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Universidade Estadual de Londrina SIMONE VINHAS DE OLIVEIRA BIOTECNOLOGIA E DEMOCRACIA: POR UMA CONCILIAÇÃO ENTRE A AUTONOMIA PRIVADA E PÚBLICA NAS RELAÇÕES NEGOCIAIS DA MANIPULAÇÃO DE GENES LONDRINA 2008

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Universidade Estadual de Londrina

SIMONE VINHAS DE OLIVEIRA

BIOTECNOLOGIA E DEMOCRACIA: POR UMA CONCILIAÇÃO ENTRE A AUTONOMIA PRIVADA E PÚBLICA NAS RELAÇÕES NEGOCIAIS DA MANIPULAÇÃO DE

GENES

LONDRINA 2008

SIMONE VINHAS DE OLIVEIRA

BIOTECNOLOGIA E DEMOCRACIA: POR UMA CONCILIAÇÃO ENTRE A AUTONOMIA PRIVADA E PÚBLICA NAS RELAÇÕES NEGOCIAIS DA MANIPULAÇÃO DE

GENES

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina. Orientadora: Profª Drª Valkíria Aparecida Lopes Ferraro.

LONDRINA 2008

SIMONE VINHAS DE OLIVEIRA

BIOTECNOLOGIA E DEMOCRACIA: POR UMA CONCILIAÇÃO ENTRE A AUTONOMIA PRIVADA E PÚBLICA NAS RELAÇÕES NEGOCIAIS DA MANIPULAÇÃO DE

GENES

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina.

COMISSÃO EXAMINADORA

_______________________________ Profª Drª Valkíria Aparecida Lopes Ferraro

Universidade Estadual de Londrina

_______________________________ Profº Drº Elve Miguel Cenci

Universidade Estadual de Londrina

_______________________________ Profº Drº Delamar José Volpato Dutra

Universidade Federal de Santa Catarina

Londrina, 23 de junho de 2008

Ao “Q.G.”, celero nosso de amizade

fraternas, discontração e razão.

AGRADECIMENTOS

A Deus, pela presença delicada.

Aos meus amorosos pais, pelo aconchego de todas as horas

Aos caros amigos, preciosidades encontradas nos percusos

desta vida, pelos momentos de partilha.

Aos professores, Valkíria e Elve, pelos generos ensinamentos

e sobretuto pela compreensão e paciência neste inter.

Ao Chico, pela solicitude e doçura constantes.

OLIVEIRA, Simone Vinhas. BIOTECNOLOGIA E DEMOCRACIA: Por uma conciliação entre a autonomia privada e pública nas relações negociais da manipulação de genes. 2008. 83 folhas. Dissertação de Mestrado em Direito Negocial – Universidade Estadual de Londrina.

RESUMO

O presente trabalho trata dos avanços biotecnológicos impulsionados pelos investimentos da livre iniciativa. Tratou-se, com isso, de observar conceito de autonomia privada relacionada à conformação de dois paradigmas de Estado de Direito – Liberal e Social- no plano das negociações e do desenvolvimento biotecnológico no tocante a manipulação de genes. Apesar da importância do desenvolvimento científico e econômico assegurado pela autonomia privada, devem ser consideradas as possíveis conseqüências nocivas da atividade da biotecnologia empresarial, em especial, a manipulação de genes da espécie humana: o dano genético e as eugenias. Para tanto, a participação política da sociedade é fundamental para orientar conduta da biociência no cumprimento dos direitos humanos do Estado Democrático de Direito, definindo o liame entre a liberdade científica e a proteção à espécie humana. Tem-se, para a configuração do Estado, o modelo de democracia deliberativa habermasiana para promover o desenvolvimento biotecnológico atrelado aos padrões ético-jurídicos, conciliando a autonomia privada com a autonomia pública.

PALAVRAS–CHAVE: Biotecnologia, Democracia, Autonomia, Manipulação de Genes Humano

OLIVEIRA, Simone Vinhas. BIOTECHNOLOGY AND DEMOCRACY: For conciliation between the private and public autonomy in the business relations of the manipulation of genes. 2008. 83 folhas. Dissertação de Mestrado em Direito Negocial – Universidade Estadual de Londrina.

ABSTRACT

This work deals with the biotechnological advances stimulated by the investments of the free initiative. It was treated, with this, to observe concept of private autonomy related to the conformation of two paradigms of Rule of law - Liberal and Social in the plan of the negotiations and the biotechnological development in the moving a manipulation of genes. Although the importance of the scientific and economic development assured by the private autonomy, must be considered the possible harmful consequences of the activity of the enterprise biotechnology, in special, the manipulation of genes of the species human being: the genetic damage and the eugenics. For in such a way, the participation politics of the society is basic to guide behavior of the bioscience in the fulfillment of the human rights of the Democratic State of Right, being defined the line between the scientific freedom and the protection to the species human being. It is hard, for the configuration of the State, the model of habermasiana deliberative democracy to promote the relative biotechnological development to the ethical-legal standards, conciliating the private autonomy with the public autonomy.

KEY WORDS: Biotechnology, Democracy, Autonomy, Manipulation of Genes

Human

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................. 09

1 A AUTONOMIA PRIVADA E A MANIPULAÇÃO DE GENES ENTRE OS

DOIS PARADIGMAS: ESTADO LIBERAL E ESTADO SOCIAL................... 12

1. 1 A Autonomia Privada no Modelo de Estado Liberal............................ 12

1.2 O Modelo de Estado Social nos Contornos da Autonomia Privada.... 20

1.3 Dois Paradigmas entre os Riscos da Manipulação de Genes

Humanos.......................................................................................................... 24

1.3.1 Panorama de desenvolvimento biotecnológico e os riscos da

manipulação de genes humanos ................................................................. 26

1.3.1.1Os danos da manipulação de genes humanos ................................ 28

1.3.1.2 A eugenia............................................................................................. 31

1.4 O elemento ético entre a Manipulação de Genes: Debate Público...... 34

2. DIGNIDADE HUMANA E AUTONOMIA PÚBLICA..................................... 38

2.1 O sentido da emancipatório da dignidade humana............................... 39

2.2 A faticidade do negócio jurídico e a dignidade humana: uma tensão

para o biodireito.............................................................................................. 48

3. A CONCILIAÇÃO ENTRE A AUTONOMIA PRIVADA E AUTONOMIA

PÚBLICA ......................................................................................................... 53

3.1 O modelo brasileiro de regulação da atividade biotecnológica........... 55

3.2 A procedimentalização das respostas entre as negociações e a

manipulação de genes humanos.................................................................. 63

3.3 O modelo de participação constitucional............................................... 66

CONCLUSÃO .................................................................................................. 75

REFERÊNCIA .................................................................................................. 80

INTRODUÇÃO

O texto, que ora se apresenta aborda, inicialmente, a

constituição dos sistemas de direitos de dois paradigmas de Estado de Direitos

– Estado Liberal e Estado Social para garantir a autonomia privada das

relações negociais no modelo econômico capitalista. E, com isso, foi possível

entrever os problemas estruturais nestes dois paradigmas para lidar com os

desafios no tocante ao desenvolvimento biotecnológico, em especial, com os

prognósticos de risco da manipulação de genes humanos.

Nessa direção, o presente estudo procura diagnosticar as

dificuldades geradas por esses dois paradigmas causados pelo sistema de

direitos no modo de entender a autonomia privada. Essa percepção está no

bojo da teoria habermasiana, que propõe um novo paradigma de Estado

Direito, o qual existe um nexo de causalidade entre a autonomia privada e

autonomia pública.

Na seqüência, abordam-se as duas racionalidades presentes

nas sociedades complexas, a racionalidade instrumental-estratégica e

comunicativa e como o Direito pode interagir entre elas para procedimentalizar

as respostas para o projeto desenvolvimentista de manipulação de genes

humanos.

Assim, para apresentar o modelo habermasiano como proposta

de conter o prognóstico ameaçador para a natureza humana, coloca-se os

elementos centrais da teoria do autor, a ética discursiva e ação comunicativa.

O agir ético, para esse modelo, insere um sentido de emancipação política,

sobretudo, para no conceito de dignidade humana entre os temas da

biotecnologia. Por meio da procedimentalização da participação política, se

reconhece a autonomia pública a qual a sociedade poderá dar seu

assentimento na atividade biotecnológica.

Ao partir da intersubjetividade e da linguagem, Habermas

coloca os indivíduos como atores na sociedade. Assim, pelos fundamentos da

teoria habermasiana, percebe-se que os sujeitos podem ser fortalecidos no

desenvolvimento de suas competências, que os permitem participarem

ativamente ou não da vida em sociedade e contribui para a construção de uma

sociedade mais justa e democrática. Esse estudo sobre a formação dessas

competências participativas dos sujeitos corrobora para o interesse político de

saber das condições possíveis ou necessárias para que cidadãos tomem em

mãos o seu destino da natureza humana.

Na seqüência, após esse estudo sobre a democracia

deliberativa habermasiana, apresenta-se as considerações contrapostas sobre

modelo brasileiro de regulação da atividade biotecnológica, com um recorte na

Lei de Biossegurança, verificando-se um dos seus efeitos imediatos: o poder

discricionário da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança-CTNBio.

A discricionalidade do CTNBio, além de não legitimada no

modelo democrático atual, nos distancia ainda mais do ideal de radicalização

democrática conciliando a autonomia privada com o exercício da autonomia

pública pelos fundamentos da ética discursiva, que converge à ampla

participação popular. Mas, a procedimentalização dessa participação pode

ocorrer por meio da regulamentação do Conselho Nacional de Biossegurança-

CNBS como forma de controle dos abusos possíveis cometidos pela

biotecnologia.

Por fim, observou-se como a Constituição Federal vigente

poderá conceber procedimentos de participação social com a criação de

espaços públicos. Ou seja, a reserva constitucional de participação direta da

população reconhecida por meio de conselho. Reconhece-se no ordenamento

jurídico, tanto na constituição como na lei de biossegurança, o conselho como

instrumento de jurídicos para procedimentalizar a participação social.

O presente estudo acrescenta, ainda, que além dos

instrumentos jurídicos que institucionalizar a participação social no Estado

Democrático de Direito, tal como os conselhos, há a necessidade de

esclarecimentos na esfera pública sobre os temas debatidos da biotecnologia.

Contudo, entre a autonomia privada e pública nas relações

negociais da biotecnologia é possível uma conciliação pelo paradigma do

Estado Democrático de Direito.

1 A AUTONOMIA PRIVADA E A MANIPULAÇÃO DE GENES ENTRE

OS DOIS PARADIGMAS PARA O DIREITO PRIVADO: ESTADO

LIBERAL E ESTADO SOCIAL

Tanto o modelo liberal quanto o modelo do Estado Social

serviram de apoio para a sociedade econômica capitalista. Razão pela qual,

em ambos os modelos, o sistema de direitos concentra suas garantias na

autonomia privada por meio do direito à liberdade ou pela prestação social.

Embora exista uma tensão entre esses dois paradigmas,

ocasionada por motivos axiológicos, há semelhanças quanto ao sistema de

direitos. Nesses dois modelos políticos, tanto no Estado omisso quanto no

Estado regulador, há necessidade de reconstrução do Direito Privado ora

baseado, exclusivamente, no conceito de autonomia privada.

E entre o ethos econômico do capitalismo, o desenvolvimento

biotecnológico, em especial a manipulação de genes humanos, integra uma

discussão ético-jurídica que envolve o homem como gênero. Por essa razão, a

manipulação de genes toca em questões relacionada à autonomia e a

dignidade humana entre o lucro e a biotécnica no paradigma estatal.

1.1 A AUTONOMIA PRIVADA NO MODELO DE ESTADO LIBERAL

No século XVIII, período revolucionário do mundo moderno em

que se propõe situar a fixação de uma entidade estatal em relação à sociedade

política, é que se encontra uma intensa produção do pensamento filosófico

correspondente às indagações da origem do Estado. Dessa forma, o Estado

(liberal) se define não por não possuir nenhum interesse particular, mas apenas

os interesses comuns e gerais a todos.

O pacto torna legítimo o poder do Estado e o que faz os

homens delegarem o poder à entidade estatal são os riscos das paixões e da

parcialidade que podem desestabilizar a relação entre os homens. O Estado

não deve intervir, mas sim garantir e tutelar o livre exercício da propriedade, da

palavra e da incitativa econômica. Para tanto, estabelece uma distinção entre a

sociedade política e a sociedade civil, entre o público e o privado, que devem

ser regidos por leis diferentes. (LOCKE, 2001, p. 468)

A formação do conceito de autonomia privada para o domínio

do direito privado baseou-se, inicialmente, nas concepções jus naturalista1,

especialmente fundamentada na razão kantiana de liberdade como um direito

natural. A autonomia, assim, envolve uma plena liberdade para celebração dos

pactos e avenças, ou seja, uma plena liberdade de cada um para disposição

dos interesses, de acordo com a sua exclusiva vontade, por isso denominada

também como autonomia da vontade.

O conceito kantiano de autonomia está inseparavelmente

relacionado à idéia de liberdade. A autonomia é definida no contexto de

liberdade em oposição à heteronomia. A autonomia do sujeito se expressa na

sua capacidade de autodeterminação, na sua vontade legisladora de

estabelecer e concretizar fins no mundo social. Esses fins só podem ser

alcançados através de certos meios. Isto significa que toda legislação

decorrente da vontade legisladora dos homens precisa ter como finalidade o

próprio homem, a espécie humana como tal. (FREITAG, 1989, p. 10).

A autonomia, assim, para o direito privado se desenvolve como

uma vontade criadora do indivíduo no âmbito da auto-regulação nas relações

jurídicas patrimoniais. Nesse sentido, a autonomia privada, atinge dois

1 Na cultura jurídica européia do século XVII, o direito natural é fundado na razão em oposição

ao antigo direito natural fundado na teologia. Isso significou um processo de laicização do pensamento social e jurídico (HESPANHA, 2005: 297).

institutos centrais do direito privado, o negócio jurídico e a propriedade.

A partir do século XIX, essa idéia sobre a autonomia se

desenvolve unido ao processo de sistematização dos conceitos jurídicos e do

direito privado pela doutrina jurídica pandectistas2.

Com a análise dos textos do direito romano os pandectistas,

baseados na ética da liberdade da teoria kantiana, formularam a dogmática

jurídica, que influenciou significativamente as concepções modernas sobre

autonomia da vontade e a própria formulação do direito privado.

Com os elementos sistematizadores da pandectística, a

autonomia da vontade, por ser a pedra angular para possibilitar a estruturação

das relações jurídicas entre os indivíduos, recebe a tutela jurídica através do

processo de codificação3 do século XIX.

No bojo do paradigma do estado4 liberal, o êxito das

2 Na história da doutrina do direito privado europeu, a escola pandectística antecedeu o

processo de codificação do século XIX e tratava de analisar os textos do Direito romano seguindo o método da dogmática jurídica, ou seja, buscando a extração de princípios, assim como a dedução de conceitos novos, baseados na abstração a partir de conceitos anteriores.

3 O processo de codificação do direito civil ao longo do século XIX, tendo como principal

expoente o Código Napoleônico, representou uma experiência continental européia cujo pensamento se preocupava com a unidade e a universalização do direito privado. E assim o direito privado se desenvolveu como um domínio jurídico sistematicamente fechado e autônomo para a sociedade econômica.

4 Friedrigh Hegel (1770 -1831), em sua teoria, entende o Estado como uma das mais altas

sínteses do Espírito objetivo, ou seja, o Estado sintetiza, numa realidade coletiva, a totalidade

de interesse contraditório entre os indivíduos. Dessa forma, o Estado (liberal) se define não por

não possuir nenhum interesse particular, mas apenas os interesses comuns e gerais a todos.

Diferentemente do que concebem as teorias contratualista que precedem Hegel, para este

filósofo a sociedade civil só existe através do Estado, e não vice-versa. O Estado tem a

finalidade de promover a integração das partes, o que nega a anterioridade de indivíduos

capazes de fundar um Estado por meio de um pacto. Para Hegel o Estado funda o povo, e a

soberania é do Estado. Opostos a estes conceitos quanto à origem estatal, estão as teorias

contratualista que têm como seus maiores representantes John Locke (1632-1704) e Jean-

Jacques Rousseau (1712 – 1778). Para o primeiro as teorias apontam a formulação do pacto

entre o indivíduo e o Estado sob a égide do pensamento liberal. Com uma análise diferente de

Rousseau, não observa no estado de natureza uma situação de guerra e o egoísmo; ao

codificações avulsou o domínio do direito privado no modo de entender e

realizar o direito. Nas estruturas doutrinárias desse direito Privado moderno, o

princípio da liberdade concebia o negócio jurídico como fato-espécie do direito

o qual a autonomia da vontade deixou à escolha das pessoas pela condição de

igualdade formal perante a lei.

