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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA CENTRO DE HUMANIDADES CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE MARIA LINEKELY DA SILVA AGUIAR “COMUNGAR É TORNAR-SE UM PERIGO!”: A POLÍTICA DE CULTURA DOS JOVENS EM BUSCA DE DEUS (JBD) E O DESENVOLVIMENTO DA CIDADANIA CULTURAL NO LAGAMAR, FORTALEZA-CEARÁ. FORTALEZA CE 2016

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

CENTRO DE HUMANIDADES

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE

MARIA LINEKELY DA SILVA AGUIAR

“COMUNGAR É TORNAR-SE UM PERIGO!”: A POLÍTICA DE CULTURA DOS

JOVENS EM BUSCA DE DEUS (JBD) E O DESENVOLVIMENTO DA CIDADANIA

CULTURAL NO LAGAMAR, FORTALEZA-CEARÁ.

FORTALEZA – CE

2016

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MARIA LINEKELY DA SILVA AGUIAR

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade do Centro de Estudos Sociais Aplicados da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de mestre em Políticas Públicas e Sociedade. Área de Concentração: Políticas Públicas e Sociedade.

Orientador: Prof. Dr. Alexandre Almeida

Barbalho

FORTALEZA – CEARÁ

2016

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Aos meus pais, Concebida e Severino.

A força e o amor!

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AGRADECIMENTOS

Este trabalho foi viceralmente coletivo, nunca a frase “uma andorinha só não faz

verão” fez tanto sentido em minha vida. Só tenho a agradecer:

À Deus que sempre é tão generoso e firme em suas promessas com essa filha que

vos fala, dando força, concentração, disposição e inspiração para mais esta

empreitada no campo da pesquisa e da vida.

Ao Lagamar, berço do ser social que sou. Todo meu orgulho e gratidão por ter

nascido e vivido neste lugar tão aguerrido e resistente, fermento para minhas

indagações desde sempre. Nunca deixarei de exaltar as belezas das minhas origens

e lutar para que elas se multipliquem e sejam vistas por outros, por todos!

À Família JBD por ter me acolhido e realizado este trabalho (que não é mais meu do

que deles), junto comigo. Cada vez mais “força pra lutar e fé para vencer”, meus

amigos! Continuo no fã clube e na torcida. Contem comigo sempre nessa batalha

por um Lagamar, um mundo, melhor!

Aos meus pais que lutaram e lutam por mim, por acreditarem mais em mim que eu

mesma, pela força, disciplina, carinho e amor desde sempre. Sem esse casal eu não

teria conseguido nada em minha vida. Vocês são meus exemplos e amores!

A minha irmã, Linekelvia Aguiar por me ensinar a ser paciente e tolerante. Apesar

das diferenças físicas, de gosto musical, gastronômico e em inúmeros outros

campos, sei que viemos do “mesmo lugar” e estarei sempre ao seu lado.

A minha família “Silva” e “Aguiar” e a todos (as) os (as) amigos (as) em geral, que a

cada pergunta e incentivo sobre o trabalho fizeram a diferença neste processo.

À família “Alves Pires” pela alegria, admiração e apoio logístico nesta pesquisa,

pelos lanches, almoços, “dormidas” e caronas tarde (no meio) da noite.

Aos meus presentes Ueceanos: Larissa Tainah, Rebecca Rocha, Mônia Gadelha e

Bruna Jucá, que (como sempre) ouviram meus lamentos e alegrias e ainda, toparam

gastar encontros raros falando de pesquisa. Sem vocês eu não seria tão feliz. Nós

vamos longe!

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Agradeço imensamente ao meu amigo, namorado e agora noivo, Lucélio Pires, não

apenas pelo carinho e cumplicidade, mas também pelo esforço em facilitar os

contatos e informações da pesquisa, pelas caronas de volta para casa tarde da

noite, apoio logístico e até financeiro e ainda, pelas fotos que deram noção espacial

e histórica a este trabalho. Com você aprendi o real significado da palavra

“companheiro”. Te amo!

A todos (as) os (as) professores (as) do MAPPS que contribuíram para a formação

de mais uma mestra em Políticas Públicas e Sociedade, e mesmo com as

dificuldades que a educação superior, sobretudo a pós-graduação, enfrenta em

nosso país, conseguem colaborar no desenvolvimento de uma formação pública,

gratuita e de qualidade. Particularmente à professora Helena Frota por ter me

aceitado no estágio em docência e pelas contribuições sociológicas desde a

graduação.

A todos os (as) funcionários (as) do MAPPS e do CESA, em especial a Cristina

Medeiros pelos esforços em tornar processos burocráticos em simples e pela

solicitude em nos atender com prontidão.

Aos meus colegas da turma do MAPPS de 2014 pelas discussões, refeições,

passeios e trocas vivenciadas, em especial às parceiras Leilane Cavalcante,

Amanda Barbosa, Antônia Laureano e Antônia Iara pela companhia e partilha de

alegrias e angústias.

Às pofessoras Rosemary Almeida e Andrea Pinheiro por se disponibilizarem desde a

qualificação do meu trabalho a contribuirem de forma tão séria e terna. Muito

obrigada!

Ao professor Alexandre Barbalho, pela disponibilidade, pelos emails respondidos

prontamente e pela seriedade e respeito por mim e pelo meu trabalho. Posso dizer

que o sonho de ser sua orientanda (alimentado desde os primeiros semestres da

graduação) foi realizado com sucesso e superação das expectativas. Muito obrigada

pelas orientações, indicações, livros e tudo mais, meus sinceros agradecimentos!

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A utopia está lá no horizonte.

Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos.

Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos.

Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei.

Para que serve a utopia?

Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar...

(Eduardo Galeano)

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RESUMO

O grupo Jovens em Busca de Deus (JBD) é um grupo de jovens ligados à Igreja Católica que atua há quase 18 anos na comunidade do Lagamar, em Fortaleza, CE, através de ações religiosas, artísticas, culturais e políticas. O trabalho aqui proposto visa analisar como as atividades do JBD se configuram enquanto política de cultura e contribuem para o desenvolvimento da cidadania cultural na referida comunidade. A metodologia utilizada se baseou no exercício etnográfico para registro e análise de reuniões administrativas, eventos, encontros de catequeses, e, de forma especial, produção, ensaios e apresentações da quadrilha junina “Queridinhos do Lagamar” e da peça de teatro “Via Sacra”. Através da realização de 8 entrevistas, aplicação de 33 questionários, da observação participante, registros em diários de campo, observou-se que o JBD se caracteriza como instrumento importante de acesso a discussões e ações políticas, novas formas de socialização, a convivência e trabalhos coletivos, apresentações e criações artísticas, etc., pondo em prática políticas de cultura, viabilizando direitos culturais e assim, o desenvolvimento da cidadania cultural na comunidade. Palavras-chave: política de cultura, direitos culturais, cidadania cultural.

ABSTRACT

The Jovens em Busca de Deus (JBD) is a group of young people linked to the

Catholic Church that has been operating for almost 18 years in the Lagamar

community in Fortaleza, CE, through religious actions, artistic, cultural and political.

The work proposed here aims to analyze how the JBD activities are configured as

cultural politics and contribute to the development of cultural citizenship in that

community. The methodology used was based on ethnographic exercise for

recording and analysis of administrative meetings, events, catechetical meetings,

and in a special way, production, rehearsals and performances of quadrilha junina

“Queridinhos do Lagamar" and the play "Via Sacra". Through the realization of eight

interviews, application of 33 questionnaires, participant observation, records in field

diaries, it was observed that the JBD is characterized as an important instrument of

access to discussions and political action, new forms of socialization, living and work

collective, presentations and artistic creations, etc., by implementing cultural politics,

enabling cultural rights and thus the development of cultural citizenship in the

community.

Keywords: cultural politics, cultural rights, cultural citizenship.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...................................................................................................... 13

1.1 LOCAL DA PESQUISA: O LAGAMAR E O JBD.................................................14

1.2 PERCURSO METODOLÓGICO..........................................................................24

1.2.1 Pesquisa em campo: limites e possibilidades.............................................26

2 O “JESUS ABANDONADO” E A LUTA POR CIDADANIA NO LAGAMAR........30

2.1. OS MOVIMENTOS SOCIAIS NO LAGAMAR E A LUTA PELA CIDADANIA ....30

2.2. “EU QUERO SER JOVEM EM BUSCA DE DEUS!”...........................................41

2.3. O “JESUS ABANDONADO”................................................................................44

2.4. ENTRE GERAÇÕES: “SENHORAS” E “MENINOS”...........................................49

2.5. A MUDANÇA DE OLHAR PARA O ‘SOCIAL’ OU O “SÓCIO-ESPIRITUAL”..... 54

2.5.1. As “catequeses sociais’’...............................................................................58

3 JOVENS EM BUSCA DE ARTE: DE CONSUMIDORES A PRODUTORES DE

CULTURA E POLÍTICA............................................................................................63

3.1. QUEM SÃO OS JOVENS EM BUSCA DE DEUS?............................................65

3.2. OS DESAFIOS DE SER JOVEM EM BUSCA DE DEUS...................................73

3.3. PARTICIPAÇÃO POLÍTICO-CULTURAL DOS JOVENS: A ARTE MUDANDO

OLHARES..................................................................................................................79

3.3.1. A casa do Grupo............................................................................................87

3.3.2. O Abraço da praça..........................................................................................93

4 “COMUNGAR É TORNAR-SE UM PERIGO!”: A POLÍTICA DE CULTURA DO

JBD E A CIDADANIA CULTURAL NO LAGAMAR..................................................97

4.1. POLÍTICA CULTURAL X POLÍTICA DE CULTURA.........................................101

4.2. A CIDADANIA CULTURAL E OS DIREITOS CULTURAIS...............................105

4.2.1. A “Via Sacra” e os “Queridinhos” como instrumentos da Cidadania

Cultural no Lagamar...............................................................................................110

4.2.1.1. A “Via Sacra”...............................................................................................110

4.2.1.2. “Queridinhos do Lagamar”...........................................................................119

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................129

REFERÊNCIAS ......................................................................................................132

ANEXOS .................................................................................................................141

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1. INTRODUÇÃO “Lagamar! Povo carente. Lagamar! Povo Valente!”

(Pretos MC’s)

O trabalho ora apresentado consiste no esforço de uma “ex”-moradora do

Lagamar (Fortaleza, Ceará) em mudar a lente de contato ao olhar a comunidade

onde nasceu, agora, como pesquisadora de sua própria história.

A aproximação com o tema das políticas culturais deu-se a partir de

contatos com projetos culturais, primeiramente como participante, depois,

facilitadora e coordenadora de algumas atividades em uma instituição atuante na

comunidade, a Fundação Marcos de Bruin (FMB)1. Participei do Coral infantil da

instituição a partir dos 12 anos de idade, onde percebi certo talento artístico, mas,

ainda mais, o quanto minha comunidade e cidade são grandes e o quanto o mundo

é complicado, mas passível de mudanças.

Até o ano de 2014, estive na FMB diretamente, como facilitadora do coral,

de grupos de convivência (depois da graduação em Serviço Social), coordenadora

de alguns projetos culturais, participante do Conselho Executivo, enfim, pude

desbravar atividades as mais diversas. A partir desse trabalho na referida entidade e

convites de amigos, conheci vários grupos culturais e artísticos do Lagamar, entre

eles, o Jovens em Busca de Deus (JBD), grupo de sujeitos do estudo aqui proposto

e que, há algum tempo, realiza projetos em parceria com a Fundação e possui

jovens na coordenação da instituição.

Os primeiros contatos com o JBD foram há algum tempo (6 anos), mas só

a título de visita e para rever alguns antigos amigos; porém, a cada vez que entrava

no ainda Centro de Formação do Lagamar, mais conhecido como “Casa do Grupo”,

a resistência, a alegria e, ao mesmo tempo, a seriedade das atividades com

crianças, adolescentes, jovens e até adultos e idosos, chamavam-me atenção.

Na “Casa” vi acontecer as mais variadas atividades: aulas de violão,

percussão, Baile da Saudade, reuniões com os (as) responsáveis das crianças da

catequese, ensaios de peças teatrais, danças, preparação de figurinos e cenários,

reuniões administrativas, encontros para debater estratégias para a efetivação da

1 Organização Não Governamental (ONG) fundada em 1992 pelos próprios moradores, que

homenageia em seu nome, o jovem alemão marcos de Bruin, estudante de teologia que viveu no Lagamar alguns anos e contribuiu com a mobilização da comunidade, a partir das Comunidades Eclesiais de Base (CEB´s), na luta pela moradia e qualidade de vida. Fonte: http://www.fmblagamar.com.br/fmb/sobre-a-fundacao.html.

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Zona Especial de Interesse Social (ZEIS)2 do Lagamar, reuniões com representantes

políticos, momentos de oração, de reflexões diversas, dentre outras inúmeras e

diferentes possibilidades que os jovens moldam para ocupar este espaço que,

depois soube, foi conquistado por eles com muito esforço e ainda mais resistência.

Outros espaços – como a praça do santuário de São Francisco (único

espaço de lazer da comunidade), as ruas e calçadas do Lagamar – também são

palco para as apresentações culturais, orações, novenas e os eventos promovidos

pelos jovens. Conforme observado, parte dessas atividades fomentam reflexões e

debates sobre a convivência em comunidade, a história e os problemas do Lagamar,

mas também as potencialidades do local: “A gente tenta deixar essa ideia, falar

sempre da comunidade, falar bem da comunidade, levantar a auto estima... pra que

quando eles saiam não tenham vergonha de dizer que moram no Lagamar...”3.

Outro ponto que chamou meu olhar para o JBD foi o fato de que eles são

jovens, como tantos outros na comunidade, como eu, mas mesmo em uma realidade

com difícil acesso a serviços públicos de saúde, educação, esporte, lazer, arte, para

eles e para os que participam das atividades realizadas, doam seu tempo,

criatividade, sua juventude e até seu (parco) dinheiro para que as ações se efetivem.

Então, além da comunidade não possuir muitas áreas de lazer ou

políticas públicas para/com os jovens, eles são os mais afetados pelas refrações da

desigualdade social, como a violência urbana, mas também são os jovens que

buscam a superação dessa realidade, como apresentado nos próximos tópicos.

1.1.LOCAL DA PESQUISA: O LAGAMAR E O JBD

Certa vez perguntaram-me a que margem do rio eu pertencia. Respondi espontaneamente: a nenhuma. Sou ponte!¨

(Bárbara Freitag)

De acordo com Avelar (2009), a comunidade4 do Lagamar teve sua

origem por volta da década 1950, quando imigrantes do interior do Ceará vieram à

2 Zona Especial de Interesse Social (ZEIS). Lei prevista no Plano Diretor Municipal em que antigas

ocupações urbanas passam a ser consideradas Zonas Especiais que terão prioridade de acesso a políticas públicas de saúde, educação, infraestrutura, etc. a fim de garantir a equidade no direito à cidade. Para mais informações, vide GOMES (2013). 3 Fala de um jovem entrevistado.

4 O Lagamar não é um bairro oficial. Abrange em uma margem do Riacho Tauape o bairro São João

do tauape, que é território da Secretaria Executiva Regional (SER) II e, na outra margem, a Aerolândia e o Alto da Balança, jurisdição da SER VI. O que provoca alguns trantornos no que diz respeito ao atendimento dos moradores em serviços públicos municipais.

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capital em busca de um local adequado para viver dignamente. Encontraram às

margens do Riacho Tauape, em um território da Marinha Mercante do Brasil, tal

morada, onde inclusive poderiam ainda conservar os costumes antigos como lavar

roupa no rio, plantar e criar animais para sua subsistência.

Ainda concernente à autora, a comunidade, por se tratar de uma

ocupação de local público, sempre foi alvo de ações de desapropriação por parte do

Estado. Além disso, posteriormente, com algumas obras de urbanização da cidade,

acabou se tornando um espaço privilegiado, entre a atual Avenida Raul Barbosa e a

BR 116, o que a torna alvo da especulação imobiliária. Desta forma, o Lagamar

apresenta um grande histórico de lutas e resistência pela permanência e melhora

das condições das famílias no local.

Ponte sobre o canal do Lagamar – Av. Raul Barbosa – 2016. Foto: Linekely Aguiar

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Ponte sobre o canal do Lagamar – Acesso à Av. Borges de Melo e viaduto da BR 116 – 2015. Foto: Linekely Aguiar

O crescimento desordenado da comunidade, a falta de condições dignas

de sobrevivência, a carência de políticas públicas e os inúmeros outros problemas

que se desenvolveram no Lagamar foram motivos mais que suficientes para que os

moradores iniciassem processos de mobilização comunitária a fim de reivindicar

direitos. Por volta da década de 1980, com o apoio da igreja católica e de

intelectuais que uniram forças junto aos moradores para mudar a situação da

comunidade, várias vitórias foram conquistadas, desde a primeira urbanização, o

aterramento do canal do Tauape, até a mais recente, quando a Lei da ZEIS do

Lagamar foi sancionada, incentivando a continuidade da luta agora, para sua

efetivação.

A luta comunitária do Lagamar está fortemente relacionada aos

movimentos sociais e às práticas sociais da igreja católica, através da Teologia da

Libertação e das Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s). Nos anos 1980,

aproximadamente, grupos de teólogos estrangeiros visitaram o Lagamar e

contribuíram com as lutas travadas com poder público municipal e estatal para sua

permanência e melhoria.

Atualmente, pode-se perceber o enfraquecimento das lutas anteriores,

pois instituições históricas criadas por essa mobilização comunitária tiveram suas

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sedes ocupadas para fins de moradia por outros moradores, que alegam não haver

mais atividades coletivas em tais espaços.

Além disso, o Lagamar se destaca na mídia fortalezense por episódios

de violência, criando estigmas sobre a comunidade, que encobrem a falta de

estrutura física, de esporte, lazer e ainda insuficiente presença do Estado a partir

de políticas públicas que viabilizem direitos, sobretudo os direitos culturais e

ainda menos, os dos jovens, para além da coerção policial, a maior “presença” do

Estado no Local, como veremos em episódios mais adiante.

Lagamar – Trilho – 2015. Foto: Lucélio Pires

Por não ser reconhecido oficialmente como um bairro, o Lagamar

abrange parte dos bairros Aerolândia (11.360 habitantes)5, Alto da Balança (12.814

habitantes), em uma margem do Riacho Tauape; e o São João do Tauape (27.598

habitantes) na outra margem. Assim, a comunidade também é atendida por duas

Secretarias Executivas Regionais (SER)6, respectivamente, SER VI e SER II.

A fim de apresentar um panorama mais próximo da realidade local do

Lagamar, apresenta-se a seguir uma pesquisa específica sobre a comunidade

5 CENSO (2010).

6 Secretarias Executivas Regionais (SERs): mais conhecidas como “Regionais”, consistem em

subdivisões da administração pública municipal de Fortaleza.

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(também realizada pela comunidade) e pesquisas relativas a estas SER’s e estes

bairros.

Segundo Gomes (2013) o Censo do Lagamar realizado pela Fundação

Marcos de Bruin, em 2005, a população local era de 8.420 pessoas, sendo 52,9%

mulheres e 47,1% homens “[...] e em 2012 a Prefeitura Municipal de Fortaleza

estimou um acréscimo de população da ordem de 4 a 5 mil, em uma área que já é

bastante densa” (GOMES, 2013, p. 103).

Ainda de acordo com a mesma pesquisa, 29,6% da população eram

estudantes (2.495); 16,1% trabalhadores informais (1.356); 13,5% trabalhadores

formais (1.137); 11% estavam desempregados (922) e dentre as atividades mais

citadas, estavam o comércio, a contrução civil e o trabalho doméstico (GOMES,

2013, p. 107).

No que compete à escolaridade, a maioria (27,9%) dos moradores

concluíram o ensino fundamental II (2.352), seguidos de 26% (2.188) com o ensino

fundamental I, 21,1% (1.777) o ensino médio, e ainda, 1,3% (133) dos moradores

afirmaram ter concluído o ensino superior e 4% disseram ser analfabetos (337).

Gomes (2013) comparou os dados do Censo do Lagamar (2005) com os

do IBGE (2010), encontrando certa correspondência entre os números, já que os

bairros São João do Tauape, Alto da Balança e Aerolândia também apresentaram

índices de alfabetizados acima dos 90%7.

No critério de faixa etária, foram divulgados os dados dos moradores: 0 a

9 anos, 21,3% (1.799); de 10 a 19, 20,4% (1.718); de 20 a 39, 33% (2.779); de 40 a

59, 16,6% (1.402); de 60 a 70, 5% (429). E ainda, 3,4% (293) com mais de 70 anos.

Tais dados também não se apresentaram tão discrepantes com relação às

informações do Censo IBGE em 20108.

O número de moradores sem a documentação básica, em 2005, era

bastante expressivo, pois 4,1% dos moradores afirmaram não possuir registro de

nascimento (347); 31,5% não possuíam Registro Geral ou identidade (2.654) e

7 IBGE 2010 - taxas de alfabetização: São João do Tauape: 94,9% da população total acima de 10

anos, 95,1% dos homens e 94,6% das mulheres; Aerolândia: 93,8% do total, 94,7% dos homens e 93,0% das mulheres; Alto da Balança: 92,7% do total, 92,7% dos homens e 92,8% das mulheres (GOMES, 2013, p.109). 8 Vide (GOMES, 2013, p.111).

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39,7% não tinham CPF (3.340), e ainda, 42,4% não tinham Carteira de Trabalho

(3.571).

Em 2005, 94,2% das casas do Lagamar eram de alvenaria (2.041 das

2.167), onde 60,6% tinham o piso de cimento (1.313) e em 27,6%, de cerâmica

(598), além de 12,8% possuírem um cômodo somente (278 unidades); 13%, dois

cômodos (281); 21,3%, três cômodos (461); e 18,5%, quatro cômodos (400) e as

com 6 ou 7 cômodos, 7,7% (166) e 4,4% (95) respectivamente. Na maioria dos

casos, 3 (22,5%, ou seja, 487 das 2.147 casas) ou 4 (20,9%, 452) pessoas por

residência.

No quesito de distribuição dos serviços públicos essenciais, 74,9%

disseram ter água canalizada em pelo menos um dos cômodos (1.623 casas);

55,5% tinham ligação de esgoto (1.196 casas); 61,7% disseram ter acesso a coleta

de lixo (1.338 unidades); 94,5% tinham acesso à rede geral de iluminação pública

(2.054).

Sendo assim, percebe-se que a comunidade, em 2005, mesmo

apresentando significativos avanços com relação à sua criação, na década de 1950,

os trabalhos eram, em sua maioria, informais, quase a metade da população

(42,4%) não possuia carteira de trabalho, o índice de desemprego era de 11% e a

escolaridade de mais da metade dos moradores (53,9%) não passava do ensino

fundamental.

Apesar da possível defasagem dos dados apresentados, eles não

poderiam ser desconsiderados pelo menos no que compete a uma aproximação da

realidade local atual, que ainda é de visível falta de estrutura física e de aparelhos

públicos estatais, para além de postos de saúde, escolas e polícia (na maioria dos

casos, a polícia é “presença” do Estado sentida efetivamente pela comunidade),

sobretudo na área da cultura e ainda mais, para o público jovem da comunidade.

O relatório da ONU aponta Fortaleza como a quinta cidade mais desigual

do mundo (O POVO, 2013) e segundo a Pesquisa “Cartografia da Criminalidade e

da Violência na cidade de Fortaleza”, realizada por laboratórios de pesquisa da

Universidade Estadual do Ceará (UECE), em 2010, a SER II (que abrange o bairro

São João do Tauape – parte do Lagamar) é uma das mais desiguais de Fortaleza,

pois apresenta os bairros com maior concentração de riqueza, como Aldeota, Papicu

e Meireles, não obstante, também apresente várias áreas com pouca estrutura,

como o Lagamar, no São João do Tauape, e a “Favela do Pau Fininho”, no Papicu.

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Importante destacarmos que a Regional II possui bairros e localidades visivelmente marcados pela segregação social. A SER II recebe bons investimentos em serviços e equipamentos sociais, muitos deles que geram empregos, mas também é marcada por áreas de alta vulnerabilidade social. A Regional II é o retrato de uma Cidade segregada entre pobres e ricos. Abrange o Centro da Cidade, que tem uma secretaria executiva própria (Secretaria Executiva Regional do Centro de Fortaleza – Secefor) e o bairro Aldeota, historicamente valorizado pelo incremento e adensamento comercial e de serviços e, simultaneamente, concentra expressivo número de áreas de risco, como já explicitado (UECE, 2010, p.100).

O São João do Tauape apresenta um IDH médio (0,572)9 e cerca de

27.598 habitantes10, e em 2009 se apresentou entre os 7 primeiros bairros com mais

registros de roubos em sua SER, juntamente com o Vicente Pinzón e Dionísio

Torres, com média de mais de 400 registros (UECE, 2010, p. 104). Além disso, as

mortes violentas ocorridas no bairro surgem como um dos maiores índices entre os

bairros, totalizando 20 casos.

Com relação aos homicídios, a SER II (que abrange o São João do

Tauape) registrou um aumento no número de casos em 2009, 113 casos, 12, 1% do

total registrado em Fortaleza (937). Assim como visto em toda a cidade, as vítimas

são predominantemente homens, solteiros, com idade entre 15 e 29 anos, com

ensino fundamental incompleto. O São João do Tauape acompanhou tal

crescimento, onde registrou 11 casos neste mesmo ano.

A Regional II é caracteristicamente marcada pela segregação social, aspecto emblemático da cidade de Fortaleza. É uma região com bairros que concentram boa estrutura física, belas avenidas e prédios, áreas verdes, serviços, comércio, bons equipamentos sociais e, ao mesmo tempo, localidades com estrutura urbana precária, sem a presença de equipamentos e ações de natureza pública (UECE, 2010, p.110).

A outra Secretaria Executiva Regional (SER) que abarca a área do

Lagamar (bairros Aerolândia e Alto da Balança), é a VI, a maior de Fortaleza,

reunindo 42% do território da cidade, 20,37% da população de Fortaleza, além de

ser a mais jovem, pois 50% dos habitantes têm no máximo 22 anos, e ainda, a que

apresenta o maior índice de analfabetismo.

9 CENSO (2000).

10 CENSO (2010).

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21

O bairro Aerolândia está entre os 10 que apresentaram índices mais

elevados de mortes violentas em 2009 (35 casos), furtos (227) e roubos (725), e

neste útimo ponto, o único que apresentou um crescimento contínuo desde 2007,

porém, em 2009, os registros de relações conflituosas diminuiram no bairro (UECE,

2010, p. 207).

As mortes por homicídio registradas na SER VI, também mostram que as

vítimas são prioritariamente do sexo maculino (90%), entre 15 e 39 anos de idade e

90% ocasionados por arma de fogo. Além disso, o grau de escolaridade dessas

pessoas está entre os alfabetizados e os que têm ensino fundamental e médio

incompletos.

Através desses dados e sem querer induzir o leitor a pensar que os casos

de violência apresentados aconteceram apenas no Lagamar, pode-se inferir que os

bairros São João do Tauape e Aerolândia, aparecem nas estatisticas como os

bairros que apresentaram aumento dos homicídios, das mortes violentas, de furtos e

roubos, e ainda, que a população mais vitimizada pelos homicídios são os jovens.

De acordo com o diagnóstico sócioterritorial do Centro de Referência em

Assistência Social – CRAS (Lagamar), em 2005 a população local era composta

essencialmente por jovens entre 20 e 39 anos, a grande maioria das famílias viviam

com um salário mínimo e ainda, a comunidade não dispunha de nenhuma área

pública de lazer.

Diante dos dados e análises expostas até aqui, pode-se inferir que a

presença do Estado através de políticas públicas que assegurem os direitos da

população do Lagamar, sobretudo dos (as) jovens, ainda não é suficiente para a

demanda de questões que assolam o local e para o exercício da cidadania.

A partir dos estudos de Diógenes (1989), Avelar (2012) e Gomes (2013)

percebe-se que o Lagamar é um exemplo emblemático do quanto os movimentos

sociais são motores das mudanças sociais e culturais na realidade e ainda, do papel

aglutinador e educativo das Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) encabeçadas

pela Teologia da Libertação, vertente da Igreja Católica, nesses processos.

É neste contexto que se insere o JBD, grupo formado por jovens ligados à

Igreja Católica e atuantes na comunidade há 18 anos, através de “catequeses

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sociais”11 e atividades artísticas, culturais (eventos culturais, oficinas de arte, etc.),

políticas e religiosas.

Alvarez (2000) afirma que os movimentos sociais são fundamentais para

articular o “cultural” e o “político”, fomentando ações que contribuem para a

mudança de conceitos, práticas e relações sociais no cotidiano. Assim, suas ações

se configuram como política cultural (ou política de cultura, conforme discutido mais

adiante) e concorrem para minar as culturas políticas dominantes.

Já Dagnino (1994), afirma que os movimentos sociais na década de 1980

foram primordiais para o desenvolvimento de uma nova noção de cidadania em que

esta é relacionada não apenas aos meios convencionais de participação política,

mas às mudanças nas relações sociais em geral. Uma cidadania baseada na

mudança nas relações culturais. Essa nova noção de cidadania, por sua vez, aponta

para uma transformação de conceitos e ações que vai de encontro à forma de

sociedade excludente e desigual, entendendo a cultura como produto dessas

relações.

E Botelho (2009) por sua vez, afirma que a cidadania cultural consiste na

viabilização dos direitos culturais a todos, contribuindo para a emancipação e

participação dos (das) cidadãos (ãs), a partir que colaboram para uma formação

integral do indivíduo, sendo um dever do Estado garantir tais direitos, mas mantendo

a autonomia da sociedade, genuína produtora de cultura.

Desta forma, em meio este contexto de “ausência”12 do Estado através de

políticas públicas para os jovens, da importância da atuação dos movimentos sociais

na realização de políticas de cultura e ainda, considerando as discussões acerca da

cidadania cultural, indaga-se: quem são esses jovens do JBD? Como atuam e quais

os objetivos das atividades realizadas? O JBD guarda memórias das CEBs?

Influencia-se por essa forma de organização da Igreja e da comunidade? O JBD

realiza política de cultura? As atividades do JBD colaboram para o exercício de

direitos culturais e assim, da cidadania cultural?

A partir das experiências já vivenciadas com o JBD e o Lagamar em

geral, neste trabalho parte-se dos pressupostos que o JBD realiza política de

cultura, exerce um papel que prioritariamente é do Estado em viabilizar direitos

11

Conforme a fala de um interlocutor da pesquisa. 12

Ausência entre aspas por se tratar da insuficiente intervenção do estado em se tratando de políticas de efetivação de diretos, para além da coerção policial, por vezes o único e mais frequente sinal da presença do Estado na comunidade.

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culturais e ainda, a partir de suas atividades, contribui para o desenvolvimento da

cidadania cultural.

Assim, tem-se aqui, por objetivo geral:

Analisar como as atividades do grupo JBD configuram-se enquanto

política de cultura e contribuem para o desenvolvimento da

cidadania cultural, viabilizando direitos culturais.

Tornou-se imprescindível, então, a busca pelo alcance aos objetivos

específicos de esquematizar um perfil dos jovens participantes do JBD:

Investigar acerca da história do JBD (objetivos, funcionamento e

organização);

Pesquisar acerca da história (condições sociais, políticas e

culturais da comunidade do Lagamar);

Identificar que elementos caracterizam o JBD como produtor de

política de cultura;

Aprofundar os estudos das categorias analíticas (Política Cultural,

Cidadania Cultural, Direitos Culturais, além de transversalmente, as

categorias: Movimentos Sociais, Juventudes e Religião).

Sendo assim, esta dissertação foi organizada em três tópicos principais: o

tópico de número 2 (O “JESUS ABANDONADO” E A LUTA POR CIDADANIA NO

LAGAMAR) que trata da história de luta dos moradores do Lagamar pelo seu “lugar”,

tanto o físico, como o simbólico, discutindo também o preconceito e estigma que a

comunidade carrega pelo restante da sociedade fortalezense e como o JBD se

insere e interfere nessas relações; O terceiro tópico (JOVENS EM BUSCA DE

ARTE: DE CONSUMIDORES A PRODUTORES DE CULTURA E POLÍTICA), em

que se aborda a discussão acerca dos limites e possibilidades encontrados e

moldados pelo JBD no Lagamar e a participação político-cultural dos jovens na

comunidade, que através da arte contribuem com novas formas de socialização; e o

tópico 4 (¨COMUNGAR É TORNAR-SE UM PERIGO! ”: A POLÍTICA DE CULTURA

DO JBD E A CIDADANIA CULTURAL NO LAGAMAR), em que são apresentadas as

reflexões acerca de duas atividades específicas do JBD, a “Paixão de Cristo” e a

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“Queridinhos do Lagamar” e, ainda, a relação destas com a cidadania e os direitos

culturais.

Mas antes da apresentação dos tópicos propriamente ditos, torna-se

relevante a explanação do posicionamento e percurso metodológico desta pesquisa,

além das reflexões que este exercício proporcionou aos seus sujeitos. A seguir.

1.2. PERCURSO METODOLÓGICO

Amar e mudar as coisas me interessa mais. (Belchior)

Severino (2007) afirma que para entender o processo geral da ciência,

não basta seguir um método e aplicar técnicas, pois “a ciência é sempre o enlace de

uma malha teórica com dados empíricos, é sempre uma articulação do lógico com o

real, do teórico com o empírico, do ideal com o real” (SEVERINO, 2007, p.100). Por

isso, este trabalho se preocupou em considerar elementos sócio-históricos e

dialéticos do real, a fim de chegar o mais próximo possível da realidade, mesmo

sabendo que esta é efêmera e este estudo não será suficiente para esgotá-la.

Sem a pretensão maniqueista que por vezes envolve a natureza das

pesquisas, “qualitativa x quantitativa”, a pesquisa proposta aqui se apresenta como

fundamentalmente qualitativa, porém buscará, no decorrer dos processos, dados

quantitativos a fim de enriquecer as análises alvitradas.

