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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ – UNIOESTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA
EVANDRO JOSÉ MACHADO
LIBERDADE E MOVIMENTO EM THOMAS HOBBES
TOLEDO
2011
EVANDRO JOSÉ MACHADO
LIBERDADE E MOVIMENTO EM THOMAS HOBBES
Dissertação de mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Filosofia
do CCHS/UNIOESTE, Campus de Toledo,
como requisito final à obtenção do título de
Mestre em Filosofia, sob a orientação do
professor Dr. Jadir Antunes.
TOLEDO
2011
Catalogação na Publicação elaborada pela Biblioteca Universitária
UNIOESTE/Campus de Toledo.
Bibliotecária: Marilene de Fátima Donadel - CRB – 9/924
Machado, Evandro José
M149L Liberdade e movimento emThomas Hobbes / Evandro
José Machado. -- Toledo, PR : [s. n.], 2011
141 f.
Orientador: Dr. Jadir Antunes
Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Universidade
Estadual do Oeste do Paraná. Campus de Toledo. Centro de
Ciências Humanas e Sociais.
1. Filosofia inglesa 2. Hobbes, Thomas 1588-1679 3.
Filosofia política 4. Liberdade 5. Mecanicismo (Filosofia) 5.
Natureza 6. Ciência (Filosofia) I. Antunes, Jadir, Or. II. T.
CDD 20. ed. 192
320.01
EVANDRO JOSÉ MACHADO
LIBERDADE E MOVIMENTO EM THOMAS HOBBES
Dissertação de mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Filosofia
do CCHS/UNIOESTE, Campus de Toledo,
como requisito final à obtenção do título de
Mestre em Filosofia, sob a orientação do
professor Dr. Jadir Antunes.
COMISSÃO EXAMINADORA
____________________________________
Prof. Dr. Jadir Antunes – Orientador
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
____________________________________
Prof. Dr. José Luiz Ames – Membro
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
____________________________________
Prof. Dr. Aylton Barbieri Durão – Membro
Universidade Federal de Santa Catarina
Toledo, dezembro de 2011
À Andréia Peiter, pelo carinho e dedicação
direcionados a mim, e sem a qual nada
disso teria se tornado realidade! Amo você!
AGRADECIMENTOS
Ao Pai Eterno pelo grandioso dom da vida.
À família, de modo especial à minha mãe – Vitória Rodrigues Machado – e ao
meu pai – Arnaldo José Machado (in memoriam), por deixarem-se tocar pelo
ato divino da criação.
Ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia do CCHS/UNIOESTE, Campus
de Toledo, pela oportunidade de pesquisar com esmero e ao lado de
profissionais idôneos.
Aos professores do Programa de Mestrado em Filosofia da UNIOESTE pela
partilha amistosa de seus conhecimentos filosóficos e existenciais.
Aos companheiros de turma que, através do diálogo e da discussão,
ajudaram um sonho se tornar realidade.
Ao professor Dr. Jadir Antunes, orientador e amigo, obrigado pela confiança
e pela liberdade depositadas em minha labuta filosófica.
À Andréia Peiter, inspiradora e fiel incentivadora da minha pesquisa, AMO
VOCÊ!
Termino meu agradecimento citando fragmentos do Menestrel:
“E o que importa não é o que você tem na vida, mas quem você tem na vida.
E que bons amigos são a família que nos permitiram escolher. Aprende que
não temos de mudar de amigos se compreendemos que os amigos mudam…
Percebe que seu melhor amigo e você podem fazer qualquer coisa, ou nada, e
terem bons momentos juntos. Descobre que as pessoas com quem você mais
se importa na vida são tomadas de você muito depressa… por isso sempre
devemos deixar as pessoas que amamos com palavras amorosas; pode ser a
última vez que as vejamos” (William Shakespeare).
A todos, muito obrigado!
“Ao homem é impossível viver quando seus desejos
chegam ao fim, tal como quando seus sentidos e
imaginação ficam paralisados. A felicidade é um
contínuo progresso do desejo, de um objeto para
outro, não sendo a obtenção do primeiro outra coisa
senão o caminho para conseguir o segundo. Sendo a
causa disso que o objeto do desejo do homem não é
gozar apenas uma vez, e só por um momento, mas
garantir para sempre os caminhos de seu desejo
futuro. [...]. Assinalo assim, em primeiro lugar,
como tendência geral de todos os homens, um
perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder,
que cessa apenas com a morte” (LEVIATÃ, I. XI, p. 60).
MACHADO, Evandro José. Liberdade e Movimento em Thomas Hobbes. 2011. 142 f.
Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Toledo,
2011.
RESUMO
Na ausência de impedimento externo à ação livre dos homens, que tipo de sociedade existiria?
Será verdade que os homens se reúnem em sociedade por pura gratuidade? Um poder forte e
soberano, capaz de lidar com todas as necessidades e paixões é o mais adequado? Se os
homens sempre procuraram ser livres, por que organizaram um meio capaz de controlá-los?
Thomas Hobbes, em função de interjeições similares, procurou respostas no seu contexto,
totalmente imbuído de inovadoras idéias científicas. Este processo científico surgiu na
tentativa de legitimar o sistema copernicano do universo, que tinha por base estudar
matematicamente os movimentos dos corpos físicos. Em decorrência disso, houve um brusco
rompimento com a cosmofísica tradicional e a ênfase focou-se na relação de causa e de efeito
dos fenômenos físicos. Hobbes aplicou essa nova metodologia na filosofia política e afirmou
que o mundo é uma junção de corpos em movimento. Essa forma mecanicista foi estendida
também ao homem e ao Estado, que como máquinas perfeitas podem ter seus movimentos
conhecidos e controlados pela ciência que fez deles o seu objeto de estudo. Enquanto o Estado
era descrito como um homem artificial, que imita o homem natural, a mecânica do homem era
delineada de forma análoga a de um relógio. Contudo, Hobbes evidenciou que os homens,
quando inseridos no estado natural, agiam de acordo com as próprias paixões e sempre
buscando o próprio bem: o princípio do benefício próprio. Uma esfera imprópria à
preservação da vida. Por conta da reta razão, os homens chegaram à conclusão de que a
instituição do Leviatã é a saída mais eficaz, a fim de que a vida prazerosa e paz sejam
garantidas. Com base neste cenário, a presente dissertação, que tem como título “Liberdade e
Movimento em Thomas Hobbes”, pretende demonstrar a aplicação do movimento – legado da
ciência – ao conceito de liberdade, até então compreendido e disseminado como a liberdade
da vontade e dos seres racionais e, por isso, um atributo metafísico. A partir de Hobbes, a
liberdade é puramente corpórea e aplicada a todo corpo, racional ou não, desde que esteja em
movimento. É neste sentido que a definição de liberdade hobbesiana, ausência de
impedimento externo ao movimento do corpo, ganha veracidade e se torna incompatível com
a ordem natural, que é a de manter a paz. Visando a preservação do movimento vital e uma
vida confortável, os homens, portanto, limitam a liberdade e passam a viver sob a lei civil.
PALAVRAS – CHAVE: Movimento, Liberdade, Hobbes.
MACHADO, Evandro José. Freedom and movement in Thomas Hobbes. 2011. 142 f.
Dissertation (Master´s Degree in Philosophy) – Universidade Estadual do Oeste do Paraná,
Toledo, 2011.
ABSTRACT
In the absence of external impediments the free action of men, what kind of society exist? Is it
true that men get together in society as a pure gratuity? A strong and sovereign power, able to
handle all the needs and passions in right? If men have always sought to be free, why an
organized able to control them? Thomas Hobbes, on the basis of similar interjections, sought
answers in context, fully imbued with innovative scientific ideas. This scientific process
emerged in an attempt to legitimize the Copernican system of the universe, which was based
on mathematically study the movements of physical bodies. As a result, there was a sharp
break with traditional cosmofisica and the emphasis focused on the relation of cause and
effect of physical phenomena. Hobbes applied this new methodology in political philosophy
and said that the world is a joining of bodies in motion. This was a mechanical man, and also
extended to the state, that as perfect machines can have their movements controlled and
known by science that made them the object of his study. While the state was described as an
artificial man, who mimics the natural man, the mechanics of man was drafted in a way
analogous to a clock. However, Hobbes showed that men, when inserted in the natural state,
they acted according to his own passions and always looking for its own sake: the principle of
benefit. A sphere improper to preserve life. Because of right reason, men came to the
conclusion that the institution of the Leviathan is the most effective output, so that the
pleasant life and peace are guaranteed. Based on the scenario, the present paper, which is
entitled “Freedom and Movement in Thomas Hobbes”, seeks to demonstrate the application
of the movement – a legacy of science – the concept of freedom, understood and disseminated
so far as freedom of the will and rational beings, and therefore, a metaphysical attribute. From
Hobbes, liberty is merely applied to the whole body and body, rational or not, since it is
moving. It is this sense that the hobbesian definition of freedom, the absence of external
restraint to the movement, the truth wins and becomes incompatible with the natural order,
which is to keep the peace. In order to preserve the vital movement and a comfortable life,
men, therefore, limit the freedom and start living under civil law.
KEYWORDS: Movement, Freedom, Hobbes.
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES ............................................................................... 11
1 A FÍSICA HOBBESIANA .................................................................................................. 20
1.1 O MOVIMENTO: LEGADO DA CIÊNCIA NASCENTE AO PENSAMENTO DE
THOMAS HOBBES ................................................................................................................ 22
1.2 MOVIMENTO: O PRINCÍPIO DA FILOSOFIA DE THOMAS HOBBES .................... 26
1.3 A PRIMEIRA LEI DE NATUREZA COMO DECORRÊNCIA DO MOVIMENTO
VITAL DO HOMEM ............................................................................................................... 35
1.4 A LEI BÁSICA DA VIDA HUMANA É O MOVIMENTO ............................................ 42
2 ANTROPOLOGIA DE HOBBES: CORPO FÍSICO E LIVRE ..................................... 58
2.1 ESTADO NATURAL COMO UMA SITUAÇÃO POSSÍVEL ..................................................... 58
2.2 DESCRIÇÃO DA NATUREZA HUMANA A PARTIR DA PRIMEIRA LEI DE NATUREZA
EM HOBBES ........................................................................................................................................ 65
2.3 A FUNÇÃO DA LINGUAGEM E DA RAZÃO EM HOBBES .................................................... 79
2.3.1 A Utilidade Da Linguagem No Processo De Construção Do Estado ........................................... 80
2.3.2 A Razão Humana Como Cálculo ................................................................................................. 85
2.4 DA IMPOSSIBILIDADE DO HOMEM MANTER O DIREITO NATURAL .............................. 90
3 OS EFEITOS DA CONCEPÇÃO DE LIBERDADE NA RELAÇÃO ENTRE O
ESTADO DE NATUREZA E O ESTADO CIVIL EM THOMAS HOBBES .................. 98
3.1 A INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO MECÂNICO NO CONCEITO DE LIBERDADE .................. 98
3.2 O DEBATE SOBRE A LIBERDADE E O LIVRE-ARBÍTRIO EM HOBBES ......................... .109
3.3 A PROBLEMÁTICA DA LIBERDADE E DA NECESSIDADE HOBBESSIANA ................. .120
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. .132
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. .140
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Se os homens sempre procuraram ser livres, por que organizaram um meio capaz de
controlá-los? Instigados à compreensão e à resposta a esta intrigante dúvida, queremos
percorrer o caminho já trilhado e o posterior legado de Thomas Hobbes (1588-1679) à
humanidade acerca desta desconfiança. Cremos que esta questão de cunho filosófico e,
sobretudo, existencial, ainda hoje é importante, pois nos remonta a uma suspeita ainda mais
pertinente, a saber, o que faríamos se não estivéssemos de algum modo obrigados a respeitar
as leis civis? Como seria se cada um de nós pudesse agir livremente, como bem
entendêssemos, conforme apenas a nossa própria vontade e segundo o nosso próprio juízo?
Como realmente os homens se comportariam na ausência de leis universais, em estado
natural? A criação de mecanismo fictício, capaz de nortear as ações humanas, é a solução?
Buscando amparo teórico no filósofo político de Malmesbury, temos como pretensão
para este trabalho a demonstração e a análise da concepção de liberdade, pontualmente no que
concerne à obra Leviatã (1640). A liberdade é compreendida, conforme o capítulo XIV e o
XXI do Leviatã, como a ausência de oposição ou impedimento externo, que tiram parte do
poder de ação de determinado corpo, seja ele racional ou não. Esta compreensão é estendida e
suscetível de aplicabilidade somente aos corpos em movimento. Antes disso, especificamente
no capítulo XIII e XIV da mesma obra, notamos que a preservação da vida e a paz surgem
como leis absolutas a todo corpo. A única função do corpo em movimento, em especial o
homem, é não se eximir de esforços possíveis e necessários para continuar o movimento
vital1. Para tanto, o homem deve e pode agir de forma totalmente livre e descomprometida
com o outro homem, pois é a sua preservação que está em risco. Entretanto, o outro homem
também agirá da mesma forma e com base no mesmo direito natural, o que se configurará em
uma situação generalizada de guerra.
No Leviatã, Thomas Hobbes reflete sobre a impossibilidade do retorno dos homens ao
estado de natureza, quando, entre outras coisas, afirma que os homens foram feitos iguais.
Argumenta, ainda, que a natureza humana leva à discórdia (competição, desconfiança e desejo
de glória) na ausência de um poder comum, de maneira que os homens estarão sempre em
desavença uns com os outros. No referido estado os homens vivem em situação constante de
guerra geral, havendo, dessa forma, a necessidade de um poder comum que os ordene, pois
não existe um equilíbrio entre atritos e a estabilidade – sempre que não houver a paz,
1 Cf. LEVIATÃ, I, XIV, p. 79.
12
necessariamente se travará a guerra2. Nessa guerra de todos contra todos, nada pode ser
injusto. Não existe distinção entre bem e mal, justiça e injustiça. Não há lei positiva, e onde
esta não existe, certamente não haverá justiça. No estado de guerra, força e fraude são
consideradas virtudes. É de fundamental importância, também, destacar que nesse estado não
há definição de propriedade. Consequentemente pertencerá a cada homem somente o que seus
próprios esforços adquirirem e só clamará direitos sobre isso enquanto puder mantê-lo.
O direito natural do homem é uma forma de liberdade – a liberdade de fazer ou
empregar todo poder, da maneira que quiser e julgar necessário para a preservação da própria
vida. É um contra-senso o homem ferir-se deixar de esforçar-se pela própria preservação. Em
outras palavras, o único direito que o homem tem – a preservação da vida – não restringe e
não é circunscrito à liberdade, mas, ao contrário, afirma o próprio direito ou a própria
liberdade de usar o poder da maneira que bem entender e achar conveniente; mesmo quando
essa forma entrar em conflito direto com os outros. O conflito é justificável e se configura
como um ato livre porque tem como finalidade a nossa própria sobrevivência. Portanto,
somos totalmente livres para buscarmos a preservação do nosso movimento vital. A
transmissão da liberdade natural – liberdade é igual ao direito de desfrutar daquilo que a
natureza cede gratuitamente – à figura de um terceiro dará origem ao Estado civil. O Leviatã
(ou Estado civil) assumirá os poderes particulares e da autorização dos indivíduos constituirá
uma força inabalável, superior a todos os súditos juntos. Tamanho poder e grandiosidade
servirão para preservar a vida e a paz dos súditos. Ou seja, o poder soberano emana da
autorização dos indivíduos e não da somas dos mesmos.
Para evidenciar o que acabamos de mencionar, temos como objetivo a apresentação da
temática da liberdade, em Thomas Hobbes, em três capítulos. No primeiro capítulo, intitulado
“A física hobbesiana”, a nossa intenção é de mostrar que o movimento do corpo, herança da
ciência nascente, é a condição fundamental para se entender a liberdade humana, ou seja, todo
corpo existe para o movimento e está em constante movimento. Isso se justifica porque o
movimento do corpo humano é igual à vida e a paralisação do movimento vital é igual à
morte. O homem não pode deixar seu movimento vital parar, de maneira que ele é totalmente
livre para desenvolver o que pensar ser conveniente e necessário para a preservação de seu
movimento vital. O movimento pode ser tanto o vital como o animal, o que distingue um do
outro é a imaginação, enquanto que este segue uma cadeia de dependência para ocorrer,
aquele é natural e involuntário. Contudo, ambos apenas reforçam a ideia de que o homem é
2 Cf. LEVIATÃ, I, XIII, p. 76.
13
um corpo em movimento e para o movimento. Além do mais, é evidente que a imaginação é
igual ao conatus (conatus em latim e endeavor em inglês), de sorte que caracteriza o
empenho, o esforço do homem para manter a vida, tanto no sentido aversivo como apetitoso.
No segundo capítulo, que tem como título “A antropologia de Hobbes: corpo físico e
livre”, descreveremos a natureza humana a partir da primeira lei de natureza, quando a lei
única e fundamental é a busca da paz, apenas na inexistência de qualquer alternativa o homem
poderá ancorar-se nos benefícios oriundos da guerra. Cabe notar que a primeira lei de
natureza se divide em duas: uma lei (lex) e um direito (jus). No que tange à lei, notamos uma
obrigação (determinação) nítida, isto é, o homem deve procurar a paz e segui-la a qualquer
custo, ao passo que, no que concerne ao direito natural (liberdade), percebemos a
configuração da liberdade sem limites, o homem pode usar todos os meios possíveis para a
preservação do seu movimento vital, mas não necessariamente que deva fazê-lo3. No instante
que o homem percebe que o seu maior desejo é a preservação da sua própria vida – lembrando
que as leis de natureza nada mais são do que ditames da reta razão e não algo inato à
composição do homem – além da busca incessante da paz, ele também entende que a sua
liberdade para desempenhar tal função não tem limites, pois seria incorreto a natureza nutri-lo
a buscar o cumprimento de uma lei se não o amparasse também com um direito. Nesta
medida, a liberdade é ilimitada e gera o horizonte da impossibilidade do homem manter os
direitos naturais no estado natural, pois as buscas particulares e isoladas certamente entrarão
em confronto direto com o outro homem.
Consoante a Hobbes, no estado generalizado de guerra todo homem é igualmente livre
e com direito a todas as coisas. Esta combinação entre direito e liberdade, uma vez em
confronto com a do outro homem, cujo principal objetivo é a sustentação do movimento vital,
configura o estado natural, estado de confronto e de medo exagerado. “A oposição com que
começa a filosofia política de Hobbes é, então, a oposição entre, por um lado, a vaidade como
raiz do apetite natural e, por outro, o medo de uma morte violenta como a paixão que faz
racional o homem” (STRAUSS, 2006, p. 42). O estado natural é definido pela antecipação do
ataque do homem ao outro, o que originará a guerra de todos contra todos.
Pois, se o apetite natural do homem é a vaidade, isto significa que por
natureza o homem se esforça para superar a todos seus companheiros e ver
sua superioridade reconhecida por todos os outros, de modo de encontrar
prazer em si mesmo; assim, deseja naturalmente que o mundo em seu
conjunto lhe tema e obedeça (STRAUSS, 2006, p. 42).
3 Cf. LEVIATÃ, I, XIV, p. 78.
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Neste estado os homens gozam de liberdade absoluta, porém, de proporção egoísta,
tornando a vida humana frágil e suscetível de ataques arrebatadores. Raciocinando e fazendo
uso da linguagem, os homens chegam à conclusão de que a liberdade absoluta não é nada se
comparada à incerteza do viver. Para solucionar esta questão, a liberdade ganha limites e a
vida e a paz passam a ser asseguradas pelo Estado civil. Do surgimento do Estado civil nasce
a lei positiva e essa só é possível pela conciliação da liberdade com a necessidade. Portanto, a
liberdade dos súditos consiste em abdicar da própria liberdade absoluta em troca da paz e da
segurança e agir conforme a intenção da lei.
No terceiro capítulo, que tem como título “Os efeitos da concepção de liberdade na
relação entre o estado de natureza e o estado civil em Thomas Hobbes”, percebemos que
para entendermos a noção de liberdade de Hobbes, precisamos compreender a cisão
estabelecida entre a concepção de liberdade tradicional (como uma realidade ontológica e
metafísica) e a sua maneira de pensar a liberdade, que é materialista e mecanicista.
Materialista porque tudo o que se apresenta aos sentidos do homem, inclusive o próprio
homem, não passa de matéria ponderável e apreensível à mente humana. A noção mecânica
decorre da própria composição do movimento da matéria, isto é, delineada por movimentos
exatos e precisos assim como o produto matemático. Este entendimento de Hobbes acerca da
natureza humana é legado da ciência nascente que, sobretudo com Galileu Galilei, segue duas
diretrizes: a primeira afirma que todo homem tende a buscar somente o que lhe traz benefício
e a segunda assegura que todo homem deve fazer todo o esforço possível e necessário para
evitar a morte violenta.
A liberdade em Hobbes ao mesmo tempo em que está no rol de um tema inquietante,
também é de uma complexidade imensa. Se por um lado constatamos que “a liberdade dos
súditos está apenas naquelas coisas que, ao regular suas ações, o soberano permitiu [...]. Não
devemos todavia concluir que com essa liberdade fica abolido ou limitado o poder soberano
da vida e de morte” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 131), por outro lado visualizamos que “em todas
as espécies de ações não previstas pelas leis os homens têm a liberdade de fazer o que a razão
de cada um sugerir favorável a seu interesse” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 130). Eis um grande
problema conceitual em Hobbes, de sorte que os súditos são livres para agirem tanto em
consonância à lei bem como no seu silêncio. Este problema pode ser resolvido se bem
analisado, de sorte que “todo súdito tem liberdade em todas aquelas coisas cujo direito não
pode ser transferido por um pacto” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 131), ou seja, o súdito é livre
quando age de acordo com a lei, pois a lei nada mais é do que conseqüência de uma
convenção de vontades e direitos particulares e, da mesma forma, o súdito é livre porque
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“ninguém fica obrigado pelas próprias palavras a matar-se a si mesmo ou a outrem”
(LEVIATÃ, II, XXI, p. 133). Esta visível contradição se esclarece quando Hobbes afirma que
“portanto, quando nossa recusa de obedecer prejudica o fim em vista do qual foi criado, não
há liberdade de recusar; mas caso contrário há essa liberdade” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 133).
Portanto, a ação livre do homem não está limitada à lei, pois, desde que a finalidade pela qual
a lei civil foi criada não esteja sido cumprida (preservação da vida), o homem pode e deve
encontrar meios para retornar à situação natural e fazer a sua própria defesa.
Não podemos nos esquecer que a natureza fez os homens iguais em liberdade e
direitos, contudo, no anseio de manter o movimento vital a situação bélica se instaura de
forma acentuada. Entre perder a liberdade ilimitada e a própria vida, o homem opta por viver
com uma liberdade limitada, a fim de que a vida e a paz sejam mantidas. “Por outro lado, o
consentimento de um súdito ao poder soberano está contido nas palavras eu autorizo, ou
assumo como minhas, todas as suas ações, nas quais não há qualquer espécie de restrição a
sua antiga liberdade natural” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 133). Fica evidenciado que o homem
pode negar-se a cumprir a ordem proveniente do soberano, usufruindo novamente da
liberdade ilimitada, a qualquer momento, basta que a finalidade pela qual a soberania foi
instaurada não esteja sendo cumprida4. Por fim, da mesma maneira que a liberdade do súdito
está sendo mantida, também a liberdade do Estado estará ocorrendo, porquanto “se um
monarca renunciar à soberania, tanto para si mesmo como para seus herdeiros, os súditos
voltam à absoluta liberdade da natureza” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 135).
Esta nova concepção de liberdade apresentada por Hobbes tem origem no contexto
histórico e científico que ele viveu. Tal maneira de pensar a filosofia e a política lhe rendeu
vários olhares desconfiados, principalmente por parte dos estudiosos eclesiásticos5. Mas não
foi só isso. A nova interpretação mecânica de liberdade também trouxe problemas intelectuais
para o autor do Leviatã resolver. Como, por exemplo, a interpretação de que o livre-arbítrio
não passa de um exagero lingüístico, pois a vontade não é um corpo em movimento e se não
está em movimento também não pode ser paralisada, fugindo, assim, da definição de
4 Cf. LEVIATÃ, II, XXI, p. 133.
5 “Hobbes pretendia claramente que o Leviatã ofendesse sensibilidades contemporâneas, anglicanas em
particular; chegou a acrescentar uma “Revisão e conclusão” na qual alinhava explicitamente seu livro com a
recente literatura dos panfletos que defendia na Inglaterra o novo regime com base no fato de sua posse real do
poder. Por que, então, Hobbes o escreveu? A explicação de Payne era a de que ele tinha sido ofendido de alguma
maneira pelo clero anglicano reunido na corte no exílio em Paris, e pode ter havido alguma coisa dessa natureza.
Hobbes parece ter sido para o clero uma fonte constante de irritação. Essa irritação encontrou expressão
relativamente honrada numa controvérsia entre Hobbes e o bispo John Bramhall, em 1645, acerca do livre-
arbítrio e do determinismo, mas pode ter tido um lado menos honrado – Hobbes parece ter pensado que as
maquinações do clero o tinham impedido de receber o pagamento integral por seu trabalho de tutor do príncipe”
(TUCK, 2001, p. 46-47).
16
liberdade corpórea de Hobbes. Apontar a existência do livre-arbítrio é a mesma coisa que
afirmar a existência de um ‘eu’ separado do meu ‘eu’. Como se eu fosse a soma de dois “eu”,
um que decide – livre-arbítrio (que geralmente tem esta conotação, ou seja, a categoria da
liberdade responsável por deliberar sobre a ação a ser tomada ou não) – e outro que acata a
decisão – o ‘eu mesmo’. Lembrando que a decisão tomada pelo homem, seja ela boa ou ruim,
trará conseqüência somente àquele que a deliberou e a efetivou e, principalmente se for
negativa (pecaminosa), a tendência é não culpar Deus como responsável. Isso tudo para livrar
Deus da culpa de ter causado o pecado original para a humanidade.
Outro problema decorrente do conceito de liberdade de Hobbes é a compatibilidade
que a liberdade tem com a necessidade, dado que as ações humanas derivam de alguma causa
externa a eles, de alguma causa necessária à preservação de sua vida6. Assim como o homem
é livre para se mover sem nenhum obstáculo externo a sua ação, ele também, voluntariamente,
pratica aquilo que o seu desejo e inclinação apontam para fazer. O desejo e a inclinação do
homem são despertados por objetos externos ao homem, de maneira que tal ‘despertar’ do
desejo humano nada mais é do que a própria necessidade que o homem tem para continuar
seu movimento vital. A liberdade e a necessidade são compatíveis na medida em que a
liberdade é necessária ao homem a fim de que ele se movimente no sentido de conquistar ou
refutar coisas da natureza para se preservar. O filósofo de Malmesbury faz uma comparação
entre as águas que correm livremente com a ação voluntária dos homens, justamente para que
possamos compreender esta correlação que existe entre a liberdade e a necessidade, tanto nos
elementos da natureza bem como no próprio homem.
Diante disso, entendemos porque a passagem do estado natural ao estado civil ainda
hoje é elemento de muita investigação para quem pretende entender a concepção de liberdade
em Hobbes, já que no estado natural o homem é totalmente livre, mas a sua vida fica inviável,
sem condição de manter o movimento do seu corpo. A única alternativa encontrada por todos
os homens é o pacto que visa proteger a vida e a paz de todos. Portanto, o Estado civil surge
como alternativa artificial dos homens, embasado em leis e normas, para a autopreservação.
Neste estado, a incumbência de manter o movimento vital é transferida ao representante desta
entidade, sob o pretexto de verdadeiramente garantir as possibilidades necessárias para a vida
e a paz. Os homens aceitam privar-se de sua liberdade ilimitada em vista da continuidade e
segurança das suas vidas e para desfrutar dos prazeres obtidos com o trabalho. Contudo, a lei
é sempre coativa, porque ela é garantida pelo poder da espada. A força coercitiva se configura
6 Cf. LEVIATÃ, II, XXI, p. 130.
17
em um elemento externo à vontade do homem, limitando, assim, a liberdade humana.
Contudo, como pretendemos mostrar, limitar a liberdade é algo necessário para que o homem
continue ou tenha mais esperança de viver.
A guerra surge como um subterfúgio para se alcançar a preservação do movimento
vital. Por isso, é também em virtude do desejo de conforto e esperança de uma boa vida,
através do trabalho, que o homem tende à paz. Assim surgiram as leis, as normas
estabelecidas para chegar-se a esse fim. Os homens renunciam aos seus direitos em troca de
estabilidade e boas condições de vida e, uma vez feita essa troca, em forma de pacto,
encontram-se suscetíveis às leis estabelecidas pelo soberano. Voltar ao estado e à condição
natural em que primeiramente se encontravam, é uma questão de insatisfação com o
cumprimento do preestabelecido durante o pacto, ou seja, caso o Leviatã não esteja atingindo
a sua finalidade: a vida confortável e em paz7. “A nutrição de um Estado consiste na
abundância e na distribuição dos materiais necessários à vida; em seu acondicionamento e
preparação e, uma vez acondicionados, em sua entrega para uso público, através de canais
adequados” (LEVIATÃ, II, XXIV, p. 150). Assim sendo, em um Estado instaurado pelos
súditos não se disporá a renunciar a todas as regalias previstas por ele e voltar a um estado
primitivo de vida repleto de inseguranças. O Estado não é certeza absoluta de segurança à
vida e à paz, contudo, é o meio racional mais viável e mais seguro aos homens.
A fim de estabelecerem-se a paz e a segurança, Thomas Hobbes diz que os homens
devem, absoluta e simultaneamente, renunciar ao direito de natureza (uso individual e privado
da força) e transferi-lo a alguém externo ao pacto. Destaca-se, porém, que esse “alguém” não
poderia ser um corpo humano, já que todos desta espécie são vinculados ao pacto. O meio
encontrado para concentrar esse poder centralizado foi o estabelecimento do Estado político,
cujos interesses são defendidos pelo soberano. O Estado político ou Leviatã é considerado um
corpo artificial que, a partir do momento de sua criação, tem vontade e autoridade próprias
para desempenhar função, cobrar por elas, fazer leis etc. Portanto, todos os seus atos
constituem, necessariamente, a supremacia dentro do Estado. O soberano não só é o detentor
do poder, como é o próprio poder. E como são os homens que instituem o Leviatã, ser
contrário à vontade soberano é a mesma coisa que se opor a si mesmo.
Por ser externo ao pacto, o soberano possui poder ilimitado e não contrai, portanto,
obrigações. Concentra todas as forças a que renunciaram os homens. Mediante isso, podem-se
destacar os direitos do soberano: feito um pacto, qualquer fato ou contrato anterior que o
7 “Portanto, quando nossa recusa de obedecer prejudica o fim em vista do qual foi criada a soberania, não há
liberdade de recusar; mas caso contrário há essa liberdade” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 133).
18
contrarie deve ser suprimido; nenhum súdito pode libertar-se da sujeição ao soberano – o
soberano é a vontade geral do início ao fim e renunciar a ele seria uma contradição; se a
maioria, por voto de consentimento, escolher um soberano, os que tiverem discordado devem
passar a consentir juntamente com os restantes; nada que o soberano faça pode ser
considerado injurioso contra qualquer um de seus súditos; aquele que detém o poder soberano
não pode ser punido por seus súditos; compete à soberania ser juiz de quais as opiniões e
doutrinas que são contrárias à paz, e quais as que lhe são propícias; pertence à soberania do
poder a prescrição de regras de propriedade; a autoridade judicial; direito de fazer guerra e
paz com outras nações e Estados; escolher os conselheiros, ministros, magistrados e
funcionários, tanto na paz como na guerra; e direito de recompensar com riquezas e honras, e
o de punir com castigos corporais ou pecuniários, ou com a ignomínia, a qualquer súdito, de
acordo com a lei que previamente estabeleceu8.
A verdadeira liberdade dos súditos está tanto em agir no silêncio da lei bem como no
agir consoante àquilo que a lei prevê. De maneira que:
Sem levar mais em consideração as limitações factuais do agir humano,
resultantes da constituição física de cada indivíduo, os limites da obediência
civil coincidem, na obra-prima do teórico político inglês, com os limites de
um contrato cuja racionalidade obedece à imaginação que move
imperceptivelmente os atos voluntários do indivíduo (HECK, 2002, p. 544).
No mesmo sentido, Heck continua:
À luz dessa teoria do surgimento das ações humanas, a verdadeira liberdade
do súdito faz com que a promessa de não resistir à força fique sem efeito.
“Um pacto, assegura Hobbes lapidarmente, “em que eu me comprometa a
não me defender da força pela força é sempre nulo” (2002, p. 544).
O pactuante é obrigado a cumprir a ordem do pacto somente se a finalidade pela qual
ele tenha sido instaurado esteja sendo cumprido, a saber, a preservação da vida. Nenhum
homem é obrigado a se mutilar ou a se matar por ordem expressa do soberano, por mais que
ele tenha quebrado qualquer espécie de lei civil. A preservação da vida sempre está em
primeiro lugar. Para defendê-la o homem pode “reassumir” a sua liberdade natural e lutar com
toda a sua força e empenho pela sua preservação. O ato de não aceitar a lei do soberano e se
ferir está na mesma dimensão interpretativa do suicídio, ou seja, ambos os casos são
desautorizados pelo autor do Leviatã e compreendidos como um desvio de comportamento
mental sadio. A teoria do movimento vital de Hobbes é categórica no que tange à preservação
da vida em todos os sentidos e circunstâncias. “Pois, natural e necessariamente, a intenção de
8 Cf. LEVIATÃ, II, XXVI.
19
um homem visa alguma coisa que é boa para si mesmo e tende a preservá-la. E, portanto,
creio eu, se ele se mata, deve-se supor que não está compos mentis (mentalmente sadio), mas
fora de si por algum tormento interior ou pelo terror de algo pior do que a morte” (HECK,
2002, p. 544). Conforme Heck, supondo a teoria do movimento vital de Hobbes, “o suicida
teria por natureza que agir necessariamente de outra maneira, vale dizer, o suicídio não
invalida a teoria do movimento vital” (2002, p. 544). Frente essa interpretação, concluímos
que o súdito é livre para agir conforme a lei e igualmente no silêncio dela. Assim sendo,
“avaliada com as premissas de sua obra-prima, resta à teoria do movimento vital assumir tanto
conduta daqueles que evitam a morte violenta como naturalmente correta, quanto o
comportamento de quem a provoca como naturalmente incorreta” (HECK, 2002, p. 544). E
como a vida não é pactuada, o homem pode negar-se a obedecer à lei e novamente ser o
responsável por sua defesa. Portanto, a verdadeira liberdade do súdito está em se proteger dos
elementos externos que possam prejudicam à sua ação livre e, principalmente, a vida. O
homem pode agir assim tanto no estado natural bem como no estado civil, justificando-se
assim o agir livre conforme a lei e no silêncio da lei.
Diante dos pontos mencionados acima, chega-se à conclusão da infinidade de
vantagens (em relação às desvantagens do estado natural) da vida em sociedade. Renunciar a
essa convivência pacífica com os outros corpos seria como renunciar à liberdade e segurança,
asseguradas pela lei, e voltar a um mundo primitivo em que o nascer de um novo dia constitui
sempre um novo e inesperado desafio. É frente a este esquema de conflitos naturais e saídas
artificiais que se compreende o motivo pelo qual os homens optam por limitar sua liberdade
natural e a viver conforme um esquema de liberdade limitada por leis, regras e normas. “O
fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o
domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual o vemos
viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita”
(LEVIATÃ, II, XVII, p. 103). A preservação da vida e a esperança de uma vida em paz
bastam para responder esta intrigante questão.
1 A FÍSICA HOBBESIANA
A análise do termo ‘física’ remete ao significado de ciência que tem como objeto o
estudo dos corpos, suas leis e suas propriedades. E é justamente com esta fundamentação que
estamos pensando a física de Thomas Hobbes, ou seja, o conhecimento que se ocupa de
investigar o estatuto dos corpos em movimento, seja o humano ou o Estado civil. Hobbes
torna a concepção física extremamente presente e importante à sua obra; um elemento
maximizado de seu pensamento, inserindo-o tanto na compreensão do homem como na do
Estado. Tudo é corpo e movimento, melhor do que isso, corpo em movimento. Para dar
respaldo à importância do movimento à sua maneira de pensar, Hobbes associa a própria
existência do corpo ao movimento, a tal ponto de só conseguirmos perceber um determinado
corpo quando este estiver em movimento.
Podemos dizer que dois elementos foram primordiais e definitivos à construção desta
postura intelectual de Thomas Hobbes, e isso se estende e pode ser averiguado em todas as
suas produções, são elas: “espanto com as verdades a priori da geometria de Euclides e a
física de Galileu” (BERNARDES, 2002, p. 12). Não temos como pretensão investigar a
geometria de Euclides senão apenas a demonstração e a análise teórica do surgimento da
ciência do século XVII com Galileu Galilei e o seu posterior legado à filosofia política de
Thomas Hobbes, pontualmente no que concerne à compreensão do conceito de liberdade
vinculado ao movimento9. É o movimento que instiga o homem a agir de forma totalmente
livre, no estado natural, seja para manter a sua vida, seja para buscar o objeto desejado ou
para se esquivar dele. Da mesma forma, é a vontade de se manter em movimento que leva o
homem a deixar o estado natural, limitando sua liberdade, e a pactuar com os outros homens e
instaurar o Estado civil.
9 Quando falamos em movimento dentro da concepção de Galileu, não há como descartar a teoria de Aristóteles
e a de Newton, afim de que um paralelo seja feito e uma posição seja tomada. Para Aristóteles todos os corpos
celestes possuem almas e movem-se no sentido de uma última e imutável divindade, aquela que move todos os
corpos e que não é movida por ninguém. Foi com Galileu que o estudo acerca do movimento ganhou
rigorosidade, pois introduziu o método experimental. Por meio do método experimental, formulam-se hipóteses,
as quais estão sujeitas à experimentação e, a partir daí, à observação e à análise cuidadosa. Por influência de
Galileu, Newton traçou algumas linhas gerais sobre a teoria do movimento. Primeira, também conhecida como
Lei da Inércia, enuncia que: "Todo corpo continua no estado de repouso ou de movimento retilíneo uniforme, a
menos que seja obrigado a mudá-lo por forças a ele aplicadas”. Segunda, também conhecida como Lei
Fundamental da Dinâmica, enuncia que: "A resultante das forças que agem num corpo é igual à variação da
quantidade de movimento em relação ao tempo". Terceira, também conhecida como Lei de Ação-Reação,
enuncia que: "Se um corpo A aplicar uma força sobre um corpo B, receberá deste uma força de mesma
intensidade, mesma direção e sentido oposto à força que aplicou em B". (Artigo encontrado em:
http://universitariodefisica.blogspot.com/2011/04/definicao-de-movimento-por-aristoteles.html). Acesso em 26
de dezembro de 2011. Vamos continuar a pesquisa com a teoria do movimento de Galileu, justamente por crer
no valor da experimentação e não da rigorosidade científica.