Isto significa que “sendo livre de declarar ou manifestar a

vontade, a pessoa declara-a ou manifesta-a, e a regra jurídica introduz no

mundo jurídico o negócio jurídico”. (MIRANDA, 1999: p. 141)

Na concepção de Savigny5, “chama-se declaração da vontade

a espécie de fatos jurídicos, que não são apenas atos livres, mas que, segundo

a vontade do agente, tem por fim imediato criar ou extinguir uma relação

jurídica”. (Blanco Tarrega, 2007: p. 68) Dessa forma, o negócio jurídico é

instrumento para a vontade adquirir significação jurídica.6.

contrário, os homens são livres, iguais e independentes. Para Locke, o pacto torna legítimo o

poder do Estado e o que fazem os homens delegar o poder à entidade estatal são os riscos

das paixões e da parcialidade que podem desestabilizar a relação entre os homens. O Estado

não deve intervir, mas sim garantir e tutelar o livre exercício da propriedade, da palavra e da

incitativa econômica. Para tanto, Locke estabelece uma distinção entre a sociedade política e a

sociedade civil, entre o público e o privado, que devem ser regidos por leis diferentes. Já o

pensamento rouseauniano, através de sua principal obra Du contrat social repercute

intensamente nas teses atuais a respeito do Estado nos contorno de suas teorias. A hipótese

deste autor é a formação ou origem do Estado através de um contrato social. Isto é, um pacto

ou deliberação conjunta no sentido da formação da sociedade civil e o Estado. O contrato

social possui o respaldo da vontade geral, que não se constitui meramente da somatória de

vontades particulares, mas que se coloca na posição de representar o interesse comum. A

vontade geral é mais que simplesmente a vontade de todos somada, pois aquela visa à

realização do interesse comum e público, e esta visa aos interesses particulares. Para

Rousseau a vontade geral não está relacionada à idéia de unidade, ou seja, ela não é

unânime, por não haver discordância, mas porque nela estarão contadas todas as idéias, tidas

as contribuições, todas as discordâncias que participam formalmente do todo, do sistema.

5 O autor representa uma das expressões do voluntarismo clássico reconhecido teórico do

voluntarismo contratual

6 O voluntarismo clássico que atribui à vontade humana o poder de criar, modificar ou extinguir

direitos e obrigações teve seu apogeu no século XIX e se contrapôs ao jusnatuarialismo que o

antecedeu. A principal oposição ao jusnaturalismo se deve a formulação de um método ou na

construção de um sistema refletido no ordenamento jurídico. Assim, a fonte da vontade

criadora de direitos e obrigação não é a razão natural, mas, sim uma razão lógica e formal.

Para Karl Larenz, as declarações jurídicas-negocial, expressão

da autonomia dos indivíduos, não contém somente a manifestação de uma

determinada opinião ou intenção; é nos termos do seu sentido, declaração de

vigência. (1997: p. 419-420)

Nesse sentido, o negócio jurídico, conseqüência jurídica da

declaração de vontade, não resulta de previsão da lei como conseqüência

jurídica, mas pressupõe o seu reconhecimento no ordenamento.

E foi entre esses contornos da autonomia privada que o

liberalismo individualista do século XIX emergiu contra as limitações impostas

pelo Estado durante a Idade Média, consagrando o postulado da liberdade dos

homens, em especial no plano das negociações, caracterizando a onipotência

do cidadão na administração e disponibilidade de todos os bens, garantindo

amplamente direito de propriedade e a faculdade de contratar com todas as

pessoas nas condições e de acordo com as cláusulas que as partes

determinassem.

As negociações, com isso, obtiveram a garantia do status

negativo da direito a liberdade. Isto significou uma separação entre sociedade

econômica e o Estado pela ordem jurídica de inspiração iluminista com as

negociações livres da intromissão estatal. E o status positivo do direito a

liberdade configurado pelos direitos subjetivos do indivíduo, qual seja, os

direitos fundamentais do homem, em especial o direito fundamental a

propriedade.

O status positivo da liberdade reconhecidos como direitos

subjetivos confere a capacidade de agir ao sujeito. Nesse viés, Emílio Betti

coloca que o direito subjetivo privado tem a finalidade de protege os interesses

privados, tais como os encontra constituídos na ordem jurídica econômica. O

indivíduo é livre para agir a sua maneira na tutela de seus interesses. Não há

uma imposição por ação automática da lei, mas mecanismos da norma jurídica

que conserva a vontade e interesse individual sem ameaçar a vontade e a

propriedade alheia. (2003: p. 70-71)

Por esta sistematização do direito privado, a autonomia da

vontade integra uma clara distinção conceitual entre sujeito (parte) e objeto na

relação jurídica de uma. O sujeito (parte) é aquele que se pode imputar o

conteúdo e a forma do negócio jurídico que auto-regulamenta o interesse

particular. O objeto é a matéria do negócio jurídico sobre a qual recaem os

interesses que estão disponíveis na esfera individual de cada um, sem a

invasão da esfera jurídica alheia tutelada definida pelos direitos subjetivos

privado. O sujeito da relação jurídica é aquele que exerce a sua autonomia

segundo a sua vontade e por isso é sujeito de direito.

A principal distinção entre sujeito (parte) e objeto, a partir

dessas definições, não se configura, estritamente, no negócio jurídico, mas é

na ordem jurídica com a dimensão alcançada pelos status negativo e positivo

da autonomia no paradigma do estado liberal.

A questão que se assenta é saber se as definições clássicas

do direito privado moderno podem se enquadrar na manipulação de genes

humanos. Ou seja, cabe a reflexão sobre as negociações de manipulação de

genes realizada pela livre iniciativa vinculada à idéia individualista e

correspondente ao domínio das regras de mercados.

Com isso, observa-se uma impossibilidade de haver essa

distinção clara entre o sujeito e o objeto nas relações negociais que envolvem,

por exemplo, a programação de genes humanos. Isto é, na hipótese de uma

contratação, por um casal, de um serviço de pré-fabricação de um filho com a

intenção de programação eugênica7, o objeto da negociação, o filho, pelo

7 A eugenia é uma das possíveis conseqüências da manipulação de genes humanos, ante a

possibilidade de obter as condições propícias ao melhoramento e aperfeiçoamento da espécie humana, ou seja, sua genética.

paradigma liberal, também é um sujeito de direito. Por isso, há uma

clarividente na coisificação do sujeito por torná-lo um objeto de uma relação

jurídica negocial.

Nesse mesmo exemplo, pode-se observar uma ofensa aos

postulados do direito, que dizem respeito à indisponibilidade dos bens jurídico,

que envolvam os direitos da personalidade sobre o qual irão recair os

interesses das negociações da biotecnologia. Isso significa que, o patrimônio

genético do filho torna-se disponibilizados na negociação.

Pelos fundamentos do paradigma liberal, há o status positivo

do direito subjetivo de propriedade do filho, ou seja, há um direito fundamental

patrimônio genético que pertence ao objeto (genes do filho) da manipulação

genética e não aos sujeitos da relação jurídica negocial.

E, desse modo, há uma insustentabilidade do conceito de

autonomia dos sujeitos de uma relação jurídica negocial de base iluminista ante

a possibilidade de coisificação do sujeito nas relações negociais da

biotecnológica.

Noutro aspecto, o paradigma liberal nas bases do iluminismo,

lida com a previsibilidade da lesão causada pela agir do indivíduo, oposto às

imprevisibilidades e multiplicidades de situações das sociedades complexas

diante dos avanços biotecnológicos. (KAUFMANN, 2004: p. 464).

Karl Larenz afirma que situações jurídicas relevantes são

aquelas que constam de uma ou mais declarações dirigida ao surgimento de

uma conseqüência jurídica (Negócio Jurídico). E o ordenamento jurídico

reconhece o negócio jurídico como conseqüência almejada pelas partes nos

limites da autonomia e em cada caso. (1997: p. 420-421)

Esse entendimento clássico sobre a relação da autonomia e

negócio jurídico advindo do direito moderno, imbuído da idéia de previsibilidade

das conseqüências jurídicas das declarações de vontade, é oposto à

imprevisibilidade das conseqüências jurídicas das sociedades complexas

diante dos avanços tecnológicos, em especial a manipulações de genes

humanos. E isto expõe a ineficácia dos mecanismos de responsabilidade civil

para conter os possíveis abusos e efeitos danosos e imprevisíveis da atividade

empresarial biotecnológica.

Os mecanismos de responsabilidade civil advindos do

paradigma liberal do direito moderno, para segurança jurídica das relações

negociais, são definidos pela causalidade da ação e o alcance da conduta

responsável fundado na culpa (binômio lesão-sanção) naquilo que seria

possível imputar ao agir do indivíduo pela previsibilidade das conseqüências

jurídicas para preservar o próprio negócio e as partes.

Mas, as declarações de vontades nas negociações da

biotecnologia, além de imprevisíveis e irreversíveis, extrapolam a esfera

individual. Isto porque, a intervenção humana no patrimônio genético pode

inverter processos evolutivos de centenas de milhões de anos, ou seja, pode

ser destruído o equilíbrio balanceado da espécie ao longo de toda sua

existência. Isto significa que a ocorrência de erros biogenéticos se propaga

para além deles. Ou seja, as conseqüências jurídicas da manipulação de genes

humanos atingem uma categoria de direitos do homem como espécie a qual o

direito privado, com mecanismos da responsabilidade civil nas bases da

autonomia da vontade do paradigma liberal, não possui instrumentos eficazes

para proteger

O negócio jurídico, nos paradigmas do liberalismo, envolvendo

uma autonomia para celebração dos pactos e avenças, está imbuído de uma

plena liberdade de cada um para disposição dos interesses no negócio, de

acordo com a sua exclusiva vontade. (TARTUCE, 2005: p. 139-0)

Para salvaguardar seus interesses a livre iniciativa, inclusive no

âmbito das atividades biotecnológicas, recorre às teorias econômicas que

permitem ao mercado a possibilidade de definir os rumos da biotecnologia.

Para tanto, retomam o dogma da vontade do paradigma liberal para sustentar o

domínio econômico das regras. Nisso, constitui a fragilidade e a contradição do

modelo liberal, bem como aponta a sua insuficiência para tratar das questões

da manipulação de genes.

O Estado liberal cumpriu sua missão na História de incorporar

nas instituições estatais as garantias da liberdade e teve como herança mais

estimável os direitos fundamentais8 do homem.

Porém, o modelo liberal só protegeu a liberdade em favor do

capitalismo burguês assimilando direito a bens, que podem ser possuídos e

distribuídos segundo domínio econômico de mercado com base na igualdade

formal.

1.2 O MODELO DO ESTADO SOCIAL NOS CONTORNOS DA AUTONOMIA

PRIVADA

8 O reconhecimento pela ordem jurídica da existência de direitos humanos num território

entendendo que são fundamentais os direitos cuja garantia pela Constituição do Estado é

necessária para a progressiva consagração jurídica da liberdade igualdade e fraternidade

encerra um conceito de direitos fundamentais numa determinada ordem jurídica conectada

com a proclamação universal dos direitos humanos. Por essa assertiva, tem-se uma

diferenciação entre os direitos fundamentais e os direitos humanos, qual seja, os direitos

humanos possui uma prerrogativa universal da titularidade proclamada como direitos do

homem e os direitos fundamentais são os direitos humanos reconhecidos como fundamental

no ordenamento jurídico do Estado. Contudo, a idéia de Estado de Direito pressupõe essa

positivação dos direitos humanos como direitos fundamentais. Assim, os direitos humanos

positivados (direitos fundamentais) fundamentam o próprio Estado de Direito.

Com o decurso da revolução industrial, foi desaparecendo9. o

ethos econômico-político da sociedade burguesa e, assim, atenuou-se,

progressivamente, a separação, anteriormente existente no modelo liberal

entre poderes públicos e sociedade dos sujeitos privados. (WIEACKER, 1967:

p. 718)

Na segunda metade do século XX emerge um modelo político

pelo qual o Estado intervém nas relações privadas para propor uma menor

contradição entre liberdade e igualdade. O novo modelo se propõe a reformular

o paradigma do liberal burguês, em especial, quanto modelo formal de

igualdade por meio do intervencionismo estatal.

Esse novo paradigma conhecido como o Estado Social

considera a igualdade em termos materiais em oposição ao individualismo e às

desigualdades substanciais do Liberalismo

Para tanto, emerge uma nova dimensão10 de direitos humanos

fundamentais reconhecidos como direitos sociais, a qual pode ser expressa na

responsabilidade cabida tanto ao poder público quanto aos particulares pela

existência social de cada um dos membros da sociedade, assim, difundindo

9 No século XIX se acentua a contradição do modelo econômico capitalista institucionalizado

através do Estado. Com isso, a eminente produção filosófica deste período preocupou em elaborar uma crítica sobre essa estrutura estatal utilizada pelo modelo econômico. Representam essa abordagem de pensamento Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), através de uma análise crítica sobre realidade de seus tempos, formularam um pensamento que sustentam a idéia de Estado por sua finalidade econômica de uma classe social. Para estes autores, o Estado cumpre o papel de instrumento, ou seja, uma super estrutura para consolidar o modelo econômico defendido por uma classe que detém o poder político na sociedade. A organização social pode ser entendida, pela observação destes autores, como uma composição de diversos grupos sociais, que se diferenciam por sua condição econômica e atividade que exercem, lutando entre si para a defesa de seus interesses peculiares. Com isso, o Estado nesta luta é um aparelho determinante para a consolidação dos interesses dos grupos sociais que conseguem alcançar o poder político.

10 Os direitos sociais incluídos na categoria de direitos humanos fundamentais para o Estado

de Direito são considerados os direitos humanos de segunda dimensão. O direito fundamental

à liberdade, consagrado no modelo liberal, corresponde à primeira dimensão dos direitos

humanos positivado no Estado de Direito. Enquanto o direito à liberdade é dirigido à omissão

do Estado, a positivação dos direitos sociais fundamentam a atuação do Estado para alcançar

a materialização da igualdade.

axiomas fundados na solidariedade e justiça social.

O Plano da autonomia nos negócios recebe, com isso,

limitações como acentua FERNANDO DE NORONHA:

[...] foi precisamente em conseqüência da revisão a que foram submetidos o liberalismo econômico e, sobretudo, as concepções voluntaristas do negócio jurídico, que se passou a falar em autonomia privada, de preferência a mais antiga autonomia da vontade. E, realmente, se a antiga autonomia da vontade, com o conteúdo que lhe era atribuído, era passível de críticas, já a autonomia privada é a noção não só com sólidos fundamentos, como extremamente importante. (apud TARTUCE, 2005, p. 143)

O conceito de autonomia privada preserva a liberdade de

contratar, mas o conteúdo do negócio jurídico recebe as limitações de

elementos filosóficos, jurídicos e políticos informados pela Constituição.

Ressalta-se, por essa perspectiva, a constituição como garantia e proteção de

direitos humanos e como a substância do ordenamento jurídico baseado num

conceito de autonomia privada vinculada ao paternalismo estatal.

Essa transformação no modelo político estatal implicou numa

crise no conceito de autonomia para o domínio de direito privado, pois afetou

as bases clássicas do direito à propriedade e ao direito contratual, que tinha um

domínio autônomo e fechado no modo de entender o direito pelo estado liberal

burguês. A mencionada crise corresponde às transformações na materialização

do direito privado a partir do direito constitucional, ou seja, a mudança de

paradigma para entender a autonomia privada.

A autodeterminação individual pelo status negativo da

liberdade garantida por meio da liberdade de contratos e do direito a

propriedade se modificou no paradigma do estado de bem-estar social tendo

em vista a posição social do indivíduo e sua responsabilidade social. Isto

ocorreu sob o argumento da materialização da igualdade no paradigma do

Estado Social. A autonomia privada, dessa forma, recebe um contexto social

na qual se deve realizar.

Sob o aspecto da liberdade do sujeito relativa à permissão

jurídica para fazer ou deixar de fazer, essa materialização do direito privado no

Estado Social resulta em conteúdos normativos informados pelos direitos

sociais a fim de distribuir, com justiça social, a riqueza.

Apesar das diferenças axiológicas entre os dois paradigmas

persiste no modelo de Estado Social o mesmo conceito de justiça presente no

modelo liberal, qual seja, o de justiça como distribuição. O modelo Liberal se

ateve na distribuição de bens entre os indivíduos. Já o modelo de Estado

Social se propõe a distribuir condições igualitárias entre a sociedade.

A idéia de realizar justiça social do modelo político do Estado

Social deflagrou numa estrutura regulamentadora e burocrática para ampliação

das tarefas estatais para, assim, restringir o domínio das regras do mercado

nas relações privadas e restou por, simplesmente, modificar o “ente”

distribuidor. Com isso, o Estado Social ativista passou desempenhar o papel

ocupado pelo mercado no estado liberal na realização de justiça concebida por

ambos os modelos.