Desta forma, foram realizadas 8 entrevistas, com os seguintes

interlocutores: o fundador do JBD, o atual coordenador, 4 jovens mais antigos do

grupo e 1 uma senhora da Legião de Maria, importante na história do JBD e ainda,

uma pessoa referência da primeira CEB do Lagamar, Manfredo de Oliveira13.

Os quatro jovens mais antigos também foram entrevistados pelo critério

de terem maior participação nas atividades das catequeses, das aulas de música, da

Via Sacra, da Queridinhos do Lagamar e demais eventos e também por fazerem

parte do Conselho JBD.

Como forma de resguardar a identidade dos interlocutores da pesquisa e

até ocasionar maior liberdade para o repasse das informações, estes foram

desginados com nomes bíblicos, fictícios, combinando com o caráter religioso do

grupo.

13

Padre e professor de filosofia da Universidade Federal do Ceará. Foi um dos líderes da Comunidade Esclesial de Base da Rua Mundaú, no Lagamar, por volta de 1980.

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Para esquematizar um perfil dos jovens participantes do grupo, aplicou-se

um questionário com perguntas abertas e fechadas, abordando características

sociais, econômicas, educacionais, etc. Foram aplicados 33 questionários com

jovens participantes. Com tal técnica se pretende também contribuir com as

atividades do grupo, já que este perfil poderá ajudá-los na identificação dos jovens e

na elaboração de novas atividades.

Além disso, realizou-se pesquisa bibliográfica e documental, a fim de se

apropriar do conhecimento acerca da história do grupo, os objetivos, funcionamento

e organização, além de conhecer as condições sociais e políticas da comunidade do

Lagamar, campo de atuação desses jovens.

A pesquisa bibliográfica também foi utilizada para identificar que

elementos caracterizam as atividades do grupo como uma política cultural, além de

aprofundar os estudos das categorias analíticas: Política Cultural, Cidadania

Cultural, Direitos Culturais, e, transversalmente, as categorias: Juventudes, Religião

e Movimentos Sociais.

Para Mattos (2011) a Etnografia é uma abordagem de investigação

científica que traz contribuições importantes ao campo da pesquisa qualitativa, “[...]

especialmente aquelas que se interessam pelos estudos das desigualdades sociais

e dos processos de exclusão” (MATTOS, 2011, p. 49), o que tornou indispensável a

sua utilização neste trabalho, que se norteou pelas implicações:

[aspectos que envolvem o trabalho etnográfico, informando que fazer etnografia implica em:] 1) preocupar-se com uma análise holística ou dialética da cultura: 2) introduzir os atores sociais com uma participação ativa e dinâmica e modificadora das estruturas sociais; 3) preocupar-se em revelar as relações e interações significativas de modo a desenvolver a reflexividade sobre a ação de pesquisar, tanto pelo pesquisador quanto pelo pesquisado (MATTOS, 2011, p. 49).

Por isso, realizei o esforço do exercício etnográfico para registro e análise

nas mais variadas atividades do grupo durante todo o ano de 2015. Acompanhei

(trabalhei em alguns) encontros de catequeses, eventos, manifestações políticas,

reuniões gerais (todas as terças-feiras), celebrações, apresentações artísticas e até

o último retiro14 do grupo.

14

Atividade em que os jovens se “retiram” do Lagamar, geralmente em uma viagem para o interior do Estado com o intuito de passarem alguns dias em oração e reflexão acerca de si mesmo, do grupo e da comunidade, além de ser uma oportunidade de lazer diferente. É um momento de fortalecimento

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Porém duas atividades foram destacadas e analisadas ainda mais

especificamente: os ensaios e processo de produção da peça “Via Sacra JBD” e da

quadrilha junina “Queridinhos do Lagamar”, por serem consideradas atividades

artísticas importantes do grupo, dentre as tantas outras, que competem para o

alcance dos objetivos aqui almejados.

Digo “esforço etnográfico” porque não ouso assumir aqui que realizei uma

etnografia com todo o rigor e especificidade que ela exige, pois foi a primeira vez

que me aventurei pelos meandros da prática do “[...] olhar, ouvir e escrever”

(OLIVEIRA, 2000, p 18).

O primeiro processo acompanhado mais de perto, o da peça teatral que

encena a história de vida e morte de Jesus Cristo, ocorreu entre fevereiro e abril de

2015, resultando na produção de diários de campo acerca da experiência desses

jovens na produção cultural de duas apresentações na comunidade: primeiro na

praça do Santuário de São Francisco, conhecida pelos jovens como “Pracinha do

Santuário” e a outra, em uma das ruas mais movimentadas da comunidade, Rua

Capitão Dakir, conhecida como “Rua Larga”.

A quadrilha junina “Queridinhos do Lagamar” iniciou o processo de

planejamento e produção antes do fim da Via Sacra, mas os ensaios, reuniões e

mobilizações de recursos se intensificaram a partir do mês de abril de 2015. Foi

realizada observação participante e produção de diários de campo dessas

atividades, que se estenderam até julho, com as apresentações em locais dentro e

fora da comunidade, religiosos ou não.

1.2.1 Pesquisa em campo: limites e possibilidades

Tua caminhada ainda não terminou... A realidade te acolhe

dizendo que pela frente o horizonte da vida necessita

de tuas palavras e do teu silêncio.

Se amanhã sentires saudades,

lembra-te da fantasia e sonha com tua próxima vitória.

Vitória que todas as armas do mundo jamais conseguirão obter,

porque é uma vitória que surge da paz e não do ressentimento.

de laços a partir da convivência direta entre eles. Acontece todo ano e tem como público principal a turma da Catequese de Crisma.

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É certo que irás encontrar situações

tempestuosas novamente, mas haverá de ver sempre

o lado bom da chuva que cai e não a faceta do raio que destrói.

Tu és jovem.

Atender a quem te chama é belo, lutar por quem te rejeita

é quase chegar a perfeição. A juventude precisa de sonhos

e se nutrir de lembranças, assim como o leito dos rios

precisa da água que rola e o coração necessita de afeto.

Não faças do amanhã o sinônimo de nunca,

nem o ontem te seja o mesmo que nunca mais.

Teus passos ficaram. Olhes para trás... mas vá em frente

pois há muitos que precisam que chegues para poderem seguir-te.

(Charles Chaplin)

As experiências vivenciadas durante a pesquisa de campo revelaram

alguns desafios e possibilidades que a pesquisa (e a pesquisadora) enfrenta neste

processo, sobretudo se tratando da pesquisa social.

Um dos primeiros desafios encontrados neste trabalho foi ainda no início

das reflexões, quando os objetivos da pesquisa tiveram que ser mudados por conta

das mudanças ocorridas na realidade da comunidade. Ainda em 2014 pretendia-se

conhecer e analisar a experiência de três projetos culturais existentes no Lagamar,

porém no mesmo peculiar ano (com eleições, crise financeira no país, intervenções

estruturais importantes na comunidade), dois deles tiveram que parar as atividades

por falta de financiamento estatal. A partir de então o foco da pesquisa resumiu-se a

experiência do grupo JBD, que não possui nenhum financiamento, mas continua

desenvolvendo tais atividades. Tudo isso, claro, sem prejuízos a relevância do

trabalho.

Para Oliveira (1998), o método vai além de técnicas vinculadas aos

objetivos, mas também se relaciona aos processos e fundamentos que baseam as

reflexões, portanto, este trabalho busca considerar as relações dialéticas dos

diferentes conhecimentos, descartando qualquer autoritarismo ou cristalização de

verdades absolutas, ou de um sujeito de conhecimento soberano.

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Desta forma, a pesquisa de campo proporcionou várias reflexões, por

exemplo, de como a minha presença e minhas perguntas também revelaram

questões aos jovens do JBD. Um exemplo foi a resposta: “nunca pensamos nisso! ”,

pode-se dizer que há uma reflexão nunca feita pela jovem entrevistada sendo

incentivada pela pergunta da entrevistadora, que também refletirá sobre a mesma

resposta. Outro exemplo: “Eu não sei muito como começou... era pra eu saber... to

impressionado comigo mesmo...” (Abiel, agosto, 2015).

A observação participante por sua vez foi instrumento de desenvolvimento

tanto para o grupo como para mim, já que contribui de forma “braçal” para que

algumas atividades acontecessem. Tendo em vista o muito trabalho e as poucas

pessoas disponíveis em algumas ocasiões, a execução de algumas tarefas foi

inevitável e competiu para o fortalecimento de vinculos e confiança entre o JBD e eu,

além de se configurar em uma experiência pessoal significativa, em que me vi

cooperando com atividades importantes para/com a comunidade, como cantar nas

apresentações da Quadrilha e da Via Sacra.

Assim como nas experiências de pesquisa com grupos religiosos de

Jesus (2013), pela conviência e participação nas atividades do grupo JBD (e

algumas anteriores a estas), fui vista como membro, tanto pelos jovens do JBD,

como pelas crianças participantes das atividades promovidas por ele. Alguns

chegaram a perguntar horários e locais de atividades quando me viam pelo

Lagamar, ‘confusão’ já relatada por outros pesquisadores como recorrente neste

caso, em que há uma expectativa de ‘conversão’ ou ‘pertencimento’ ao grupo

religioso.

Outra observação relevante é que muitas vezes os jovens se referem ao

grupo como “família JBD”, caracterizada também pelo fato de se observar que

dificilmente os jovens não se falavam todos os dias se não pessoalmente, através

das redes sociais. Uma curiosidade com relação a isso é que muitos do grupo, nos

emails, colocam “JBD” como “sobrenome”, o que parece ser uma identidade mesmo

de família.

A denominação de família também é presente no discurso dos jovens

com relação à organização do grupo em geral. É justificativa para os poucos critérios

de participação, continuação e volta ao grupo. Apesar de haver discussões sobre a

definição desses critérios, eles se orgulham bastante de serem livres para sair e

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entrar, participarem pontualmente de qualquer atividade e serem recebidos de

braços abertos, “como o retorno de um filho à família”.

O uso das redes sociais foi muito útil à pequisa. Os jovens são

conectados às redes sociais diariamente, usando-a para compartilhar informações,

marcar reuniões, mobilizações, internas e externas.

A ferramenta mais utilizada para a comunicação interna entre os

membros do JBD é o aplicativo de mensagens WhatsApp, por onde marcam as

reuniões, ensaios, sugerem apresentações, negociam decisões as mais diversas.

Logo que apresentada como pesquisadora fui inserida no grupo virtual. Isso facilitou

também o meu trabalho, pois por muitas vezes, ao ter dúvidas escrevendo a

dissertação, fiz as perguntas através do aplicativo e quase em tempo real obtive as

respostas.

O JBD também consegue divulgar o trabalho do grupo para além da

comunidade, principalmente através do perfil no Facebook, movimentado em prol

dos eventos, atividades em geral, tanto para divulgação de horários, bingos,

atrações, como para socilaizar as fotos das atividades após ocorridas.

Foi interessante perceber também a influência e exemplo dos jovens em

relação aos outros e as senhoras, notória nas entrevistas e em minhas participações

nas atividades, em que os jovens frequentemente utilizam palavras, gírias, em

comum.

No mais, deparei-me cotidianamente com frases dignas de grandes

pensadores renomados, como: “Democracia é trabalho de formiguinha”, “Só teve

conserto porque mexeu com o outro lado da sociedade!”, “Não fazemos esse

trabalho por um lugar no céu, estamos aqui na luta, porque queremos o aqui melhor,

a terra mesmo, o melhor agora!”. Isso revela a importância de se considerar todas as

formas de conhecimento como válidas, pois o conhecimento é inerente ao ser

humano e à suas experiências e reflexões.

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2. O “JESUS ABANDONADO” E A LUTA POR CIDADANIA NO LAGAMAR

“MILAGRES acontecem quando a gente VAI À LUTA!” (Fernando Anitelli)

Neste tópico, de forma geral, apresentar-se-á a influência da Igreja

católica nas lutas sociais do Lagamar, desde sua origem, e como esta ainda vem

sendo fator de mobilização das pessoas e de mudanças na comunidade. A partir de

outros sujeitos, os jovens do JBD, que perceberam o “Jesus abandonado” no

Lagamar e dão continuidade a essa luta com o “novo jeito de ser Igreja”15, também

foram descobertas novas demandas (ou não), novas ações, mas sem deixar de lado

o respeito e consideração pelo passado e pelas pessoas que construiram a história

na luta pela cidadania no local até então.

É fundamental esta discussão para a compreensão dos movimentos

sociais enquanto articuladores do campo cultural e do político, da arte com a

reflexão, das mudanças nas relações sociais em geral (e também entre gerações

diferentes, neste caso) e da mudança de olhares, conceitos e práticas na cultura

política.

2.1.OS MOVIMENTOS SOCIAIS NO LAGAMAR E A LUTA PELA CIDADANIA

Podem me prender, podem me bater,

Podem até deixar-me sem comer,

Que eu não mudo de opinião:

Daqui do morro eu não saio não, daqui do morro eu não saio não!

Se não tem água, eu furo um poço,

Se não tem carne, eu compro um osso e ponho na sopa

E deixo andar, deixo andar...

Fale de mim quem quiser falar,

Aqui eu não pago aluguel,

Se eu morrer amanhã, seu doutor

Estou pertinho do céu!

Podem me prender, podem me bater,

Podem até deixar-me sem comer

Que eu não mudo de opinião:

Daqui do morro eu não saio não, daqui do morro eu não saio não!

Podem me prender, podem me bater, que eu não mudo de opinião, que eu não mudo de opinião!

(Zé Keti)

15

Fala de interlocutor da pesquisa assemelhada à de Dom Aloisio Lorcheider ao se referir às Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s).

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Gohn (2000) afirma que na década de 1970 e parte de 1980, no Brasil e

em vários outros países da América Latina, os movimentos sociais populares

opostos ao regime em vigor ficaram famosos e eram articulados principalmente

pelos movimentos de base cristã, inspirados pela Teologia da Libertação. Todavia a

autora ressalta que as mudanças ocorridas ao final dos anos 1980 e decorrer dos

anos 1990 (a grande onda neoliberal) desmobilizaram consideravelmente esses

movimentos, mas que os mesmos foram fundamentais na efetivação de direitos,

principalmente os previstos na Constituição Federal de 1988.

Assim, à medida que as políticas neoliberais avançavam, impulsionando o

Estado a privatizar empresas estatais, fragmentar e focalizar as políticas, surgiram

novas formas de organização popular e iniciativas privadas para intervir nas

demandas não atendidas por esta ausência, onde se identifica o crescimento

significativo das Organizações Não Governamentais (ONG’s), Fundações, Institutos,

etc. (NEVES, 2008).

De acordo com Gohn (2000) os movimentos populares não

desapareceram na década de 1990, mas remodelaram suas práticas e dinâmicas

mediante a mudança na conjuntura política e econômica, atuaram mais

intensivamente no campo institucional. A autora destaca a luta pela moradia como a

que

Acumulou o maior acervo de conhecimentos, em termos de experiências concretas e em termos de conhecimento produzido, dentre todas as áreas problemas demandados pela população [...] a luta que conta com o maior número de assessores e organizações qualificadas, ou seja, com um corpo de especialistas e analistas e não apenas voluntários ou militantes (GOHN, 2000, p. 4).

Apesar do destaque na década de 1990, a trajetória das lutas por moradia

iniciou-se ainda na década de 1970, com os movimentos das favelas, cortiços,

loteamentos clandestinos populares, nas ocupações urbanas, em prol da

construção de moradias em regime de multirão, contra aumento das prestações

cobradas pelo extinto BNH, reivindicações dos moradores de conjuntos precários

como o PROMORAR, de inquilinos da classe média em 1980 até a dos moradores

de rua da década de 1990 (GOHN, 2000).

Neste contexto de luta pela moradia, enquanto uma ocupação em um

terreno alagado, em Fortaleza, no Ceará, surge a comunidade do Lagamar, ainda

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em meados da década de 195016, configurando-se como uma das comunidades

mais antigas da cidade.

Segundo Diógenes (1989), a ocupação do espaço às margens do riacho

Tauape, posteriormente conhecido como Lagamar, iniciou-se a partir de 1958,

quando o Ceará enfrentou uma das maiores secas de sua história. Advindos

principalmente do interior do Ceará, os então moradores encontraram às margens

do riacho Tauape morada que os permitiam conservar os costumes camponeses

como pescar e lavar roupa no riacho.

O nome da comunidade se deu exatamente pelas características do

terreno (brejado, manguezais) e das frequentes “cheias” do riacho, braço do rio

Cocó que alagava o local, e o deixava parecido com o mar. Assim, de “Alagamar”,

tirou-se “Lagamar”.

Ainda conforme Diógenes (1989), os migrantes da seca que ocuparam o

local tiveram que travar lutas contínuas, primeiramente contra a natureza, pois

tiveram que aterrar o terreno e conviver com o aumento das marés e adversidades

que o espaço naturalmente ocasionava, contra a rotina de trabalho na extração de

algumas espécies dos mangues e da pesca, contra o poder público, a falta de

condições de moradia, de qualidade de vida, etc., caraterizando a história da

comunidade por lutas de seus moradores para permanecerem e terem direitos

efetivados no local.

Mesmo com muita luta, a comundade passou (e ainda passa) por várias

intervenções urbanísticas e assim, várias remoções de famílias. Com o crescimento

da cidade, tornou-se uma área privilegiada em acessos, saídas e entradas de

Fortaleza, entre a BR-116 e a Avenida Raul Barbosa, e praticamente no centro do

mapa de Fortaleza.

16

Foram encontrados documentos, sem referências bibliográficas, cedidos pela Fundação Marcos de Bruin (ONG atuante no Lagamar desde 1992) e do acervo pessoal de uma moradora da comunidade, que relatam as primeiras ocupações na área onde hoje é o Lagamar, ainda na década de 1930, mas intensificando-se com a migração ocorrida pela grande seca de 1958 no Ceará;

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33

Mapa de Fortaleza – Bairros; Fonte: http://www.ceara.com.br/fortaleza/mapadefortaleza.htm

Em 1974, muitos dos primeiros moradores foram removidos da

comunidade por conta de um grande alagamento na parte mais baixa do local.

Foram mandados para o Conjunto Palmeiras, no ainda distrito de Messejana, mas

como este também não oferecia condições dignas e ainda era longe do centro da

cidade, muitos acabaram voltando e ocupando os terrenos anteriores.

Em 1979 a área passou a ser considerada de utilidade pública e depois,

em 1980, como de “interesse social” 17, o que ocasionou ainda mais ações do

governo no sentido de desapropriar a área, de “recuperá-la”, mas em um novo

modelo de política habitacional, através do Programa de Assistência às Favelas da

Região Metropolitana de Fortaleza (PROAFA), que via o processo de “transferência”

da comunidade como uma forma de desenvolvimento e não de forma forçada ou

para o embelezamento da cidade.

17

O sentido de “interesse social” usado por Diógenes (1989) é o de que a área ocupada, chamada de Lagamar era de interesse do Estado e de seus primeiros proprietários, em detrimento de seus novos moradores, com a justificativa de que o local seria campo para intervenções estruturais para melhora de toda a cidade, mas por trás poderiam estar outros interesses (econômicos, privados, etc.).

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Embasado nesse novo princípio, em 1980, é criado o Projeto Lagamar18,

que objetivava retirar as famílias da área ocupada e realoja-las em um lugar

próximo, ao lado da BR 116, hoje conhecido por Conjunto Tancredo Neves. Os

argumentos governamentais eram que os moradores estavam no percurso de

avenidas já projetadas e ainda, habitavam áreas facilmente alagadas.

Para a PROAFA, em levantamentos realizados em 1980, o Lagamar situava-se como a primeira favela dentro de 37 (...) a ver concretizada sua erradicação. Era a favela que, na época, abrigava o maior número de famílias – (2.664) e que representava, portanto, para o Cofre Público, um volume imenso de recursos ao ser efetuada a “transferência”. Segundo cálculos realizados pelo IAB, na época, com os custos do Projeto Lagamar, poder-se-ia resolver os problemas da metade das favelas de Fortaleza (DIÓGENES, 1989, p. 76).

Nesse novo processo de transferência dos moradores, em 1980, há a

formação do primeiro grupo das Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s), na Rua

Mundaú, que segundo Diógenes (1989) “[...] o seu trabalho de reflexão vai

desenvolvendo toda uma noção de direitos e o direito primordial no momento

consubstancia-se na permanência dos moradores na área” (DIÓGENES, 1989,

p.78).

Dornelas (2006) afirma que as CEBs surgiram no Brasil durante a

ditadura militar com o intuito de ser uma forma diferente de evangelizar que

fomentasse o desafio de uma prática libertária em tempos de recessão e ainda,

adequasse a Igreja Católica ao Concílio Vaticano II, realizado de 1962 a 1965 e

“encontraram sua cidadania eclesial na feliz expressão do Cardeal Aloísio

Lorscheider: ‘A CEB no Brasil é Igreja — um novo modo de ser Igreja’”

(DORNELAS, 2006, p. 3).

Segundo entrevista realizada com o padre, filósofo, professor da

Universidade Federal do Ceará (UFC) e referência da primeira CEB do Lagamar,

Manfredo de Oliveira, ao chegar à comunidade, em 1980, encontrou nenhuma

infraestrutura, condições de vida insalubres e desumanas, além de um clima de

pavor por conta das remoções do Projeto Lagamar.

Olha, era uma coisa terrível, uma das primeiras casas que eu visitei, a mulher disse assim: - Meu filho foi ruído pelos ratos hoje a noite! Eu fiquei

18

Projeto de remoção dos moradores da área do Lagamar para o “Novo Lagamar”, atual Tancredo Neves.

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apavorado, meu Deus como é que pode um negócio desse?! Não tinha nada do que veio depois, por exemplo, água encanada, etc. ...qualquer coisinha alagava tudo...os barracos, os piores possíveis, mas, naturalmente, mesmo assim, as pessoas gostariam de ficar lá... eu me deparei com uma tragédia (separando as síbalas) ...estava todo mundo apavorado com a ideia que o pessoal todo do Lagamar daveria ser retirado e uma empresa ia construir grandes prédios, etc. ...queriam liberar a área... então tava todo mundo apavorado, a tragédia era essa, o pavor generalizado e a população ia ser toda transferida para o atual Tancredo Neves... (Manfredo de Oliveira, Maio, 2015).

O papel das CEBs neste momento foi de incentivar reflexões e apoiar

ações, a partir da fé cristã, sobre a realidade adversa que os moradores vivenciavam

e ainda “...o trabalho de comunidade de base foi desembocando na direção de

compreender que o cristão tem que se engajar no mundo, no sentido de fazer as

relações entre as pessoas mudarem e acabarem as injustiças existentes... ”

(Manfredo de Oliveira, maio, 2015).

Ah! agora eu entendi... antigamente eu pensava que Deus era um general (bem na linha da ditadura militar, ne?) ...os padres eram os cabos e nós não valia nada! Hoje eu entendi que Deus é pai e nós tomos somos irmãos e esse mundo que está aí não presta! Porque não tem irmão, tem homem passando por cima de outro, explorando o outro, isso não é uma vida de irmãos! Está tudo errado e a gente tem que mexer nessa história!" (Citação de Manfredo de Oliveira à fala de uma moradora e participante da CEB da Rua Mundaú).

Então a missão era ajudar no processo de reflexão... ajudar as pessoas a pensar a sua vida a partir da referencia a fé que elas iam ter... então veja: as pessoas vieram do interior cada uma com suas experiencias de religião... muito longe... a Legião de Maria, você veja, pra fazer esse salto enorme de um movimento voltado para si mesmo e algumas orações e tudo mais e entender que oração só funciona se eu depois for capaz de defender os direitos de quem não tem esses direitos, mas foi um negócio gigantesco e lindo como eles foram entendendo as coisas e a gente tinha sempre o costume de iniciar as reuniões lendo um texto da bíblia e refletir sobre aquele texto e isso era o caminho como se trabalhava, a maneira como as pessoas iam tomando consciencia da situação ao mesmo tempo que refletiam que a fé implicava que eles atuassem nessa situação... (Manfredo de Oliveira, Maio, 2015).

Ainda de acordo com a entrevista, as CEBs eram vistas pela sociedade

fortalezense e pela própria Igreja Católica como altamente subversivas, um perigo

para as relações culturais postas naquele momento, e seus líderes, “como

comunistas ocultos ...eu era tido e ainda hoje sou ...uma pessoa perigosa!”

(Manfredo de Oliveira, maio, 2015).

Mas claro que a luta não era unificada, outros grupos iam se organizando

dentro da comunidade e instituições internacionais também passaram a atuar no

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local, como o Christian Children's Fund (CCF), contribuindo para o desenvolvimento

humano e social das crianças do Lagamar.

A Associação Comunitária do Lagamar (ACL) foi criada em 1982 para

fortalecer a luta pela permanência no local, por muito tempo teve sua sede no

Centro Social do Lagamar, mais conhecido como sede da CCF, não quis se filiar à

Federação de Bairros e Favelas, por acusá-la de ser partidária e juntou-se então, às

CEBs. Já a Associação dos Moradores do Lagamar (AMOL), foi criada em julho de

1993, sob a inspiração da Federação de Bairros e Favelas (DIÓGENES, 1989).

A Associação Comunitária une-se a CEB’s e embora posteriormente em outras lutas as diferenças se explicitem, neste momento, na luta pela permanência, há uma conjugação de esforços entre as duas entidades (DIÓGENES, 1989, p. 81).

Através das pressões populares e da ação judicial contra os interesses

“escusos” de políticos e empresários no Projeto Lagamar e a arrecadação de mais

de 600 assinaturas de moradores contra a remoção, sendo que algumas foram para

o conjunto antes do resultado ser divulgado, “[...] o juiz concedeu a liminar favorável

ao povo do Lagamar e o trabalho de remoção foi suspenso enquanto caráter de

remoção obrigatória [...]” (DIÓGENES, 1989, p. 81).

Várias lutas e vitórias ainda foram conquistadas além dessa permanência

no local, em 1984, a construção da Avenida Borges de Melo pretendia “rasgar” a

comunidade de ponta a ponta, mas a resistência da comunidade fez o percurso da

obra ser desviado, ainda que, com a remoção de algumas famílias. Além disso,

algumas famílias resolveram ocupar os imóveis antes da finalização da construção

do Conjunto Tancredo Neves, e algumas delas ainda foram transferidas novamente

para o Jangurussu, outro bairro de Fortaleza.

Mais remoções ainda aconteceram com as várias urbanizações e

intervenções ocorridas na comunidade, uma delas, estruturou todo o calçadão às

margens do Riacho Tauape, com vários playgrounds, minicampos de futebol e áreas

verdes ao longo de seu percurso, no início da década de 1990, mas obras seguintes,

como as do Metrofor e da Via Expressa “passaram por cima” das únicas áreas de

lazer da comunidade.

Após anos de lutas e conquistas, várias mudanças no local, o aumento

das drogas, da violência, etc., as investidas neoliberais que enfraquecem as ações

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coletivas, percebe-se certa desmobilização desses movimentos (o que não é

exclusividade do Lagamar), a partir da década de 1990, que pode ser demonstrado

pelas ocupações das emblemáticas AMOL, ACL e CCF, para fins de moradia, já

mais recentemente.

As reformas neoliberais deslocaram as tensões para o plano cotidiano, ge-rando violência, diminuição de oportunidades no mundo do trabalho formal, formas precárias de emprego, constrangimento dos direitos dos indivíduos, cobrança sobre seus deveres em nome de um ativismo formal etc. (GOHN, 2011, p. 344).

O ano de 2014 foi emblemático para a AMOL e a ACL, que tiveram suas

sedes ocupadas por grupos de moradores que diziam não ter onde morar e que os

prédios já não serviam à coletividade. Foi um período de bastante medo na

comunidade, pois ocorreram várias ocupações nos poucos locais ainda vazios e em

instituições que, por falta de recursos, organização, etc. não eram consideradas

pelos ocupantes, tão atuantes na comunidade.

A sede da CCF, já citada anteriormente, conhecida posteriormente como

CDI (Centro de Desenvolvimento Infantil), a única creche pública com atendimento

por período integral da comunidade, além de oferecer atividades artísticas,

alimentação, etc., a partir de doações internacionais é lembrada até hoje com

carinho e gratidão pelos moradores, pois realmente contribuiu com o

desenvolvimento de muitas crianças na comunidade no contexto de fome, pobreza e

falta de estrutura, desde a década de 1980. Como não oferecia mais serviços à

comunidade, por falta de apoio governamental, também foi ocupada para fins de

moradia em 2012. Porém, em 2015, as familias ocupantes do local foram realojadas

e as casas demolidas, e segundo informações da prefeitura, a construção de uma

creche (novamente) está em curso.

Segundo Manfredo de Oliveira, desde a CEBs, essa disperção da luta já

era motivo de preocupação,

Mas a minha grande preocupação foi essa, como foi uma luta concentrada em torno de moradia e condições do entorno o meu medo era o seguinte: bom! Se não houver uma consciência que vá crescendo e que desemboque para compreender aquilo como fruto de um sistema que produz esse tipo de coisa, é claro que no dia que eles encontrarem uma satisfação pros interesses imediatos a coisa vai retroceder... e foi o que aconteceu...foi

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muito difícil depois manter o nível de consciêcia, organização, de luta, etc... (Manfredo de Oliveira, maio, 2015).

Apesar disso, ainda é muito comum na comunidade se ouvir que “as lutas

não são mais como eram antes”, com um sentimento de saudosismo e sempre

comparando o presente com esse período efervecente da década de 1980, como

parâmetro. E ainda hoje lideranças desse período são muito respeitadas e

participam das mobilizações para as novas e antigas lutas.

No fim dos anos 1980 e ao longo dos anos 1990, o cenário sociopolítico transformou-se de maneira radical. Inicialmente, houve declínio das manifestações de rua, que conferiam visibilidade aos movimentos populares nas cidades. Alguns analistas diagnosticaram que eles estavam em crise, porque haviam perdido seu alvo e inimigo principal: os regimes militares. Em realidade, as causas da desmobilização são várias (GOHN, 2011, p. 342).

Para Rabat (2002), é importante para a análise de qualquer movimento

social, a identificação dos sujeitos que se interessam ou intervém através dele. As

primeiras lutas aqui relatadas foram encabeçadas principalmente pelas mulheres,

que hoje ainda são conhecidas na comunidade e consideradas referências

importantes na luta intensa por moradia e melhores condições de vida na década de

1980.

Havia um machismo enorme no Lagamar e as mulheres diante dos maridos eram ‘zero’, mas diante do prefeito, você não pode imaginar... as lideranças maiores... eu até comentava com elas... quando eu vejo vocês conversando com os seus maridos parecem todas assim (baixando a cabeça), submissas, não têm coragem de enfrentar... e o prefeito oh... botavam no canto da parede que ele não sabia mais o que dizer! Como pode uma coisa dessas? (Manfredo de Oliveira, maio, 2015).

Mas percebe-se que as últimas mobilizações no Lagamar, inclusive ainda

por direitos relacionados pela moradia, mas incluindo também outros interesses, têm

outros sujeitos envolvidos: os jovens.

Um exemplo da presença juvenil nas mobilizações e das mudanças nas

reivindicações foi o episódio em que em uma das primeiras assembleias do

Orçamento Participativo (OP) em Fortaleza, em 2006, em que eu estava presente,

enquanto moradora da comunidade, cerca de 100 jovens do Lagamar conseguiram

colocar a proposta da construção do Centro Urbano de Cultura, Ciência, Arte e

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Esporte (CUCA)19, da SER VI ou da SER II no Lagamar, como proposta mais

votada. Apesar disso, após posteriores reuniões com delegados da comunidade,

discussões e debates, a contrução não foi possível, pois foi alegado pela prefeitura

falta de terreno viável para tal empreendimento.

A questão é que um dos espaços sugeridos pela comunidade à época

para sediar o tão desejado CUCA (na Rua Sabino do Monte) foi comprado pela

prefeitura, em 2015, onde será construído um conjunto habitacional para o

reassentamento de famílias removidas da própria comunidade, por conta de mais

uma obra, o Veículo Leve Sobre Trilhos (VLT).

Lagamar – Trilho – casas demolidas por conta da obra do VLT – 2015. Foto: Lucélio Pires

Mas a mais atual bandeira de luta da comunidade com a participação

ativa da juventude (principalmente pelo JBD e FMB) e das mulheres que lutaram

anos atrás (hoje senhoras, idosas) é a efetiva regulamentação do Lagamar como

uma Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), que após inúmeras mobilizações,

19

Os Centros Urbanos de Cultura, Ciência, Arte e Esporte (CUCAs) são grandes equipamentos municipais construídos em áreas com menos acesso à políticas públicas, que oferecem atividades artísticas, esportivas e profissionalizantes, principalmente direcionadas ao público jovem. Atualmente existem três CUCAS em Fortaleza: na Barra do Ceará, no Mondubim, e no Jangurussu.

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reuniões de quarteirão, caminhadas até a prefeitura, câmara municipal, está em

processo implementação.

A Lei da ZEIS envolve a questão urbana do direito à cidade e à moradia.

Uma de suas principais ações é dar posse oficial aos moradores de antigas

ocupações nas grandes cidades através do tão sonhado “Papel da Casa”, melhorias

na infraestrutura local, pavimentações, políticas sociais, de trabalho e renda etc. Isso

mostra que as reivindicações do Lagamar não são tão atuais assim.

Mas a comunidade também se organiza para suprir suas necessidades

não atendidas pela prefeitura ou governo, um exemplo é a resistência de algumas

instituições da sociedade civil que contam muito pouco com recursos e outros apoios

estatais. Tais entidades atuam principalmente no âmbito da arte, cultura, educação e

formação profissional.

Ainda resistem como sociedade civil organizada: a Frente de Assistência

à Criança Carente (FACC), a Fundação Marcos de Bruin (FMB) e o grupo Jovens

em busca de Deus (JBD), todos com a participação efetiva de jovens da

comunidade, este último é locus da pesquisa aqui apresentada e é o único que não

se caracteriza como instituição, mas um movimento.