21
O estatuto do conhecimento humano para o mundo moderno, mundo que Hobbes está
inserido como um dos protagonistas, é construído a partir da ciência natural. As bases de um
novo arquétipo epistêmico são decorrências de um entendimento da natureza infinita e
inteligível àqueles que procuram entendê-la a partir dos signos das manifestações
matemáticas. Essa novidade, capaz de mostrar a natureza dos corpos de maneira diversa da
tradição, suscita, em muitos pensadores e entre eles Thomas Hobbes, uma busca incessante
por um método que permita o encontro do homem com a verdade dos corpos. A física-
matemática nascente, com sua nova compreensão sobre o movimento, é o solo sobre o qual
Hobbes constitui sua filosofia. Contudo, a época de Hobbes não merece totalmente o mérito
de despertar o homem para a linguagem matemática, de maneira que Euclides, na antigüidade,
é quem primeiro ‘abre os olhos’ para o encadeamento lógico das descobertas, postulados e
axiomas matemáticos. Com Hobbes a discussão ganhou reconhecimento e consistência
justamente pelo posicionamento contrário à cosmofísica aristotélica e neo-aristotélica
(escolástica). Não apenas Hobbes, mas a maioria dos pensadores desta época passa em revista
o conhecimento e a capacidade do homem de conhecer os corpos10
.
Otimista em relação à ciência que está se levantando, Hobbes combate a física, a
filosofia e a metafísica tradicionais, submetendo-as à nova condição do saber, conseqüência
da revolução científica moderna. A postura de Hobbes é de crédito total à ciência do século
XVII, por esta razão, é inquestionável sua tentativa de aproximar a filosofia de um caráter
científico, a tal ponto de crer que filosofia é ciência, e ciência é o conhecimento dos efeitos
dos acidentes dos corpos, isto é, das relações de causa e efeito, seja nos corpos naturais, seja
nos corpos políticos que estão em constante movimento. Essa assimilação da ciência nascente
como promissora desperta em Hobbes a necessidade imediata do estabelecimento de um
10
Nesta época surgem homens como Nicolau Copérnico (1453-1543), Galileu Galilei (1564-1642), René
Descartes (1596-1650) dentre outros, que postulam os novos moldes da ciência que ainda ‘geme em dores de
parto’. Graças a esta gama de pensadores, que tem por objetivo a inovação do pensamento científico, a ciência se
enquadra em parâmetros matemáticos e essencialmente físicos. Os valores morais, políticos e, sobretudo,
religiosos são agitados demasiadamente. Na Igreja, centro do poder nesta época, acontece a Reforma como uma
tentativa interna de reconstrução da Igreja e denúncia dos abusos por parte do clero. Neste sentido, “num mundo
fragmentado, sem um centro de referência, o pensamento ocidental agarra-se na razão como o último refúgio.
Nascem a filosofia e a ciência modernas. Doravante a razão será o único centro e assume a função de reordenar o
mundo” (ZILLES, 2006, p. 126). Podemos dizer que o modelo do racionalismo que está surgindo é o
matemático, isto é, a busca da exatidão e da perfeição que somente a matemática pode auferir. Esta busca traçada
com o método matemático se embasa na tentativa de evitar erros. Como a obra Discurso do método, René
Descartes instaura de uma vez a incansável busca de um método ideal, capaz de evitar erros grotescos, pois “a
razão perdeu todo o apoio fora de si mesma. Por isso esta precisa criar um método seguro para si mesma para
ordenar o mundo. Ela é sujeito, o fundamento do mundo transformado em objeto” (ZILLES, 2006, p. 127). A
partir daqui poderemos falar de sujeito e objeto do conhecimento. Ora, se por um lado existe uma corrente de
pensadores que afirma ser a especulação matemática fonte de todo conhecimento, por outro lado existe o viés
responsável por acentuar em demasia a observação dos dados puramente empíricos. Assim sendo, de um lado
temos o racionalismo e de outro o empirismo. Hobbes se posiciona entre ambos.
22
método seguro. O pensador político inglês acredita que, somente embasado em um novo
método, a filosofia pode se tornar um raciocínio seguro e se caracterizar como uma ciência
prática que investiga o que a vida humana necessita para sua perpetuação e conforto11
.
1.1 O MOVIMENTO: LEGADO DA CIÊNCIA NASCENTE AO PENSAMENTO DE
THOMAS HOBBES
Ainda quando professor da Universidade Italiana de Pádua, Galileu Galilei12
(1564-
1642) teve conhecimento de que na Holanda havia sido inventado um instrumento que iria dar
novas diretrizes à ciência, a saber, o telescópio. A arquitetura deste engenhoso instrumento de
observação universal remonta ao ano 1609. Instigado por sua curiosidade científica,
imediatamente Galileu procurou maiores informações sobre o poder de alcance do telescópio.
“A partir de então pôs-se a aperfeiçoar o instrumento; duplicou sua capacidade de aumento e
começou a fazer observações astronômicas” (GALILEU, 2004, p. 05)13
. Um ano depois da
sua investigação astronômica ter iniciado, Galileu publicou um livro chamado “O Mensageiro
Celeste”. Esta obra apresenta aspectos de como realmente a superfície lunar é constituída, a
existência de inúmeras estrelas que eram desconhecidas pelos homens e, por fim, a presença
de quatro satélites na orla de Júpiter. Tempos depois, Galileu descobriu as fases do planeta
Vênus, as formas de Saturno e as manchas solares14
.
11
“La teoría hobbesiana intenta ofrecer una respuesta a un problema acuciante de la época: cómo construir la
unidad del Estado. Los enfrentamientos entre distintos grupos religiosos y las discrepâncias entre la Corona y el
Parlamento provocan el la Inglaterra del siglo XVII la disolución de la autoridad gubernamental, que trae como
consecuencia una sangrienta guerra civil [...]. Es indudable que Hobbes no sólo está interessado em realizar una
demostración teórica, científica, acerca de cómo debe ser el Estado para que sea posible una vida “civilizada” y
pacífica. También le preocupa una cuestión práctica, la de persuadir a sus contemporâneos para que sean
“racionales” y busquen un acuerdo que termine con la guerra, a la que considera el peor mal social” (COSTA,
1997, p. 35). 12
“Galileo no nació copernicano. Ni siquera fue educado en el copernicanismo como Kepler. Tuvo que llegar a
él, y no sabemos cuáles fueron sus pasos. Aunque sus primeras declaraciones de adhesión al copernicanismo son
explícitas, no aclaran en absoluto su proceso. Se trata de dos cartas de 1597. En la primera, a Jacopo Mazzoni, le
dice que la opinión de Copérnico respecto al movimiento y colocación de la Tierra, le parece ‘bastante más
probable que la outra de Aristóteles y Ptolomeo’ pero que no va a decirle lo que se le ha ocurrido en su defensa.
En la segunda, dirigida a Kepler, le agradece que le haya enviada un ejemplar de El secreto del universo, que se
alegra de saber que es copernicano” (Introdução à obra de Galileu Galilei: Diálogos sobre los máximos
sistemas del mundo ptolemaico y copernicano. Tradução de Antonio Beltrán Marí. Madrid: Alianza Editorial,
1994. p. XXXI). 13
Esta citação não é do próprio Galileu Galilei, mas está contida no prólogo da obra do autor, intitulada “O
ensaiador”. O prólogo foi escrito por José Américo Motta Pessanha. 14
“A descoberta das manchas solares foi criticada violentamente pelos teólogos, que viam na tese de Galileu
uma destruição da perfeição do céu e uma negação dos textos bíblicos. Galileu escreveu, então, uma carta para
seu aluno Benedetto Castelli, afirmando que as passagens bíblicas não possuíam qualquer autoridade no que diz
respeito a controvérsias de cunho científico; a linguagem da Bíblia deveria ser interpretada à luz dos
conhecimentos da ciência natural. A carta começou a circular em inúmeras cópias manuscritas e a oposição ao
autor cresceu progressivamente. As autoridades, contudo, limitavam-se a instruí-lo para que não defendesse mais
as idéias copernicanas do movimento da Terra e estabilidade do Sol, por serem contrárias às Sagradas Escrituras.
Durante alguns anos Galileu permaneceu em silencio. Mas, em 1623, depois de polemizar com um jesuíta sobre
23
Todas essas descobertas de Galileu configuraram o panorama da inovação científica
da sua época, isso porque a filosofia da natureza era definida pelos teólogos da Igreja,
embasada na física e na astronomia aristotélica. Enquanto os cientistas de envergadura
aristotélica explicavam os fenômenos por meio da pura especulação, Galileu passou a
observar e a explicar os fenômenos tais como ocorrem e não como a pura especulação é capaz
de explicar15
.
A oposição de Galileu ao espírito teológico e metafísico da sua época começou em
tenra idade. Em 1584 abandonou o curso de medicina para se dedicar exclusivamente ao
estudo da matemática. Quatro anos mais tarde passou a lecionar a disciplina na Universidade
de Pádua. Foi nesta época que fez as primeiras investigações no campo da física, sobretudo na
mecânica, tentando descrever os fenômenos com linguagem essencialmente matemática.
Pontualmente neste período Galileu suscitou a oposição dos que faziam a ciência oficial,
representada por seguidores de Aristóteles16
. Estes discordavam da aplicação da matemática
aos domínios da física para explicar os fenômenos naturais. Para Pessanha, “essa nova
orientação metodológica seria a maior contribuição de Galileu à história das idéias”
(GALILEU, 2004, p. 06).
Ao apresentar para o mundo as leis fundamentais do movimento dos corpos, Galileu
tornou-se o criador da física moderna17
. Além desta grande contribuição à ciência, o professor
a natureza dos cometas, voltou a ridicularizar as teorias aristotélicas no livro O Ensaiador e começa a redigir o
Diálogo sobre os Dois Maiores Sistemas. Neste livro confronta as idéias de Ptolomeu – segundo a qual a Terra
seria estática e o Sol giraria em torno dela – e de Copérnico, que afirmava exatamente o contrário. Porque
nenhum editor desejava correr maiores riscos, a obra só seria publicada em 1632. Foi quando o perigo se
declarou: em outubro do mesmo ano, o autor foi convocado para enfrentar um tribunal do Santo Ofício”
(GALILEU, 2004, p. 06-07). 15
A explicação dos fenômenos, tais como ocorrem, é o elemento fundamentalmente inovador no sistema
científico de Galileu. Adjacente a este elemento, o professor de Pádua somou a experimentação e a matemática,
justamente por crer que esta é a verdadeira linguagem da natureza. 16
“Em 1604, Galileu elabora a lei da queda livre dos corpos, fundamental para todo o desenvolvimento posterior
da mecânica racional. Seis anos depois, começa a fazer observações astronômicas, passando a trabalhar em
Florença, junto a Cosimo II de Médici. Em 1612, publica o Discurso sobre as Coisas que Estão sobre a Água,
no qual ridiculariza a teoria aristotélica dos quatro elementos sublunares do éter, suposto componente único dos
corpos celestes e responsável por sua “perfeição”. Ao mesmo tempo adota o atomismo de Demócrito na
explicação do universo físico. Mais uma manifestação antiaristotélica viria, em 1613, na História e
Demonstração sobre as Manchas Solares, onde apóia a teoria de Copérnico e mostra o erro da concepção
segundo a qual o Sol, como os demais astros, seria um corpo composto de um único elemento, o éter”
(GALILEU, 2004, p. 06). 17
O método científico de Galileu segue alguns passos que são, ainda hoje, fundamentais para a ciência. O
primeiro passo do método é a própria observação dos fenômenos, tais como ocorrem, sem interferência alguma
de pressupostos filosóficos, teológicos ou científicos. Os fenômenos devem ser analisados enquanto fenômenos
mesmos, livres de possíveis interferências que tendam a forjar a interpretação. O segundo passo do método
consiste na experimentação do fenômeno, cuja cientificidade não pode prescindir da verificação das
circunstâncias que norteiam determinado fenômeno. O terceiro e último passo da metodologia de Galileu aponta
que o correto conhecimento dos fenômenos da natureza é visível na sua regularidade matemática. “Formulando
esses princípios, Galileu estruturou todo o conhecimento científico da natureza e abalou os alicerces que
fundamentavam a concepção medieval do mundo” (GALILEU, 2004, p. 08).
24
da Universidade de Pádua foi um dos maiores astrônomos de sua época bem como um dos
propedeutas na observação telescópica. Essas descobertas caracterizaram uma nova forma de
abordagem dos fenômenos da natureza e nisso residiu sua importância dentro da história da
filosofia, a tal ponto de Thomas Hobbes servir-se de tais parâmetros para sua análise
filosófica política. Diante deste quadro teórico, Pessanha afirma: “no campo das idéias
filosóficas, Galileu é mais importante pelas contribuições que fez ao método científico do que
propriamente pelas revelações físicas e astronômicas encontradas em suas obras” (2004, p.
07). Galileu indicou que o mundo não é constituído por duas partes, uma superior (céu) e
outra inferior (terra), mas que ambas devem ser consideradas originárias da mesma natureza e
tratadas de modo idêntico. Com estas reformulações no método científico, Galileu almejou
findar o finalismo aristotélico e escolástico18
, segundo o qual tudo o que existe tem uma
função a ser cumprida, a mando de alguma entidade superior. Com isso, Galileu
Mostrou que a natureza é fundamentalmente um conjunto de fenômenos
mecânicos, tal como afirmara Demócrito na Antiguidade e, mais do que isso,
assoalhou que o livro da natureza está escrito em caracteres matemáticos e
que, sem um conhecimento dos mesmos, os homens não poderão
compreendê-los (2004, p. 09).
Por estes motivos, em fins do século XVI até meados do século XVII, Galileu Galilei
deu à ciência novo molde e caracterização diversa. O novo processo científico, adotado por
Galileu, surgiu na tentativa de legitimar o sistema copernicano19
do universo, que tinha por
base estudar matematicamente os movimentos dos corpos físicos. Em decorrência disso,
houve um brusco rompimento com a cosmofísica tradicional20
e a ênfase focou-se na relação
de causa e efeito dos corpos físicos.
18
No tempo de Galileu, a autoridade católica, baseada na tradição aristotélica, se expandia claramente do campo
da teologia à cultura em geral e da filosofia à ciência particular. "Isso significa que poderiam ser considerados
‘erros’ e poderia facilmente tornar-se ‘heresias’, o qual, naturalmente, poderia ter tido consequências fatais"
(GALILEU, 1994, p. XXV). Foi neste cenário que surgiu o gérmen do ódio que resultou na grande aversão
professada por alguns jesuítas com relação a Galileu e à sua nova teoria. 19
“Os séculos XV e XVI ergueram-se com Nicolau Copérnico (1473-1543) contrapondo-se à teoria geocêntrica
aristotélico-ptolomaica, fato que será decisivo para a ciência e para a filosofia posteriores. Estabelece-se uma
tendência racional sensualista e anti-espiritualista. Ora, a terra é retirada de sua posição privilegiada de centro do
universo e a partir de então o próprio homem exige mais de si mesmo em termos de conhecimento. A razão
unida à experimentação cobra o desapego ao testemunho da crença mítico-religiosa. A evidência opõe-se à
mentalidade religiosa tradicional e a antiga concepção de mundo perde a validade de outrora. Doravante, a terra
será um planeta que gira em torno do seu eixo e em volta do sol. Com esta teoria Copérnico acaba por mudar
também o lugar do homem no cosmos. Isto significa dizer que a revolução astronômica implicou também numa
revolução filosófica” (Maria Eliane R. de Souza, http://professor.ucg.br). 20
“Copérnico abogava en favor dele status de la Tierra como planeta apelando a argumentos tomados de la parte
matemática de la astronomia. Al hacerlo así, desprezaba el peso de la evidencia para ele status de la Tierra
planetária a la disciplina inferior de la geometría, violando por tanto la tradicional jerarquía de las disciplinas. Si
algo puede ser llamado revolucionario en el trabajo de Copérnico es este modo de argumentar – este modo de
desafiar la proposición central de la física aristotélica” (GALILEU, 1994, p. XXVII).
25
Com Galileu, a ordem matemática já presente em Copérnico21
, se junta a um novo
método e a ciência se inova. A ciência é projetada a partir da natureza e não passa de um
simples sistema ordenado com procedimentos regulares e necessários. Agindo por meio de
leis preestabelecidas e jamais infringidas, os fenômenos naturais acontecem sem se
importarem se são compreensíveis ou não ao homem. Desse modo, o universo está totalmente
submisso à nova maneira científica, com embasamento matemático, como espólio de Galileu.
Diante disso, Galileu assevera:
Com este fim tomei na argumentação o partido da teoria copernicana,
considerando-a como pura hipótese matemática, tratando por qualquer meio
artificial de apresentá-la como superior à tese da quietude da Terra, não
absolutamente mas dependendo da forma como é defendida por alguns que,
peripatéticos de profissão, o são só de nome, conformando-se, sem
caminhar, com culto às sombras, filosofando não a partir da própria
capacidade de reflexão, mas apenas com a recordação de quatro princípios
mal entendidos (1994, p. 05-06).22
Esta revolução científica, operada por Galileu e com base copernicana, revela uma
nova estrutura metodológica para o século XVII, na qual Hobbes estava inserido e se
apropria. A firme crença na estrutura matemática do universo leva os pensadores a buscarem
na natureza o fundamento da ciência. Nasceu, assim, um racionalismo e um empirismo que
coagiu o mundo científico a se expedir do senso comum e da autoridade empírica tradicional.
Contudo, a produção intelectual de Hobbes não foi uma síntese de seu encontro com Galileu,
Bacon ou com o Padre Mersenne. Thomas é original quanto à sua forma de fazer filosofia,
pois soube assimilar e filtrar o excesso, ficando apenas com o suficiente para inovar o olhar
científico-filosófico acerca do homem e do Estado23
.
21
Interessante notar que até 1630, houve na história poucos astrônomos copernicanos. Giordano Bruno foi um
destes. Com um copernicanismo mágico e naturalista, Bruno defendeu uma linha copernicana metafísica e
religiosa. "Bruno escreve audazmente o heliocentrismo copernicano em um universo infinito, mas critica esse
‘brincar com a geometria’ que, na sua opinião, constitui uma grande limitação de Copérnico’” (GALILEU, 1994,
p. XXVI). Galileu se sente muito distante desta linha apologética de Bruno, pois, consoante a Galileu, “o
matematismo não se remonta às alturas místicas, mas leva a estrutura do nosso mundo que, na sua construção de
uma nova física, a investiga experimentalmente” (GALILEU, 1994, p. XXVI). 22
“Con este fin he tomado en la argumentación el partido de la teoría copernicana, considerándola como pura
hipótesis matemática, tratando por cualquier médio artificioso de presentarla como superior a la tesis de la
quietud de la Tierra, no absolutamente sino según el modo en que es defendida por algunos que, peripatéticos de
profesión, lo son solo de nombre, conformándose, sin paseo, com adorar las sombras, filosofando no a partir de
la propia capacidad de reflexión, sino solo con el recuerdo de cuatro principios mal entendidos”. 23
“Hobbes dedicou ao menos metade de sua vida e de sua energia à tentativa de compreender a ciência moderna,
no momento em que ela dava seus primeiros balbucios; seu entendimento da ciência moderna foi por certo tão
percuciente quanto o de seus contemporâneos; contudo, como suas idéias a esse respeito não são plenamente
discutidas no Leviatã, suas teorias não são levadas em conta. As obras nas quais ele registrou essas idéias mal
são lidas hoje, e algumas nem sequer foram traduzidas do original latino. Ainda que o Leviatã seja notável em
muitos aspectos, Hobbes não pretendia que ele fosse o corpo principal de suas idéias mesmo em questões
políticas e morais, e nossa concentração exclusiva nessa obra distorceu muitos relatos daquilo que ele se
empenhava em fazer” (TUCK, 2001, p. 9-10).
26
1.2 MOVIMENTO: O PRINCÍPIO DA FILOSOFIA DE THOMAS HOBBES
Hobbes instaura seu sistema filosófico na compreensão do movimento, legado dos
inovadores moldes da ciência de sua época. O movimento é o elemento fundamental herdado
por Hobbes da ciência nascente além de ser o ponto fulcral para o entendimento em torno da
concepção de liberdade. O corpo humano é uma máquina construída para o movimento e em
função do próprio movimento24
. Analogicamente podemos dizer que o coração é o motor
responsável pelo andamento e funcionamento dos outros membros. O conjunto dos membros
em harmonia caracteriza o movimento vital. É neste panorama que entendemos a liberdade
humana, ou seja, como o corpo, seja ele qual for, que está em movimento e não pode
encontrar impedimento ao seu agir.
Para Thomas Hobbes, “a liberdade se define retamente assim: Liberdade é a ausência
de qualquer impedimento para a ação que não está contida na natureza e na qualidade
intrínseca do agente” (LIBERTAD Y NECESIDAD, 1991, p. 165). De outra maneira,
liberdade é compreendida, essencialmente, como ausência de qualquer espécie de entrave
externo, seja para o corpo racional ou não racional. A única função destes corpos, em especial
o corpo humano, é cumprir apenas uma ordem, a saber, não se eximir de esforços possíveis e
necessários para continuar o movimento vital e viver em paz. Para dar continuidade ao
movimento vital, o homem deve e pode agir de forma totalmente livre e descomprometida
com o outro homem. Entretanto, o outro homem também agirá da mesma maneira, o que se
configurará em uma situação generalizada de guerra.
A percepção de movimento adotada por Hobbes é legado da nova visão científica, que,
especialmente com Galileu Galilei, caracteriza-se como materialista e mecanicista.
Materialista porque tudo o que se apresenta aos sentidos do homem, inclusive o próprio
homem, não passa de matéria ponderável e apreensível à mente humana. A noção mecânica
decorre da própria composição do movimento da matéria, isto é, delineada por movimentos
exatos e precisos assim como o produto matemático. Por este motivo a natureza humana, para
o filósofo de Malmesbury, segue esta diretriz e se subdivide em duas ordens: a primeira
afirma que todo homem busca constante da própria realização e a segunda assegura que todo
homem deve fazer todo o esforço possível e necessário para evitar a morte violenta e
continuar o movimento vital.
24
Isso fica muito claro na Introdução ao Leviatã, quando Hobbes afirma ser a vida uma junção dos membros em
movimento, cujo início acontece internamente ao corpo (Cf. 1983, p. 05).
27
O movimento é a grande novidade empregada pelo pensador inglês ao seu sistema
filosófico político, justamente para dar respaldo do motivo pelo qual os homens insistem em
manter suas vidas. O movimento e a vida humana, em certa medida e em determinados
contextos, quase se confundem e podem ser tomados como uma e mesma coisa25
. O homem,
calculando as circunstâncias, sejam elas quais forem, apresentadas pelo contexto em que está
inserido, chega à conclusão que a vida é o maior bem e mantê-la, independentemente das
dificuldades externas apresentadas, é a finalidade da própria existência.
O que eles procuram, portanto, é a continuidade do desejo, na passagem de
um objeto a outro, sejam eles quais forem, e uma relativa satisfação, isto é, a
possibilidade de gozarem desses objetos, sejam eles quais forem. Não se
especificam quais objetos são esses. Tudo depende das circunstâncias que os
determinam (LIMONGI, 2009, p. 28).
Ora, o que é a vida humana senão o movimento dos órgãos do corpo em sincronia?
Portanto, estar vivo, é estar com o corpo em movimento, ao contrário, estar morto, é a
paralisação total do movimento vital. Buscar a preservação do movimento vital pode ser
arriscado demais. A própria tentativa de preservação pode culminar na morte, uma vez que
todo homem está em busca da própria manutenção do movimento vital. Contudo, o homem
não pode se eximir e deixar com que a sua vida termine. Como conseqüência desse mútuo
conflito, o estado de natureza é definido como uma guerra de todos contra todos.
Neste estado, o homem é totalmente livre, mas a sua vida fica inviável, pois não se
sente em condição de manter o movimento do seu corpo. A única alternativa encontrada por
todos os homens, para manter o movimento vital, é o pacto que visa proteger a vida e a paz de
todos; a esperança de uma vida melhor. O Estado civil surge como uma alternativa dos
homens, embasado em leis e normas para a preservação do movimento vital. No Estado civil,
a incumbência de manter o movimento vital é transferida ao representante desta entidade, sob
o pretexto de verdadeiramente garantir as possibilidades necessárias para a vida e a paz. Os
homens aceitam privar-se de sua liberdade ilimitada em vista da continuidade e segurança das
suas vidas. A lei é sempre coativa, porque é garantida pelo poder da espada. A força
coercitiva se configura em um elemento externo à vontade do homem, limitando, assim, a
liberdade humana.
É precisamente porque os homens visam acima de tudo conservar a própria
vida que se poderá escapar da lógica instável das relações naturais de poder e
passar ao plano racional das relações jurídicas, instituídas voluntariamente,
ou seja, por uma vontade de autoconservação (LIMONGI, 2009, p. 27).
25
Cf. LEVIATÃ, p. 05; LIMONGI, 2009, p. 55-56.
28
Diante disso, podemos dizer que o fundamento da vida livre dos homens é o
movimento. O mesmo movimento que é iniciado em quase todo corpo por qualquer outro
corpo externo a ele. A partir do início do movimento no corpo, a única lei é a de não deixar
esse movimento paralisar. O homem age de forma totalmente livre, no estado natural, para
manter a sua vida, seja para buscar o objeto desejado ou para se esquivar dele. Da mesma
forma, é a vontade de se manter em movimento, último apetite da deliberação, que leva o
homem a deixar o estado natural, limitando sua liberdade, e a pactuar com os outros homens.
Por este motivo, a liberdade humana, natural e civil, em Thomas Hobbes, ganha a sua
consistência no movimento. A vida é movimento. Estar vivo é estar em movimento.
O filósofo de Malmesbury não fala tanto de paixão em seus escritos, pois prefere falar
em movimento da mente ou afeto26
. Por esta razão, ousamos afirmar que a paixão é o mesmo
que Hobbes constantemente chama de movimento. A mesma compreensão pode ser
encontrada na obra de Maria Isabel Limongi, quando ela afirma que: “A paixão parece não
ser senão o nome que normalmente se dá ao que Hobbes prefere no entanto conceituar em
termos de movimento” (p. 37, 2009). O movimento como herança da ciência causa em Hobbes
um estado de espanto e encantamento, a tal ponto de torná-lo o ponto de partida para o
entendimento do homem. Ora, se entendemos o movimento como vida – movimento vital –
percebemos, então, que o homem hobbesiano é um corpo em movimento e para o movimento.
Este movimento acontece tanto na condição do apetite (quando o homem se movimenta para
conquistar o objeto almejado e necessário para sua vida), quanto na condição aversiva
(quando o homem empreende movimento para fugir daquilo que não é necessário e almejado
para sua vida).
O movimento é um processo causal, pois é ele quem causa nos corpos o segmento do
movimento. Quando um corpo está em repouso, ele exige, necessariamente, a ação de outro
corpo, para que inicie nele o movimento. Assim, é o processo de movimento que opera sobre
os corpos e não os corpos que se movimentam por si. Os corpos não causam movimento, eles
apenas são movidos por outros corpos que também estão sendo movidos. É como um jogo de
bilhar, isto é, as bolas carecem do movimento externo a elas para se movimentarem e darem
movimento às outras bolas. Enfim, para Hobbes, toda mudança é movimento e todo
movimento gera movimento vinculado à mudança. “Nada pode causar alguma coisa em si
mesmo: o badalo não possui som nele mesmo, mas apenas movimento, e causa movimento
26
Cf. LIMONGI, Maria Isabel. O homem excêntrico – Paixões e virtudes em Thomas Hobbes. São Paulo:
Edições Loyola, 2009. p. 36.
29
nas partes externas do sino, de maneira que o sino tem movimento, e não som.”
(ELEMENTOS, I, I, p.25).
O que muda nos corpos é tudo aquilo que aparece aos nossos sentidos. Nesta altura, o
ponto de partida da física de Hobbes, a aparência sensível, através do movimento, ganha
sentido e embasamento, uma vez que tudo o que é gerado ou transformado é perceptível aos
sentidos humanos. Se não fosse assim, não seríamos capazes de dizer que algo mudou, foi
gerado ou que está em movimento27
. O que é o movimento senão uma mudança sensível que
ocorre nos corpos, racionais ou não, perceptíveis aos nossos sentidos? E o que é a mudança
senão um processo de geração ou destruição nos mesmos corpos? Tudo isso é notado pelos
nossos sentidos. Quando Limongi cita Hobbes no que concerne à questão da mudança,
encontramos a seguinte passagem: “por geração e corrupção deve-se entender mudança
(mutatio), definida anteriormente como ‘movimento das partes ou o movimento que faz o
corpo aparecer distinto do que era antes’” (2009, p. 46)28
. Por geração e corrupção devemos
entender aquelas mudanças sensíveis que os corpos sofrem. Toda e qualquer mudança é
perceptível à sensibilidade humana, uma vez que esta opera no nível dos acidentes nos corpos.
Os acidentes nos corpos podem tanto gerar novidades aos mesmos, como podem privá-los de
algum elemento, modificando-os visivelmente. Não são os corpos, segundo suas
potencialidades, que produzem e explicam o processo de mudança, mas seus acidentes postos
em relação e na medida em que produzem efeito. Dessa maneira:
A potência ativa é, assim, a potência ou a capacidade de produção de um
movimento e não de um corpo. Ela não é um movimento em potência num
corpo agente ou paciente, mas é o movimento mesmo pensado em relação ao
seu produto, ou o movimento ao qual se atribui uma capacidade de
produção. Essa capacidade não precede o movimento e nem se atualiza com
ele; é a capacidade do próprio movimento, em ato. [...]. Daí, talvez, ser
preferível falar das ações e paixões simplesmente em termos de movimento
(LIMONGI, 2009, p. 42).
27
Cf. LIMONGI, Maria Isabel. O homem excêntrico – Paixões e virtudes em Thomas Hobbes. São Paulo:
Edições Loyola, 2009. p. 38. 28
A frase que se encontra entre aspas simples refere-se a uma citação feita por Maria Isabel Limongi da obra de
Thomas Hobbes chamada de “Crítica do De mundo de Thomas White”. A história desta obra é a seguinte: “En
1642 aparece una obra del sacerdote católico inglés Thomas White titulada De Mundo Dialogi Tres que pretende
continuar las reflexiones expuestas por Galileo en sus obras, especialmente en el Dialogo sopra i dui massimi
sistemi Del mondo. White acepta en general la exposición galileana, pero la concepción filosófica y metafísica
desde la que argumenta provoca en Hobbes el deseo de probar la firmeza y coherencia de su pensamiento
mediante la crítica al libro de su paisano, con quien más tarde, por cierto, le unirá una larga amistad. La Crítica
al “De Mundo”, redactada en 1643, no será publicada y sólo em 1973 Jean Jacquot la rescatará de los archivos
de la Biblioteca Nacional de París. [...]. Se trata de una exposición de la doctrina empirista del proceso
cognoscitivo y del consiguiente carácter lingüístico de los procesos mentales” (Introdução ao livro Libertad e
Necesidad y otros escritos de Thomas Hobbes, escrita por Bartomeu Forteza Pujol, 1991, p. 18-19).
30
A potencialidade acontece na matéria suscetível de acidentes e, jamais, na essência29
mesma do corpo. Cada coisa se esforça da maneira que as circunstâncias externas,
apresentadas pelo contexto, determinam para preservar o seu corpo, a sua identidade
específica. Hobbes se apropria das categorias aristotélicas-tomistas, fazendo delas não mais
categorias do ser30
, mas apenas qualidades dos nomes. É pelo movimento de percepção
(externo) que partimos para o entendimento segundo o qual as coisas são nomeadas por sua
essência. “A essência é, portanto, o nome que se dá a uma determinada aparência de um
corpo, entendida como um movimento atual nele presente” (LIMONGI, 2009, p. 47). Ou seja,
a essência não passa de uma categoria puramente nominal, uma qualidade dos nomes que
atribuímos aos corpos, mas que não sejam, necessariamente, dos corpos mesmos –
compreensão meramente nominal. Nesse caso, a individuação e a diferenciação dos corpos
estão tão e somente na matéria, avessa à compreensão aristotélica.
O movimento é a causa primeira que determina todas as categorias de um corpo,
fugindo, assim, ao entendimento tradicional segundo o qual a substância do corpo é
responsável pela identidade propriamente dita de um determinado corpo. Hobbes se posiciona
29
“A essência de um corpo não corresponde para Hobbes a uma certa equação de seus movimentos internos, a
qual se pudesse dizer que o corpo se esforça por preservar. Ela é um certo movimento interno do corpo, entre
outros, através do qual quem o percebe o especifique, e em relação ao qual se diz que foi gerada” (LIMONGI,
2009, p. 45). 30
A metafísica de Santo Tomás é essencialmente metafísica do ser. Mas a metafísica do ser de Santo Tomás não
é uma simples reedição da metafísica de Parmênides, o grande filósofo do ser, e isto porque o conceito que o
Aquinate tem de ser é todo diferente daquele do filósofo de Eléia. Às vezes, Santo Tomás tem um conceito
analógico e pluralístico, que reconhece a criação e a participação. Assim como Aristóteles, Santo Tomás observa
que o ser é um termo plurisemântico. Dessa forma, destacam-se as seguintes noções: 1. Chama-se ser a essência
mesma da coisa – aquilo que a coisa é: homem, cavalo, planta. 2. O ser se aplica para exprimir o ato da essência.
Por exemplo: ‘viver’, que é o ser próprio do vivente. Este termo é adotado para exprimir o ato da alma. Diante
dessas duas conotações acerca do ser, Santo Tomás propõe uma distinção que na sua metafísica julga ter um
papel de extrema importância: a distinção entre o ser comum (ser universal) e ser absoluto (ser divino). Na
primeira noção, o ser é o mínimo de realidade, aquele mínimo indispensável a todas as coisas, o mínimo que
limita entre a tenebrosidade do nada e a participação da ordem dos entes. Na segunda noção, o ser exprime a
intensidade máxima de realidade, intensidade de perfeição contida em cada ser. Em palavras simples, pode-se
asseverar que a primeira noção concerne ao fato do ser simplesmente ser, ao passo que, na segunda noção, nota-
se a participação do simples ser na existência do ser absoluto. Isto porque Deus é uma realidade que não existe
só na mente do homem, mas que está na natureza de todas as coisas. Além de estar na natureza de todas as
coisas, o ser absoluto (Deus) é um ser por si só, porque não pode ser somente o ser comum de todas as coisas,
mas o ser profundamente infinito, o ser sem confins. Para o Aquinate, a noção do ser está além de ser sinônimo
de essência, antes, sinônimo de ente. Por sua vez, o ente assume uma dupla noção: o ente comum que é o simples
fato das coisas serem (ato de ser universal) e o ente divino que é Deus mesmo (ato de ser singular). O ente em
sua estrutura fundamental segue a seguinte ordem: 1. O ente que subsiste em si mesmo. 2. O ente que se insere
em qualquer sujeito. 3. O ente lógico (ente que guarda a verdade e a falsidade das proposições). 4. O ente real (o
mensurável). 5. O ente em potência e ato. Em suma, a metafísica tomista não tem outro objeto senão o ente
enquanto ente e a qualidade que o acompanha (Cf. AQUINO, Tomás. O Ente e a Essência. Questões discutidas
sobre a verdade. Súmula contra os gentios. São Paulo: Editora Nova Cultura, 2004. MONDIN, Battista.
Dizionario Enciclopedico del pensiero di San Tommaso D’Aquino. Edizioni Studio Domenicano: Bologna –
Italia, 1991).
31
severamente à tradição metafísica, cuja compreensão do movimento e da identidade do ser é
conseqüência de uma noção ontológica, onde a essência delimita a própria formação deste ser.
É, portanto, no interior de uma teoria que faz do movimento a causa primeira
de todas as determinações dos corpos, mesmo as ditas essenciais, e não no de
uma ontologia que procura na substância a razão de suas determinações, que
se deve entender a noção hobbesiana de essência (LIMONGI, 2009, p. 47).
O movimento é a condição própria da individuação e da identidade do corpo. A
mesma interpretação vale para o conceito de conatus, ou seja, como uma realidade universal e
princípio de identificação e de ação dos corpos. Sendo que o movimento (conatus) é o
princípio identificador e de individuação dos corpos (e não a realidade ontológica), a filosofia
de Hobbes ganha corolários de filosofia do movimento e não mais da ação ou da paixão31
.
A pergunta feita por Maria Isabel Limongi, em sua obra “O homem excêntrico –
Paixões e virtudes em Thomas Hobbes”, é essencialmente pertinente e instigadora para os
leitores mais atentos de Hobbes, ou seja, o conatus é uma paixão ou um movimento da mente
humana? Para compreendermos o significado de paixão ou movimento da mente, devemos
recorrer ao conceito de conatus postulado por Hobbes, segundo o qual, conatus é:
Esse movimento, que consiste de prazer ou de dor, é também uma
solicitação ou provocação, seja para se aproximar da coisa que deseja, ou
para afastar-se da coisa que lhe desagrada. E esta solicitação é o esforço
(endeavour) ou impulso interior (internal beginning)32
do movimento
animal, que é chamado apetite (appetite) quando o objeto deleita, e é
chamado aversão (aversion) acerca do desprazer presente. Mas com respeito
ao desprazer expectado, chama-se medo (fear). Portanto, prazer (pleasure),
amor (Love) e apetite, o qual também se chama desejo (desire), são diversos
nomes para diversas considerações da mesma coisa (ELEMENTOS, I, VII,
p. 48).