Nesse sentido, coloca Habermas, que “o paradigma do direito,

centrado no Estado Social, gira em torno do problema da distribuição de justa

das chances de vidas geradas socialmente.” (II, 2001: p.159)

O intervencionismo estatal do modelo de Estado Social resulta

no paternalismo nas relações do Estado com os cidadãos. E isso interrompe o

processo de ampliação de participação política dos sujeitos.

As estruturas burocráticas do Estado social se tornaram

inadequadas diante dos problemas existentes nas sociedades complexas, em

especial a manipulação de genes. Isto porque a intervenção estatal não detém

instrumentos eficazes para impor limites ao potencial de riscos advindo da

aventura humana entre a biotecnologia. Pois, a celeridade, os atributos, as

possibilidades e diversidade das descobertas na área da biotecnologia aliada

ao interesse privado das descobertas não podem ser incluídas num projeto

regulamentador constitucional.

Além disso, o Estado Social tem o compromisso de preservar

as estruturas econômicas do capitalismo.

O Estado social esbarra na resistência dos investidores privados, fato tão mais claro quanto mais exitosa a implementação de seus programas... Como o Estado social tem de deixar intacto o modo de funcionamento do sistema econômico, não lhe é possível exercer influência sobre a atividade privada de investimentos senão através de intervenções ajustadas ao sistema. Ele não teria de forma alguma poder para isso também porque a redistribuição de renda limita-se, no essencial, a um realinhamento horizontal dentro do grupo de trabalhadores dependentes e não toca na estrutura específica do poder de classe, especialmente na propriedade dos meios de produção. (HABERMAS, 1987: P.108).

A biotecnologia aliada ao investimento privado desenvolveu

seu sistema de regras para obter propulsão no contexto social e com

argumentos próprios para a legitimidade de suas ações tal como a esperança

de cura de doença. Nessa conjuntura social complexa, a regulamentação do

Estado social implica num definhamento da ordem constitucional, reduzindo-a e

tornando-a parcial e a margens dessas transformações sociais.

Para haver a possibilidade do direito responder aos riscos da

atividade da biotecnológica urge a necessidade de justiça social contida na

idéia de emancipação política e de dignidade humana. Assim, a sociedade

poderá estabelecer as fronteiras da manipulação de genes humanos.

1.3 DOIS PARADIGMAS ENTRE OS RISCOS DA MANIPULAÇÃO DE

GENES HUMANOS

Para o modelo liberal, as liberdades são distribuídas iguais e só

encontra limites em contingências naturais da sociedade. A sociedade é

resultado de forças espontâneas de mercado. Com isso, o sistema de direitos

constrói um conceito de justiça que importa numa distribuição a bens.

YOUNG coloca:

O que significa distribuir um direito? Pode-se afirmar que alguém tem direito a uma parte distributiva de coisas materiais, de fontes, de proventos. Porem, nesse caso, o que se atribui é o bem, não direito... Não vale a pena conceber direitos como se fossem posses. Pois os direitos são relações, não coisas; constituem papeis definidos institucionalmente a fim de especificar o que as pessoas podem fazer umas em relação às outras. Os direitos têm a ver com o fazer, mais do que com ter, portanto, com relações sociais que autorizam a ação ou exigem à força.” (apud HABERMAS, 1997: p. 159-158)

Na perspectiva do Estado Social, o ativismo estatal distribui

chances de vida em oposição ao naturalismo do liberalismo. Esta é uma

versão11 desse modelo político segundo o qual o Estado detém um grande

espaço de ação política e a sociedade está colocada a sua disposição.

Em ambos os modelos, percebe-se uma dependência

sistêmica dos indivíduos, pois concentram-se as implicações normativas do

11

Há uma segunda versão de Estado social, principalmente, para o contexto social da sociedade complexa, e esta lhe é mais adequada pois, se consegue vislumbrar o Estado como mais um entre os diversos sistemas existentes no mundo da vida. (HABERMAS, 1997: p.144)

funcionamento social num status negativo protegido pelo direito e procura

saber se é suficiente garantir a autonomia privada através de direitos à

liberdade ou se a emergência ou o surgimento da autonomia privada tem que

ser assegurada através de prestação social.

Para Habermas o sistema de direitos não pode ser formado

pelas forças de mercado operante espontaneamente ou pelas medidas

intervencionistas do Estado Social que age intencionalmente. O sistema de

direito se realiza pelos fluxos comunicacionais e pelas influências públicas que

precedem da sociedade civil e da esfera pública, os quais são transformadores

em poder comunicativo pelos processos democráticos. (II, 2001: p.186)

O sentido democrático e a auto-organização são os

pressupostos para busca de soluções na sociedade de risco12. Isto é, são os

mecanismos de participação social que podem proporcionar o interagir entre o

sistema de direitos e os diversos sistemas13 presentes nas sociedades

complexas, como os sistemas negociações no contexto da manipulação de

genes. Para tanto, o modelo político deve estabelecer o nexo interno que existe

entre autonomia privada e autonomia do cidadão e, com isso, submergir o

sentido democrático da auto-organização de uma sociedade (HABERMAS, II,

2001: p. 145-146)

1.3.1 Panorama de desenvolvimento biotecnológico e os riscos da

manipulação de genes humanos

12

Se entender por modernização um processo de inovação autônomo, deve aceitar também que a própria modernidade envelhece. A face envelhecida da sociedade industrial (modernidade) é a sociedade de risco. Nesta frase se descreve uma fase do desenvolvimento da sociedade moderna na qual os riscos sociais, políticos, ecológicos e individuais criados pelo impulso das inovações iludem cada vez mais o controle e as instituições protetoras da sociedade industrial. (BECK, 2006: p. 113)

13. Na teoria habermasiana, a idéia de sistema se baseia na análise de um sistema social que

tende ao equilíbrio auto-regulativo e se constitui de subsistemas com diferenciações funcionais. A integração sistêmica possui uma lógica própria, independente dos sujeitos em que as ações se organizam formalmente e são determinadas por cálculos interessados em dois subsistemas: o político e o econômico, cujos meios de integração são respectivamente o poder e o dinheiro. (VELASCO, 2000: p. 20-23)

O processo de desenvolvimento biotecnológico genético se

iniciou com o monge Gregor Mendel que, estudando as ervilhas do mosteiro,

formulou leis estatísticas da hereditariedade.

A partir disso, a investigação genética cresceu rapidamente

pelo aperfeiçoamento dos instrumentos em laboratório e pela maior precisão

nos exames microscópios das células, permitindo desvelar as estruturas e as

informações genéticas presentes nos organismos vivos. Com isso, a

biotecnologia progrediu revelando os segredos do DNA, desvendando o código

genético, transferindo e manipulando genes.

Pode-se dizer que estamos envolvidos numa revolução

científica, uma transformação das nossas idéias sobre natureza que se

equivalem somente ao nascimento da idade moderna no século XVII ou ao

aparecimento da física quântica no século XX.

E esses avanços na área da biotecnologia debelam os maiores

impactos na sociedade, cujos conteúdos das descobertas interferem

profundamente nas forças da natureza como nenhuma outra tecnologia antes

conhecida. E quanto mais poderosas são as novas tecnologias maiores são as

possibilidades de destruição dos ecossistemas e modificação social.

Uma perspectiva puramente liberal para a manipulação de

genes humanos, fundamentada apenas autonomia privada e no individualismo,

pode produzir efeitos perturbadores, pois converge para uma subjetividade

individualista e limitada nos modelos de bem-estar e perfeição biológica e

corporal ofertados pela ciência com um biopoder daqueles que dominam a

técnicas da ciência da vida para vender ao mercado.

Noutra parte, a estrutura burocrática e intervencionista do

Estado Social não pode acompanhar as transformações do desenvolvimento

biotecnológico. Além disso, o paternalismo resultante desse modelo político

interrompe o processo de participação e emancipação política dos sujeitos

necessária para lidar com as questões da biotecnologia.

O desenvolvimento biotecnológico, em especial a manipulação

de genes humanos, proporcionou melhorias para a técnica e trouxeram

benefícios das mais variadas ordens na área da saúde que vão do tratamento

até a prevenção de doença. Entretanto, ante a possibilidade de manipulação de

genes, em especial humanos, há riscos danos e acidentes genéticos, bem

como uma espécie de eugenias, qual seja, a positiva.

Dessa forma, no projeto desenvolvimentista de manipulação de

genes humanos, tanto os danos genéticos quanto a eugenia positiva devem ser

considerados como possíveis efeitos nocivos para o homem como gênero

produzidos num prazo médio e longo.

Disso resulta a necessidade da participação política dos

setores sociais interessados para o entendimento sobre o conteúdo

deontológico ético-jurídico sobre os negócios da biociência.

1.3.1.1 Os danos da manipulação de genes humanos

A palavra genético é relativo ou pertencente à gênese,

geração, a genética. A Genética, por sua vez, é um ramo da biologia que

estuda as leis da transmissão dos caracteres hereditários nos indivíduos e as

propriedades das partículas que asseguram essa transmissão, o gene14. Para

Goffredo Telles Junior, gene é definido como “uma fibra do DNA, um

14

Na Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005), bem como no Decreto 5.591/2005 que a regulamenta não há definição para gene.

seguimento que contém a informação necessária para a elaboração de uma

„receita‟de proteína específica” (2004: p. 22-3).

A manipulação tecno-científica dessas informações genéticas

atenta para diversas possibilidades de danos. Dependendo do dano, este

poderá ou não interferir no processo natural de reprodução e desenvolvimento

genético ou no processo original de transmissão dos caracteres hereditários de

um indivíduo.

Quando ocorre um dano ao gene, ou seja, à unidade

hereditária ou genética, situada no cromossomo que determina as

características de um indivíduo tem-se um o dano relativo ou pertencente ao

gene, à unidade funcional do (DNA) ácido desoxirribonucléico envolvido na

síntese de uma cadeia polipeptídica, podendo ser, inclusive, dano causado a

qualquer uma das unidades individuais existentes e envolvidas neste processo

biológico.

Se esse dano for causado somente em um gene de células

somáticas, este dano não será transmitido para futuras gerações e morrerá

com o indivíduo, se constituindo um dano gênico puro. (Andrade, 2003: p.202).

Mas, Se o dano for causado em gene de células germinativas, ele será

transmitido para outras futuras gerações o que, destarte, o transformará

também em dano genético15.

15

Rosaldo Jorge de Andrade cita em seu artigo, p. 203 – 205, um exemplo de dano gênico: “um bebê criado pelo método de transferência de citoplasma irá portar genes de três pessoas diferentes. Quem poderá garantir que o DNA mitocondrial da mãe doadora não irá influenciar futuramente na criança, de modo negativo, não esperado pelos pais biológicos? Eis a matéria citada: “Cientistas dos EUA criam bebê transgênico. (Jornal O Estado do Paraná de 06.05.2001. Nova Jersey – (Das agências) – Dois bebês americanos de mais ou menos um ano têm „três pais‟. Foram gerados no Institute for Reproductive Medicine and Science of St Barnabas, em Nova Jersey, por um método chamado transferência de citoplasma. Em suas células, geneticamente modificadas, há DNA de três pessoas. Um feito, comprovado em laboratório, que pode revolucionar o campo da reprodução assistida e promete suscitar discussões acaloradas sobre ética. A técnica usada por Jacques Cohen, que liderou o experimento, não é nova. Desenvolvida em meados dos anos 90, ela chegou ao Brasil, trazida pelo próprio Cohen, há dois anos e, desde então, possibilitou o nascimento de 30 crianças no País. Consiste em injetar parte do citoplasma de uma mulher jovem no óvulo de outra mulher

Já o dano genômico pode ser definido como o dano causado

ao genoma, ou seja, à constituição genética total de um indivíduo ou zigoto.

Dano causado não a um gene específico e isolado, mas a todo o conjunto de

genes ou a um grupo representativo deles onde houvesse o comprometimento

da constituição genética total de um indivíduo.

Seria, pois, um dano poligênico e não dano gênico; uma

subespécie do dano genético, já que altera a constituição genética total de um

indivíduo, necessariamente interferindo em células germinativas, afetando

assim o processo original de reprodução.

É exatamente desse tipo de dano que trata o artigo 8º da

Declaração Universal do Genoma Humano; é esse o dano pelo qual se objetiva

tipificar, quando prevê o direito à justa reparação por danos sofridos em

conseqüência direta e determinante de uma intervenção que tenha afetado o

genoma de um indivíduo.

Então, o Dano Genético é o dano causado ao processo original

de transmissão dos caracteres hereditários, quer resultantes do manuseio e da

aplicação das técnicas de engenharia genética; quer de outros fatores que

interfiram de algum modo neste processo.

O Dano Genético é, por sua natureza, classificado como dano

subjetivo, ou seja, dano à pessoa; aquele que atenta contra o ser humano, em

com dificuldades para ter filhos. „É uma forma de rejuvenescer o óvulo‟, disse José Franco Júnior, professor de Ginecologia da USP e diretor do Centro de Reprodução Humana da Maternidade Sinhá Junqueira, em Ribeirão Preto (SP). Cientistas acreditam que uma das causas da infertilidade sejam defeitos na mitocôndria (estrutura presente no citoplasma da célula e envolvida na respiração celular). Ao receber citoplasma de uma mulher jovem, portanto, o óvulo degenerado teria uma mitocôndria sadia, devolvendo a fertilidade à mulher mais velha. Ao fazer testes de identificação genética em duas crianças nascidas nos EUA por aquele método, Cohen constatou que as células dos bebês tinham três DNAs diferentes: um vindo da mãe, um do pai e o outro da mitocôndria (única estrutura fora do núcleo celular que contém genes) da doadora. Os cientistas não sabem qual a função do DNA mitocondrial (transmitida apenas pelas mulheres), mas suspeitam de que tenha influência no DNA nuclear, que determina todas as características do indivíduo, inclusive suscetibilidade a doenças.”

qualquer etapa do seu desenvolvimento existencial. Mas também podem

ocorrer situações em que o dano genético possa ser classificado como dano

patrimonial ou material.

A palavra “patrimônio” significa não só bens de família, dote,

herança paterna, bens, mas também se refere ao patrimônio como sendo o

conjunto de bens culturais ou naturais, de valor reconhecido para determinada

localidade, região, país ou para a humanidade, passíveis, assim, de proteção,

como por exemplo, através de tombamento.

A idéia de posse coletiva como parte do exercício da cidadania

inspirou a utilização do termo patrimônio para designar o conjunto de bens de

valor cultural que passaram a ser propriedade da Nação, ou seja, do conjunto

de todos os cidadãos.

Diante dessas possibilidades de dano genético acentua Hans

Jonas16 sobre os efeitos irreversíveis a respeito dos erros na Biotecnologia e

fundamenta o princípio da precaução (Kaufmann, 2004:464). E isto revela a

ineficácia dos mecanismos de responsabilidade civil, fundado na culpa

(binômio lesão-sanção), para conter os possíveis abusos e efeitos danosos e

16

Ao se discutir a questão da ética no campo da tecnologia, um dos autores mais citados na atualidade é, sem dúvida, o filósofo alemão Hans Jonas. Nascido na cidade de Mönchengladback,no ano de 1903, Jonas iniciou seus estudos de graduação em filosofia na cidade de Freiburg, em1921, onde se tornou aluno de Husserl e Heidegger. Para o autor a preocupação com a ética aparece na sua principal obra de Hans Jonas: O Princípio da Responsabilidade: Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica (publicado na Alemanha no ano de 1979). Para compreender o pensamento de Hans Jonas é preciso ter em mente algumas “questões-chave”, dentre elas, a alteração da essência do agir humano sobre a natureza e as implicações práticas desse agir, a ineficácia das éticas tradicionais para tratar das questões que têm surgido em decorrência desse fato, a necessidade de um novo imperativo categórico, a relação entre ontologia e responsabilidade, a heurística do medo e as novas dimensões da responsabilidade. Pois, as intervenções técnicas na natureza, antes superficiais e inofensivas, passam a ter efeitos irreversíveis, podendo fugir ao controle humano. A própria técnica assumiu a condição de “necessidade”, comportando-se como uma nova natureza, imposta e selvagem, capaz de agir no sentido de alterar a essência das coisas e de extingüi-las por completo. Dá-se um paradoxo: a natureza é controlada por meio de um poder técnico que foge do controle. O grande risco “que se encontra encerrado no sucesso extraordinário do poder tecnológico é aquele que envolve a possibilidade de desfiguração da essência ou natureza daquilo que tradicionalmente é pensado sob o conceito de ser humano” (GIACOIA, 2000, p.192).

imprevisíveis da atividade empresarial biotecnológica.

A responsabilidade civil, nas bases do iluminismo, lida com a

previsibilidade da lesão causada pela agir do indivíduo, oposto às

imprevisibilidades e multiplicidades de situações das sociedades complexas

diante dos avanços biotecnológicos.

E mais, há as incertezas sobre as dimensões que poderão

chegar à exigência de ressarcimento de danos e indenização por

responsabilidade civil. E, ainda, há a dúvida se a responsabilidade civil pode

alcançar a todas as dimensões do dano.