Há um novo cenário neste milênio: novos tipos movimentos, novas de-mandas, novas identidades, novos repertórios [...] Movimentos identitários, reivindicatórios de direitos culturais que lutam pelas diferenças: étnicas, culturais, religiosas, de nacionalidades etc. Movimentos comunitários de base, amalgamados por ideias e ideologias, foram enfraquecidos pelas novas formas de se fazer política, especialmente pelas novas estratégias dos governos, em todos os níveis da administração (GOHN, 2011, p. 344).

Ou seja, conforme escrito no início deste tópico, não houve um

desaparecimento (ou total desmobilização) dos movimentos sociais (a partir de

1990), pois com o desenvolvimento da cultura política neoliberal, do fortalecimento

do individualismo, das mudanças políticas, econômicas, sociais, etc., os movimentos

modificaram suas formas de atuação e ainda, seus objetivos, seus sujeitos, pelo

aparecimento de novas demandas e para responder à altura as tais mudanças

ocorridas também a partir daí.

Sendo assim, o Lagamar apresenta um histórico de luta, resistência e

organização de movimentos sociais em prol da efetivação de direitos, do

aprofundamento da democracia e cidadania. E a Igreja Católica teve um papel

importante nas reflexões e ações dessas lutas.

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Apesar das (“naturais”) mudanças de sujeitos das lutas, necessidades,

dificuldades enfrentadas no Lagamar, e da violação de direitos das juventudes, há

uma juventude que se organiza, se movimenta e intervém, sobretudo no âmbito da

cultura e da política e a partir da religião vai trilhando possibilidades contra a maré

da realidade, como o caso do JBD, com destaque a seguir.

2.2 “EU QUERO SER JOVEM EM BUSCA DE DEUS!”

“Hoje eu acordei com vontade de ser diferente, De ter algo novo, algo legal.

Cansado de insistir em coisas velhas, Coisas que me deixam infeliz, que me levam para trás.

Queria ser um jovem ativo, um jovem em busca de paz. Queria ir além do que é possível, queria ser um jovem e nada mais.

Eu quero ser Jovem em Busca de Deus, E venha ser Jovem, jovem, em Busca de Deus!

E hoje quando acordo vejo que minha vida mudou, Eu encontrei a paz, encontrei o amor.

Eu encontrei a vida que foi declarada na cruz E eu me sinto amado pela ressurreição de Jesus.”

(Música “Jovens em Busca de Deus”; Junior Mendes, Júlio César)

A partir da seção anterior, podem-se identificar as contribuições da Igreja

Católica através das CEB’s para as mudanças sociais no Lagamar, na organização

de ações coletivas e no esclarecimento dos direitos dos moradores, ainda no

decorrer da década de 1980.

Aproximadamente dezessete anos após as CEB’s, em 21 de julho de

1997, foi fundado o grupo Jovens em Busca de Deus (JBD), pela iniciativa de 7

jovens da comunidade que haviam acabado de concluir a formação para a Crisma

através da iniciativa das Irmãs Vincentinas, que realizavam tal catequese no

Lagamar de forma ainda pouco divulgada e com participação de poucas pessoas.

Criado por jovens e para jovens, com o apoio de algumas senhoras de outro grupo

da mesma paróquia (Legião de Maria), inicialmente o JBD se dedicava apenas à

catequese de Crisma, expandindo anos depois as atividades para com crianças e

adolescentes.

E aí foi, começou com 7 catequistas, para você ter ideia, hoje eu vejo todo o aparato tecnológico que o grupo tem... a gente começou com uma caixa de som, um microfone, uma panderola e as vozes... e a coragem dos 7... só (João, julho, 2015).

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O nome “Jovens em Busca de Deus” foi curiosamente definido em um

sorteio, episódio contado com muita empolgação nas entrevistas: cada jovem

presente escreveu em um pedaço de papel uma proposta de nome após uma

oração para que Deus iluminasse o nome que mais faria sentido e parte da

identidade e história do grupo que estava se formando ali, mas antes mesmo da

pessoa escolher, um papel caiu no chão, e todos consentiram que aquele fosse o

nome do grupo: Jovens em Busca de Deus.

Segundo as entrevistas, no início desse processo de criação do grupo, a

preocupação maior era doutrinária, fundamentalmente cristã e baseada na

necessidade de evangelização de jovens.

Mas era um lance bem doutrinário mesmo, completamente diferente do que é hoje. Era preocupado mesmo com a catequese de primeira comunhão, com a Crisma, receber os sacramentos, ensinar a doutrina da Igreja. Só que foram surgindo gerações diferentes o Moisés, o Elias... e todos com aquela mobilização social porque desde que eu sei o grupo sempre participou do Grito dos Excluídos e cada geração foi participando e foi despertando aquele lance do social... (José, janeiro, 2015).

Acho que pelo fato de vir da paróquia, quando veio o grupo, pra cá foi meio na ideia...o fim era esse, de crismar, primeira comunhão, as catequeses, acho que não tinha muito hoje como tem todo o cuidado do pós, o cuidado do antes também com as pessoas, o compromisso que a gente tem de ajudar de alguma forma na auto-estima, promover as pessoas, mas porque também era uma experiência ainda, tavam começando né... (Moisés, março, 2015).

Na verdade nessa época o objetivo era: catequeses!... Fazer crisma, primeira comunhão... só eram esses... (Ester, maio, 2015).

Porém, o principal fator motivador para a criação do grupo, foi também

político, pois foi o fato do Lagamar ter uma demanda grande de jovens para as

catequeses e estes, não se sentirem bem acolhidos na Paróquia São João Batista

do Tauape a que são vinculados hierarquicamente, onde ocorriam as atividades

relacionadas ao público jovem até então.

Vale salientar ainda que a Crisma consiste no sacramento de confirmação

do batismo, entende-se que, o jovem (a partir dos 15 anos) reafirma, agora de forma

consciente, já que no batismo, foi vontade de seus pais, o compromisso com a

missão Cristã, pressupondo o engajamento do jovem crismado a ações concretas

(obras) e participação dentro da Igreja.

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A Confirmação aperfeiçoa a graça batismal; é o Sacramento que dá o Espírito Santo para enraizar-nos mais profundamente na filiação divina, incorporar-nos mais firmemente a Cristo, tornar mais sólida a nossa vinculação com a Igreja, associar-nos mais à sua missão e ajudar-nos a dar testemunho da fé cristã pela palavra, acompanhada das obras (Catecismo da Igreja Católica, CIC, §1316).

E a Crisma é especial para o JBD, porque o grupo nasceu dela... é jovem! Eu percebo hoje que na nossa época, era literalmente a questão da catequese e depois, com o tempo, a gente foi percebendo a necessidade de buscar essa questão social, aí foi já quase no final da minha coordenação do grupo, quando os meninos entraram, Moisés, Rebeca, Lia, a gente teve essa necessidade realmente, começou a sucitar no grupo essa necessidade do ajudar no social e depois que eu saí, isso ficou muito marcado, obvio, eles não perderam a essencia da questão da espiritualidade mas eles também deram uma guinada, passaram a se preocupar com o lado social, o lado humano também das pessoas... (João, julho, 2015).

Atualmente o JBD não se identifica com uma ou outra vertente religiosa,

mas como uma mistura de experiências religiosas e sociais vividas em comunidade,

e ainda, é visível o comprometimento dos jovens com as mudanças na comunidade,

para além de difundir os valores e regras da Igreja Católica.

Tipo assim... nós não somos Renovação, a gente se identifica muito com as CEB’S, mas a gente sempre diz: olha a gente tem um pouco de tudo, até das igrejas evangélicas às vezes na maneira de fazer as coisas... a gente tem o discurso das pessoas que estão lá fora, porque o nosso discurso as vezes é muito mundano pra Igreja... é um mix das nossas experiências de vida na comunidade... (Moisés, Março, 2015).

Além disso, o grupo não possui hierarquia forte, é aberto a quem quiser

participar, sendo católico ou não, e tem como principal objetivo a mudança social da

comunidade, até independente da religião.

Hoje no grupo, acho que por uma evolução, a gente preza pela formação cristã? Presa. Mas acima de tudo construir um cidadão... se o cara for acreditar ou não em Deus depois... a gente ajudou a construir um cidadão... porque a realidade do Lagamar, nós fomos descobrindo com o tempo, não é uma realidade que se encaixa com a paróquia, ou com doutrina da igreja, porque a gente perdeu foi a conta de quanta gente não fez a crisma porque tava “junto”, morando junto... e a Igreja... não aceitaria... o Lagamar é uma realidade completamente diferente... (José, janeiro, 2015).

Conforme Oliveira (2010) essa é uma das características da pós-

modernidade no mundo das religiões:

A perda de autonomia das instituições religiosas frente aos seus fiéis que não se sentem mais obrigados a obedecer regras e padrões de conduta

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pré-estabelecidos. Talvez, por isso, não se sintam incomodados em expressar suas crenças, valores e sentidos, transitando em diferentes formas religiosas (OLIVEIRA, 2010; p. 18).

Portanto, o JBD nasce neste momento da fé cristã (Crisma), da vida de

seus participantes (juventude) e da própria conjuntura social, em que,

respectivamente, o compromisso com ações concretas dentro da Igreja e o desejo

de mudança são características comuns e ainda, quando a cultura política

dominante fomenta o sentimento de exclusão com relação às atividades ocorrentes

na Paróquia, onde se sentiam como o “Jesus abandonado”, explicado a seguir.

2.3. O “JESUS ABANDONADO”

Eu exijo que o meu grito Por alguém seja ouvido

Ele não é um grito de guerra É o grito de um excluído.

(Salvador do Caculé)

Tanto nas entrevistas como na observação de conversas informais no

grupo JBD, há a incidência do discurso da “exclusão” do Lagamar em relação à

“Paróquia” e à sociedade em geral, comparando a comunidade ao “Jesus

abandonado”.

Algumas pessoas do grupo tiveram experiências em um outro movimento da Igreja, que a espiritualidade deles é de viver o evangelho até de uma forma radical, no dia a dia... e falam muito sobre o Jesus abandonado... a experiência que eu tive na minha adolescência, quando começaram a falar do Jesus abandonado, Caraca! Ele mora lá no Lagamar, meu! Tipo... aquelas pessoas todas de elite... quando você vai, você sente pelo estacionamento, né... quando a gente chega lá a pé, quando vamos pras reuniões, é nos a pé e os jovens todos do nosso ‘top’ tudo entrando nos seus carros, indo embora, e a gente lá na parada de ônibus... (risos) e eles falavam muito sobre Jesus abandonado, e não é hipocrisia, eles chegaram lá estão na classe média por mérito, por varios motivos e eles tem um cuidado muito assim com o pobre, a pessoa do pobre, de promover... as palestras eram sobre Jesus Abandonado, Jesus Abandonado... Jesus na cruz: porque me abandonaste? e eu sempre lembrava do Lagamar, a gente mora lá no Lagamar meu! É o Jesus que mora lá no Lagamar! O Jesus que eles tão falando mora lá... foi muito interessantre a nossa experiência lá! (Moisés, março, 2015).

Tal abandono é relacionado à Paróquia São João Batista, mas

precisamente às pessoas que frequentavam as atividades, de classe média-alta, e

que se sentiam incomodadas com a presença de jovens do Lagamar (tão conhecido

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em Fortaleza pela falta de estrutura, educação, saúde e por episódios de violencia),

mas também pela sociedade em geral e pelo Estado, que, por conta da cultura

política dominante, agem com discriminação, negam direitos, respeito, vez e voz às

comunidades mais pobres e ao Lagamar, desde sua gênese, como já visto.

E o Jesus abandonado, o que é? São os mendigos, qualquer pessoa que necessita de carinho ou de cuidado e a sociedade não dá... o Lagamar era o Jesus abandonado porque não tinha assistencia da paróquia que acabou incentivando outras pessoas, o João mais 6 pessoas que tiveram a ideia de realizar as catequeses, e pouco a pouco formar o grupo JBD (José, janeiro, 2015).

Vários foram os episódios de preconceito e discriminação relatados

durante a pesquisa pelos jovens do JBD. Alguns eu pude presenciar, como quando

da organização da Praça do Santuário para a estreia da peça “Paixão de Cristo”,

organizada pelos jovens, em que estes, mesmo claramente em atitudes não

suspeitas (varrendo a praça, organizando o cenário, pintando elementos de cena,

etc.), foram “mandados para a parede” e revistados pela polícia.

Presenciei também alguns convites a quadrilhas juninas de outras

comunidades, a outros grupos de jovens, para participar dos eventos realizados pelo

JBD, mas em alguns contatos, os jovens sentiram que os grupos “não querem

descer pro Lagamar porque acham perigoso!”20

Outro fato entrigante é que na comunidade não acontecem Missas21 com

frequência, mas a Celebração da Palavra22 (semanalmente, aos sábados), segundo

os jovens, também porque apenas um dos padres da paróquia se dispõe a ir para a

comunidade, mas por conta do tempo, apenas em datas festivas. Os outros padres

por sua vez sempre têm outros compromissos, ou deixam claro que não vão “por

não ter colete à prova de balas”23.

Eis alguns relatos de preconceito com os jovens e crianças do Lagamar:

20

Fala de interlocutor da pesquisa. 21

Missa, ou Celebração Eucarística, é um ato solene com que os católicos celebram o sacrifício de Jesus Cristo na cruz, recordando a Última Ceia, em que há a transubstanciação (mudança de substância) do pão e do vinho, em corpo e sangue de Jesus Cristo, no ato da consagração destes, pelo sacerdote (http://www.santamissa.com.br/missa_explicada/missa_explicada2.asp). 22

Quando a celebração da Missa dominical não é possível, por ausência de sacerdote é muito recomendada a celebração da Palavra de Deus, seguida da comunhão eucarística; porém, na ocasião não acontece o rito maior: a transubstanciação, pois já são levados o corpo e sangue de Jesus (o pão e o vinho consagrados anteriormente). (http://www.misericordia.com.br/formacoes/conteudo-formacoes.php?id=527. 23

Fala de interlocutor da pesquisa.

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Era uma de uma maneira eles nem percebiam isso, a gente que via, quando chegava tava todo mundo fazendo a primeira comunhão junto, quando era pra pegar na mão na hora do Pai Nosso ou qualquer coisa, eles não queriam, se pegasse depois jogava assim... os meninos daqui (da paróquia) se recusavam... e esse preconceito era passado de pai pra filho... (Ruth, Fevereiro, 2015).

E todo mundo sabe dessas brigas e caminhando, e caminhando... outra vez...(isso tudo pra mostrar o preconceito) a gente estava numa reunião com as senhoras, o pessoal aí da paróquia, Marta tava lá também e outras pessoas da comunidade e foram falar das barracas, como iam organizar... falaram: as barracas tem que ter cuidado, prestar atenção porque os muleques do Lagamar vão tudo pra cima pra comer... aí foi uma briga feia... Marta se irritou... Ela tem toda razão, não é assim não... minha gente pelo amor de Deus! (Ruth, Fevereiro, 2015).

Sei que um dia teve uns problemas na caixa de som... aí eu pedi a um dos meninos pra trazer a caixa pra cá que daqui eu levaria pra consertar... aí lá vem o Elias e o Moisés num carro de mão trazendo a caixa de som, quando

chegou bem ali na esquina a polícia: Ei! Que caixa de som é essa? Não a gente vai levando ali na casa da D. Ruth... ‘Tem D. Ruth não, eu

quero saber é o que vcs tão fazendo... bota pra cá!’ Aí Moisés bem mal criado... ‘a gente não tá roubando não!’ ‘Mas eu quero saber a procedência!’ ‘Não, é da Igreja nós somos do grupo de jovens...’ ‘ai é? pois vamos lá na Igreja pra saber se é mesmo...’ aí saiu os bixim na frente e a polícia atrás... até chegar na Igreja e quando chegou lá o secretário: não realmente a caixa de som é deles mesmo! Eles vão levar pra consertar! Aí quando me contaram eu pensei: meu Deus! Quanta humilhação! Numa dificuldade dessa, não sei se eu teria continuado! Se eu teria tanta resistência! Mas os meninos ali são igual a mandacaru! Mandacaru é que pode ter seca quanto tiver, acaba o mundo e ele ali vivo... e os meninos são assim... firme e forte... (Ruth, Fevereiro, 2015). Olhe, foi de uma maneira... Tinha a primeira comunhão dos meninos de um colégio... Aí quando foi uma vez os meninos do Lagamar fizeram junto com eles, ah minha filha! Eles ficaram danados! ‘Se eu soubesse que a primeira comunhão dos meus meninos ia ser com esses moleques eu não queria! E nunca mais eu faço primeira comunhão aqui, agora vai ser no colégio!’ Ai mudou a partir dessa data, foi pra lá... quer dizer... a força do preconceito né... Mudou de canto, ficou no colégio... (Ruth, Fevereiro, 2015).

Dagnino (1994) define que para o estabelecimento da democracia deve-

se entendê-la para além de um sistema político, compreendendo a necessidade de

uma transformação cultural para o seu desenvolvimento, construindo uma cultura

democrática, pois a desigualdade econômica, a miséria, que assolam o Brasil (e a

América Latina) aparecem como aspectos de um “ordenamento social presidido pela

organização hierárquica e desigual do conjunto das relações sociais: o que podemos

chamar autoritarismo social” (DAGNINO, 1994, p.1, grifo do autor).

Segundo a autora citada, o autoritarismo social é enraizado na cultura

brasileira e estabelece clasificações diferentes de pessoas distribuidas em seus

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respectivos lugares de forma hierárquica, que se apresenta cotidianamente na rua,

sociedade, Estado, gerando formas de sociabilidade e uma cultura autoritária de

exclusão.

Sendo assim, para o desenvolvimento da democracia, torna-se primordial

a minação desse autorismo, da cultura política da exclusão, para contemplar a

totalidade da sociedade para além da exclusão política (propriamente dita).

Esse autoritarismo engendra formas de sociabilidade e uma cultura autoritária de exclusão que subjaz ao conjunto das práticas sociais e reproduz a desigualdade nas relações sociais em todos os seus níveis. Nesse sentido, sua eliminação constitui um desafio fundamental para a efetiva democratização da sociedade. A consideração dessa dimensão implica desde logo uma redefinição daquilo que é normalmente visto como o terreno da política e das relações de poder a serem transformadas. E, fundamentalmente, significa uma ampliação e aprofundamento da concepção de democracia, de modo a incluir o conjunto das práticas sociais e culturais, uma concepção de democracia que transcende o nível institucional formal e se debruça sobre o conjunto das relações sociais permeadas pelo autoritarismo social e não apenas pela exclusão política no sentido estrito (DAGNINO, 1994, p. 1).

Tal enfrenteamento ao autoristarismo social e à cultura política da

exclusão tem grandes contribuições dos movimentos sociais, como o caso do JBD,

que consegue pouco a pouco mudar os conceitos e práticas da exclusão a que se

sentiam submetidos, através da resistência e da arte, conseguem espaço e respeito

das pessoas da Paróquia e ainda, buscam dia a dia contribuir com a identificação de

mais pessoas da comunidade, com o intuito de fortalecer essa resistência com

relação à sociedade em geral.

O maior feito deles, as consequencias do trabalho deles é esse testemunho pra paróquia! Eu acho que hoje o povo fala, mesmo que ainda tenha preconceito, mas mesmo assim, quando é os meninos do Lagamar, tudo que fazem é bem feito! Aquele povo que vem de lá, tudo que faz é bonito! Bem feito... Eu acho que mudou, aff Maria... Mudou porque eles tem muita paciência, nunca bateram de frente, de dizer assim, vocês não respeitam a gente! Eles faziam mais era viver! Através da ação iam mostrando... quer dizer, quanto mais preconceito mais eles agiam... tudo o quanto pediam, o que o padre pedir, um tempo aí na festa, botaram eles pra varrer, quando terminasse tudo, se curvaram, foram varrer... todo tempo fazendo-se um, como diz São Paulo, mostrar-se um, com os fracos tornar-se fracos, para assim ganhar os fracos... tornei-me tudo para todos para ganhar alguns a todo custo! Foi o fazer-se um... nem baixou a cabeça, de se sentir humilhado, subserviente, ah não, vamos fazer porque nós somos do Lagamar... não! Nós vamos fazer porque nós somos cristãos, cidadãos de cabeça erguida! Nunca teve essa subserviência, nem de chegar aí e dizer não realmente, com brigas... (Ruth, Fevereiro, 2015).

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O grupo surgiu pela necessidade das catequeses, o Lagamar até hoje se sente “meio descuidado” da Paróquia, hoje tem uma assistência, um olhar da Paróquia, ainda não é o adequado... antes nós éramos mais esquecidos (José, janeiro, 2015).

Outro desafio enfrentado pelos jovens foi a decisão de levar as atividades

festivas da Igreja relacionadas às catequeses24 (celebrações de Crisma, Primeira

Eucaristia), para a pracinha do Santuário São Francisco, pois encontraram

resistência dos próprios moradores do Lagamar, que queriam levar as crianças e as

famílias para a Paróquia, porque é “mais bonita”, fora da comunidade, etc.

A paróquia assim... a discriminação, hoje é como Moisés diz: aceitam, mas ainda é com o pé atrás... aquela coisa do grupo convencer as crianças e principalmente as mães, pros meninos fazerem a primeira eucaristia lá no Lagamar! Foi uma resistência muito grande! E o grupo conseguiu... As mães queriam que fosse aqui (na paróquia) porque vestiam os meninos e tal... chegava a época da primeira comunhão era uma confusão aí um dia eu, João e os catequistas fizemos uma reunião... umas mães, algumas, queriam no Lagamar, mas a maioria queria que fosse aqui e a cada ano a gente ia convencendo, conversando, até que conseguimos... hoje fazem questão que seja no Lagamar... uma ou outra ainda fala, mas a maioria: tem que ser no Lagamar! Quem pensou que um dia ia chegar a isso? Elas não queriam de jeito nenhum... era tipo assim um complexo, uma vergonha... (Ruth, fevereiro, 2015).

A exclusão sentida pelos jovens proporcionou também a autonomia do

Lagamar com relação às atividades da Igreja, além de contribuir com a formação da

identidade dos jovens enquanto moradores da comunidade.

Engraçado... algo que é pro mal, foi pro bem... o preconceito que a gente sofre... porque nós criamos autonomia quando a paróquia deixou de dar atenção pra gente! Se não tem ninguém pra cá então vamos fazer a crisma do jeito que dá, claro, com compromisso, a gente nunca distorceu a mensagem de Jesus Cristo, porque temos muito clara, a mensagem é essa: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo! (Moisés, março, 2015).

Como visto, a exclusão entre bairros (territórios) é apenas uma das

refrações de um sistema de relações desiguais em sua totalidade, pois o preconceito

e estigma que a comunidade do Lagamar é vinculada advém não apenas dos

vizinhos, mas também do Estado (através da polícia), da Igreja e até dos próprios

24

Encontros geralmente semanais que visam à educação de crianças, adolescentes, jovens e adultos na fé cristã. É um processo de educação da fé em comunidade, é dinâmica, é sistemática e permanente (http://wiki.cancaonova.com/index.php/Catequese).

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moradores do local, mas pouco a pouco o JBD vai conseguindo contribuir com

mudanças neste contexto.

Mas essas reflexões acerca da exclusão, da identidade com a luta do

Lagamar, no JBD foram proporcionadas gradativamente pela influência de vários

vetores, entre eles, a relação entre os jovens do JBD e as senhoras da Legião de

Maria, grupo composto em sua maioria por lideranças antigas do Lagamar, que

desde o início do grupo contribuiram e contribuem para o seu desenvolvimento,

conforme apresentado no próximo tópico.

2.4. ENTRE GERAÇÕES: “SENHORAS” E “MENINOS”

O saber a gente aprende com os mestres e os livros.

A sabedoria se aprende é com a vida e com os humildes (Cora Coralina)

De acordo com Ferrigno (2013) “[...] boas relações entre velhos e moços

são benéficas não apenas para os diretamente envolvidos nesse processo de

interação, mas a toda a comunidade [...]” (FERRIGNO, 2013, p. 10). Assim acontece

no JBD, pois desde seu surgimento até hoje, os jovens têm o apoio de integrantes

da Legião de Maria, grupo formado por senhoras da comunidade, em sua maioria,

antigas lideranças comunitárias na luta pela moradia.

Ferrigno (2013) aponta essa intergeracionalidade como a “[...] relação

entre universos culturais com as peculiaridades que, em um dado momento

histórico, o pertencer a determinada geração se configura” (FERRIGNO, 2013, p.

10). Entre o JBD e a Legião de Maria, essa relação contribue na renovação dos

sentidos dados às atividades, corroborando com Gohn (2010),

A experiência da qual [os movimentos sociais] são portadores não advém de forças congeladas do passado – embora este tenha importância crucial ao criar uma memória que, quando resgatada, dá sentido às lutas do presente. A experiência recria-se cotidianamente, na adversidade das situações que enfrentam. Concordamos com antigas análises de Touraine, em que afirmava que os movimentos são o coração, o pulsar da sociedade... Eles expressam energias de resistência ao velho que oprime ou de construção do novo que liberte (GOHN, 2010, p. 336).

As “senhoras” como os jovens a chamam, e os “meninos” como elas se

referem ao JBD, são importantes nas reflexões sobre as práticas dos dois grupos, as

primeiras são exemplos de força, conservatórios da história do Lagamar e ajudam os

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jovens a preservarem a memória da comunidade, os jovens por sua vez são fontes

de entusiasmo e motivação para continuação da luta por elas e vice-versa.

Apesar da diferença etária, os encontros em que os dois grupos estão

presentes é sempre marcado por muito respeito, alegria, admiração e ensinamentos

das duas partes, com troca de experiência das senhoras na comunidade e a dos

jovens com os próprios jovens, por exemplo.

E quero ficar bem velhinha igual as senhoras da Legião de Maria, sendo Jovem em Busca de Deus! Sendo uma JBD de fato! (Ester, maio, 2015).

As novenas, Celebrações da Palavra, a confraternização de Natal, as

orações comunitárias, o Baile da Saudade, as atividades relativas ao Conselho da

ZEIS e as festas do padroeiro São Francisco, são exemplos de eventos que ocorrem

em conjunto: senhoras e meninos planejando e executando movimentações na

comunidade.

Mas as senhoras também dão “puxões de orelha” como quando

sugeriram a expansão das orações ocorridas às sextas feiras na Casa do Grupo

(antes aconteciam apenas lá e mesmo sendo aberta à comunidade, ainda restringia

a participação efetiva da comunidade), para serem realizadas também nas casas de

alguns moradores que solicitassem como já acontece com as novenas de São

Francisco, de Nossa Senhora e do Natal25.

A oração comunitária nas casas tem sido um aprendizado muito grande porque antes era fechadinho ali só para o grupo, quando resolvemos nos abrir, por intermedio das senhoras da Legião de Maria, que já fazem esse acompanhamento com as familias ha muitos anos aqui: se uma familia ta precisando ir para o hospital elas vão com a familia, levam o ministro pra dar Eucaristia, arranjam cadeira de rodas, então, elas que sempre fizeram um trabalho social na comunidade né... o que a gente faz não chega nem perto do que elas fazem... aí elas uma vez puxaram a nossa orelha dizendo: “vocês vão morrer aqui dentro do grupo? e as pessoas que estão lá fora na rua sofrendo vocês não vão fazer nada por elas?” e hoje a gente tenta seguir aí se planejando, duas sextas feiras no mês nas casas... (Rebeca, agosto, 2015).

Participei de algumas orações comunitárias (além de novenas,

Celebrações da Palavra, da Festa do Padroeiro e da confraternização de natal de

2014 e 2015) e foi em um desses eventos que fui apresentada como integrante do 25

Orações programadas nas casas de moradores que solicitam. Ocorrem durante os meses de maio (Nossa Senhora), outubro (São Francisco) e dezembro (Natal). Geralmente são realizadas em conjunto pelos jovens e as senhoras.

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grupo pela primeira vez, por uma jovem que estava facilitando o momento. Para não

desmenti-la na frente da comunidade, achei por bem atender seu chamado, levantar

e receber a oração que ela havia pedido para os integrantes do grupo, a partir de

então, sempre sou apresentada como uma integrante, mas pela modalidade de

pesquisa que escolhi, é natural minha identificação com o grupo, não me incomodei.

As orações comunitárias (nas casas) são momentos de plena troca:

comemorações de aniversários, por morte (ou vida eterna, como eles chamam), ou

simplesmente para pedir paz nas famílias, na comunidade, sempre com música,

abraços de acolhida, leitura da bíblia, espaço para fala das pessoas, reflexões sobre

a realidade da comunidade, pedidos espontâneos de oração pelas pessoas doentes,

idosas, pelos jovens e as demandas da comunidade em geral.

Além disso, ainda se tem no final o momento dos “avisos” onde tudo pode

ser mencionado: o casamento de alguém, uma mobilização política na comunidade,

algum evento da Igreja, enfim, é um espaço de inter-relação, mobilização e

fraternidade.

Ao final dos encontros, as pessoas agradecem, dizem que se sentem

mais leves, parabenizam o trabalho do grupo e geralmente já marcam outro

encontro para a próxima semana ou mês, em outra casa do Lagamar.

Outro espaço assim são as Celebrações da Palavra que acontecem

dentro do Santuário São Francisco ou na praça que o envolve. Como há uma

dificuldade em ir padres ao Lagamar para realizar missas (apenas nas festas mais

importantes), as senhoras e os jovens se reunem e contactam um Ministro ou

Ministra da Eucaristia26 para fazerem celebrações semanais.

Em 2014, Fortaleza liderou o ranking das capitais com maior número de

homicídios no Brasil (DIARIO DO NORDESTE, 2015). O Lagamar por sua vez, em

2015, sofreu muitas perdas por mortes violentas também, ocorrendo até várias em

uma mesma semana, e vitimizando jovens, em sua maioria. Isso acabou casionando

um clima de muita tristeza e medo na comunidade, principalmente no início do

segundo sementre deste ano. Por isso, as senhoras e os jovens se mobilizaram e ao

final da Festa do Padroeiro São Francisco realizaram também a I Caminhada pela

paz no Lagamar, na qual participei.

26

Pessoa que passa por qualificações e pode distribuir a hóstia consagrada aos fiéis, porém, não pode consagrá-la, como fazem os sacerdotes.

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O grupo conseguiu uma doação para passar um carro de som na

comunidade avisando sobre a caminhada, que seguiria com a imagem de São

Francisco da Av. Sabino do Monte (Rua da Lavanderia), percorrendo quase toda a

Avenida do Canal, até a pracinha do Santuário São Francisco, onde ocorreria uma

Missa em celebração ao fechamento dos festejos do santo. O ponto de encontro foi

o CRAS- Lagamar (conhecido como Lavanderia ou LBA).

Durante o percurso aconteceram algumas paradas para reflexão e

orações pelas famílias e pelos jovens, enfocando a falta de oportunidades para

estes últimos e a “ausência” do Estado através da educação, saúde, lazer, esporte,

etc. e ainda, o sofrimento das famílias que perderam pessoas, que convivem com as

drogas, com as dificuldades financeiras etc., além das reflexões pessoais, de pensar

no perdão, na caridade, no relacionamento com o próximo em geral.

As pessoas que não estavam caminhando com o grupo, participaram

também do momento, mesmo enquanto passavam, com sacolas de compras,

voltando do trabalho, fazendo caminhada, nos carros, nos bares, ou simplesmente

sentados na calçada aproveitando o fim de tarde, oravam, cantavam, prestavam

atenção atentos, faziam sinais de orações, fechavam os olhos durante as reflexões,

envolveram-se também.

Apesar das atividades com as senhoras serem mais ligadas a religião em

si, os jovens também dão caráter político aos momentos, quando reforçam as

necessidades da comunidade, relembram as dificuldades, mas também enaltecem

os pontos fortes do Lagamar, sobretudo nesta caminhada, inédita para os

moradores, e em um momento tão doloroso para todos.

As atividades relativas à ZEIS, também são lideradas pelos jovens e pelas

senhoras, os jovens atuando mais na movimentação, em reuniões com a Prefeitura,

e as senhoras nas reuniões mais internas, por conta da dificuldade de deslocamento

das mesmas.

Porém essa relação entre as senhoras e os meninos não foi sempre

assim harmoniosa e fácil, o primeiro coordenador do grupo, em entrevista relatou

que o segundo conseguiu o que ele não deu conta: juntar as experiências das

senhoras e dos jovens, o que daria (e deu) ainda mais potência aos trabalhos dos

dois grupos no Lagamar.

Outra experiência muito massa é os mais velhos com os mais novos, no começo no grupo era muito separado, ninguém queria participar de nada das senhoras, porque novena era a coisa mais antiga do mundo, hoje ainda

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é né... (risos) aí ninguém queria participar... E eu descobri que elas eram muito jovens! Elas falavam de coisas jovens, muito ousadas, muito... até a pessoa mostrar pros outros jovens, poxa pessoal vamos quebrar essa barreira vamos ver pelo outro lado! Foi um processo, mas depois que a gente começou e em um determinado momento da nossa caminhada, a caminhada delas e a nossa chegou um momento que se cruzaram a gente começou a andar juntos no mesmo caminho... Nós crescemos! Elas são muito experientes... (Moisés, março, 2015).

A troca de experiências acontece entre as idades, pois os jovens também

dão apoio, incentivo e força para as senhoras, já tão cansadas da luta política e

cotidiana, de cuidados com os netos, suas casas, muitas vezes, mas encontram

motivos para investir na vida, através da convivência com os jovens.

É o lance lá dos índios né quando a gente lê dizendo que poxa! O respeito que as tribos têm com os mais velhos, eu acho que a gente tem um pouquinho disso, porque a gente cresceu muito quando começamos a dar voz e ouvidos pras senhoras, e elas também, poxa! Elas tão chegando nos 80, 90 anos, e a D. Sara morreu com 90 anos e sempre dizia pra gente: pessoal! Eu só estou chegando nessa idade por causa de vocês! Ela sempre disse isso, se não fosse vocês eu não estaria nessa idade... eu tenho certeza que a D. Adira, a D. Ruth, ainda tão na caminhada porque a gente dá energia pra elas, meu! A gente passa um pouquinho da nossa e elas vão passando pra nós... A D. Abigail quase morreu, e ela ta com a gente, participa das reuniões e continua motivada! (Moisés, março, 2015).