Ao utilizar pela primeira vez o termo conatus, em 1640, nos “Elementos da Lei”,
provavelmente Thomas Hobbes não tinha consciência da amplitude semântica que mais tarde
despertaria tal termo. Quiçá, três anos fossem necessários para o estabelecimento
epistemológico do termo conatus se alicerçar e ganhar reconhecimento, pois “certamente a
partir de 1643, com o Anti-White, pode-se dizer que Hobbes tem consciência de que, ao falar
em conatus, ele está empregando um conceito cujo sentido deve ser relativamente uniforme
em suas diversas ocorrências” (LIMONGI, 2009, p. 49). A uniformidade que o termo conatus
comporta e que estamos defendendo é aquele que pode ser tomado por movimento também,
sem perder e nem tirar elemento algum. Dessa maneira, tornando o conatus um termo
hobbesiano, entendemos que ele seja “o princípio ou o início do movimento” (LIMONGI,
31
Cf. LIMONGI, 2009, p. 48. 32
O conatus segundo Hobbes. (NT)
32
2009, p. 51) ou, ainda, o conatus “é uma parte do movimento, e ‘toda parte do movimento é
movimento (unde sequitur conatum omnem esse motum)’”33
. O conatus é, portanto, “o
substituto da noção de inclinação, entendida como um princípio ou uma determinação do
movimento que lhe é distinta, isto é, que não é ela mesma movimento” (LIMONGI, 2009, p.
51). O conatus é um movimento cuja presença nas partes de um corpo serve para explicar o
seu início bem como as suas determinações.
Para Hobbes, o movimento carrega uma distinção entre o ser movido e o movimento
em si. Ou seja, aquilo que chamamos de inclinação a determinado objeto a ser conquistado,
isso atende pela conotação de ser movido. Por outro lado, a ação própria de busca e conquista
do objeto, que a tendência mostra ser bom, é o próprio movimento. Segundo Limongi, “toda
determinação do movimento, incluindo sua direção, é uma determinação do próprio
movimento” (2009, p. 50). Não existe nenhum causa diferente ao movimento que determine a
sua própria ação. A direção do movimento é ocasionada pelo próprio movimento, eliminando,
assim, qualquer causa intrínseca ao corpo que vise condicioná-lo.
O movimento de um corpo é composto de uma série de conatus, que permanece no
corpo movido até que um conatus contrário se oponha àquele. O conatus depende da
incidência do movimento de outros corpos sobre ele, pois não encontra sua origem no corpo
mesmo. O conatus serve para explicar o início dos movimentos voluntários e, portanto, a
conversão do movimento em ação. O apetite é o conatus do qual se origina a ação voluntária.
Os objetos sensíveis são causa de apetite e de fuga. Dessa maneira, compreendemos que nem
o apetite e nem a fuga originam o movimento no corpo, mas sim o objeto sensível externo ao
corpo, que é o causador da sensação, bem como da aproximação e do afastamento de um
corpo em relação a outro corpo. Assim sendo:
Ao insistir na tese de que a vontade não é livre posto ter sempre uma causa
determinante, Hobbes quer dizer que ela é sempre determinada a partir das
circunstâncias ou do modo como os objetos externos afetam nossa
imaginação. Neste sentido, a vontade não se distingue do apetite ou das
paixões (LIMONGI, 2009, p. 27).
O apetite e a aversão são nomes distintos, porém, designam a mesma coisa, a saber, a
ação no corpo. Esta ação pode ser tanto de prazer (apetite) como de desprazer (aversão). “As
palavras apetite e aversão vêm do latim, e ambas designam movimentos, um de aproximação
e o outro de afastamento” (LEVIATÃ, I, VI, p. 32). A tendência do corpo é buscar aquilo que
lhe dá prazer e fugir daquilo que lhe dá desprazer, dado que tanto as atitudes de prazer e de
33
Esta citação de Thomas Hobbes, feita por Maria Isabel Limongi, encontra-se na obra: “Crítica do De mundo
de Thomas White”, (XIII, 2).
33
desprazer estão diretamente ligadas ao movimento vital. Diante disso, poderíamos nos
perguntar: de onde provém a tendência a procurar o que favorece o movimento vital e a se
afastar daquilo que desfavorece? Para Limongi, “não há dúvida de que o movimento vital
desempenha um papel de mediação dos corpos exteriores e a ação voluntária” (2009, p. 55).
Contudo, o que é mesmo o movimento vital? Para responder a esta importante interrogação,
continua Limongi acerca da definição dada por Hobbes no “De Corpore”, o qual apresenta a
seguinte definição para movimento vital: “o movimento do sangue perpetuamente circulando
nas veias e artérias” (2009, p. 55). No “Leviatã”, encontramos uma definição diversa para
movimento vital, entretanto, herdeira de uma postura símile. “Há nos animais dois tipos de
movimento que lhe são peculiares. Um deles chama-se vital; começa com a geração, e
continua sem interrupção durante toda a vida. Deste tipo são a circulação do sangue, o pulso,
a respiração, a digestão, a nutrição, a excreção, etc”. (LEVIATÃ, I, VI, p. 32). O movimento
vital é o primeiro dos movimentos apresentados por Hobbes, o segundo é o animal.
O movimento vital se torna um princípio de ação se estabelecer uma relação de meios
e de fins entre o movimento vital propriamente dito e o movimento animal. Por movimentos
animais ou movimentos voluntários, Hobbes entende o ato de “andar, falar, mover qualquer
dos membros, da maneira como anteriormente foi imaginado pela mente” (LEVIATÃ, I, VI,
p. 32). Desta maneira, o movimento vital não é uma expressão da estrutura interna do corpo e
nem um princípio de ação, mas é a soma do movimento vital e animal que gera a
subordinação de nossas ações para a preservação das características biológicas fundamentais.
Ou seja, um movimento existe apenas para salvaguardar outro movimento e assim manter o
corpo vivo, em movimento vital.
Enquanto o movimento animal é o princípio das ações voluntárias, o movimento vital
carrega em seu bojo a função biológica. O que distingue um movimento do outro é a
imaginação. Para o movimento vital a imaginação não é necessária, ao passo que, a
“imaginação é a primeira origem interna de todos os movimentos voluntários” (LEVIATÃ, I,
VI, p. 32). Assim sendo, a “imaginação é o ponto de interseção entre o movimento animal e o
movimento vital” (LIMONGI, 2009, p. 57). Em suma, a imaginação é o conteúdo mesmo de
nossas tendências, nos esforçamos em buscar ou nos afastar aquilo ou daquilo que está
predisposto em nossa mente, porém, despertado pelo objeto externo.
A esta altura parece ser coerente a seguinte interpelação: a imaginação é igual ao
conatus? Como ambos podem se configurar em princípio interno dos movimentos
voluntários? Na tentativa de responder a esta questão, percebemos que Thomas Hobbes passa
34
da linguagem física34
– a paixão como um conatus – para a linguagem psicológica – a paixão
como um conceito ou um modo de pensar o valor dos objetos35
. Mais do que isso:
A imaginação é o princípio dos movimentos voluntários, se ela é o seu
conatus, é precisamente porque, do ponto de vista da geração dos
movimentos, a imaginação – que, como vimos, é afetiva, isto é, seus
conteúdos envolvem sensação de prazer e desprazer – é o ponto de
interseção entre o movimento animal e o movimento vital: é através dela ou
por ela que o primeiro se articula ao segundo. Pois este último não é senão o
que permite explicar fisiologicamente aquilo que já é parte do conteúdo da
imaginação, ou, mais precisamente, das sensações de prazer e desprazer
(LIMONGI, 2009, p. 57).
Movimentos e aparências consistem em uma e mesma realidade, de forma que os
primeiros não são senão aquilo que supomos existir no momento que tentamos explicar as
realidades sensíveis (aparências). Para Hobbes:
Este movimento a que se chama apetite, notadamente em sua manifestação
como deleite e prazer, parece constituir uma corroboração do movimento
vital, e uma ajuda prestada a este. Portanto as coisas que provocam deleite
eram, como toda propriedade, chamada jucunda (à juvando), porque
ajudavam e fortaleciam; e eram chamadas molesta, ofensivas, as que
impediam e perturbavam o movimento vital (LEVIATÃ, I, VI, p. 34).
O conceito de conatus permite Hobbes resolver o problema do início do movimento
voluntário sem buscar compreensão no conceito de inclinação (esquema proposto pela
Tradição). Cada paixão é um conatus e ao mesmo tempo um pensamento ou conceito que
exprime um determinado valor. Cada fantasma equivale a um objeto sensível. A ação pode ser
de composição ou decomposição. Nem todo conatus é perceptível. A percepção depende da
predominância de um conatus sobre outros. Portanto, a imaginação e a consciência formam o
princípio interno de todos os movimentos voluntários. O simples ato de andar para frente,
bem como a ação de comer foram previamente deliberados pelo sujeito agente.
Poderíamos questionar o sistema filosófico de Thomas Hobbes, a partir do qual o
movimento ganha lugar de destaque e iniciador de todos os outros movimentos, afirmando
que nem todos os corpos humanos imaginam conscientemente a sua posterior ação. Nem
todos os homens calculam suas atitudes, muitos agem sem o mínimo de reflexão. Esta
interpelação pode ser verdadeira, ainda mais quando o sujeito da ação for uma criança,
contudo, o sistema filosófico de Hobbes não é destruído. Mesmo que uma criança não
delibere sobre suas ações em uma primeira tentativa, provavelmente, na segunda vez que esta
ação for acontecer, a criança deliberará. Tal realidade se tornará verídica se a conseqüência da
34
Por linguagem física podemos dizer que são os movimentos que se encontram em nós. 35
Por linguagem psicológica enfatizamos que são as aparências ou a consciência que temos deles.
35
ação da criança for danosa para ela. “Isto é, uma ação é não liberada apenas na medida em
que ainda não foi feita a experiência que permite contrapor à primeira avaliação do objeto
uma outra avaliação” (LIMONGI, 2009, p. 69).
A dinâmica do conatus corresponde a um conteúdo atual da consciência, pela qual
toda ação se forma e se justifica. É preciso que o agente tenha consciência dos motivos e dos
resultados de ação, mesmo onde sua deliberação for mínima. Para Hobbes, a razão deixa de
ser o elemento primordial para identificar o homem, e passa a assumir a simples compreensão
de instrumento de deliberação: apetite (quando a ação for favorável ao movimento vital) e
aversão (quando a ação for desfavorável ao movimento vital). Diante disso, fica esclarecido
que o movimento ou o conatus é o princípio interno que desencadeia outra série de
movimentos em outros corpos distintos e externos.
1.3 A PRIMEIRA LEI DE NATUREZA COMO DECORRÊNCIA DO MOVIMENTO
VITAL DO HOMEM
As leis de natureza são decorrentes do bom uso da razão humana36
. Além do mais, “as
leis de natureza obrigam in foro interno, quer dizer, impõem o desejo de que sejam
cumpridas; mas in foro externo, isto é, impondo um desejo de pô-las em prática, nem sempre
obrigam” (LEVIATÃ, I, XV, p. 94). O homem, quando preocupado em manter o seu
movimento vital, age da melhor maneira possível para mantê-lo. As conclusões encontradas
pelo homem para cumprir tal finalidade são comumente conhecidas como leis de natureza.
Nas palavras de nosso autor: “E a razão sugere adequadas normas de paz, em torno das quais
os homens podem chegar a acordo. Essas normas são aquelas a que por outro lado se chama
leis de natureza” (LEVIATÃ, I, XIII, p. 77). Assim, as leis de natureza são sugeridas pela
razão e, a partir delas, os homens podem chegar a um acordo em torno da paz e da
preservação do próprio movimento vital.
Todo corpo está para o movimento e, de alguma forma, em movimento. A origem do
movimento vital do homem, o sangue correndo por suas veias e artérias, está como
conseqüente de outro corpo em movimento e assim sucessivamente até que a paralisação
ocorra. Um homem em movimento perpétuo é livre a buscar o necessário e possível para a
preservação da sua vida, da mesma maneira que todos os outros homens. O afrontamento,
como antecipação ao ataque do outro, em estado natural, é quase que inevitável. Evitando este
caminho e buscando a tranqüilidade e a comodidade de uma vida promissora, a razão humana
36
Cf. LEVIATÃ, I, XV, p. 95.
36
sugere a paz como o fim para suas vidas e ações. Um homem em paz com seus semelhantes
tem maior chance de manter-se vivo (em movimento vital) do que outro homem em constante
conflito. É neste contexto que entendemos a definição de Hobbes para lei de natureza (lex
naturalis): “é um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a
um homem fazer tudo o que possa destruir a sua vida ou privá-lo dos meios necessários para
preservá-la, ou omitir aquilo que pense poder contribuir melhor para preservá-la” (LEVIATÃ,
I, XIV, p. 78).
A afirmação de Hobbes acerca da lei natural, quando desmembrada, possibilita duas
constatações, a saber, de um lado temos uma lei e de outro um direito (que é igual à ação livre
do homem). Hobbes, no Leviatã, alerta que a lei é diferente de direito, embora muitos autores
as confundam37
. Enquanto a lei (lex) determina, obriga o homem a ação, o direito (jus) dá ao
homem a liberdade de escolha. Notamos isso de maneira incisiva na primeira lei de
natureza38
, embora a lei seja efeito do bom uso da razão humana: “todo homem deve esforçar-
se pela paz” (LEVIATÃ, I, XIV, p. 78). Com isso, Hobbes está eliminando a interpretação de
que dentro do estado de natureza exista um valor moral, intrínseco a todo homem, cuja função
humana seria apenas escutá-lo e segui-lo. O que existe, seja no estado de natureza ou no civil,
é o cálculo racional e frio do homem diante dos diversos segmentos que se apresentam a sua
frente e, dentre os muitos males possíveis, a escolha pelo menor é o mais plausível – o mais
racional – para que o movimento permaneça.
A primeira parte, da primeira lei de natureza, ainda não provê ao homem a liberdade
de ação, senão que este deve esforçar-se em procurar a paz e é uma completa contradição não
agir desta maneira, na medida em que a paz facilita a vida do homem. Portanto, a primeira
parte da primeira lei de natureza, que é um efeito da razão humana, mostra a busca pela paz
como a maior de todas as leis39
. A segunda parte da primeira lei de natureza, por sua vez,
“encerra a suma do direito de natureza, isto é, por todos os meios que pudermos, defendermo-
nos a nós mesmos” (LEVIATÃ, I, XIV, p. 78). A segunda parte da primeira lei de natureza
dota o homem de liberdade ilimitada e de possibilidade de angariação de elementos possíveis
37
Cf. LEVIATÃ, I, XIV, p. 78 38
Thomas Hobbes enumerou dezenove leis de natureza que, na verdade, são o resultado de convenções racionais
entre os homens livres. As principais leis são: 1 Todo homem deve se esforçar em buscar a paz; 2 Todo homem
deve renunciar aos direitos do estado natural; 3 Todos os acordos feitos devem ser cumpridos; 4 Os benefícios
devem ser restituídos; 5 Todos devem tender a se adaptar aos outros; 6 Deve-se perdoar aos que mostrem
arrependimento; 7 Deve-se esquecer o mal passado e vislumbrar o bem futuro; 8 Não se deve declarar ódio ou
desprezo com palavras ou gestos; 9 Todo homem deve ser reconhecido como igual; 10 Não se deve exigir do
outro, o que não se deseja a si próprio; 11 Quem exercer o cargo de julgador, deve fazê-lo com eqüidade. Cf.
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de João
Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 3.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. Capítulo XIV e XV. 39
Cf. LEVIATÃ, I, XIV, p. 78.
37
e necessários para o estabelecimento do movimento vital. Posterior a esta dupla constatação
que afirmamos que a lei de natureza não passa de “um preceito ou regra geral da razão”
(LEVIATÃ, I, XIV, p. 78), afirmando, em definitivo, que a lei de natureza é um produto
posterior à ação do homem. O homem não age movido por ela, senão que a partir de sua ação
a constrói, fundamentado no bom uso de sua própria razão. Assim sendo, Hobbes distingue
minuciosamente a lei do direito, justamente para evitar equívocos interpretativos.
O direito natural, a que os autores geralmente chamam de jus naturale, é a
liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que
quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e
consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão
lhe indiquem como meios adequados a esse fim (LEVIATÃ, I, XIV, p. 78).
O direito natural dá ao homem a liberdade de ação a fim de que sua vida seja mantida.
Dizer que a liberdade é direito de ação do homem é a mesma coisa que afirmar que a
liberdade é o poder que o homem tem de escolher tudo aquilo que, por natureza, é seu. Nesta
dimensão, Hobbes qualifica a liberdade como poder que o homem tem de usufruir das coisas
que a natureza providencia.
Por liberdade entende-se, conforme significação própria da palavra, a
ausência de impedimentos externos, impedimentos que muitas vezes tiram
parte do poder que cada um tem de fazer o que quer, mas não podem obstar a
que use o poder que lhe resta, conforme o que seu julgamento e razão lhe
ditam (LEVIATÃ, I, XIV, p. 78).
Nosso autor não vê nesta condição humana nenhuma ação divina ou efeito da essência
mesma do homem, senão que uma ação estritamente mecânica. Neste estado o homem disputa
todas as coisas por direito natural e absoluto, o próprio homem é senhor de sua vida. O
homem tem direito e poder (liberdade) sobre todas as coisas. Ele não deve submissão a
ninguém, a não ser à própria consciência de que deve buscar a paz e manter a sua vida, de
maneira que o direito de natureza é a liberdade de cada um para usar todo o seu poder, da
maneira que quiser e puder, para preservar a sua natureza e satisfazer os seus desejos, a fim de
que o seu movimento vital seja mantido.
A lei de natureza é uma regra geral, ditada pela razão, que instrui a cada homem a
preservar a sua própria vida e, em todas as instâncias, o proíbe de destruí-la. A única
finalidade da existência humana é a sua autopreservação, fugir aos possíveis entraves ao tão
almejado movimento vital. O movimento vital só terá efetividade se o conteúdo da primeira
lei de natureza for mantido, ou seja, todo homem deve esforçar-se para que a paz exista e seja
sustentada, desde que haja expectativas reais de consegui-la. Caso contrário, se não houver
condições reais de conquistar a paz, os homens estão livres para entrar em situação de guerra,
38
de sorte que a guerra é justificável pela observação de seu fim, a saber, manter-se em
movimento vital, embora na guerra exista maior probabilidade de paralisação do movimento
vital. Entretanto, o homem não pode desistir da sua vida.
O movimento, como já apresentamos, é o grande legado da ciência moderna ao
pensamento político de Hobbes. Fiel ao seu tempo e às inovações científicas que emergiam,
Hobbes aproveitou a nova concepção de ciência, com base matemática, para a provável
compreensão do homem e do Estado Civil. Enfim, saber o que motiva o homem a agir desta
maneira específica. Hobbes, amparando-se nos moldes da nova ciência natural, afirmou o
mundo físico como o mundo dos corpos em movimento e o descreve como uma máquina.
“Hobbes, portanto, investiga as paixões humanas à luz do alicerce de sua concepção da
natureza humana, o princípio do benefício próprio, que formula como uma aplicação
particular de sua filosofia mecanicista em geral” (FRATESCHI, 2008, p. 82). O mundo que
Hobbes está inserido é o mundo das novas descobertas científicas, cuja prevalência do
benefício próprio é uma condição normatizante das ações humanas. Ora, se a vida é
movimento e a única função do homem é manter o movimento vital, segue-se, logicamente,
que os homens buscam de forma desordenada e compulsiva a manutenção da própria vida. A
efervescência de novas idéias é abundante e profícua, o que configura uma época de um
decisivo enriquecimento do conhecimento científico. Por todas as partes do mundo surgem
descobertas científicas que vão destronando a noção tradicional, de cunho aristotélico, de
ciência e de universo. A ciência está buscando o novo, pensando criticamente e livremente,
avançando decididamente em linha reta, sem lugar para retrocessos e anacronismos.
Estas descobertas foram possíveis, em grande escala, por causa do novo método
utilizado: o método matemático e mecânico40
. O mecanicismo de Hobbes se estendeu também
ao homem e ao Estado, que como máquinas perfeitas podem ter seus movimentos conhecidos
40
“Hobbes, como também Descartes, quer reduzir toda sua pesquisa ao uso do método matemático. Persegue a
generalização ilimitada da explicação matemática, isto é, mediante movimentos locais. Ambos os filósofos,
Hobbes e Descartes, querem aplicar os métodos da nova ciência ao estudo do próprio homem: Descartes, no que
se refere à Fisiologia e à Medicina; Hobbes quer aplicar o novo método à Psicologia, Ética e Política. Hobbes
fica perplexo com o progresso da Física. Esse progresso dá-se de modo especial pelo método matemático usado
nas suas pesquisas. O objetivo de Hobbes é estender este mesmo método infalível às questões morais. A
matemática, por seu conteúdo e forma, mantém relações profundas com as investigações dos filósofos modernos.
Através da matemática esses orientam o pensamento para o estudo da natureza da sensação, para a psicologia. O
uso da matemática nas investigações também se deve a sua forma: o método ideal. Traçar figuras, medir,
calcular, conduz sempre a um resultado certo e preciso. Galileu, rechaçando a idéia dos escolásticos,
fundamentando o método matemático na filosofia, afirma que a filosofia está escrita em um grande livro aberto a
nossos olhos: o universo. E para lê-lo é preciso entender a linguagem em que está escrito, sendo a sua escrita em
linguagem matemática. Seus signos são triângulos, círculos e outras formas geométricas. Hobbes imagina um
sistema de rigor total, inteiramente fechado, que explica tudo a partir do movimento: o mundo psicológico, o
mundo moral, o mundo político como o físico. A ciência óptica, por sua vez, o conduz para o estudo da natureza
da percepção. O método, para natureza do pensamento. Ambos para uma relação profunda entre conhecimento e
realidade” (WOLLMANN, 1993, p. 19-20).
39
e controlados pela ciência que faz deles o seu objeto de estudo. O Estado Civil é descrito
como um homem artificial que imita o homem natural, a mecânica do homem é delineada de
forma análoga a um relógio, que nada mais é do que a projeção da ciência nascente. Desse
modo, “a teoria política é apresentada por nosso autor como a parte de um sistema geral de
filosofia, de orientação mecanicista, que tenta explicar a partir de princípios científicos todos
os feitos naturais, incluindo entre eles a conduta humana individual e coletiva” (COSTA,
1997, p. 33).
Para Hobbes, o movimento é apenas mudança de lugar, os homens simplesmente se
movem, não na direção da atualização de suas potencialidades inerentes (como preconizou
Aristóteles), mas na direção dos benefícios almejados, exclusivamente por efeito de causas
eficientes. “Naturalmente, não se trata do movimento concebido aristotelicamente, mas sim
do movimento quantitativamente determinado, ou seja, medido matemática e
geometricamente (o movimento galileano)”. (REALE, 2005, p. 493). O movimento já não é
atualização do que está em potencialidade, senão que é puro e simplesmente mudança de
lugar. Pensar em movimento em Hobbes é pensar em mudança de lugar. Ocupação de
determinado espaço físico. O corpo deixa este espaço e passa para aquele outro. Essa ação de
sair daqui e ir ali é a liberdade, quando na ausência de impedimento. O movimento é a
liberdade que o corpo tem de se deslocar, mudar de lugar, ocupar outro espaço físico. Quem é
livre, é o corpo e não a vontade do corpo.
O homem é livre para agir no sentido daquilo que pode lhe trazer mais prazer e
benefício e contra aquilo que lhe traz menos prazer e benefício. O homem calcula justamente
o que lhe é mais útil e aquilo que lhe é menos útil – obviamente que sempre tende a se mover
no sentido daquilo que lhe é mais conveniente. O cálculo feito pelo homem hobbesiano é
extremamente utilitarista e sempre em benefício próprio. Com base nos atributos
matemáticos, a saber, o que é mais e o que é menos útil para a preservação do movimento
vital, o homem segue livremente. A ação livre (movimento) de um corpo só se altera pela
ação de outro corpo, pois “quando uma coisa está imóvel, permanecerá imóvel para sempre, a
menos que algo a agite. Mas não é fácil aceitar esta outra, que quando uma coisa está em
movimento, permanecerá eternamente em movimento, a menos que algo a pare” (LEVIATÃ,
I, II, p. 11). Assim, a natureza teleológica é substituída pela natureza mecânica que dá
dinamismo e movimento aos diversos corpos existentes dentro do espaço e do tempo.
O movimento de um corpo, do ponto de vista da mecânica, é causado por outro corpo
exterior a ele. Uma vez iniciado o movimento, o corpo em movimento só encontrará seu fim
40
se algo o fizer parar. Caso contrário, esse movimento continuará permanentemente. Nas
palavras de Hobbes, isso acontece da seguinte maneira:
Quando um corpo está em movimento, move-se eternamente (a menos que
algo o impeça), e seja o que for que o faça, não o pode extinguir totalmente
num só instante, mas apenas com o tempo e gradualmente, como vemos que
acontece com a água, pois, muito embora o vento deixe de soprar, as ondas
continuam a rolar durante muito tempo ainda. O mesmo acontece naquele
movimento que se observa nas partes internas do homem, quando ele vê,
sonha, etc., pois após a desaparição do objeto, ou quando os olhos estão
fechados, conservamos ainda a imagem da coisa vista, embora mais obscura
do que a vemos” (LEVIATÃ, I, II, p. 11).
O que gera o movimento em um determinado corpo é o movimento de outro corpo
externo àquele, da mesma maneira, a ruptura do movimento de um corpo só encontrará seu
fim caso outro corpo se coloque como obstáculo. Disso se deriva que o movimento de um
corpo é explicado tão e somente pela causa eficiente (aquele que gerou o movimento) e a
estagnação de algo exterior a si. Ora, se o movimento não termina com a atualização do que
está em potência no corpo, mas sim com a ação de algo externo a este corpo, disso se conclui
que a característica básica do movimento é a persistência, a continuação. “Assim, Hobbes
adere decididamente ao novo modelo cosmológico inercial que substitui o modelo teleológico
tradicional, de origem aristotélica” (FRATESCHI, 2008, p. 65). Aplicando este novo molde
científico ao corpo humano, notamos que enquanto houver vida haverá movimento (o
contrário também é válido). O movimento vai durar porque se configura na ordem calculada e
apresentada pela primeira lei de natureza, isto é, os homens estarão continuamente em busca
da paz e da vida prazerosa. O cálculo41
constitui o cerne desse pensamento, pois:
Quando alguém raciocina, nada mais faz do que conceber uma soma total, a
partir da adição de parcelas, ou conceber um resto a partir da subtração de
uma por outra; [...]. Os escritores de política adicionam em conjunto pactos
para descobrir os deveres dos homens, e os juristas leis e fatos para descobrir
o que é certo ou errado nas ações dos homens privados. Em suma, seja em
que matéria for que houver lugar para a adição e para a subtração, há
também lugar para a razão, e onde aquelas não tiverem o seu lugar, também
a razão nada tem a fazer (LEVIATÃ, I, V, p. 27).
41
Galileu cuidou de tornar os elementos da natureza suscetíveis da análise matemática, colocando-a sob os
critérios de um novo método científico. Da mesma maneira, e, à sua maneira, Hobbes também se ocupou de tal
tarefa. O saber é analítico e tem por objetivo fundamental a ordenação das idéias, pensamentos e representações.
Por ele, surge uma infinidade de possibilidades. A ordem, a conexão, a articulação e a cadeia de pensamentos
obrigam a obediência à relação causa/efeito, antecedente/consequente de sorte que o conhecimento adquirido
pode ser submetido a apreciações pela análise, decomposição e recomposição. Caso a cadeia de raciocínio seja
articulada corretamente, a hipótese para pensamento errôneo torna-se remota. Dessa maneira Hobbes assumiu
que a razão é sinônima do cálculo no sentido da adição e subtração de nomes gerais criados para marcar,
significar e representar os pensamentos humanos.
41
Para Hobbes, o isolamento entre sujeito/objeto é possível porque existem dois
elementos principais em análise: movimento e matéria. Nem mesmo a vida moral escapa
desses dois elementos. Sensações como ódio, prazer, desejos não são mais que indícios dos
movimentos de inclinação e repulsão. Eis uma concepção que entende os corpos humanos
como máquinas sofisticadas com funções e atividades que podem ser descritas em termos
mecanicistas.42
Consoante a Hobbes, o corpo humano é uma instância de operações físicas, que recebe
impulsos exteriores que têm por objetivo desencadear a luta pela vida e o desejo de uma vida
prazerosa e pacífica. Existe no homem uma faculdade motriz interna que produz movimentos
externos e uma faculdade motriz do espírito que produz movimentos internos. Estes
movimentos internos e externos explicam o que Hobbes denominou de conatus43
, esforço
(endeavour) ou movimento direcionado rumo àquilo que o provoca, que não é outra coisa
senão o desejo ou apetite. O conatus leva consigo toda a capacidade passional do homem e
produz o esforço para alcançar o objeto desejado, caracterizando-se como responsável por
provocar uma cadeia de desejos. Essa cadeia de desejos aos quais os corpos humanos
encontram-se naturalmente submetidos demonstra a insatisfação e a insaciabilidade constante
à qual os homens estão submetidos e define a vida humana como um movimento infinito.
Os movimentos de busca pela preservação da vida e fuga da morte originados no
conatus dão sentido à compreensão da condição humana pelo princípio mecanicista. Isso
porque a vida é movimento, estar vivo é estar em movimento (vital) e “não existe uma
perpétua tranquilidade de espírito enquanto aqui vivemos, porque a própria vida não passa de
movimento, e jamais pode deixar de haver desejo, ou modo, tal como não pode deixar de
haver sensação” (FRATESCHI, 2008, p. 78). Todo o universo, inclusive o homem e a sua
vida em sociedade estão interconectados por um sistema mecânico; nada escapa a esta
articulação do movimento. O corpo humano funciona a partir de movimentos regulares como
peças interdependentes em relação ao todo.44
42
“O comportamento humano pode ser compreendido por meio da aplicação do mesmo modelo utilizado pra
compreender o comportamento dos corpos naturais em geral, isto é, por meio da teoria do movimento inercial –
a peculiaridade do homem residindo na posse da razão, ou seja, na capacidade de cálculo e previsão de eventos
futuros” (FRATESCHI, 2008, p. 70). 43
“O CONATUS (esforço) quando se dirige ou aponta para algo que é suposto como incremento das condições
de manutenção do movimento vital, é designado por Hobbes como apetite ou desejo. O oposto disso – quando o
conatus tende a se afastar do objeto – é denominado aversão” (FRATESCHI, 2008, p. 32). 44
“O princípio de inércia postula que, independentemente da natureza dos corpos, estes se movem do mesmo
modo segundo algo que não lhes é inerente nem lhes pertence como qualidade, mas que neles atua como força”
(BERNARDES, 2002, p. 13).
42
Os desejos estão divididos entre aqueles que são inatos (ligados às necessidades
biológicas, independente da presença ou não do objeto desejado) e aqueles que advêm da
experiência em relação ao objeto desejado. Neste último caso, apresenta-se um acréscimo em
sua quantidade na proporção que aumenta a experiência com os objetos. Grande parte dos
desejos está ligada ao armazenamento de imagens pela memória que, por sua vez, é dada pela
experiência diversificada que o homem possui dos diversos objetos e pelas diferenças
oriundas do espaço e do tempo a que estão sujeitos os homens.
Neste cenário, a cadeia que liga sensação, conhecimento, imaginação e desejos fixa
uma nova relação entre sujeito e objeto, segundo a qual o objeto recebe as qualidades do
sujeito, que lhe impõe em conformidade com sua própria constituição fisiológica. Desse
modo, as qualidades que se percebem nos objetos, por meio dos sentidos, estão nos sujeitos e
não nos próprios objetos, ou seja, sujeito e objeto existem isoladamente e as qualidades dadas
ao objeto são, de forma efetiva, a maneira de sentir do sujeito. Tudo isso decorre pela pressão
dos objetos nos órgãos dos sentidos que ativam os nervos e o cérebro, causando
representações e aparências que não são senão ilusões causadas pelo movimento da matéria
no sujeito.
Os novos parâmetros da ciência nascente são absorvidos por Thomas Hobbes e
projetados na sua maneira de fazer filosofia e política. O homem não é mais visto como uma
criatura de Deus, com finalidade teleológica específica e sim como uma máquina ordenada,
cuja única pretensão é a permanência do movimento vital. Para que o homem consiga manter
seu movimento vital e alcançar o fim almejado pela primeira lei de natureza – a paz – é de
extrema necessidade a inexistência de obstáculos externos aos corpos, configurando assim, a
verdadeira e ilimitada liberdade humana. A natureza ampara e subsidia o homem, na sua luta
cotidiana, em busca da conservação do movimento vital. É diante desta realidade que
podemos afirmar que o homem hobbesiano é totalmente livre para procurar, de uma maneira
ou de outra, a defesa e a permanência do seu próprio movimento em paz.
1.4 A LEI BÁSICA DA VIDA HUMANA É O MOVIMENTO
Na introdução ao Leviatã, Thomas Hobbes enfatiza que “a vida não é mais do que um
movimento dos membros, cujo início ocorre em alguma parte principal interna” (1983, p. 05).
Esta maneira de Hobbes entender a vida não assinala apenas para os corpos providos de razão,
senão que para todo corpo que se movimenta. Frisamos, ainda, que todo corpo que se
movimenta não está na mesma ordem conceitual de todo corpo que está em movimento.
43
Existem corpos que se movimentam e corpos que estão em movimento, de maneira que o
corpo que se movimenta é autônomo em sua ação, se move porque sente vontade e
necessidade de assim agir. Ao passo que, o corpo que está em movimento, se não iniciou o
movimento por sua própria capacidade, isto é indício de que algum outro corpo agiu sobre ele.
Há nos animais dois tipos de movimento que lhe são peculiares. Um deles
chama-se vital; começa com a geração, e continua sem interrupção durante
toda vida. Deste tipo a circulação do sangue, o pulso, a respiração, a
digestão, a nutrição, a excreção, etc. Para estes movimentos não é
necessário a ajuda da imaginação. O outro tipo é o dos movimentos animais
voluntários, como andar, falar, mover qualquer dos membros, da maneira
como anteriormente foi imaginado pela mente (LEVIATÃ, I, VI, p. 32).
A lei básica da vida humana é o movimento que posteriormente é dividido em dois
tipos presentes nos corpos vivos. Estes movimentos permanecem e são perceptíveis desde o
início até o fim do ciclo vital dos seres. Enquanto o primeiro – o vital – é o mais evidente,
pois enquanto a vida do corpo durar, seu coração vai pulsar, o seu sangue vai circular, o
segundo, também chamado de movimento animal, é menos notado, provavelmente, pois tem
origem na imaginação. Para saber que um ser está vivo, não precisamos abrir o seu peito e ver
o seu coração pulsar ou, então, enxergar o seu sangue correr por suas veias e artérias. Nada
disso é necessário. Basta que verifiquemos os efeitos de tais ações. Não é necessário que o
movimento seja visível para que constatemos a sua existência e ação, pois “embora os homens
sem instrução não concebam que haja movimento quando a coisa movida é invisível, ou
quando o espaço onde ela é movida (devido a sua pequenez) é insensível, não obstante estes
movimentos existem” (LEVIATÃ, I, VI, p. 32).
O movimento vital é a forma de movimento mais perceptível pelo homem porque
dispensa qualquer condição demonstrativa. Seja o corpo vivo que for, a manifestação vital
sempre será a mesma; a saber, a soma dos órgãos internos que colocam o corpo em
movimento. Neste caso, nem mesmo a imaginação é útil para a ratificação da veracidade do
movimento. Um homem em estado vegetativo está com suas partes internas em movimento,
as partes externas, por sua vez, com movimentos fragilizados. Nós não estamos vendo o
movimento interno do homem, dado que a sua externalidade representa imobilidade. Contudo,
não podemos negar que neste homem exista movimento vital, embora limitado.
O movimento animal, assim como o movimento vital, é comum a todo corpo vivente.
Enquanto o movimento vital exclui a ajuda da imaginação, a imaginação torna-se elemento
imprescindível no movimento animal, de sorte que, qual o princípio interno da fala senão a
imaginação daquilo que queremos tornar vocalmente conhecido aos outros? Qual o princípio
interno do ato de andar senão a própria imaginação de como e aonde queremos chegar com a
44
nossa ação de andar? Qual o princípio interno do movimentar membros de nosso corpo senão
a própria imaginação anterior de como fazê-lo? A imaginação é comparada por Hobbes como
um resquício da visão, pois uma vez que vejo o pôr do sol, não preciso todos os dias vê-lo
novamente para saber da sua existência. Até podemos perder a visão e saber como o pôr do
sol acontece, basta imaginá-lo. Quando um corpo está em movimento, a sua tendência natural
é a preservação deste movimento pela eternidade. Se por ventura algum outro corpo vir a
obstruir o movimento deste corpo, a paralisação não será súbita, mas paulatina.
O mesmo acontece naquele movimento que se observa nas partes internas do
homem, quando ele vê, sonha, etc., pois após a desaparição do objeto, ou
quando os olhos estão fechados, conservamos ainda a imagem da coisa vista,
embora mais obscura do que quando a vemos. E é isto que os latinos
chamam imaginação [...]. A imaginação nada mais é portanto senão uma
sensação diminuída, e encontra-se nos homens, tal como em muitos outros
seres vivos, quer estejam adormecidos, quer estejam despertos (LEVIATÃ,
I, II, p. 11).
Por esta razão, o filósofo de Malmesbury é categórico ao afirmar que “e dado que
andar, falar e outros movimentos voluntários dependem sempre de um pensamento anterior
de como, onde e o que, é evidente que a imaginação é a primeira origem interna de todos os
movimentos voluntários” (LEVIATÃ, I, X, p. 53). Estes movimentos também são
conhecidos, além de animais, de voluntários, justamente porque dependem da vontade e do
esforço do homem. “Estes pequenos inícios do movimento, no interior do corpo do homem,
antes de se manifestarem no andar, na fala, na luta e outras ações visíveis, chamam-se
geralmente esforço” (LEVIATÃ, I, VI, p. 32).
O conatus, ou seja, o esforço ou empenho do homem para alcançar ou para se afastar
de determinado fim é o ponto de partida da ação humana e, posteriormente, da ação moral e
política. Podemos afirmar que o conatus é o esforço ou empenho do homem para se
aproximar daquilo que lhe agrada e é necessário para a sua vida ou, então, para se afastar
daqueles elementos que não são apreciados e úteis para o homem. A aproximação ou o
afastamento do homem em relação a qualquer objeto vai depender de seu grau de interesse no
cultivo do movimento vital. Se o objeto desejado é profícuo para a continuação do movimento
vital, o homem vai se esforçar, se empenhar para obtê-lo. Do contrário, se o objeto não for
idôneo de ajudar na preservação do movimento vital do homem, o esforço, o empenho será de
regressão, de afastamento do objeto em questão.