1.3.1.2 A eugenia

O conceito de eugenia, segundo a definição do dicionário

Aurélio, é estudo da ciência para obter as condições mais propícias ao

melhoramento e aperfeiçoamento da espécie, ou seja, sua genética. (DUTRA,

2005: 245)

Há nesse conceito de eugenia um limite tênue entre duas

espécies de eugenia: a negativa e a positiva. A eugenia negativa, para evitar

doença por meio de uma intervenção terapêutica e a eugenia positiva para

melhorar a raça, ou seja, a intervenção nas características da espécie.

A primeira, embora sujeita acidentes ou conseqüências

danosas abordadas anteriormente, tem um escopo moral aceitável que é a

cura de doenças. Já a eugenia positiva pode-se levar, por uma reflexão acerca,

a uma perspectiva assombrosa porque converge protótipos de perfeição

biológica e eliminação de características étnicas proposta pelo mercado,

desvinculado dos valores sociais, ou seja, uma eugenia liberal.

A eugenia positiva se coloca na fronteira entre o acaso e o

disponível ao homem, na base biológica de cada indivíduo. Trata-se de saber o

quanto esse fato interfere naquilo que define a espécie humana, ou seja, na

presunção que somos sujeitos de nossa história e de que podemos nos

reconhecer no outro como semelhante, dentro do paradigma de igualdade e

entre o pluralismo da sociedade democrática.

Nesse contexto, os riscos das novas tecnologias implicam nas

probabilidades de destruição dos ecossistemas e de modificação social,

interferindo, assim, na liberdade, na autonomia e na dignidade17 humana. O

desequilíbrio provocado entre os que dominam a biotécnica e os que não

dominam.

Há, com isso, a formação de um panorama ameaçador porque

combinam a racionalidade instrumental-estratégica do mercado com a

racionalidade instrumental científica, ambas enquadradas no projeto da

Modernidade18.

O desenvolvimento biotecnológico, em especial a manipulação

17

Kant admite que no mundo social, nos sistemas de fins, existem duas categorias de valores: o preço e a dignidade. Enquanto o preço representa um valor exterior e a manifestação de interesses particulares, a dignidade representa um valor interior, interesse geral. A legislação elaborada pela razão prática deve levar em conta, como finalidade suprema, a realização desse valor interior e universal: dignidade humana. (FREITAG, 1989: p. 10).

18 A Modernidade proporcionou uma transição do modelo de racionalidade baseado na tradição

da religião e nos costumes para a racionalidade fundamentada na autonomia da razão (cientificismo). Habermas explica que filosoficamente a primeira auto-avaliação sistemática da modernidade que foi feita por Kant, Marx e Hegel, mas que só teve eco no início do século XX, quando foi radicalizada por Max Weber e pela Escola de Frankfurt. Acrescenta, ainda, as contribuições de pensadores como Nietzsche, Heidegger e Foucault, cujas interpretações têm gerado sérios desdobramentos com relação ao próprio significado da Modernidade, os quais levaram a uma concepção que identifica a Modernidade como um modelo de racionalidade que só levou à miséria e dominação de um ser humano instrumentalizado em critérios técnico-científicos. Esses últimos são precursores do movimento denominado pós-modernismo. Apesar de considerar relevantes as contribuições dos autores pós-modernos como um diagnóstico pertinente às estruturas de dominação da modernidade, Habermas, ao contrário destes, retoma o projeto da modernidade e acrescenta uma construção teórica baseada numa racionalidade comunicativa como proposta ética para interferir na racionalidade instrumental de dominação.

de genes humanos, ocasionou de imediato em melhorias das técnicas, que

trouxeram benefícios das mais variadas ordens, mas, proporcionalmente,

possibilidades de danos e acidentes, bem como a eugenia liberal.

Isto porque, a biotecnologia obedece aos critérios da

competitividade e dominação, cujos fins estão em si próprios e não na

coletividade. Esse agir está voltado aos resultados das pesquisas e lucros

advindos de sua atividade, tendo como fim o avanço do domínio da técnica e

desenvolvimento econômico. E essa racionalidade (individualista e competitiva)

provoca os riscos para sociedade na medida em que proporciona os maiores

impactos na sociedade, o qual o conteúdo das descobertas interfere

profundamente nas forças da natureza como nenhuma outra tecnologia antes

conhecida.

Para Hans Jonas, o novo imperativo está endereçado muito

mais à política pública que à conduta privada. Isto significa que diante do

biopoder, a que moderar a ação técnica e lhe impor limites para que se

possamos excluir antecipadamente ações que desencadeiem, mesmo em um

caso remoto, riscos para a humanidade e a vida no planeta. Esse poder sobre

o poder deve emanar da sociedade como um todo, sendo preciso “afetar a

opinião popular”, os comportamentos e as leis ligadas ao campo da ciência e

da técnica. (GIACOIA, 2000, p.193-206)

1.4 O ELEMENTO ÉTICO ENTRE A MANIPULAÇÃO DE GENES HUMANOS:

DEBATE PÚBLICO

Para restabelecer o equilíbrio social diante da atividade

biotecnológica, a filosofia moral desenvolveu a ética da responsabilidade para a

práxis biotécnica, compatível com os princípios de justiça e solidariedade. Os

fundamentos ético-jurídicos assentam a existência de princípios, que devem

orientar a ação humana no âmbito da biotécnica.

Nesse contexto, Habermas desenvolve a ética do discurso

cujos elementos fundamentais são as formas de entendimento dos princípios,

que orientam a ação humana entre os setores sociais, o qual considera válidas

as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu

assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais.

(HABERMAS, I, 2001: p. 142)

A ética discursiva está no bojo da teoria habermasiana da ação

comunicativa19 e integra o paradigma procedimental objetivando a participação

social, orientada por dois princípios básicos: o princípio universal e princípio do

discurso. Dessa maneira, a Ética do Discurso possibilita as formas de

integração dos diversos setores sociais no qual consenso será construído pela

a força do melhor argumento20.

Pelo Princípio da Universalização, a ética discursiva só

considera válidas normas que exprimem uma vontade universal. Já pelo

Princípio do Discurso, elaboram-se as situações ideais de fala como método

para alcançar um consenso. As situações ideais incluem os interlocutores

19

A publicação, em 1981, da obra Teoria da Ação Comunicativa marcou a trajetória do filósofo alemão Jürgen Habermas. Segundo o autor, a teoria da ação comunicativa permite o acesso a três complexos temáticos que se encaixam. O primeiro deles é o conceito de racionalidade comunicativa, que considera capaz de enfrentar as reduções cognitivo-instrumentais da razão; o segundo é o conceito de sociedade articulado em dois níveis, Mundo da Vida e Sistema e, o terceiro é uma teoria da modernidade que explique as patologias sociais (I, 2003, 10).

20 Explica McCarthy, a chave da noção habermasiana da obtenção de um acordo é a

possibilidade de fazer uso de razões com que possa chegar a um reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validade suscetíveis de crítica e, esta possibilidade se dá nas três dimensões acima. Assim, a prática comunicativa possibilita aos participantes entrarem num processo argumentativo, no qual permanece sempre aberta a possibilidade de identificar e corrigir os erros, ou seja, de aprender com eles (MCCARTHY, 1998: p. 450-1).

necessários nos discursos, ou seja, a expressão da vontade universal depende

da garantia de participação de todos os setores da sociedade na discussão

para elaboração da norma.

Sendo assim, a ética se fundamenta na intersubjetividade e no

dialogo para entender a objetividade do como devo agir da norma universal, ou

seja, os princípios que devem orientar a ações da biotecnologia. A

intersubjetividade consiste na capacidade de entendimento dos participantes

nos discursos racionais, ou seja, a compreensão e cooperação dos envolvidos

na discussão.

Para ética discursiva, não há um conteúdo, mas uma forma

como Princípio Ético, que representa a procedimentalização do entender os

princípios presente nas normas.

A ética discursiva é processual, dialógica e comunicativa

envolvendo a participação dos sujeitos no dialogo correspondendo as situações

ideais oferecidas pelo conhecimento do interesse geral. Por essa razão, a ética

discursiva impõe aos participantes do discurso.

Nas palavras de Freitag a ética discursiva de Habermas é uma

das peças-chaves desse projeto de radicalização democrática. A questão da

moralidade confunde aqui com a questão da democracia: debate público.

(FREITAG, 1989: p. 41)

A ética discursiva pela aplicação do Princípio do Discurso e o

Princípio da Universalidade, que significa as decisões políticas acontecer com

a participação da sociedade por meio de atos e situações de fala ideal. Isto é, a

regulação da atividade biotecnológica é uma decisão que deve seguir a

procedimentalização do agir na configuração de Estado Democrático de Direito.

As incertezas e risco dos avanços biotecnológico não podem

proporcionar uma renuncia ao seu desenvolvimento tendo em vista os

benefícios da cura de várias doenças para humanidade. Isso significa um

niilismo do homem pela ciência.

Além disso, há a importância da ciência atrelada ao

desenvolvimento da economia para a sociedade e um reconhecimento da livre

expressão científica e da livre iniciativa como princípios presentes no

ordenamento. Essas liberdades devem ser conciliadas no Estado Democrático

de Direito.

O desenvolvimento do conhecimento constitui-se um espaço

livre de criação, ao se ampliar liberdade cientifica aumentam a capacidade de

articulação de cada um em que toda coletividade deve aproveitar os resultados

obtidos.

Entretanto, a atividade empresarial na biotecnologia representa

uma dimensão que atinge não só os sujeitos da relação jurídica obrigacional,

os fatos recorrentes aos negócios jurídicos na biotecnologia atingem a

natureza, homem enquanto espécies e suas gerações. Os interesses

envolvidos são além dos individuais, ou seja, repercute por toda coletividade,

pois atinge o homem como gênero.

Nesse sentido, o direito privado necessita de uma reconstrução

para corresponder a finalidade do Direito que é a Justiça, ou seja, é necessário

superar o liberalismo e o individualismo nas relações negociais da

biotecnologia, bem como extrapolar as estrutura regulamentadoras do modelo

do Estado Social e repensar o direito privado no paradigma do Estado

Democrático de direito.

A liberdade humana, portanto, é uma liberdade social situada

nas relações de cada indivíduo com os demais numa concepção do homem

como um ser social e suas possibilidades de atuação. Por essa assertiva é

inaceitável a idéia de que a liberdade de um termina onde começa a do outro

ou, ainda, está vinculada ao assistencialismo estatal, pois a liberdade não pode

ser isolada ou condicionada, ela está entrelaçada, necessariamente, inserida

no meio social.

2. DIGNIDADE HUMANA E AUTONOMIA PÚBLICA

Entre as discussões dos temas sobre biotecnologia, a

dignidade humana é invocada como o argumento moral e jurídico para

posicionamentos, por vezes, divergentes. O caso da polêmica sobre a

utilização de células-tronco embrionárias humanas para fins de pesquisas,

reúne posicionamento a favor, sob o argumento da dignidade humana

daqueles que esperam a cura de doenças e posições contrárias defendendo a

dignidade da vida humana representada no embrião. Isto significa que o

conceito de dignidade humana é reconstruído no contexto sócio-cultural entre

os diversos setores sociais.

Entretanto, no caso da Manipulação de Genes Humanos, a

controvérsia não está somente nos valores pelos quais os diversos setores

sociais entendem a dignidade humana e sim qual será o conceito dignidade

humana mediante a situação em que “a técnica genética está deslocando a

fronteira entre a base natural indisponível e o reino da liberdade”. (Habermas,

2004: p. 39) Ou seja, ante a possibilidade de manipulação genética de seres

humanos, emergem questionamentos, tais como, quais serão os efeitos da

intervenção genética na auto-compreensão dos sujeitos modificados? E ainda,

qual a relação existente entre o acaso (sujeitos não manipulados) e a livre

decisão no bojo da dignidade humana?

Importa dizer que não há certezas a respeito da manipulação

genética poder interferir no comportamento do sujeito manipulado, mas tal

questão não é enfoque do presente trabalho e sim como a sociedade poderá

responder à interferência da biotecnologia na existência humana.

A temática da manipulação de genes humanos possui um

conteúdo moral e jurídico a ser construída por uma nova premissa sobre

dignidade humana diferente das concepções naturalista e voluntarista, as quais

são baseadas, em especial, a eugenia liberal, pois a intervenção genética

rompeu com as estruturas da autonomia pessoal baseada na natureza.

E é esse o desafio das transformações trazidas pela

manipulação genética: a busca do sentido de dignidade humana para uma

realidade de seres humanos programados.

2.1 O SENTIDO DA EMANCIPATÓRIO DA DIGNIDADE HUMANA

Para Pufendorf, pensador do Direito Natural Moderno, a

dignidade não é uma qualidade de natureza ontológica intrínseca ao homem,

mas um título jurídico que lhe advém da razão de sua autonomia e liberdade.

(HESPANHA, 2005: p.197)

Assim, esse conceito de dignidade humana, construído na

Idade Moderna pelos teóricos do Direito Natural do século XVIII, com reflexos

no âmbito político, enquadra-se na transição do modelo de sociedade medieval

com a dependência política da servidão para sociedade moderna a qual

predomina a independência política dos indivíduos, sujeitos de direito e

deveres. E esse pensamento percorrerá a idéia de comunidade política que se

formou na sociedade ocidental até os dias atuais.

Ainda que a racionalidade moderna tenha constituído na

consciência do indivíduo sua capacidade de auto-regulação ou ao menos dar

explicação sobre suas próprias leis, pode-se identificar nela concepção oposta

relacionada ao caráter emancipatório do indivíduo.

Essa concepção, oposta ao caráter emancipatório,

corresponde ao modelo racional instrumental-estratégico, presente nos critérios

técnicos-científico da biotécnica, que converte para dominação dos seres

humanos, o biopoder. Uma das expressões dessa racionalidade de dominação

são os experimentos científicos realizados nos campos de concentração

nazista21.

Mas, há outra concepção sobre a racionalidade da

modernidade, a qual se identifica como a autonomia da razão e por isso

consiste no caráter emancipatório do indivíduo.

A partir dessa, concepção última, a racionalidade de

modernidade entre o conceito de dignidade humana, tem-se a tarefa de propor

as articulações teóricas que buscam uma unidade orgânica entre ética e

política com a idéia de democracia intrínseca a dignidade humana. (CORTINA,

2001: p. 226)

Para Habermas, a leitura pessimista da modernidade se deve

ao predomínio de uma racionalidade de cunho técnico-instrumental

(estratégica), que trouxe conseqüências drásticas à sociedade, sob a forma de

intervenção e dominação, mas que não pode invalidar todo e qualquer modelo

de racionalidade. O autor busca na linguagem, a verdadeira base a partir da

qual sua reconstrução da sociedade com intenções práticas pode fazer sentido,

de maneira que traga mudanças à razão iluminista sem necessariamente negá-

la.

Por isso Habermas, mesmo na condição de membro da

segunda geração da chamada Escola de Frankfurt e possuindo inegáveis

vínculos com o pensamento de crítico da modernidade, apresenta uma obra

que adota perfis próprios. Segundo Velasco, o traço afirmativo de seu

pensamento está em não se restringir ao momento negativo da crítica22, mas

21

O Código de Nuremberg foi elaborado em 1946 para julgar os médicos e cientistas que realizaram experimentos biomédicos em seres humanos nos campos de concentração nazistas, sem o consentimento voluntário dos sujeitos humanos.

22 Neste ponto distancia-se da 1ª geração da Escola de Frankfurt.

adotar uma estratégia intelectual reconstrutiva, que procura identificar nas

estruturas normativas da sociedade fragmento já encarnados de uma razão

existente (2000, 09-10).

Habermas sugere um novo conceito de racionalidade como

forma de reagir à situação problemática surgida após a metafísica, que se

constituiu em um caminho aberto para o restabelecimento do poder crítico da

racionalidade humana. Através da diferença fundamental entre a filosofia da

consciência e a razão comunicativa, diferença esta não apenas de método e

conteúdo, mas de natureza, argumenta que a razão que depreende da

atividade do sujeito cognoscente é instrumental e sua intenção é o domínio

teórico ou prático do objeto enquanto que a razão subjacente à linguagem é

intersubjetiva e interativa (FÁVERO, 2003: 22-3).

Em outras palavras, o paradigma da ação comunicativa

contrapõe-se ao paradigma da filosofia da consciência, pois este parte da

relação sujeito-objeto como relação fundamental do homem, ou seja, centra-se

no sujeito o qual confere significação ao objeto. Já o paradigma da ação

comunicativa parte da intersubjetividade, da relação entre sujeitos. Assim, a

preocupação de Habermas está em superar a filosofia da consciência para

justificar uma teoria que permita desenvolver a identidade do sujeito (identidade

do eu) sob as condições de uma intersubjetividade compartilhada, conforme

explica MCCARTHY:

A posição de Habermas sobre a essencial interdependência entre identidade do eu e uma intersubjetividade não desprezada, permite responder às críticas que se fazem a seu universalismo moral em nome da auto-realização individual (...). A versão socializada do formalismo ético não advoga a supressão da subjetividade concreta para assegurar que o indivíduo seja idêntico ao universal. Antes disso, pressupõe diferentes indivíduos (...). O que se exige é que aquelas áreas da vida em comum, sujeitas às normas sociais vinculantes, sejam resultado de um acordo obtido em uma comunicação livre de domínio. (1998, 461).