Eu tiro pelas senhoras, Ave Maria! Os meninos... tem que acatar tudo que eles dizem porque eles são tudo aqui pra gente! Eu acho que o testemunho...Ah! Pra mim foi tudo! Eu acho que eu nem mereço um presente desse que Deus me deu na minha velhice... (Ruth, fevereiro, 2015).

Atualmente, apesar de ser ligado à Igreja Católica, o JBD apresenta um

senso crítico com relação à doutrina, guarda as memórias das CEBS, repassadas

pelas senhoras do grupo Legião de Maria, e ainda, considera os fatos cotidianos da

comunidade e as experiências pessoais dos participantes em suas ações, além de

fomentar o respeito nas relações, posições, opiniões entre as pessoas,

independentemente da idade.

A relação entre os jovens do JBD e as senhoras da Legião de Maria

contribuiu para mudanças em algumas atividades do grupo e no seu “olhar para o

social”, conforme os próprios jovens relataram em discussão no próximo tópico.

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2.5. A MUDANÇA DE OLHAR PARA O ‘SOCIAL’ OU O “SÓCIO-ESPIRITUAL” Eu vejo o outro

e outro e outro

enfim dezenas trens passando

vagões cheios de gente centenas

o outro que há em mim

é você você

e você assim como

eu estou em você eu estou nele

em nós e só quando

estamos em nós estamos em paz

mesmo que estejamos a sós. (Contranarciso – Paulo Leminski)

De acordo com os entrevistados, no início da trajetória do JBD, o grupo

era mais voltado para os ensinamentos da doutrina católica, as catequeses e

evangelização, mas após alguns anos, por variados fatores, passaram a ter um

“olhar diferenciado para ‘o social’”.

Hoje a gente pensa mais no social, mas assim... E eu acho que o nosso é mais a frente, é diferente, porque o nosso tem o espiritual no meio, eu acho que o nosso, é o ‘socio-espiritual’, tipo assim, não adianta só o José se dar bem na vida, não adianta só o José! Ele tem que se dar bem na vida, mas ele tem que ser uma pessoa honesta, que tem cuidado com o outro... Porque se só ele se der bem com a vida, ele vai chegar lá na frente, vai ser um empresário e vai esquecer as pessoas, ele vai dar rasteira nas pessoas. E o nosso lance é tipo assim: poxa cara! Nós somos os excluidos, a gente quer um dia promover esse pessoal, mas a gente não quer promover esse pessoal pra eles serem iguais às pessoas que nos excluem. A gente quer que eles cheguem lá na frente e deem as mãos pras pessoas que tão lá atrás. Então acho que o nosso diferencial é esse, é essa a mensagem de Jesus Cristo, fazer com que todos cheguem pra um meio e peguem as pessoas que estão lá na margem e coloquem também no meio (Moisés, março, 2015).

Com o Moisés, já é mais social, é espiritual também, mas é mais social do que muitos lá no grupo, mas esse lado social e espritual é muito misturado... o grupo é muito de momento, tem momento que é super espiritual e períodos que é mais de social... na ultima reunião chegamos a conclusão que o grupo tá muito social e pouco espritual... muito social é super engajado no movimento das ZEIS, as discussões sobre as eleições, na Crisma, não de dizer pra votar em um ou em outro, mas motivar o pensamento critico sobre os políticos... lembro de um encontro que fizemos um tribunal... uma galera tinha que defender e outra acusar temas sociais... o lance que eu achei super bacana porque teve gente que vestiu tanto a

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camisa que eu tava vendo a hora passar pro outro lado e bater no outro... só que a gente: não pessoal, vamos com calma, é só pra motivar os pensamentos! (José, janeiro, 2015).

O sócio-espiritual seria assim, a relação entre os ensinamentos de Jesus

Cristo e as necessidades objetivas das pessoas, a qualidade de vida destas, o que

implica diretamente na busca por direitos e na luta por melhores condições de

moradia, de educação, de vida.

Digo que hoje, como eu falo sempre, o grupo é um ponto de luz no Lagamar, porque consegue não só agir na questão espiritual, mas também a questão humana, social também desse trabalho de resgate de vidas, almas pra Deus, mas tambem o resgate da dignidade, acho que mais que a questão espiritual até, mas simplesmente o resgate da dignidade da pessoa enquanto pessoa, na sua necessidade, na sua carencia, no que for... o grupo tem esse papel dentro da comunidade, esse papel de resgatar não só as almas, num lado espiritual, mas resgatar principalmente a dignidade humana em si, esse é o grande papel! E isso hoje a gente vê... (João, julho, 2015).

Os principais fatores que fizeram com que o grupo mudasse a perspectiva

das atividades para as questões políticas e sociais e demandas objetivas da

comunidade em geral, além de questões religiosas, foram: a relação com as

senhoras da Legião de Maria, a coordenação mais democrática de Moisés, a

entrada de alguns jovens na faculdade, a participação em mobilizações e passeatas

a favor de direitos, bem como a experiência de alguns que foram trabalhar em uma

Organização Não Governamental (ONG) na comunidade, a Fundação Marcos de

Bruin (FMB).

... E hoje, com o tempo, com D. Ruth e D. Sara foi mudando toda a história do grupo, também com a junção das senhoras da Legião de Maria, foi pra outros rumos... de ser algo mais social... mas na verdade o mais social mudou mesmo em 2007, que foi quando o Moisés assumiu o grupo enquanto coordenação que foi mudando assim a forma dele enquanto coordenador, de dar voz a outras pessoas, de deixar que outras pessoas também em alguns momentos fossem esse coordenador... e essas lutas da ZEIS, dessa questão de você ter um olhar mais diferenciado pra catequese, ser algo mais social foi de fato depois do Moisés e também depois que a gente começou a entrar na faculdade... de ter outro olhar que não fosse só o olhar religioso, não só: vai pra lá ensinar o menino a rezar! (Ester, maio, 2015).

Tais experiências individuais e coletivas despertaram o olhar dos jovens

para as necessidades objetivas da comunidade, tão ausente de políticas públicas, e

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que suprir tais necessidades, tanto exigindo políticas do Estado, quanto executando

por si mesmos, seria fundamental para viverem a religião com mais verdade.

Na exigência do dever do Estado, pode-se destacar (além do Movimento

ZEIS e outros apresentados mais adiante) a participação do grupo no Grito dos

Excluídos27, manifestação popular que, no Brasil, ocorre anualmente durante a

semana da pátria e tem ápice no dia da Independência do país, 7 de setembro, com

o intuito de dar visibilidade aos excluídos. É encabeçado por pastorais da Igreja

Católica, com a participação de movimentos sociais, entidades, outras igrejas, etc. e

segundo o site do evento, também acontece em outros países das Américas, como

Chile e Peru.

No Ceará, o JBD participa da comissão que organiza o Grito dos

Excluídos, que em 2015 teve como lema: ‘Que país é esse que mata gente, que a

mídia mente e nos consome?’. E os jovens do Lagamar apresentaram também uma

peça teatral em que enfatizavam a gravidade e a ocorrência da violência contra a

mulher, além das imposições da mídia, por vezes, manipulando informações, ou

selecionando quais são mais divulgadas.

Nós participamos da organização do Grito, esse ano ainda mais, porque estamos preparando a mística de abertura: vamos demonstrar através de uma pequena peça teatral sobre tema que é "Que país é esse que mata a gente, que a mídia mente e nos consome?" Aí pegamos vários dados sobre discriminação, preconceito, violencia contra a mulher e vamos mostrar, tipo... quantas mulheres são mortas por dia, ou por hora, como vimos, a cada 15 segundos uma mulher é agredida no Brasil... vamos mostrar um pouco da agressão, de quantas são assassinadas e tal... essas coisas que a mídia mostra, mas é passado batido, rápido, e nós vamos dizer que a gente cansou dessas coisas e dizer chega pra tudo isso! E no final questionamos... por exemplo, tem uma parte lá que um cara segurando o braço da mulher aí ele joga ela no chão e na hora que ele vai espancar... a cena congela e ela vai dizer: a cada 15 segundos não sei quantas mulheres são agredidas no Brasil, tantas são mortas... o vizinho vê aquela agressão e acha aquilo super natural enquanto a outra quando vê o corpo estendido no chão lamenta, meu Deus... e ela vai gritar chega! De tanta violencia e vai repetindo: que país é esse que a mídia mente e nos consome?! Vão ser textos curtinhos, mas bem impactantes! Só pra mostrar os dados e pra dizer

que CHEGA! de tanta violencia! (Abiel, agosto, 2014).

27

O Grito dos Excluídos é uma manifestação popular carregada de simbolismo, é um espaço de animação e profecia, sempre aberto e plural de pessoas, grupos, entidades, igrejas e movimentos sociais comprometidos com as causas dos excluídos. Fonte: http://www.gritodosexcluidos.org/historia/.

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Outro fator para tal mudança foi a participação de alguns jovens no

Conselho da ZEIS do Lagamar28, a única Zona de Fortaleza a possuir este espaço

de organização, no caso, composto pelos “meninos” e “senhoras”. Mas a

participação do JBD nesse movimento, desde 2009, deu-se principalmente pela

entrada de alguns jovens para trabalhar na Fundação Marcos de Bruin, ONG que

iniciou as discussões acerca do Lagamar se tornar uma ZEIS.

A experiência de alguns levou os outros a conhecerem o movimento e se

dar conta da necessecidade e do direito “adquirido” do Lagamar em ser ZEIS, tanto

por ser uma ocupação, quanto por não ter políticas públicas suficientes para suprir

as necessidades da população.

O trabalho na Fundação também gerou parcerias entre ela e o JBD, que

executam até hoje ações em conjunto, cedendo espaços físicos para atividades do

outro e organizando mobilizações e eventos em conjunto na comunidade. Além

disso, as duas últimas gestões da coordenação geral da instituição foram assumidas

por duas jovens, mulheres, participantes do JBD.

Alvarez (2000) afirma que os movimentos sociais formam redes ou teias

com outros grupos e instituições, que “[...] constroem e configuram novos vínculos

interpessoais, inter-organizacionais e político-culturais com outros movimentos, bem

como com uma multiplicidade de atores e espaços culturais e institucionais [...]”

(ALVAREZ, 2000, p. 35).

A junção com a FMB, quando a Maria foi trabalhar lá trouxe muito isso pro grupo, porque juntou as atividades da FMB, percussão, coral todo esse trabalho de desenvolvimento das crianças e adolescentes, com a catequese do grupo, então esse olhar mais social de entender que eles necessitam de algo mais, de uma formação, que os pais precisam de informação também, que a comunidade precisa ter alguns atrativos a mais que não fosse só questão das drogas, a violencia... não tinha outras coisas pras crianças e pros jovens... (Ester, maio, 2015).

As atividades que fazem parte do planejamento do JBD anualmente ou

semestralmente, são: os vários eventos culturais (Arraiá JBD, JBD Kids, JBDance,

JBD Esport Club, Via Sacra, Louvor e Adoração, Abraço da Praça, Baile da

Saudade, Parabéns pra Jesus, festas e novenas de santos e do padroeiro), as aulas

28

O Conselho da ZEIS do Lagamar é composto por moradores (em sua maioria os “meninos” e as “senhoras”) da comunidade e membros da Prefeitura de Fortaleza. É espaço de decisões sobre intervenções estruturais no local, fiscalização e exigência de implementação da ZEIS do Lagamar. Para mais informações sobre o Movimento Zeis Lagamar, vide GOMES (2013).

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de música (Ministério de Música, aulas de violão), a Biblioteca Aurélio Borges, a

realização de peças teatrais, danças (Ministério de Artes), mobilizações políticas,

participação em manifestações diversas em prol da efetivação de direitos na

comunidade, dentre elas, o da ZEIS do Lagamar, em que quase a metade dos

conselheiros são membros do JBD, além das catequeses (Pré-Eucaristia, Eucaristia,

Perseverança e Crisma).

As catequeses terão destaque no próximo tópico, por ser tratarem da

atividade que deu origem ao grupo, e que até hoje, continuam sendo uma das mais

importantes, senão a mais importante delas e porque também passaram por um

processo de mudança a partir das reflexões apresentadas aqui, que refletiram

também em várias outras atividades, expostas ainda mais adiante.

2.5.1. As “catequeses sociais”

Quino. Fonte: http://www.fotolog.com/sinestesica/23394117/. As ‘catequeses sociais’ são oportunidade de conhecimento de “coisas realmente importantes”, que contribuem para formação de indivíduos comprometidos com mudanças na sociedade.

As catequeses, conforme já exposto, foi o espaço de gênese do JBD,

antes com objetivos mais doutrinários, fechados no sentido religioso, mas, de acordo

com as entrevistas, unânimemente, foi sofrendo processos de amadurecimento e se

tornando “uma catequese social... que eu acho que só tem no Lagamar” (Ester,

maio, 2015).

Então a junção, da Maria ter ido pra FMB, o José ter assumido a coordenação e a D. Ruth e D. Sarah terem ficado mais forte aqui na comunidade, e também depois que a gente começou a entrar na faculdade... fez a gente ter um olhar mais diferenciado pra catequese, ser algo mais ‘social’... fez com que o grupo mudasse esse olhar catequético, que hoje é uma ‘catequese social’... que eu acho que só tem no Lagamar. (Ester, maio, 2015).

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Consistem em encontros semanais (aos sábados à tarde) que acontecem

durante todo o ano, pois no JBD não adere às férias escolares, como na maioria das

paróquias, alegam que após as férias é mais difícil a mobilização das crianças e dos

jovens para retornarem às atividades. Além disso, é uma forma de dar continuidade

ao trabalho, sem pausas e acima de tudo, “...continuar protegendo as crianças e

jovens de alguma forma, porque nas férias tudo pode acontecer...”29

Os grupos de catequese são divididos por faixas etárias: a “Pré-

Eucaristia” tem as crianças com idade até 7 anos, a partir dos 8 anos, elas vão para

a “Primeira Comunhão”, onde ficam até os 12, depois vão para a “Perseverança”, e

a partir dos 14, para a “Crisma”, onde vão poder escolher ser catequistas, ou

contribuir em outras atividades no JBD.

Sendo assim, as catequeses se caracterizam também como um trabalho

de base do grupo, que acompanha os participantes desde criança, até a

adolescencia e juventude, claro que nem sempre o que acontece é esse

acompanhamento retilíneo, há quem entre no grupo em qualquer dessas etapas,

mas é a partir das catequeses que o grupo se renova e dá continuidade ao trabalho.

Alguns foram passando por aquela metodologia neh... passava pela primeira comunhão, aih se encontrava na Crisma... e na crisma tentavam motivar os jovens pra continuar... o grupo foi se renovando... (José, janeiro, 2015).

Pude identificar o quanto estes momentos são espaços de discussão,

decisões coletivas, criações artísticas, trocas de experiência, conhecimentos e assim

exercício de cidadania, claro, também envolvendo os assuntos religiosos, conforme

caráter do grupo.

Na maioria das vezes, os encontros envolviam a arte: vi peças teatrais

acerca dos problemas e propondo soluções para o Lagamar, que tratavam do tráfico

de drogas, da redução da maioridade penal, dos estigmas e preconceitos que a

comunidade vive; por vezes, músicas compostas pelos próprios jovens mostrando

reflexões acerca do “ser jovem”, além de ações como um multirão para a limpeza

das margens (de uma parte) do Riacho Tauape, ou uma simples ida ao cinema com

adolescentes que nunca haviam ido a uma sessão.

29

Fala de interlocutor da pesquisa.

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Os encontros que tratam da história da comunidade, das antigas

lideranças, das lutas e da resistência do povo também são formas de fortalecer a

identidade dos moradores e contribuir com as mudanças no modo como a sociedade

e o próprio Lagamar se veem.

A gente sempre tem encontros também que eles possam se identificar com a comunidade, o objetivo até que ultrapassa o doutrinário é apresentar pra eles também a identificação com o local onde eles moram, as crianças da catequese são crianças que não tem vergonha de dizer que moram no Lagamar, então apresentamos isso: o amor à comunidade, falamos muito da historia do Lagamar nas catequeses... (Rebeca, agosto, 2015).

Um dos temas que nunca saem da crisma e das outras catequeses é a história do Lagamar, a gente conta que é o povo retirante que veio pro Lagamar que queria espaço pra plantar, ou procurar emprego, construir uma casa, morar na cidade, que era um terreno da marinha e o povo se apropriou ao redor do riacho do Tauape... aí vai né... a gente conta a história do Lagamar porque quando você conhece a sua história você tem propriedade daquilo: É meu! (José, janeiro; 2015).

Conforme bastante mencionado nas entrevistas, as catequeses também

são espaços de revitalização de autoestima, planejamento de vida, atuando na

formação individual dos participantes (jovens e crianças) e possibilitando

conhecimentos e experiências que visam à reflexão sobre si mesmo, sobre outras

possibilidades de vida e sobre o futuro de cada um, já que

Na periferia, os indivíduos, sofrem a escassez de serviços públicos, além de conviverem com a marca de morar em bairros subjugados pela violência, aonde quase nunca as políticas públicas chegam. Para a juventude, essas nomeações acabam fazendo toda diferença, visto que a maioria se sente diminuída ou coagida por residir na periferia. Em muitos casos, identificar-se como morador da periferia significa perda de oportunidades (OLIVEIRA, 2010, p 8).

Isso é corroborado pelos relatos:

E o preconceito é tão grande... assim... eu trabalho no jornal, sou analista de marketing, formado em Publicidade, mas se eu disser pra qualquer pessoa de fora que eu trabalho no jornal e moro no Lagamar, a primeira coisa que vem na cabeça das pessoas é que eu sou entregador de jornal! Porque tão associados a que no Lagamar as pessoas não conseguem ir mais do que isso, né... (Moisés, março, 2015). Falamos sobre sonhos, perspectivas, de estudar, fazer faculdade que hoje já é mais possivel, gostamos de dar exemplos do que a gente tem... a maioria dos catequistas estão hoje na faculdade, a gente trabalha com isso na catequese, com o objetivo de formar eles pra que eles continuem no grupo por esse lado dentro da Igreja catolica, que a gente nem fala muito de

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ser católico, falamos mesmo de ser cristão de querer um futuro melhor e tal... formar eles dentro da Igreja, mas sempre tem essa perspectiva de choque da realidade porque as vezes a gente mora, mora, mora aqui e acha que é comum a violencia, queremos apresentar pra eles que a violencia não é comum, que existem saídas pra ela e que eles também tem outras possibilidades de vida! (Rebeca, agosto, 2015).

A gente tentar fazer com que as pessoas do Lagamar acreditem que elas podem mais... é difícil, falar sobre sonhos nas catequeses, quando fizemos, foi surpreendente... eles não tinham sonhos... grandes... ‘aah! Trabalhar, ter minha família...’ é legal é importante, mas eles... NÓS! podemos muito mais! Quando a gente coloca nas catequeses encontros sobre a história do Lagamar, reconstruir a memória do que nós já vivemos aqui no Lagamar, dos meninos terem a consciência de que eles moram em um espaço que é violento, tem todas suas dificuldades, mas era bem mais, e outras pessoas antes lutaram pra melhorar e que está na mão deles agora também fazer com que o Lagamar possa melhorar... isso foi uma conscientização, retomada de consciência e de auto-estima nossa, do grupo... (Moisés, março, 2015).

Sendo assim, as catequeses são “sociais” também porque conseguem

articular o individual e o coletivo, o religioso e o político, a arte à reflexão, a história e

a identidade das pessoas ao local em que vivem, e acima de tudo, por moldarem

relações sociais de superação de questões sociais, como a baixa escolaridade e a

violência.

Para Alvarez (2000), os movimentos sociais articulam o cultural ao

político, pois mesmo sem falar ou intervir diretamente nos campos convencionais de

política, expandem os espaços de discussão coletiva, ressignificam conceitos e

práticas da cultura política dominante e contribuem para reflexões que desencadeam

mudanças na realidade a partir do cotidiano.

Desta forma, vê-se o quanto o JBD contribui de forma significativa na

articulação entre cultura e política, pois colabora com mudanças nas relações

sociais, nas identidades, promove debates e oportunidades de conhecimento,

organização e mobilização política, sobretudo através da arte e da religião. Isso dá

visibilidade às demandas da comunidade, que o grupo não apenas expressa, mas

tenta suprir, por ele mesmo e/ou por lutas com os governos, por pressões diretas e

indiretas.

No tópico seguinte, por sua vez, será exposta a discussão acerca da

juventude como produtora de cultura, do quanto a arte é mobilizadora para os jovens

e o que é “ser jovem” no Lagamar, a fim de aprofundar ainda mais as reflexões

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acerca da atuação do JBD instrumento de mudança social, e desenvolvimento da

cidadania cultural na comunidade.

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3. JOVENS EM BUSCA DE ARTE: DE CONSUMIDORES A PRODUTORES DE CULTURA E POLÍTICA

Dizem que eu não sei nada Dizem que eu não tenho opinião

Me compram, me vendem, me estragam E é tudo mentira, me deixam na mão

Não me deixam fazer nada E a culpa é sempre minha...

E meus amigos parecem ter medo De quem fala o que sentiu De quem pensa diferente Nos querem todos iguais

Assim é bem mais fácil nos controlar E mentir, mentir, mentir

E matar, matar, matar O que eu tenho de melhor: minha esperança!

Que se faça o sacrifício E cresçam logo as crianças...

(Renato Russo)

Como visto na introdução deste trabalho é cada vez mais difícil ser jovem

no Brasil, sobretudo nas comunidades menos favorecidas economicamente,

carentes de políticas públicas para esse grupo, que ao mesmo tempo ganha grande

visibilidade na mídia, na ciência, na cena pública em geral, “[...] quando passa a ser

o segmento mais vulnerável frente às mudanças sociais que acontecem no mundo

de hoje” (NOVAES, 2006, p. 3).

Além disso, tal visibilidade nas ciências em geral e no planejamento de

políticas específicas para a juventude, deu-se também a partir de quando os jovens

passaram a ser considerados sujeitos de direitos e de consumo, conforme Barbalho

(2013).

A sociedade do consumo configura-se como este período em que

consumir é o primordial à necessidade humana, refletindo a célebre frase do “ter

mais importante que o ser”, quando os direitos são resumidos quase que apenas

aos relacionados ao comprar e ao vender, em detrimento de outras necessidades

coletivas, tornando-se assim, reflexo do individualismo, do neoliberalismo,

abreviando o cidadão ao consumidor.

E a juventude por sua vez, é uma das vítimas dessa conjuntura, pois o

jovem, muitas vezes, para inserir-se em um grupo, identifica-se por algum objeto,

marca, ou seja, pelo consumo de algo que o faça “fazer parte”, pois “[...] para a

sociedade o desafio é definir o jovem e, para o jovem, o desafio é definir-se diante

de si e dos seus pares ” (ROSSONI, 2010, p. 32).

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O jovem busca reconhecimento e inserção no grupo através dos objetos e das marcas [...] O consumo oferece visibilidade ao jovem, insere-o e destaca-o no grupo, auxilia na tarefa de inscrever-se na sociedade. O valor não está apenas no objeto em si, mas em toda a aura que o rodeia e que rodeia a marca [...] (ROSSONI, 2010, p.37).

Além disso, o jovem (ou a representação ideal deste) passa a ser o ideal

da sociedade, sendo os produtos direcionados a eles, quase sempre relacionados à

liberdade, originalidade, e assim, tornando-se desejo de todas as faixas etárias, mais

um motivo da importância da juventude para a sociedade do consumo e sua

influência sob a vida dos mesmos.

Mas Pais (1993) propõe que a juventude seja olhada de duas formas:

como aparente unidade e como diversidade, ou seja, como uma fase da vida, mas

também como diferentes maneiras de ser jovem, de acordo com o tempo, o espaço,

o contexto social, etc., “[...] na verdade a juventude aparece dividida em função de

seus interesses, das suas origens sociais, das suas perspectivas e aspirações”

(PAIS, 1993, p. 42).

Ou seja, ser jovem não significa apenas ter certa idade (15 a 29 anos),

características biológicas de certa fase da vida, mas também é uma construção

social, experiência que a depender do lugar, das condições sociais, pessoais,

diferencia-se umas das outras, tratando-se assim de juventudes (no plural).

Desta forma, a juventude não é homogênea e não se mobiliza, ou se

agrupa apenas pelo consumo, existem várias culturas juvenis e ainda, várias formas

de tratamento e representação dessas juventudes na sociedade, de acordo com a

etnia, classe social, capital cultural, etc. Como situa Rossoni:

Porém, a juventude pode adquirir diferentes contornos a partir do momento que características históricas e sociais de um período condicionam diferentes entendimentos. Embora partilhem de uma condição juvenil e frequentem uma instituição escolar, os jovens são submetidos a valores e modelos de educação diferenciados (ROSSONI, 2010, p.37).

Exemplificando a diferenciação socioeconômica, os jovens mais

abastados têm mais possibilidade de tempo e oportunidades de acesso à fruição, à

arte, esporte, lazer em geral, como parte de uma formação de qualidade e

prolongada para a vida adulta, ao passo que os jovens das classes menos

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favorecidas são privilegiados ao terem seu primeiro emprego aos 14 anos, tendo

uma formação mais direcionada para o mercado de trabalho. Conforme Rossoni:

Pertencendo a segmentos sociais mais abastados os jovens têm acesso à educação, bens culturais e o tempo de formação e preparação para a vida adulta é ampliado. Nesse caso, esse tempo de preparação é visto como uma etapa que deve ser desfrutada. Nas classes menos privilegiadas pode ser visto como ociosidade prejudicial com possibilidade de abertura para marginalidade (ROSSONI, 2010, p. 34).

Tendo esse contexto como pano de fundo, podemos afirmar que o JBD se

configura como espaço de formação prolongada, de criatividade, convivência e

troca, pois além do consumo e do individualismo do mercado, da imposição do

trabalho (a que os jovens do Lagamar também estão inseridos) os jovens se

organizam para impulsionar mudanças na comunidade tanto a partir de exigências

junto ao Estado, quanto para promoverem as próprias mudanças, o acesso à arte e

a reflexões sobre a realidade. Isso corrobora o pensamento de Barbalho (2013), que

afirma que os jovens se agrupam a partir de elementos de lazer, consumo,

midiáticos, políticos, culturais, de um estilo, etc. “[...] e fazem isso para responder

aos desafios que a vida presente lhes coloca e se posicionar nela” (BARBALHO,

2013, p. 23).

Nesta seção apresentar-se-á os principais desafios enfrentados e as

possibilidades criadas pelos jovens do JBD no Lagamar, além de algumas atividades

importantes do grupo, que demonstram o caráter proativo dos jovens na arte e na

política, contribuindo para a mudança de vários aspectos culturais na comunidade.

Mas, antes, faz-se primordial apresentar características do grupo JBD e

de seus componentes, como forma de identificar que jovens são esses sujeitos da

pesquisa e de que juventude se fala neste trabalho.

3.1 QUEM SÃO OS JOVENS EM BUSCA DE DEUS? E quando o nó cegar

Deixa desatar em nós Solta a prosa presa, luz acesa

Já se abre um sol em mi maior... Eu sinto que sei que sou um tanto bem maior

(Fernando Anitelli)

Neste tópico será apresentada a análise dos dados da aplicação de 33

questionários com os jovens do JBD, abrangendo os participantes diretos e

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indiretos, crismandos, catequistas e colaboradores em geral nas atividades com os

jovens e na organização e execução da peça teatral “Via Sacra” e da quadrilha

junina “Queridinhos do Lagamar”.

Apesar da idade convencional a ser considerado jovem ser o período

entre 15 e 29 anos, alguns participantes do grupo não estão nesta faixa etária,

porém, desempenham atividades com e para os jovens. Mesmo ainda não estando

nesta idade, ou estando no grupo desde essa idade, são jovens em identidade, logo,

não poderiam deixar de ser contemplados nesta pesquisa, já que segundo Groppo

(2000), “[...] as faixas etárias e as categorias sociais delas oriundas são criações

socioculturais, jamais um dado puro e simples da natureza [...]” (GROPPO, 2000, p.

20).

Sendo assim, 82% (27) dos questionários foram respondidos por jovens

de 15 a 29 anos, 9% (3) de 30 a 40 anos, 9% (3) de 12 a 14 anos. O grupo tem o

número de participantes do sexo masculino (57,5%- 19) pouco maior que as de sexo

feminino (42,5%-14). Ou seja, a faixa etária convencional (15 a 29 anos) ainda assim

foi contemplada em maioria, e os homens, público menos engajado na Igreja (com

projetos específicos para potencializar a participação destes, como o Terço dos

Homens), em relação às mulheres, no JBD é maioria. Essa reflexão foi feita pelos

próprios jovens, terminando com a frase: “Até nisso o JBD é diferente! ”.30

Declaram-se pardos ou negros 82% (27), seguidos por 15% brancos (5),

3% amarelos (1). 73% (19) são solteiros (18%-6 casados, 9% -3 união estável) e

82% (27) não têm filhos. Aqui se destaca o quantitativo de jovens que se identificam

enquanto negros, identidade essa também fomentada e discutida no grupo de forma

indireta, nas conversas informais, nas redes sociais, ou na experiência de

participação de alguns jovens em uma “missa-afro”31 em outra comunidade, da qual

eu também estive presente.

Com relação à escolaridade dos jovens, 61% (20) estão estudando no

momento, 27% (9) estão (ou já cursaram) no ensino superior, quase todos em

faculdades privadas (apenas um cursa universidade pública). 52% (17) estão (ou já

cursaram) o ensino médio, todos em escolas públicas, inclusive os que estão na

30

Fala de interlocutor da pesquisa. 31

Missa em memória e homenagem à luta dos escravos e líderes políticos negros. É uma celebração diferente das convencionais, com instrumentos musicais, ritmos e letras de músicas que remetem à Africa. Algumas pessoas vão caracterizadas com turbantes e oferecem alimentos no altar durante a cerimônia. Ocorre no dia da Consciência Negra (20 de novembro).

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faculdade, e ainda, apenas uma pessoa estuda em escola particular no ensino

fundamental (21%- 7 ainda estão no ensino fundamental).

Os 39% (12) que não estão estudando deram as seguintes justificativas:

“procurando emprego”, “já conclui”, “prestando vestibular”, “falta grana para a pós-

graduação”, “FIES não deu certo esse ano”, ou não responderam.

Tais respostas refletem o quanto as políticas públicas de educação

desenvolvidas nos últimos anos são decisivas para a inclusão dos jovens das

periferias no ensino superior, além da importância do emprego em detrimento dos

estudos, pela necessidade ou pela falta de perspectiva, conforme já mencionado

pelos próprios jovens, quando da dificuldade de alguns alçarem planos e sonhos

profissionais para além da comunidade, ou do ensino básico.

O JBD atribui grande importância à educação. Não apenas pelo índice de

pessoas estudando e se interessando em continuar os estudos (em uma realidade

que o normal é deixar de estudar, ou não dar muita importância a isto), mas porque

é diária a divulgação no grupo de períodos de inscrições no vestibular, em cursos

profissionalizantes, de línguas, oportunidades de qualificação, tanto nas redes

sociais quanto nos finais de reuniões, ou no boca-a-boca informal.

Além disso, é motivo de orgulho para os jovens terem pessoas que já

terminaram ou estão cursando o ensino superior, isto é marcante nos discursos, pois

mostra a superação dos desafios, e acima de tudo, por serem exemplos para os

outros jovens.

Hoje no grupo tem várias pessoas fazendo faculdade, até os mais novos, o que não era uma realidade de pouco tempo atrás... a maioria era novo, não fazia nada, ficava ocioso na beira do canal... também por conta do grupo isso aconteceu... sempre nas formações a gente falava que é importante sempre buscar conhecimento, mas foi um processo do Brasil em geral, os jovens brasileiros hoje estão nas faculdades, foi um reflexo também da sociedade, mas nós sempre falamos e damos exemplo também no grupo desde muito tempo... mas que foi algo do Brasil, pra onde você for, você encontra um universitário, ou que faz faculdade... (José, janeiro, 2015).

No que compete ao trabalho, 45% (15) trabalham, estagiam ou exercem

atividade remunerada de alguma natureza, desses, 66% (10) trabalham com a

carteira assinada. Dentre os empregos: recepcionista, panfletista, receptora de

crédito, cuidador, auxiliar administrativo, estagiário, empacotador, analista de

marketing, recepção e realização de eventos.

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A rotina de trabalho, estudos, cuidados com a família, etc. acabam por

fazer com que alguns jovens não consigam estar mais diretamente nas atividades do

JBD, observando-se que há uma responsabilidade maior entre os membros do

conselho (os mais antigos participantes) e alguns outros, que são os mesmos de

quase sempre nas atividades, configurando a existência do grupo há mais de 18

anos como “...resistência, perseverança... conquista diária!” (José, janeiro, 2015).

Os que exercitam mais as atividades do grupo são os mais velhos em sua maioria, tem os novatos que tem o potencial, quem sabe quando não der mais pra gente eles assumam porque algum dia tem que sair neh... Mas coisas simples como limpar a casa, se não tiver os mais velhos (antigos) não acontece, se não marcar o multirão... e por nós sermos mais velhos também aparecem outras atribuições pra gente, trabalhar, estudar, (José, janeiro, 2015).

Mas nas atividades que exigem a participação de todos, como os eventos

maiores, as apresentações em outras comunidades, retiros, etc., há uma

mobilização especial para que o maior número possível de jovens esteja presente.

48% (16) dos jovens vivem com um salário mínimo ou menos. 39% (13)

não possuem nenhuma renda própria. 6% possuem (2) entre 1 e 2 salários mínimos

e os mesmos 6% (2) para os entre 2 e 3 salários mínimos. A renda das famílias em

maioria está entre 1 e 2 salários mínimos (33%-11), seguido de um salário mínimo

apenas (24%-8), entre 2 e 3 salários (30%-10) e mais de 3 salários (6%-2). 6% (2)

não responderam. 54% (18) dessas famílias são beneficiárias do Bolsa Família.