A partir deste movimento inicial, de empenho e de afastamento, Hobbes afirma que
toda ação humana é radicalmente determinada. Observemos o exemplo seguinte:
45
A causa da sensação é o corpo exterior, ou objeto, que pressiona o órgão
próprio de cada sentido, ou de forma imediata, como na vista, no ouvido, e
no cheiro; a qual pressão, pela mediação dos mesmos, e outras cordas e
membranas do corpo, prolongada para dentro em direção ao cérebro e
coração, causa ali uma resistência, ou contrapressão, ou esforço do coração,
para se transmitir; cujo esforço, porque para fora, parece ser de algum modo
exterior (LEVIATÃ, I, I, p. 09).
Nesta mesma ótica interpretativa, em que o movimento inicial gera toda uma corrente
de conseqüências, não estranhamos que a felicidade, para Hobbes, se resuma ao ato do
homem alcançar o objeto desejado. Assim, a conquista do objeto desejado “é aquele a que
cada um chama bom; ao objeto de seu ódio e aversão chama mau, e ao de seu desprezo chama
vil e indigno. Pois as palavras ‘bom’, ‘mau’ e ‘desprezível’ são sempre usadas em relação à
pessoa que as usa” (LEVIATÃ, I, VI, p. 33).
Para o autor do Leviatã, a vida é compatível a uma corrida, cuja única pretensão é a
vitória. Não existe espaço para perdedores. É preciso vencer sempre. Após o esforço inicial, o
conatus, o homem deve fazer tudo que puder e tiver vontade para não ser ultrapassado, pois a
ultrapassagem é igual à miséria. Estar em constante ultrapassagem é vencer. Abandonar a
corrida é sinônimo de fim de movimento, é morrer. Quando um corpo está em movimento, a
sua tendência natural é a preservação deste movimento pela eternidade, ao menos que algo o
interrompa. Para Hobbes, a mesma realidade de movimento permanente é notada no
movimento que acontece nas partes internas dos corpos humanos, quando, na mente humana a
imagem da coisa ainda permanece, embora na ausência do objeto, a figura imaginada do
objeto está em movimento contínuo, embora mais obscura do que quando o homem a viu.
Portanto, “a imaginação nada mais é do que uma sensação diminuída, e encontra-se nos
homens, tal como em muitos outros corpos vivos, quer estejam adormecidos, quer estejam
despertos” (LEVIATÃ, I, II, p. 11). É na sequência desta dimensão de movimento que
começamos a compreender a natureza humana para o filósofo de Malmesbury, pois ela é
focada a partir de dois postulados.
O primeiro postulado afirma que a cobiça é característica inerente à natureza humana,
por meio desta, cada homem deseja fazer somente de sua propriedade tudo aquilo que é
comum a todos. O segundo postulado aponta para a razão natural, consoante a qual todo
homem deseja evitar a morte violenta como o maior de todos os males da natureza. Ambas
têm uma única finalidade, a saber, manter o movimento vital. A razão da natureza humana se
concretiza no fato de todo homem lutar, com todas as forças e possibilidades, com extrema
veemência, pela vida como o maior de todos os bens existentes na natureza. Ou seja, o
homem deve fazer todo esforço necessário e possível para manter o movimento vital. Esta é
46
uma realidade que todo corpo humano tem consciência e é justamente por este motivo que a
natureza humana é particular e bélica. Particular porque cada qual busca proteger a sua vida
como a maior de todas as realidades encontradas na natureza. Bélica porque tal atitude é
natural a todos os singulares, tendo como conseqüência a luta de todos contra todos.
Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é
conseqüência: que nada pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de
justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há
lei, e onde não há lei não há injustiça. Na guerra, a força e a fraude são as
duas maiores virtudes cardeais. A justiça e a injustiça não fazem parte das
faculdades do corpo ou do espírito. Se assim fosse, poderiam existir num
homem que estivesse sozinho no mundo, do mesmo modo que seus sentidos
e paixões. São qualidades que pertencem aos homens em sociedade, não na
solidão. Outra conseqüência da mesma condição é que não há propriedade,
nem domínio, nem distinção entre o meu e o teu; só pertence a cada homem
aquilo que é capaz de conseguir, e apenas enquanto for capaz de conservá-lo.
É pois esta miserável condição em que o homem realmente se encontra, por
obra da simples natureza. Embora com uma possibilidade de escapar a ela,
que em parte reside nas paixões, e em parte em sua razão (LEVIATÃ, I,
XIII, p. 77).
Além disso, o primeiro postulado permite apresentar o homem a partir de sua
tendência ao desregramento. O homem não nasce para obedecer a regras e para viver em paz
dentro da comunidade. São as regras externas que determinam ao homem a dinâmica do
cumprimento da lei. Neste estado natural do homem, o “meu” e o “teu” nada mais são do que
formas de exercício de poder, da potência indiscriminada de cada um em relação a todas as
coisas que existem na natureza.
O segundo postulado apregoa que por via deste desregramento natural, o homem
acaba contornando a situação e se regrando. O estabelecimento de regras surge na medida em
que ele raciocina, isto é, calcula o modo como usufruirá ou se apropriará do “meu” em função
do que o outro coloca como “teu”. Agindo desta maneira, o homem tende a resistir ou a ceder
ao ataque violento anunciado pelo outro. Por conseqüência, atuando neste ritmo o movimento
da vida humana está se mantendo e do mesmo modo a liberdade natural. Se por via do cálculo
o homem pressente que vai angariar conquistas para o bem de sua vida, a tendência é de
prosseguir no seu anseio. Ao contrário, se calculando os fatores externos que os circundam, o
homem percebe que não existe chance contra seu adversário, a ação mais racional é a fuga. A
motivação subjetiva torna-se a razão fulcral de estruturação de uma relação político-racional
entre os homens. Como isso é possível se a natureza humana é individualista?
Consoante a Hobbes, o homem não tem em sua natureza a tendência à ação social. Ao
contrário, o homem, seguindo os passos estabelecidos por natureza, e isso é categórico para o
filósofo político de Malmesbury, procura a própria satisfação e o próprio benefício e nunca o
47
do outro. Esta interpretação de Hobbes inverte o sentido apresentado pelos gregos acerca da
polis. Os homens não estão mais para servir a cidade/estado, mas o inverso, a cidade/estado
está para servir aos homens. A coletividade é substituída pela individualidade.
O caráter ficcional do status naturalis hobbesiano reverte em benefício do
indivíduo o clássico primado da polis, isto é, não se trata mais de considerar
os humanos como membros da cidade, mas de ver o que os leva a renunciar
à prevalência natural exercida sobre a coletividade (HECK, 2002, p. 544).
O homem tende a fugir do outro e se isolar em seus próprios anseios, isso porque
todos tendem a manter o movimento vital e, diante da figura externa do outro, que é um
presságio de perigo, o homem inclina-se à solidão e ao isolamento. Essa é a possível resposta
para a prevalência da individualidade sobre a coletividade. Mesmo após a instauração do
Leviatã a prevalência será a da individualidade, pois os homens só aceitam pactuar porque,
por meio do cálculo, percebem mais chances de se manter vivos com a presença das leis do
que na ausência delas. Vale ressaltar, novamente, que a sociedade não é congênita à natureza
do homem, mas ele, visando preservar-se, aproxima-se do outro.
E uma coisa é certa: queremos o que contribui melhor para garantir a
satisfação do desejo, seja ele qual for, e não podemos querer o que leva à
aniquilação do movimento do desejo, por meio do qual certos bens, sejam
eles quais forem, são determinados. A noção de autoconservação não
designa, portanto, um objeto privilegiado do desejo, mas representa o desejo
juridicamente, sejam quais forem os desejos (LIMONGI, 2009, p. 29).
Os homens não se unem porque se amam ou se gostam. Eles apenas se aturam, pois
percebem na relação pacífica com o outro a maior possibilidade de garantia e de satisfação
dos próprios desejos. Portanto, o que segura os homens em uma relação entre si é o medo
mútuo da paralisação do movimento vital (morte). O medo de paralisar a cadeia de desejos
subjetivos e, pior do que isso, o medo de nunca mais usufruir dos prazeres da vida, sejam eles
quais forem. O medo, em Hobbes, parece assumir uma conotação bilateral: ao mesmo tempo
em que condiciona o homem a pactuar com o outro homem e viver em paz, ele também é a
fonte de um encadeamento de conflitos. Contudo, o que os homens buscam, em última
instância, é a permanência do movimento vital. O movimento vital não pode acontecer de
qualquer maneira, pois, se assim fosse, os homens poderiam permanecer em estado natural,
mas como os homens visualizam a vida prazerosa e pacífica, eles aceitam pactuar.
O raciocínio político de Hobbes é: sejam quais forem os bens visados pelos
indivíduos, o Estado é manifestamente a melhor forma de obtê-los na
medida em que aumenta nosso poder de autoconservação, isto é, nosso poder
de desejar e satisfazer nossos desejos, sejam eles quais forem (LIMONGI,
2009, p. 29).
48
Ao contrário da vida regrada que é apresentada pelo Estado civil, existe uma condição
de direito indiscriminado de todos a todas as coisas. Este estado é denominado por Hobbes de
estado natural. Pois:
Em meio aos perigos que a natureza cobiça traz todos os dias para cada um,
não há como condenar ninguém por tomar suas precauções; ao contrário, não
é possível agir de outro modo. Todo indivíduo é levado por uma força da
natureza, não menor do que a que impele a pedra para baixo, a desejar o que
é um bem para si e a evitar o que é um mal, sobretudo o maior de todos os
males naturais, a morte. Não é, portanto, absurdo nem condenável nem
contra a reta razão fazer-se todo esforço para preservar e defender da morte e
dos sofrimentos o próprio corpo e os membros. E o que não é contrário à
razão todos consideram conforme com a justiça e com o direito. A palavra
direito não significa nada mais do que a liberdade que o indivíduo tem para
usar suas capacidades naturais segundo a reta razão. (DE CIVE, I, I, p. 53).
Importante perceber que o direito humano é indiscriminado porque ainda se ignora a
existência da concepção de crime, da mesma maneira que o homem continua alheio ao
significado de certo e errado, legalidade e ilegalidade, moralidade e imoralidade. A concepção
de liberdade concebida por Hobbes no estado natural é compreendida como uma liberdade
selvagem, de sorte que os homens livres se movimentam a mercê dos fundamentos da
política, simplesmente guiados por sua paixão e razão. Hobbes configura o homem como um
corpo provido de liberdade sem limites e de amplitude exorbitante, muito aquém de ser
considerada uma liberdade política, de modo que os homens exercem seu direito natural a
todas as coisas, buscando vorazmente os elementos necessários para a perpetuação do
movimento da vida. Conforme Hobbes: “o primeiro fundamento do direito natural é, portanto,
que todo homem proteja quando possível sua vida e os membros do corpo” (DE CIVE, I, I, p.
53). Todo homem está autorizado a fazer tudo o que for possível e necessário para manter a
sua vida em movimento.
O direito natural é categórico com relação ao homem, ou seja, todo homem tem direito
alienável à sua vida. A vida do homem não entra como cláusula ou condição em nenhum
pacto ou contrato45
, pois ela é o maior de todos os bens do homem. Para Hobbes, “seria inútil,
porém ter direito aos fins sem ter direito aos meios necessários. Assim, já que todos têm o
direito de preservar-se, é lógico que tenha também o direito de usar todos os meios e de
efetuar todas as operações sem as quais não pode preservar-se a si mesmo” (DE CIVE, I, I, p.
54). Isso equivale a dizer que todo homem é protagonista da sua existência e o único
45
“Segurança é o fim que faz os homens se submeterem uns aos outros. Não havendo segurança, compreende-se
que ninguém se submete a ninguém nem renuncia ao direito de defender-se como bem lhe parecer. Mas, ao
contrário, não se compreende que o indivíduo esteja obrigado a prestar algo ou tenha renunciado a seu direito a
todas as coisas antes de serem tomadas providências para sua segurança contra o medo” (DE CIVE, II, VI, p.
103).
49
responsável por manter o movimento da sua vida. Ele faz uso da sua razão e das condições
externas a ele a fim de poder manter-se em movimento livre. Poder usufruir e fazer o que bem
entender com os elementos que a natureza disponibiliza é viver verdadeiramente livre.
Quando os homens pactuam, fazendo o uso da reta razão, eles transferem o direito sobre as
coisas, limitando assim a sua condição de donos dos bens da natureza.
O estado natural é, para Hobbes, um estado pautado na razão humana. A “razão [...]
nada mais é do que cálculo (isto é, adição e subtração) das conseqüências de nomes gerais
estabelecidos para marcar e significar nossos pensamentos” (LEVIATÃ, I, V, p. 27). Longe
de afirmar uma soberania da razão como sistema político dominante, senão que um estado
guiado e normatizado pelos preceitos da razão subjetiva, entendemos que cada homem se vale
da própria razão (cálculo) para ponderar os elementos a favor e os contrários ao seu
movimento vital46
. Cada homem, impulsionado pelo seu desejo de viver, raciocina os meios
mais viáveis para alcançar o fim almejado e os propõem no coletivo, pois “digo marcar
quando calculamos para nós próprios, e significar quando demonstramos ou aprovamos
nossos cálculos para os outros homens” (LEVIATÃ, I, V, p. 27). É no interior do estado
natural que Hobbes encontra o gérmen da instituição estatal. Eis porque Thomas se posiciona
severamente contra Aristóteles, cuja compreensão acenava para o Estado como uma condição
necessária e indispensável da natureza humana.
A maior parte dos autores que escreveram sobre república partem do
pressuposto ou do postulado de que o homem é um animal que já nasce apto
para a sociedade. Os gregos chamam-no de Zôon politikón. Sobre esta base
tais autores constituíram uma ampla doutrina da sociedade civil, a ponto de
se concluir dela que nada mais seria preciso para a preservação da paz e do
governo de todo gênero humano que os homens adotarem que em conjunto
pactos e certas condições, a que em seguida tais autores dão o nome de leis.
Entretanto, este axioma, embora aceito por muitos, é falso; seu erro
originou-se de uma visão demasiada superficial da natureza humana. Pois,
para quem quiser ver mais de perto as causas que fazem os homens se
juntarem e quererem a companhia dos outros, aparecerá com clareza que isso
acontece, não porque não possa ser de outro modo naturalmente, mas sim de
modo acidental (DE CIVE, I, I, p. 50).
Conforme Hobbes, Aristóteles partiu de um axioma equivocado e parcial em relação à
natureza humana, no momento que deduziu ser o Estado uma necessidade intrínseca à vida do
homem. Para Hobbes, o homem não precisaria gerar acordos da magnitude que pensou
Aristóteles, se acordos semelhantes, de proporções inferiores, trariam os mesmos efeitos para
o homem em comunidade. Nenhum acordo engendra leis que sirvam para normatizar em
46
“A razão hobbesiana é exclusivamente uma faculdade que calcula meios para a realização de fins postos pelos
desejos e não tem, por si mesma, eficácia natural para conformá-los” (FRATESCHI, 2008, p. 15).
50
absoluto. Ora, sem laços de obediência absoluta, nenhuma sociedade seria possível,
conseqüentemente, a instabilidade seria produzida até a manifestação extrema; que se
configura em guerra de todos contra todos.
O motivo pelo qual os homens se reúnem para viver em sociedade é essencialmente
diferente do motivo que conduz os animais. Os mais diversos desvios de comportamento
animal, sempre conduzem para um fim comum. Ao passo que, “comparados com os seres
políticos da tradição, os humanos parecem entes que destoam da ordem natural” (HECK,
2002, p. 537). De fato, a sociedade não é natural ao homem. A sociedade animal é natural, a
humana, ao contrário, é artificial, de modo que a sua construção e manutenção é uma tarefa
perene de todos os homens envolvidos. Em outros termos, os homens se unem por acidente e
não por uma disposição necessária da natureza inerente a eles.
Na compreensão de Hobbes, as paixões humanas não conduzem os homens ao
convívio social e pacífico, e sim a condições de sedição, cálculos relativos, egoísmo, vivência
individualizada. Os principais sentimentos que emanam da natureza humana são: o ciúme, a
inveja e o ódio e as virtudes são apenas duas: força e astúcia.
A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do
espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais
forte do corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando
se considera tudo isto em conjunto, a diferença entre um e outro homem não
é suficientemente considerável para que qualquer um possa também aspirar,
tal como ele. Porque quanto à força corporal o mais fraco tem força
suficiente para matar o mais forte, que por secreta maquinação, quer aliando-
se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo (LEVIATÃ,
I, XIII, p. 74).
Por meio destas características concernentes à natureza humana, o homem vê na
pessoa do outro um inimigo em potencial constante. Interessante notar que a razão humana,
neste caso específico, não atua como moderadora das ações humanas violentas. A sua função
é justamente a de potencializar a estratégia a ser adotada pelo homem frente às diversas
situações. Na mesma direção atua a linguagem do homem, ou seja, ele não age consoante à
verdade de suas proposições, de modo que visa apenas comportamentos performativos,
consoantes à sua intenção subjetiva, em prol de um movimento vital. Tal atitude alimenta um
estado de guerra geral. Portanto, a conclusão de Hobbes é de que a sociabilidade não é um
elemento intrínseco à natureza do homem, mas um ato puramente político.
Ato puramente político porque exige que os homens criem leis e as cumpram a fim de
que a permanência de suas vidas, em condição pacífica, seja exercida. Desta união entre os
homens, o cotidiano é caracterizado por normas e leis, cada qual com sua devida
51
conseqüência jurídica. Isso porque o homem é um corpo inconstante, movido por paixões
singulares e interesses subjetivos. Para frear esta motivação bélica, em estado pacífico, o
homem necessita de uma instância de poder que assegure e mantenha os laços sociais. Para
Hobbes não há diferença de essência entre um homem e outro. Todos agem impulsionados
pelo mesmo motivo: a permanência do movimento vital livre e não só nisso que eles se
igualam, mas também no direito a todas as coisas e, por extensão, na liberdade ilimitada. São
iguais, na mesma medida, no medo que paira sobre suas cabeças da morte violenta.
Por via do ciúme e da inveja particular a reunião dos homens fica inconsistente. A
inconsistência sugere que não é da natureza do homem a paz comum e sim o contrário. Diante
deste cenário, Hobbes exclama o seguinte:
Ninguém deve duvidar que os homens, caso não existisse o medo, seriam
levados por sua natureza mais sofregamente para dominação do que para
sociedade. Devemos, portanto, estabelecer que a origem das sociedades
amplas e duradouras não foi a boa vontade de uns para com os outros, mas o
medo recíproco entre os homens (DE CIVE, I, I, p. 52).
O medo é um elemento intrínseco à natureza do homem. Se for natural, é pertencente a
todos os indivíduos de maneira equitativa. Se pertencer a todos, isso se configura como um
elemento central na identidade igualitária do homem. “Logo, os homens são por natureza
iguais entre si. A desigualdade que atualmente existe foi introduzida entre eles pela lei civil”
(DE CIVE, I, I, p. 52). Uma leitura desatenta sobre as teorias de Hobbes e poderíamos afirmar
que o homem, por natureza, tem vontade de causar danos ao outro homem (e isso poderia ser
um elemento equitativo entre eles, de maneira que todos os particulares buscam maltratar o
outro). Entretanto, não se trata propriamente da vontade de causar danos ao outro (vale
ressaltar que o homem hobbesiano não é mal, ele apenas busca o benefício próprio. Entre eu e
ele, melhor que eu viva), mas sim de uma atitude anterior e prudente que o homem adota
diante do outro homem. O ataque ao outro acontece quando ambos desejam o mesmo objeto.
Este desejo acontece de duas maneiras: A primeira forma, a mais moderada, é perceptível
àquele homem que deseja para o outro a mesma proporção que deseja para si. A segunda
forma, em grau mais elevado, é notável naquele homem que vive de uma pseudo noção de
suas próprias potencialidades. Enquanto o primeiro, com vista na igualdade natural, permite
para o outro aquilo que seria suficiente para si, o segundo sugere a necessidade subjetiva.
A causa mais freqüente de quererem os homens fazer mal uns aos outros está
em que muitos têm ao mesmo tempo desejo da mesma coisa, quando o mais
das vezes não a podem consumir em comum repartir. Segue-se então que
deve ser entregue ao mais forte; e quem é o mais forte, há que se decidir com
a luta (DE CIVE, I, I, p. 53).
52
A natureza predicou todos os homens de direitos iguais. Desde que a batalha travada
com o outro seja legítima, isto é, em função da utilidade que o elemento desejado e causador
da briga trará ao vencedor, não há entrave algum da isenção de ambas as partes. A natureza
possibilitou e forneceu os meios necessários para o conflito no momento que determinou a
todos os homens a liberdade ilimitada de fazer tudo o que for necessário para salvaguardar a
vida. Não existe fuga, o homem é obrigado pela natureza e, portanto, totalmente coagido a
fazer o que for necessário e possível para sua vida. Ora, se o instinto de preservação natural
do homem for somado ao direito natural de todo homem a todas as coisas, isso se configura
em um cenário legítimo de guerra de todos contra todos. Neste estado, uns homens, providos
de todo direito e movidos por seus desejos, atacam e, outros, com igualdade de direito e
desejo, defendem. Conforme Hobbes:
Não se pode negar que o estado natural dos homens, antes de entrarem em
sociedade, era a guerra, e isso não de qualquer modo, mas uma guerra de
todos contra todos. E o que é guerra, senão aquele tempo em que se
manifesta inequivocamente a vontade de lutar com a força, por palavras e
atos? Chama-se PAZ o tempo restante (DE CIVE, I, I, p. 55).
Os homens, imbuídos no estado de guerra e com direitos naturais equitativos, não
podem esperar o gozo da velhice pacífica. Neste estado, aqueles que alcançam mais tempo de
vida vivem como verdadeiros heróis. Por este motivo, “é ditame da reta razão, isto é, da lei
natural, buscar a paz, enquanto houver alguma esperança de alcançá-la; e que quando não
possível alcançá-la, prepara a guerra, isto é, adquirindo os meios auxiliares da guerra” (DE
CIVE, I, I, p. 56). É a natureza que autoriza o homem à guerra, a fim de manter o movimento
vital, contudo, a guerra deve ser buscada em última instância, somente quando o homem não
tiver mais nenhuma possibilidade de viver em paz e harmonia.
A lei natural é o seguimento da reta razão acerca daquilo que o homem deve fazer ou
omitir para manter a sua vida.
Mas como todos concedem ser legítimo o que não for contra a reta razão,
devemos julgar injustas as ações que repugnam à reta razão, isto é,
contradizem alguma verdade deduzida de princípios verdadeiros pelo correto
raciocínio. Dizemos, então, que é contra alguma lei a ação injusta, feita
contra algum direito. Por isso, reta razão é uma certa lei que sendo parte da
natureza humana não menos do que qualquer outra capacidade ou potência
da alma, também é designada natural. Definindo, portanto, lei natural é um
ditame da reta razão sobre as coisas a fazer ou omitir para garantir-se, quanto
possível, a preservação da vida e das partes do corpo (DE CIVE, I, II, p. 58-
59).
Diante deste cenário que retrata a essência do homem, Hobbes conclui que o Estado
não passa de um produto da razão humana, embora ninguém esteja preocupado com o
53
movimento vital do outro, mas apenas com o próprio47
. Os homens se toleram porque, via
raciocínio (cálculo), auferiram maiores condições de preservação do movimento vital quando
estiverem vivendo em paz com os outros48
. Contudo, o egoísmo e a cobiça subjetivos
mantêm-se em um plano potencial, sendo, às vezes, reprimidos em nome da ‘boa relação’
com os outros, mas que em última instância está para embasar o princípio do benefício
próprio49
. Para Hobbes, os homens continuam a vislumbrar o horizonte da guerra de todos
contra todos como uma probabilidade, mas é dever do homem viver em sociedade com o
intuito de evitar a morte violenta. É do encargo do homem, enquanto cidadão, renunciar o seu
poder indiscriminado e arbitrário sobre todas as coisas e assim viver sob o jugo do Estado.
Hobbes trava uma árdua batalha para aprimorar o poder civil. Entre a liberdade abusiva e a
autoridade despótica, Hobbes postula um Estado soberano, de liberdade condicionada, mas
comprometido com a preservação da vida, de certa maneira, é um poder absoluto em
consonância como o pacto social. Por este motivo, a concepção de Thomas Hobbes é
puramente dedutível da natureza humana e da sociedade organizada.
A concepção de natureza humana de Thomas Hobbes segue os parâmetros da nova
ciência, obedecendo a um conjunto de determinados elementos “como consistindo nas
faculdades naturais do seu corpo e mente, e podem ser todas compreendidas nestas quatro, a
força do corpo, a experiência, a razão e a paixão” (ELEMENTOS, I, XIV, p. 93). A natureza
se produz mecanicamente e se explica por movimentos contínuos e, uma vez iniciados, desde
que não haja a interrupção por parte de outro corpo, tal movimento dura pela eternidade.
Hobbes vislumbra a natureza à sua volta como uma grande máquina, onde os corpos estão em
movimentos contínuos, transversalmente determinados por leis mecânicas. O sistema
filosófico político de Hobbes está embasado na noção de que tudo o que existe é corporal e
elucidado pelo movimento externo a este corpo, isso se evidencia na Introdução ao Leviatã,
“pois vendo que a vida não é mais do que um movimento dos membros, cujo início ocorre em
alguma parte principal interna, por que não poderíamos dizer que todos os autômatos [...]
possuem uma vida artificial?” (1983, p. 05). Dois elementos caracterizam esta visão da
47
“Segundo Hobbes, a tendência natural do homem é a busca de benefícios para si mesmo, e não a associação
com outros homens” (FRATESCHI, 2008, p. 14). 48
“Para Hobbes a aptidão para vida social é uma característica adquirida, e não natural; a sociedade é fruto de
uma escolha e não de obra da natureza” (FRATESCHI, 2008, p. 15). 49
“Para Hobbes, os homens têm um impulso natural não para vida em comunidade, mas para preservação de si
mesmos e para obtenção de benefícios próprios” (FRATESCHI, 2008, p. 13).
54
filosofia materialista e mecanicista de Thomas Hobbes, são eles: as verdades a priori da
geometria de Euclides e a física de Galileu50
.
Além desses dois elementos influentes do pensamento de Hobbes, existe a inegável
presença do pensamento de Bacon no que concerne ao interesse e ao compromisso teórico
com o empirismo. É a partir dessa miscelânea ordenada de características que se configura o
novo modelo de ciência do século XVI e XVII. Hobbes se torna um pensador expoente dentro
desta nova corrente científica e a sua filosofia passa a ser notadamento materialista e
mecanicista, e isso se estende aos vários segmentos do pensamento do filósofo político ingles:
assim como a percepção é explicada mecanicamente a partir das excitações transmitidas pelo
cérebro, também a moral se reduz ao interesse e à paixão, ambos despertados pelos
movimentos externos ao homem. Na fonte de todos os valores humanos há o que Hobbes
denomina endeavour, em inglês, e conatus, em latim, isto é, o instinto de conservação ou,
mais exatamente, de afirmação e de crescimento de si próprio; esforço próprio a todos os
corpos para unir-se ao que lhes agrada e fugir do que lhes desagrada.
Imbuído e dominado pelos novos princípios mecanicistas e matemáticos, Hobbes leva
seu materialismo às últimas consequências, afirmando que tudo o que existe é corpo e
movimento. O corpo é sensível e experimentável, pode ser dividido ou somado, os corpos são
reais e o movimento é a única explicação para tais fenômenos naturais. Para Hobbes, os
corpos51
e os movimentos bastam para explicar todos os acontecimentos e fenômenos
existentes na realidade que circunda o homem; justamente por esta razão que não existe nada
além da corporeidade e do movimento que dá dinamismo à matéria corpórea. O princípio de
tudo é o movimento, o mesmo que gera e dá dinamismo às coisas. O homem individual é um
mecanismo, uma máquina a ser analisada, pois “há um ditado que ultimamente tem sido
muito usado: a sabedoria não se adquire pela leitura dos livros, mas do homem” (LEVIATÃ,
I, III, p. 16). Dessa forma, os corpos são reduzidos à extensão e as qualidades em
movimentos. Exterior ao homem existe apenas corpo e movimento.
Este movimento atenderá pelo nome de matematização da natureza52
. Basicamente, a
matematização da natureza consiste na substituição do espaço concreto das experiências
50
“O respeito pela física de Galileu deveu-se ao contato anterior de Hobbes com as verdades a priori da
geometria. Ou seja, Hobbes admirava Galileu e sua obra em virtude da relação que tanto quanto Galileu, e suas
respectivas obras, mantinham com a geometria euclidiana. Diga-se de passagem, uma relação de dependência
para ambas as teorias” (BERNARDES, 2002, p. 12). 51
Na medida que não admite outra realidade senão a corpórea, Hobbes considera os movimentos dos corpos no
espaço e em tempos sucessivos como o princípio universal no qual tudo se gera como também se explica, tanto o
mundo físico como também o humano (religião, moral, política). Sendo assim, é o movimento o princípio da
formação do conhecimento e do agir” (WOLLMANN, 1993, p. 21). 52
Cf. BERNARDES, Julio. Hobbes e a Liberdade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p. 12 e 13.
55
sensíveis pelo espaço geométrico, efeito da noção materialista e mecanicista proporcionados
pelo novo modelo de ciência. A geometrização do espaço real é substituída pelo espaço
abstrato da geometria. Isso faz com que a natureza passe a ser explicada por meio da noção de
movimento e as qualidades sensíveis das coisas a partir dos movimentos transmitidos ao
organismo pelos corpos externos (causa e efeito). Mais do que isso, a natureza (entendida
como o todo, o universo) ganha proporções infinitas, contrapondo-se à antiga concepção de
cosmo53
pensada pela ciência de matriz aristotélica. Tanto a substituição do espaço sensível
pelo espaço geométrico como a contraposição da natureza do cosmo limitada com o universo
infinito “acabam por proporcionar a invenção da lei de inércia – princípio geral da natureza
que sepulta a idéia de um cosmo cindido em domínios distintos e orientado por diferentes
princípios” (BERNARDES, 2002, p. 13). A partir desta jovem concepção de ciência, o mundo
é pensado e caracterizado como uma generalização perfeita, indivisível. Não existe mais a
noção de perfeição imutável e a corrupção da realidade, o que existe é uma realidade
determinada por um único princípio. “A geometrização do espaço advém da necessidade
pitagórica de apresentar as formas ou leis do mundo pela gramática da matemática”
(BERNARDES, 2002, p. 13). Neste prisma, o mundo é compreendido como um espaço
homogêneo, sem distinção de dominantes e dominados, como um universo infinito e regido
de forma unívoca por uma força externa a qualquer corpo.
Para os teóricos da nova ciência, esta força externa ao corpo é o princípio de inércia54
.
Consoante a Bernardes, “o princípio de inércia postula que, independentemente da natureza
dos corpos, estes se movem do mesmo modo segundo algo que não lhes é inerente nem lhes
pertence como qualidade, mas que neles atua como força” (2002, p. 13). Hobbes toma o
movimento (lei de inércia) como o princípio de sua filosofia, aceita que tudo o que existe
consiste em corpos em movimento e a prevalência da geometria às demais ciências, e dela
dependem a física, a moral e a política. Disso tudo se deriva que Hobbes assume para sua
filosofia política uma relação de causalidade, cujas categorias de causalidade adotadas são a
de causa eficiente e a de causa material. Para Hobbes todas as coisas existem (corpos) e se
encontram em um estado cinético55
, isto é, se o estado de um determinado corpo não é
53
Cosmo ou cosmos para os gregos antigos (do grego antigo κόσμος, transl. kósmos, "ordem", "organização") é
um termo que designa o universo em seu conjunto, toda a estrutura universal em sua totalidade, desde o
microcosmo ao macrocosmo. O cosmo é a totalidade de todas as coisas deste Universo ordenado, desde as
estrelas, até as partículas subatômicas. 54
“A concepção da natureza humana é apresentada por Hobbes como uma aplicação particular de uma nova
concepção da natureza em geral, mecanicista e fundada na lei da inércia” (FRATESCHI, 2008, p. 14). 55
Importante salientar que o termo “cinético” designa uma parte da mecânica que estuda os movimentos sem se
referir às forças que os produzem ou às massas dos corpos em movimento.
56
decorrência da sua natureza específica, então, alguma força nele atuou como causadora desse
movimento.
Para Júlio Bernardes, o conceito de liberdade, em Thomas Hobbes, é assinalado pelo
seu comprometimento intelectual com as cláusulas que configuram a nova ciência, isso gera a
certeza de que “a concepção hobbesiana é tributária da teoria mecanicista e materialista, que
defende a tese de que a realidade é constituída por matéria e movimento e condicionada pela
lei de inércia” (2002, p. 19). A terminologia em torno da liberdade hobbesiana é comumente
conhecida e disseminada como ausência de todo e qualquer impedimento externo ao
movimento que não é intrínseco ao corpo. Se fosse efetivada uma análise acurada do princípio
de inércia, perceber-se-ia uma confluência com a definição de liberdade postulada por
Hobbes, certo que “o princípio de inércia pressupõe um estado ideal de ausência absoluta de
impedimentos (o vácuo) para que possamos, então, conceber a idéia de permanência
indefinida de um corpo em um estado cinético qualquer” (BERNARDES, 2002, p. 19). A
ausência de impedimento externo para que o homem possa fazer aquilo que quiser e aquilo
que puder é o mesmo pressuposto do princípio de inércia (vácuo), onde os corpos podem se
movimentar de forma livre e sem obstáculo algum. À medida que Hobbes naturaliza a
liberdade e a condiciona ao princípio soberano de toda natureza (inércia), ele a generaliza e a
torna condição de todo corpo e não apenas dos racionais. Tudo o que existe está submetido ao
movimento natural.
A aplicação da idéia de movimento dos corpos e da realidade materialista, que
caracteriza o estatuto epistemológico da ciência nascente, é o que Hobbes aplica à sua teoria
política filosófica. O que é o corpo humano senão composição material bem ordenada? O que
é a vida humana senão movimento ao encontro daquilo que é necessário ou repúdio diante
daquilo que não é necessário para mantê-la em constante movimento? O que é a morte senão
a paralisação total deste movimento gerador de vida? Portanto, o que é a liberdade humana
senão o próprio movimento que visa recolher elementos úteis à vida? Para que isso ocorra, o
corpo livre, seja o homem ou não, não pode encontrar impedimento externo. Ora, a ação
normal da vida humana, conforme a lei de natureza, é que ela se mantenha
independentemente dos fatores externos que estão à sua volta. Por este motivo que Hobbes é
taxativo ao afirmar que o homem é livre no silêncio da lei, de modo que a lei é um fator
externo coercitivo ao movimento livre e voluntário do homem. Por outro lado, Hobbes
também afirma que o homem encontra sua liberdade e age livremente dentro dos parâmetros
estipulados pelo soberano. Parece ser uma concepção contraditória postulada pelo filósofo de
Malmesbury, contudo, antes de demonstrar uma contradição interna do pensamento de
57
Hobbes, acredita-se que seja uma artimanha retórica, cuja origem de cada qual está embasada
em um contexto específico. “Pois não existe uma perpétua tranqüilidade de espírito, enquanto
aqui vivemos, porque a própria vida não passa de movimento, e jamais pode deixar de haver
desejo, ou medo, tal como não pode deixar de haver sensação” (LEVIATÃ, I, VI, p. 39).
2 ANTROPOLOGIA DE HOBBES: CORPO FÍSICO E LIVRE
Neste capítulo intitulado “Antropologia de Hobbes: corpo físico e livre”, pretendemos
mostrar que os aspectos da natureza humana postulados pelo filósofo inglês transcendem a
compreensão tradicional no instante que caracterizam um ‘novo paradigma de homem’.
Iniciando pela concepção natural que o homem hobbesiano está inserido em uma categoria
peculiar, apolítica, cuja noção não passa de uma situação possível para posterior descrição do
sentido pelo qual o Estado foi criado, seguiremos o pensamento de Hobbes em torno da
natureza humana a partir da primeira lei de natureza. Neste espaço, é de fundamental
importância o bom uso da razão e da linguagem como condição de externalização da vontade
do indivíduo frente o ato nocivo à sua vida. O homem raciocina (calcula), impelido pelo
movimento dos corpos externos a ele, e comunica a sentença decidida, com vistas à
preservação da sua vida. A conclusão que o homem hobbesiano alcança é a da
impossibilidade de manter o seu movimento vital, de maneira que ele é um corpo em
movimento e para o movimento.
2.1 O ESTADO NATURAL COMO UMA SITUAÇÃO POSSÍVEL
O estado natural como uma situação possível, dá margem à compreensão que ele não
tem ou teve uma existência histórica (portanto o estado de natureza não é encontrado na
história real e concreta do homem) e que é mais do que uma mera hipótese (hipótese
entendida como raciocínio preliminar suscetível de desconstrução). O estado natural como
uma situação possível é a possibilidade de vir a ser determinada forma de ação do homem na
ausência de um poder forte e centralizado. Melhor dizendo, como seria ou como agiria o
homem na inexistência da lei civil. A questão central que está sendo aqui discutida é a relação
dos homens, sem a lei civil e a relação dos homens, na presença da lei civil. Quando Heck cita
Macpherson essa questão se demonstra com mais nitidez:
O estado natural hobbesiano resulta da interferência de um tipo de paixão
que molda o homem civilizado na ausência de um poder comum, ou seja,
refere-se àquele comportamento que homens assumiriam quando ninguém
mais exigisse a observância das leis e daquilo que está devidamente
acordado entre eles. Para chegar ao estado de natureza, “Hobbes
desconsidera a lei, mas não as condutas e os desejos humanos socialmente
adquiridos” (2002, p. 534).
O estado natural é um dos significativos lados da ‘dialética política’ do pensamento de
Hobbes. Seguida da própria constituição do Estado e todo seu aparato executivo, legislativo e
59
judiciário. Em última instância, este método didático, próprio dos pensadores contratualistas,
não passa de uma maneira elucidativa e possível de apontar indícios ligados à natureza
humana, propriamente à ação do homem, quando da ausência de um poder externo coercitivo,
capaz de conduzir os homens à aceitação e ao cumprimento de um determinado regime. Com
este contexto literário – longe de ser o mais agradável – Hobbes quis justificar a presença de
um poder forte – soberano – no seio da sociedade. Este poder se caracteriza pela reunião dos
diversos e singulares poderes distanciados. Com a soma de todos, o Leviatã encontra o seu
sentido de ser e a sua grandeza frente ao pequeno e mísero súdito.