Como explica Boufleuer, para Habermas o emprego da

linguagem para fins de entendimento se deve a um saber intuitivo que os

indivíduos socializados possuem. Ele se revela como uma competência

adquirida no mundo da vida, onde os indivíduos agem comunicativamente e

essa competência comunicativa consiste no domínio não-reflexivo, pré-teórico,

de certas pressuposições que acompanham o entendimento lingüístico. Por

isso, pode ser reconstruído racionalmente numa perspectiva universalista

(2001: p. 36).

A racionalidade se relaciona com a forma com que os sujeitos

capazes de linguagem e de ação fazem uso do conhecimento e não somente

com a aquisição dele. Uma manifestação cumpre os pressupostos da

racionalidade, quando encarna um saber falível, guardando assim uma relação

com o mundo objetivo e sendo acessível a um julgamento objetivo

(HABERMAS,I, 2001,: p. 24; 26).

Se partirmos da utilização não comunicativa de um saber

proposicional estamos tomando uma pré-decisão em favor do conceito de

racionalidade cognitivo instrumental, o qual tem a conotação de uma auto-

afirmação com êxito no mundo objetivo possibilitada pela capacidade de

manipular e se adaptar às condições de um entorno contingente. Por outro

lado, se partimos da utilização comunicativa do saber proposicional estamos

tomando uma pré-decisão em favor de um conceito de racionalidade mais

amplo, cuja conotação remonta à capacidade de reunir sem coações e de gerar

consenso (HABERMAS, I, 2001, 27).

Enquanto, no agir instrumental, a linguagem se limita a

instrumento de transmissão de informações, no agir comunicativo a linguagem

aparece como fonte de integração social, geradora de entendimento. E, se a

ação comunicativa pressupõe a linguagem como um meio de se chegar ao

entendimento, ou seja, há na linguagem um núcleo universal.

Mas esses tipos puros de ação são casos limites. As

manifestações comunicativas estão inseridas simultaneamente nas diversas

relações com o mundo. Segundo Habermas: “falante e ouvintes empregam o

sistema de referência que constitui os três mundos como marco de

interpretação dentro do qual elaboram as definições comuns de sua situação

de ação” (HABERMAS, II, 2001, 171).

Como explica McCarthy, a chave da noção habermasiana da

obtenção de um acordo é a possibilidade de fazer uso de razões com que

possa chegar a um reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validade

suscetíveis de crítica e esta possibilidade se dá nas três dimensões acima.

Assim, a prática comunicativa possibilita aos participantes entrarem num

processo argumentativo, no qual permanece sempre aberta a possibilidade de

identificar e corrigir os erros, ou seja, de aprender com eles (1998, 450-1).

Na proposta habermasiana, a razão é procedimental, pois

serão racionais não as proposições que correspondem à verdade objetiva, mas

aquelas que foram validadas num processo argumentativo. Por isso, entende-

se que o conceito ora analisado ao apontar para a capacidade de agir sem

coações e de produzir consensos mediante a fala argumentativa permite, que a

linguagem estabeleça um entendimento não só acerca dos objetos, mas

também sobre normas e formas de vidas que podem ser justas ou injustas. Daí

a possibilidade de representar um viés emancipatório.

No cotidiano de nossas vidas, agimos comunicativamente de

forma espontânea, mas também por necessidade. Porém, não basta o domínio

de um código lingüístico para se chegar ao entendimento, o mundo da vida

trata-se justamente do pano de fundo sob o qual uma interação, um ato de fala,

faz sentido. Habermas entende a sociedade como um mundo da vida

simbolicamente estruturado de tal forma que possibilita a reprodução das

convicções compartilhadas por uma comunidade.

Explica Velasco que, partindo desses dois conceitos da teoria

social contemporânea, o filósofo de Frankfurt constrói uma sociedade

articulada em dois níveis: da integração social e da integração sistêmica. A

primeira se dá no mundo da vida é mediada por valores, normas e pela

consciência dos indivíduos, na qual se insere a ação comunicativa. Já a

integração sistêmica parte de uma lógica própria, independente dos sujeitos, na

qual as ações se organizam formalmente e são determinadas por cálculos

interessados, sendo que hoje se cristalizou em dois subsistemas: o político e o

econômico, cujos meios de integração são respectivamente poder e dinheiro

(2000: p. 20-3).

Segundo Habermas, o conceito abstrato de mundo é condição

necessária para que os sujeitos, que atuam comunicativamente possam se

entender. O Mundo da Vida vem delimitado pela totalidade das interpretações,

que são pressupostas pelos participantes como uma saber de fundo, ou seja,

pelo contexto comum de suas vidas. Assim, as manifestações racionais são

plenas de sentido e inteligíveis em seu contexto (I, 2001, 30-1).

Porém, explica McCarthy que o enfoque do Mundo da Vida

tomado isoladamente, cai em um idealismo hermenêutico que conceitualiza a

sociedade da perspectiva dos participantes e permanece cego para as causas,

conexões e conseqüências localizadas além do horizonte da prática cotidiana.

Por isso, Habermas propõe que combinemos as duas perspectivas (Mundo da

Vida e Sistemas) e concebamos a sociedade como um sistema social que tem

que satisfazer suas condições de manutenção (1998: p. 468).

Isso ocorre em situações em que a ação instrumental e a

comunicativa não conseguem, pacificamente, resolver tais problemas existente

na manipulação de genes. Habermas, assim, admite a ação estratégica

instrumental, cuja função primordial consistiria em estabelecer as condições

materiais e políticas para que a ação comunicativa e, no contexto dela, o

discurso prático possam entrar em ação. (FREITAG, 1989: p. 38)

Conforme Velasco, os fundamentos da teoria de Habermas

pretendem evitar a expansão da racionalidade instrumental estratégica, típica

dos subsistemas política e economia, para o conjunto da vida social. Essa

colonização do mundo da vida, que consiste na subordinação aos imperativos

dos referidos subsistemas, destrói a infra-estrutura comunicativa daquelas

esferas que os homens não têm outra escolha senão agir em comum. (2000,

24).

Habermas desenvolve a ação comunicativa para a política, a

ética e o Direito, o qual considera válidas as normas de ação às quais todos os

possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de

participantes de discursos racionais.

Nessa concepção de democracia, a ética está relacionada à

ação política. A democracia concebe os instrumentos de participação e

discussão a qual a dignidade humana está na essência, não para constituir de

axiomas o discurso, mas como prerrogativa da liberdade e da igualdade nas

sociedades contemporânea.

Sendo assim, para a manipulação de genes humanos, a busca

de sentido de dignidade humana por mecanismos de participação política

poderá ter seu escopo na teoria habermasiana.

Na práxis tecno-científica, em especial na biologia molecular,

com o domínio técnico sobre as estruturas, formas e conteúdos da vida nas

espécies, há uma racionalidade tecno-instrumental da Modernidade. Isto

significa que a racionalidade da ciência e da técnica é, por essência, uma

racionalidade de dispor, uma racionalidade de dominação: estratégica.

A racionalidade instrumental-estratégica da biotecnologia

obedece aos critérios da competitividade e dominação, cujos fins estão em si

próprios e não na coletividade. Isso significa que o agir da biotécnica está

voltado aos resultados das pesquisas, tendo como fim o avanço do domínio da

técnica exclusivamente, o qual o próprio homem passou a ser objeto e perdeu

a condição de sujeito.

Já o agir comunicativo comporta uma racionalidade baseada

nos princípios de justiça e solidariedade, que busca seus fins nos entendimento

com a definição do interesse geral que pode interagir com outros sistemas no

mundo da vida cuja racionalidade é instrumental-estratégica, em especial com

o sistema tecno-ciência que busca os fins em si mesmo. (DUTRA, 2005, p. 57.)

Nesse contexto, a Teoria de Habermas pressupõe a

intervenção do agir comunicativo, no agir instrumental-estratégico por pelo

menos três dados: a competência comunicativa dos integrantes do grupo;

situações dialógicas ideais, livres de coerção e violência e, finalmente, um

sistema lingüístico elaborado que permita por em prática o discurso (teórico e

prático).

No discurso teórico são problematizadas e revistas as

afirmações feitas sobre os fatos; é reassegurado verbalmente o nosso saber

sobre o mundo dos objetos; é redefinida a verdade até então vigente e aceita

no grupo. No discurso prático são postas em cheque a validade e a justeza das

normas sociais que regulamentam a vida social. Nesse processo

argumentativo, em que cada afirmação precisa ser justificada, cada julgamento

defendido e reafirmada a validade das regras em questão, prevalece

unicamente o critério do melhor argumento, capaz de obter a aprovação dos

membros do grupo. Ambas as formas do discurso pressupõem interlocutores

competentes e verazes, atuando em situações dialógicas ideais, livres de

coação.

A questão da moralidade em Habermas insere-se, pois, no

corpo de sua teoria da ação comunicativa. Enquanto “questão” ela é elaborada

e repensada no contexto do discurso prático. Se para Kant o critério último da

moralidade se condensava no “imperativo categórico”, para Habermas ele se

radica no “processo argumentativo”, desencadeado pelo discurso prático. Essa

mudança de foco constitui a essência da “ética discursiva”.

Com a idéia de autonomia intrínseca a dignidade humana, não

é mais o sujeito moral kantiano que, seguindo seu dever, define

monologicamente o que possa ser considerado um princípio generalizável, mas

sim o grupo integrante de um discurso prático que dialogicamente elabora, à

base do argumento mais justo, correto, racional, o que possa ser considerado

um princípio universalizável. (CORTINA, 2001, p.231-232)

No procedimento argumentativo, todos os integrantes do

discurso participam, todas as vontades subjetivas são expressas, todas as

críticas e ponderações são consideradas, todas as conseqüências práticas são

antecipadas e todos os efeitos colaterais de uma possível ação, pesados. O

novo princípio regulador, a norma universal, que também será a máxima moral

de cada um, não é um dado a priori, mas o resultado último de um longo

processo argumentativo, viabilizado pelo discurso prático.

A ética discursiva corresponde a uma teoria de democracia

deliberativa, a qual está relacionada à ação política e, assim, pode significar

uma expressão da dignidade humana. A democracia, pressupõe uma ética

(dever ser) de participação política. A dignidade humana está na essência da

ação política como prerrogativa da liberdade e da igualdade na Configuração

de um Estado Democrático de Direito.

Em sua essência, a teoria habermasiana procura substituir o

imperativo categórico de Kant23 pelo procedimento da argumentação moral.

Dessa forma, o imperativo categórico é transformado em um princípio

universalizável, na situação dialógica ideal, perdendo sua autoridade como

critério moral absoluto “puro”. A ética discursiva sugere que somente podem

aspirar à validade, aquelas normas que tiverem o consentimento e a aceitação

de todos os integrantes do discurso prático.

Para que uma norma tenha condições de transformar-se em

norma geral, aspirando validade universal enquanto máxima da conduta de

todos os participantes do discurso prático, os resultados e efeitos colaterais

decorrentes da sua observância precisam ser antecipados, pesados em suas

conseqüências e aceitos por todos. Isto ocorre através de um procedimento

argumentativo em que prevalece o melhor argumento, respeitados todos os

demais à luz de sua maior coerência, justeza e adequação.

O caráter universal de uma norma ou princípio moral qualquer,

só se evidencia se tal princípio ou norma não exprimir meramente a intuição

moral de uma cultura ou época específica, mas sim um conteúdo que possa ter

validade geral, fugindo a toda e qualquer forma de etnocentrismo. (FREITAG,

1989, p. 36)

Segundo Habermas, nos discursos morais de fundamentação

das normas, os participantes buscam chegar a um consenso racionalmente

motivado acerca do que pode ser do interesse simétrico de todos os

implicados, o que permite que as forças dos melhores argumentos os

convençam da validade das normas (moral). Os discursos jurídicos são mais

restritos que os discursos morais, principalmente porque insere, além dos

princípios de universalização U e do discurso D, presente nos discursos

23

“O imperativo categórico declara a ação como objetivamente necessária por si, independentemente de qualquer intenção, quer, sem quaisquer outras finalidades, vale como princípio apodíco (prático).” (KANT, l, 1980, p.125).

morais, o princípio democrático. Isso significa que “somente são válidas as

normas jurídicas que podem ser aceita por todos os membros da comunidade

jurídica em processo discursivo de produção de norma jurídica, organizado

juridicamente”. (DURÃO, 2006: p.114)

2.2 A FATICIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO E A DIGNIDADE HUMANA:

UMA A TENSÃO PARA O BIODIREITO

A partir da intervenção do agir comunicativo no agir

instrumental-estratégico da biotecnologia, o paradigma procedimental

habermasiano poderá propor a construção do conceito de dignidade humana

para uma realidade de manipulação de genes humanos.

A teoria da ação comunicativa habermasiana, abordada em

seus elementos no tópico anterior, foi elaborada com base na sociedade

moderna e sua complexidades geradas. Essas sociedades complexas podem

ser expressas nas diversidades de sistemas sociais no mundo da vida, a qual

se inseriu as descobertas tecnológicas e científicas. E nessas sociedades

complexas há basicamente duas formas básicas de racionalidade: a

comunicativa e a instrumental (estratégica).

A racionalidade comunicativa se nutre das relações de

solidariedade presente na comunicação cotidiana entre os indivíduos, por isso,

permite que os falantes apresentem no ato de fala um conteúdo regulativo com

intuito de validade. São atos regulativos correspondentes as normas

orientadoras dos agentes sociais. Já a racionalidade instrumental se orienta

pelo dinheiro ou o poder, ou seja, são as ações pautadas no êxito econômico e

político dadas as situações fáticas

Entretanto, a racionalidade comunicativa, ante as condições

das sociedades complexas tal como o interesse econômico das negociações

da biotecnológica, torna-se impotente para essas relações de entendimento e

solidariedade em sistemas econômicos e científicos, pois a solidariedade

compete com o dinheiro e o poder ente si como meios para orientar a ação

social nesses sistemas.

Assim, o modelo de integração social para sociedade

complexa, na teoria desenvolvida por Habermas, está no papel de

complementaridade que pode ser desenvolvida pelo direito nas relações

sociais. Os sistemas jurídicos interagem tanto com a ação estratégica,

orientada pelo êxito e na análise do custo e benefício das situações fáticas,

eugenia liberal, por exemplo, bem como comporta as ações orientadas pelo

entendimento recíproco e cooperação, a validade.

O código lingüístico do direito permite, assim, uma intercessão

da ação comunicativa nos sistemas econômicos, políticos e científicos porque

traduz a tensão de faticidade e validade das ações na validade da lei. Ou seja,

é a coerção exercida pelo direito para fins de entendimento que pode servir de

instrumento para intervir no agir estratégico presente no negócio jurídico

envolvendo a manipulação de genes que tem como orientação o lucro, a

eugenia liberal. Ao traduzir para esses os sistemas econômicos e científicos a

expressão comunicativa, por exemplo, sobre dignidade humana o direito

desempenha uma função de controle sobre o biopoder.

Segundo Habermas a tensão entre faticidade e validade, sobre

a qual o direito24 está e pelo qual realiza a interação social com o agir

comunicativo e o agir estratégico, pode ser interna e externa. (Habermas, I,

24

O direito se transformou em um sistema social responsável pela interação social, na medida

em que faculta tanta a racionalidade estratégica dos agentes que cumpri a lei por temor quanto

à racionalidade comunicativa daqueles que cumpri por respeito à convicção e, por isso, permite

traduzir a linguagem comunicativa do mundo da vida para a linguagem estratégicas dos demais

sistemas e vice-versa.

2001: p. 190) O foco do presente trabalho está na tensão interna manifestada

em três níveis: na norma jurídica, nos sistemas de direitos e no estado

democrático de direito.

A norma jurídica é obedecida por temor social da coerção

prevista na lei. A ação estratégica calcula os custos de violação da norma e a

ação comunicativa analisa a sua legitimidade como reconhecimento da

convicção social.

Os sistemas de direito, pela teoria habermasiana, são

fundamentados na auto-regulação. Isto ocorre porque o direito não pode ser

fundamentado nas bases do direito natural teológico do período medieval. Os

sistemas de direitos, assim, têm suas bases nos processos democráticos pela

qual há a possibilidade de escolher as leis, sejam os indivíduos orientados pela

ação estratégica ou ação comunicativa.