Os dados revelam as dificuldades financeiras dos jovens, inclusive para

contribuir com os custos da “Casa do grupo” (apresentada a diante) gerida e mantida

por eles, que precisam dos eventos e ações como bingos, rifas e doações para

continuarem as suas atividades. Além disso, conforme demonstram as porcentagens

da quantidade de pessoas por família (os moradores da mesma casa do jovem):

42% (14) possuem até 3 membros, os mesmos 42% (14) possuem entre 4 a 6

membros, e 7 ou mais membros correspondem a 12% (4), 3% não respondeu à

pergunta (1), tratam-se de famílias extensas (mais de 4 membros) em mais da

metade dos casos, o que revela que a renda per capta passa a ser bastante baixa

também.

57% (19) dessas famílias possui usuários de drogas lícitas e ilícitas.

Mesmo não tendo sido definido o conceito de família a todos os entrevistados, que

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puderam considerar a família que mora com ele, ou a família ampliada (sendo no

Lagamar muito comum a convivência entre várias gerações sob o mesmo teto, ou na

mesma rua, quarteirão), é um número que revela a incidência das drogas na

comunidade e a necessidade de políticas públicas que contribuam com a solução

desse problema, ainda mais, que, pela observação e por conversas informais,

apreende-se que o número de famílias com usuários de drogas ilícitas e que causam

dependência pode ser um pouco maior que o aqui compreendido.

67% (22) dos jovens não participam de nenhum outro grupo além do JBD

e os 24% (8) participantes de outros grupos, citaram: FMB, outra igreja, Sede Santo,

Desbravadores, Kizomba\enegrecer e Focolares. 9% (3) não responderam a esta

pergunta. Tais respostas revelam o caráter democrático do JBD, pois pessoas

participam de grupos inclusive em outras igrejas e religiões, o que na maioria de

outros grupos religiosos seria um empecilho, não oferece problemas à participação

deles no JBD.

76% (25) ficou sabendo do grupo pelos amigos, enquanto os outros 24%

(8) o conheceram pela família, destacando que a divulgação do grupo ainda é

fortemente mantida pelo “boca-a-boca”, através dos vínculos que constroem com as

famílias e os amigos no Lagamar, apesar da divulgação contínua nas redes sociais.

39% (13) iniciaram no grupo com a Crisma, 21% (7) na Primeira

Eucaristia, 15% (5) na Pré-eucaristia e 12% (4) nos Ministérios de Artes e Música,

9% (3) na Perseverança e 3% (1) nas “Orações de sexta-feira”.

Tais números mostram como as catequeses são porta de entrada e

“conquista” dos jovens para participação no JBD, ainda, confirmam a continuidade

do trabalho, pois quase metade, 45% dos entrevistados entraram nas atividades do

grupo ainda crianças e continuam lá até a juventude (juntando dados das

catequeses de Pré-Eucaristia, Primeira Eucaristia, e Perseverança realizadas com o

público infanto-juvenil).

Já com relação ao tempo de participação no grupo, 27% (9) participam

das atividades do grupo de 1 até 5 anos, 36% (12) estão lá de 6 a 9 anos, 12% (4)

estão no grupo há até 1 ano e curiosamente, a mesma porcentagem está há 10

anos ou mais no grupo (12% -4), e ainda, 12% (4) não lembram ou disseram que

“faz pouco tempo”.

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Sendo assim, o quantitativo de pessoas que estão no grupo entre mais de

1 e mais de 10 anos, caracterizando novamente vínculo e continuidade nos

trabalhos, é de 75% (25), o restante são os crismandos da turma de 2015, que

passarão por algumas formações após a catequese, para entrada oficial no grupo e

compromisso com alguma atividade específica.

Essa continuidade e renovação do grupo a cada turma de crisma, é vista

como importante conquista pelos jovens e como forma de proteção às crianças e

jovens com relação a outros atrativos que a comunidade oferece, como as drogas e

o crime: “As conquistas de ver hoje pessoas que entraram criança no grupo e que

hoje são catequistas, estão à frente do grupo, pessoas que tinham tudo para dar

errado na vida e que deram muito certo!” (Rebeca, agosto, 2015).

Quanto às perguntas abertas: 1. O que você faz no grupo?; 2. Qual sua

motivação em participar do grupo? Porque você participa do grupo?; 3. O grupo é

importante para você? Por quê? Como?; 4. O grupo é importante para o Lagamar?

Por quê? Como?. As respostas da pergunta 1 foram sistematizadas no quadro a

seguir e as respostas das perguntas 2, 3 e 4 foram divididas em respostas

“pessoais” e as que “importam a coletividade”, apresentadas mais adiante.

O que você faz no grupo?

Catequista (12)*

Crismando (10)*

Organização/coordenação/financeiro (6)*

Eventos

Toco bateria

Teatro (5)*

Canto

Ministério de Artes/Música (5)*

No que der

Danço (2)*

Aluno das aulas de violão

Vou para manifestações (3)*

Oração (2)*

Perseverança

Crio coreografias

Dou aula de violão (2)*

Ajudo em qualquer atividade

Ajudo na comunicação (redes sociais)

Quadrilha

Participo dos diálogos

*Quantidade de respostas que incluíram o assunto

Fonte: Elaborada pelo autor.

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As respostas sobre as atividades que cada um exerce, em sua maioria

foram mais de uma por pessoa e em torno da coordenação de alguma atividade, as

manifestações, as orações e as catequeses, além das ações ligadas à arte, maioria

esmagadora.

Isso revela o quanto o grupo é marcado pela arte, principalmente pelo

teatro, música e dança e ainda, fomenta a participação política dos jovens em

manifestações por direitos, sendo essas consideradas como atividades do grupo.

Além disso, pode-se inferir que há certa descentralização da coordenação das

atividades, conforme também relato de um crismando durante um retiro: “Aqui

ninguém é tratado de forma diferente, todos são do mesmo jeito, têm a mesma voz”.

Respostas Pessoais Respostas que importam a coletividade

Apoio e mostra que tenho amigos

Mudou minha vida

Melhorar meu futuro através das atividades sociais e religiosas

Superação de dificuldades e acreditar no nosso potencial

Desenvolvimento social e espiritual

Para aprender coisas diferentes da escola (2)*

Amigos, união (3)*

Crescer, conhecer, fazer (2)*

Me faz bem (2)*

Realmente gosto

Seguir rumo da Igreja

Desenvolver habilidades que eu nem sabia que tinha (2)*

Tudo que sou hoje é resultado do que aprendi no JBD

Crescimento pessoal e profissional (2)*

Traz alegria, motivação

Despertar meu senso crítico (4)*

Levar Deus às pessoas

Conhecer a Deus e a comunidade (2)*

Ajudar nas danças

Caminho melhor/ser melhor (4)*

Repassar conhecimentos

Fazer a diferença na comunidade

Visão de vida diferente em relação ao outro

Possibilidade de mudança, desafio de construir um

mundo novo

Mudanças que refletem no mundo e causam

revoluções silenciosas

Sensibilização pela paz, contra a violencia (3)*

Tentar fazer a comunidade melhor

Mudar a forma como a sociedade vê a

comunidade, mostrar o potencial dela (5)*

Ferramenta de mudança para a nossa realidade do

Lagamar (6)*

Semeia a cultura e a arte (3)*

Faz as pessoas serem mais solidárias e prestativas

(2)*

Fortalece nossa identificação com o Lagamar (3)*

O indivíduo só está bem se participar das decisões

em sociedade

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Participar das atividades da comunidade

Suprir a carencia de Deus através da arte e da cidadania

Meu dever de cristão e cidadão é levar cultura e cidadania para o Lagamar

Dar sentido a minha vida

Ser exemplo para o próximo

Ajudar o próximo

Tirar jovens das drogas e do caminho errado/crime (8)*

Atividades e eventos importantes

Não envolve remuneração, é por amor e sorrisos (2)*

Sem o JBD não sei onde eu estaria nesse momento.

*Quantidade de respostas que incluíram o assunto

Fonte: Elaborada pelo autor.

Vale salientar que, nos dois quadros, algumas respostas foram

compiladas de acordo com o tema, por exemplo, “tirar jovens das drogas e do

caminho errado” (frase de entrevistado), foram 8 respostas relacionadas a isso,

nesse mesmo sentido. Foram relatadas quase todas as respostas, sendo excluídas

apenas as mais simplórias, como “sim”, “porque sim”, mas todas atribuíram

importância ao grupo tanto para si, quanto para o Lagamar.

As respostas “individuais” mais mencionadas foram “crescer, fazer,

conhecer”, “despertar meu senso crítico”, “caminho melhor para mim e outros/ser

melhor”, “tirar jovens das drogas e do caminho errado”, despontando o caráter de

oportunidade que o grupo proporciona em meio a uma realidade tão desprovida de

acesso à arte, educação, saúde e direitos em geral.

As respostas “coletivas” apareceram não apenas na pergunta relacionada

à comunidade (pergunta 4), mas ainda nas perguntas relacionadas a cada um, em

que alguns jovens mencionam a comunidade, o próximo, a cidadania, como

aspectos importantes do grupo para eles.

Percebe-se também que as respostas referentes à coletividade são

caracterizadas pela vontade/tentativa, de melhorar/mudar/transformar a

comunidade/mundo através da arte, e promover o Lagamar de forma que este seja

visto de maneira diferente pela sociedade em geral.

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Desta forma, apreendem-se as contribuições da convivência em grupo

desses jovens para a construção e efetivação de oportunidades de reflexão,

mudanças de visão de mundo, concepções individuais e coletivas sobre a

comunidade e si próprio.

E esta é uma das conquistas do JBD, mencionadas pelos jovens: as

próprias pessoas do grupo, na faculdade, querendo ir mais longe e transformar a

realidade em que vivem, como fala Moisés: “Das nossas grandes realizações eu

acho que o nosso grande feito enquanto grupo, somos nós mesmos! ” (Moisés,

março, 2015).

52% (17) dos entrevistados nunca frequentaram pelo menos um desses

lugares: museus, centros culturais, cinemas, teatros ou shoppings. Desses,

respectivamente: 59% (10) nunca foram a um museu 41% (7) nunca foram a um

centro cultural ou teatro, ou cinema, ou shopping, o que demonstra que ainda é

difícil o acesso dos jovens das periferias aos grandes circuitos de eventos,

formações e espaços culturais, ainda concentrados nos grandes centros turísticos

ou comerciais.

Sendo assim, nos próximos tópicos serão apresentadas algumas

atividades que fazem do JBD um produtor de cultura e arte dentro do Lagamar,

oferecendo oportunidade de acesso dos jovens da comunidade ao teatro, à leitura, à

dança, à arte em geral, tanto na plateia, quanto na produção, mas antes, além dos

desafios já mencionados até aqui, apresentar-se-ão alguns outros.

3.2 OS DESAFIOS DE SER JOVEM EM BUSCA DE DEUS Durante um debate sobre a redução da maioridade penal, uma jovem do JBD se dirige ao grupo de

aproximadamente 25 jovens: Gente! Quantos postos de saúde nós temos aqui dentro do Lagamar?

O grupo se entreolha e chega à conclusão que não tem nenhum exatamente dentro da comunidade... mas nas proximidades, então ela pergunta novamente:

Quantas escolas temos dentro do Lagamar? ... Nenhuma resposta... E áreas de lazer? ‘Só o campo do Lobão... mas não é no Lagamar, é na Maravilha..’.

Quantas instituições trabalhando com jovens? Alguns respondem: Só a FMB... tem o JBD também, mas institucionalizado mesmo só a FMB e com dificuldades financeiras sérias, neh...

‘A única coisa que já teve aqui dentro do Lagamar mesmo, foi uma delegacia... que até ela, foi desativada...’

E agora meu povo... Quantas pessoas aqui tem a casa invadida pela água quando chove? Levante a mão! A maioria do grupo levantou a mão...

Quem a aqui já perdeu um familiar, amigo ou conhecido aqui dentro do Lagamar? Todos (moradores ou ex-moradores) levantaram a mão.

Então meu povo, é muito fácil perceber como os nossos direitos são desde sempre violados, não existem políticas públicas para a juventude no Lagamar!

(Trecho do diário de campo. Encontro da Crisma dia 17.05.2015; Tema: Redução da Maioridade Penal).

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Oliveira et. al. (2006) afirmam que ao abordar a relação entre cultura e

juventude, deve-se perceber como cada jovem vive essa “juventude”, considerando

“[...] as vulnerabilidades e potencialidades contidas em suas condições de vida e a

pluralidade de expressões culturais que emergem da experiência dos grupos juvenis

[...]” além da observação dos “[...] impedimentos reais e as possibilidades de

promover a cidadania cultural de jovens, para que a fruição e a produção cultural

deixem de ser privilégio de poucas pessoas” (OLIVEIRA et. al., 2006, p. 63).

Além disso, na relação entre culturas e juventudes, deve-se considerar as

barreiras e possibilidades da promoção da cidadania cultural, sendo os jovens

reconhecidos e valorizados como mais que consumidores de bens culturais, mas

produtores de cultura.

Mas também é necessário observar os impedimentos reais e as possibilidades de promover a cidadania cultural de jovens, para que a fruição e a produção cultural deixem de ser privilégio de poucas pessoas. Dessa forma, a juventude deve ser reconhecida e valorizada como produtora de cultura, mais do que como consumidora de bens culturais... (OLIVEIRA et. al., 2006, p. 63)

Os jovens (e demais grupos por consequência) do Lagamar, como visto

até aqui, possuem poucas oportunidades de fruição, criação e espaços de produção

artística e cultural, algumas delas, são as possibilitadas pelo JBD.

O que antes era só forró... era um atrativo? Era, mas mostrar que hoje não existe só o forró... existe algo muito maior, outros rumos que as pessoas podem ter em relação a pracinha... porque de fato a pracinha era muito abandonada e quando o grupo veio trazer essas atividades ela se tornou um ponto chave dentro da comunidade, porque é a única área de lazer da comunidade, porque lazer na verdade não tem assim... tem o que nós levamos pra praça... que são as atividades, todos os movimentos, bazares, o abraço na praça, que é o dia do meio ambiente, o dia das crianças, todos os eventos que a gente faz, a Via Sacra, são eventos que a comunidade todo ano já espera... já virou atrativo mesmo, as atividades do grupo... (Ester, maio, 2015).

Mas apesar dessa proatividade em relação à comunidade, o JBD ainda

sente a interferência de um referencial de pensamento ‘adultocêntrico’, em que os

adultos mandam, as ordens vêm de cima para baixo e que o jovem é apenas um

adulto em construção, o que acarreta falta de confiança (dos adultos) em atividades

encabeçadas por jovens.

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Assim ocorreu com o JBD no início de suas atividades, por se tratarem de

jovens com a iniciativa de mobilizar pessoas da comunidade para atividades em

conjunto. Segundo as entrevistas, algumas pessoas não acreditavam no trabalho, e

ainda, tanto por serem jovens (na própria comunidade), como por serem moradores

do Lagamar (fora dela).

Antigamente sofríamos preconceito por ser jovem, o pessoal chegava lá no grupo pra dizer que o povo só fazia era ‘embuchar’ as meninas... todo mundo era irresponsável... não tínhamos compromisso... mais do próprio pessoal do Lagamar... Eles criticavam muito a gente por sermos jovens, da igreja, então se a gente tava em alguma reunião lá na casa, vixe! Já devem estar fazendo alguma coisa errada lá dentro... criticavam muito! (Rebeca, agosto, 2015).

No começo as pessoas não acreditam que você jovem pode levar um grupo dentro de uma comunidade, acham que você não tem formação, não tem informação pra tá ali, não tem capacidade, mas depois de um tempo elas vão acreditando sim... mas no início de você pegar a confiança delas... foi difícil... principalmente porque somos jovens, mas claro que ainda tem a desconfiança... (Ester, maio, 2015).

Foi sofrido também em alguns projetos quando a gente ia vender o peixe né... as pessoas não acreditavam muito na gente porque éramos muito jovens, hoje não, porque estamos um pouco mais velhos, eu, Moisés, Maria, as pessoas já dão mais um ‘respaldozinho’, mas antes quando íamos pedir ajuda, as pessoas não ajudavam, teve muito isso no show do Rosa, tanto pelo fato da gente ser do Lagamar, como pelo fato de serem pessoas muito jovens a frente de um evento que poderia dar tudo errado né... (Rebeca; agosto, 2015).

Reforça tal ideia, as considerações de Barbalho (2013) que afirma a atual

conjuntura da sociedade do consumo, os jovens das classes populares, mesmo

consumindo, não são plenamente reconhecidos como cidadãos, sendo suas

expressões e movimentos culturais vítimas de um preconceito duplo: de classe e

étnico, como explanado ao longo do tópico 2 nos vários episódios de preconceito e

discriminação com o JBD, relatados nas entrevistas.

Exigências de comportamento também são feitas aos jovens, por fazerem

parte de um grupo religioso, pois segundo eles, muitas vezes a comunidade exige

deles a “santidade”. Ouvi por vezes relatos de que eles até evitam em algumas

ocasiões se identificarem como um grupo da Igreja, pelas cobranças de “perfeição”,

mas preferem se dizer cristãos, por se identificarem com a acolhida de Jesus Cristo

com todas as pessoas, independentemente da cor, etnia, cultura, profissão, e até

religião.

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As pessoas acham que por você ser da igreja, você tem que ser santo, e você tem que acertar sempre e eu acho que a mensagem do grupo hoje é assim: Nós somos igreja, nós não somos santos e nós somos um ser social. A gente erra igual a vocês, temos problemas igual a vocês, a gente tem etapas igual a vocês, nós somos jovens, precisamos namorar, a gente tem a necessidade de se relacionar com as pessoas, a gente vai errar sim... entender que a gente está na mesma condição das pessoas lá fora com um diferencial, que é querer que a comunidade seja diferente! (Ester, maio, 2015).

É um desafio também porque somos jovens como eles, temos as coisas de jovens... esse é o desafio maior... somos chamados a muita coisa, mas nem tudo nos convém, nem tudo mais faz tanto sentido pra nossa vida... (Abiel, agosto, 2015).

Como afirma Oliveira (2010) “A juventude desse século parece ter dado

um novo significado para o conceito de religião [...]” (OLIVEIRA, 2010, p. 10), pois

como já se pode constatar, com o exemplo do JBD,

Os jovens já não enxergam a instituição religiosa como sendo única produtora de sentidos religiosos, nem como portadora exclusiva de verdades religiosas. Isso encaminha os indivíduos a não se sentirem incomodados em questionarem as decisões institucionais. Ou mesmo que não questionem, adotem práticas e estilos condenados pela instituição a qual estão filiados. Essas práticas de enfrentamento, ainda que maquiadas, revelam descontentamento e tensão entre as gerações, pois conservam, em seu bojo, sentimentos de renovação e mudança (OLIVEIRA, 2010, p. 11).

Esse desejo de mudança que desafia as tradições é sede dos jovens, e

por sua vez, conflita-se com o desejo de continuação das tradições, ensejado pelos

adultos.

Nas instituições religiosas, a presença do conflito dá-se justamente no processo de perpetuação da tradição. Nas gerações consideradas adultas, há uma busca incessante pela continuação da tradição. O discurso da juventude é marcado pelo desejo de renovação e, enquanto as gerações jovens acusam os adultos de serem atrasados e de apegados ao tradicionalismo, as adultas as acusam de serem desapegadas com a tradição e ainda de descompromissadas com a instituição religiosa e seus dogmas. Tais conflitos trazem à tona as contradições que existem entre os indivíduos à medida que deixam transparente sua forma de agir e pensar (OLIVEIRA, 2010, p. 17 e 18).

Essa foi uma das dificuldades mencionadas pelos entrevistados: “O que a

Igreja exige do cristão católico”, pois dificulta com que as pessoas se sintam à

vontade de entrar e experimentar experiências religiosas.

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O que a Igreja exige do cristão católico...; a igreja exige de uma forma que é cruel pra realidade do Lagamar, mas que a gente tenta mostrar a igreja amiga, uma igreja que todos podem participar... que você não precisa largar tudo que tem, o modo como você vive, pra entrar nesse mundo cristão, com o tempo, como aconteceu com todos, você vai se ligando Ah! Isso aqui não é adequado, a gente deixa que o tempo mostre pras pessoas... que sei lá... dançar músicas vulgares, mas que a pessoa quer participar, a gente não diz que ela tem que largar aquilo... vamos levantando questionamentos, e que com o tempo a pessoa vai notando, poxa! Isso não me pertence mais... isso é passado! E a gente mostra o viver o grupo de uma forma mais ‘easy’, que qualquer um pode participar... (José, janeiro, 2015). O lance da religiosidade, eu acho muito bonito! Quando as pessoas querem criticar, eu acho muito bonito... tá entrelaçado com o lance da cultura, mas eu acho que o discurso do lance da religiosidade, não atrai mais as pessoas, não toca... eu acho que atrai muito mais a gente sorrindo lá na praça, tocando, batucando, fazendo zuada, quando fazemos uma celebração aberta, uma Via Sacra eu acho que essas formas de evangelizar são libertadoras... o número de pessoas impactadas pode até ser pequeno, meu! Mas tipo assim, se partirmos do pressuposto que você mudando uma pessoa tá mudando um mundo... acho que a partir daí, a gente faz um trabalho muito grande! (Moisés, março, 2015).

Há muito no discurso dos jovens a questão “independente da religião”,

que apesar deles serem um grupo religioso, o objetivo maior não é a conversão ao

catolicismo, ou que independente da religião que ela tem hoje, ela pode estar no

grupo, quando quiser. Presenciei relatos e em alguns questionários isso também foi

constatado, pois, como já mencionado, há pessoas que participam de outros grupos,

em outras igrejas, com identidades sexuais ainda não tão “aceitas” pela Igreja, mas

que participam do JBD, são acolhidas.

Vários jovens que eu pude acompanhar ficam no dilema porque são homossexuais e não sabiam se podiam comungar ou não, fazer a crisma ou não... todos esperam uma resposta mas a gente não pode dizer você pode, porque a doutrina da igreja diz que é errado e é pecado, mas a gente tbm lembra que o ensino cristão é que todo mundo tem direito a ser feliz e que Jesus veio pra todos, não só pra alguns... e que todo mundo é cidadão e tem os seus direitos. É uma mistura no grupo, porque nós tentamos formar cidadãos com o ser cristão e tem horas que “chocam” as ideias... (José, janeiro, 2015).

Mas os jovens identificam mudanças nessa visão adultocêntrica, pois a

cada dia conquistam mais respeito da Paróquia São João do Tauape e da

comunidade (principalmente dos adultos), sendo vistos pela maioria como

referências, exemplos. Presenciei alguns jovens sendo abordados por adultos com

pedidos para que chamem seus filhos para o grupo, outros colaborando com as

atividades, seja financeiramente, seja baixando o som na hora dos eventos, ou

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solicitando orações comunitárias em suas casas, compartilhando os posts do grupo

nas redes sociais, etc.

Dentre outras dificuldades mencionadas estão a própria realidade do

Lagamar e da sociedade em geral, como visto, bastante difícil para os jovens, sem

muitas oportunidades, com o preconceito, os estigmas com as classes menos

favorecidas, as dificuldades financeiras para manter as atividades e a “Casa do

Grupo”, além da “ausência” do Estado através de políticas públicas para e com os

jovens e demais grupos sociais.

Acho que hoje a maior dificuldade é manter mesmo a casa né... manter porque a estrutrura não é fácil, questão de água, luz... das atividades também que a gente quer fazer mais coisas, mas não tem dinheiro, e a gente acaba tendo que tirar do nosso bolso pra manter que não é fácil né... (Ester, maio, 2015). Os desafios tipo assim, a gente tem crescido muito, temos muitas experiências positivas, temos atingido muita gente diretamente, através das catequeses, indiretamente pelo testemunho dos membros do grupo, mas eu acho que a sociedade mudou de uma forma tão grande, os valores se perderam no caminho e a gente sente que parece que os anos vão passando o nosso trabalho vai ficando cada vez menor pra imensidão de desafios que tem aí.. eu falo de desafios mais assim... sei lá.. eu vou falar um exemplo aqui do Lagamar que é o nosso micromundo e onde temos a experiência: as pessoas acabaram se deixando seduzir pela facilidade, pela maré do comodismo, a gente até falava no conjunto Ceará sobre isso... se deixaram dominar... não estão mais encontrando sentido pras suas vidas e aí vão caindo nas drogas, em diversos outros vícios né... e a gente se sente incomodado com isso porque o nosso trabalho é fazer o reino de Deus acontecer! (Moisés, março 2015).

A dificuldade de trabalhar com os jovens e adolescentes que já estão

diretamente no mundo das drogas foi mencionada como uma demanda da

comunidade, mas que o JBD ainda não sabe como iniciar o contato com esse

público, apesar da intenção.

E quando a gente abre a porta, sai da reunião do grupo, a gente vê o mundo ali... eu passo todo dia, debaixo da ponte do canal... eu sempre falo pra Maria, tem um monte de gente usando Crack, eu não sei como eu chego naquele pessoal e falo, eu sei que a gente tem um trabalho que pode ajudar... que se as pessoas aderirem ao que a gente faz elas vão se encontrar... a vida deles vai ser transformada, eu sei disso! Mas em algum momento a gente não sabe... eu pelo menos... e acho que a nossa deficiência as vezes é essa... esse desafio que é muito grande... nos faz cada vez mais se comprometer com o grupo, com a nossa causa, nossa missão, cada vez mostra que é importante o nosso trabalho! (Moisés, março, 2015).

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Nos próximos tópicos serão apresentadas as possibilidades criadas pelos

jovens do JBD, mesmo em um contexto de dificuldades para a mobilização e criação

artística no Lagamar, como eles criam espaços que promovem o desenvolvimento

da comunidade, também a partir da arte.

3.3. PARTICIPAÇÃO POLÍTICO-CULTURAL DOS JOVENS: A ARTE MUDANDO

OLHARES

Como já mencionado na seção 4 deste trabalho, não necessariamente

uma atividade é política apenas quando envolve os meios convencionais de fazê-la,

o voto, o parlamento, uma manifestação de rua, etc., pois ações mesmo que não

convencionalmente políticas, também podem agregar este caráter, por remodelar

conceitos e práticas que colocam em cheque o lugar do poder na sociedade.

Desta forma, já foi apresentada a participação política convencional do

JBD, no movimento pela ZEIS do Lagamar (e demais demandas da comunidade) e

na participação anual no Grito dos Excluídos. Mas a política (propriamente dita)

ainda causa certa dúvida e repulsa em alguns jovens do JBD, que a relacionam,

como a maioria dos brasileiros, à partidos políticos e à corrupção.

Eu acho que a nossa participação política é mais no sentido da gente sempre querer estar por dentro das coisas, porque o grupo é muito jovem, o lance de política às vezes causa repúdio em boa parte dos meninos... o Samuel, entrou no grupo há pouco tempo, e ele diz assim: ‘não cara negócio de política, não quero escutar...’ porque a experiência que as pessoas têm com a política é a que a gente vê na televisão, os ladrões roubando dinheiro, essa política aí... (Moisés; março, 2015).

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No ano de 2015 o Brasil viveu um momento histórico de organização

estudantil, primeiramente, com relação à resistência dos alunos ao novo modelo

educacional proposto pelo Governo de São Paulo, que dividiria as escolas por ciclos

e para tanto, fecharia algumas escolas. O movimento de ocupação das unidades

escolares ganhou visibilidade nacional e apoio de vários movimentos sociais pelo

país, ocasionando a interrupção do referido processo de mudança no sistema.

No Ceará, mais precisamente no bairro São João do Tauape, em

Fortaleza, a escola Noel Hugnen de Oliveira Paiva, em novembro de 2015, entraria

em processo de “municipalização”, que ocasionaria o não mais oferecimento do

ensino médio aos jovens alunos, entre eles moradores do Lagamar e alguns,

integrantes do JBD, que seriam transferidos para instituições mais distantes e

desconhecidas.

Samuel, citado nesta última fala de Moisés (colhida em março de 2015),

foi um dos líderes do movimento pela não municipalização da escola, que contou

com passeatas, reuniões, oficinas formativas, que culminaram no alcance do

objetivo: os alunos continuaram estudando na mesma escola e esta não foi

municipalizada. Ouvi-o falar que aprendeu também com o JBD a exigir seus direitos,

inclusive o de ter a escola que ele sempre estudou continuando a atender a ele e

seus amigos, perto de casa.

Sendo assim, é fácil inferir que a convivência e as trocas dentro do grupo,

mudam conceitos e práticas dos sujeitos, que entram com certos posicionamentos e

conseguem reformulá-los, através das experiências e reflexões que tal convivência

proporciona.

Mesmo dentro do JBD, claro, há as diferenças entre os jovens, nem todos

se interessam pela política propriamente dita, em ir para as reuniões da ZEIS,

audiências públicas, etc., mas a arte do JBD e esta consciência da importância do

grupo para o Lagamar (além da religião) e da “ausência” do Estado para com o local

é comum a todos ou a grande maioria.

A ZEIS do Lagamar, do grupo fazer parte, tipo, só pra ter uma ideia: todo planejamento do grupo, a gente sempre reforça, por mais que sejamos jovens, nem todo mundo vai aderir, vai ter as pessoas que vão se engajar mais, vai ter as que não vão se engajar tanto e vai ter até as que nem vão se engajar... mas o bacana é esse... a gente consegue conviver com o engajado e com o não... e aí no nosso planejamento sempre tem: Participar das atividades da comunidade: as pautas de luta, a ZEIS, as discussões pela moradia, vai ter uma audiência pública? Tem que ter um representante

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do grupo! De uma forma ou de outra vai ter alguém lá pra falar... vai ter algum movimento no Lagamar? O grupo está lá presente! Nós fazemos questão de participar! (Moisés, março, 2015).

Mas mesmo com a falta de interesse pela política (propriamente dita), as

atividades artísticas, as “catequeses sociais”, os eventos realizados pelo JBD, ao

passo que fortalecem a identidade com a comunidade, proporcionam reflexões

acerca dos problemas e mobilizações para contribuir com o fim deles, apresenta-se

como campo de aprendizado e reflexão a respeito da própria política, da

participação social dos jovens, que fazem política “quase sem querer” através

também da arte.

Neste trabalho, concorda-se com Coelho (2004) quando que a arte

consiste em uma manifestação cultural, produto das relações humanas e dos “[...]

modos pelos quais alguém ou uma comunidade responde a suas próprias

necessidades ou desejos simbólicos” (COELHO, 2004, p. 102), e a cultura, desta

forma, não é sinônimo apenas de arte, mas

[...] [aponta] para atividades determinadas do ser humano que, no entanto, não se restringem às tradicionais (literatura, pintura, cinema - em suma, as que se apresentam sob uma forma estética) mas se abrem para uma rede de significações ou linguagens incluindo tanto a cultura popular (carnaval) como a publicidade, a moda, o comportamento (ou a atitude), a festa, o consumo, o estar-junto, etc. (COELHO, 2004, p. 103).

E nem a arte por sua vez é desarticulada de tais demandas e desejos

simbólicos, no caso do JBD, a arte é uma necessidade da comunidade, inclusive

como ferramenta para que os jovens sejam reconhecidos, respeitados, e suas

manifestações, exemplos do que o Lagamar tem de valor, para além do

corriqueiramente divulgado na mídia, por isso, eles investem nela e a tornam ação

política.

Segundo Gohn (2010) nos movimentos sociais, as “[...] energias sociais

antes dispersas são canalizadas e potencializadas por meio de suas práticas em

‘fazeres propositivos’” (GOHN, 2010, p. 336), nesse sentido, os jovens do JBD se

responsabilizam por atividades que promovem discussões sobre a comunidade, o

passado e o futuro, e proporcionando outros espaços de interação e produção de

conhecimentos, como as “catequeses sociais”, as aulas de música, organização de

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danças, peças, o Ministério de Música, os eventos em geral, facilitados pelos

próprios jovens.

Representam forças sociais organizadas, aglutinam as pessoas não como força-tarefa de ordem numérica, mas como campo de atividades e experimentação social, e essas atividades são fontes geradoras de criatividade e inovações socioculturais (GOHN, 2010, p. 336).

As catequeses, já mencionadas com mais detalhes, são espaços em que

a arte também é presente, em gincanas, brincadeiras e competições, incentivo a

criação de cenas, trabalhos manuais, e até composição de músicas e danças.

As aulas de música (violão) acontecem aos domingos pela manhã e tem

por objetivo “disseminar a arte e criar o pensamento: recebi de graça, devo devolver

de graça! ”32, além de formar novos jovens para tocar e animar os eventos do grupo,

podendo ser também oportunidade de aprender uma profissão.

As peças e danças são organizadas, geralmente, juntas e de acordo com

alguma festa específica da Igreja, como Natal, Páscoa, Dia do Padroeiro, as festas

juninas, etc., mas as apresentações fixas (e já esperadas pela comunidade, em

especial) são as em comemoração ao natal, a quadrilha junina e a Via Sacra (essas

últimas apresentadas mais detalhadamente no tópico 4). E para melhor organização,

em 2015 o JBD criou o Núcleo Artístico, unificando as artes do grupo.

O Ministério de Música JBD (MMJBD) consiste na banda de integrantes

do grupo que anima as catequeses, celebrações, missas, orações, a quadrilha

junina, ainda faz apresentações dentro e fora da comunidade e participa de festivais

de música representando o JBD e o Lagamar.

Entre os eventos citados pelos jovens como fixos no calendário de

planejamento do grupo estão: o Arraiá JBD, JBD Kids, JBDance, JBD Esport Club,

Via Sacra, Louvor e Adoração, Abraço da Praça, Baile da Saudade, Parabéns pra

Jesus, festas e novenas de santos e do padroeiro, o Grito dos Excluídos e as

orações comunitárias.

O arraiá JBD é a festa em comemoração aos dias de São João, São

Pedro e Santo Antônio, geralmente em junho ou julho, com apresentações de

quadrilhas, bandas de forró (da igreja, ou não), comidas típicas, etc. Além de ser

fonte de renda para as atividades do grupo, é o único evento desse tipo na

32

Fala de interlocutor da pesquisa.

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comunidade, por isso conta com grande participação tanto das famílias das crianças

da quadrilha, como da população em geral.