Outros pensadores, além de Hobbes, adotaram esta nomenclatura para explicar o
motivo pelo qual o homem, vivendo absolutamente livre, pactua com os outros homens e
instaura o Estado civil56
. Ao instaurar o Estado civil o homem limita seu direito natural às
coisas e segue sua vida com possibilidades reais de preservação, tanto no âmbito cultural,
artístico, lingüístico, agrário e outros. Dizer que o homem limita seu direito natural às coisas,
é igualmente afirmar que o homem se isenta de usufruir dos bens que ele tem poder de
possuir, de maneira que “o poder de um homem (universalmente considerado) consiste nos
meios de que presentemente dispõe para obter qualquer visível bem futuro” (LEVIATÃ, I, X,
53). Outra interpretação plausível diante do fato do homem não estar usufruindo dos bens que
ele tem direito, é dizer que o homem está sendo impedido de agir com a liberdade que a
própria natureza lhe conferiu.
O autor do Leviatã apresenta duas maneiras do poder humano se mostrar. O poder
pode ser original – natural – ou instrumental. Para o primeiro significado, Hobbes entende a
junção e a exacerbação das faculdades do corpo e do espírito humano, tais como força, beleza,
prudência, liberalidade. No que concerne ao segundo sentido de poder, lembramos todos os
instrumentos que são adquiridos pelos homens, portanto meios, para se alcançar determinada
finalidade, tendo como antecedente o poder natural. São eles: a riqueza, os amigos, a
reputação. Além dos mais, o poder não é um meio que pertence somente a uma parcela ou a
outra da humanidade, senão que à universalidade humana. Frente a esta constatação natural,
começa-se a delinear a dificuldade do convívio humano. Ora, se todos os homens têm poder
56
Para Noberto Bobbio: “Com certa aproximação, pode-se falar (e se tem frequentemente falado) de um ‘modelo
jusnaturalista’ sobre a origem e o fundamento do Estado e da sociedade política (ou civil), que, partindo de
Hobbes (sua figura mais alta), chega até Hegel incluído-excluído, modelo utilizado, ainda que com notáveis
variações de conteúdo, que de resto não modificam seus elementos estruturais, por todos os maiores filósofos
políticos da época moderna. (Falo propositalmente não de ‘escritores’ políticos em sentido lato, mas de
‘filósofos’ políticos pretendendo referir-me a escritores de política que visam à construção de uma teoria geral
do homem e da sociedade, ou de qualquer modo articulada com esta teoria, de Spinoza a Locke, de Pufendorf a
Rousseua, de Kant ao primeiro Fichte e à miríade de kantianos menores que acompanham o fim da escola do
direito natural” (1991, p. 01).
60
(direito) a todas as coisas – lembremos que o direito é tomado como liberdade – a situação de
desconforto que se instalará é iminente.
Por esta razão, antes de qualquer conclusão sobre a identidade do estado de natureza é
imprescindível entendê-lo como uma das partes de uma dicotomia. Ora, se por um lado temos
o estado de natureza, que é avesso ao convívio humano pacífico (e que não passa de uma
situação possível), de outro lado, necessariamente, temos um estado mais profícuo à
realização da vida agradável e mais aprazível ao convívio humano em grupo, porém, o
homem está preocupado somente com a sua própria preservação e, de maneira alguma com a
atualização de sua potencialidade coletiva e social, como pensava Aristóteles.
Se, com efeito, o homem amasse naturalmente, isto é, enquanto homem, não
se encontraria nenhuma razão plausível para o fato de que cada indivíduo
não ama o outro por igual, sendo homem por igual; ou ainda por que prefira
freqüentar mais aqueles em cuja companhia lhe são reconhecidas, mais do
que a outros, honra e vantagem. Por causa de nossa natureza, não buscamos
a sociedade por si mesma; o que queremos é receber dela honras e
vantagens; estas em primeiro lugar, aquelas, depois (DE CIVE, I, I, p. 50).
Do outro lado da dicotomia encontramos o chamado Estado civil. O primeiro se
caracteriza pela condição apolítica, com ausência de leis comuns, ao passo que o segundo tem
como essência a presença de leis comuns e, por este motivo, político. Enquanto o estado de
natureza é constituído por indivíduos singulares, não associados uns em relação aos outros,
totalmente livres e providos de igualdade, no Estado civil os homens se reúnem sob o pretexto
da preservação da própria vida, porém, amparados pela lei civil.
O modelo dicotômico de estado – natural e civil – apresentado por Hobbes, na
interpretação de Norberto Bobbio ganha seis elementos norteadores, são eles: 1 o estado
natural é antipolítico, 2 o estado político surge como uma antítese ao estado antipolítico, 3 os
indivíduos em estado natural não são associados, 4 os indivíduos no estado natural são livres
(liberdade ilimitada) e iguais, 5 a passagem do estado natural para o estado civil não acontece
por força física, mas por convenção – geralmente. Esta convenção é enraizada no processo
deliberativo sob a promessa de uma vida melhor e mais prazerosa. Assim o estado político é
artificial, produto da cultura e não da natureza e, por fim, 6 a legitimidade deste estado
artificial está no consenso existente entre seus habitantes57
.
57
A citação de Norberto Bobbio, na íntegra, referente às características do estado natural de Thomas Hobbes é a
seguinte: “1 o ponto de partida da análise da origem e do fundamento do Estado é estado de natureza, ou seja,
um estado não político e antipolítico; 2 entre o estado de natureza e o estado político, há uma relação de
contraposição, no sentido de que o estado político surge como antítese ao estado de natureza (do qual é chamado
a corrigir ou eliminar os defeitos); 3 o estado de natureza é um estado cujos elementos constitutivos são, primária
e principalmente, os indivíduos singulares não associados, embora associáveis (digo “principalmente”, e não
“exclusivamente”, porque podem ter lugar, mesmo no estado de natureza, sociedades naturais, como a família); 4
61
A partir dos seis elementos norteadores apresentados por Bobbio e não obstante a
variante dos autores contratualistas, ao menos duas características perpassam a todos e podem
ser assim definidas. A primeira delas: o fornecimento de elementos que justificam a
necessidade do Contrato entre os homens como instrumento de transição do estado de
natureza para o estado civil. A segunda que se destaca pode ser assim dita: a dos homens e
seus comportamentos peculiares, em estado natural, não passarem de uma situação possível.
Ou seja, não existem registros históricos da existência real de um estado e nem de homens
como estes. São artifícios da linguagem e do pensamento humano para se entender o
fundamento do ato de viver em sociedade. O autor do Leviatã é incisivo ao refutar a
prerrogativa de que o estado natural tenha sido uma realidade histórica ou um ‘modelo’ de
sociedade que tenha existido em sua época. Mais incabível é pensar que nos dias atuais ainda
possa existir uma sociedade com tais características apolíticas como as descritas por Hobbes
em suas obras políticas. Por conta disso, não podemos remontar ao passado e apontar tal
sociedade como estereótipo histórico de como seria toda e qualquer sociedade na ausência de
poder coletivo e coercitivo.
Em relação a esta discussão, Norberto Bobbio refere-se da seguinte maneira:
Falo de “modelo” não por capricho ou para servir-me de uma palavra de
consumo fácil, mas unicamente para expressar de modo imediato a idéia de
que, na realidade, jamais existiu uma formação histórico-social tal como a
descrita. Na evolução das instituições que caracterizam o Estado moderno,
ocorreu a passagem do Estado feudal para o Estado dos estamentos, do
Estado dos estamentos para a monarquia absoluta, da monarquia absoluta
para o Estado representativo, etc. A imagem de um Estado que nasce do
consenso recíproco de indivíduos singulares, originalmente livres e iguais, é
uma pura construção do intelecto (1991, p. 02).
Bobbio esclarece esta discussão intelectual amparado na própria maneira de Hobbes
tratá-la, de forma que para Hobbes não há sentido em compreender o estado natural como
histórico e literal. Isso pode ser encontrado na seguinte passagem do Leviatã: “Poderá
porventura pensar-se que nunca existiu um tal tempo, nem uma condição de guerra como esta,
e acredito que jamais tenha sido geralmente assim, no mundo inteiro” (LEVIATÃ, I, XIII, p.
os elementos constitutivos do estado de natureza (ou seja, os indivíduos, bem como os grupos familiares para
aqueles que os admitem) são livres e iguais uns em relação aos outros, de modo que o estado de natureza é
sempre figurado como um estado no qual reinam a liberdade e a igualdade (ainda que com sensíveis variações,
que dependem das diferentes acepções com as quais os dois termos são empregados); 5 a passagem do estado de
natureza ao estado civil não ocorre necessariamente pela própria força das coisas, mas através de uma ou mais
convenções, ou seja, através de um ou mais atos voluntários e deliberados dos indivíduos interessados em sair do
estado de natureza, com a consequência de que o estado civil é concebido como um ente “artificial”, ou, com se
diria hoje, como um produto da “cultura” e não da “natureza” (de onde resulta a ambigüidade do termo “civil”,
que é adjetivo ao mesmo tempo de civitas e de civilitas); 6 o princípio de legitimação da sociedade política,
diferentemente de qualquer forma de sociedade natural, em particular da sociedade familiar e da sociedade
patronal, é o consenso” (BOBBIO, 1991, p. 02).
62
76). Posterior a esta concepção de que o mundo não comportaria um estado com tais
características, Hobbes salienta que “há muitos lugares onde atualmente se vive assim”
(LEVIATÃ, I, XIII, p. 76). Buscando fundamentar a sua, no mínimo questionável afirmação,
fruto de uma mentalidade inglesa e burguesa, Hobbes salienta:
Porque os povos selvagens de muitos lugares da América, com exceção do
governo de pequenas famílias, cuja concórdia depende da concupiscência
natural, não possuem qualquer espécie de governo, e vivem em nossos dias
daquela maneira embrutecida que acima referi (LEVIATÃ, I, XIII, p. 76).
Ao descrever o estado de natureza como uma possibilidade e não como uma realidade
histórica, Hobbes está interessado em mostrar de que forma os homens, na ausência de leis
comuns e impelidos por suas paixões, agiriam. “Seja como for, é fácil conceber qual seria o
gênero de vida quando não havia poder comum a recear, através do gênero de vida em que os
homens que anteriormente viveram sob um governo pacífico costumam deixar-se cair, numa
guerra civil” (LEVIATÃ, I, XIII, p. 76). Hobbes chega a esta conclusão por conta da atitude
dos seus contemporâneos, que mesmo sob o jugo das leis civis, agiam de forma desregrada e,
em certa medida, como povos selvagens. Isso pode ser ratificado com a passagem seguinte:
Mas mesmo que jamais tivesse havido um tempo em que os indivíduos se
encontrassem numa condição de guerra de todos contra todos, de qualquer
modo em todos os tempos os reis, e as pessoas dotadas de autoridade
soberana, por sua independência vivem em constante rivalidade, e na
situação e na atitude dos gladiadores, com as armas assestadas, cada um de
olhos fixos no outro; isto é, seus fortes, guarnições e canhões guardando as
fronteiras de seus reinos, e constantemente com espiões no território de seus
vizinhos, o que constitui uma atitude de guerra. Mas como através disso
protegem a indústria de seus súditos, daí não vem como conseqüência aquela
miséria que acompanha a liberdade dos indivíduos isolados (LEVIATÃ, I,
XIII, p. 77).
Portanto, o estado de natureza hobbesiano expressa a própria condição da humanidade
avessa a uma lei comum: a guerra de todos contra todos. A guerra de todos contra todos não
necessita do conflito físico para acontecer, mas se efetiva com a simples intenção de não
manter a paz. Este ato já é considerado guerra. Quando uns homens invadem, embasados no
direito natural e outros com o mesmo direito resistem, ambos estão vivendo em condição
perpétua de guerra58
. O ato de atacar e de defender caracteriza a condição natural de guerra.
Thomas Hobbes define o estado de natureza da seguinte maneira:
O estado dos homens em sua liberdade natural é o estado de guerra. Pois a
guerra nada mais é do que o tempo no qual há vontade de disputar e
contestar por meio da força, seja com palavras ou com ações suficientemente
58
Cf. ELEMENTOS, I, XIV, p. 96.
63
declaradas; e o tempo que não é guerra, este é de paz (ELEMENTOS, I,
XIV, p. 96).
O estado de natureza coloca o homem como um corpo provido de todo direito e,
especialmente, de liberdade ilimitada para alcançar o fim que seu direito lhe dá condição, a
saber, a preservação da própria vida. Acontece que o mesmo direito pertence a todos os
homens, tornando-os iguais, assim que é “um direito de natureza que todo homem possa
preservar a sua própria vida e membros, com toda a potência que possui” (ELEMENTOS, I,
XIV, p. 95). Esta discussão é inserida por Hobbes logo no início do capítulo XIII, cuja
identidade da natureza humana é caracterizada a partir das faculdades do corpo e do espírito59
.
A força e a astúcia são como que imperativos neste mundo natural. Ambas amparam a disputa
dos homens pela preservação da vida. Contudo:
Por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de
espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isto
em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente
considerável para que um possa com base nela reclamar qualquer benefício a
que outro não possa também aspirar, tal como ele. Porque quanto à força
corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por
secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontram
ameaçados pelo mesmo perigo (LEVIATÃ, I, XIII, p. 74).
Com relação às faculdades do corpo, embasado no fragmento acima, notamos a não
supremacia, por assim dizer, do sujeito particular em relação ao outro. Até determinado limite
– o da particularidade – podemos entender a condição corporal e de espírito como algo
realmente vantajoso e relevante. Noutras palavras, em um conflito direto e particular, é mais
do que provável que o mais forte vença o mais fraco e não ao contrário.
Mas desde que se supõe, pela igualdade da força e outras faculdades naturais
dos homens, que nenhum homem sozinho possui força suficiente para
assegurar por muito tempo a sua própria preservação por meio dela,
enquanto ele permanece no estado de hostilidade e de guerra, a razão dita,
portanto, que cada homem, para o seu próprio bem, procure a paz à medida
que existir a esperança de consegui-la; também, que se fortaleça com toda a
ajuda que puder procurar, para a sua própria defesa contra aqueles com quem
a paz não pode ser obtida; e que faça todas as coisas que conduzirem
necessariamente à paz (ELEMENTOS, I, XIV, p. 97).
O mundo natural de Hobbes aceita a ‘secreta maquinação’, o que dá margem para que
o homem tenha total liberdade para entrar em comum acordo com o outro homem – quando o
fim almejado for semelhante – e ambos somem força e astúcia para abater o adversário. Além
do mais, vale pensar se tal maquinação – cálculo prudencial – seria um prelúdio do Estado
59
Cf. LEVIATÃ, I, XIII, p. 74.
64
civil ou não? (Tendo em vista que o ‘pacto’ foi estabelecido para se chegar ao fim particular –
o da preservação da própria vida).
No que tange às faculdades do espírito, consoante Hobbes, “encontro entre os homens
uma igualdade ainda maior do que a igualdade de força” (LEVIATÃ, I, XIII, p. 74), isso
significa dizer que os homens igualam-se mais pela própria sabedoria do que por qualquer
outra coisa. A sabedoria é elemento extremamente apreciado a tal ponto de ser capaz de
inquietar o homem diante de outros homens. Alguns por se sentirem menosprezados frente
tanto conhecimento e eloqüência, outros, por sua vez, por se auto-reconhecerem superiores
aos outros. Interessante notar que, embora o homem consiga reconhecer que no outro homem
exista uma sabedoria semelhante à sua – geralmente considerável – o consolo reside na
concepção de que no mundo existem pouquíssimos com tamanha genialidade. Este é um
sentimento recorrente a todo gênero humano.
Dificilmente encontraremos homens subordinados a outros homens com menor
provimento intelectual do que o seu. Isso faz parte de uma condição natural humana, a saber,
o de não se prostrar diante de seres inferiores – a menos que a vida esteja em risco. “Mas isto
prova que os homens são iguais quanto a esse ponto, e não que sejam desiguais. Pois
geralmente não há sinal mais claro de uma distribuição equitativa de alguma coisa do que o
fato de todos estarem contentes com a parte que lhes coube” (LEVIATÃ, I, XIII, p. 74). As
faculdades do espírito, sobretudo a sabedoria, verdadeiramente, equiparam todos os homens.
Com base nesta expectativa generalizada da natureza humana, os homens estimulam-
se à ‘competição’. Na verdade não é uma competição, mas é a busca pela própria defesa de
seu movimento vital. Esta busca é sem limite quanto aos resultados, pois os homens procuram
estocar o maior número de bens possível para a manutenção de suas vidas, e sem regras
específicas para os meios que os conduzem. Quando os meios, não seguem diretrizes
comportamentais pré-estabelecidas e responsáveis com relação ao outro, o resultado mais
óbvio é guerra.
E a guerra, uma vez iniciada, tende à perpetuação e à escalada, levando os
indivíduos a “uma guerra que é de todos os homens contra todos os
homens.” (p. 79). Contudo, o fundamental, no raciocínio de Hobbes, não é a
guerra efetiva, mas o estado de guerra, isto é, a possibilidade constante da
eclosão da violência. Basta esta possibilidade para o homem se tornar o lobo
do homem. O estado de guerra, apesar da expectativa de êxito, é também a
experiência do medo diante da violência e da morte. A combinação do medo
com os desejos de conforto e deleite sensual, entre outros, inclinam os
homens a buscar a paz (KRITSCH, 2010, p. 91).
65
O medo que o homem tem de morrer, o coloca em uma condição de antecipação em
relação ao outro homem. O que primeiro atacar, tenderá a viver por mais tempo. Contudo,
esta ainda não é uma maneira viável para manter a vida e a liberdade. O homem percebe,
então, que é na instituição de um poder único que reside toda possibilidade de vida
confortável e paz. É com a soma de todos os poderes singulares espalhados que o homem
pode projetar desejos e viver em melhores condições. “O maior dos poderes humanos é aquele
que é composto pelos poderes de vários homens, unidos por consentimento numa só pessoa,
natural ou civil, que tem o uso de todos os poderes na dependência de sua vontade”
(LEVIATÃ, I, X, p. 53). Para Hobbes, a soma de todos os poderes em apenas uma pessoa,
seja ela natural ou civil, é representada na figura do Estado. Esta solução artificial do homem
pode ser apresentada como se todos os homens, fazendo uso da razão e da linguagem de
maneira correta, tivessem concordado entre si e chegado a um acordo comum para encontrar a
paz60
. Contudo, a existência do outro lado da dicotomia, o estado natural, ainda que como
uma mera construção intelectual, nesta situação, é primordial.
2.2 DESCRIÇÃO DA NATUREZA HUMANA A PARTIR DA PRIMEIRA LEI DE
NATUREZA EM HOBBES
Segundo Hobbes, a lei de natureza primeira e fundamental de todo esquema
existencial humano é:
Buscar a paz quando for possível alcançá-la; quando não for possível,
preparar os meios auxiliares da guerra. Mostramos no último Artigo do
Capítulo anterior que este preceito é um ditame da reta razão. Que os
ditames da reta razão são leis naturais, acabamos de provar acima. Esta é a
primeira porque as outras derivam dela e nos ensinam os modos de adquirir a
paz ou preparar a defesa (DE CIVE, I, II, p. 57).
E é dando seguimento a esta concepção que Thomas Hobbes localiza no homem uma
máquina natural submetida a estrito encadeamento de causas e efeitos, o qual envolve apetites
e aversões. Seus desejos têm objetos distintos, variam de intensidade, e são sujeitos a
mudanças (podem perder sua importância). Nesse contexto, subjetivizam-se os conceitos de
bem e mal, afirmando-se ser o bem o que satisfaz os apetites de glória, dinheiro e poder, e o
mal, o que conteria os apetites e geraria aversões. Faz parte da natureza humana agir
deliberadamente, visar sempre a satisfação de seus desejos, e a ganância. Devido à
possibilidade de variação na intensidade dos seus desejos, uns almejam porções maiores que
os outros, o que não interfere no propósito comum a todos: o mantimento do movimento vital.
60
Cf. LEVIATÃ, I, XIII, p. 77.
66
Por via de qualquer estudo aguçado em torno das obras políticas de Thomas Hobbes, é
possível perceber duas classes de orientações distintas. Uma primeira assevera que os
trabalhos conceituais de Hobbes recorrem a uma metodologia analítica e oferecem uma
reconstrução conceitual de sua filosofia, estabelecendo relações entre as suas obras e
discutindo em que medida elas são coerentes entre si. Uma segunda linha de pesquisa aponta
que as investigações hobbesianas adotam uma perspectiva histórica e, assim, interpretam o
pensamento do filósofo político inglês como fundamentalmente apoiado na consideração dos
problemas políticos de sua época. Desta maneira, é correto afirmar que:
A teoria política é apresentada por nosso autor como parte de um sistema
geral de filosofia, de orientação mecanicista, que tenta explicar a partir de
princípios científicos todos os feitos naturais, incluindo entre eles a conduta
humana individual e coletiva (COSTA, 1997, p. 33).
Tomando como ponto de partida o princípio de que o movimento é a característica
comum de todos os acontecimentos naturais, Hobbes deduz que pode explicar com uma
metodologia semelhante o comportamento dos corpos físicos (racionais ou não), a conduta
humana particular (sensação, sentimento e pensamento) e a conduta social. De acordo com
Costa, “esta última consiste no movimento de indivíduos que atuam tomando em conta aos
demais, movimento cujo mecanicismo convém reconhecer como a chave para a arte de
governar” (1997, p. 34). Tal noção pode ser percebida na introdução do “Leviatã”, quando
Hobbes compara a organização do Estado com o corpo humano, de maneira análoga a
soberania com a alma ou vida de um corpo, a sedição com a enfermidade e a guerra com a
morte.
O Estado é instituído pela utilização correta da razão e da linguagem dos corpos
humanos61
, como efeito de um contrato entre indivíduos racionais, livres e iguais. Ressaltar o
caráter artificial do Estado, não significa reduzi-lo a uma simples cópia da natureza, senão que
o resultado da articulação livre, igualitária e racional dos corpos humanos. Hobbes está
tratando de corpos humanos que são igualmente livres e providos dos mesmos direitos, isso
porque “a natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito”
(LEVIATÃ, I, XIII, p. 74). Estes homens vivem em um reino de liberdades sem limites e, por
esta razão, “o estado de natureza apresenta uma série de falências e inconvenientes, que
podem corrigir-se ou remediar-se instaurando o Estado civil” (COSTA, 1997, p. 38).
Hobbes se propõe a estudar o corpo humano e o corpo político (Estado) aplicando uma
metodologia de análise comparativa entre ambos. A inquirição inicia pelas sensações e segue
61
Cf. FRATESCHI, 2000, p. 75
67
a sua trajetória pela imaginação, os desejos, a linguagem, a razão, as paixões, as virtudes e,
por fim, os vícios dos corpos humanos. Na investigação das sensações, o filósofo de
Malmesbury se alicerça na noção de movimento como causa das mesmas. A vida é um
movimento e, continuar vivo supõe uma série de movimentos contínuos, de sorte que “as
pessoas não só desejam satisfazer seus desejos senão também assegurar a satisfação futura.
No fim das contas, tentam conservar sua vida e adquirir satisfações [...] e, por outra parte,
procuram evitar o descontentamento, a dor e, sobretudo, a morte” (COSTA, 1997, p. 44).
Daqui se segue “que toda humanidade possui um perpétuo desejo de poder, que só termina
com a morte” (COSTA, 1997, p. 45). Alguns movimentos, denominados vitais, são
involuntários, como a circulação do sangue ou respiração; outros, chamados por Hobbes de
movimentos animais, são voluntários, como andar, falar ou mover alguma parte do corpo62
.
No que concerne ao movimento da deliberação, este não se ocupa daquilo que é
impossível de ser realizado, senão que o homem só tem a liberdade de fazer aquilo que está ao
alcance da possibilidade. Tal realidade supõe certo cálculo das prováveis conseqüências,
benévolas ou malévolas de determinado curso de ação. “O último apetite ou aversão de
deliberação, o que se encontra mais próximo à ação ou omissão, constitui a vontade ou o ato
de querer” (COSTA, 1997, p. 43). Dessa forma, Hobbes nega que a vontade seja um apetite
racional, porque se fosse o homem estaria impossibilitado de cometer atos voluntários
irracionais e, mesmo uma ação causada por incontinência, avareza, ou qualquer apetite ou
aversão é considerada voluntária.
Na descrição da natureza humana, Hobbes destaca uma série de semelhanças entre os
corpos humanos. Todos possuem as mesmas paixões e procuram continuamente satisfazer
seus desejos e evitar danos à sua condição corpórea. Todos são relativamente iguais em
sabedoria, já que esta é o resultado da experiência subjetiva, dentro do espaço e do tempo.
Além do mais, todos os homens são igualmente vaidosos com respeito ao valor de sua própria
opinião, isso pelo motivo que:
Todo homem tem por natureza direito a todas as coisas, ou seja, a fazer
qualquer coisa que lhe apraz e a quem lhe apraz, a possuir, a utilizar e
usufruir todas as coisas que quiser e puder. Considerando que todas as coisas
que ele deseja devem ser boas em sua própria natureza, porque ele as deseja,
e podem se inclinar à sua preservação uma vez ou outra, ou assim ele pode
julgá-las e nós o fizemos o juiz delas, [...], segue-se que todas as coisas
podem ser feitas por ele justamente [...]. E por esta causa é que se diz
justamente que [...] ‘a natureza deu todas as coisas a todos os homens’, de tal
62
“Para explicar o movimento voluntário, Hobbes faz referência aos apetites e às aversões, que originam um
esforço para obter ou evitar algo. As paixões que motivam o comportamento humano são também movimentos
que podem reduzir-se em última instância ao apetite ou amor, e ao ódio ou aversão” (COSTA, 1997, p. 42).
68
maneira que o jus e o utile, o direito [...] e o útil [...], são a mesma coisa. Mas
aquele direito de todos os homens sobre todas as mesmas coisas não é, em
efeito, melhor do que se homem algum não tivesse direito a coisa alguma.
Pois é de pouco uso e proveito o direito que um homem tem quando um
outro mais forte, ou pelo menos mais forte do que ele, tem direito à mesma
coisa (ELEMENTOS, I, XIV, p. 95-96).
A partir desta noção da igualdade básica das faculdades dos corpos humanos, o
filósofo político inglês infere que todos os homens têm igual expectativa em satisfazer seus
desejos e em conservar suas vidas e, como se não bastasse, todos têm igual direito a tentar
ambas as coisas. Dessa maneira “a noção de igualdade natural hobbesiana, unida à de
liberdade absoluta (que equivale à ausência de um governo) é a que permite explicar a
situação de guerra do estado de natureza” (COSTA, 1997, p. 46). A lei de natureza
desempenha um papel fundamental na explicação da passagem do estado de natureza ao
Estado civil. Com efeito:
Com “leis de natureza” Hobbes não se refere às leis no sentido de
regularidades que explicam o comportamento dos corpos, senão que as
regras que indicam aos seres humanos como lhes convém comportar-se.
Estas leis ou regras são naturais porque todos os seres racionais as conhecem
“naturalmente”, ou seja que sua razão lhes indica (COSTA, 1997, p. 51).
A lei de natureza é um conjunto de preceitos razoáveis que guiam os homens a atingir
o que desejam, cujo fim seja para seu próprio bem e para sua própria preservação. Neste
sentido, “uma lei de natureza (lex naturalis) é um preceito ou regra geral, estabelecido pela
razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou
privá-la dos meios necessários para preservá-la, ou omitir aquilo que pense poder contribuir
melhor para preservá-la” (LEVIATÃ, XIV, p. 78). Neste estado de natureza os homens
possuem apenas um direito, garantido pela natureza, que se define como a liberdade de
utilizar todos os meios, tomados como necessários, para a própria sobrevivência.
No que tange ao problema da liberdade, no Leviatã, sobretudo no capítulo XXI, a
questão nuclear “se embasa, em primeiro lugar, em relação à sua concepção mecanicista de
mundo, ou seja, a ideia de que todos os sucessos – incluindo as ações humanas – são
provocados por causas prévias” (COSTA, 1997, p. 63). Diante disso, é intrigante a relação
conciliadora entre este suposto determinismo (todo movimento é provocado por causas
presumidas) e a afirmação de Hobbes de que todos os homens, no estado de natureza,
possuem liberdade plena. Talvez a saída para esta intrigante questão esteja na associação que
Hobbes faz entre liberdade e necessidade, visto que:
A liberdade e a necessidade são compatíveis: tal como as águas não tinham
apenas a liberdade, mas a necessidade de crescer pelo canal, assim também
69
as ações que os homens voluntariamente praticam, dado que derivam de sua
vontade, derivam da liberdade; ao mesmo tempo que, dado que os atos da
vontade de todo homem, assim como todo desejo e inclinação, derivam de
alguma causa, numa cadeia contínua [...], elas derivam também da
necessidade (LEVIATÃ, II, XXI, p. 130).
Mais do que associação entre liberdade e necessidade, Hobbes toma-as como
sinônimas. Conciliar a liberdade à necessidade, não implica em “tirar a liberdade” da
liberdade, uma vez que o homem, provido de liberdade máxima, no estado natural,
efetivamente também é provido de necessidade, mas que a ação do agente livre possui causas
necessárias, que são as esperanças, os medos, os desejos e as aversões.
A liberdade não pode significar uma interpretação dos processos causais, não
pode ser a ausência de causas físicas. Talvez por este motivo Hobbes recorre
ao critério de ausência de impedimentos externos para oferecer um conceito
negativo da liberdade, segundo o qual sou livre na medida em que os outros
– coisas, animais ou seres humanos – não me impedem fazer o que desejo
(COSTA, 1997, p. 64).
A definição de liberdade como ausência de impedimento externo é aplicada para todo
corpo existente em movimento, o que vem a ratificar a herança do movimento, proposto pela
ciência nascente, adotado por Hobbes e aplicado ao seu sistema filosófico político. Dessa
maneira, um homem é livre quando não encontra impedimentos externos para as suas ações.
Contudo, se as suas limitações forem internas e derivadas das suas próprias incapacidades,
este indivíduo não carece de liberdade, mas sim de inteligência, força ou qualquer outra
habilidade. Assim mesmo o homem é livre quando atua motivado por fortes paixões, como
por exemplo, o medo, uma vez que “o medo e a liberdade são compatíveis” (LEVIATÃ, II,
XXI, p. 129).
Se um homem é livre para fazer tudo o que quer e que tem possibilidade de fazer,
parece que esta condição só ganha consistência no estado de natureza. Pois ali os homens
gozam de um direito natural que consiste na “liberdade que cada homem tem de usar seu
próprio poder, como ele quer, para a preservação de sua própria vida” (COSTA, 1997, p. 67),
tal atitude implica que o homem tenha direito a todas as coisas, justamente porque “as leis de
natureza não limitam essa liberdade natural porque são somente conselhos prudentes e
porque, [...], obrigam in foro interno mas não in foro externo” (COSTA, 1997, p. 67). Para
Hobbes, as leis civis não têm o poder de limitar a liberdade dos homens. “Tal liberdade não
resulta do silêncio das leis, mas do fato de que o estado natural continua relevante no estado
civil na medida em que é “evidente”, para Hobbes, “que todo súdito tem liberdade em todas
as coisas cujo direito não pode ser transferido por um pacto” (HECK, 2002, p. 537). Continua
70
Heck, citando Macpherson, a demonstrar que o homem dentro dos meandros do estado
político ainda permanece livre: “o homem natural é o homem civilizado, apenas com a
restrição legal removida” (2002, p. 537). Essa inversão, do natural para o civil, serviu para
mostrar que o homem, dentro do estado político, pode negar-se a tomar certas atitudes, as
mesmas que podia tomar no estado natural, por exemplo, brigar pela sua vida, e assim
comprova-se que o Leviatã não limita totalmente o homem em relação à sua liberdade. Quem
cumpre as leis por temor ao castigo, é livre porque nada o impede a desobedecer. Quando um
indivíduo desobedece e é enviado à prisão, ainda assim continua a gozar da sua liberdade
(pode mexer uma sobrancelha, um dedo, ou qualquer outro órgão), porém, a sua ação livre
encontra certas restrições. “A lei civil constitui ao mesmo tempo uma ordem e uma ameaça de
coação da liberdade futura dos que são livres no presente para desobedecer. Por suposto, nos
recorda Hobbes, os homens também são sempre livres de fazer tudo o que a lei civil não
proíba” (COSTA, 1997, p. 67).
A passagem do estado de natureza ao civil, Hobbes a define como um ato livre e
voluntário dos homens, motivado pela paixão do medo e a esperança (medo da paralisação do
movimento vital – morte violenta – e a esperança de uma vida melhor – confortável e em
paz), em que se relacionam a liberdade absoluta (direito natural) e a segurança (direito civil).
A partir deste momento, o único que passa a gozar da liberdade absoluta é o soberano, visto
que está acima das leis civis63
. A diferença entre liberdade natural e liberdade civil:
Pode ser mais bem compreendida partindo do feito de que, no estado de
natureza, o termo ‘liberdade’ aparece geralmente no singular, como o direito
de todo homem a todas as coisas, enquanto que na República o súdito não
goza de liberdade absoluta senão de liberdades, que são instituídas e
apresentadas pela lei civil. Neste contexto, ‘liberdades’ significam os direitos
concedidos a todos os súditos pelas leis da República, que os obrigam e
protegem ao mesmo tempo (MARGARITA COSTA apud COSTA, 1997, p.
68).
Thomas Hobbes postulou uma teoria cuja essência do homem está embasada em uma
concepção mecânica da natureza. Isso se demonstra bastante evidente na introdução ao
Leviatã, pois “do mesmo modo que tantas outras coisas, a natureza (a arte mediante a qual
Deus fez e governa o mundo) é imitada pela arte dos homens também nisto: que lhe é
possível fazer um animal artificial” (LEVIATÃ, 1983, p. 05). Aqui observamos, ainda que
tácito às entrelinhas, a aplicação mecânica na natureza humana em dois momentos distintos, a
saber, nos homens enquanto corpos particulares:
63
“Mas essa limitação da liberdade natural abre a possibilidade de novas ações que eram impossíveis no estado
de natureza, como dedicar-se a cultivar as artes e as ciências” (COSTA, 1997, p. 68).
71
Pois vendo que a vida não é mais do que um movimento dos membros, cujo
início ocorre em alguma parte principal interna, por que não poderíamos
dizer que todos os autômatos (máquinas que se movem a si mesmas por
meio de molas, tal como um relógio) possuem uma vida artificial? Pois o
que é o coração, senão uma mola; e os nervos, senão outras tantas cordas; e
as juntas, senão tantas outras rodas, imprimindo movimento ao corpo
inteiro, tal como foi projetado pelo Artífice? (LEVIATÃ, 1983, p. 05).
Hobbes descreve a mecânica da natureza humana análoga à mecânica de um relógio.
Assim como o construtor do relógio o fabricou e o colocou em movimento e, este já não
depende mais daquele, o homem é um corpo autômato, pois, posterior ao movimento iniciado
pelo Artífice, é capaz de se mover em uniformidade à autopreservação. E, no segundo
momento, no que concerne ao Estado:
A arte vai mais longe ainda, imitando aquela criatura racional, a mais
excelente obra da natureza, o Homem. Porque pela arte é criado aquele
grande Leviatã a que se chama Estado, ou Cidade (em latim Civitas), que
não é senão um homem artificial, embora de maior estatura e força do que o
homem natural, para cuja proteção e defesa foi projetado (LEVIATÃ, 1983,
p. 05).
No estado natural, pré-político, cuja diferenciação física e as faculdades do espírito
ainda são inexistentes, surge um direito amplo e irrestrito de cada homem livre. Esta condição
gera a tensão da possível guerra universal de todos contra todos. Primeiramente existe uma
igualdade baseada nas capacidades e, em segundo plano, uma igualdade com relação às
expectativas de satisfação dos desejos. Toda essa paridade de forças provoca a instabilidade.
Quando se incluem nessa igualdade as paixões e desejos particulares, somada à certeza de que
os bens naturais são escassos, os homens passam de iguais a inimigos mortais. Isso significa
que a igualdade natural em racionalidade, desejos e paixões constitui-se como fonte geradora
e instauradora da guerra geral.
Além disso, desde que os homens são, pela paixão natural, de diversas
maneiras ofensivos uns aos outros, e todo homem pensa bem acerca de si e
odeia constatar o mesmo nos demais, eles devem provocar uns aos outros
por meio das palavras e outros sinais de desprezo e ódio, que são incidentes
a toda comparação, até finalmente mostrarem a preeminência pela potência e
força do corpo (ELEMENTOS, I, XIV, p. 94).
Thomas Hobbes continua:
Considerando que os apetites de muitos homens levam-nos para um e o
mesmo fim, este fim algumas vezes nem pode ser usufruído em comum, nem
dividido, segue-se que o mais forte deve usufruí-lo sozinho, e que é decidido
por meio de batalhas em favor do mais forte. E portanto a maior parte dos
homens, sem assegurar-se enquanto maioria, entretanto por meio da vaidade,
ou comparação, ou apetite, provocam os demais, que de outra maneira
ficariam satisfeitos com a igualdade (ELEMENTOS, I, XIV, p. 94).
72
Os conflitos físicos e sangrentos não precisam estar acontecendo para que a condição
de guerra de todos contra todos seja uma realidade efetiva. Basta que os homens tenham
consciência da igualdade de poder e da liberdade de fazer aquilo que quiserem e puderem. O
universo conceitual humano, delineado por Hobbes, a partir da mecanicidade da natureza,
manifesta toda a complexidade do homem racional e movido por paixões. A luta e o medo
que pulsam no interior subjetivo, em estado natural, sugerem a autodefesa e a busca de
proteção64
, podendo canalizar aquela reação primeira em defesa da vida, também conhecida
como egoísmo e individualismo naturais.
Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é
conseqüência: que nada pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de
justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há
lei, e onde não há lei não há injustiça. [...] Outra conseqüência da mesma
condição é que não há propriedade, nem domínio, nem distinção entre o meu
e o teu; só pertence a cada homem aquilo que ele é capaz de conseguir, e
apenas enquanto for capaz de conservá-lo (LEVIATÃ, I, XIII, p. 81).
Desejo e poder caminham juntos e, unidos, definem grande parte do que é o homem.
Pelo desejo ele procura a felicidade não como fim último ou atualização de sua
potencialidade65
, mas como satisfação dos desejos imediatos, uma vez que a vida humana
nada mais é do que uma constante corrente de desejos. A felicidade não passa de uma
ininterrupta realização dos desejos particulares. Macpherson ressalta que, pelo postulado do
estado de natureza, Hobbes quer mostrar o modo pelo qual os homens sendo como são se
comportariam se não existisse o Estado e, por suposto, a ação das leis em suas vidas.
