhecer
o grande avanço conquistado com o debate sobre Redes de Atenção à Saúde
no Brasil. Na mesma medida, sabemos que tal avanço não é suficiente. Nem
dentro de si mesmo, como uma tecnologia de gestão do sistema, nem quando o
colocamos para dialogar com a clínica.
Costumeiramente vemos a construção dessas redes ficarem em uma
pauta de gestão. Como resultados organizam-se teias que pretendem mais
manter um certo fluxo, e as pessoas, sob controle do que olhar para as
162
necessidades dos usuários. Um fluxo é necessário, mas sua cristalização pode
produzir mais desassistência do que racionalização do sistema.
É aqui que essa pesquisa vem contribuir. Não que já tenhamos construído
regionalizações, fluxos de referência o suficiente. Tão pouco podemos esperar
que isso aconteça para pensar como estamos tecendo nossas redes.
Sejamos objetivos. Se vamos tomar por pauta as necessidades concretas
das pessoas, suas singularidades, sejam usuários, trabalhadores ou gestores do
sistema, não poderemos nos satisfazer com modelos preestabelecidos à vida
vivida. Precisaremos ousar para arranjos também mais singulares.
O Consultório na Rua nos alerta da importância do trabalho pautado na
aposta na potência, na composição coletiva de seres mais capazes de
perseverar na existência. Uma aposta que implica a percepção da composição
destes corpos relacionais, ela nos fala que essa clínica também precisa operar
na própria produção de rede.
Ora, estamos dizendo que redes concretas e interessadas nos usuários e
em seus trabalhadores tem um componente crucial que precisa ser cuidado, as
relações. Quando colocamos dois corpos em relação, criamos um terceiro, um
corpo afetivo relacional, que pode compor ou descompor com os corpos que o
constituem. É um corpo virtual e que precisa ser cuidado.
Podemos chamar isso de amizade ou de amor. Amor aqui como um ato
político, constitutivo de relações potentes, interessadas na produção de potência
que alimenta a si mesma. O amor como uma alegria provocada por algo externo
a si, que nos torna mais potente tanto quanto mais alegres, portanto mais
capazes de perseverar na existência, de afetar e ser afetado e, logo, de amar
mais.
A redução de danos nos aparece como uma tecnologia clínica e
relacional, profundamente imbricada com a capacidade das equipes e das
pessoas em apostar na potência do outro, na capacidade do outro de construir
(com apoio e cuidado) outras formas de ser e de estar no mundo que também
sejam mais potentes. O amor investindo na produção de amor. A necessidade
da constante e permanente produção de comum entre os corpos.
Em um mundo-momento investido de ferramentas de controle do corpo,
tais como a prevenção e promoção de saúde pautadas no medo, de controle da
163
urbe pautado pelo medo, a repressão e a violência policial, as estatísticas de
criminalidade que pautam mais repressão, mais violência e mais exclusão,
parece-me revolucionário esse investimento no amor, na redução de danos (cujo
nome aqui até começa a me parecer pouco adequado). É pautar uma rede
menos pelo controle burocrático e mais pela produção de saúde e de vida. Ou,
não tomar certo controle burocrático, certa necessária racionalização do sistema,
como o centro da vida e das práticas. Novamente, aproximamos a construção
de redes da clínica: se protocolos para o cuidado de pessoas com determinadas
enfermidades são úteis, tornam fácil o acesso à informação, eles também não
podem ser colocados entre profissional de saúde e a singularidade do usuário,
sob o risco de desassistência e condutas inadequadas.
Sem, necessariamente, criar palavras de ordem que nos produzam
bandeiras obnubilantes, mas que, pelo contrário, valorizem a diferença e a
produção coletiva, parece-me crucial, avançarmos na produção do comum, de
redes amorosas, para a produção de redes de produção de saúde! Tendo o
rizoma como uma pista da maneira como essas redes poderiam operar de modo
a incluir esses conceitos, essas pistas, aqui exploradas.
164
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183
ANEXOS
ANEXO 1: TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO Esta pesquisa tem como objetivo cartografar saberes e práticas sobre a construção
de Redes de Produção de Saúde em busca da melhora da eficácia do SUS e da coordenação do cuidado.
Para isso, serão objetivos específicos da pesquisa os seguintes: 1. Cartografar a produção de espaços construídos para o encontro entre
trabalhadores e/ou gestores de distintos serviços de saúde em vistas à construção de Redes de Produção de Saúde;
2. Desenvolver e/ou mapear dispositivos democráticos para a produção de redes; 3. Fomentar a discussão sobre Redes de Saúde, produzindo conhecimento apara
apoiar a implementação das mesmas. Uma das fases da coleta de dados será o acompanhamento deste espaço
enquanto fórum de reunião de trabalhadores e gestores de distintos serviços. O pesquisador participará das reuniões, fazendo anotações do que for discutido.
Será utilizado um gravador de áudio para garantir que os debates realizados pelos participantes da reunião (e sujeitos da pesquisa) possam ser recuperados e analisados posteriormente.
É compromisso do pesquisador assegurar o sigilo, a identidade e a privacidade dos sujeitos da pesquisa, quando da transcrição das falas e incorporação das informações em textos acadêmicos.
Os sujeitos têm liberdade para se recusarem a participar ou retirar seu consentimento em qualquer fase da pesquisa, sem que tenham nenhum tipo de prejuízo.
Os pesquisadores comprometem-se também a prestar qualquer tipo de elucidação sobre os procedimentos e outros assuntos relacionados à pesquisa, antes do seu início e durante seu desenvolvimento.
Sendo assim, pelo presente instrumento que atende às exigências legais, o Sr.
(a) __________________________________________________________________, portador (a) da cédula de identidade ___________________________, após leitura minuciosa das informações sobre a pesquisa e ciente dos objetivos e procedimentos da mesma, não restando quaisquer dúvidas a respeito do lido e explicado, firma seu CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO, concordando em participar da pesquisa proposta.
E, por estarem de acordo, assinam o presente termo. Campinas/ SP, _______ de ________________ de _____.
________________________________ ________________________________ Assinatura do Sujeito Assinatura do Pesquisador
Pesquisador: Bruno Mariani de Souza Azevedo
Médico sanitarista Doutorando do Departamento de Saúde Coletiva – FCM – Unicamp
Orientador: Prof. Dr. Sérgio Rezende Carvalho Telefone para contato: (19) 9742-1043
E-mail para contato: [email protected] A sua participação em qualquer tipo de pesquisa é voluntária. Em caso de dúvida, entre em contato com o Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp – telefone: (19) 3521 8936.