Lembro de um Arraiá que bombou... a gente tenta arrecadar dinheiro pras coisas do grupo... aí arrecadamos um dinheiro legal principalmente na barraca de brinquedos que tinha os jogos... no final de tudo a gente comentando, comemorando... os meninos disseram: eu tava preocupado porque veio ‘fulano’, que é dono do trafico ali, veio pra brincar na barraca!! e ele brincando e rindo, com o revólver aqui no cós...”Poxa! errei maxo, me arruma mais ficha aí! Não, tem que comprar lá no caixa! Vixe vou ter que pegar aquela fila todinha de novo? Vixe mas eu vou! Aí pegava a fila, comprava as fichas e voltava pra brincar de novo... a gente sabia quem era... o cara do tráfico, aquele lá, perigoso, mas naquele momento, ele não era aquele cara lá do trafico, ele tava lá pra brincar, se divertir, participar com os filhos dele... sabe... era um ambiente familiar... algo fora do comum... e os meninos que tavam na barraca: Vixe! Ele errou! Será que eu digo que ele errou? Com medo os meninos... mas aí ele mesmo dizia: Poxa meu irmão errei! Vou comprar mais fichas... peraí... aí ia comprar... (José, janeiro, 2015).

O JBD Kids é um dia de brincadeiras na praça do Santuário com as

crianças, geralmente brincadeiras já esquecidas pela meninada (peão, amarelinha,

elástico), como forma de incentivar as crianças a esquecerem um pouco a

tecnologia e vivenciarem o “ser criança” e as relações pessoais (reais) entre elas.

O JBDance é direcionado aos jovens e consiste em uma festa com

músicas no estilo “dance”, em um ambiente parecido com uma boate, que os

próprios jovens constroem na casa do grupo, com iluminação e decoração especiais,

orações e músicas de louvor. O evento é uma novidade para muitos, já que é difícil o

acesso a estas casas de show pelos jovens da comunidade.

O JBD Esporte Clube é um projeto direcionado ao esporte em que os

jovens formaram um time de futebol para competir em campeonatos na comunidade

e em bairros vizinhos. Em 2015, em parceria com a FMB, os jovens estão em fase

de expansão das atividades para o público infantil.

O Louvor e adoração é um festival de música em que várias atrações têm

espaço para apresentar seu trabalho, cristão ou não. O evento acontece na Praça

do Santuário, anualmente, e conta com atrações da comunidade e de fora, sendo

oportunidade e mostra de arte da/para a comunidade.

Teve vários outros eventos, o Louvor e Adoração... o primeiro teve um grupo de RAP... do Lagamar, não era cristão, mas tem espaço porque é do Lagamar... a gente tenta quando tem um arraiá, ou um Louvor e Adoração trazer outras coisas pra apresentar... tentamos fazer anualmente, mas esse

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ano não deu... teve um que foi a banda da polícia aí a galera: a polícia pessoal, a polícia! Aí eles começaram a puxar os instrumentos, afinar os trumpetes e a galera que tava distante começou a se aproximar, ficou olhando e gostando, aplaudindo, perguntando nos anos seguintes se eles não viriam de novo... mas aí perdemos o contato... (José, janeiro, 2015).

Em uma comunidade em que a polícia na maioria das vezes faz uso da

violência e do abuso de poder, sobretudo com os jovens, eles sacarem trumpetes e

fazerem música aos ouvidos dos moradores ao ponto de estes pedirem bis, é de fato

retratar mudanças nas relações de poder, pois naquele momento a polícia estava ali

para agradar, ser cortez e trazer prazer à comunidade, e não medo e imposições.

O Abraço da Praça ocorre no dia do meio ambiente e é um momento de

mobilização para o cuidado e limpeza da Praça do Santuário, onde ocorre a maioria

dos eventos realizados pelo JBD, que adiante será apresentada com mais detalhes.

Foi uma data marcante para a mudança de olhar do grupo e dos moradores ao seu

redor com relação ao espaço, que passou a ser cuidado e ocupado pela

comunidade, a partir da iniciativa dos jovens em mobilizar os habitantes mais

próximos dela.

O Baile da Saudade acontece próximo ao carnaval e é direcionado

principalmente ao público idoso, mas os jovens também participam, sobretudo na

organização, junto com as senhoras da Legião de Maria. É marcado pelas

marchinhas de carnaval e animação das “senhoras” na “Casa do grupo”.

O Parabéns pra Jesus acontece no dia 25 de dezembro e é o espaço de

apresentação das crianças, tanto na música, com o coral das catequeses, como no

teatro, com a encenação do nascimento de Jesus. No final das apresentações todos

na Praça do Santuário cantam os parabéns para Jesus e há a partilha do bolo

(advindos de doações) com todos da Praça.

As Festas e novenas de santos e do padroeiro são encontros realizados

pelos jovens em conjunto com as senhoras e acontecem nas casas pela

comunidade ou também na Pracinha do Santuário.

Além desses eventos, há ainda os festejos relacionados às catequeses,

que são as celebrações de Primeira Eucaristia e de Crisma, que, como já relatado,

são realizadas na própria comunidade à custa de muito esforço inclusive para o

convencimento dos próprios moradores.

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Todos esses eventos são realizados através da mobilização financeira da

comunidade através de bingos, rifas, doações, vendas de comida nos próprios

eventos. Consistem em oportunidades de entretenimento, socialização e ainda de

mostra para a própria comunidade das potencialidades existentes no Lagamar.

Não damos preferência em fazer as atividades aqui (no Lagamar) para nos excluir, mas para festejar junto com a comunidade, dar visibilidade às coisas positivas que acontecem por aqui, e convidar as pessoas ‘de fora’ a se aproximarem de nós e também conhecerem o lado que a mídia não mostra (Fala registrada em diário de campo. Inauguração Biblioteca Aurélio Borges; Dezembro, 2015).

A arte também é fator de reconhecimento do grupo em relação à

paróquia, é através dela que os jovens se impõem e conseguem ir conquistando

espaço e respeito pelas demais comunidades e ainda, divulgando fora do Lagamar,

seus potenciais.

O grupo (JBD) sempre ficou conhecido quando tinha as festas de São João lá na paróquia... o grupo da limpeza sempre foi o grupo! Porque tinham as comissões... organização e tal... limpeza: JBD Lagamar! Mas a gente sempre na tranquilidade... precisa de alguém pra limpar? Beleza, estamos aqui! Só que a gente foi ganhando status com o passar do tempo... não, os meninos tocam também... hoje eu acredito que temos um olhar diferente da paróquia com relação a nós... porque a paróquia é classe média... e o Lagamar é o único que é a galera dos pobres mesmo... (José, janeiro, 2015). Mudou o olhar porque eles têm muita paciência, nunca bateram de frente, de dizer assim, vocês não respeitam a gente! Eles faziam mais é viver, através da ação vão mostrando... quer dizer, quanto mais preconceito mais eles agiam... tudo o quanto pediam, o que o padre pedir... um tempo aí na festa, botaram eles pra varrer, quando terminasse tudo, se curvaram, foram varrer... nem baixou a cabeça, de se sentir humilhado, subserviente, ah não vamos fazer porque nós somos do Lagamar, não! Nós vamos fazer porque nós somos cristãos, cidadãos, de cabeça erguida... nunca teve essa subserviência! (Ruth, fevereiro, 2015).

Desta forma, mesmo com as dificuldades e os conflitos entre os jovens

que procuram se engajar nas lutas políticas propriamente ditas, ou não, a arte, por

desenvolver mudanças de olhares exteriores e dar autonomia aos jovens, é

instrumento político na comunidade, pois questiona (e põe em xeque) o lugar do

poder, contribuindo para a desconstrução de conceitos pejorativos e estigmáticos

em relação ao Lagamar.

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Além disso, aos jovens que convém, os eventos são importantes para o

currículo profissional, já que são eles que produzem da divulgação ao cenário.

Alguns inclusive comentam que colocam em seu currículo a realização de tais

atividades e alguns buscam qualificações em produção cultural e manuseio de

aparelhagem de som e imagem, a partir da experiência no JBD e da FMB para

contribuir também, principalmente com a peça da Via Sacra.

Tais atividades e eventos mencionados até aqui contribuem no

desenvolvimento da identidade com o Lagamar e ainda são oportunidades dos

jovens, crianças e comunidade em geral produzirem, exercitarem a criatividade,

invenção, além de descobrirem talentos e quem sabe, novos rumos de vida a seguir,

tendo em vista que os próprios jovens promovem os eventos, divulgam os potenciais

artísticos da comunidade (religiosos ou não) e trazem grupos de “fora”, conforme

aceitação de convite ou orçamento.

Nos arraiás tentamos trazer várias quadrilhas pro povo ver... aí temos a nossa quadrilha “Queridinhos do Lagamar” que vão pra tudo que é canto também... as novenas de natal, as festas de São Fco. todos eles tentando ligar a temas sociais, já falamos de ecologia, família, e também ligado à campanha da fraternidade, que quando tem sempre é algo não só pra igreja, mas preocupado com o social e a gente tenta por em prática... (José, janeiro, 2015).

Outro indício do respeito e das relações sociais de companheirismo e

cooperação que o JBD vem conseguindo moldar a partir da arte é o fato de não

haver episódios de violência nos eventos promovidos pelo grupo na praça, mesmo

com uma quantidade de pessoas considerável e com todos os conflitos existentes

no local, tais momentos são de plena convivência entre as diferenças e ainda mais,

de troca.

Vai ter uma peça da Via Sacra na praça! Vão lá leve a sua família, vai ter um Arraiá da Família... tipo assim, toda festa no Lagamar, tem bala, tem tiroteio, mas nos nossos, graças a Deus, nunca teve, meu! Tipo, isso mostra a preocupação das pessoas... Teve uma vez que esperaram terminar, a gente guardar as coisas... aí começou... pa, pa, pa! Mas durante não... (Moisés, março, 2015).

Durante todo este tópico, dois lugares foram chave para as atividades do

JBD no Lagamar: a “Casa do Grupo” e a “Praça do Santuário”. Diante da

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importância dos espaços e da história de luta para a conquista dos dois, estes terão

tópicos privilegiados a seguir.

3.3.1. A “Casa do grupo” Amar é mudar a alma de casa.

(Mario Quintana)

O Centro de Formação do Lagamar, mais conhecido como a “Casa do

Grupo” é totalmente administrado pelo JBD. Consiste em uma casa grande, com

dois salões, uma sala de música, uma sala para os figurinos, uma biblioteca,

cozinha, uma pequena dispensa e dois banheiros, situada à Rua Aspirante Mendes,

próximo a “ponte dos carros”, no “lado” do São João do Tauape. Tal localização

precisa é importante tendo em vista a territorialização33 do Lagamar, onde é natural

as pessoas não andarem após certo limite, certa rua, logo, as atividades do JBD

acontecem principalmente neste espaço, contemplando principalmente os

moradores das proximidades.

Fachada - Casa de Missão “Ana e Edméa” – Em reforma – 2015. Foto: Lucélio Pires

33

Tal territorialização diz respeito ao ranso deixado pela atuação das gangues na década de 1990 e que se perpetua na comunidade, agora pela disputa do tráfico de drogas. É comum na comunidade pessoas que só andam até certo limite de ruas, mesmo não sendo envolvidas diretamente com as disputas.

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Casa de Missão “Ana e Edméa” – Salão 1. Foto: Lucélio Pires

Casa de Missão – “Ana e Edméa” – Biblioteca – 2015 – Antes da reinauguração. Foto: Lucélio Pires

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Casa de Missão “Ana e Edméa” – Salão 2. Foto: Lucélio Pires

Sempre mencionada nas entrevistas como uma das grandes conquistas

do JBD, a “Casa do grupo” foi comprada a partir do esforço dos jovens no ano de

2008, que promoveram um show com uma banda católica conhecida nacionalmente

(Rosa de Saron) e arrecadaram parte do dinheiro necessário, juntando forças com

as senhoras da Legião de Maria e partindo para a luta no sentido da paróquia

autorizar e inteirar o restante do valor total do imóvel.

O show do Rosa de Saron... tá ligado com o lance da nossa autoestima, tipo fazer algo grande quando as pessoas achavam que era impossível fazer a gente vai lá e faz... conseguir um dinheiro... e o lance de fazer deu uma autoestima, tá marcado na nossa história! (Moisés, março, 2015).

Uma vitória física foi a casa onde hoje é o centro de Formação do Lagamar, onde acontecem nossas atividades que foi a junção do JBD com outro grupo lá do Conjunto Ceará... aí os grupos começaram a se organizar pra trazer a banda mais popular do momento do meio católico pra tocar em Fortaleza... e eram dois grupos de comunidades que tavam trazendo... a gente nunca tinha feito um evento desse porte... tinha o Moisés que era do Marketing... ele tinha noção, mas nunca tinha feito um evento assim, tinha alguns contatos e sabia desenrolar algumas coisas, mas nunca tinha feito um evento sozinho... aí que quem ia pedir apoio eram os mais velhos, Moisés e Josias aí eles iam nas rádios, e com algumas pessoas que poderiam patrocinar com dinheiro, chegavam lá se apresentavam como a comunidade do Lagamar e do Conj. Ceará... teve gente que riu e disse que a gente nunca ia trazer, que não ia dar certo... mesmo assim, corremos atrás, sustentamos a ideia... (José, janeiro, 2015).

A questão do movimento do Rosa de Saron que foi assim: onde ninguém acreditou... porque quando dizia assim: nós somos do Lagamar e do Conjunto Ceará! Ninguém acreditava... diziam logo: não... aí não tem vez

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não! E quando no dia eu lembro muito bem: o Paulo Sarasate tava super lotado, a gente não conseguiu nenhum patrocinador, nenhum...foi um sucesso, a realização de um sonho né... de ter como comprar a casa, de tudo que a gente tem hoje assim... foi uma realização muito, muito grande (Ester, maio, 2015).

Mas toda a mobilização para a compra da casa, segundo as entrevistas,

iniciou-se por iniciativa de duas senhoras da Legião de Maria, que souberam da

venda do imóvel e foram negociar, sensibilizando os donos a venderem a um valor

bem abaixo do mercado. Segundo uma delas, eles tinham que comprar a casa

porque souberam também que ela estaria na lista de compras de um traficante da

comunidade, ou seja, seria mais uma batalha perdida para o tráfico.

Então se iniciaram os trabalhos: as senhoras da Legião tinham uma

quantia em dinheiro advinda de bingos e rifas que também fazem na comunidade, os

jovens realizaram o show e os dois grupos foram tentar sensibilizar a Paróquia. Tal

mobilização contou com a gravação de um vídeo mostrando a realidade da

comunidade, a ausência de políticas públicas governamentais na área e ainda, a

importância das atividades do JBD, com depoimentos de outros moradores, imagens

da comunidade, mas ainda assim não foi possível o apoio financeiro da Paróquia do

Tauape.

Então o “plano B” foi apelar para um visitante (padre) da Itália que havia

conhecido o grupo pouco tempo antes e afirmou passar a ter grande admiração por

eles. Então, as duas senhoras da Legião de Maria, além de já terem negociado o

valor do imóvel pretendido (e conseguido baixar quase para a metade), ainda

escreveram uma carta a esta pessoa pedindo a doação para completar o valor

necessário.

O apelo foi aceito e o esforço em conjunto deu o resultado esperado: a

compra do espaço em que hoje o JBD realiza a maioria das suas atividades. E esta

é usada diariamente, inclusive nos finais de semana e por vezes, com várias

atividades ao mesmo tempo, como presenciei algumas vezes: ensaio da dança no

primeiro compartimento, do teatro no segundo, crianças e jovens conversando e

lendo na biblioteca e até reunião de pais no “salão da frente”34, tudo ao mesmo

tempo.

34

Foto em anexo.

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E com contínuo esforço, a “Casa do grupo” em 2015 passou por uma

reforma estrutural e a ser também local de guardar a memória do grupo, já que em

20 de dezembro, ela foi reinaugurada com o nome “Casa de Missão Ana

(homenageada) e Edméa (In memoriam) ”, em homenagem as duas senhoras da

Legião de Maria que lutaram para a compra da casa (e tantas outras missões) e

inspiram os jovens até hoje.

Nesta mesma data também foi inaugurada oficialmente, pois já

funcionava antes, a biblioteca do grupo, com o nome “Biblioteca Aurélio Borges”

nome do fundador do JBD, que segundo os jovens sempre andava com livros

debaixo do braço e na época era o único conhecido por eles na comunidade que

fazia faculdade: “...então pelo seu esforço, dedicação e exemplo para nós, também

nos estudos, a biblioteca terá o seu nome, Aurélio Borges! ”35

Foi um momento de bastante emoção, com apresentações de teatro, o

coral das crianças da catequese e mais Música Popular Brasileira (MPB) com o

MMJBD. Vários convidados de fora da comunidade, universitários, professores,

colaboradores de outros movimentos e instituições sociais estavam presentes, foi

oportunidade de apresentar o grupo e a casa para essas pessoas, também como

forma de desconstruir paradigmas e imagens negativas do local, fazer parcerias

para novos projetos, etc.

Além disso, foi bastante enfatizado o caráter revolucionário de se

inaugurar uma biblioteca em uma comunidade onde ler não é hábito e ainda, que

esse projeto renderá frutos ainda mais proveitosos para o Lagamar, como sendo um

dos mais importantes que o JBD já realizou.

O orgulho de fazer parte da história do grupo, de estarem em um

momento de amadurecimento e de colher resultados de trabalhos do passado

também foi comentado, além do exemplo dos jovens que também estão buscando

se aprofundar nos estudos e cursar uma faculdade, a partir da primeira pessoa

conhecida por eles que tinha gosto pela leitura, o Aurélio.

Eu fui convidada a falar um pouco da minha pesquisa, como se ela

respaldasse ainda mais as atividades e a importância do grupo na comunidade para

aquelas pessoas que não conheciam profundamente o trabalho deles. Senti a

35

Fala de jovem no cerimonial de inauguração da Biblioteca.

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utilidade da minha pesquisa para o JBD, como documento, registro e comprovação

do trabalho para quem não os conhecia de perto.

Além de toda a manutenção e limpeza, o pagamento de contas (água e

luz) e possíveis reformas são feitas pelos integrantes do grupo através de doações e

das mobilizações financeiras junto à comunidade: bingos, rifas e eventos na praça

do Santuário de São Francisco, única praça realmente dentro do Lagamar.

Acho que outra dificuldade foi de ter um canto que a gente pudesse dizer assim: esse é nosso canto! Acho que hoje a maior dificuldade é manter mesmo a casa né... manter porque a estrutrura não é fácil, questão de água, luz... das atividades também que a gente quer fazer mais coisas, mas não tem dinheiro, e a gente acaba tendo que tirar do nosso bolso pra manter, que não é fácil né... (Ester, maio, 2015).

Segundo Alvarez (2000), para entender

O impacto político-cultural dos movimentos sociais e avaliar suas contribuições para minar o autoritarismo social e a democratização elitista, não é suficiente examinar as interações deles com ambientes públicos oficiais (tais como parlamentos e outras arenas políticas nacionais e transnacionais). Devemos ampliar nosso olhar para abranger também outros espaços públicos – construídos ou apropriados pelos movimentos sociais- nos quais políticas culturais são postas em prática e se modelam as identidades, demandas e necessidades subalternas. (ALVAREZ, 2000, p. 42).

A “casa do grupo”, assim, é mais um espaço criado pelo JBD em que a

política de cultura do grupo acontece, onde “... se modelam as identidades,

demandas e necessidades subalternas...”. Além disso, em uma comunidade que não

é provida de oportunidades de acesso aos “ambientes públicos oficiais” sobretudo

na área cultural, eles também abraçaram a única praça da comunidade, conforme

apresentado a seguir.

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3.3.2. O “Abraço da praça” Em teu abraço eu abraço o que existe

a areia, o tempo, a árvore da chuva E tudo vive para que eu viva:

sem ir tão longe posso vê-lo todo: veio em tua vida todo o vivente.

(Pablo Neruda)

O JBD, além da “Casa do Grupo”, espaço público construído por eles,

apropriou-se da Praça do Santuário de São Francisco, também conhecida como

“Praça do Antigo Mercado”, “da Delegacia”, “do Carcará”36. Um pequeno espaço,

hoje, com árvores, canteiros, que abrange uma infinidade de atividades, por ser a

única praça na comunidade. Os varais de roupas lavadas, as crianças jogando bola,

a noite o pula-pula, os carrinhos de pipoca e os espetinhos, etc., hoje ocupam um

território antigamente dominado pelo tráfico de drogas.

...A praça hoje é bonitinha graças a nós! Porque a gente fez abaixo assinado, reuniões... várias reuniões perguntando ao povo o que achavam... a praça fomos nós que conseguimos! Não tava nos planos da prefeitura não, mas arranjaram uma verba de 60 mil reais e ajeitaram a praça... a conservação dela é graças ao grupo e à D. Sofia, né... se não fosse o grupo ela já tinha sumido... porque começaram arrancando as pedras e D. Sofia pregando, e tá lá, não faz vergonha... na época do abaixo assinado os jovens já tavam no meio, eles que enfrentaram... (Ruth, fevereiro, 2015).

A gente mobilizou as pessoas pra praça, no dia do meio ambiente para a reforma da praça... foi um movimento iniciado pela gente! A praça hoje se mantém aquele canteirinho lá, com a D. Débora... mas aquele canteiro começou há muitos anos quando a gente teve a iniciativa de fazer o abraço simbólico da praça, montamos os canteiros... porque aquela praça tava fadada a ser um ponto de droga pro resto da vida do Lagamar e as pessoas começaram a ver: é mesmo! Poxa, vamos lutar por ela... tentamos convencer as pessoas... e convencemos... vamos pessoal cuidar da praça, plantar, e começamos a fazer plantio, as cerquinhas, aí todo mundo lá, a D. Sofia na enxada, os meninos... foi muito legal... (Moisés, março, 2015).

Aí nisso começaram a cuidar, fizeram cerquinhas pra proteger as plantas, plantaram girassóis... ela ficou diferente, mais movimentada, organizada, mais viva, bacana, tinha mais famílias e não só gente que tava lá pra fazer besteira, vender droga... não só pela mobilização, mas porque todo sábado a praça tava sendo ocupada pela celebração da palavra também... (José, janeiro, 2015).

36

Antigamente existia próximo à praça um mercado e a hoje capela São Francisco era uma delegacia.

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Pracinha do Santuário São Fco – durante a reforma de 2015/2016. Foto: Lucélio Pires

Pracinha do Santuário São Fco – Após primeira fase da reforma – 2015/2016. Foto: Lucélio Pires

Tendo em vista que a praça é a única da comunidade que por vezes era

movimentada pelo tráfico de drogas, a própria celebração da palavra, como os

jovens chamam, é um ato de ocupação da praça em detrimento do tráfico. Assim,

eles foram conquistando espaço e conseguindo o respeito das outras atividades que

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começaram a ocorrer nela, além de incentivar os moradores ao redor dela, ao

cuidado, e a ocupação do espaço também.

A celebração da palavra virou mais que “só” uma celebração, é um envolvimento... que sábado a gente tem que se encontrar na praça pra mostrar mesmo essa força, esse movimento da praça, que é muito além que só a celebração, é o seu Miguel que tá vendendo o churrasco dele, os senhores que tão ali jogando o seu baralho, tem os evangélicos que sempre tão movimentando a praça também... (Ester, maio, 2015).

Há ameaças, por parte da Paróquia, de uma possível reforma no

Santuário São Francisco, que tomará parte da praça (que já é pequena), para que o

Santíssimo Sacramento37 possa ser guardado no local, porém, as conversas

informais presenciadas sobre o assunto indicam que os jovens novamente

defenderão o espaço como único de socialização e lazer dos moradores em geral do

Lagamar, e mesmo que de encontro a um preceito religioso e à Paróquia, mais lutas

em favor da praça estão à vista.

Em novembro de 2015, mais uma batalha em relação à praça do

Santuário foi encabeçada pelo JBD: de forma autoritária, segundo informações dos

próprios jovens e manifesto na página da rede social “JBD Lagamar”, a prefeitura de

Fortaleza (na pessoa da Primeira Dama) enviou uma equipe de operários para fazer

intervenções na praça, sem o conhecimento de nenhum morador ao redor do que se

tratava a modificação. Os jovens então investigaram e marcaram uma reunião com o

engenheiro da obra que afirmou ser a construção de um parquinho infantil.

Tal projeto não foi do conhecimento de nenhum morador, não se sabe de

onde veio a demanda, que é clara, mas a praça já é muito pequena e o parquinho

tomaria a metade dela, mudando a rotina das pessoas ao redor, que cuidam e

usufruem dela. Segundo os jovens, tratava-se de um projeto com fins eleitoreiros, já

que a comunidade precisa de outros espaços de lazer para as crianças sim, mas

não a construção de um em detrimento de outro.

Além disso, por se tratar de uma ZEIS, as intervenções do Estado na área

devem passar pelo crivo do Conselho Gestor da ZEIS e o Lagamar, por sua vez, é a

única ZEIS em Fortaleza a ter esse nível de organização, como já mencionado,

composto mais da metade, por integrantes do JBD.

37

A hóstia consagrada: os católicos acreditam ser literalmente o corpo de Jesus Cristo em carne, através da transubstanciação do pão. Ela precisa de um local específico para ser guardada: o sacrário, por isso, o Santuário poderá ser reformado.

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Dessa forma, os jovens organizaram uma reunião entre eles, os demais

moradores e o engenheiro da obra, que esclareceu as dúvidas e ouviu as

reivindicações, que era a diminuição do espaço tomado pelo parquinho, para que as

outras atividades, eventos e brincadeiras das crianças não fossem prejudicadas.

E assim aconteceu, o parquinho tornou a praça ainda mais viva, e as

demais atividades, como o churrasquinho, as roupas estendidas, as atividades do

JBD, da Igreja Evangélica, do grupo de baralho etc., também continuarão com seu

espaço garantido na praça.

A próxima seção se deterá a duas atividades artísticas que utilizam tanto

a casa do grupo, como a pracinha do Santuário como palco: a peça teatral Via Sacra

e a Quadrilha Junina Queridinhos do Lagamar, manifestações culturais idealizadas,

produzidas, organizadas e realizadas pelo JBD em comunhão com a comunidade.

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4. “COMUNGAR É TORNAR-SE UM PERIGO! ”: A POLÍTICA DE CULTURA DO

JBD E A CIDADANIA CULTURAL NO LAGAMAR Se calarem a voz dos profetas,

as pedras falarão. Se fecharem os poucos caminhos,

mil trilhas nascerão. Muito tempo não dura a verdade, nestas margens estreitas demais,

Deus criou o infinito pra vida ser sempre mais.

É Jesus este Pão de igualdade, viemos pra comungar,

com a luta sofrida de um povo que quer, ter voz , ter vez, lugar.

Comungar é tornar-se um perigo, viemos pra incomodar!

Com a fé e a união nossos passos um dia vão chegar.

O Espírito é vento incessante que nada há de prender.

Ele sopra até no absurdo, que a gente não quer ver. Muito tempo não dura a verdade, nestas margens estreitas demais.

Deus criou o infinito pra vida ser sempre mais.

No banquete da festa de uns poucos, só rico se sentou.

Nosso Deus fica ao lado dos pobres, colhendo o que sobrou.

Muito tempo não dura a verdade, nestas margens estreitas demais.

Deus criou o infinito pra vida ser sempre mais.

O poder tem raízes na areia, o tempo faz cair.

União é a rocha que o povo usou pra construir. Muito tempo não dura a verdade, nestas margens estreitas demais.

Deus criou o infinito pra vida ser sempre mais. (Ir. Vaz Castilho – Pão de Igualdade)

Ao ouvir o trecho da canção em uma celebração no grupo JBD, nunca a

palavra comungar fez tanto sentido, na verdade a canção inteira pode ser analisada

como um hino da luta por direitos do povo do Lagamar, tendo em vista que, de

acordo com o Dicionário Online de Português, “comungar”, significa, entre outros:

Ação ou efeito de comungar; Ato de realizar ou desenvolver alguma coisa em conjunto; Harmonia no modo de sentir, pensar, agir; identificação; comunhão de pensamentos; Em que há união ou ligação; Compartilhamento; Religião Católica: refere-se ao sacramento da Eucaristia; o próprio sacramento da Eucaristia; Durante a cerimônia (missa), momento em que os católicos recebem a Eucaristia ou a hóstia sagrada. (Dicionário Online de Português, acesso em: 04.11.2015).

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Tanto a luta do Lagamar desde a década de 1980, como a organização e

atividades dos JBD, baseiam-se nesse “comungar”: sentimento comum de injustiça e

desigualdade de direitos, na convivência em grupo, na troca e compartilhamento de

experiências e na busca coletiva por mudanças na comunidade.

A organização do JBD é bastante horizontal e em vários momentos, cada

jovem coordena uma atividade em dias diferentes e ainda, eles envolvem as

crianças em um clima democrático também, levando em consideração a opinião e

disponibilidade delas nas atividades, desde a escolha do penteado para padronizar a

quadrilha junina, à sugestão de música para sua entrada em cena.

Um desdobramento dessa participação das crianças foi o episódio

contado com orgulho por alguns jovens, em que no ano de 2014, as participantes da

quadrilha fizeram um abaixo-assinado para retirar uma jovem do ‘comando’ dos

ensaios, por acharem que ela era chata e “carrasca”.

Os jovens não puderam acatar a solicitação das crianças, pois a jovem

então “impeachmada” era uma das poucas com o conhecimento acerca da

organização e coreografia de quadrilha e com maior disponibilidade para os ensaios,

mas a atitude das crianças é motivo de orgulho pelos jovens, por saberem que se

elas se sentem no direito de reivindicar a saída de alguém da coordenação da

quadrilha, sabem que podem remodelar posições de poder de forma geral e apesar

da pouca idade, já conhecem meios para isso e ainda, muito provavelmente

aprenderam com o JBD.

Quase todas as decisões realmente são tomadas pelo grupo em geral,

apesar de existir um grupo menor de 6 pessoas (em sua maioria os mais antigos e o

coordenador – o conselho), os convites para apresentações, a participação de

pessoas que não são do grupo em momentos internos, o planejamento de atividades

para o semestre, foram alguns exemplos de decisões que presenciei e inclusive tive

voz para também expor minha opinião e voto: “...aqui é tudo em conjunto! A última

palavra é do coletivo!” (Abiel, 2015).

Participei também de algumas reuniões do Conselho Colegiado do JBD,

núcleo de 6 pessoas que pensam propostas para serem apresentadas e colocadas

em discussão com o restante do grupo. Nesses encontros eles elaboram sugestões

de atividades, refletem sobre o momento do grupo, planejam a programação do

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planejamento semestral, por exemplo, em um ambiente de amizade e de incentivo à

participação dos novatos no conselho.

Além disso, em todas as atividades que participei o ambiente é de

cordialidade, amizade e liberdade para se vestir, falar o que quiser, pois mesmo

sendo um grupo religioso, os assuntos, roupas, culturas, identidades (sexuais, de

gênero, culturais, religiosas) mais variados têm vez. Não há fundamentalismos que

geram exclusão, ou regras rígidas de vestimenta, assuntos ou comportamento. Há

também um caráter de auto avaliação e reflexão sobre as atividades e a

comunidade, de forma recorrente.

Sabe-se que um dos maiores desafios para o aprofundamento da

democracia e cidadania no Brasil é a participação, tão protelada e nova na

sociedade brasileira, por sua vez, enraizada pelo patriarcado, pela troca de favores e

não pelos direitos. A Constituição Federal de 1988 ficou conhecida como

Constituição Cidadã porque implementou também a participação dos cidadãos e

cidadãs nas políticas do Estado, porém, ainda estamos caminhando rumo a esta

participação efetiva das pessoas nos espaços de controle convencionados por ela,

como os Conselhos, Orçamentos Participativos, etc.

Porém, conforme Bobbio (1986), uma forma de saber acerca do

desenvolvimento da democracia é não mais analisar “quem vota”, mas “onde” se

pode exercer o direito político, ou seja, não é mais a quantidade de pessoas que

votam que é importante, mas que espaços se democratizaram e permitem a maior

participação, representação, etc., por iniciativa do Estado ou não.

Nesse sentido, o JBD é um espaço não institucionalizado de participação

dos jovens, onde (desde criança) eles “aprendem” a ser ouvidos, a ter direitos, voz e

vez, o que reflete na participação política fora do grupo, nos movimentos pela

melhoria da comunidade e da cidade, que alguns deles também participam.

A gente tem muito ‘por quê’ histórico de ser muito revoltado... e aí eu acho que quando a gente chega no grupo de jovens e diz que conseguimos trazer o Grito dos excluídos pro Lagamar, a gente levando os meninos pras manifestações... é muito engraçado, porque pra eles, um grupo de jovens, é um ‘oba, oba’ quando vamos pra um grito dos excluídos, mas quando eles chegam lá e veem toda aquela galera naquele discurso... falando sobre libertação, moradia... aquilo fica na cabeça daqueles meninos... lá na frente, aquilo vai vir a tona na cabeça deles, quando chegarem em alguma discussão... aquilo é uma semente e um dia ela vai florescer na vida deles... (Moisés, março, 2015).

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Alvarez (2000) destaca que os movimentos sociais insurgentes nos anos

1990 e 2000 abordam questões para além da democracia formal, apontando para a

diversidade e para a reconceituação de noções e práticas que afrontam as culturas

políticas dominantes. Isso fez com que na América Latina tenham se desenvolvido

várias culturas políticas que transcendem à democracia formal liberal, a partir da

redefinição de conceitos “[...] como democracia e cidadania, resignificando as

noções de direitos, público e privado, formas de sociabilidade, ética, igualdade e

diferença, etc.” (ALVAREZ, 2000, p. 29).

O compartilhamento também é central no JBD, tanto pelas redes sociais

(onde se falam todos os dias), como na vida cotidiana, percebendo a influência dos

discursos, das experiências de uns na vida dos outros, inclusive no que tange a

participação política formal ou não.