O estado de natureza retrata a maneira da qual os indivíduos, sendo o que
são, se comportariam inevitavelmente se não houvesse nenhuma autoridade
para obrigar ao cumprimento da lei ou do contrato. Dada a natureza apetitiva
e deliberativa dos homens [...] é desse modo que se comportariam
inevitavelmente se fosse completamente removida a obrigação ao
cumprimento da lei e dos contratos (MACPHERSON, 1979, p. 30).
A condição natural da humanidade seria vistoriada não por oposição ao ser civilizado,
mas sim por uma transferência das características dos indivíduos civilizados para a condição
natural enquanto possibilidade. Nesse sentido, “o estado de natureza, de Hobbes, tal como é
geralmente reconhecido, é uma hipótese lógica, não histórica. É uma ‘Dedução oriunda das
Paixões’; relata ‘que maneira de vida haveria se não existisse um Poder comum a temer’”
64
“A aplicação da teoria mecânica do movimento ao homem resulta na constatação de que o homem tende a
persistir, isto é, a procurar os meios que lhe permitem continuar vivo, continuar em movimento” (FRATESCHI,
2008, p. 71). 65
Para Hobbes, a concepção de causa última em que o homem busca eternamente ou a busca de atualização de
suas potencialidades, dentro da sociedade, não existem. Isso acontece justamente porque a posição adotada por
Hobbes é substancialmente avessa a de Aristóteles.
73
(MACPHERSON, 1979, p. 31). O caminho seguido por Hobbes é o da inversão: da sociedade
civilizada ao estado natural. Na verdade, em última instância, pode-se dizer que o homem
natural ou o estado de natureza foi sempre analisado sob o prisma do homem civilizado e sob
o domínio de uma força estatal coercitiva.
Desta análise do caminho civilizado ao natural, Hobbes postula que no estado natural
cada homem é inimigo do outro em potencial.
Considerando então a ofensiva da natureza dos homens uns com os outros,
deve-se acrescentar um direito de todos os homens a todas as coisas,
segundo a qual um homem invade com direito, e outro homem com direito
resiste, e os homens vivem assim em perpétua difidência, e estudam como
devem se preocupar uns com os outros. O estado dos homens em sua
liberdade natural é o estado de guerra. Pois a guerra nada mais é do que o
tempo no qual há vontade de disputar e constatar por meio da força, seja com
palavras ou com ações suficientemente declaradas; e o tempo que não é
guerra, este é paz (ELEMENTOS, I, XIV, p. 96).
Não há espaço para a harmonia e a concórdia, moral e ética, pois pelo desejo cada
indivíduo obedece a uma regra interna e particular de autopreservação e autodefesa, abrindo
espaço para o conflito genérico. A ilimitada condição dos desejos arquiteta a mecânica do
indivíduo e o mecanismo do poder e, assim, o estado natural surge como “o reino do instinto e
das paixões desenfreadas, da igualdade absoluta e ilimitada, da vontade arbitrária e irracional.
É um estado de uma multidão inorgânica, de força, de anarquia, onde a única regra de conduta
é a razão do próprio indivíduo” (WOLLMANN, 1993, p. 33).
Nesta compreensão da mecânica das paixões e dos desejos em sua relação com a
instituição do Estado, Hobbes tenta mostrar que não se trata mais de exaltar a supremacia da
razão. O medo da morte, o ímpeto das paixões e o desejo de uma vida mais confortável unidos
à razão prefiguram a condição de uma vida melhor. Assim:
Hobbes nega a existência da reta razão, como medida comum e natural do
valor e, portanto, como critério de justiça. Ao reduzir a razão a uma
faculdade calculadora, ele nega a possibilidade de que ela exerça o domínio
sobre as paixões: ao contrário, a razão calcula os meios de obter fins postos
pelo desejo (cuja origem é não racional) (FRATESCHI, 2008, p. 91).
O aspecto racional humano, por propender ao cálculo, unido ao desejo de
sobrevivência traça uma lógica das condições necessárias à manutenção da vida e uma delas é
o abandono da liberdade primitiva e ilimitada. Chega-se, então, às vantagens da sociabilidade,
suprindo as expectativas em torno da autopreservação e da paz. Em Hobbes encontramos a
idéia de homem submetido a essa lógica de movimentos naturais e instintivos, gerador de
paixões e desejos, fundamentados em aversões e atrações naturais que desencadeiam em
74
posturas, por vezes, denominadas egoístas, mas que em nada diminuem a liberdade do homem
em condição natural, desde que realize ações consoantes à natureza.
A definição de liberdade, em Hobbes, é marcada pelo seu compromisso
intelectual com as cláusulas que, [...], caracterizam a nova ciência. A
concepção hobbesiana é tributária da teoria mecanicista e materialista, que
defende a tese de que a realidade é constituída por matéria e movimento e
condicionada pela lei da inércia (FRATESCHI, 2008, p. 19).
O egoísmo humano preconizado por Hobbes, não é senão o movimento natural próprio
do corpo, que pode ser fomentado em larga escala a depender da direção que o próprio
homem dá à sua história. O filósofo político inglês é taxativo no sentido de não aceitar uma
natureza humana de cada indivíduo como complacente ao desejo do outro. O mecanismo
físico-biológico a que o homem hobbesiano é submetido não é apaziguador e posto que este
homem pode criar novos e infinitos objetos de desejos, pode também aumentar em grande
escala os conflitos com seus semelhantes, a tal ponto da guerra se tornar de todos contra
todos. “Quando vários homens têm direito não apenas a todas as coisas, mas também às
coisas de outrem, por causa disso surgem então invasão de um lado e resistência do outro, o
que significa guerra, contrária, portanto, à lei de natureza, cuja síntese consiste em fazer a
paz” (ELEMENTOS, I, XV, p. 100). Contudo, o homem hobbesiano não está fadado à guerra
contínua e universal, posto que por conta da razão e da linguagem ele pode instaurar outra
realidade, totalmente avessa à natural e cuja característica seja a preservação da sua vida.
Com vistas à pertinência científica de sua ciência civil, o teórico político
inglês realça como “o maior benefício da linguagem o fato de podermos dar
comandos e entender comandos. Pois, na ausência deles não haveria
nenhuma sociedade entre os homens, nenhuma paz e, por conseguinte,
nenhuma disciplina, depois solidão e, em vez de lares, cavernas” (HOBBES
apud HECK, 2002, p. 548).
Apesar das leis naturais atuarem no homem, não há, segundo Hobbes, por natureza,
nenhum parâmetro de ação que designe algo como mau ou bom, justo ou injusto, certo ou
errado, legal ou ilegal, moral ou amoral. A força das instâncias fisiológicas carrega consigo
apenas o movimento e não existindo nenhuma conotação moral que qualifique positiva ou
negativamente as paixões e desejos. Toda e qualquer pressuposição valorativa encontra seu
elemento fundador na vida social. Portanto, em relação à condição natural delineado por
Hobbes não se encontra uma moralidade que seja inerente ao indivíduo66
.
66
“Assim, no lugar de confinar a moral ao plano interior da boa intenção, o esforço de Hobbes, inversamente, é
o de mostrar a todos aqueles que reduzem a moral a uma questão de limpidez da consciência que a consciência,
tal como passou a ser entendida, como o conjunto de nossas opiniões privadas e secretas, é vazia de valor moral
sempre que não se reverte em virtude, entendida como um ethos, uma disposição de caráter visível e calculável
75
A condição natural do homem é delineada por Hobbes a partir do movimento,
sentimentos e desejos vividos para além de qualquer conotação transcendental.
Os desejos e outras paixões do homem não são em si mesmo um pecado.
Nem tampouco o são as ações que derivam dessas paixões, até o momento
em que se tome conhecimento de uma lei que as proíba, o que será
impossível até o momento em que sejam feitas leis, e nenhuma lei pode ser
feita antes de se ter acordado quanto à pessoa que deverá fazê-la (LEVIATÃ,
I, XII, p. 80).
O movimento que resulta na suscitação dos desejos compreende-se que estes estão
vinculados aos objetos em função dos efeitos produzidos por eles no indivíduo. Os efeitos
benéficos e maléficos são diferentes para cada homem, sendo que cada qual repudia aquilo
que considera ruim para si e busca o que lhe faz bem. Ademais, estando os corpos em
contínua mudança de lugar, é natural que os desejos e apetites também estejam sendo
alterados de acordo com a necessidade do homem. De acordo com a citação acima, as paixões
não são, em si mesmas um mal. As ações por elas guiadas se constituem em faltas ou erros
apenas quando passa a existir uma lei que as delimite ou proíba, fora disso não são nada mais
do que movimentos naturais. Ou seja, as paixões vistas de um prisma científico não podem
ser concebidas como males intrínsecos à natureza. A divisão entre razão e paixões representa
apenas o caos e a ordem a que a natureza humana está submetida, sendo que não há como
reabilitar nem modificar ou melhorar nada nesta natureza, assim como não é possível
reconstituí-la. A particularidade da condição humana é a existência dos movimentos, aos
quais não cabem, em princípio, nenhuma análise ou juízo de valor.
Partindo de um prisma fisiológico, Hobbes assevera que o homem age em função do
prazer e da dor, do desejo pessoal e da aversão. Tais sentimentos não são mais que sinais dos
movimentos de inclinação e repulsão, próprios da natureza humana. Por este motivo que as
paixões e os vícios não devem ser atribuídos às fraquezas de caráter do homem, senão que
fazem parte da própria constituição natural. Assim, apesar de todos os problemas provenientes
da natureza humana, esta não deve ser censurada, mas explicada a partir de sua própria
compreensão natural. O indivíduo apenas obedece ao império da natureza e é livre para fazer
tudo que julgar que lhe seja útil para sua preservação.
Com isso, Hobbes está claramente defendendo um relativismo moral, em que os
valores morais são provenientes de convenções estabelecidas pelo próprio homem, sendo que
nada pode ser medido por valores eternos ou absolutos.
na conduta. Seu esforço, pode-se dizer, é o de conformar as virtudes cristãs às virtudes civis e mostrar que as
primeiras nada valem sem as segundas, pois sem a mediação da política não se passa da boa intenção às boas
ações” (LIMONGI, 2009, p. 284)
76
A justiça e a injustiça não fazem parte das faculdades do corpo e do espírito.
Se assim fosse, poderiam existir num homem que estivesse sozinho no
mundo, do mesmo modo que os seus sentidos e paixões. São qualidades que
pertencem aos homens em sociedade, não na solidão (LEVIATÃ, I, XII, p.
81).
Consoante a Hobbes, a inexistência de algo que revele ao homem, em sua consciência
moral, a presença de valores inatos e absolutos, é real. Pois a mecânica não hierarquizada dos
desejos, atrelada à subjetividade, determina a definição do bem e do mal em relação a cada
sujeito. Em contrapartida, apenas o Estado formalmente instituído é capaz de criar parâmetros
de justiça e moralidade que visem o bem de todos, que nada mais é do que a própria
preservação. Fora do Estado, argumenta Hobbes, “nada pode ser injusto. As noções de certo e
de errado, de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei,
e onde não há lei não há injustiça” (LEVIATÃ, I, XIII, p. 81).
O homem natural não é um ‘corpo moral’ em si mesmo, capaz de atingir e praticar
ações boas por elas mesmas e, sobretudo, para o próprio benefício. A condição humana
conglomera uma gama de sentimentos contraditórios, impedindo que os indivíduos
transformem as leis naturais da razão em leis efetivas na ação. A abertura ao outro, o pacto e a
aceitação da vida em comum, pressupõem o abandono da liberdade natural e a adesão e
obediência a um esquema de moralidade convencional, instituída artificialmente.
É evidente, para quem observa com um pouco mais de atenção as coisas
humanas, que todas as nossas reuniões se realizam ou por necessidade ou por
desejo de promoção recíproca; por isso, os participantes se esforçam por tirar
algum proveito ou captar estima e honra uns dos outros. O raciocínio chega
às mesmas conclusões partindo das noções de vontade, bem, honra e
utilidade. Como a sociedade é estabelecida voluntariamente, procura-se em
todas o objetivo da vontade, isto é, algo que parece ser bom para cada
indivíduo. Mas tudo que parece bom é agradável e tem relação com os
sentidos orgânicos ou com o espírito. E todo prazer do espírito ou consiste
na honra, quer dizer, em gozar boa fama, ou, em última instância, reduz-se à
honra. Os demais são sensíveis, ou reduzem-se ao sentido, e podem ser
compreendidos no termo útil. Toda sociedade, portanto, é forjada pela honra
do útil ou pelo estímulo da honra, isto é, por amor a si e não aos sócios e
componentes (DE CIVE, I, I, p. 51).
Nesse sentido, os imperativos da moralidade humana são guiados por leis externas e
convenientes a cada indivíduo, já que internamente os indivíduos são apenas corpos em
movimento, condicionados pela atração ou repulsão. Diante disso, é fácil constatar que o
mundo dos valores não se encontra previamente bem reputado. O homem não nasce com as
noções de bem e mal, justo e injusto, legalidade e ilegalidade, certo e errado como se fossem
idéias inatas. Igualmente, elas não se encontram fora do sujeito, não são topadas, impressas
77
nas coisas e não têm existência objetiva. Então, como elas surgem? O próprio Hobbes nos
responderá esta importante questão:
Mas como todos concedem não ser legítimo o que não for contra a reta
razão, devemos julgar injustas as ações que repugnam à reta razão, isto é,
contradizem alguma verdade deduzida de princípios verdadeiros pelo correto
uso do raciocínio. Dizemos, então, que é contra alguma lei a ação injusta,
feita contra algum direito. Por isso, reta razão é uma certa lei que sendo
parte da natureza humana não menos do que qualquer outra capacidade o
potência da alma, também é designada natural. Definindo, portanto, lei
natural é um ditame da reta razão sobre as coisas a fazer ou omitir para
garantir-se, quando possível, a preservação da vida e das partes do corpo
(DE CIVE, I, II, p. 58-59).
As leis brotam como possibilidades de ações dos homens no mundo, criadas para
nortear os atos humanos, por convenções e acordos. Com isso, Hobbes impõe aos valores uma
dinâmica subjetiva e relativa. Tendo em vista que tudo é representado e como o sujeito é a
medida dessa representação, não há nada que leve uma carga positiva ou negativa em si
mesmo, pois a natureza descarta qualquer regra moral universal. Sendo assim, não há
necessariamente uma harmonia, compatibilidade ou finalismo das afecções e desejos humanos
que possam traçar uma ética natural e universal.
Diante dos desejos e paixões individuais, o Estado elimina os excessos visando o
controle das mesmas, a ponto de assegurar a vida e a paz dos indivíduos.
Na tradição jusnaturalista, a começar por Hobbes, indivíduos são soberanos
apenas no estado de natureza, e por isso estão, tal como os Estados
soberanos do sistema internacional, em contínua guerra entre si. Para se
salvar, devem renunciar à própria independência, mesmo que nas repúblicas
ideais continuem a conservá-las (BOBBIO; VIROLI, 2002, p. 34).
O objetivo de Hobbes é claramente o de limitar o campo dos desejos, que derivam do
próprio movimento natural, diminuindo sua intensidade externa. Para isso ele sugere tratados
de paz que limitem a tendência à autodestruição, salvaguardando condições mínimas para a
vida pacífica e provida de condições profícuas para o desenvolvimento de elementos
necessários à preservação da espécie humana. Contudo, isso não caracteriza o homem
hobbesiano como naturalmente mau, visto que a natureza humana não oferece subsídios
necessários para o discernimento entre o bem e o mal. O resultado disso é a submissão do
homem ao movimento natural de autodefesa e autopreservação, o que o leva a experimentar,
acima de tudo, o conflito geral.
Sendo assim o estado de honestidade e de guerra, pelo qual a própria
natureza é destruída, com os homens matando-se uns aos outros [...], aquele
portanto que deseja viver num estado tal como é o estado de liberdade e
direito de todos sobre tudo [...], contradiz a si mesmo. Pois todo homem,
78
pela necessidade natural, deseja o seu próprio bem, ao qual aquele estado é
contrário, no qual supomos haver disputa entre os homens que por natureza
são iguais e aptos a se destruírem uns aos outros (ELEMENTOS, I, XIV, p.
96).
A descrição da natureza humana de Hobbes, nada mais é do que a intuição gerada nele
por conta do impacto que a sociedade da sua época proporcionou. Por vezes poderíamos
pensar que ela se encaixa em uma via de interpretação bastante pessimista, pois na ausência
da lei o homem tende a viver conforme as suas vontades que geralmente não são as mesmas
do outro. Além do que o estado de natureza de Hobbes é a condição em que se encontram os
homens fora de uma comunidade política (ou sociedade), em que os homens disputam todas
as coisas por direito natural e absoluto. Nesse estado, possuem o chamado direito de natureza,
o qual consiste na liberdade dos homens de unirem-se a fim de preservar suas vidas e,
consequentemente, fazer tudo aquilo que seu julgamento e razão mostram adequar-se a isso.
Na medida em que o princípio construtivista hobbesiano se torna indistinto
do processo de abstração da incipiente sociedade capitalista, Macpherson é
forçado a conceber a ficção do estado natural como simples negação da
sociedade civilizada, a saber: sem indústria, nem cultivo da terra, nem
navegação, nem arquitetura, tampouco artes, letras e ciências (HECK, 2002,
p. 535).
O homem deve esforçar-se para que exista a paz e que esta seja mantida, mas não deve
renunciar aos seus direitos em favor dos outros – deve garantir a sua própria existência acima
de qualquer princípio. Se o estado de harmonia em que se encontrar for violado, é digno de
recorrer ao livre uso da força se não para aumentar seu poder, para impedir que ele seja
controlado. Um efeito do que foi acima descrito é a dificuldade do homem em gerar riqueza,
pois ocupa-se com a própria proteção. Tal maneira do homem agir é efeito de exercício
intelectual no desprovimento do poder comum para paralisar a paixão e o desejo subjetivos.
No estado natural o homem demonstra com mais intensidade a “esfera selvagem” de
sua vida, ao passo que, no Estado civil o homem não deixa de possuí-la, contudo, por conta
do poder e da ação do soberano, o homem tende a “controlar” as paixões que lhe são naturais.
Na concepção política de Thomas Hobbes, estado de natureza é sinônimo de estado de guerra
e na “passagem” deste estado para o Estado civil não há nenhuma espécie de modificação na
natureza do homem, de maneira que em ambos os estados o homem é o mesmo “selvagem” –
dominado por suas paixões particulares e utilizando-se da razão apenas para o próprio bem.
Assim sendo, “a hipótese do estado de natureza não é invalidada pela existência do status
civilis. Para Macpherson, a condição natural dos homens é ubíqua e não está isolada dos
homens no tempo e no espaço” (HECK, 2002, p. 534).
79
Como já demonstramos, o homem natural de Hobbes é o mesmo homem civilizado,
apenas com algumas restrições legais. A restrição à ação livre do homem é uma característica
da lei civil, pois, se assim não fosse, em nada o Estado civil se diferenciaria do estado natural
e o homem continuaria a fazer a sua autodefesa e a encontrar atritos com os outros homens.
Remover ou simplesmente reduzir certos direitos que são naturais aos homens é uma atitude
proveniente e própria do Estado civil, além de ser sua forma de proceder e de ser manter. O
esquema do Estado civil é o de amparar e coagir o homem pela força que a lei civil é capaz de
exercer sobre as suas ações, contudo, as paixões humanas jamais desaparecerão. Estarão ali,
exatamente no mesmo lugar em que estavam no estado natural, agora, porém, ‘adormecidas’
pelo poder da lei civil, prontas a serem despertadas caso a vida não esteja sendo preservada.
Assim, o homem é moldado à vida em sociedade, embora seja uma dimensão artificial cujo
interesse particular sempre prevalecerá67
.
2.3 A FUNÇÃO DA LINGUAGEM E DA RAZÃO EM HOBBES68
O contrato social é uma maneira de retirar os homens da condição de sedição natural.
A sua fundamentação está no uso correto da razão e da linguagem humanas. Com efeito, ele é
67
“Tão somente o acréscimo de premissas sociais aos postulados fisiológicos possibilita, segundo Macpherson,
interpretar o poder como ter sempre mais poder sobre os outros homens. As supostas premissas são incrustadas
no modelo da sociedade de mercado possessivo do século XVII. Os resultados dessa fixação tipológica trazem à
superfície as relações de poder como relações de mercado (a market in Power). Como marca individual, o poder
tem a fisionomia privada do proprietário burguês e, como grandeza societária, o mesmo poder configura o
sistema mercadológico da permuta universal dos bens capitalistas. Em vez de caracteriza a prevalência
hobbesiana do indivíduo como individualismo-de-poder, o enquadramento do fenômeno do poder no circuito do
mercado leva Macpherson a caracterizá-lo como individualismo-de-posse. Limitada pela definição do respectivo
objeto, a posse de bens móveis ou imóveis implica, em relação ao poder individual, um reducionismo metódico.
Por ser apenas um dos meios disponíveis ao indivíduo para usufruir poder, o individualismo possessivo
macphersoniano disseca o poder do homem à moda capitalista, ou seja, reserva-lhe eficácia sob os auspício do
capital. Mesmo que a premissa histórica de Macpherson incida corretamente no capitalismo inglês nascente, o
fator econômico é, antes e depois do século XVII, apenas um dentre os vários fatores que articulam e efetivam a
consolidação do Power market humano. O interesse do indivíduo em ter poder e mais poder não se atém às
regras-de-fé do mercado, mas acolhe qualquer possibilidade interativa para acumular poder, seja ela de caráter
cultural, epistêmico, artístico, religioso, político ou armamentista” (HECK, 2002, p. 535-536). 68
“O interesse de Hobbes pela retórica manifesta-se na introdução da Guerra do Peloponeso. A escrita histórica
– vista por ele como um meio de instrução que torna os homens mais prudentes por meio do conhecimento das
ações passadas – é composta de verdade e elocução. A verdade é a sua alma. A elocução, o seu corpo. Elas são
indissociáveis (como a alma é, para Hobbes, indissociável do corpo), pois a verdade, sem a elocução, é inapta
para instruir. Tucídides, escolhido por Hobbes como o melhor escritor da história entre os antigos, é feliz na
aplicação dos dois componentes. Ele usa toda a diligência que um homem é capaz de usar na busca da verdade e
é eloqüente na exposição dos fatos. Em 1637, Hobbes publicou um resumo da Retórica de Aristóteles, sob o
título The Brief Art of Rhetoric (reimpresso em 1681 sob o título The Whole Art of Rhetoric). Em 1640,
começaram a circular as primeiras cópias do Elements of Law. O que chama a atenção do leitor é a manifesta
indisposição do filósofo em relação à retórica neste trabalho. Mais uma vez, a crítica é latente no Do Cidadão.
Nestas duas obras, Hobbes atribui utilidade alguma à retórica. Pelo contrário, ela é fonte de guerra e sedição.
Entretanto, a retórica volta a ser vista como uma coisa útil no Leviatã. Em 1651, tal como em 1628, ele constata
que a razão, sem a eloqüência, é inapta para instruir” (FRATESCHI, 2000, p. 75).
80
puramente um artifício da soma da linguagem e da razão humanas. Hobbes compreendeu a
razão como capacidade de cálculo – adição ou subtração – sobre a decorrência de nomes
utilizados para marcar o nosso pensamento em relação a determinado fato69
. No que confere à
linguagem, na maneira hobbesiana de entendê-la, podemos dizer que ela é genuinamente
conexão de nomes e apelações pelas quais os homens registram seus pensamentos e os tornam
conhecidos aos outros70
.
2.3.1 A utilidade da linguagem no processo de construção do Estado
Hobbes abre o capítulo IV do Leviatã, sobre a linguagem, refletindo acerca do
surgimento e a finalidade das letras. Consoante o pensador político inglês, as letras servem
para prolongar a memória dos tempos que já se passaram, unir a humanidade em torno de
pontos comuns ou contraditórios e no estabelecimento de caracteres úteis para a recordação e
convenção de determinada coisa71
. Não obstante o surgimento e o uso das letras por parte da
humanidade, a mais nobre e útil invenção de todos os tempos é a linguagem, pois:
Consiste em nomes ou apelações e em suas conexões, pelas quais os homens
registram seus pensamentos, os recordam depois de passarem, e também os
usam entre si para utilidade e conversa recíprocas, sem o que não haveria
entre os homens nem Estado, nem sociedade, nem contrato, nem paz, tal
como não existem entre os leões, os ursos e os lobos (LEVIATÃ, I, IV, p.
20).
A linguagem ganha seu estatuto de importância junto à humanidade por conta do seu
efeito: a comunicação. Para haver comunicação, o homem deve transpor o conteúdo do
discurso mental para o discurso verbal – a linguagem – de modo que “sem palavras não há
qualquer possibilidade de reconhecer os números, e muito menos as grandezas, a velocidade,
a força, e outras coisas, cujo cálculo é necessário à existência, ou ao bem-estar da
humanidade” (LEVIATÃ, I, IV, p. 22-23). O discurso verbal é uma cadeia de pensamentos ou
de imaginações72
, ao passo que, “por conseqüência, ou cadeia de pensamentos, entendo
aquela sucessão de um pensamento a outro, que se denomina (para se distinguir do discurso
em palavras) discurso mental” (LEVIATÃ, I, III, p. 16). O discurso mental ocorre
excepcionalmente na esfera da imaginação, desenvolvendo uma forma de cálculo, sem
palavras, onde ocorre a passagem, através da adição ou subtração, de um pensamento a outro.
69
Cf. LEVIATÃ, I, V, p. 27. 70
Cf. LEVIATÃ, I, IV, p. 20. 71
Cf. LEVIATÃ, I, IV, p. 20. 72
Cf. LEVIATÃ, I, IV, p. 21.
81
Por esta via, os homens tornam seus pensamentos acessíveis aos outros homens e
suscetíveis de refutação ou acolhimento. A linguagem é o meio que conduz a humanidade ao
progresso, de forma que, uma vez obtida uma ideia inovadora e profícua na mente alheia,
basta torná-la inteligível aos outros e, se plausível, a agregação desta na sociedade é uma
questão de tempo senão imediata. Assim, “o uso geral da linguagem consiste em passar nosso
discurso mental para um discurso verbal, ou a cadeia de nossos pensamentos para uma cadeia
de palavras” (LEVIATÃ, I, IV, p. 21) e desta maneira a comunicação acontece.
O uso geral da linguagem tem duas utilidades. A primeira tem por objetivo a fixação
de registros oriundos do pensamento, os quais são marcados com significados próprios. A
segunda utilidade denota ao significado mesmo da coisa, o qual, a fim de se evitar equívoco,
assume apenas uma identidade73
. De tal modo, que a primeira utilidade da linguagem permite
o homem a marcar ou fazer anotações de lembranças, evitando com que determinado discurso
mental não caia no esquecimento total. Para tanto o homem ‘marca’ ou transforma em ‘nota’
o produto de sua mente e, para fins de comunicação, serve-se deles apelando para a marca ou
para nota específicas. A segunda, por sua vez, permite a utilização dos chamados sinais, que
nada mais são do que a convenção para o processo de ‘rotulagem’ dos corpos existentes,
sendo eles contidos na mente humana ou em outros locais próprios.
Além destas duas utilidades da linguagem, Hobbes destaca quatro usos especiais:
Em primeiro lugar, registrar aquilo que por cogitação descobrimos ser a
causa de qualquer coisa, presente ou passada, e aquilo que achamos que as
coisas presentes ou passadas podem produzir, ou causar, o que em suma é
adquirir artes. Em segundo lugar, para mostrar aos outros aquele
conhecimento que atingimos, ou seja, aconselhar e ensinar uns aos outros.
Em terceiro lugar, para darmos a conhecer aos outros nossas vontades e
objetivos, a fim de podermos obter sua ajuda. Em quarto lugar, para agradar
e para nos deliciarmos, e aos outros, jogando com as palavras, por prazer e
ornamento, de maneira inocente (LEVIATÃ, I, IV, p. 21).
A linguagem foi convencionada e existe para tornar o nosso discurso mental
compreensível aos outros homens, para avaliação e aceitação ou refutação. Buscamos a
compreensão, o acolhimento, a glória, o reconhecimento diante da comunidade de homens. A
linguagem tem este poder justamente por ser a via de externalização entre aquilo que estamos
pensando e aquilo que queremos comunicar. Além disso, a “linguagem serve para a
recordação das conseqüências de causas e efeitos, através da imposição de nomes, e da
conexão destes” (LEVIATÃ, I, IV, p. 21). A linguagem facilita a vida do homem no instante
que subsidia a ação do outro homem com base na ação já efetivada por este. Nem todos os
73
Cf. LEVIATÃ, I, IV, p. 21.
82
homens necessitam estudar química para saber que a composição da água é H2O, precisamos,
apenas, confiar na transposição do discurso mental para o discurso verbal de certos
indivíduos. Da mesma maneira, não precisamos colocar nossa mão ao fogo toda vez que
quisermos recordar que o fogo queima, basta lembrarmo-nos de experiências passadas, visto
que a linguagem tem a função de rememorar as conseqüências de causas e efeitos das
experiências sensíveis dos homens.
E assim a conseqüência descoberta num caso particular passa a ser registrada
e recordada, como uma regra universal, e alivia nosso cálculo mental do
espaço e do tempo, e liberta-nos de todo o trabalho do espírito,
economizando o primeiro, e faz que aquilo que se descobriu ser verdade aqui
e agora seja verdade em todos os tempos e lugares (LEVIATÃ, I, IV, p. 22).
Hobbes reconhece a importância da linguagem para as relações humanas justamente
por acreditar na autenticidade e no poder que ela possui. Exemplo disso é o valor de verdade
ou falsidade, ambos perceptíveis apenas na própria linguagem, ou seja, a compreensão
humana acerca da verdade ou da falsidade está intimamente ligada com a maneira que está
sendo utilizada para a comunicação. Aquilo que o locutor tem a pretensão de tornar suscetível
de assimilação (ou não) é digno de ser julgado como verdadeiro ou falso, mas isso porque a
significação está impressa na linguagem e não na coisa. “Pois o verdadeiro e o falso são
atributos da linguagem, e não das coisas. E onde não houver linguagem, não há nem verdade
nem falsidade” (LEVIATÃ, I, IV, p. 23).
A verdade é efeito da apropriada ordenação dos nomes em todas as nossas afirmações,
ao contrário, a mentira é a implicação da utilização desordenada dos nomes em nossas
afirmações verbais. Os homens que buscam a veracidade na argumentação devem esforçar-se
para a correta recordação do sentido de cada palavra, propriamente para evitar a falsidade.
Para o pensador de Malmesbury, a geometria é a ciência responsável pelo estabelecimento das
significações de suas palavras e a “esse estabelecimento de significações chamam de
definições, e colocam-nas no início de seu cálculo” (LEVIATÃ, I, IV, p. 23).
À medida que os homens vão incorporando conteúdo verdadeiro ou falso à sua
linguagem, eles vão se tornando mais sábios ou mais loucos do que costumeiramente são74
.
Assim como não é possível entendermos o valor semântico da verdade ou da falsidade sem o
uso da linguagem, da mesma maneira não é admissível o reconhecimento de um louco ou de
um sábio. “Pois as palavras são os calculadores dos sábios, que só com elas calculam; mas
constituem moeda de loucos” (LEVIATÃ, I, IV, p. 24). São as palavras as únicas coisas que
podem ser inseridas ou consideradas em um cálculo lingüístico, seja para fazer soma ou para
74
Cf. LEVIATÃ, I, IV, p. 23.
83
subtração do sentido desejado pelo locutor. Não há raciocínio sem linguagem e o ato de
raciocinar é chamado de silogismo, “o que significa somar as consequências de uma
proposição a outra” (LEVIATÃ, I, IV, p. 24) para se tornar compreensível.
Quando um homem ao ouvir qualquer discurso tem aqueles pensamentos
para as quais as palavras desse discurso e a sua conexão foram ordenadas e
constituídas, então dizemos que ele o compreendeu, não sendo o
entendimento outra coisa senão a concepção causada pelo discurso. E
portanto se a linguagem é peculiar ao homem (como pelo que sei deve ser),
então também o entendimento lhe é peculiar. E portanto não pode haver
compreensão de afirmação absurdas e falsas, no caso de serem universais;
muito embora muitos julguem que compreendem, quando nada mais fazem
do que repetir tranquilamente as palavras, ou gravá-las em seu espírito
(LEVIATÃ, I, IV, p. 25).
Os nomes das coisas que nos afetam podem ser tanto agradáveis como desagradáveis,
o que mostra uma disparidade entre os homens em relação à assimilação dos efeitos
produzidos pela linguagem. Entretanto nenhum homem está alheio ao poder da linguagem.
Todos necessitam dela para tornar a sua linguagem mental conhecida aos outros homens e,
por conseqüência, tornarem-se reconhecidos uns aos outros. Assim, a linguagem é entendida
como uma característica peculiar do homem e como instrumento para manifestar seus
sentimentos e paixões.
Demonstrando um viés pragmático à linguagem, o filósofo político inglês denota-a
com função utilitária: registrar as descobertas das causas (podemos pensar na ciência),
mostrar conhecimento para os outros homens ou gerações futuras, ensinar e aconselhar, tornar
o interior subjetivo conhecido do outro, além de material lúdico ao alcance do prazer. Diante
de tudo isso, entendemos que a utilidade exímia da linguagem ao pensamento de Hobbes
resida na sua importância para a conservação do homem. O mesmo homem que deseja sair da
situação natural própria ao corpo movido pelas paixões. Entendemos, portanto, que a
linguagem viabiliza aos homens a formalização de um pacto cuja cláusula principal seja a
preservação do movimento vital livre do corpo humano.
A partir do momento que os homens vão se colocando em situações diferentes e
necessitando de soluções igualmente diversas, a linguagem vai sendo construída e se
desenvolvendo paulatinamente para devida solução dos problemas existenciais. Para Hobbes,
a mais importante e urgente necessidade da vida humana é a própria preservação, de maneira
que a linguagem ganha uma proeminente função na construção e na permanência do pacto
entre os homens com vistas a esta finalidade.
Dessa maneira, a linguagem evidencia o seu posto político ao ser hábil para reunir os
corpos humanos com medo da morte violenta.
84
A concretização omitida é formulada por Hobbes alhures, quando constata:
“Assim todo homem deseja o que é bom para ele, e foge do que é mau,
principalmente daquilo que é o maior dentre os males naturais, a morte; e
isso é feito por um certo impulso da natureza, tão certeiro quanto uma pedra
que cai”. Levando em consideração essa assertiva, a requerida concretização
parece estar à mão. Uma vez que o homem por imposição natural – tal o
argumento – não pode deixar de resistir à morte que o ameaça, ele está
desobrigado da renúncia à luz do ultra posse nemo obligatur jurídico, pois a
morte que o ameaça parece ser o acontecimento que o coloca num estado de
medo em grau máximo (HECK, 2002, p, 539-540).
Desta união dos homens, percebemos a prevalência de uma paixão, a saber, a
esperança de livrar-se da morte violenta e alcançar a paz. Movido pelo medo da morte
violenta e a esperança de que isso pode ser erradicado, o homem procura a paz que só será
atingida com os demais homens, visto que também a procuram. Esse objetivo só poderá ser
conquistado se os homens expuserem uns para os outros, via linguagem, o anseio que os
motiva: a paz. Pela palavra os homens criam o Estado e igualmente o mantém, no sentido do
estabelecimento de leis promulgadas com intenção de seu cumprimento.
Os sinais de contrato podem ser expressos ou por inferência. Expressas são
as palavras proferidas com a compreensão do que significam. Essas palavras
são do tempo presente, ou do passado, como dou, adjudico, dei; adjudiquei,
quero que isto seja teu; ou do futuro, como darei, adjudicarei, palavras do
futuro a que se chama promessas (LEVIATÃ, I, XIV, p. 80).
Continua Hobbes:
Nos contratos, o direito não é transmitido apenas quando as palavras são do
tempo presente ou passado, mas também quando elas são do futuro, porque
todo contrato é uma translação ou troca mútua de direitos. [...]. É por esse
motivo que na compra e na venda, e em outros atos de contrato, uma
promessa é equivalente a um pacto, e portanto é obrigatória (LEVIATÃ, I,
XIV, p. 81).
Diante da possibilidade de abusos da linguagem por parte de alguns homens, pois “ao
raciocinar, o homem tem de tomar cautela com as palavras, que, além da significação daquilo
que imaginamos de sua natureza, também possuem uma significação da natureza, disposição,
e interesse do locutor” (LEVIATÃ, I, IV, p. 26), onde localizar um ponto fixo para a
extirpação da suspeita do outro? Como podemos notar frente esta dúvida, os homens ainda
estão inseridos em uma situação de medo e de desconfiança. O que é imprescindível, então,
para a linguagem desempenhar um papel de propriedade e confiança para com os homens que
desejam deixar o estado de guerra? A resposta a esta pergunta está no uso da razão – cálculo –
para edificação do Estado como mantenedor do movimento vital em paz.
85
2.3.2 A razão75
humana como cálculo
Procurando a garantia e a coerência para o seu discurso, o homem, movido pela razão,
recorrerá e instaurará o Estado. Isso pode ser encontrado no capítulo V do Leviatã, intitulado
‘da razão e da ciência’, nestes termos:
Quando há uma controvérsia a propósito de um cálculo as partes têm de, por
acordo mútuo, recorrer a uma razão certa, à razão de algum árbitro, ou juiz, a
cuja sentença se submetem, a menos que sua controvérsia se desfaça e
permaneça indecisa por falta de uma razão certa constituída pela natureza, o
mesmo acontece em todos os debates, sejam de que natureza forem
(LEVIATÃ, I, V, p. 28).
O reto raciocínio leva os homens a buscarem a paz e a fugir da morte violenta. O
raciocínio é um artifício conseqüente do uso dos nomes76
. Uma criação humana oriunda de
outro artifício: a linguagem. Não há raciocínio sem linguagem77
, pois:
Quando alguém raciocina, nada mais faz do que conceber uma soma total, a
partir da adição de parcelas, ou conceber um resto a partir da subtração de
uma outra soma por outra; o que (se for feito com palavras) é conceber da
conseqüência dos nomes de todas as partes para o nome da totalidade, ou dos
nomes da totalidade e de uma parte, para o nome da outra parte. [...]. Em
suma, seja em que matéria for que houver lugar para adição e para a
subtração, há também lugar para a razão, e onde aquelas não tiverem o seu
lugar, também a razão nada tem a fazer (LEVIATÃ, I, V, p. 27).