A configuração do Estado Democrático representa a

procedimentalização das soluções para sociedade. Para preconizar um modelo

constitucional democrático, o Direito deve procedimentalizar a participação dos

indivíduos. Nesse sentido, a resoluções das leis, que culminam no conteúdo

jurídico da atividade biotecnológica, inclusive empresarial, deve ser legitimada

por uma formação de opinião pública dos indivíduos, ou seja, um ordenamento

jurídico motivado pelo consenso do ambiente social, ou seja, nos fundamentos

de uma democracia participativa deve haver o poder comunicativo dos setores

sociais nas decisões do poder.

Diante do desenvolvimento biotecnológico e suas

conseqüências, a garantia de participação política, por meio dos mecanismos

democráticos, nos regulamentos afetos a manipulação da vida humana,

importa uma realidade de todos.

A atividade da biotecnologia representa uma dimensão, que

atinge não só os sujeitos da relação jurídica obrigacional, os fatos recorrentes

aos negócios jurídicos na biotecnologia atingem a natureza, o homem

enquanto espécie e suas gerações. Os interesses envolvidos são além dos

individuais, ou seja, repercute em toda coletividade, pois atinge o homem como

gênero.

Os procedimentos de participação política nas decisões

representam uma forma de interação social nos domínio científicos e

econômico da biotecnologia, como parte da realização da justiça no modelo de

Estado Democrático de Direito.

Na dignidade da pessoa humana se funda os instrumentos de

participação do Estado Democrático de Direito, para vislumbrar uma proteção

nas dimensões corpórea e moral. (FABRIZ, 2003: p. 274)

O projeto humano e solidário da sociedade corrobora como

debate público e com a contextualização dos direitos humanos ante o

desenvolvimento científico e econômico. Assim, para conduzir a atividade

empresarial na biotecnologia, há necessidade de envolver todos os setores da

sociedade num debate emergente, pois os benefícios e danos desta afetam

toda a humanidade.

Entre o ordenamento, que diz respeito à dignidade da vida

humana e a biotecnologia existe um espaço, que deve ser ocupado pela

participação política para orientar a atividade econômica neste setor.

A autonomia pública é configurada pela participação política

dos indivíduos, a qual representa o poder comunicativo nos processos

democrático no paradigma procedimental.

A participação política pode ser definida como um projeto e

procedimento do Estado Democrático de Direito para as relações econômicas

da biotecnologia. O projeto está engajado e comprometido com a realidade de

onde ele nasce e, também, é um caminho a ser trilhado e que nos referencia

nas ações. Procedimento porque é dinâmico e não estático, acompanhando as

condições materiais e as contradições da realidade. Como procedimento e

projeto estão de acordo com o movimento da sociedade.

Numa democracia deliberativa, a autonomia privada, conciliada

com a autonomia pública, pode servir como importante elemento de conexão

entre as relações da biotecnologia e seus os limites para a preservação da

espécie humana.

3 A CONCILIAÇÃO ENTRE A AUTONOMIA PRIVADA E AUTONOMIA

PÚBLICA

Com a união entre os interesses de investimento do mercado e

a medicina genética, os laboratórios de pesquisas e as indústrias

farmacêuticas, ante a possibilidade de recombinar artificialmente os genes

humanos, objetivam tornar o desenvolvimento nesta área atrativo para o

mercado. Com isso, as expectativas de futuro para esse desenvolvimento

biotecnológico caminham para a prevenção de doenças graves pela

intervenção genética. Isto é, formas de seleção de caracteres genéticos

humanos desejáveis colocados como um serviço de saúde à disposição do

mercado.

Por essa razão é inegável que a manipulação de genes

propícia o surgimento de eugenias, nas quais existe uma linha tênue entre

favorecer a transmissão de caracteres considerados desejáveis para o gênero

humano e o evitar ou tratar doenças.

No primeiro capítulo, mencionou-se uma breve diferenciação

conceitual sobre eugenia positiva e negativa que convém retomar. Pois bem,

tem-se por eugenia negativa a finalidade terapêutica de doença hereditária no

sentido de favorecer a tratamento de doença, favorecendo os caracteres

genéticos desejáveis para a saúde humana. Já a eugenia positiva se trata da

intervenção relativo às características, ou seja, a seleção realizada pela

medicina genética de caracteres genéticos indesejáveis para um ser humano.

Neste sentido, a sutil diferença poder ser expressa entre o combater doenças

hereditárias (eugenia negativa) ou discriminar os doentes hereditários por

critérios de melhoramento da raça humana (eugenia positiva).

Diante do assombro da eugenia liberal, surgem intervenções

legislativas, em muitos países, tenta impor limites ao efeito discriminatório

gerado pela técnica de intervenção genética. Na França, foi estabelecido pela

Lei nº 2002-303, nos Artigos 16-13, que “ninguém poderá servir de objeto de

discriminação em razão de sua característica genética”. (SILVA, 2003: p.34)

Essa intervenção legislativa é um exemplo emblemático de

uma tentativa de coibir as conseqüências eugenistas do projeto

desenvolvimentista biotecnológico, atrelado aos investimentos de mercado.

Porém, pode-se considerar ineficaz e marginalizado essa forma de intervenção

estatal, tendo em vista que o avanço biotecnológico se realiza por meios

próprios e estratégicos sob argumento de prolongação da vida humana.

Assim sendo, a pesquisa biotecnológica progride, em muitos

países, fundamentando-se nas liberdades negativas do paradigma do Estado

Constitucional liberal, quais sejam, as premissas de liberdade de pesquisa

científica e da livre iniciativa.

Mas, a liberdade humana é ameaçada pela eugenia liberal, a

qual não se conhece limite entre o tratamento de doença humana e a seleção

artificial da espécie humana pelos que dominam a biotécnica

O risco presente na eugenia liberal expõe as deficiências do

sistema de direitos fundamentado, exclusivamente, na autonomia privada do

paradigma Constitucional liberal. Por isso, diz-se: “quem começa a fazer da

vida um instrumento e a distinguir entre o que é digno ou não viver perde o

freio”. (HABERMAS, 2004: p. 27)

A biogenética, unida ao interesse de investidores, resultou em

situações de pressão política sobre os governos para a normatização desta

atividade fundamentada apenas nos bem-sucedidos resultados de aumento da

produção de alimento e prolongamento da vida humana. Mas, a ausência de

espaço público de participação e discussão ampla sobre os temas da

biotecnologia interrompe o processo de esclarecimento na esfera pública e da

margem para uma instrumentalização da vida humana.

No Brasil, a Lei da Biossegurança nº 11.105/2005 é um

exemplo da dinâmica ameaçadora da esfera pública, que prejudica um projeto

de democracia deliberativa.

3.1 O MODELO BRASILEIRO DE REGULAÇÃO DA ATIVIDADE

BIOTECNOLÓGICA

No caso do Brasil, a Lei da Biossegurança nº 11.105/2005 foi

elaborada com um dos propósitos de regulamentar o Artigo 225, §1º, incisos II,

IV e V da Constituição Federal, reunindo quatro relevantes matérias diversas: a

pesquisa e a fiscalização dos organismos geneticamente modificados (OGM); a

utilização de células-tronco embrionárias para fins de pesquisa e terapia; o

papel, a estrutura, as competências e o poder da Comissão Técnica Nacional

de Biossegurança-CTNBio; e, por fim, a formação do Conselho Nacional de

Biossegurança–CNBS.

Trata-se de um conteúdo amplo e diverso no corpo de uma

mesma lei, o que adverte para uma superficialidade das discussões realizadas.

É evidente, então, que não houve a possibilidade de participação de todos os

setores sociais, considerando o breve tempo e a ausência espaço público para

debate combinado com uma diversidade de temas desta lei.

A Lei de Biossegurança partiu da regulamentação dos

transgênicos, em especial o plantio de semente transgênica, para se alcançar a

regulamentação de técnicas de reprodução humana assistida. O resultado

dessa regulamentação ocorreu conforme tanto os interesses de laboratórios e

de centros de pesquisas com células humanas como também para do

agronegócio. Isto é, a Lei de Biossegurança foi elaborada com um caráter

fragmentário e instrumental de setores da sociedade, que tinham interessem

próprios e individuais entre os diversos temas tratados.

Nessa Lei de Biossegurança pode-se ressaltar uma ausência

de critérios para a atividade biotecnológica devido à mistura de temas25

combinado com o poder26 discricionário da CTNBio.

25

Lei da Biossegurança nº. 11.105 / 2005, Artigo 1º Esta Lei estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização sobre a construção, o cultivo, a produção, a manipulação, o transporte, a transferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a pesquisa, a comercialização, o consumo, a liberação no meio ambiente e o descarte de organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, tendo como diretrizes o estímulo ao avanço científico na área de biossegurança e biotecnologia, a proteção à vida e à saúde humana, animal e vegetal, e a observância do princípio da precaução para a proteção do meio ambiente.

26 Lei da Biossegurança nº. 11.105 / 2005, Artigo. 14 Compete à CTNBio:

I – estabelecer normas para as pesquisas com OGM e derivados de OGM;

II – estabelecer normas relativamente às atividades e aos projetos relacionados ao OGM e seus derivados;

III – estabelecer, no âmbito de suas competências, critérios de avaliação e monitoramento de risco de OGM e seus derivados;

IV – proceder à análise da avaliação de risco, caso a caso, relativamente a atividades e projetos que envolvam OGM e seus derivados;

V – estabelecer os mecanismos de funcionamento das Comissões Internas de Biossegurança – CIBio, no âmbito de cada instituição que se dedique ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico e à produção industrial que envolvam OGM ou seus derivados;

VI – estabelecer requisitos relativos à biossegurança para autorização de funcionamento de laboratório, instituição ou empresa que desenvolverá atividades relacionadas ao OGM e seus derivados;

VII – relacionar-se com instituições voltadas para a biossegurança de OGM e seus derivados, em âmbito nacional e internacional;

VIII – autorizar, cadastrar e acompanhar as atividades de pesquisa com OGM ou derivado de OGM, nos termos da legislação em vigor;

IX – autorizar a importação de OGM e seus derivados para atividade de pesquisa;

X – prestar apoio técnico consultivo e de assessoramento ao CNBS na formulação da PNB de OGM e seus derivados;

XI – emitir Certificado de Qualidade em Biossegurança – CQB para o desenvolvimento de atividades com OGM e seus derivados em laboratório, instituição ou empresa e enviar cópia do processo aos órgãos de registro e fiscalização referidos no art. 16 desta Lei;

XII – emitir decisão técnica, caso a caso, sobre a biossegurança de OGM e seus derivados no âmbito das atividades de pesquisa e de uso comercial de OGM e seus derivados, inclusive a classificação quanto ao grau de risco e nível de biossegurança exigido, bem como medidas de segurança exigidas e restrições ao uso;

Com isso, o efeito imediato da Lei de Biossegurança foi

constituir como órgão regulador dos critérios de segurança a Comissão Técnica

Nacional de Biossegurança-CTNBio.

Por esse recorte sobre a Lei de Biossegurança, verifica-se um

dos efeitos imediato desta lei: a criação do poder discricionário da Comissão

Técnica Nacional de Biossegurança–CTNBio.

XIII – definir o nível de biossegurança a ser aplicado ao OGM e seus usos, e os respectivos procedimentos e medidas de segurança quanto ao seu uso, conforme as normas estabelecidas na regulamentação desta Lei, bem como quanto aos seus derivados;

XIV – classificar os OGM segundo a classe de risco, observados os critérios estabelecidos no regulamento desta Lei;

XV – acompanhar o desenvolvimento e o progresso técnico-científico na biossegurança de OGM e seus derivados;

XVI – emitir resoluções, de natureza normativa, sobre as matérias de sua competência;

XVII – apoiar tecnicamente os órgãos competentes no processo de prevenção e investigação de acidentes e de enfermidades, verificados no curso dos projetos e das atividades com técnicas de ADN/ARN recombinante;

XVIII – apoiar tecnicamente os órgãos e entidades de registro e fiscalização, referidos no art. 16 desta Lei, no exercício de suas atividades relacionadas a OGM e seus derivados;

XIX – divulgar no Diário Oficial da União, previamente à análise, os extratos dos pleitos e, posteriormente, dos pareceres dos processos que lhe forem submetidos, bem como dar ampla publicidade no Sistema de Informações em Biossegurança – SIB a sua agenda, processos em trâmite, relatórios anuais, atas das reuniões e demais informações sobre suas atividades, excluídas as informações sigilosas, de interesse comercial, apontadas pelo proponente e assim consideradas pela CTNBio;

XX – identificar atividades e produtos decorrentes do uso de OGM e seus derivados potencialmente causadores de degradação do meio ambiente ou que possam causar riscos à saúde humana;

XXI – reavaliar suas decisões técnicas por solicitação de seus membros ou por recurso dos órgãos e entidades de registro e fiscalização, fundamentado em fatos ou conhecimentos científicos novos, que sejam relevantes quanto à biossegurança do OGM ou derivado, na forma desta Lei e seu regulamento;

XXII – propor a realização de pesquisas e estudos científicos no campo da biossegurança de OGM e seus derivados;

XXIII – apresentar proposta de regimento interno ao Ministro da Ciência e Tecnologia.

§ 1º Quanto aos aspectos de biossegurança do OGM e seus derivados, a decisão técnica da CTNBio vincula os demais órgãos e entidades da administração.

§ 2º Nos casos de uso comercial, dentre outros aspectos técnicos de sua análise, os órgãos de registro e fiscalização, no exercício de suas atribuições em caso de solicitação pela CTNBio, observarão, quanto aos aspectos de biossegurança do OGM e seus derivados, a decisão técnica da CTNBio.

Esse modelo de normatização é assimétrico aos fundamentos

éticos democráticos, pois trata-se de um órgão, vinculado ao poder executivo,

decidindo, exclusivamente, sob a regulação da atividade biotecnológica.

Esse poder discricionário da CTNBio adverte para uma

ausência de representatividade popular na regulação da CTNBio e aponta para

uma ilegitimidade nestas forma de normatização.

Ante a ausência de critérios, objetivamente dispostos na Lei de

Biossegurança, combinado com uma variabilidade de temas tratado, a CTNBio

é o órgão que diretamente normativa a atividade biotecnológica ao para

autorizar ou não determinada atividade.

Em que pese haver uma necessidade de órgão de apoio

técnico para o poder executivo com essa comissão, a sua competência de

regular amplamente a atividade biotecnológica por meio de autorização e

certificação é assimétrica aos fundamentos éticos tanto para modelo de

democracia de representação popular e também para o modelo27 de

democracia de participação.

E nas palavras de Oswaldo Giacoia Junior “O novo imperativo

ético não se dirige (como o imperativo categórico de Kant) ao comportamento

do indivíduo privado, mas ao agir coletivo, sua destinação não é, portanto, a

27

O modelo elaborado para legitimar ideologicamente as teses sobre democracia, defendida nos Estados Unidos e Inglaterra, em medos da década de 40, corresponde ao modelo elitista / pluralista. Tal modelo sistematizado inicialmente por Joseph Schumpeter, no livro Capitalismo, socialismo e democracia, considera que a democracia é um método de escolha ou autorização de governos, ou seja, é aquele acordo institucional para chegar às decisões políticas em que os indivíduos adquirem poder de decisão por meio de uma luta competitiva pelos votos da população. O eleitor, neste sistema, é chamado para votar em que se apresenta como candidato.

Quanto ao modelo de democracia participativa, trata-se de um modelo de governo que a defende um funcionamento de uma democracia direta na base e com sistema representativo nos outros níveis de governo. As principais preocupações estão no modo de atingir esse modelo de democracia participativa assegurando aos eleitores as responsabilidades do Estado perante eles. (CORTINA, 2001: p. 94-98) Os avanços em direção à radicalização da democracia na sociedade tem ocorrido nos momentos em que a força organizativa populares consegue impor o alargamento dos direitos políticos e sociais.

esfera próxima das relações entre singulares, mas a do domínio da política

pública.” (2000, p.193-206)

Ao entender como proposta minimizar ou reverter os efeitos

perturbadores e irreversíveis do agir instrumental da biotecnologia por um

controle popular, o poder discricionário da CTNBio contraria esses

fundamentos éticos. Nesse modelo de regulação, além de não atender ao

modelo representação popular, obsta um plano de ampla participação social

como forma de radicalização democrática necessária nas decisões no âmbito

da biotécnica.