O grupo é composto por várias pessoas e todos têm uma vertente, vai para um lado, mas lá no final a gente se encontra... tipo a Rebeca, gosta muito de movimentos sociais, a Ester gosta muito de criança... e tipo, tudo que a gente vai partilhando... Ester ta na psicologia, eu já gosto muito de redes sociais, essas coisas... parece que seguimos vários caminhos, mas lá no final a gente se encontra e encaixa... e é um crescimento, a gente partilha e vamos crescendo... o lance da minha participação nessas manifestações e atos, se deu por conta das partilhas da Rebeca, convidando, iniciando as discussões... isso vai criando em nós essa identidade, esse pouquinho de tudo, juntando tudo forma a verdadeira identidade do JBD e nós vestimos essa camisa! O grupo é esse compartilhamento! Essa é nossa rede social, buscamos informações trazemos pra dentro do grupo e crescemos juntos! Cada um sabe de uma coisinha e cresce todo mundo! (Abiel, agosto, 2015).

Desta forma, a “comunhão” dos jovens no JBD contribui para a formação

de jovens mais participativos e reflexivos capazes de exigir e lutar por direitos, de

exercer a alteridade e a convivência (e respeito) entre os diferentes, tornando-se um

“perigo” para as culturas políticas dominantes, como a da exclusão, referida por

Dagnino (1994), já mencionada ao longo deste trabalho. Assim, conforme Alvarez

(2000), os jovens põem em prática políticas culturais.

As políticas culturais dos movimentos sociais tentam amiúde desafiar ou desestabilizar as culturas políticas dominantes. [...] o que está em questão para os movimentos sociais, de um modo profundo, é uma transformação da cultura política dominante na qual se movem e se constituem como atores sociais com pretensões políticas [...] ” (ALVAREZ, 2000, p. 26).

Segundo Alvarez (2000), o ângulo mais importante para analisar as ações

dos movimentos sociais são os efeitos das políticas culturais destes sobre a cultura

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política, definida pelos autores como o domínio de instituições e práticas legitimadas

e construídas coletivamente do que é propriamente político, econômico, cultural, etc.

Tentam, de forma geral, desestabilizá-las, transformá-las.

Sendo assim, nesta seção defender–se-á o JBD como promotor de

políticas culturais, apresentar-se-á a discussão acerca de como a quadrilha

“Queridinhos do Lagamar” e a peça “Via Sacra” contribuem para a ressignificação de

conceitos e práticas dentro do Lagamar, que desafiam a cultura política da exclusão,

ao passo que proporcionam espaços de aprofundamento da democracia e

cidadania.

Mas, para início de conversa, faz-se necessária a apresentação da

dicotomia entre política cultural e política de cultura a fim de esclarecer a importância

das duas para o aprofundamento da democracia, e ainda, destacar a definição

considerada neste trabalho.

4.1 POLÍTICA CULTURAL X POLÍTICA DE CULTURA

“Tem hora que a gente se pergunta Por que é que não se junta tudo numa coisa só? ”

(Fernando Anitelli)

A discussão do ‘público x privado’ é central na construção de um conceito

de políticas culturais, pois segundo Barbalho (2009), quando não se considera ações

não estatais como políticas culturais a visão de público se confunde com o Estado

(apenas). E assim, o autor defende que instituições privadas e da sociedade

também realizam políticas culturais.

Porém, Barbalho (2011) propõe a diferenciação entre política cultural e

política de cultura, comparando às discussões acerca da palavra “política” e a

riqueza de vocabulário e sentidos da língua inglesa, respectivamente, a cultural

policy e a cultural politcs.

A primeira definição, política cultural (cultural policy), diz respeito às

políticas públicas no âmbito da cultura implementadas por um Governo. E as

políticas de cultura (cultural politcs), porquanto, “se referem às disputas de poder em

torno dos valores culturais ou simbólicos que acontecem entre os mais diversos

estratos e classes que constituem a sociedade” (BARBALHO, 2011, p. 26).

Nesse sentido, o trabalho dos movimentos sociais tem sido decisivo como

afirma Alvarez (2000), pois além de conseguirem incluir suas demandas na agenda

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das políticas públicas estatais e expandirem a fronteira do campo político para além

dos locais institucionalizados (parlamento, prédios oficiais, etc.), ainda lutam

cotidianamente de maneira significativa para remodelar os sentidos, noções e

representações da política e do poder nas relações sociais, contribuindo assim, para

a efetivação de políticas culturais e políticas de cultura.

Aqui utilizamos “política cultural” para chamar a atenção para o laço constitutivo entre cultura e política, e a redefinição de política que essa visão implica. Esse laço constitutivo significa que a cultura entendida como concepção do mundo, como conjunto de significados que integram práticas sociais, não pode ser entendida adequadamente sem a consideração das relações de poder embutidas nessas práticas. Por outro lado, a compreensão da configuração dessas relações de poder não é possível sem o reconhecimento de seu caráter “cultural” ativo, na medida em que expressam, produzem e comunicam significados. Com a expressão “política cultural” nos referimos então ao processo pelo qual o cultural se torna fato político (ALVAREZ, 2000, p. 17).

Desta forma, será considerado neste trabalho, o conceito de “política de

cultura” de Barbalho (2011) e o de “política cultural” de Alvarez et. al. (2000) e por

serem concordantes serão abordados com a mesma nomenclatura de “política de

cultura”.

Sendo assim, os movimentos sociais desempenham “[...] um papel crítico

na luta por formas alternativas de democracia no novo milênio” (ALVAREZ, 2000, p.

15), pois contribuem não apenas como redefinição do sistema político, mas também

das práticas econômicas, sociais e culturais que possam engendrar uma ordem

democrática para a sociedade como um todo.

O campo de ação das lutas democratizantes se estende para abranger não só o sistema político, mas também o futuro do ‘desenvolvimento’ e a erradicação de desigualdades sociais tais como as de raça e gênero, profundamente moldadas por práticas culturais e sociais (ALVAREZ et. al., 2000, p. 16).

E o JBD, ao organizar uma peça de teatro que aborde a violência contra a

mulher, ao reviver e compartilhar a história da comunidade onde vivem, ao criar

novos espaços de socialização e convivência, ao mobilizar outros moradores para

exigir do Estado a revitalização da única praça da comunidade, antes ocupada pelo

tráfico, organizar sua manutenção, entre outras atividades, ressignifica noções de

identidade, de direitos, etc., ações culturais estas, que se tornam políticas, por

causarem mudanças nos sentidos, pensamentos e ações na comunidade.

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A cultura é política porque os significados são constitutivos dos processos que, implícita ou explicitamente, buscam redefinir o poder social. Isto é, quando apresentam concepções alternativas de mulher, natureza, raça, economia, democracia ou cidadania, que desestabilizam os significados culturais dominantes, os movimentos põem em ação uma política cultural (ALVAREZ, 2000, p. 25).

Exemplos dessa mudança de sentidos podem ser identificados em várias

falas nas entrevistas, em que os jovens revelam não ter mais vergonha de serem

moradores do Lagamar, ou das (maioria) famílias fazerem questão que as

celebrações de Primeira Eucaristia e Crisma se realize na própria comunidade e não

mais no São João do Tauape, por ser mais bonito, ou um bairro de “status”.

Outro elemento que revela a ressignificação de conceitos e práticas do

JBD no Lagamar é a construção da identidade do grupo e dos participantes das

atividades em geral com a comunidade, desde o nome do grupo (JBD Lagamar), até

à quadrilha junina, Queridinhos do Lagamar.

Alvarez (2000) destaca ainda, que os movimentos sociais constroem

redes ou teias interpessoais e institucionais na vida cotidiana, tais teias são

decisivas para demonstrar como as intervenções políticas dos movimentos sociais

vão além da sociedade política e do Estado. Elas os sustentam “... ao longo dos

fluxos e refluxos de mobilização que infundem novos significados culturais nas

práticas políticas e na ação coletiva” (p. 35), que ultrapassam formas óbvias e

manifestações visíveis de protesto político, abrangendo mais que as organizações e

membros ativos, mas participantes ocasionais, colaboradores, que apoiam

determinado objetivo do movimento e contribuem para difundir discursos e

demandas contra culturas políticas dominantes.

Eu acho que nós somos um grupo, mas poderiamos muito mais ser um movimento porque assim... tem a identificação... e muita gente se identifica com o nosso trabalho, com o nosso movimento... eu acho que o fato dessa pessoa se identificar e contribuir indiretamente... ela é membro porque ela tá contribuindo... poxa! o cara do churrasco, lá na praça... ele vem lá acabou a novena ele vai lá contribui... ‘Moisés

38, o som ta atrapalhando a

celebração?’ Tipo assim... se ele faz isso, ele comunga com nosso trabalho, com o que a gente faz...ele é do grupo tanto quanto eu! Porque ele faz acontecer... (Moisés, fevereiro, 2015).

Aqui a comunhão é maior ainda, pois envolve a comunidade em geral,

nos eventos, nas peças de teatro, na quadrilha, catequeses sociais e demais

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atividades. O JBD promove a comunhão entre as pessoas, tão afastadas pelo

cotidiano cruel de viver em uma comunidade com privações tão fortes quanto o

Lagamar, e não apenas como espectadores, mas como participantes ativos das

ações, conforme apresentado mais adiante.

Assim, Alvarez (2000) destaca que as demandas, discursos e práticas

políticas dos movimentos sociais são espalhadas pelo tecido social, muitas vezes,

de forma “invisível”, “com suas redes político-comunicativas atingindo os

parlamentos, a academia, a Igreja, os meios de comunicação e assim por diante”

(ALVAREZ, 2000, p. 36).

E são essas aparentemente invisíveis possibilidades de desconstrução

das culturas políticas dominantes que contribuem para o aprofundamento da

democracia e cidadania, que segundo Dagnino (1994) necessitam de muito mais

que uma transformação política (no sentido formal), mas uma transformação cultural.

Estabelece-se então a relação intrínseca entre cultura e política, entendo

a cultura “[...] como processo coletivo e incessante de produção de significados que

molda a experiência social e configura as relações sociais” (ALVAREZ, 2000, p. 17),

já que a reconfiguração dessas relações sociais é também um ato político.

A política de cultura, assim, é entendida como a relação entre cultura e

política e a mudança no sentido de política que essa relação imprime, ou seja, que a

política não é própria de um grupo de pessoas ou de um espaço específico, mas

está presente em variados espaços sociais e é construída a partir das relações

culturais e de poder.

Nossa definição de “política cultural” é ativa e relacional. Interpretamos política cultural como o processo posto em ação quando conjuntos de atores sociais moldados por e encarnando diferentes significados e práticas culturais entram em conflito uns com os outros. Essa definição supõe que significados e práticas – em particular aqueles teorizados como marginais, oposicionais, minoritários, residuais, emergentes, alternativos, dissidentes e assim por diante, todos concebidos em relação a uma determinada ordem cultural dominante – podem ser a fonte de processos que devem ser aceitos como políticos” (ALVAREZ, 2000, p. 24-25).

Assim, serão apresentadas, mais adiante, duas atividades específicas do

JBD (Queridinhos do Lagamar e Via Sacra) que colaboram para a política de cultura

do grupo, em que estes conseguem articular o cultural e o político, contribuindo com

o desenvolvimento da cidadania cultural, discutida no próximo tópico.

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4.2 A CIDADANIA CULTURAL E OS DIREITOS CULTURAIS É!

A gente quer valer o nosso amor A gente quer valer nosso suor

A gente quer valer o nosso humor A gente quer do bom e do melhor...

É! A gente quer viver pleno direito

A gente quer viver todo respeito... A gente quer viver uma nação

A gente quer é ser um cidadão (Gonzaguinha)

Para Fernandes (2011) as discussões acerca dos direitos culturais se

originam na primeira metade do século XX, porém, é em sua segunda metade que

as constituições dos países ampliam as concepções de cultura e assim, as

legislações passam a abranger direitos culturais além da forma individual, de

manifestação de pensamento, direitos autorais e de invenção. Isso se dá, segundo a

autora, por conta da influência da Declaração dos Direitos Humanos, de 1948, que

impulsiona esses direitos a ganharem status de direitos fundamentais.

Cunha Filho (2011) afirma que a Constituição brasileira, de 1988, poderia

se chamar “Constituição Cultural”, pois é a primeira que dedica uma seção exclusiva

para a cultura, e ainda, apresenta em vários títulos a preocupação com a cultura

como um direito do cidadão e dever do Estado.

A Constituição brasileira é abundante no tratamento da cultura. Isso fica evidente no fato de que em todos os seus títulos há alguma ou até mesmo farta disciplina jurídica sobre o assunto. Poderia, por isso, ser chamada de “Constituição cultural”, mas também pelo fato de possuir seção específica para o tema, em cujo artigo inaugural – 215 – se lê que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais” (CUNHA FILHO, 2011, p. 114).

Cunha Filho (2011) destaca ainda a influência de tratados e encontros

internacionais sobre os direitos culturais, como os promovidos pela UNESCO, para o

Brasil de forma mais atuante, inserir a cultura como um direito previsto

constitucionalmente e fundamental para o desenvolvimento mundial.

Cavalcante (2011) situa os direitos culturais entre os direitos humanos e

relativos ao direito ao usufruto, liberdade de manifestação, identidade cultural, etc.

Os direitos culturais são parte integrante dos direitos humanos. Estão indicados no artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos

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(1948) e nos artigos 13 e 15 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966). Assim, todas as pessoas devem poder se exprimir, criar e difundir seus trabalhos no idioma de sua preferência e, em particular, na língua materna. Todas as pessoas têm o direito a uma educação e a uma formação de qualidade que respeitem plenamente a sua identidade cultural. Todas as pessoas devem poder participar da vida cultural de sua escolha e exercer suas próprias práticas culturais, desfrutar o progresso cientifico e suas aplicações, beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de toda a produção cientifica, literária ou artística de que sejam autoras (CAVALCANTE, 2011, p.3).

Para Brant (2012) a Cidadania cultural se fundamenta na garantia que

todos os cidadãos tenham acesso igualmente aos direitos culturais, porém vai além,

ao incitar o desenvolvimento de uma nova consciência política, com o objetivo da

mudança nas relações sociais, na cultura política.

Fernandes (2011) afirma que a cidadania cultural “[...] concebe a atuação

na esfera da cultura como construção de uma nova cultura política, numa

perspectiva transformadora e democrática [...]” (FERNANDES, 2011, p. 171), em

que a cultura é entendida como direito de todos (as) e o Estado, responsável pelas

políticas culturais, priorizando a efetivação dos direitos culturais.

Chauí (1995) propôs na secretaria de cultura de São Paulo, em sua

gestão na pasta, basear as ações neste paradigma de cidadania cultural, elencando

suas principais características: o alargamento do conceito de cultura, a negação do

Estado como produtor de cultura, a recusa à redução da cultura à polaridade entre a

cultura popular e de elite e ainda, a ênfase ao caráter público das ações do Estado

na cultura.

Alargar o conceito de cultura consiste em não o restringir ao campo das

belas-artes, mas expandi-lo para abarcar a “[...] invenção coletiva de símbolos,

valores, ideias e comportamentos, de modo a afirmar que todos os indivíduos e

grupos são seres culturais e sujeitos culturais [...]” (CHAUÍ, 1995, p. 81).

O Estado não mais seria o divulgador de uma cultura oficial, mas

estimularia a criação cultural na sociedade, ao passo que são muitas e diversas

manifestações, recusando a redução da cultura à polaridade entre popular e de elite,

considerando que

[...] a diferença na criação cultural passa por outro lugar, qual seja, entre a experimentação inovadora e crítica e a repetição conservadora, pois tanto uma quanto outra podem estar presentes tanto na produção dita de elite quanto na chamada popular (CHAUÍ, 1995, p.82).

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Ao enfatizar o caráter público da ação cultural do Estado, por sua vez,

Chauí (1995) destaca a autonomia deste em relação à indústria cultural, ao

mercado, que por vezes define o seu papel e quais projetos culturais são

incentivados, tirando das produções culturais propostas pela sociedade em geral a

chance de serem fomentadas equitativamente.

Assim, os direitos culturais, conforme as análises de Chauí (1992), são

caracterizados como:

Direito de produzir cultura, seja pela apropriação dos meios culturais existentes, seja pela invenção de novos signos culturais; o direito de participar das decisões quanto ao fazer cultural; o direito de usufruir dos bens da cultura, mediante a criação de locais e condições de acesso aos bens culturais para a população; o direito de estar informado quanto aos serviços culturais e as possibilidades de dele participar ou usufruir; o direito à formação cultural e artística pública e gratuita (...); o direito à experimentação e à invenção do novo nas artes e nas humanidades; o direito a espaços para reflexão, debate e crítica; o direito à informação e à comunicação (CHAUÍ, 1992, p. 15-16).

Sendo assim, “o projeto cultural colocou-se, portanto, na perspectiva da

democratização da cultura como direito à fruição, à experimentação, à informação, à

memória e à participação [...]” (CHAUÍ, 1995, p. 83), sendo um dever do Estado

prover oportunidades de exercício desses direitos.

Por outro lado, Dagnino (1994) afirma que a experiência concreta dos

movimentos sociais urbanos (entrelaçando cidadania ao acesso à cidade) e de

mulheres, negros, ecológicos, etc., a partir da década de 1980, está intrinsecamente

ligada à emergência de uma nova noção de cidadania, baseada na luta pelo direito

tanto à igualdade quanto à diferença, o que fomentou o desenvolvimento e

aprofundamento da democracia.

Para Dagnino (1994) a nova noção de cidadania

Organiza uma estratégia de construção democrática, de transformação social, que afirma um nexo constitutivo entre as dimensões da cultura e da política. Incorporando características da sociedade contemporânea, como o papel das subjetividades, a emergência de sujeitos sociais de novo tipo e de direitos de novo tipo, a ampliação do espaço da política, essa é uma estratégia que reconhece e enfatiza o caráter intrínseco e constitutivo da transformação cultural para a construção democrática (DAGNINO, 1994, p.1).

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Logo, ao passo que os movimentos sociais contribuem com o surgimento

da nova noção de cidadania, o Estado (a partir da experiência em São Paulo) passa

a intervir também de forma diferente no campo da cultura, considerando a

diversidade, todos os sujeitos como capazes de produzi-la, procurando novas

formas de garantir o acesso ao incentivo do Estado de forma mais equânime e não a

considerando apenas como sinônimo de arte, pois “[...] o determinante para a plena

efetivação dos direitos culturais será a capacidade de luta dos que acreditam na

importância e extrema necessidade de sua efetivação. Direitos são conquistas,

jamais dádivas! ” (CUNHA FILHO, 2000, p. 86).

Mas independente do Estado intervir, financiar ou não, a sociedade como

um todo e no caso, os movimentos sociais, produzem cultura o tempo todo, também

podem viabilizar direitos culturais a nível local e construir espaços públicos de

discussão, fruição, informação, memória e participação, pois apesar da importância

do Estado assumir a cultura como sua responsabilidade e direito de todos,

As expressões culturais devem ficar a cargo da sociedade e dos indivíduos, isto por serem elas, quando exercidas livremente, indicativos dos sentimentos da sociedade e de seus membros para com o ‘modus vivendi’ adotado, quer seja numa postura crítica ou de defensora da manutenção do status quo” (CUNHA FILHO, 2000, p. 50).

Dessa forma, a os movimentos sociais também podem criar formas de

suprir as necessidades culturais, mesmo sem o Estado, contribuem para a

emancipação e participação dos (das) cidadãos (ãs), a partir que colaboram para a

formação integral dos indivíduos, que, segundo Botelho (2009) são primordiais para

uma “[...] verdadeira cidadania cultural” (p.2).

Falamos, portanto, da formação global do indivíduo, do investimento em sua criatividade, o que vai incidir diretamente em sua qualidade de vida e em sua capacidade de dar voz a suas necessidades. É esta formação integral do indivíduo que pode constituir o alicerce de uma verdadeira cidadania cultural (BOTELHO, 200, p. 2).

Os jovens do JBD sentem na pele a “ausência” do Estado e por um lado,

exercem proativamente atividades culturais que traduzem suas necessidades e

sentimentos, colaborando com a formação de indivíduos críticos, por outro,

mobilizam a comunidade para exigirem do Estado seus direitos. Eles sabem da

importância do Estado estar presente incentivando e apoiando suas ações culturais,

para potencializa-las.

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Eu acredito que muita coisa que o grupo faz é obrigação do governo, da prefeitura, é uma obrigação... a comunidade ela precisa ter isso, arte, educação, então assim... a própria comunidade tem que fazer o que é dever do poder público! Como é que eu, sofro com uma coisa e vou construir isso dentro da minha comunidade? É muito contraditório! Então poder público poderia ir nas entidades que tem dentro das comunidades e dar pelo menos 50% do que elas precisam... se elas já conseguem fazer só, quem dirá com 50%... Claro que o todo seria muito melhor, mas se eles pelo menos tivessem o olhar... a gente pode manter a agua, a luz, alguns materiais, que a comunidade precisa e que não se tem né... Então a comunidade acaba tendo que se desdobrar para manter ali algumas pessoas ainda afastadas da droga, do álcool, ainda ser uma válvula de escape para algumas famílias, porque tem a questão da violência contra a mulher, as crianças dentro da comunidade... é o maior desafio hoje: promover na comunidade o que não tem! Na questão do desenvolvimento das crianças, adolescentes e jovens... (Ester; maio, 2015). A gente queria poder ter um trabalho de tirar os meninos das drogas, mas ainda não temos todo essa base pra isso, talvez daqui a uns anos quando as meninas tiverem formadas, a gente possa fazer esse trabalho tanto na área da psicologia como na área mesmo do serviço social... a gente vai poder mesclar quando todo mundo tiver ‘formadozinho’... mas ainda a gente não consegue porque tem todo esse trabalho de desintoxicação dos meninos que a gente não tem apoio de ninguém né... muito menos do Estado pra fazer isso... (Rebecca, Agosto, 2015).

Há também o entendimento que o grupo forma cidadãos conscientes de

seus direitos e deveres na comunidade e na sociedade em geral. Além da formação

de identidade dos moradores com o Lagamar e a divulgação das potencialidades da

comunidade, a fim de desconstruir paradigmas enraizados em discriminação e

estigmas.

Mas eu acho que o que a gente procura lá no grupo é que as pessoas tenham consciência dos seus direitos e também dos deveres... lá no grupo a gente sempre zelou também pelos deveres, o nosso dever... o mínimo, o dever de cuidar do meio ambiente, cuidar do canal, não jogando lixo, o compromisso de procurar ser honesto, acho que essa consciência da gente saber que nós temos obrigações, mas que nós temos também direitos... e aqui no Lagamar, nós somos uma comunidade que historicamente sempre foi esquecida... (Moisés, março, 2015).

O objetivo do grupo hoje é uma mescla do espiritual e o social, é formar cidadãos, cristãos e deixar ele consciente da sociedade, do que ele é e que ele tem, os seus deveres, direitos, e principalmente como cristão, prezar pelo bem do próximo... (José, janeiro, 2015).

Neste trabalho como já explicitado, entende-se a separação entre política

cultural (do Estado) e política de cultura (dos movimentos sociais), mas defende-se

que as duas são fundamentais para o desenvolvimento da cidadania cultural,

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enquanto uma cidadania para além da formal (direitos políticos, participação pelos

votos, pela via estatal, etc.) que só será possível com mudanças nas relações

sociais e de poder que contribuem para minar a cultura política de exclusão vivida no

Brasil.

A cidadania cultural teve em seu centro a desmontagem crítica da mitologia e da ideologia: tomar a cultura como um direito foi criar condições para tornar visível a diferença entre carência, privilégio e direito, a dissimulação das formas da violência, a manipulação efetuada pela ‘mass mídia’ e o paternalismo populista; foi a possibilidade de tornar visível um novo sujeito social e político que se reconheça como sujeito cultural. Mas foi, sobretudo, a tentativa para romper com a passividade perante a cultura - o consumo de bens culturais - e a resignação ao estabelecido, pois essa passividade e essa resignação bloqueiam a busca da democracia, alimentam a visão messiânica-mineralista da política e o poderio das oligarquias brasileiras. Em suma, fizemos um esforço político para desenraizar as fundas raízes do mito fundador. Alguns dizem, pejorativa ou positivamente, que fomos [...] radicais (CHAUÍ, 1995, p. 84).

Portanto, apresentar-se-á a seguir duas experiências específicas do JBD

no âmbito da arte, mas que se desdobram em várias outras contribuições para

relações de cooperação, identidade, mobilização e reflexão, que rompem com “...a

passividade de consumo de bens culturais e a resignação ao estabelecido...” na

comunidade do Lagamar: a peça teatral “Via Sacra” e a quadrilha junina

“Queridinhos do Lagamar”.

4.2.1 A “Via Sacra” e os “Queridinhos” como instrumentos da Cidadania

Cultural no Lagamar

4.2.1.1 A “Via Sacra”

O que é O Teatro Mágico? Ninguém pode falar sem nunca ter ouvido, Ninguém pode falar sem nunca ter sentido.

Talvez se entendêssemos de que se trata esse ‘tal Teatro Mágico’ Perderíamos a Graça, a Claudia, a Marta.

O Teatro Mágico não é pra se entender O Teatro Mágico é pra se sentir, para se viver.

Teatro Mágico é aquele sorriso involuntário voluta o ario lutario rio sem medir. O choro de vida da senhora guardado no coração corar a são

É dar a mão, o pão, deixar-se levar pela emoção Deixar livre o coração, a imaginação. É a união do 'serumano' Ser humano

O Teatro Mágico é cada um de nós É conhecer o seu eu, teu, ateu, tua, nua, pura, rua.

Vamos cada um de nós, fazermos o nosso Teatro Mágico De risos, choros e abraços compartilhados.

Cantos e encantos e momentos tantos.

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Vamos camarada Vamos pra luta. Mas não a luta armada E sim a luta amada

A luta daqueles que têm no coração o poder da criação, A força da imaginação. Vem, vem que eu seguro a tua mão.

(Fernando Anitelli)

A Via Sacra é a história da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, a

páscoa do Senhor, um dos mais importantes acontecimentos do calendário da Igreja

católica e sobre o qual o JBD se mobiliza para a organização de uma encenação

teatral, envolvendo crianças, jovens, música e dança.

O primeiro espetáculo da Via Sacra aconteceu em 2007, segundo as

entrevistas, porque a encenação promovida pela Paróquia “nunca descia para o

Lagamar” e também pela dificuldade de alguns moradores (sobretudo das senhoras)

de se locomover até o local, além da necessidade de fazer uma peça que gerasse

reflexões acerca da realidade da comunidade, com e para ela.

Um exemplo dado pelos jovens foi a cena (dessa primeira encenação) em

que Jesus chamava todos para seguir com ele, inclusive pessoas que estavam em

um bar, tratando bem da realidade da comunidade, misturando as eras históricas

para causar reflexões de que todos devem ser acolhidos e respeitados em suas

condições.

A ideia sempre foi também evangelizar só que a gente sempre faz bem adaptando para realidade da nossa comunidade, porque a gente faz várias reflexões, sobre família, os excluídos, várias coisas... (Abiel, agosto, 2015).

Em 2015, as apresentações foram repletas de reflexões baseadas nas

cenas e nos personagens da peça, como sobre a dor das mães que perdem seus

filhos jovens na comunidade, a partir da dor que Maria sente ao perder Jesus; o

acolhimento de Jesus aos excluídos, a partir de sua defesa à Maria Madalena; a

importância da partilha e da união entre as pessoas, na santa ceia e ainda, a

relevância e valorização da família na formação humana (inclusive enfatizando seus

diferentes formatos).

Jesus tem um amor maior por nós, a margem da sociedade, ele chamou a prostituta, o leproso, a divorciada, as pessoas das outras cidades, que ele não poderia nem direcionar o olhar, (segundo a cultura dele), pra perto dele, ajudou e as curou... Jesus amou e ama mais ainda os excluídos então, eu não consigo ver o cristão sem luta pelos direitos, pelos nossos direitos... E isso é muito a cara do grupo! (Rebeca, Encontro sobre a redução da maioridade penal, 2015).

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A partir desse aspecto da peça, pode-se entende-la como um momento

onde “o direito a espaços para reflexão, debate e crítica [...]” (CHAUÍ, 1992, p. 15-

16) é posto em prática, e não apenas pelos jovens do grupo, mas pela comunidade

em geral, que assiste o espetáculo.

Além disso, os jovens criam tudo, pensam como será cada cena, o

cenário, o figurino, que objetos utilizarão, onde podem encontrar, primordialmente

emprestado (neste ano os figurinos foram emprestados de outro grupo de jovens

ligado à Paróquia), pois não possuem financiamento para além das rifas, bingos,

seus bolsos, ou de suas famílias, por isso, muitos adereços também foram

confeccionados por eles.

O processo inicial de organização se dá muito antes do período da

páscoa e decorre também da avaliação da apresentação realizada no ano anterior,

além da inclusão de novas cenas, reflexões, textos, etc. Os jovens procuram

aprimoramento na organização e planejamento das atividades, a fim de chegarem

ao mais profissional possível.

Temos uma comissão especifica pra pensar inicialmente como será a peça, antes não existia o núcleo artístico, agora ele que vai pensar nisso... a gente senta vê o que pode melhorar, sempre assistimos a peça anterior pra ver o que não ficou legal, o que podemos colocar de novo... quais a novas reflexões que serão feitas e que momentos necessitarão de músicas... todas essas coisas... essa equipe menor fica encarregada de toda terça-feira (na reunião geral) dizer no grupo como está o andamento da peça, após ser pensado, planejado... porque a gente faz tudo planejado, sabe... (Abiel, Agosto, 2015).

Além disso, por envolver teatro, música e dança, as coreografias, o

repertório, os arranjos e toda a produção e direção é feita pelos jovens, inclusive a

gravação das falas dos personagens, que, para não terem que ficar com microfones

no momento da apresentação, gravam suas falas anteriormente no estúdio musical

da FMB. Eles também escolhem as trilhas sonoras, conforme os momentos da peça

(tensão, alegria, tristeza, emoção, rivalidade, etc).

Mesmo sabendo que o papel de viabilizar os direitos culturais é

primordialmente do Estado, pode-se inferir que a peça representa uma possibilidade

de “[...] formação cultural e artística pública e gratuita”, além do direito à

experimentação e à invenção do novo nas artes e nas humanidades mencionada por

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Chauí (1992, p. 15-16) como direitos culturais. Porém, a efetivação desse direito e

todos os outros aqui mencionados, seriam potencializados com a intervenção do

Estado no processo, principalmente suprindo as necessidades financeiras do grupo,

de qualificação em produção cultural, disponibilizando espaços como teatros,

centros culturais na comunidade, etc.

Os primeiros ensaios da Via Sacra em 2015 ocorreram em fevereiro, dias

7 e 12, com ampla divulgação em redes sociais e convites à comunidade em geral.

Aconteceram à noite e nos finais de semana, principalmente aos domingos, de

acordo com a disponibilidade da maioria dos participantes, na “casa do grupo” e o

último, na pracinha do Santuário, o ensaio geral de véspera.

Aí lançamos o convite pro pessoal da Crisma, do grupo em geral e também pra comunidade, tanto que ano passado tivemos várias participações do pessoal da comunidade (que não são oficialmente do grupo)... e é isso, aí eles vêm e a gente, assim como na quadrilha, e em tudo do grupo, nas primeiras reuniões falamos um pouco do que é a atividade, como é a peça, diz que tem teatro, vai precisar de gente pra cantar, dançar, reflexões e tal... apresentamos tipo um projetinho pra galera e eles vão vindo pro ensaio... tem dias que a gente só ensaia mesmo, mas tem outros que fazemos uns esquemas de preparação, aquelas partes de exercício, relaxamento, aquecimento... (Abiel, agosto, 2015).

Nos primeiros ensaios houve certa dificuldade com o elenco, que não

estava completo, ou com as ausências e atrasos dos participantes que inviabilizaram

o acontecimento de alguns encontros, que no início foram mais focados na

organização de materiais, leitura dos textos e adaptações.

Em domingos de muita chuva, após a realização de várias outras

atividades (do grupo e pessoais), visivelmente cansados, os jovens, apesar das

dificuldades financeiras também, não mediam esforços, trabalhando juntos até tarde

da noite e se reencontrando cedo no dia seguinte, principalmente durante toda a

última semana de ensaios e nos dois dias de apresentações.

Apesar do número considerável de pessoas envolvidas (cerca de 40,

diretamente), alguns tiveram mais de um papel a representar na peça, mas isto não

foi problema, pois alguns se despuseram e pareciam gostar da situação dupla, ou

tripla, pois a grande maioria dos jovens trabalha antes, durante e depois das

apresentações. Isso porque nos eventos, não apenas o aqui em questão, eles fazem

toda limpeza e organização do espaço antes e depois, ou seja, chegam bastante

cedo e voltam bastante tarde para casa.

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O ensaio de véspera (na noite anterior à estreia, na Praça do Santuário)

já é quase um evento, pois várias pessoas assistem, ajudam, passam e perguntam

quando será o espetáculo, as crianças comentam que se emocionam com a peça,

que muitos choram com pena de Jesus e isso é motivo para brincadeiras uns com

os outros, o que movimenta a noite ao redor da praça.

As famílias se envolvem também no acontecimento, pois de forma geral

os objetos de cenário são emprestados por elas: cadeiras, mesas, utensílios,

bijuterias, foram confeccionados ou emprestados pelas famílias de alguns jovens,

que estiveram presentes em apresentações e ensaios, também contribuindo com

lanches, almoços, doações em dinheiro e até na preparação dos cenários.

No dia da primeira apresentação, os jovens chegaram à praça do

santuário por volta das 9h da manhã, a fim de iniciar a limpeza e organização do

local, montagem do cenário e últimos acertos nos figurinos. Era uma manhã

movimentada na comunidade, pois a polícia estava à procura de criminosos na área,

com força total, por isso, nem os jovens que estavam na praça, organizando-a para

o evento de logo mais, escaparam de ir para a parede e serem revistados pelo

Ronda do Quarteirão.

Cenário Via Sacra – Praça do Santuário – 2015. Fonte: Facebook JBD Lagamar.