Conforme Hobbes, da mesma maneira que os aritméticos ensinam a adicionar e a
subtrair com os mais diversos números – e onde não houver lugar para adição e para
subtração, também não há lugar para razão78
– “os lógicos ensinam o mesmo com
consequências de palavras, somando juntos dois nomes para fazer uma afirmação, e duas
afirmações para fazer um silogismo e muitos silogismos para fazer uma demonstração”
(LEVIATÃ, I, V, p. 27). Hobbes descaracteriza a razão como elemento ontológico e essencial
do gênero humano e a torna meramente um jogo de relações de acréscimos e de diminuição
ao agir. O homem não é mais estudado e compreendido por conta da sua razão, pois ela
deixou de ser o elemento ontológico responsável pela constituição da essência do homem,
para ser entendida como uma faculdade. Para Hobbes:
75
A razão, no sentido apresentado por Hobbes, não é unicamente prática, isto é, que aponta os caminhos mais
profícuos à ação do indivíduo. A razão também tem a função de explicar a origem das coisas, caso contrário, o
homem não seria capaz de fazer ciência. Não obstante essa dupla interpretação, nós optamos pela primeira
conotação justamente por acreditarmos ser a mais pontual à interpretação que queremos dar. 76
Cf. LEVIATÃ, I, IV, p. 27. 77
“Os gregos têm uma só palavra, lógos, para linguagem e razão, não que eles pensassem que não havia
linguagem sem razão, mas sim que não havia raciocínio sem linguagem” (LEVIATÃ, I, IV, p. 24). 78
Cf. LEVIATÃ, I, V, p. 27.
86
O homem supera todos os outros animais nesta faculdade, que quando ele
concebe seja o que for é capaz de adquirir as conseqüências disso e que
efeitos pode obter com isso. E agora acrescendo este outro grau da mesma
faculdade, que ele sabe com as palavras reduzir as conseqüências que
descobre a regras gerais, chamadas teoremas, ou aforismos, isto é, sabe
raciocinar, ou calcular, não apenas com números, mas com todas as coisas
que podem adicionar ou subtrair umas às outras (LEVIATÃ, I, V, p. 29).
No Leviatã encontramos a razão definida como um cálculo a partir de nomes:
Pois razão, neste sentido, nada mais é do que cálculo (isto é, adição e
subtração) das conseqüências de nomes gerais estabelecidos para marcar e
significar nossos pensamentos. Digo marcar quando calculamos para nós
próprios, e significar quando demonstramos ou aprovamos nossos cálculos
para os outros homens (LEVIATÃ, I, V, p. 27).
A distinção existente entre a linguagem mental e a linguagem falada (efeito da
linguagem mental cuja pretensão pode ser tomada com o objetivo de comunicação) pode ser
pensada a partir do embasamento do cálculo. A prudência que o homem costuma adorar é
uma atividade oriunda do cálculo, entretanto, é um raciocínio meramente mental, o qual, ao
eximir-se do uso de nomes, não avaliza a universalidade e a necessidade de suas conclusões.
Por sua vez, o cálculo com nomes – a razão – ao abordar a necessidade e universalidade, será
o alicerce da ciência e viabilizará a organização da estrutura jurídica do Estado. Portanto, a
adequada ciência civil somente poderá ser executada a partir do cálculo racional, partindo de
certa atribuição de nomes, ou seja, de acepções evidentes por si mesmas, tais como as
definições apresentadas pelos aritméticos, de sorte que “a aritmética é uma arte infalível e
certa” (LEVIATÃ, I, V, p. 27).
O uso e a finalidade da razão, ao contrário da tradição aristotélica-tomista, não é
definir o homem enquanto homem ou criatura racional, muito menos encontrar a soma ou a
verdade das conseqüências efetivadas e sim “começar por estas e seguir de uma conseqüência
para outra. Pois não pode haver certeza da última conclusão sem a certeza de todas aquelas
afirmações e negações as quais se baseou e das quais foi inferida” (LEVIATÃ, I, V, p. 28). O
que Hobbes está propondo é a adoção de um espírito crítico e desconfiado diante de tudo
aquilo que tomamos ou somos levadas a tomar como exato. Tal atitude é inevitável para todo
homem que realmente deseja conhecer e saber determinado conteúdo79
.
O cálculo humano deve ser intimamente ligado ao uso da palavra, justamente para que
erros80
não ocorram e a ciência possa angariar seu progresso e percorrer por caminho seguro.
79
Cf. LEVIATÃ, I, V, p. 28. 80
“Pois o erro é apenas uma ilusão, ao presumir que algo aconteceu, ou está para acontecer, acerca do que, muito
embora não tivesse acontecido, não existe contudo nenhuma impossibilidade aparente. Mas quando fazemos uma
asserção geral, a menos que seja uma asserção verdadeira, sua possibilidade é inconcebível. E as palavras com as
87
Quando alguém calcula sem o uso de palavras, o que pode ser feito em casos
especiais (como quando ao ver qualquer coisa conjecturamos o que
provavelmente a precedeu, ou o que provavelmente se lhe seguirá), se aquilo
que julgou provável que se seguisse não se seguir, ou se aquilo que julgou
provável que tivesse precedido, não tiver precedido, isso chama-se erro, ao
qual estão sujeitos mesmo os homens mais prudentes (LEVIATÃ, I, V, p.
28).
Exatamente neste contexto que Hobbes delineia a sua contraposição à interpretação
escolástica em torno do livre-arbítrio por acreditar que se trata de um equívoco lingüístico ou
simplesmente um absurdo da linguagem humana81
. Somente o que está em movimento pode
ser paralisado ou continuar em movimento. Para Hobbes, somente o corpo está em
movimento e, portanto suscetível de paralisação do próprio movimento. Falar em livre-
arbítrio seria a mesma coisa que falar em liberdade da liberdade, ou seja, do ponto de vista
lingüístico, algo sem sustentação.
Buscando dar sustentação à linguagem, Hobbes entende-a como um sistema de
tamanha coerência que o homem que dela se utilizar poderá, se souber dar o devido uso,
evitar equívoco tal como o da discussão do livre-arbítrio82
. A linguagem encontra sua
fundamentação quando tem por objetivo a facilitação da vida humana e, especialmente,
quando o alcança. A base de uma linguagem correta, por assim dizer, está intimamente ligada
ao bom uso do raciocínio ou ao raciocínio correto. Desta maneira:
Para aquele que sabe evitar estas coisas não é fácil cair em qualquer absurdo,
a menos que seja pela extensão do cálculo, no qual pode talvez esquecer o
que ficou para trás. Pois todos os homens por natureza raciocinam de forma
semelhante, e bem, quando têm bons princípios. Quem é tão estúpido a
ponto não só de cometer erros em geometria como também de persistir neles,
quando outra pessoa lhos aponta? (LEVIATÃ, I, V, p. 30).
Neste contexto Hobbes está mostrando que a razão não é algo congênito ao homem83
.
Não nascemos com ela, tão pouco nos definimos – essencialmente – a partir dela. O que nasce
conosco, que faz parte de nossa natureza, é a sensação e a memória, contudo, a razão é
adquirida no cotidiano, com o auxílio da experimentação sensível e, sobretudo, o esforço em
querer conquistá-la. Mais do que isso, nos tornamos seres racionais, embora antes disso já
quais nada mais concebemos senão o som são as que denominamos absurdas, insignificantes, e sem sentido”
(LEVIATÃ, I, V, p. 28). 81
Cf. LEVIATÃ, I, V, p. 29. 82
No Leviatã Hobbes apresenta sete pontos a serem seguidos para se evitar os absurdos lingüísticos. Cf.
LEVIATÃ, I, V, p. 29-30. 83
Para ratificar esta afirmação, basta continuarmos a leitura do capítulo V do Leviatã, cuja afirmação de Hobbes,
extremamente polêmica, mas não enganosa, nos apresenta em definitivo a prova cabal de que o homem não
nasce racional, ele se faz ser racional à medida que adquire o hábito lingüístico. Eis: “As crianças portanto não
são dotadas de nenhuma razão até que atinjam o uso da linguagem, mas são denominadas seres racionais devido
à aparente possibilidade de terem o uso da razão na sua devida altura” (LEVIATÃ, I, V, p. 30).
88
possamos nos auto-intitular ou sermos reconhecidos como tais, por conta do uso adequado de
nossa linguagem. O uso adequado da linguagem é o que garante, na mesma medida, o uso
adequado do cálculo. Portanto:
Por aqui se vê que a razão não nasce conosco como a sensação e a memória,
nem é adquirida apenas pela experiência, como a prudência, mas obtida
como esforço, primeiro através de uma adequada imposição de nomes, e em
segundo lugar através de um método bom e ordenado de passar dos
elementos, que são nomes, a asserções feitas por conexão de um deles com o
outro, e daí para os silogismos, que são as conexões de uma asserção com
outra, até chegarmos a um conhecimento de todas as conseqüências de
nomes referentes ao assunto em questão, e é a isto que os homens chamam
ciência (LEVIATÃ, I, V, p. 30).
A linguagem, quando encarada com seriedade e pautada na severidade metódica, tende
a gerir nos homens, via cálculo, a compreensão adequada do assunto ou, então, à ciência. A
ciência, para Hobbes, é um conhecimento efetivo. Conhecimento este que é capaz de mostrar
o conseqüente de determinado assunto, além da dependência de um fato em relação a outro.
Conhecer uma causa específica que seja exata torna a nossa vida mais simples84
, pois toda vez
que determinada causa desencadear tal sistema, saberemos, com base nos fatos já ocorridos e
armazenados em nossa memória, como nos comportar para solucionar a referida questão85
.
Por esta razão que a linguagem ajuda os homens a construir o conhecimento – ciência – que é
um imenso processo e, para além disso, pretende conduzir os homens a um fim específico (a
instituição do Estado a fim de que o seu movimento vital seja preservado) e que só é possível
quando vinculada ao uso da razão.
O homem, via cálculo, entenderá que a condição natural não é favorável à preservação
da sua vida. Fazendo uso de sua razão e com base na estrutura mecanicista do mundo, o
homem postulará pela criação do Estado visando à fuga da ameaça constante à sua vida, de
maneira que na condição natural, a preservação da vida é uma inconstância.
Para o teórico político inglês, é irracional permanecer no estado de natureza.
Propor-se sair desse estado e, simultaneamente, querer renunciar às razões
que movem o propósito é impraticável, vale dizer, o ato de desistir da
autopreservação constitui o contraditório do contrato que funda o estado
civil (HECK, 2002, p. 543).
84
“Contudo, aqueles que não possuem qualquer ciência encontram-se numa condição melhor e mais nobre, com
sua natural prudência do que os homens que, por raciocinarem mal ou por confiarem na incorreta razão, caem
em regras gerais falsas e absurdas. Porque a ignorância das causas e das regras não afasta tanto os homens de seu
caminho como a confiança em falsas regras e o fato de tomarem, como causas daquilo a que aspiram, causas que
o não são, mas sim causas do contrário” (LEVIATÃ, I, V, p. 30-31). 85
Cf. LEVIATÃ, I, V, p. 30.
89
Este estado é dominado pelas paixões desenfreadas dos homens que nada mais buscam
do que a própria conquista do poder – pensemos no poder como a condição do homem
angariar meios para a sustentação da sua vida – seguindo apenas os seus impulsos naturais. Os
homens calculam os efeitos das suas ações tendo em vista somente os seus anseios
particulares e, acima de tudo, aquilo que lhe for bom. Os homens não estão preocupados com
a manutenção do movimento vital alheio. A ideia de coletividade escapa desta esfera natural,
cujo imperativo é a busca da realização particular e privada.
Hobbes admite o uso da razão no estado natural. Acompanhemos a citação seguinte:
As paixões que fazem os homens tender para a paz são o medo da morte, o
desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável, e a
esperança de consegui-las através do trabalho. E a razão sugere adequadas
normas de paz, em torno das quais os homens podem chegar a acordo. Essas
normas são aquelas a que por outro lado se chama leis de natureza
(LEVIATÃ, I, XIII, p. 77).
Entretanto, apenas o cálculo prudencial86
– que dará origem ao Estado – regulamentará
as ações individuais isoladas em paixões naturais, verdadeiramente porque não existe uma
condição racional – objetivada em aspirações singulares – capaz de contornar todas as
vontades particulares a tal ponto de que a guerra seja evitada. Ora, se isso fosse possível, não
precisaríamos da instituição do Estado e todo o seu aparato legislativo, judiciário e executivo.
Bastava, apenas, apelar para a consciência particular. Portanto, alicerçado no mecanicismo de
seu contexto histórico, Hobbes conceberá que a única alternativa para paralisar a ação
particular é a instituição de uma esfera que tenha como objetivo a administração do poder
singular. Esta incumbência é direcionada ao Estado, produto do uso adequado da razão e da
linguagem humana, com objetivo da manutenção da vida em paz, pautada e garantida nas
relações de direito próprios da lei civil. Assim, “o fim último, causa final e desígnio dos
homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir
restrições sobre si mesmos sob a qual vemos viver nos Estado, é o cuidado com sua própria
conservação e com uma vida mais satisfeita” (LEVIATÃ, II, XVII, p. 103).
O contrato que dará início ao Estado está no patamar da razão humana. Antes disso,
entretanto, a razão essencial para a extirpação do estado natural se embasa no medo que o
homem contém dentro de si da morte violenta. O medo é uma paixão fundamental do
86
Hobbes costuma vincular a prudência à experiência. Ao menos duas passagens do Leviatã nos dão esta noção,
a saber: “Assim como a muita experiência é prudência, também a muita ciência é sapiência. Pois muito embora
só tenhamos o nome de sabedoria para as duas, contudo os latinos efetivamente distinguiram entre prudência e
sapiência, ligando a primeira à experiência e a segunda à ciência” (LEVIATÃ, I, V, p. 31). A outra, ainda mais
pontual: “Porque a prudência nada mais é do que experiência, que um tempo igual igualmente oferece a todos os
homens, naquelas coisas a que igualmente se dedicam” (LEVIATÃ, I, XIII, p. 31).
90
pensamento político de Thomas Hobbes e, antes de qualquer coisa, é o conatus que
movimenta o homem medroso a pactuar com os outros ‘medrosos’. Somado à paixão do
medo, existem outras duas paixões que conduzem o homem ao pacto, são elas: o desejo de
uma vida confortável e a esperança de consegui-la pelo trabalho87.
A própria natureza do homem grita constantemente por paz: “a lei primeira e fundamental
de natureza, isto é, procura a paz, e segui-la” (LEVIATÃ, I, XIV, p. 78), justamente para que a
vida seja preservada. Contudo, apenas a natureza humana não dá conta da busca pela
segurança e pela paz, justamente porque o homem, em situação natural, vive consoante às
suas paixões desregradas. Cabe à razão e à linguagem esta importante tarefa de apontar o
melhor caminho para a instituição deste estado de paz, porquanto que:
A luz dos espíritos humanos são as palavras perspícuas, mas primeiro limpas
por meio de exatas definições e purgadas de toda ambigüidade. A razão é o
passo, o aumento da ciência, o caminho e o benefício da humanidade o fim.
Pelo contrário, as metáforas e as palavras ambíguas e destituídas de sentido
são como ignes fatui, e raciocinar com elas é o mesmo que perambular entre
inúmeros absurdos, e o fim é a disputa, a sedição ou a desobediência
(LEVIATÃ, I, V, p. 31).
Portando, para Hobbes, é fazendo o uso adequado da razão e da linguagem que os
homens alcançam a conclusão de que a instituição do Estado é a única saída viável para se
manterem vivos e em paz. É somente dentro da esfera do Estado que o movimento vital livre
estará sendo preservado, livre dos ataques, com motivação passional particular, por conta dos
atributos que sustentam a lei civil. Entretanto, ainda assim, o homem é livre para agir no
silêncio da lei, pois “para Hobbes, o que impede o movimento deixa claro o contraditório da
definição de liberdade” (HECK, 2002, p. 546).
2.4 DA IMPOSSIBILIDADE DO HOMEM MANTER O DIREITO NATURAL
O conatus (movimento aversivo ou passional) é o elemento motriz da vida humana,
tanto pode conduzir o homem para nutrir o seu desejo aversivo bem como o sentimento de
paixão em conquistar bens para si. Ele inspira o homem a se mover em direção à conquista ou
ao repúdio de determinado corpo externo a ele, sempre para o seu benefício; se é para o bem,
busca-o até consumá-lo; se atende contra a sua natureza, repudia-o severamente. “Por um
lado, o ser humano não sente o que se passa no interior do organismo e, por outro lado,
percebe o incentivo ao movimento vital como deleite e o impedimento como dor” (HECK,
2002, p. 541). É nesta diretriz que o conceito de liberdade de Thomas Hobbes se apropria de
87
Cf. LEVIATÃ, I, XIII, p. 77.
91
seu valor semântico e ganha consistência real e útil, ou seja, se o homem é um corpo que vive
em constante movimento, para que possa angariar bens e repudiar outros para sua
sobrevivência, ser livre, na mesma direção, só se concretiza se o homem obtiver tal êxito, sem
espécie alguma de impedimento extrínseco ao seu movimento livre e voluntário.
A liberdade é entendida como ausência de interferência externa ao movimento do
corpo, seja racional ou não, “porque de tudo o que estiver amarrado ou envolvido de modo a
não poder mover-se senão dentro de um certo espaço, sendo este espaço determinado pela
oposição de algum corpo externo, dizemos que não tem liberdade de ir mais além”
(LEVIATÃ, II, XXI, p. 129). Ser livre e agir livremente é estar em contínuo movimento,
avesso ao estado de inércia. Quando o homem estiver parado, tendo em vista que esta
paralisação não é ocasionada por um ato inerente à sua natureza, a possibilidade deste
sobreviver, manter a sua vida em movimento (fim último a ser almejado pelo gênero humano)
é praticamente remota. Neste sentido, o movimento livre e voluntário do homem, diante de
qualquer condição e contexto, deve ocorrer porque “(...) um homem livre é aquele que,
naquelas coisas que graças a sua força e engenho é capaz de fazer, não é impedido de fazer o
que tem vontade de fazer” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 129). Definitivamente, para Thomas
Hobbes, a vida humana é semelhante ao movimento livre e voluntário.
Hobbes, com esta afirmação, se posiciona severamente contra a corrente de
pensamento tradicional, cuja noção de liberdade era preconizada por condição ontológica e
metafísica. A liberdade é mecânica e materialista e tem função pragmática e específica (a
sobrevivência). “Mas sempre que as palavras livre e liberdade são aplicadas a qualquer coisa
que não é um corpo, há um abuso de linguagem; porque o que não se encontra sujeito ao
movimento não se encontra sujeito a impedimento” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 129). Esta
concepção de liberdade é claramente de influência científica, ou melhor, do novo modelo de
ciência que estava se configurando no patamar existencial do homem moderno. O filósofo
político inglês, quando esteve na Itália, conheceu Galileu Galilei, do mesmo modo, quando
esteve na França soube da importância e da aceitação do pensamento inovador de René
Descartes. Hobbes não viveu apático a essa nova forma de pensar e fazer ciência e tratou logo
de aplicar os fundamentos básicos (análise matemática e materialista) à sua filosofia política.
A definição de liberdade, entendida como ausência de impedimento externo ao
movimento do corpo, é aplicada por Hobbes a todas as criaturas existentes, independente de
sua condição de corpo racional ou não – racional. O que existe em comum a todos os corpos é
a possibilidade do movimento dos seus corpos; sejam movimentos intrínsecos a eles, como os
movimentos vitais; sejam movimentos extrínsecos a eles, como a água que corre livremente
92
pelas montanhas. Com isso se consolidou ainda mais o rompimento com a tradição filosófica,
cuja noção de liberdade era uma propriedade metafísica tão e somente dos corpos racionais. A
liberdade deixa de pertencer somente aos corpos racionais, destronando, assim, a razão de
titular na definição própria do homem. O homem, para Hobbes, antes de tudo, é um corpo
mecânico, muito bem constituído e que está em movimento e para o movimento. A liberdade
que lhe cabe – definida como o poder natural do homem para se beneficiar das coisas
necessárias e possíveis para sua preservação – também o coloca em situação generalizada de
guerra e desconfiança um em relação aos outros. Não obstante a razão não ter mais o seu
sentido primordial defendido pelos pensadores medievais, em Hobbes ela encontra outro
sentido e outra função: a razão como capacidade de cálculo.
É em virtude da razão, atuando como capacidade de prever os benefícios ou malefícios
de uma determinada atitude, que o homem hobbesiano se dá conta da incapacidade de manter
a sua vida no estado natural. Portanto, o ônus atribuído a Hobbes não é ao acaso e sim como
conseqüência de um grande mérito, pois:
Ele foi o primeiro a construir uma teoria da razão como cálculo, visando
particularmente ao homem em sociedade, e como cálculo das utilidades, pelo
qual somos induzidos a nos unir com os outros através de um pacto, a
construir a sociedade civil, a colocar as condições para a transformação das
leis naturais – certamente boas, mas ineficazes – em leis positivas, boas, isto
é, vantajosas, pelo simples fato de serem pelo menos eficazes e de
garantirem a realização do valor supremo, ou seja, a paz. Hobbes foi o
primeiro que – sem se limitar a atribuir ao direito natural preceitos
generalíssimos, como o haviam feito todos os seus predecessores, incluindo
Grócio – pôs à prova, com seu longo elenco de leis naturais (extraídas em
grande parte do direito de guerra), a tese segundo a qual as leis naturais não
são nada mais do que o produto do cálculo das utilidades [...], expedientes
criados pela razão para tornar possível a coexistência pacífica (BOBBIO,
1991, p. 136).
A razão acusa ao homem que a vida em situação natural tem suas vantagens – viver
totalmente livre, fazendo tudo o que quiser e puder – mas que é impensável ao homem que
deseja uma vida longa e de qualidade. Pensando sobre a vida prática e cotidiana, o homem
refletido por Thomas Hobbes conclui que a existência de um poder supremo capaz de ordenar
e fazer com que leis e ensinamentos comuns sejam cumpridos é a melhor saída para se
alcançar a paz. Esta série de ensinamentos e normas que orientam o homem a procurar a paz é
o que Hobbes descreve demoradamente nos capítulos XIV e XV do Leviatã, ou seja, as leis
naturais como um produto do cálculo racional do homem. “Esses argumentos nascem de uma
análise tanto das condições objetivas que os homens se encontram no estado de natureza [...]
93
quanto das paixões humanas” (BOBBIO, 1991, p. 33). As leis naturais, em última instância,
são produtos da convenção humana em torno de uma vida satisfatória e feliz88
.
No legado político de Thomas Hobbes é impossível pensar a liberdade do corpo
humano fora desta esfera interpretativa. Tal conclusão decorre da importância e do sentido do
homem ser e estar dentro do estado de natureza. Um homem que vive totalmente livre e em
perpétuo movimento, a não ser que outro corpo o interrompa. Todas as criaturas vivas estão
sendo analisadas a partir desta nova maneira de identificar a liberdade. Quando um homem é
aprisionado e impedido de desenvolver seu movimento vital, livre e voluntário, ele está sendo
arrebatado de sua condição natural. Da mesma forma, quando um rio é barrado por fronteiras
externas ao seu fluxo normal, este também está sendo impedido de agir livre e naturalmente;
pois, se assim não fosse, as águas poderiam correr e se espraiar por um espaço mais amplo e o
homem fazer tudo aquilo que tivesse vontade e possibilidade para se manter em movimento
vital. Diante destes dois casos, Hobbes afirma que ambos “não têm a liberdade de se mover da
maneira que fariam se não fossem esses impedimentos externos” (LEVIATÃ, II, XXI, p.
129).
Hobbes fez questão de enfatizar que o impedimento da ação do corpo deve se localizar
externo a ele, isso porque “quando o que impede o movimento faz parte da constituição da
própria coisa não costumamos dizer que ela não tem liberdade, mas que lhe falta o poder de se
mover” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 129), semelhante a quando uma pedra está em estado de
inércia ou quando um homem está impossibilitado de se mover por causa de seu organismo
doentio. Aqui se alicerça uma importante interpretação do pensamento político de Hobbes,
pois a noção de que o homem é tolhido de sua liberdade, a exemplo de uma pedra, traz para
discussão a antítese entre opressão-liberdade e anarquia-unidade89
. Para Norberto Bobbio:
O ideal que ele defende não é a liberdade contra a opressão, mas a unidade
contra a anarquia. Hobbes é obcecado pela idéia da dissolução da autoridade,
pela desordem que resulta da liberdade de discordar sobre o justo e o injusto,
pela desagregação da unidade do poder, destinada a ocorrer quando se
começa a defender a idéia de que o poder deve ser limitado, ou, numa
palavra, obcecado pela anarquia que é o retorno do homem ao estado de
natureza (1991, p. 26).
Pôr barreiras à liberdade natural do homem, na forma de Hobbes entender o corpo
humano dentro do Estado, não é para oprimi-lo e nem impedi-lo de agir como gostaria de
agir. O Estado não alcança seu fim quando oprime ou quando aniquila seus habitantes –
cidadãos – senão que a finalidade pela qual foi instituído passa a acontecer quando os súditos
88
Cf. BOBBIO, 1991, p. 83. 89
Cf. BOBBIO, 1991, p. 26.
94
conseguem manter seu movimento vital em paz, longe da anarquia, que se configura como um
retrocesso do homem ao estado de natureza.
Portanto, aqueles que estão submetidos a um monarca não podem sem
licença deste renunciar à monarquia, voltando à confusão de uma multidão
desunida, nem transferir sua pessoa daquele que dela é portador para outro
homem, ou outra assembléia de homens. Pois são obrigados, cada homem
perante cada homem, a reconhecer a ser considerados autores de tudo quanto
aquele que já é seu soberano fizer e considerar bom fazer (LEVIATÃ, II,
XVIII, p. 107).
O Estado tem a função de zelar pela ordem e pela harmonia de seus habitantes. Se para
concretizar tal objetivo o Estado precisar oprimir, assim deve proceder. O que estamos
defendendo é que o Estado não deve oprimir pelo simples fato de oprimir. Matar pelo fato de
matar. Tirar o direito do homem se defender simplesmente para deixá-lo indefeso. O Estado
não deve limitar a liberdade do homem pelo simples fato de limitar. O Estado pode e deve
oprimir e usar da força quando o objetivo pelo qual foi criado estiver em risco90
. Os homens
jamais criariam o Estado se não esperassem nada em troca, se, por meio da razão calculadora,
não encontrassem nele a solução para seus problemas existenciais. “Pois uma doutrina
contrária à paz não pode ser verdadeira, tal como a paz e a concórdia não podem ser
contrárias à lei da natureza” (LEVIATÃ, II, XVIII, p. 109).
Conforme o significado empregado por Hobbes ao termo liberdade, um homem é livre
quando não for impedido, por qualquer fator externo, de fazer aquilo que tiver vontade e
possibilidade de fazer. Costumeiramente, os termos livre e liberdade são empregados e
utilizados de maneira errônea. Tal erro se concretiza quando os termos são aplicados a
qualquer coisa que não seja um corpo, ocasionando um excesso de linguagem, uma espécie de
condicionamento e de inclinação do valor semântico e interpretativo da oração (quando
escrito) e do caso (quando efetivado), justamente porque o corpo que não se encontra em
movimento não tem como ser paralisado e somente o corpo que estiver em movimento é
propenso ao impedimento. Aqui se afirma a concepção hobbesiana de liberdade materialista
(corpórea), que tem por princípio o movimento iniciado por outro corpo externo a ele.
Embasado nesta discussão que Thomas Hobbes tratou do problema do livre arbítrio.
Quando alguém se utiliza dos termos livre e liberdade para argumentar, este deve tomar o
máximo de cuidado, pois as confusões em torno da linguagem são inúmeras. Ao afirmar que a
90
Para ratificar esta afirmação, basta remontarmos à seguinte afirmação de Hobbes “Pois ela deve obedecer a
quem a preservou porque, sendo a preservação da vida o fim em vista do qual um homem fica sujeito a outro,
supõe-se que todo homem prometa obediência àquele que tem o poder de salvá-lo ou de destruí-lo” (LEVIATÃ,
II, XX, p. 123). Neste mesmo sentido, podemos estender esta afirmação para ilustrar a relação entre o Estado e o
súdito, “porque o soberano de cada país tem direito de domínio sobre todos quantos lá residem” (LEVIATÃ, II,
XX, p. 124).
95
doação de determinada coisa a alguém é livre, segundo Hobbes, não se está aplicando a
linguagem de forma adequada, de sorte que a doação em espécie alguma é livre, e sim o
homem que está fazendo, imune a qualquer quesito opressivo que o indique o que fazer ou
não. A liberdade é a ação de um corpo e não da vontade ou da intenção deste. Com isso, o
Uso da expressão livre arbítrio não é possível inferir qualquer liberdade da
vontade, do desejo ou da inclinação, uma apenas a liberdade do homem; a
qual consiste no fato de ele não deparar com entraves ao fazer aquilo que
tem vontade, desejo ou inclinação de fazer (LEVIATÃ, II, XXI, p. 129).
A expressão livre arbítrio não passa de um exagero lingüístico empregado pelos
homens, dado que a liberdade da ação não é da vontade ou do desejo, mas sim do homem que
é o corpo que sente vontade e desejo de ter as coisas para o movimento vital presente e futuro.
Esta liberdade versa no fato do homem, que é um corpo livre naturalmente, fazer o que tem
vontade e possibilidade sem nenhum percalço exterior ao seu corpo. No estado natural isso
nunca seria possível, mas apenas sob o ditame das leis civis, devido a isso “os pactos e
convenções mediante os quais as partes deste Corpo Político foram criadas, reunidas e
unificadas assemelham-se àquele Fiat, ao Façamos o homem proferido por Deus na Criação”
(LEVIATÃ, 1983, p. 05).
No estado natural o homem não tem condições aparentes de manter o seu movimento
vital, justamente por conta do outro homem que também busca a preservação do seu próprio
movimento vital. Considerando que ambos agem providos de direitos e de liberdade iguais,
Hobbes é levado a pensar em uma solução racional para enfrentamento, pois:
O mal que ele mais teme – e contra o qual se sente chamado a erigir o
supremo e insuperável dique de seu sistema filosófico – não é a opressão que
deriva do excesso de poder, mas a insegurança que resulta, ao contrário, da
escassez de poder. Insegurança, antes de mais nada, da vida, que é o primum
bonum, depois dos bens materiais e, finalmente, também daquela pouca ou
muita liberdade que a um homem vivendo em sociedade é consentido
desfrutar (BOBBIO, 1991, p. 26).
É diante desta discussão que entendemos Hobbes como um filósofo que pensa a
política com radicalidade e o Estado civil com bases racionais. Para tanto, o estado de
natureza hobbesiano segue algumas diretrizes basilares. A primeira é a competição que
acontece entre os homens, seja em dimensão psíquica ou material, de maneira que estar acima
da condição do outro é sinônimo de auto-afirmação. Hobbes costuma pensar o homem como
um ser que se previne dos meios necessários e possíveis para a manutenção do seu movimento
vital. Quanto maior o número de bens, maior a chance de viver melhor e por mais tempo. Esta
é uma ideia física da vida humana, embasada no desejo como uma marca principal do conflito
96
ocorrido entre os homens, todos em igualdade e liberdade perfeita. “A situação é agravada
pelo fato de que os seres que a natureza colocou em tais condições são dominados por
paixões, [...], que lhes predispõem mais para a insociabilidade do que para a sociedade”
(BOBBIO, 1991, p. 34).
Podemos pensar o estado natural a partir de três pontos, são eles: está no ‘rol da
estranheza’, uma vez que os homens desejam o que nenhum homem ainda tem. No estado
natural tudo é de todos ou quase a mesma coisa que dizer: nada é de ninguém. Além disso,
aparecendo como a segunda diretriz do estado de natureza, um homem jamais sabe o que o
outro homem pensa sobre ele: se o teme, se o ama, se o estima, se o odeia. Por isso, a melhor
saída, quando a preservação da vida aparece como cláusula principal e inegociável, é a
antecipação ao ataque do outro, visto que jamais o homem saberá quando e onde será atacado
pelo outro homem. É um estado de desconfiança ilimitada. Por fim, surgindo como uma
terceira diretriz do estado de natureza, a agressão aos outros em função da conquista da honra.
Assim, a guerra de todos contra todos ganha consistência quando da impossibilidade do
homem ler o anseio, o desejo de cada homem. Nesta dimensão, “Hobbes distingue três
principais causas de luta: a competição que os homens travam entre si pelo ganho; a
desconfiança que os faz lutar pela segurança; e a glória que os faz combater pela reputação”
(BOBBIO, 1991, p. 35).
Este cenário de guerra, embora nunca tenha existido historicamente e concretamente,
pode ser resumido na célebre afirmação de Hobbes ‘a guerra de todos contra todos’. Para
Norberto Bobbio, mais do que uma expressão que perpassa o tempo e emerge a todo e
qualquer escrito sobre o pensador político inglês, ela tem um significado importante e egrégio
para a compreensão do pensamento político do autor do Leviatã. Eis:
“Guerra de todos contra todos” é uma expressão hiperbólica: retirada a
hipérbole, significa aquele estado no qual um grande número de homens,
singularmente ou em grupos, vive – por não haver um poder comum – no
temor recíproco e permanente da morte violenta. A hipérbole serve somente
para fazer compreender que se trata de um estado intolerável, do qual o
homem deve sair mais cedo ou mais tarde, se é que deseja salvar o que tem
de mais precioso, a vida (BOBBIO, 1991, p.38).
Tendo consciência da impossibilidade de manter o seu direito natural, no estado
natural, amparado pelo bom uso da razão e a linguagem, os homens instituem o Estado cuja
finalidade é a preservação da paz e a manutenção de suas vidas. “O fim último, causa final e
desígnio dos homens que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros, ao
introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos Estados, é o
cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita” (LEVIATÃ, II, XVII,
97
p. 103). De sorte que “a verdade que não se opõe aos interesses ou aos prazeres do homem é
bem recebida por todos” (LEVIATÃ, 1983, p. 410).
3 OS EFEITOS DA CONCEPÇÃO DE LIBERDADE NA RELAÇÃO ENTRE O
ESTADO DE NATUREZA E O ESTADO CIVIL EM THOMAS HOBBES
O rompimento com a cosmovisão tradicional gerou em Hobbes uma maneira
diferenciada de entender o conceito de liberdade e o mundo no qual estava inserido. O mundo
e tudo o que existe é constituído de corpo e movimento. Com efeito, o próprio conceito de
liberdade é ‘mecanizado’, isto é, enquanto a liberdade era empregada ao homem como um
atributo ontológico, com Hobbes ela ganhou condições estritamente físicas, chegando à
conclusão de que a liberdade é apenas ausência de impedimento externo ao movimento
iniciado em determinado corpo. Frente esta inovação acerca da visão mecanicista de
liberdade, Hobbes projeta-se em um mundo de conflitos intelectuais com alguns de seus
contemporâneos, entre eles o bispo de Bramhall que defendia severamente a permanência do
livre-arbítrio no entendimento da ação livre do homem. Em contrapartida, para o filósofo de
Malmesbury o livre-arbítrio é apenas efeito de um equívoco lingüístico. Com isso, Hobbes
costuma atrelar a liberdade à necessidade, vendo-as como sinônimas, como necessárias à vida
de todo e qualquer ser que estiver em movimento.
3.1 A INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO MECÂNICO NO CONCEITO DE LIBERDADE
Thomas Hobbes, voltado aos interesses políticos de sua época91
, viveu em um período
de muitas guerras e acreditava que somente a figura de um Estado forte poderia acabar com
esses conflitos e gerar a paz comum. A mesma forma mecânica de ver a realidade do homem,
Hobbes aplicou à concepção do Estado. Para justificar a necessidade do Estado Soberano, o
teórico político inglês formulou uma teoria hipotética.
A doutrina hobbesiana da verdadeira liberdade dos súditos toma o estado
natural como início da scientia civilis. Cotejada com a interpretação
macphersoniana, a reconstrução hobbesiana não é nem histórica nem
circunstancial, mas sim fictícia, muito aquém de qualquer tipo societário
agregado ou dividido pelo meu/teu do capitalismo embrionário (HECK,
2002, p. 544).
91
“Thomas Hobbes inaugura o De Cive (1642) cumprindo a promessa, feita no Elements of law (1640), de
quebrar o silêncio que reinava há 2.500 anos diante da autoridade de Aristóteles. Desafiando os estatutos
laudianos, que proclamavam incontestável a palavra do filósofo grego, Hobbes pretende desmentir a teoria da
natureza política do homem. Junta-se, assim, aos seus contemporâneos, na tentativa de demolir a tradição que
dominava os diversos campos do conhecimento: na filosofia, Aristóteles, na medicina, Galeno, na geografia e na
astronomia, Ptolomeu. Hobbes propõe-se a contribuir banindo da filosofia política o preceito aristotélico do zoon
politikon e estabelecendo as bases da nova ciência da política” (FRATESCHI, 2008, p. 17-18)
99
Diante disso, sem medo de cometer qualquer espécie de equívoco, é correto
afirmarmos que Hobbes desenvolveu uma teoria utilizando o método resolutivo92
-
compositivo93
. Ao justificar o método utilizado para a composição do De Cive, ainda no
prefácio, Hobbes compara o Estado a um relógio.
Com efeito, conhecemos muito melhor uma coisa através dos elementos de que ela se
constitui. Assim como não se pode saber, num relógio mecânico ou noutra máquina um pouco mais
complexa, qual a função de cada parte ou roda, se ele não for desmontado e separadamente
examinados o material, o desenho e o movimento: assim também, para estudar o direito da Cidade e os
deveres dos cidadãos, precisamos, sem desmontar a Cidade, considerá-la como desmontada: isto é,
para compreender corretamente a condição da natureza humana, com o uso de quais meios ela é capaz
ou incapaz de dar corpo à Cidade; de que modo hão de ajustar-se entre si os homens, se querem
alcançar a união (1993, p. 10).
O Estado é o objeto de análise do teórico político inglês e o elemento formador do
Estado é o homem, isso porque, “os homens pertencem à classe dos corpos vivos, animados e
finitos, sendo esses corpos que constituem a matéria do Estado” (BERNARDES, 2002, p. 28).
Analisando o Estado, Hobbes fez como um relojoeiro ao tentar conhecer a mecânica do
relógio: decompôs o Estado, analisou seus elementos, que são os homens (em condição
natural) e depois reformulou o Estado em ordem civil (dando a interpretação da república).