A participação popular nas decisões possibilita uma

racionalidade comunicativa e imprime a validade28 às normas jurídicas. Para

isso, Habermas concilia a autonomia privada com autonomia pública para a

procedimentalização das respostas, que devem ser dadas pelo Direito como

forma de resolver as tensões no Estado Democrático de Direito. (HABERMAS,

2001, p. 190)

28

Para Habermas, a tensão interna entre faticidade e validade do Direito Moderno se manifesta em três níveis: na norma jurídica, no sistema de direitos e no estado democrático de direito. No nível da norma jurídica, os destinatários do direito podem obedecê-la por temor da coerção prevista na lei, proveniente de sua vigência social (faticidade) ou pela convicção que procede do reconhecimento de sua legitimidade (validade), porque o direito moderno permite que os agentes, orientados pela racionalidade comunicativa do mundo da vida, sigam as normas jurídicas pelo reconhecimento de sua legitimidade, enquanto os agentes, regidos pela racionalidade estratégica dos sistemas, calculam os custos e benefícios de obedecê-la como um fato social, no qual os custos são representados pelas sanções previstas em lei, na forma de multa ou pena de reclusão, enquanto os benefícios emanam dos lucros e vantagens de violá-la. A tensão interna entre faticidade e validade se manifesta também no sistema de direitos, por meio do qual Habermas mostra como se distinguem os direitos fundamentais individuais, políticos e sociais. O sistema de direitos somente pode ser fundamentado através da auto-legislação democrática empreendida pelos próprios cidadãos, pois, dadas as condições pós-metafísicas da Modernidade, os cidadãos não são mais capazes de aceitar a fundamentação das normas jurídicas com base no direito natural teológico, que emana da vontade de Deus, ou a partir do direito natural racional, proveniente da razão natural. Contudo, o processo democrático também tem que permitir aos autores das leis a liberdade subjetiva de escolher os motivos para aprová-las orientados estrategicamente, assim como a possibilidade de alcançar racionalmente um consenso sobre a legitimidade da lei, comprometendo-se, em última instância, com a solidariedade engendrada pela ação comunicativa no mundo da vida, porque os direitos políticos de participação e comunicação são direitos subjetivos como quaisquer outros direitos. (DURÃO, 2006, p. 108)

Os direitos fundamentais da livre iniciativa e de liberdade da

pesquisa científica na esfera da autonomia privada coexistem e se conciliam

com a autonomia pública que representa a liberdade no âmbito de participação

política das decisões. As resoluções das leis, que culminam no conteúdo

jurídico da atividade biotecnológica devem ser validadas pela vontade geral, ou

seja, um ordenamento jurídico motivado pelo consenso do ambiente social nos

fundamentos de uma democracia deliberativa.

O Conselho Nacional de Biossegurança-CNBS29pode significar

a criação de espaço público, para o exercício da autonomia pública, no âmbito

da biotecnologia. O exercício da autonomia pública, com a aplicação do

Princípio do Discurso e o Princípio da Universalidade, está no bojo da ética

discursiva para orientar as condutas na esfera da autonomia privada.

Embora a Lei de Biossegurança tenha disposto sobre a

formação do Conselho Nacional de Biossegurança, não há uma

regulamentação para este último. Para isso, deve haver um novo tratamento

legal daquele disposto na Lei de Biossegurança, quanto à elaboração dos

conteúdos jurídicos para a atividade biotecnológica.

Esse novo tratamento legal deve inserir a participação do

CNBS, no âmbito de competência de regulamentação da atividade

biotecnológica. Assim, deslocando a competência regulatória atribuída à

29

Quando no século passado se manifestou o contraste entre liberais e democratas, a corrente democrata levou a melhor obtendo gradual, mas inexoravelmente a eliminação das discriminações políticas a concessão do sufrágio universal. Hoje, a reação democrática consiste em exigir a extensão de participação nas tomadas de decisões coletivas para lugares diversos daqueles em que se tomam as decisões políticas. Consiste em procurar conquistar novos espaços para a participação popular e, portanto, em provar a passagem da fase democrática de equilíbrio para a fase da democracia de participação. (LIBERATI, CYRINO, 2003, p. 86-87). Por exigência da participação entre representação de governo e da sociedade civil nesse novo organismo, surgiu no campo do ordenamento jurídico, um novo perfil, um novo canal institucional, os Conselhos de Direitos. Esses canais de participação direta do povo asseguram uma verdadeira co-gestão, um exercício partilhado do poder político entre governantes e sociedade civil. A origem formal dos conselhos pode ser reconhecida na Constituição de 1988 no Artigo 204, inciso II.

CTNBio pela atual legislação. A principal regulamentação da atividade

biotecnológica poderá ser realizada por deliberações desse conselho.

A CTNBio, pelo seu caráter técnico, poderá servir de órgão de

apóio ao conselho. Pois, poderá desenvolver um processo de esclarecimento

da informação para os mecanismos legais de participação na gestão

democráticas. Assim, nesse modelo político, reconhece dois requisitos básicos

para o cidadão agir paritariamente junto ao poder público: ativismo político e

compreensão técnica. O primeiro diz respeito à capacidade de formular ações

de finalidade pública. Já o segundo significa entender as ações que envolvem o

agente público.

Por essa razão, há uma necessidade de um trabalho

educacional no conselho, que pode ser desenvolvido pela CTNBio dentro das

deliberações do CNBS. Tendo em vista o grau elevado de compreensão

técnica nos debates e possibilidade de ampla participação de sujeitos no

debate, que não dominam as informações debatidas, a CTNBio pode ser

fundamental para a democracia participativa no papel educador pelo seu

domínio do conhecimento sobre a biotécnica.

O caráter regulador deste Conselho importa para configurar

uma política deliberativa de Estado Democrático de Direito e consolidar os

direitos políticos, bem os direitos fundamentais no âmbito da biotecnologia.

Com isso, há, estrategicamente, com fim próprio de conter os

abusos da atividade biotecnológica, a procedimentalização pelo Direito30 de um

agir comunicativo com os fundamentos da Ética Discursiva Habermasiana.

Assim, a elaboração de conteúdos jurídico da biotecnologia poderá pressupor

um exercício da autonomia privada conciliada autonomia pública, ou seja, a

30

Em tempos pós-metafísicos e secularizados, a força coercitividade do Direito o constitui como o instrumento que melhor garante a integração social detentor de um poder unificador equivalente à religião. (ARROYO, 2000, p. 84)

intersubjetividade e comunicação no Biodireito.

Para tanto, é preciso refletir sobre os modelos de elaboração

de norma, que contrariam os parâmetros democráticos das decisões políticas

como ocorre com a Tecnocracia da CTNBio.

Numa Democracia representativa, os critérios normativos para

a atividade biotecnológica devem ser elaborados pelo poder legislativo. Porque

sendo o conteúdo de relevância social da Lei de Biossegurança, a matéria é de

competência legislativa do Congresso Nacional – órgão de representação

popular e não um órgão tecnocrata do Poder Executivo. O retorno da

regulamentação para o legislativo seria simétrico ao patrão ético-jurídico do

atual modelo democrático.

Mas, a proposta de radicalização democrática, como premissa

para conter os abusos da atividade biotecnológica, conduz ao padrão ético de

participação política dos indivíduos. Isto aponta a necessidade de criação de

espaços públicos, o que converge para os fundamentos da ética discursiva

habermasiana.

Ambos os modelos democráticos (representação política e

participação direita política) se opõem à idéia de órgão tecnocratas do poder

executivo decidindo, exclusivamente, sobre temas que afetam os interesses de

toda humanidade.

A formação de um Conselho Nacional de Biossegurança-CNBS

pela Lei de Biossegurança aponta um caminho porque cria procedimentos para

haver uma racionalidade comunicativa.

Resta a regulamentação deste Conselho para instituir um

espaço público de participação nas decisões política sobre biotecnologia. A

partir da intersubjetividade e da comunicação, as quais são elementos da ética

discursiva habermasiana, é possível objetivar o dever ser da atividade

biotecnológica num modelo de democracia deliberativa.

3.2 A PROCEDIMENTALIZAÇÃO DAS RESPOSTAS ENTRE AS

NEGOCIAÇÕES E A MANIPULAÇÃO DE GENES HUMANOS

A dinâmica do projeto desenvolvimentista biotecnológico colide

com os processos evolutivos de liberdade do paradigma Constitucional Liberal,

pelo qual se sustentam as pesquisas e os investimentos privados atrelados.

E nesse contexto das sociedades complexas, em que estão

presentes as possibilidades e riscos do desenvolvimento biotecnológico, tal

como a onda eugenista, a autonomia privada da pessoa de direito só pode

sobreviver com a criação dos espaços de participação política com o uso de

autonomia pública. A autonomia pública é a atuação dos sujeitos no Estado ao

desempenharem seu papel de cidadão para defesa dos direitos fundamentais

na manifestação das liberdades da autonomia privada.

Em tempos pós-metafísicos e secularizados, a força

coercitividade do Direito o constitui como o instrumento, que melhor garante a

integração social, detentor de um poder unificador equivalente à religião.

(ARROYO, 2000, p. 84)

Sendo assim, a proteção jurídica sobre vida humana, neste

contexto biotecnológico, poderá impor limites à manipulação de genes

humanos por meio das reflexões da esfera pública31 esclarecida para orientar

as ações política.

Para isso, apresenta-se o paradigma procedimental com a

gênese lógica dos sistemas de direito no Estado Democrático de Direito. E o

pensamento de Habermas se coloca a esse respeito:

A autonomia privada e a autonomia pública pressupõem-se mutuamente. A conexão interna entre democracia e Estado de direito consiste em que, por um lado, os cidadãos apenas podem fazer um uso adequado de sua autonomia pública se graças a uma autonomia privada assegurada são suficientemente independentes; e por outro lado, só podem obter um equilibrado exercício de sua autonomia pública. Por isso os direitos fundamentais e os direitos políticos são indivisíveis. (HABERMAS, 2002, p. 293)

O paradigma procedimental vislumbra uma complementaridade

entre o direito e a ação política do cidadão. Isso significa que a autonomia

privada, que está no centro das reflexões da crise dos dois paradigmas, para o

direito privado – liberal e estado social, bem como dos riscos da manipulação

genes humanos, deve ser conexa com a autonomia pública. Ou seja, a

democracia deliberativa é o modelo que tem em vista o nexo interno entre a

autonomia privada e autonomia pública.

Para tanto, os elementos fundamentais deste paradigma estão

na ligação entre a democracia e dignidade humana, ou seja, uma relação entre

política e ética.

Nessa direção, busca-se um fundamento teórico para a

31

“A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas de temas específicos” (HABERMAS, I, 2001: p. 92)

proposição, que afirma ser a democracia a expressão mais adequada da

dignidade humana. Tal proposição sugere uma articulação teórica, que busca

uma unidade orgânica entre ética e política, com a idéia de democracia

intrínseca a dignidade humana.

A ética discursiva, a partir de teoria da ação comunicativa de

Habermas, compõe uma unidade orgânica entre a política e a ética para

filosofia política.

Em sua Teoria da ação comunicativa (1981-1983) Jürgen

Habermas se propõe a pensar em uma nova totalidade, os três mundos (dos

objetos, das normas e das vivências subjetivas), desmembradas pelas críticas

da razão pura de Kant.

A razão comunicativa, proposta por Habermas, é

essencialmente dialógica, substituindo o conceito monológico da razão pura de

Kant. Ela não mais se assenta no sujeito epistêmico, mas pressupõe o grupo

numa situação dialógica ideal. A verdade produzida nesse novo contexto é

processual e depende dos membros integrantes do grupo. Nesta nova

concepção da razão comunicativa a linguagem torna-se elemento constitutivo.

Torna-se possível, através dessa linguagem, questionar a

verdade dos fatos (do mundo objetivo), a correção ou justeza das normas (do

mundo social) e a veracidade do interlocutor (mundo subjetivo). Habermas

chama de “discurso” esse questionamento das “aspirações de validade”

embutidas na comunicação quotidiana. É um processo argumentativo,

acompanhado do esforço de restabelecer um uso sui generis da linguagem,

que exige a argumentação e a justificação de cada ato da fala por parte dos

interlocutores participantes da interação.

A crise do direito privado integra o colapso do próprio Estado

de Direito, provocada pelas mudanças estruturais da sociedade pós-metafísica.

Essas transformações correspondem à pluralidade de idéias e as inovações

sociais, culturais e tecnológicas, que permitiram diagnosticar que o paradigma

de direito formal burguês, segundo a qual somente a justiça individual para

assegurada na forma de liberdade contratual, é ineficiente. Do mesmo modo,

percebe-se por esse diagnóstico de crise, que é inadequado o modelo de

intervenção estatal do paradigma do Estado Social. Essa crise do Estado de

Direito reside, essencialmente, na ausência da conexão entre autonomia

pública e a privada, que está no bojo da liberdade humana situada nas

relações intersubjetivas.

Por essa assertiva é inaceitável a idéia liberal de que a

liberdade de um termina onde começa a do outro, pois a liberdade não pode

ser isolada e está entrelaçada e, necessariamente, inserida no outro. Assim

como não se pode conceber, que ativismo estatal do estado social, possa

ocupar todas as possibilidades de atuação política dos sujeitos.

A luta por direitos, sobretudo o direito à vida, preserva as

conquista de liberdade do estado liberal, bem como se nutre os valores

solidariedade do Estado social e se consolida na criação de espaços públicos

de participação dos sujeitos.

Nesse sentido, a seguir far-se-á breve reflexão sobre a

Constituição, com o tratamento dado sobre participação social, no modelo de

Estado de Direitos, de modo a vislumbrar a criação da participação social, nos

temas tocantes a biotecnologia, em especial a manipulação de genes humanos

no próprio ordenamento.

3.3 O MODELO DE PARTICIPAÇÃO CONSTITUCIONAL

No Parágrafo único do Artigo 1º da Constituição de 1988 está

estabelecido: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus

representantes eleitos ou diretamente nos termos desta Constituição”.

Por este dispositivo constitucional pode se extrair duas

espécies de participação: a indireta e direta. A indireta se refere ao sufrágio

universal para a escolha de representantes, que exercerá o poder político pelo

povo. O voto do cidadão, então, representa a titularidade do poder estatal ao

povo. Mas, além disso, a Constituição de 1988 reconheceu como fundamental

a liberdade de participação política do sujeito do poder, de forma direta, nos

casos previstos no próprio texto constitucional, pelo que pode se denominar

como reserva de poder.

Isto é, a despeito da tendencial concentração do poder em

instituições legitimadas, há uma reserva de poder com exercício direto do

cidadão. Tratando do assunto, FIGUEIREDO escreveu:

[...] essa reserva de poder se expressa de duas maneiras: pela limitação, que é reserva de ação, se restringido a quantidade de poder concentrada, e pelo controle, que é a reserva de reação, garantindo-se, no que possível, que o poder concentrado não se voltará contra os interesses que deveria sustentar, inclusive o respeito à própria limitação que lhe foi imposta como condição da concentração. (LIBERAT; CYRINO, 2003, p. 85).

Nesse sentido, a Constituição de 1988 assegurou canais de

participação direta, que dizem respeito tanto aos limites (reserva de ação)

quanto ao controle (reserva de reação). São estes, por exemplo, o plebiscito, o

referendo e a iniciativa popular. Além destes, há também outros mecanismos

como o das ações populares.

Os canais mencionados acima constituem-se em exercícios

eventuais de participação, que não se referem ao cotidiano da sociedade. Mas,

também há no texto constitucional outros canais de participação mais

eficientes, eficazes, de maior abrangência de legitimidade, capazes de garantir

a interação popular com a atividade do poder estatal, sob as perspectiva da

participação do cidadão na formação e controle de determinadas políticas

públicas.

Constitui-se em exemplos de participação de ação na

Constituição cotidiana da sociedade: as ações e serviços públicos de saúde

(Artigo 198, III); as ações governamentais de assistência social (Artigo 204, I e

II); e as ações relacionadas aos direitos da criança e do adolescente (Artigo

227).

E, ainda, a participação popular na formulação e controle

(reserva de ação e de reação) das políticas públicas, previstas na Constituição,

torna real a norma estatuída no parágrafo único do Artigo 1º, permitindo o

exercício do poder popular de forma direta.

O princípio democrático é o que assegura o exercício do poder

pelo povo e para o povo. O conceito de democracia, então, se assenta na

soberania popular e na participação, ou seja, no exercício do poder de forma

direta e indireta.

Além dessas formas de participação cidadã, poderão ser

criados novos canais e mecanismos de articulação entre sociedade civil e

esfera pública. Isto é, a criação de espaços públicos para debates.

O princípio participativo da democracia direta pode ser

percebido pelas ações de controle direto sobre os elementos locais imediatos,

complementados entre grupos de interesses nas políticas públicas. Dessa

forma, tal princípio se caracteriza pela participação direta e pessoal da

cidadania na formação dos atos do regulatório

Esses espaços públicos são importantes pólos de

conscientização participativa da cidadania em que a democracia, assim,

assume o status de direito cuja universalidade compõe-se precipuamente a

liberdade, igualdade e justiça. Disso resulta a construção democrática e

participativa, que abre o Estado a um conjunto de organizações sociais.

Esse exercício participativo é reconhecido como elemento da

cidadania presente nos fundamentos da República Federativa do Brasil, de

acordo com o que preceitua o inciso II, do Artigo 1º da Constituição da

República.

O conceito de cidadania, elaborado por T. H. Marshal, se

explica por um desenvolvimento histórico, dividindo em três momentos

(PANDOLFI, 1999, p.11-15).