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À noite a praça estava lotada de familiares, amigos dos jovens e pessoas

em geral da comunidade. Eu fiquei nos bastidores, observando a euforia dos jovens

e crianças atores, que batiam fotos, olhavam a praça e se admiravam com a

quantidade de público que estava ali para prestigiá-los, além de identificarem os

amigos e familiares, com orgulho do trabalho a ser realizado.

Antes de cada apresentação há o momento de concentração e oração em

que todos se abraçam e pedem o domínio e a possibilidade de comprimento da

missão de sensibilizar as pessoas, fazê-las refletir através da peça, da arte. O “grito

de guerra” antes de entrar em cena era: “um por todos e todos por um! ”, resultado

de reflexões que os jovens fizeram no dia anterior, em que conversaram sobre as

dificuldades de mobilização, de falta de compromisso de alguns com os ensaios,

“mas os que iam faziam valer” e apesar dos desafios, eles conseguiram mais uma

vez estar ali, prontos para entrar em cena novamente.

Antes das apresentações todos se reuniam em círculo, colocavam as mãos sobre as outras e gritavam: “um por todos e todos por um! ” Porque um integrante falou que o JBD tem a ver com a frase dos 3 mosqueteiros... que uns trabalham mais, outros menos, outras vezes, todos trabalham, mas tudo se realiza, pois é um por todos e todos por um! (Trecho de diário de campo - abril, 2015).

No dia seguinte a primeira apresentação, pouco depois das 9h da manhã,

alguns jovens já estavam novamente no trabalho, agora, transportando (em uma

carroça movida por um cavalo, um carro de mão ou na mão mesmo) os materiais de

cenário e figurino, do Santuário, para a Rua Larga, local da segunda apresentação

da Via Sacra. Uma moradora da rua, irmã de um dos atores consegue há alguns

anos, palco, som e iluminação para o segundo dia de apresentação, o que faz dele

mais esperado ainda, por trazer uma estrutura que dificilmente os moradores da

comunidade veem por lá.

A comunidade em geral também é mobilizada. No segundo dia de

apresentação, os jovens tiveram que utilizar 4 casas da “Rua Larga” para que a peça

acontecesse: uma, a parte de baixo para ser o camarim, de onde a maioria dos

personagens saíram durante a apresentação, e o andar de cima para ser a cabine

de iluminação; outra casa foi apoio para guardar as peças dos cenário, de onde saía

a equipe de “contrarregras” com os objetos de cada cena; outra para apoio logístico,

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água, lanches etc. durante o dia e ainda, a que cedeu a calçada inteira para ser o

sepulcro de Jesus Cristo.

Foi mais um dia intenso de trabalho, as crianças brincavam em cima do

palco, correndo e se divertindo com a movimentação da montagem do som, ensaio

de algumas cenas e a decoração do cenário. Os jovens comentavam a

apresentação anterior, convidavam os parentes de outros bairros e assim, passaram

mais um dia inteiro reunidos.

Cenário Via Sacra – Rua Larga – 2015. Fonte: Facebook JBD Lagamar.

Apresentação Via Sacra - “Rua Larga “- 2015. Fonte: Facebook JBD Lagamar

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Na hora da apresentação, novamente o público estava presente em peso,

muitas pessoas que já haviam assistido no dia anterior estavam lá para ver tudo com

os efeitos e luz e a estrutura de palco. O público fecha os olhos e reflete a cada

parada de cena. A capacidade de criação dos jovens, mesmo com poucos recursos,

arranca aplausos espontâneos da comunidade, como na cena forte do auto

enforcamento de Judas Escariotes, em que a comunidade aplaudiu vigorosamente a

produção.

Neste segundo dia de apresentação foram registradas em alto e bom som

as presenças de vários convidados de outros bairros e até cidades, como Conjunto

Ceará, Caucaia e Horizonte, como forma de incentivar as pessoas a voltarem no ano

seguinte e aprofundarem ainda mais os laços com o Lagamar. E como sempre

houve os convites não aderidos, que os jovens atribuíram ao medo dos bairros

vizinhos por acharem o Lagamar violento.

Fiquei na plateia na maioria dos momentos, avistei olhares atentos,

emocionados, comentários acerca das danças, das atuações, de um público que

não é acostumado a ter espetáculos assim tão próximos e realizados por pessoas

próximas. A peça é uma oportunidade de acesso a manifestações de arte diferentes,

com uma estrutura nova, de espetáculo, o que possibilita ao público até se sentir

crítico de teatro, mudar os assuntos da conversa de calçada no fim de tarde,

valorizarem os artistas e exercerem “...o direito de usufruir dos bens da cultura,

mediante a criação de locais e condições de acesso aos bens culturais [...]” (CHAUÍ,

1992, p. 15-16).

Os eventos são oportunidades de ver manifestações de arte diferenciadas, ver um teatro, com direito à iluminação, palco... a rua lotada... as pessoas emocionadas e parabenizando os atores, sendo críticas de teatro, comentando sobre as atuações... uma mulher falou para um dos atores ao final: “Os que eu achei melhores foi você e o Pilatos! Parabéns, viu! ” (Trecho do diário de campo – abril, 2015).

Neste sentido do reconhecimento, vale ressaltar que durante todo o ano,

principalmente o jovem que é Jesus na peça, é reconhecido como tal. Presenciei

situações engraçadas das pessoas da comunidade falando, muito depois das

apresentações e em locais diferentes: “Olha lá! Jesus andando de moto! ”, “Ei,

Jesus! Cortou o cabelo?!”. Eles são reconhecidos, respeitados e lembrados na

comunidade também por conta da peça.

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Outras situações também sinalizaram o respeito que as pessoas têm pelo

grupo: certa vez voltávamos de uma apresentação do MMJBD na comunidade

vizinha, do Pio XII, fizemos o percurso a pé, andando pelo trilho, que é a margem

entre as duas comunidades. Havia acontecido incidentes à bala e como os

moradores viram que estávamos chegando, não sabíamos ainda de nada, uma

pessoa nos avisou: “Cuidado, gente, teve bala nesse instante!”. E outra

imediatamente do lado falou: “Esses aí são da Igreja, ninguém mexe com eles não! ”

Se as políticas do Estado não chegam até eles, os próprios jovens criam

oportunidades de se expressar, comover, mobilizar e movimentar a comunidade,

incentivam vínculos de cooperação e união entre os vizinhos, indiscutivelmente

primordiais para a ressignificação de conceitos e relações que desafiam a cultura

política do individualismo e da exclusão.

Além disso, propõem reflexões acerca da realidade da comunidade, dos

fatos cotidianos, que por vezes são vistos como normais (a exemplo da violência)

problematizando a banalidade com que a mídia e a própria comunidade veem e

agem com relação a isso.

Tanto a peça como as demais atividades são instrumentos de

reconhecimento dos jovens pelos demais moradores, e ainda, relaciona-os com as

famílias, adultos, senhoras e crianças, mudando os olhares sobre eles e

transformando-os em exemplos de superação e possibilidades.

O grupo ainda promove a comunidade em suas potencialidades,

convidando pessoas que não a conhecem para prestigiar seus eventos e atividades,

incentivando os vínculos e divulgando as potencialidades do Lagamar para Fortaleza

em geral.

Portanto, a peça “ Via Sacra”, além de contribuir com a mudança nas

relações sociais, na desconstrução de conceitos e práticas da comunidade, consiste

em um instrumento importante de viabilização dos direitos culturais em geral e o de

“[...] produzir cultura, seja pela apropriação dos meios culturais existentes, seja pela

invenção de novos signos culturais” (CHAUÍ, 1992, p. 15-16).

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4.2.1.2. Os “Queridinhos do Lagamar”

Eu só quero é ser feliz, Andar tranquilamente na favela onde eu nasci, é.

E poder me orgulhar, E ter a consciência que o pobre tem seu lugar

(RAP BRASIL)

A quadrilha junina “Queridinhos do Lagamar” também teve início em

2007, por conta da dificuldade em trazer quadrilhas de outros locais para o Arraiá

JBD no Lagamar, tanto pela falta de recursos financeiros do grupo, como pelo receio

das quadrilhas em dançar na área, considerada “perigosa”, pelos bairros vizinhos.

Os jovens tiveram a iniciativa de formar a própria quadrilha e mobilizaram as

crianças e adolescentes das catequeses, que aderiram à ideia com rigor.

Porque eles se tornaram de fato queridinhos! Onde eles chegam fazem muito sucesso! E a gente sempre tem uma adesão muito grande de crianças nessa época de junho, maio ao ministério de artes, porque todo mundo quer dançar na quadrilha e os pais querem ver os filhos dançando... é uma época que entra muita criança nas catequeses porque tem que estar lá pra poder dançar... a gente pede que seja assim pra poder ser uma forma de engajar eles no grupo... (Rebeca; agosto, 2015). A ideia é os meninos da catequese, mas a gente sempre abre exceções porque o pessoal da comunidade em geral participa também... pra participar precisa está engajado em alguma catequese ou outra atividade do grupo... aí a gente convida o pessoal, a notícia se espalha pelo Lagamar todo e daqui a pouco aparece 10 mil crianças querendo dançar... (risos) é nessa ‘vibe’ aí... (Abiel, agosto, 2015).

Neste momento, a “Queridinhos” era atração apenas para a comunidade,

pois ensaiavam e se apresentavam somente na Pracinha do Santuário e na

Paróquia, com roupas muito simples, conforme as condições de cada um, e com

“som mecânico” (músicas de CD).

Era aquela quadrilhazinha bem básica mesmo, não tinha roupa padrão, as meninas iam com a roupa que quisesse e tal... era aquele negócio bem básico só pra fazer alguma coisa que a comunidade pudesse assistir, porque antigamente era mais difícil trazer quadrilhas pra cá, porque a gente não tinha dinheiro, todo mundo desempregado... aí fazíamos essa movimentaçãozinha com as crianças da primeira comunhão... o nome da quadrilha, da abertura, era numa cartolina, muito simples... só tinham uma apresentação, a da praça e acabou-se, ensaiavam, ensaiavam, se apresentavam na praça e pronto! (Rebeca, agosto, 2015).

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Após alguns anos, os jovens sentiram a necessidade de incrementar o

grupo. Além do figurino, também colocaram no repertório músicas cristãs em ritmo

de quadrilha (mescladas com músicas não cristãs) e inseriram o MMJBD como

“regional”, para que os ensaios e apresentações tivessem som ao vivo, exercendo “o

direito à experimentação e à invenção do novo nas artes e nas humanidades”,

conforme (CHAUÍ, 1992, p. 15-16), um direito cultural.

Aí a gente já viu a necessidade de montar um regional... até pelo lance da própria cultura, porque aqui não se tem opções de algo cultural... e a gente queria trazer essa emoção, fazer com que os meninos sentissem na pele essa vibração do arraiá e tudo, só que nós optamos por colocar músicas cristãs com algumas não cristãs, tudo em ritmo de quadrilha... (Abiel, agosto, 2015).

Assim, os jovens são responsáveis por toda a organização, figurino,

apresentações, por facilitar os momentos de decisão com a participação das

crianças, ensinar as coreografias (as crianças ensinam as vezes também, de tanto

dançarem todo ano) e tocar as músicas ao vivo para que os meninos e meninas

dancem. Isso pode ser interpretado como viabilização do “direito à formação cultural

e artística pública e gratuita” (CHAUÍ, 1992, p. 15-16), tanto para os jovens, como

para as crianças.

Quadrilha Queridinhos do Lagamar – 2015. Fonte: Facebook JBD Lagamar

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As campanhas com bingos, rifas e doações foram primordiais para que

em 2015, a quadrilha saísse, como dizem os jovens, “bombando!”, com figurinos

novos, padronizados, carregados de brilho e alegria. Uma realização também das

famílias (principalmente as mães e avós) das crianças, muito ativas nessas

mobilizações. Porém, ainda assim, a quadrilha estreou devendo à costureira

(moradora da comunidade), dívida paga dias depois, através de uma doação.

Em 2015 os ensaios começaram ainda no mês de abril, na semana

seguinte às apresentações da Via Sacra, mas o planejamento, as ideias de temas,

reuniões organizativas se iniciaram bem antes. O primeiro ensaio que participei foi o

do dia 27 de abril, que contava com 40 crianças e 4 jovens, que coordenavam o

momento. Os encontros aconteceram principalmente durante a semana, à noite, e

mais próximo da estreia, também aos domingos pela manhã, por conta da

disponibilidade tanto dos jovens, como das crianças, que aos sábados têm as

catequeses.

Mas é desse jeito: a gente junta os meninos, fala da proposta da quadrilha, qual a ideia para o ano, do lance do compromisso, conta a história do arraiá, como surgiu, essas coisas... a gente deixa eles bem informados primeiro pra depois começar os ensaios de vera! (Abiel, agosto, 2015).

Esse ano, a quadrilha homenageou o padroeiro da comunidade: São

Francisco de Assis. Cantaram e dançaram o hino do santo, conhecido por seus

votos de pobreza, humildade e grande bondade com todos os seres vivos,

especialmente os animais. Sempre há também encenações para as danças de

apresentação do casal de noivos e uma envolvendo Maria e Jesus.

Os ensaios aconteceram no “Salão da Frente”39, que hoje está condenado

pela Defesa Civil por danificações graves na estrutura, mas claro, os jovens não

sabiam da gravidade do problema no prédio próximo, que só foi dado como

interditado no mês de outubro, sendo os ensaios da quadrilha junina a última

atividade realizada no local.

39

O “salão da frente” é outro pequeno espaço onde aconteciam algumas ações do JBD e da Legião de Maria, (um compartimento maior, um corredor posterior e um banheiro) onde antigamente funcionava a capela de São Francisco, localiza-se bem em frente a “casa do grupo” e era o único espaço de que os jovens e as senhoras dispunham até então (antes da casa) para suas atividades. Atualmente ele não está sendo usado com frequência, pois as condições estruturais estão alertando para um risco de desabamento. Fotos em anexo.

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Antiga capela – “Salão da frente”- prédio condenado pela Defesa Civil – 2015. Foto: Lucélio Pires

Essa dificuldade de espaço fez com que alguns ensaios fossem adiados

por conta da chuva, pelas goteiras no local, mas foram improvisados meios de

proteger os instrumentos e as crianças, afinal, o ‘show’ não poderia parar.

Antes das apresentações, uma jovem do regional apresenta o JBD, o

Lagamar e a quadrilha. No discurso é bastante enfatizado que a quadrilha quer

mostrar um Lagamar diferente do que a mídia mostra, que é composta por crianças

que querem aprender e viver bem, que o grupo tem um trabalho além do religioso,

no social, na formação de crianças críticas, conscientes de seus direitos.

Nós viemos aqui mostrar que o Lagamar não é só o que passa na tv, viemos mostrar o verdadeiro Lagamar de crianças, adolescentes e jovens que lutam por seus direitos, que resistem! E através da arte vem mostrar tudo isso! Através da nossa arte queremos ser um sinal de Deus! (Rebeca, apresentação da quadrilha – junho, 2015).

Concomitante com a apresentação da “Queridinhos”, o grupo também

estava preparando uma peça paralela, relacionada à vida de João Batista, o santo

padroeiro da Paróquia, por isso foram dias intensos de trabalho, em que crianças,

jovens e famílias passaram muito tempo juntos.

Os ensaios estavam sempre lotados de espectadores, as mães, outras

crianças, pessoas da comunidade em geral, as vezes até com direito à abraços

grátis das crianças e café da manhã coletivo nos encontros de domingo às 9h.

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As apresentações nas comunidades vizinhas, São João do Tauape e Pio

XII, sempre tinham os percursos feitos a pé, em que ia a quadrilha e o público do

evento, muitas vezes, pois os familiares e amigos acompanhavam em peso, sendo

mais de 50 pessoas seguindo pelas ruas dos bairros. Isso chamava bastante

atenção dos moradores, que saiam das casas, olhavam nas janelas e comentavam

a beleza da movimentação colorida e alegre das crianças, já animadas cantando e

gritando: “E essa é a Quadrilha: Queridinhos do Lagamar! ÊÊÊ!”

A estreia foi na Festa da Vida40, realizada pelo movimento Proparque, no

Parque Rio Branco, um parque bem arborizado localizado no bairro São João do

Tauape. Pela falta de recursos, tanto dos organizadores do evento, quanto da

quadrilha, as crianças tiveram que ir a pé até o local da apresentação,

aproximadamente 30 minutos de caminhada.

Apresentaram-se duas vezes na Paróquia, pois a primeira apresentação

apaixonou os organizadores do arraiá, que pediram bis. O grupo foi apresentado

pelo Pároco como jovens que fazem a diferença na comunidade para além da

formação cristã, mas cidadã também.

Apresentação “Queridinhos do Lagamar” – Bairro Castelão – 2015. Fonte: Facebook JBD Lagamar

40

Festa promovida pelo Movimento Proparque no Parque Rio Branco, envolvendo movimentos sociais e instituições sociais que trabalham com a questão ambiental. É um dia de exposições, rodas de conversas, atividades físicas no intuito de aproveitar e refletir sobre a importância da natureza para a vida na terra. No final do dia á espaço para apresentações culturais. Fonte: http://movimentoproparque.blogspot.com.br/.

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Dançaram no arraiá JBD e em uma outra rua do Lagamar, a convite de

uma moradora; também em duas escolas no São João do Tauape (Almerinda de

Albuquerque, a convite do grupo Siloé e na escola Noel Hugnen), além de duas

comunidades mais distantes: o Jardim Iracema e o Castelão.

Apresentação “Queridinhos do Lagamar” – Arraiá JBD – Praça do Santuário – 2015. Fonte: Facebook

JBD Lagamar

Durante esse período, as crianças só pensam em quadrilha. Sempre que

passava pela praça do Santuário via aquele movimento: meninos correndo,

brincando de bola, o churrasquinho, o pula-pula, e as meninas brincando de dançar

funk. Durante o mês de maio, no ápice dos ensaios da “Queridinhos”, pude perceber

outras brincadeiras entre eles, e não apenas uma vez: a de escolher a melhor

dançarina de quadrilha que seria a princesinha, “Vem tia, tu escolhe, vai!”.

Nessa ocasião, ficou clara a influência e mudança que a atividade traz

inclusive para as brincadeiras das crianças, preocupadas com a elegância, com a

aba do vestido, com o sorriso no rosto, preocupações talvez, mais infantis do que

plantar bananeira rebolando em uma parede fazendo gestos obscenos.

A partir da experiência da pesquisa, de outros trabalhos e da convivência

na comunidade, observo que um dos direitos mais violados das crianças do

Lagamar é o “direito a ser criança”, pois muitas delas enfrentam uma realidade cruel

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e muito distante dos sonhos naturais de toda criança. Mais perto da violência, das

drogas, da morte iminente, talvez por isso, como já mencionado, seja difícil para o

JBD tratar do assunto “sonhos” nas catequeses. Desta forma, o primeiro direito

proporcionado por essas atividades é o direito a ser criança, agir como criança,

brincar, aprender, sonhar, ser “[...] protegida contra os rigores do tempo, contra os

rigores da vida” (ROCHA, 2014).

Objetivo da quadrilha é promover a arte, eles se identificam muito, percebem que são fantásticos, fazem sucesso e acabam se aprofundando mais até esses objetivos, porque eles conhecem outros lugares, outros bairros, vão tendo essa oportunidade de outras possibilidades... o intuito também é de prevenção mesmo, porque quando eles estão engajados, eles só querem saber da quadrilha, vivem e respiram quadrilha em todos os momentos, aí então eles estão ali, seguros e prevenidos, porque à noite eles tem que ir pro ensaio... então de uma certa forma é uma segurança, uma prevenção mesmo, que é o carro chefe do grupo, prevenção direta contra a violência, as drogas... a gente não quer deixar que esses meninos encontrem a violência, as drogas... tão fáceis por aqui... (Rebeca, Agosto, 2015). E o nosso maior retorno são os sorrisos, principalmente o das crianças, na quadrilha, assim que termina, vêm perguntar: Ei tio! Quando é que vai ter de novo? Só próximo ano! Vamos começar a ensaiar depois do natal, né?! Não meu filho, calma! (risos) Depois do natal eles já querem! (Abiel, agosto, 2015).

Os jovens veem a quadrilha também, além dessa proteção, como forma

de acesso à arte, ao aprendizado de uma dança tradicional, diferente das vistas no

dia-a-dia da comunidade, de oportunidade de “[...] usufruir dos bens da cultura,

mediante a criação de locais e condições de acesso aos bens culturais [...]”, de

acordo com (CHAUÍ, 1992, p. 15-16), um direito cultural.

O objetivo da quadrilha, o principal intuito é evangelizar, mas também... trazer um pouco de lazer para as crianças, lazer que eu falo na verdade é trazer cultura, digo e repito: sinto muita falta disso aqui no Lagamar e acho que o grupo desperta isso em nós, um lado cultural, com a música, o teatro, essas coisas... o artístico! E isso é cultura né... (Abiel, agosto, 2015).

É também uma forma de engajar as crianças em outras atividades do

grupo para que elas continuem envolvidas até se tornarem jovens e ensinarem o

que aprenderam a outras crianças, multiplicando conhecimentos e dando

continuidade a história do JBD.

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A nossa vontade é essa: que eles estejam engajados e deem prosseguimento desde a pré-eucaristia até se tornarem catequistas né... se a gente conseguisse que fosse assim sempre, teríamos ainda mais pessoas como o Abiel, como eu, que chegaram crianças no grupo e que hoje dão muitos frutos positivos... (Rebeca, agosto, 2015). Descobri que aqui no Lagamar tinha uma quadrilha... eu comecei dançando... uma quadrilha diferente, do grupo, mas na época nem tocava música da igreja, era de quadrilha mesmo, no CD, aí tive essa experiência e gostei, no ano seguinte, eu ainda dancei, só que no outro, eu já fiquei à frente com a Maria... (Abiel, agosto, 2015).

A quadrilha em si, é um processo de aprendizado, de afeto, de

convivência e exercício do “toque”, do abraçar, pegar a mão. No caso dos jovens, é

exercício de paciência, de aprendizado de metodologias para o trabalho, que por

vezes entram em conflito não apenas com as crianças, mas com algumas mães

também.

Com as crianças por conta do comportamento “natural” da idade, e com

as mães, pela ausência de apoio e excesso de cobranças de algumas, que exigiam

mudanças nas roupas, na escolha dos pares, e até nos personagens (princesa,

noiva, Maria, Jesus, etc.).

Porém os jovens tentam o diálogo e parecem aprender a cada discussão

metodologias para trabalhar tanto com as crianças (para melhorar o andamento dos

ensaios a maior lição era não dançar mais na quadrilha) como com as mães, que no

final do processo pareceram entender e respeitar cada vez mais a capacidade e a

oferta de vida dos jovens para a quadrilha e as crianças, já que as mesmas que

causaram discussões, presenciei agradecendo pela influência positiva da quadrilha

no comportamento e até no rendimento escolar das filhas.

Após os ensaios os jovens conversam sobre os ajustes nas roupas, as

formas de fazerem as crianças melhorarem o comportamento e comentam

orgulhosos que as mães vêm parabeniza-los. Definiam a divisão de tarefas entre o

grupo, falando da sobrecarga de alguns, marcam avaliações e reuniões para

confirmar a agenda de apresentações conforme a disponibilidade dos jovens, para

tocar, ser apoio nos senários e encenações.

Em pleno feriado de Corpus Christi, alguns jovens passaram o dia no

mutirão pelas roupas da quadrilha, dando os últimos retoques, após as finalizações

da costureira profissional. Os próprios jovens colocaram a mão na linha e agulha.

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A quadrilha é um acontecimento para as crianças, tanto de potencializar

os talentos, como de serem vistos pela comunidade e pela família, expressarem

seus sentimentos e ainda se autoafirmarem como moradores do Lagamar. Um

exemplo foi a música de entrada da quadrilha em cena: um funk que as crianças

começaram a cantarolar espontaneamente em um ensaio e de repente se tornou um

grande coro: “Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela em que eu

nasci e poder me orgulhar e ter a consciência que o pobre tem seu lugar! ”.

No ensaio seguinte uma jovem pergunta as crianças se elas gostam

então da ideia de entrarem cantando esse refrão nas apresentações, a partir da

reflexão:

Crianças vamos refletir aqui: a escola de vocês é boa? Nããão! O posto de saúde? Nããão! Pois a gente vai fazer uma canção de protesto lá em cima! Onde a gente for vamos dizer que a gente mora numa periferia, vocês topam? Siiiiiimmmm!!!! (Rebeca, Diário de campo- ensaio da quadrilha; junho, 2015).

Neste momento e em outros, pode-se perceber a abertura para a

participação das crianças e dos jovens nas ações, isso envolve também um direito

cultural, o de “[...] participar das decisões quanto ao fazer cultural [...]” (CHAUÍ, 1992,

p. 15-16).

Como visto, a “Queridinhos” se apresentou em vários locais dentro e fora

da comunidade exaltando um Lagamar diferente. Em uma realidade em que a

maioria das pessoas têm medo, vergonha, receio de dizer onde mora, durante as

apresentações eram feitas referências contínuas ao Lagamar: “E vem aí o casal

mais apaixonado ‘do Lagamar!’”, para o momento do casal da quadrilha, “Vem aí a

princesinha mais linda ‘do Lagamar!’”, para a dança individual da princesa. Sempre

reafirmando de onde vinham e como esse local possui amor, graça e beleza, através

dos sorrisos e encenações das crianças.

Nas duas apresentações em comunidades mais distantes, em que o

grupo saía e chegava de ônibus, imediatamente após o trilho que separa o São João

do Tauape do Lagamar, as crianças começavam a gritar: “Uh é Lagamar! Uh JBD!”,

como se quisessem acordar a comunidade (pois sempre era tarde da noite) e dizer

que chegaram, que representaram o Lagamar em um lugar distante, e como se

quisessem agradecer ao JBD por tê-los proporcionado isso.

Esse “lugar” é reivindicado deste as primeiras lutas dos moradores

advindos do interior e até hoje é buscado pelas crianças e jovens do JBD, é o lugar

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na visibilidade da mídia pelo que eles têm de melhor, pelo respeito e respaldo

perante a sociedade em geral.

Eu acho que temos espaços para ser reconhecidos, tem formas de conseguir conquistar esse reconhecimento e eu acho que na nossa formação no grupo começamos a perceber que existiam formas da gente se promover, promover o Lagamar... e a maior conscientização nossa, acho que foi quando a gente começou no nosso discurso a dizer para as pessoas que a gente morava no Lagamar, eu acho que a primeira coisa na nossa história foi isso... definir: NÓS MORAMOS NO LAGAMAR! (Moisés, março, 2015).

Assim, “[...] o direito a espaços para reflexão, debate e crítica...” além do

direito à informação e à comunicação [...]” (CHAUÍ, 1992, p. 15-16) também são

viabilizados pela quadrilha e por outras atividades do JBD, como visto até aqui.

Desta forma, é clara a contribuição da “Queridinhos” para novas relações

de respeito, solidariedade e igualdade, promovendo um processo de relação

intergeracional, entre os jovens, as crianças e as famílias, que juntas fazem o

espetáculo acontecer. É visível o quanto os jovens são exemplos para as crianças,

que os imitam, e até falam que quando crescerem querem ser iguais a eles. As

mães, apesar dos conflitos, interessam-se pelas demandas, sentem-se

corresponsáveis pelo sucesso e agradecem ao final de tudo. Os jovens, por sua vez,

aprendem a lidar, cada vez mais, com as crianças e mães, com a produção cultural

de uma quadrilha junina, além de fortalecer a identidade das crianças e divulgar o

Lagamar como eles vêm. Tudo isso compete para o aprofundamento da cidadania

em sua raiz, nas relações entre as pessoas, na cultura.

Portanto, de maneira geral, a “Queridinhos do Lagamar” é essencial para

que os jovens do JBD e as crianças da quadrilha tenham direito de “[...] produzir

cultura, seja pela apropriação dos meios culturais existentes, seja pela invenção de

novos signos culturais” (CHAUÍ, 1992, p. 15-16).

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Quando há ferrugem no meu coração de lata, É quando a fé ruge e o meu coração dilata!”

(Fernando Anitelli)

É perceptível o quanto o Lagamar é exemplo emblemático de como os

movimentos sociais são fundamentais para a transformação social e

aprofundamento da cidadania. Desde seu surgimento na década de 1950, com as

lideranças das CEBS, que lutaram pela permanência e efetivação de direitos no

local, até hoje, através das lutas e iniciativas do JBD, tais movimentos resistem em

meio à realidade adversa da comunidade.

Fica evidente também a influência da Igreja católica nessas empreitadas,

principalmente no fomento a discussões e reflexões e nas mobilizações de pessoas

em prol de objetivos comuns, o que dá força aos movimentos e potência às suas

ações.

Identifica-se ainda a importância dos movimentos sociais na construção

de relações que, embora não pareçam diretamente “políticas” ou “da política”,

competem para a promoção de reflexões, discussões e ressignificações que

acarretam mudanças conceituais e práticas, expandindo o político aos mais variados

espaços da sociedade através da cultura, no cotidiano de comunidades, cidades,

países, etc. No caso do JBD, isso se dá através da arte e da própria religião.

Em quase todas as suas atividades, o JBD “esbarra” com a cultura

política da exclusão, que os subjulga, tanto por se tratarem de moradores de uma

comunidade como o Lagamar, quanto por serem jovens. Essa relação (e sensação)

de diferença foi uma das principais motivações para o surgimento do grupo e ainda é

fundamento para várias atividades desenvolvidas por eles na comunidade.

Mas o JBD resiste. Mesmo com todos os limites impostos pela realidade,

contribui com o fortalecimento da identidade dos moradores em prol da derrubada

dos estigmas que a mídia ajuda a criar em torno da comunidade, divulgando a

história de luta e criando novos espaços de socialização e aprendizado artístico,

proporcionando acesso ao entretenimento e a reflexões sobre o cotidiano local.

Através dos espetáculos teatrais, as aulas de violão, as danças e eventos

artísticos em geral, elaborados desde o texto, cenário, figurino, até coreografias,

decoração, captação de recursos, etc. pelo JBD, além da oportunidade (que eles

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mesmos criam), de desenvolvimento da criatividade e acesso à arte, o grupo ocupa

lugares que geralmente são tomados pelo tráfico de drogas, como por exemplo, a

única praça da comunidade.

Os eventos realizados periodicamente pelo JBD são ainda oportunidades

de lazer, entretenimento e acesso a outras manifestações culturais e artísticas, já

que na comunidade não existe um centro cultural ou espaços de interação e

apresentações de arte.

Além disso, os jovens participam de atividades que dizem respeito a

melhorias para a comunidade exigindo do Estado, direitos. Firmam parcerias com

outros grupos e instituições como o caso das lutas travadas com os governos para a

efetivação da ZEIS do Lagamar, as manifestações diversas por moradia, educação,

infraestrutura, etc.

Através das atividades aqui apresentadas, o JBD consegue também

moldar novas relações entre gerações: “senhoras”, “meninos”, crianças, suas

famílias, vizinhos e amigos. A partir da iniciativa do grupo em envolver a comunidade

nas ações, cooperam com o fortalecimento de laços de respeito, companheirismo e

cooperação, tão fragilizados em meio ao individualismo e egoísmo, corriqueiros na

sociedade do consumo, na cultura política da exclusão.

Sendo assim, são claras as contribuições do JBD para minar a cultura

política de exclusão, já que através da arte (e demais atividades também:

catequeses, novenas, mobilizações, reuniões, etc.) os jovens passam a se

posicionar politicamente e “mudar olhares” deles mesmos enquanto moradores da

comunidade, dos demais moradores em relação a eles (jovens) e da sociedade

sobre a comunidade do Lagamar. E através dessa “comunhão”, convivência e troca

de experiências, esses jovens tornam-se um “perigo” para essa cultura política

dominante, pondo em prática políticas de cultura.

Nesses processos, contribuem na formação de indivíduos conscientes de

seus direitos, capazes de interpretar a realidade das mais variadas formas e de lutar

pela emancipação e por mudanças sociais significativas para a comunidade, sendo

instrumento para a “formação global do indivíduo, do investimento em sua

criatividade, o que vai incidir diretamente em sua qualidade de vida e em sua

capacidade de dar voz a suas necessidades” (BOTELHO, 2009, p. 2). Assim,

colaboram para o exercício de direitos culturais, pois “é esta formação integral do

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indivíduo que pode constituir o alicerce de uma verdadeira cidadania cultural”

(BOTELHO, 2009, p. 2).

É válido destacar que o JBD desenvolver tais atividades no Lagamar não

exclui o Estado de sua reponsabilidade de viabilizar direitos culturais através de

políticas culturais, tendo em vista as dificuldades encontradas pelo grupo justamente

por não ter este apoio e ainda, o quanto tais atividades seriam potencializadas se

recebessem incentivo, que é direito deles, mas como não têm acesso, procuram

suprir tais necessidades culturais, ao passo que exigem do Estado outras.

É certo também que o Estado não será o principal (e único) responsável

pela ampliação da cidadania cultural, tendo em vista que esta construção vai de

encontro a certos interesses do sistema capitalista e por vezes, do próprio Estado,

tornando-se imprescindível considerar a decisiva participação dos movimentos

sociais neste processo, tanto exigindo políticas culturais, como executando políticas

de cult. Portanto, o JBD se apresenta como meio importante de acesso por parte

dos jovens e demais faixas etárias, a discussões e ações políticas, novas formas de

socialização, a convivência e trabalhos coletivos, apresentações e criações

artísticas, etc. que se configuram como direitos culturais não dispostos pelo Estado

na comunidade, mas que, executadas pelos jovens, possuem caráter tão

emancipatório e transformador (ou talvez ainda mais) quanto se fossem efetivados

pelo Estado, a partir da ótica da cidadania cultural.

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ANEXOS

Anexo 1 – Matérias jornalísticas (Décadas de 1970, 1980 e 1990)

(Jornal O Povo, 15 de fevereiro de 1978)

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(Jornal Diário do Nordeste, 01 de outubro de 1983)

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143

(Jornal O Povo, 20 de agosto de 1991)

(Jornal O Povo, 29 de julho de 1991)

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144

(Jornal Diário do Nordeste, 3 de janeiro de 1993)

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145

(Jornal O Povo, 8 de março de 1995)