O primeiro momento é aquele no qual foram afirmados os

direitos civis ou os direitos de liberdade. Num segundo momento o que se tinha

era o direito de participação política, então é a fase dos chamados direitos

políticos. E a terceira fase é aquela em que se firmaram os direitos sociais.

Dessa forma, Marshal defende que os direitos da cidadania não nasceram

todos juntos, mas foram se formando com o tempo.

O momento dos direitos civis surgiu no século XVIII, que são os

direitos necessários à liberdade individual como liberdade de ir e vir, de

imprensa, de pensamento e, ainda, os direitos à propriedade e à justiça. Esses

são os chamados direitos negativos ou contra o Estado, isto porque exigem

uma abstenção do Estado. Porque se tratava de dar liberdade aos indivíduos

num Estado Absoluto.

Essa abstenção, num primeiro momento, pode parecer que o

Estado não precisa fazer nada para garantia de determinado direito. O Estado

deveria simplesmente respeitar a atividade do cidadão. Ocorre que, pelo

simples fato de fazer com que aquele direito fosse respeitado, já exigia uma

atuação efetiva e concreta do próprio Estado. Ao pensar dessa maneira, pode-

se concluir que não há direitos negativos, pois todos eles exigem uma

prestação positiva do Estado. Mas, como se tratava de um Estado Absolutista,

esse era o primeiro estágio a ser ultrapassado e era tão sutil que, por vezes,

fazia parecer que o Estado não atuava.

O momento dos direitos políticos, ocorrido basicamente no

século XIX, é reconhecido pela possibilidade de o indivíduo participar do poder

político do Estado, ou seja, compreende o direito de votar e de ser votado

como meios de participação na esfera pública. Além disso, pode-se falar na

institucionalização dos parlamentos, nos sistemas eleitorais e nos sistemas

políticos em geral, que ajudam a formar os direitos políticos. Dessa forma,

aparece a democracia representativa como forma de legitimação do poder, por

meio de eleições.

Ainda neste período, o Estado de Direito se apresenta como

forma de realização da democracia, uma vez que num Estado de direito a

legitimidade dos atos do Estado provém de uma lei que determine sua atuação.

O momento dos direitos sociais se dá no século XX e se

desenvolve no momento em que havia um amplo desenvolvimento do Estado

do bem-estar social, principalmente na Inglaterra e Europa Ocidental.

Esses direitos sociais só vêm a se desenvolver após a

Segunda Grande Guerra e têm como referência às classes trabalhadoras e o

seu desenvolvimento a partir do Estado Providência.

No caso dos direitos sociais, o que se exige é uma ação eficaz

do Estado, para garantir políticas sociais para a sociedade. Se, naquele

primeiro estágio, o momento dos direitos civis, em que se dava a liberdade

para os cidadãos, a tarefa do Estado não parecia ser tão ativa, a ponto de se

dizer que se tratava de uma simples ação negativa do Estado, aqui, neste

terceiro momento, o dos direitos civis, o que se quer é uma atuação do Estado

para propiciar aos indivíduos pelo menos, adequada aos padrões de vida

daquele período histórico ou o que seria ideal, que fosse propiciado condições

de vida digna para todos.

Segundo Marshal a cidadania se aperfeiçoa quando ela se

aproxima da igualdade entre os cidadãos, ou seja, à medida que as pessoas

vão sendo cada vez menos desiguais entre si, elas vão atingindo o chamado

status da cidadania.

Esse estado de cidadania é um ponto, um local de igualdade

entre os indivíduos visto que, quando se fala em cidadãos, estabelece-se

direitos mínimos, dentro de um locus em que todas as pessoas são iguais, não

formalmente, mas há uma igualdade real, em direitos e obrigações.

Marshal não pretende, com isso, dizer que as desigualdades

irão se acabar com a cidadania. O que haverá é, pelo menos, uma igualdade

básica, suportada pelo sistema imposto pelo mercado. (PANDOLFI, 1999,

p.14).

E se pensa como Rousseau, no princípio da comunidade ou

vontade geral, o que deve haver é a atuação dos cidadãos em conjunto, para

que se alcance, não a igualdade formal, vez que esta já não basta, mas o que

se propõe é a busca de uma igualdade real, substantiva por meio da autonomia

pública. (DURÃO, 2006: p. 112)

Assim, pode-se considerar que sistema de direitos resulta do

mecanismo que autonomia pública regula uma tensão entre a sociedade civil e

o Estado, vez que por um lado, limita os poderes do Estado, por outro,

universaliza e igualiza as particularidades dos sujeitos de modo a facilitar o

controle social de suas atividades.

Verifica-se, então, que o sistema de direitos está ancorado na

participação na esfera pública, bem como na autonomia privada corresponde

às liberdades subjetivas de cada um dar seu assentimento nos espaços onde

exercem sua autonomia política. Sendo assim, a possibilidade de participação

direta no exercício do poder político confirma o nexo entre autonomia privada e

política como elemento essencial da democracia.

E dessa forma, essa noção de sistema de direitos pode ser na

Constituição de 1988 e pode significar a participação política diretamente

exercida nos temas da biotecnologia

Os mecanismos de participação social para um exercício

efetivo da democracia, criado pela constituição são os conselho, tal como o

Conselho Nacional de Biossegurança–CNBS, embora não regulamentado, mas

previsto na pela Lei de Biossegurança, em que os interlocutores necessários

do debate público têm maior poder de ingerência nestas decisões que irão

orientar a conduta biotecnológica.

Esse sistema de direito é essencial à existência de um Estado

de Direito, ou seja, a sua abertura à ampla participação política configura, por

seu turno, um Estado de Direito Democrático. As regras, por sua vez, que

estabelecem a convivência democrática pressupõe a existência de um Estado

submetido à legalidade, pois a legalidade é que precondição para que se

alcance plenamente a legitimidade.

Encontra-se na Constituição duas formas de organização do

poder, ambas centradas na distribuição de recursos de poder: distribuição

primária na qual os recursos de poder são distribuídos para o Estado e seus

órgãos; e a secundária cuja apropriação é facultada a diferentes agentes

políticos como os conselhos

Com esse modelo de Estado de Direito Democrático, pode-se

ampliar os mecanismos, que integram a participação política nos temas da

biotecnologia. Para tanto, na medida em que se desenvolvem os mecanismos

procedimentais de participação na gestão democrática, reconhecem dois

requisitos básicos para o cidadão agir paritariamente junto ao poder público:

ativismo político e compreensão técnica. O primeiro diz respeito à capacidade

de formular ações de finalidade pública. Já o segundo significa entender as

ações, que envolvem os sujeitos participantes do debate público.

Isso significa um processo de esclarecimento da esfera pública

quanto às questões debatidas. Para os temas da biotecnologia, em especial, os

esclarecimentos são fundamentais. O trabalho educacional a ser desenvolvido

é, então, essencial para a democracia participativa. Ademais, restritamente ao

tema da manipulação de genes, sem o nível adequado informação, a

participação popular não se desenvolve independentemente de haver

mecanismos legais e constitucionais para tanto.

O modelo democrático participativo constitui-se como meio e

fim para o acesso a informação e formação. É meio porque apresenta os

instrumentos de participação e envolvimento de toda a sociedade na tarefa de

formular e executar as políticas necessárias, e fim porque tem o objetivo de

criar oportunidades e incluir os indivíduos da sociedade no debate.

Por meio da procedimentalização da participação política, há

uma revitalização da capacidade de auto-regulação do sujeito, de maneira que

cada indivíduo possa conceber ou modificar o direito nos espaços de

participação.

E isto se relaciona com a dignidade humana, que desde muito

deixou de ser uma mera manifestação conceitual do direito natural do modelo

kantiano para se converter num direito fundamental para o sistema jurídico do

Estado Democrático de Direito.

Ao estabelecer um patamar mínimo de dignidade humana se

reconhece as necessidades básicas de sobrevivência humana, que é o direito

à vida, o direito de se alimentar, vestir, morar e, sobretudo, de acesso ao

conhecimento. A importância deste último ocorre pelo seu caráter

essencialmente humano de transformação, pois é o conhecimento que nos

liberta para criar possibilidades. O poder de ação dos indivíduos, munidos de

informação pode criar meios de transformação e construir soluções para os

problemas que a afetam o homem como gênero.

As possibilidades de mudança das normas e mesmo a auto-

compreensão sobre o ordenamento constrói a de participação política atrelada

ao acesso ao conhecimento, consolidando o direito à informação, à democracia

participativa e, sobretudo, a dignidade da pessoa humana no sentido da

emancipação política.

Contrariando os sistemas de exploração na sociedade para a

construção da fraternidade, os espaços públicos desenvolvidos pela sociedade

civil funcionam como centro de discussões e formulação de idéia para romper

com as estrutura de dominação como da biotécnica e do mercado.

O egoísmo humano mantém o sistema de exploração do

homem pelo homem, cultiva os privilégios e a concentração de poder e

informação na sociedade, reluta contra essas potencialidades de

transformação humana por meio do conhecimento e da ação política,

distribuindo, para tanto, entre a maioria dos homens a ignorância.

A apatia política e ausência da participação são combatidas

com o acesso ao conhecimento e os procedimentos de participação. E nesse

inter que se realiza a reconstrução dos sistemas de direitos, bem como a

consolidação do próprio estado democrático de direito, no qual ser digno é ter

sua liberdade humana protegida nos espaços onde ela tem sido mais

violentada, agredida ou ignorada.

CONCLUSÃO

O conhecimento humano tem duplicado a cada década. O

número de descobertas científicas dos últimos 30 anos é maior que toda

história da humanidade. Do mesmo modo, há o desenvolvimento das técnicas

na ciência da vida, com latentes interesses da atividade empresarial na área da

saúde. Isto propiciou a biotecnologia, impulsionada para patamares de

sofisticação por grandes investimentos advindo, principalmente, da iniciativa

privada na expectativa de lucro.

Nesse contexto, cabe ressaltar a idéia de negócio jurídico nos

paradigmas do liberalismo, que envolve uma plena liberdade para celebração

dos pactos e avenças, ou seja, uma autonomia da vontade, que revela a plena

liberdade de cada um para disposição dos interesses no negócio, de acordo

com a sua exclusiva vontade.

Na perspectiva do pacto político liberal, fundamentado na

autonomia da vontade e no individualismo, o desenvolvimento biotecnológico

pode produzir efeitos perturbadores, pois converge para uma subjetividade

individualista e limitada nos modelos de bem-estar e perfeição biológica e

corporal ofertados pela ciência, desvinculado dos valores sociais. Nesse

sentido, o prognóstico de SLOTERDIJK:

Se o desenvolvimento, em longo prazo, também conduzirá a

uma reforma genética das características da espécie – se uma

antropotecnologia futura avançará até o planejamento explícito

de características, se o gênero humano poderá levar a cabo

uma comutação do fatalismo do nascimento ao nascimento

opcional e à seleção no pré-natal – nestas perguntas, ainda

que de maneira obscura e incerta, começa se abrir à nossa

frente um horizonte evolutivo. (GEDIEL, 2002: p 56)

Noutra parte, o modelo de Estado Social considera a igualdade

em termos materiais em oposição ao individualismo e as desigualdades

substanciais do Liberalismo. Os direitos e obrigações encontram validade e

legitimidade em determinado paradigma constitucional, que expressa o

compromisso de uma dada sociedade. Entretanto, esse intervencionismo do

modelo de estado social resultou num paternalismo nas relações entre o

Estado e o cidadão, que interrompe o processo de ampliação de participação

política dos sujeitos.

O ordenamento jurídico deve dispor sobre o parâmetro do

direito à vida e à liberdade científica com o paradigma do Estado Democrático

de Direito, em que a comunidade estabelece as fronteiras entre o necessário e

o desnecessário, sobre o objeto tecno-científico, em especial ao se tratar da

vida humana.

Isto significa que para o direito poder responder e corresponder

aos riscos da atividade da biotecnológica, como dano gênico e eugenia liberal,

há a necessidade de uma nova configuração da autonomia privada no

paradigma estatal, qual seja, o desenvolvimento de uma autonomia pública

conciliada à autonomia privada do modelo de democracia deliberativa.

Nesse sentido, a resolução das leis, que culminam no conteúdo

jurídico da atividade biotecnológica, inclusive empresarial, deve ser legitimada

por uma formação de opinião pública dos indivíduos, ou seja, um ordenamento

jurídico motivado pelo consenso do ambiente social, nos fundamentos de uma

democracia participativa onde deve haver o poder comunicativo dos setores

sociais nas decisões do poder.

Diante do desenvolvimento biotecnológico e suas

conseqüências, a garantia de participação política, por meio dos mecanismos

democráticos, nos regulamentos afetos à manipulação da vida, importa uma

realidade de todos.

O desenvolvimento do conhecimento constitui-se um espaço

livre de criação; ao se ampliar liberdade cientifica aumentam a capacidade de

articulação de cada um em que toda coletividade deve aproveitar os resultados

obtidos. Mas, a atividade empresarial na biotecnologia representa uma

dimensão, que atinge não só os sujeitos da relação jurídica obrigacional, os

fatos recorrentes aos negócios jurídicos na biotecnologia, mas atinge a

natureza, o homem enquanto espécie e suas gerações. Nesse sentido, o direito

privado necessita repensar o Direito Privado no paradigma do Estado

Democrático de Direito.

Os procedimentos de participação política nas decisões

representam uma forma de interação entre a racionalidade comunicativa e a

racionalidade estratégica no domínio econômico da biotecnologia, legitimada

pelo Estado Democrático de Direito como parte da realização da justiça atenta

ao contexto social.

Na dignidade da pessoa humana (Artigo 1º, inciso III;

Constituição Federal) se fundam os instrumentos constitucionais e o fim da

sociedade e o Estado Democrático de Direito, para vislumbrar uma proteção

nas dimensões corpórea e moral. Acrescenta-se a isso o constante debate

social, a reafirmação da participação política e dos direitos fundamentais

contidos no texto constitucional, que devem orientar o agir individual e coletivo,

inclusive a atividade empresarial.

No contexto das sociedades complexas, em que estão

presentes as possibilidades e riscos com desenvolvimento biotecnológico, a

autonomia privada da pessoa de direito só pode sobreviver com a criação dos

espaços de participação política com o uso de autonomia pública. A autonomia

pública é a atuação dos sujeitos no Estado ao desempenharem seu papel de

cidadão para defesa dos direitos fundamentais na manifestação das liberdades

da autonomia privada.

No bojo destes fundamentos sobre autonomia pública e privada

está o conceito de liberdade humana, situada nas relações intersubjetivas,

diante das possibilidades de atuação política dos sujeitos. Por essa assertiva, a

liberdade não pode ser isolada e está entrelaçada e necessariamente inserida

no outro.

O projeto humano e solidário da sociedade corrobora como

debate público e com a contextualização dos direitos humanos, ante ao

desenvolvimento científico e econômico. Assim, para conduzir a atividade

empresarial na biotecnologia, há necessidade de envolver todos os setores da

sociedade num debate emergente, pois os benefícios e danos desta afetam

toda a humanidade.

O agir instrumental da atividade biotecnológica provoca um

desequilíbrio estrutural existente nas relações sociais. A autonomia pública,

conciliada com a autonomia privada, sob a abordagem da ética discursiva,

pode servir como importante elemento de estabilização relações sociais e,

assim, como limites para os abusos da atividade biotecnológica.

Para tanto, é preciso refletir sobre os sistemas de direitos, que

contrariam os parâmetros democráticos das decisões políticas. A proposta de

radicalização democrática, como premissa para conter os abusos da atividade

biotecnológica, conduz ao padrão ético de participação política dos indivíduos.

Isto aponta para a criação de espaços públicos, o que converge para os

fundamentos da ética discursiva habermasiana.

A formação de um Conselho Nacional de Biossegurança-CNBS

pela Lei de Biossegurança aponta um caminho para da ética discursiva porque

cria procedimentos de participação direta da sociedade

Resta a regulamentação deste Conselho para instituir um

espaço público de participação nas decisões política sobre biotecnologia. A

partir da intersubjetividade e da comunicação, as quais são elementos da ética

discursiva habermasiana, é possível objetivar o dever ser da atividade

biotecnológica num modelo de democracia deliberativa.

Entre o ordenamento que diz respeito à vida da espécie

humana e a biotecnologia existe um espaço, que deve ser ocupado pela

participação política para orientar a atividade econômica neste setor.

O Estado de Direito Democrático conserva a idéia de

autonomia pela a qual os homens são livres, na medida em que obedecem as

leis, servindo das noções obtidas num processo intersubjetivo. A dogmática

jurídica expressa uma tensão entre faticidade e validade, a qual o paradigma

procedimental habermasiana diverge do paradigma liberal e do Estado Social,

pois não apresenta uma determinada visão opção política, pois ele é formal e

submete-se à condição de discussão contínua.

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