No primeiro momento, Hobbes está prescindindo o homem de toda e qualquer
possibilidade de relação social, visando, assim, um homem puro do ponto de vista do
particular, sem nenhuma possível influência proveniente das relações sociais. O filósofo
político inglês estudou o homem de acordo com a sua estrutura subjetiva e concluiu que todo
homem, naturalmente, é provido do mesmo direito. A conclusão obtida por Hobbes
estabeleceu uma cisão com a tradição política aristotélica, mais de 2500 anos são deixados de
lado. “Para se contrapor à tese aristotélica da naturalidade da cidade, Hobbes precisa antes
negar que o homem é um animal político” (FRATESCHI, 2008, p. 27). Para Aristóteles, todos
os homens94
possuem aptidão natural para viver em sociedade, os requisitos necessários para
a instituição e a manutenção da vida em comunidade95
. Diante disso, a intenção de Hobbes é
“desmentir que a capacidade para a vida política é uma necessidade e independe da escolha
92
Resolutio, termo latino que designa análise. 93
Compositio, termo latino que tem por significado síntese, a composição daquilo que foi detalhadamente
analisado. 94
Exceto os escravos, mulheres e artesãos. 95
“Para Aristóteles, a cidade é um fim porque é nela que o homem é plenamente homem. Por conseguinte, é
anterior aos indivíduos porque é nela que os homens realizam a sua essência” (FRATESCHI, 2008, p. 42).
100
humana (sem o que será impossível fundamentar a teoria do contrato social)” (FRATESCHI,
2008, p. 27).
Hobbes defende que o Estado não foi fundado em nenhuma lei ontológica ou
metafísica e sim tendo como base o direito natural de cada indivíduo – a preservação do
movimento vital. Em decorrência disso, podemos dizer que a cidade é instituída a partir da
soma dos consentimentos singulares96
, colocando-se de uma vez por todas “contra a teoria
tradicional de que o homem é um animal que nasce apto para a sociedade, ele defende que
essa aptidão não advém da natureza, e sim da disciplina” (FRATESCHI, 2008, p. 27). A idéia
grega do zoon politikon97
é refutada e no seu lugar encontramos a noção de jus naturale que é
assim definida por Hobbes “é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder,
da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e
consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem
como meios adequados a esse fim” (LEVIATÃ, I, XIV, p. 78).
Ao decretar a sentença condenatória da tese política de Aristóteles, Hobbes vai além
ao afirmar que “é evidente, para quem observa com um pouco mais de atenção as coisas
humanas, que todas as nossas reuniões se realizam ou por necessidade ou por desejo de
promoção recíproca; por isso os participantes se esforçam por tirar algum proveito ou captar
estima e honra uns dos outros” (DE CIVE, I, I, p. 51). Para Hobbes a união e a reunião social
não existem por causa imanente ao corpo humano, mas sim por convenção e privilégios
pessoais. “Toda sociedade, portanto, é forjada pela força do útil ou pelo estímulo da honra,
isto é, por amor a si e não aos sócios e componentes” (DE CIVE, I, I, p. 51).
Hobbes mostra o estado de natureza como luta entre fracos e fortes, vigorando a lei da
selva ou o poder da força. No estado natural impera o acrescentamento próprio, “Hobbes,
portanto, investiga as paixões humanas à luz do alicerce de sua concepção da natureza
humana, o princípio do benefício próprio, que formula como uma aplicação particular de sua
filosofia mecanicista em geral” (FRATESCHI, 2008, p. 82). Para fazer cessar esse estado de
96
Para Hobbes, ao contrário de Aristóteles, “ela (a cidade) é escolhida como meio para a promoção da
autoconservação, ela é produto da criação humana. Portanto, há uma evidente anterioridade do artífice em
relação ao artifício” (FRATESCHI, 2008, p. 43). 97
“A maior parte dos autores que escreveram sobre a república partem do pressuposto ou do postulado de que o
homem é um animal que nasce apto para a sociedade. Os gregos chamam-no de Zôon politikón. Sobre esta base
tais autores construíram uma ampla doutrina da sociedade civil, a ponto de se concluir dela que nada mais seria
preciso para a preservação da paz e do governo de todo gênero humano que os homens adotarem em conjunto
pactos e certas condições, a que em seguida tais autores dão o nome de leis. Entretanto, este axioma, embora
aceito por muitos, é falso; seu erro originou-se de uma visão demasiada superficial da natureza humana. Pois,
para quem quiser ver mais de perto as causas que fazem os homens se juntarem e quererem a companhia dos
outros, aparecerá com clareza que isso acontece, não porque não possa ser de outro modo naturalmente, mas sim
de modo acidental” (DE CIVE, I, I, p. 50).
101
vida ameaçador e ameaçado, os humanos decidem passar à sociedade civil, isto é, ao Estado
civil, criando o poder político e as leis. A passagem do estado de natureza à sociedade civil se
dá por meio de um contrato social, pelo qual os indivíduos renunciam à liberdade natural e à
posse natural de bens, riquezas e armas e concordam em transferir a um terceiro (soberano) o
poder para criar e aplicar as leis, tornando-se autoridade política.
Portanto as ações voluntárias e as inclinações dos homens não tendem
apenas para conseguir, mas também para garantir uma vida satisfeita, e
diferem apenas quanto ao modo como surgem, em parte da diversidade de
paixões em pessoas diversas, e em parte das diferenças no conhecimento e
opinião que cada um tem das causas que produzem os efeitos desejados
(LEVIATÃ, I, XI, p. 60).
Como é possível o contrato ou o pacto social? Qual sua legitimidade? Para legitimar a
teoria do contrato ou do pacto social, Hobbes parte do conceito de direito natural
(jusnaturalismo): por natureza, todo indivíduo tem direito à vida (sobrevivência e liberdade de
ação). Por natureza, todos os homens são livres, ainda que, por natureza, uns sejam mais
fortes e outros mais fracos. Todos os homens são igualmente livres e bonados dos mesmos
direitos, dado que “a natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do
espírito ” (LEVIATÃ, I, XIII, p. 74). Um contrato ou um pacto, dizia a teoria jurídica romana,
só tem validade se as partes contratantes forem livres e iguais e se voluntária e livremente
derem seu consentimento ao que está sendo pactuado.
A teoria do direito natural garante essas duas condições para validar o contato social
ou o pacto político. Isso leva a afirmar que “o conceito de direito supõe a definição de
liberdade. O direito é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder segundo
sua vontade para a realização de um determinado fim, o qual o direito o anuncia como
legítimo” (BERNARDES, 2002, p. 59). Se as partes contratantes possuem os mesmos direitos
naturais e são livres, possuem o direito e o poder para transferir a liberdade a um terceiro, e se
consentem voluntária e livremente nisso, então dão ao soberano algo que possuem,
legitimando o poder da soberania. Assim, por direito natural, os indivíduos formam a vontade
livre da sociedade, voluntariamente fazem um pacto ou contrato e transferem ao soberano o
poder para dirigi-los.
Para Hobbes, os homens reunidos numa multidão de indivíduos, pelo pacto, passam a
constituir um corpo político, uma pessoa artificial criada pela ação humana e que se chama
Estado. A teoria do direito natural e do contrato evidencia uma inovação de grande
importância: o pensamento político já não fala em comunidade, mas em sociedade. A idéia de
comunidade pressupõe um grupo humano uno, homogêneo, indiviso, que compartilha os
102
mesmos bens, as mesmas crenças e idéias, os mesmos costumes e que possui um destino
comum. Ao passo que, a idéia de sociedade supõe a existência de indivíduos independentes e
isolados, dotados de direitos naturais e individuais, que decidem, por um ato voluntário,
tornarem-se sócios ou associados para vantagem recíproca e por interesses recíprocos. A
comunidade é a idéia de uma coletividade natural ou divina, a sociedade, a de uma
coletividade voluntária, histórica e humana. Portanto, provenientes de aspectos
substancialmente diferentes.
A sociedade civil é o Estado propriamente dito. Trata-se da sociedade vivendo sob o
direito civil, sob as leis promulgadas e aplicadas pelo soberano. Feito o pacto ou o contrato,
os contratantes transferiram o direito natural (jus naturale) ao soberano e com isso o
autorizam a transformá-lo em direito civil ou direito positivo, garantindo a vida, a liberdade e
a propriedade privada dos governados. Estes transferiram ao soberano o direito exclusivo ao
uso da força e da violência, da vingança contra os crimes, da regulamentação dos contatos
econômicos, isto é, está instaurada a instituição jurídica da propriedade privada, e de outros
contratos sociais.
Hobbes emprega o método mecanicista, o mesmo aplicado para entender a natureza do
homem, para descrever a natureza do Estado civil. O filósofo político inglês obedeceu ao
modelo copernicano de Galileu, isto é, a divisão e recomposição em busca do conhecimento
claro e transparente. No Estado encontra-se presente o mesmo mecanismo humano, porém em
escala superior ao conhecimento sobre o homem.
Porque pela arte é criado aquele grande Leviatã a que se chama Estado, ou
Cidade (em latim Civitas), que não é senão um homem artificial, embora de
maior estatura e força do que o homem natural, para cuja proteção e defesa
foi projetado. E no qual a soberania é uma alma artificial, pois dá vida e
movimento ao corpo inteiro; os magistrados e outros funcionários judiciais
ou executivos, juntas artificiais [...] a concórdia é a saúde, a sedição é a
doença; a guerra civil é a morte (LEVIATÃ, 1983, p. 05).
A morte é o que primeiro o homem deseja evitar, por isso ele pactuou e instituiu o
Estado como instância convencional. Além disso, o Estado visa a manutenção da paz através
da lei positiva e da ordem. Sem estes dois pressupostos não pode haver, por parte do homem,
nenhum conhecimento, nenhuma propriedade. Contra Aristóteles, o ordenamento político não
é fruto da idéia do homem como um animal político por natureza, representa, ao contrário, um
artifício. O Leviatã98
é o deus mortal que surpreendentemente une o que há de mais
98
“Embora ele nunca tivesse escondido seu materialismo, que ficara particularmente óbvio em suas objeções
publicadas às Meditações de Descartes, ele nunca fora tão gratuitamente ofensivo à teologia ortodoxo quanto em
sua apresentação no Leviatã. O próprio título do livro era de gelar o coração: era uma referência ao capítulo 41
103
contraditório no homem: força e mansidão, crueldade e benignidade, egoísmo e altruísmo
com o intento primeiro de preservação da própria vida. Nesta miríade de contrários, o Estado
estabelecido será dentre os males o menor e a única saída para amenizar os conflitos nos quais
os homens estão naturalmente inseridos. Por este motivo:
Hobbes é também o teórico da idéia de liberdade entendida como ausência
de interferência, a assim chamada liberdade negativa, que depois se tornou
um dos princípios do pensamento político liberal. Sua concepção de
liberdade como ausência de interferência o leva a sustentar que os cidadãos
de uma república, [...], não são mais livres do que os súditos de um soberano
absolutista, [...], uma vez que uns e outros estão submetidos às leis
(BOBBIO; VIROLI, 2002, p. 33).
Os desejos e as paixões, por serem o princípio da guerra, tornam-se alvo de ataque por
parte do Estado, que tem a obrigação de reformulá-los em níveis aceitáveis na tentativa de
enquadrar os indivíduos naquilo que necessitam para estabelecer a vida pacífica e prazerosa.
Institui-se um jogo que pretende estabelecer a paz e, para tanto, aproveitam-se nos homens
aquelas paixões e desejos que possibilitam a harmonia. O homem nasce com tendência à
guerra pela necessidade de preservação das vidas; desconfiando constantemente uns dos
outros porque vivem num estado de guerra potencial e desejam o poder em função de estarem
submetidos a movimentos ininterruptos enquanto vivem. Deixar de lado esta capacidade
ilimitada de poder desfrutar de todas as coisas – liberdade ilimitada – é o que caracteriza a
noção de liberdade negativa apresentada por Bobbio e Viroli, de espécie que a ação livre do
homem não o torna superior a um cão, pois a liberdade hobbesiana é a mesma para todo e
qualquer corpo, seja racional ou não, basta que esteja em movimento.
A definição de liberdade de Hobbes não agrega nada à constituição própria do homem,
ao contrário, ela limita a ação do corpo humano. Se prestarmos atenção ao conceito de
liberdade de Hobbes, notamos que este pode ser considerado utópico, pois para um corpo ser
verdadeiramente livre, seja ele qual for, não poderia encontrar nenhum impedimento externo
para sua ação. Isso jamais seria possível, de modo que sempre há, em qualquer momento ou
contexto, algo que impossibilitasse a ação própria do corpo. O próprio corpo é limitação para
a ação livre do corpo. Não posso, por exemplo, saltar de um abismo – mesmo querendo – e
ainda assim pretender continuar o movimento vital.
[versículo 25] do Livro de Jó bíblico; ali, o “Leviatã” (ou monstro marinho) é descrito em termos de sua força
absoluta e terrificante – “Sobre a terra, não há quem o domine. Intrépido, assim ele foi feito”. Tratava-se do
Estado tal como descrito por Hobbes, dotado de um poder absoluto mesmo sobre servos de Deus como Jó. A
mensagem era reforçada ainda mais por uma surpreendente capa (provavelmente feita pelo artista Wenceslas
Hollar) na qual uma figura gigantesca composta inteiramente por uma massa de figuras menores é retratada
assomando, de espada e bastão episcopal em punho, sobre uma cidade campestre dominada” (TUCK, 2001, p.
46).
104
Apesar de tudo isso, o homem hobbesiano não pode ser caracterizado como um corpo
naturalmente mal, posto que não luta por prazer, mas por necessidade de sobrevivência. Na
possível guerra visualizada por Hobbes, não há gozo provocado pelo ato de derrotar o outro,
mas sim por instinto de conservação. A instauração do Estado, fruto da razão e da paixão
humana, não passa de uma superação da guerra universal que leva à morte, uma vez que a
vida do homem, submetida constantemente ao medo da morte, é demasiadamente miserável.
Importante destacar que em relação à representação do poder, Hobbes propõe um
método hipotético para assegurar a paz e não um método histórico para determinar a verdade.
O soberano ou governante representa a figura do árbitro que evita a guerra e não que procura
a verdade. Não sugere a falsidade ou a verdade de juízos, mas tão somente a paz como fim
último almejado por todos os homens.
Mas mesmo que um homem seja capaz de ler perfeitamente um outro através
de suas ações, isso servir-lhe-á apenas com seus conhecimentos, que são
muito poucos. Aquele que vai governar uma nação inteira deve ler, em si
mesmo, não este ou aquele indivíduo em particular, mas o gênero humano. O
que é coisa difícil, mais ainda do que aprender qualquer língua ou qualquer
ciência, mas ainda assim, depois de eu ter exposto claramente e de maneira
ordenada minha própria leitura, o trabalho que a outros caberá será apenas
verificar se não encontram o mesmo em si próprios. Pois esta espécie de
doutrina não admite outra demonstração (LEVIATÃ, 1983, p. 06).
Assim, a guerra é uma espécie de pano de fundo permanente até que algo fixe a
diferença pela força. O fruto da vontade do homem perseguido pelo medo da morte gera a
representação legítima por meio da autorização e da transferência do poder dos representados
ao soberano representante. É diante deste cenário que conseguimos entender a definição de
liberdade dos súditos dada por Hobbes. Normalmente, diz-se que alguém é livre na medida
em que nenhum outro homem ou nenhum outro grupo de homem ou coisa qualquer interfira
nas atividades que esse alguém tem capacidade e vontade de fazer. A liberdade política, nesta
dimensão, é simplesmente a área que um homem pode agir sem sofrer nenhuma espécie de
limitação ou impedimento. Se qualquer homem for impedido de fazer aquilo que pode e tem
vontade de fazer, este homem está deixando de exercer a sua liberdade frente à coação externa
ao seu corpo em movimento.
A liberdade hobbesiana é caracterizada como ausência de impedimento externo de
todo corpo que se encontra dentro do espaço e do tempo. Se a obstrução do movimento, por
um corpo externo a ele, não deve existir para que a liberdade do corpo se concretize, disso se
deriva que o corpo está em movimento contínuo, dado que se a paralisação do movimento
fosse ocasionada pelo próprio corpo, não se poderia conceituar a liberdade como ausência de
105
impedimento externo, uma vez que o impedimento do movimento seria um elemento
intrínseco ao próprio corpo. Dessa maneira, quando o espaço livre para o movimento do
objeto é determinado por barreiras externas a ele, a essa realidade é empregada a
denominação de determinado corpo não ter liberdade para suas ações livres e voluntárias. Se
não fossem os impedimentos externos aos movimentos das criaturas, as criaturas se
espalhariam por um espaço maior. Portanto, as criaturas que são barradas de se mover de
acordo com sua vontade e possibilidade não têm a liberdade de se mover de maneira natural.
Para Hobbes, quando a barreira é externa ao movimento do corpo, essa realidade conforma a
ausência de liberdade. Ao passo que quando houver dificuldade de movimento intrínseco ao
corpo, esta realidade não se configura na definição célebre de liberdade: ausência de
impedimento e sim em carência de potência de se mover.
O homem livre é aquele que pode fazer aquilo que tem vontade e possibilidade e que
não é impedido de fazer, seja pela instância que for. Além disso, sempre que as palavras
“livre” e “liberdade” são aplicadas a qualquer coisa que não é um corpo, há um abuso de
linguagem do homem. Consoante a Hobbes, o que não se encontra sujeito ao movimento, não
se encontra sujeito a espécie alguma de impedimento externo. Impedimento é uma realidade
correlata ao movimento. Ora, se não existe movimento, não há como existir impedimento. O
movimento é próprio do corpo e o impedimento é externo a ele. Assim, a expressão livre
arbítrio, usada de forma inadequada, segundo Hobbes, não expressa nada. Não é possível
inferir qualquer liberdade da vontade, do desejo ou da inclinação, mas somente a liberdade do
homem que é o corpo que tem vontade, desejo, inclinação e, inclusive, a liberdade.
Hobbes, ao assumir o estatuto científico da nova ciência, reverte a reflexão em torno
da liberdade. Antes a liberdade era pensada como uma condição ontológica do ser, agora a
liberdade é assumida como movimento mecânico e natural de todo corpo. Além disso, a
liberdade é compatível ao medo, sendo que todos os atos praticados pelos homens no Estado,
por medo da lei, são ações que seus autores têm a liberdade de não praticar. A questão se
torna ainda mais pontual quando o homem, por qualquer força externa a ele, está sendo
obrigado a se ferir ou até mesmo a se matar. Para Hobbes:
Ninguém está obrigado por quaisquer pactos que sejam a não resistir a quem
lhe traz morte, ferimentos ou outros danos físicos. Em todo indivíduo existe
em alto grau o medo que o faz conceber como extremo o mal que lhe é
infligido, e por isso, por compulsão natural, evita-o de todas as maneiras, e
supõe-se que ele não tenha alternativa. Chegando a esse grau de medo, não
lhe resta senão procurar pôr-se a salvo através da fuga ou da resistência.
Como ninguém é obrigado a coisas impossíveis, não estão obrigados a não
resistir os que sofrem ameaça de morte, o maior mal natural, ou de
106
ferimentos e outros danos corporais que não têm condições de suportar (DE
CIVE, I, II, p. 64).
A liberdade também é compatível com a necessidade, uma vez que o desejo e a
inclinação derivam da necessidade do homem e a liberdade de fazer. De um lado a boca do
soberano, que sintetiza o poder civil e o poder religioso, justamente para mostrar a soberania,
dando ordens a serem seguidas. De outro o ouvido do súdito, atento às ordens a fim de exercer
a sua liberdade naquilo que o soberano permitiu. Os laços, por sua própria natureza, são
fracos diante da ambição do homem. Contudo, não são possíveis de serem quebrados por
conta do medo que o homem guarda de retornar ao estado natural, que é um estado de guerra
permanente. Para Hobbes é em relação a esses laços que a liberdade dos súditos deve ser
compreendida e analisada, na esteira da estrita relação entre soberano e súdito.
Diante da liberdade do súdito, a liberdade, conforme Hobbes, em sentido genuíno que
é a liberdade corpórea, ou seja, aquela liberdade que o corpo em movimento está livre dos
grilhões, prisões e toda e qualquer espécie de obstáculo externo à sua ação, o filósofo político
de Malmesbury faz duas ressalvas que visam clarificar e aprimorar o conceito de liberdade. A
primeira assevera para a inutilidade do pensar e do clamor humano em relação à liberdade.
“Porque tomando a liberdade em seu sentido próprio, como liberdade corpórea, isto é, como
liberdade das cadeias e prisões, torna-se inteiramente absurdo que os homens clamem, como o
fazem, por uma liberdade de que tão manifestamente desfrutam” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 130).
Reflexões acerca da liberdade que ultrapassam as medidas do sensível e do mecânico,
instaurando-se em patamares ontológicos. Definições equivocadas para um teórico que
concebe a liberdade como puramente mecânica e corpórea. Que adianta o homem clamar por
liberdade quando ele claramente já a desfruta, ao não se ver amarrado por espécie alguma de
entrave externo a ele? A segunda ressalva, tão absurda quanto a primeira, aponta para o
homem que exige aquela liberdade que o torne senhor de sua vida. “Por outro lado,
entendendo a liberdade no sentido de isenção das leis, não é menos absurdo que os homens
exijam, como fazem, aquela liberdade mediante a qual todos os outros homens podem tornar-
se senhores de suas vidas” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 130). Senhores de suas vidas seriam os
homens autônomos às leis, aos mecanismos que os circundam e a quem tem por objetivo o
domínio das vontades particulares.
Dessa reflexão de Hobbes, se conclui que todo homem deve ter um governante para
sua vida. Não há como deixar o homem viver de maneira desenfreada, guiado apenas por suas
paixões. É imprescindível a existência de um poder comum, capaz de limitar e conduzir o
homem livre. Contudo, basta saber se esse senhor que Hobbes está preconizando para a vida
107
dos súditos é uma alusão ao Leviatã, como o controlador de todas as vontades e inclinações
particulares ou qualquer outro, de maneira que o autor do Leviatã abre a possibilidade para
que pensemos acerca da incapacidade humana de se governar corretamente. Parece ser
evidente que sempre precisamos de alguém, de uma lei, ou qualquer coisa externa a nós para
apontar caminhos e assim segui-los. Caso contrário, quase sempre auferimos efeitos maléficos
ou não tão interessantes à preservação de nossas vidas. Isso se evidencia ainda mais quando
Hobbes salienta que: “as leis não têm poder algum para protegê-los, se não houver uma
espada nas mãos de um homem, ou homens, encarregados de pôr as leis em execução”
(LEVIATÃ, II, XXI, p. 131), a fim de que a paz e a vida dos homens sejam garantidas. Três
conclusões são derivadas desta afirmação de Hobbes.
A primeira conclusão remete à realidade de que o homem age por medo, não da lei,
mas da possível punição que a lei possa acarretar à sua vida. A segunda conclusão aponta para
a insignificância da lei pela lei, ou seja, necessariamente deve haver um poder coercitivo que
vise manter a ordem e o cumprimento da mesma. A terceira conclusão assinala para o fato de
que o homem não é civilizado por natureza, ele se faz um corpo social e político por medo e
necessidade. O homem não ama a lei por decreto natural, senão que a obedece por medo da
punição física que possa sofrer. Em outras palavras, por medo do impedimento que a lei possa
dar ao movimento livre e natural do homem.
Parece paradoxal, mas a mesma lei, aquela que enfatiza que para cada ação reprovável
do súdito existe uma punição pontual, que visa manter a liberdade e a garantia da vida do
homem, pode, em certa medida, tirá-la, seja por meio de cadeias artificiais, leis civis ou a
própria morte. Diante disso Hobbes conclui que “a liberdade dos súditos está apenas naquelas
coisas que, ao regular suas ações, o soberano permitiu” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 131). O súdito
está agindo livremente quando a sua ação corresponde ao “espaço” previsto pela lei do
soberano. Tal ação não pode ultrapassar os limites prescritos pela lei. É uma liberdade
limitada, porém traz mais vantagens à preservação da vida do que a condição natural.
Podemos pensar nesta liberdade em termos de liberdade política.
Mas tal como os homens, tendo em vista conseguir a paz, e através disso sua
própria conservação, criaram um homem artificial, ao qual chamamos
Estado, assim também criaram cadeias artificiais, chamadas leis civis, as
quais eles mesmos, mediante pactos mútuos, prenderam numa das pontas à
boca daquele homem ou assembléia a quem confiaram o poder soberano, e
na outra ponta a seus próprios ouvidos. Embora esses laços por sua própria
natureza sejam fracos, é no entanto possível mantê-los, devido ao perigo, se
não pela dificuldade de rompê-los (LEVIATÃ, II, XXI, p. 130).
108
Assim sendo, a liberdade dos súditos constitui-se em alguns destes seguintes itens:
submissão ao soberano em vista da própria preservação e da paz; não se matar, ferir ou
mutilar, em hipótese alguma, quando o soberano ordenar; não confessar crime que não tenha
cometido; defender seus direitos face ao soberano em questões de posse de terras ou bens
como se fosse contra outros súditos e perante os juízes que o soberano houver designado;
aceitar ser prisioneiro de guerra se sua vida e sua liberdade corpórea lhe forem oferecidas, de
maneira que obedecer ao soberano é obedecer ao povo, dado que o soberano é a soma das
vontades do povo. Convenhamos que esta noção de liberdade seja bem sensata, de maneira
que a vontade do súdito nada mais é do que a abstração das vontades particulares; melhor
dizendo a soma das vontades particulares e seus poderes e direitos transferidos à figura de um
terceiro é a própria essência do soberano. Ora, se o soberano é a vontade do povo, agir contra
a vontade do soberano é agir contra a própria vontade do povo.
Portanto a liberdade dos súditos está apenas naquelas coisas que, ao regular
as suas ações, o soberano permitiu; como a liberdade de comprar e vender,
ou de outro modo realizar contratos mútuos; de cada um escolher sua
residência, sua alimentação, sua profissão, e instruir seus filhos conforme
achar melhor, e coisas semelhantes (LEVIATÃ, II, XXI, p. 130).
De outro lado, notamos que a liberdade do súdito abrange somente o que não se refere
ao pacto e ao que a lei não se pronuncia, “segue-se necessariamente que em todas as espécies
de ações não previstas pelas leis os homens têm a liberdade de fazer o que a razão de cada um
sugerir, como o mais favorável a seu interesse” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 130). Podemos dizer
que este é o princípio do direito privado, isto é, tudo que não é proibido é permitido. Esta
concepção de liberdade é o que Hobbes chama de:
“A verdadeira liberdade de um súdito” [...]. Tal liberdade não resulta do
silêncio das leis, mas do fato de que o estado natural continua relevante no
estado civil na medida em que é “evidente”, para Hobbes, “que todo súdito
tem liberdade em todas as coisas cujo direito não pode ser transferido por um
pacto” (HECK, 2002, p. 537).
Não obstante existam as leis civis para limitar a liberdade do homem e assim
conseguir uma vida mais confortável e com maior probabilidade de realização pessoal, ainda
permanece a possibilidade da ação livre do homem acontecer na ausência daquilo que a lei
prevê. Esta é a verdadeira liberdade do súdito. A verdadeira liberdade dos súditos reside “na
ausência de elementos ou determinações essenciais que possam explicar o movimento ou a
liberdade, cada situação presente ou ocorrência fortuita identifica o verdadeiro estado natural
dos homens” (HECK, 2002, P. 545). Se pensarmos na definição clássica de liberdade
apresentada por Hobbes, tanto no capítulo XIV bem como no XXI do Leviatã – liberdade
109
como ausência de impedimento externo à ação livre do corpo – notamos que o ato de
movimentar-se somente dentro do espaço preestabelecido pelo soberano é um obstáculo à
própria liberdade e, sobretudo, uma contradição conceitual. Contudo, viver dentro dos limites
do Estado e da lei civil é mais confortável e seguro.
Thomas Hobbes diz que é importante observar, neste ponto, que se um monarca
renunciar à soberania, tanto para si mesmo como para seus herdeiros, os súditos voltam à
absoluta liberdade de natureza. Diante dos pontos já relatados e analisados, chega-se à
conclusão da infinidade de vantagens (em relação às desvantagens) da vida em sociedade.
Renunciar a essa convivência pacífica com os outros corpos seria como renunciar à liberdade
e segurança e voltar a um mundo primitivo em que o nascer de um novo dia constitui-se
sempre em um novo desafio.
3.2 O DEBATE SOBRE A LIBERDADE E O LIVRE-ARBÍTRIO EM HOBBES
Neste item pretendemos mostrar que um dos efeitos do novo significado do termo
liberdade, apresentado por Thomas Hobbes, gera uma problemática filosófica no campo na
linguagem. Uma vez que o autor do Leviatã nos apresenta a liberdade apenas no sentido físico
e aplicada a qualquer objeto existente no mundo, desde que esteja em movimento. O campo
de conversação em torno da suposta propriedade da liberdade – livre-arbítrio – é repudiado e
encaixa-se muito bem como uma reflexão exagerada, sem sentido algum. Hobbes preocupa-se
em discutir e supostamente refutar esta discussão, porque no seu tempo ou, quiçá, antes de sua
alvorada intelectual, a liberdade era aplicada também à vontade do homem – liberdade da
vontade – o que se caracteriza como um absurdo, justamente porque a vontade não é um
corpo e se não é um corpo, também não está em movimento. Esta noção de que a liberdade
não é corpo físico para estar em movimento e, se não está em movimento, também não pode
ser impedida de agir por um corpo externo, é a marca central da época em que Hobbes está
inserido. O autor do Leviatã não apenas presenciou a modificação científica de sua época,
senão que ajudou a moldar o novo panorama.
Nesta dimensão, Hobbes se sente impulsionado a afirmar que a expressão ‘livre-
arbítrio’ é um exagero lingüístico99
, porque se fundamenta na condição da liberdade de ação
que atribuímos a qualquer corpo e não apenas ao que está em movimento. Esta é uma situação
impensável quando se assume um conceito de liberdade decididamente mecânico. Além disso,
afirmar a liberdade da liberdade é a mesma coisa que afirmar a liberdade como uma condição
99
Cf. LEVIATÃ, I, V, p. 29.
110
própria dos seres racionais, pois são os únicos que podem pensar e tomar uma decisão
favorável ou não em relação à determinada situação. Poderíamos pensar até em outro ‘eu’ que
habita o meu ‘eu’. Como se existissem dois ‘eu’ em constante conflito e maquinação dentro
do corpo humano. Estes, frente a situações questionáveis do contexto em que estão inseridos,
deliberam acerca da escolha a ser tomada. O livre-arbítrio é o ‘eu’ responsável por deliberar e
indicar ao outro ‘eu’ que pode prosseguir ou retroceder, pois a situação é favorável ou não. O
outro ‘eu’ é o responsável propriamente pela ação do corpo. Consoante o pensador político
inglês, esse é um grande equívoco, de maneira que a ação livre pertenceria somente aos
racionais. Afirma Hobbes: “esta sucessão alternada de apetites, aversões, esperanças e medos
não é maior no homem do que nas outras criaturas vivas, conseqüentemente os animais
também deliberam” (LEVIATÃ, I, VI, p. 37). Continua o autor do Leviatã:
Na deliberação, o último apetite ou aversão imediatamente anterior à ação ou
à omissão desta é o que se chama vontade, o ato (não a faculdade) de querer.
Os animais, dado que são capazes de deliberações, devem necessariamente
ter também vontade. A definição de vontade vulgarmente dada pelas
Escolas, como apetite racional, não é aceitável. Porque se assim fosse não
poderia haver atos voluntários contra a razão. Pois um ato voluntário é
aquele que deriva da vontade, e nenhum outro (LEVIATÃ, I, VI, p. 37).
A interpretação de Hobbes só é possível de aceitação quando acontece a
descaracterização da vontade como apetite racional, assim, existente somente nos seres
pensantes. Para o autor do Leviatã isso é um grande erro, basta analisar os atos voluntários
que atacam a própria razão, como, por exemplo, o suicídio. Se a vontade fosse apetite
racional, ela jamais poderia fazer mal ao racional. Contudo, conforme Hobbes, se pensamos
na vontade não como apetite racional, mas como o último apetite da deliberação, então é
extremamente aceitável a refutação do livre-arbítrio como próprio dos racionais.
Mas se, em vez de dizermos que é um apetite racional, dissermos que é um
apetite resultante de uma deliberação anterior, neste caso a definição será a
mesma coisa que aqui apresentei. Portanto, a vontade é o último apetite na
deliberação. Embora na linguagem comum se diga que um homem teve uma
vontade de fazer uma coisa, que não obstante evitou fazer, isto é
propriamente apenas uma inclinação, que não constitui uma ação voluntária,
pois a ação não depende dela, e sim da última inclinação ou apetite
(LEVIATÃ, I, VI, p. 37-38).
A vontade é o último apetite da deliberação, seja a vontade de obter tal objeto para a
preservação do movimento vital, seja na tentativa de repúdio frente aquilo que não é tão
conveniente. Com este pensamento, Hobbes manifestou que a deliberação é própria de todo
ser vivo e não apenas do racional. Mais do que isso, os seres vivos são providos de vontades,
paixões e outras faculdades do gênero. “Fica assim manifesto que as ações voluntárias não são
111
apenas as ações que têm origem na cobiça, na ambição, na concupiscência e outros apetites
em relação à coisa proposta, mas também aqueles que têm origem na aversão, ou no medo das
conseqüências decorrentes da omissão da ação” (LEVIATÃ, I, VI, p. 38).
Assim sendo, o homem ou qualquer ser vivo é livre quando não encontra obstáculo
externo para sua ação. Esta ação está fundamentada no fazer o que quiser e o que puder para
que o movimento vital permaneça. Por outro lado, tal interpretação de Hobbes sobre a
liberdade se apresenta para nós como um conceito negativo. Negativo porque a liberdade não
acrescenta nada ao homem. Ela não é uma propriedade dele, mas apenas ausência de
obstáculo externo à ação que o homem tem vontade e poder de realizar que, por sua vez, foi
desencadeada por qualquer objeto externo ao homem que é livre. A liberdade hobbesiana é
totalmente corpórea e física. Está intimamente entrelaçada com a ação própria do corpo. Não
há possibilidade de pensar na liberdade e nem do corpo agir em liberdade se não existe o
movimento a ser impedido. A liberdade só se aplica ao corpo em movimento e nada que
ultrapasse esta barreira interpretativa.
Pensando paradoxalmente, os mesmos objetos que despertam e impulsionam a ação do
homem – objetos externos, sejam eles quais forem – também o impedem de agir da maneira
que gostariam. Salientamos que impedem de agir da maneira que o homem gostaria, mas que
não o impede de agir necessariamente, pois as coisas externas fazem com que os homens se
posicionem e raciocinem sobre uma suposta resposta ao evento externo, entretanto, elas não
determinam o querer dos homens em relação às coisas externas que os incitam à ação e, de
maneira alguma, a liberdade dos homens para realizarem a ação raciocinada. Em termos
simples, a única coisa que impede o homem verdadeiramente de ser livre e, ao mesmo tempo,
a única coisa que lhe tolhe definitivamente a liberdade é a morte. Enquanto esta não chegar,
inúmeros obstáculos externos à ação do homem surgirão, contudo, nenhuma será
definitivamente pontual a tal ponto de impedir o homem de toda e qualquer ação, seja ela
mínima ou significava. Buscando ilustrar o argumento exposto, pensemos em um homem
acorrentado pelas mãos e pelos pés. Tudo isso para se paralisar a sua ação que é julgada como
violenta e nociva às pessoas de bem. E, pensemos, ainda, que o motivo pelo qual este homem
foi impedido de agir é verdadeiro. Constatada a procedência de sua periculosidade, as
correntes que o impedem naquele instante de cometer qualquer ação hedionda, não impediram
o querer deste homem. Prova disso que a qualquer momento que seus entraves externos
vacilarem, ele executará a sua ação física desejada, isso porque a liberdade do corpo humano
não pode ser acorrentada em definitivo, a não ser pela via da morte; fim do movimento vital.
Tal homem está limitado no que confere à sua ação física: não pode mexer seus pés e suas
112
mãos como desejados, porém, seus olhos, seu raciocínio, seus órgãos internos e muitas outras
partes de seu corpo continuam a se movimentar, sem nenhuma espécie de obstáculo externo e,
como se não bastasse, estariam sendo incentivados ao ódio e à vingança pelas atitudes
externas dos homens que o aprisionaram.
É frente esta esfera literária que entendemos a liberdade de Hobbes como negativa, de
maneira que ela não é a presença de algo para a ação do homem, ao contrário, a liberdade que
o filósofo político inglês emprega aos corpos em movimento é compreendida como a ausência
de obstáculos externos ao corpo humano, a fim de que sua ação aconteça e a liberdade deste
corpo ocorra. Para entender melhor a negatividade empregada ao conceito de liberdade de
Hobbes, leiamos o que Yara Frateschi escreveu sobre o tema:
A definição de liberdade é negativa: ser livre é não encontrar obstáculos para
mover-se. A liberdade não denota uma qualidade ou uma característica
intrínseca aos corpos, mas sim relacional; por isso, não indica a
determinação da vontade pela razão (como quer a tradição), podendo ser
aplicada em igual medida aos corpos racionais e aos irracionais. A liberdade
não é presença de algo, mas a ausência de impedimentos externos. Quando a
aplicamos ao homem, dizemos que um homem é livre se não é impedido de
fazer o que tem vontade de fazer (2008, p. 95-96).
Continua a autora do livro “A física da política”:
Em outras palavras, é livre o homem que não encontra obstáculos externos
para se mover na direção dos objetos por ele almejados ou para se afastar
dos que lhe causam medo ou aversão. Os movimentos que obstam a
liberdade de movimento de um corpo são sempre externos, quando são
internos e fazem parte da constituição do próprio corpo, não dizemos que
este não tem liberdade, mas que não tem poder para se mover. A expressão
‘livre-arbítrio’ carece de sentido, porque a vontade não é um corpo e não
está sujeita a movimento. E, se não está sujeita a movimento, não está sujeita
a impedimento (FRATESCHI, 2008, p. 95-96).
Nesta maneira de Hobbes entender a liberdade, a interpretação acerca do livre-arbítrio
não é válida, porque necessita de significação. Pensar no livre-arbítrio é atrelar a vontade à
razão, ou seja, algo possível somente ao homem por conta da sua racionalidade. Isso
aconteceria porque o homem sentiria vontade de fazer ou não fazer determinada coisa,
enquanto que a sua racionalidade deliberaria por fazer ou omitir tal ação. Como mostramos
acima, a deliberação e a vontade não pertencem apenas ao homem, mas a todo corpo que está
em movimento. Portanto, “sempre que as palavras livre e liberdade são aplicadas a qualquer
coisa que não é um corpo, há um abuso de linguagem; porque o que não se encontra sujeito ao
movimento não se encontra sujeito a impedimentos” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 129). Quiçá, o
113
maior equívoco dos pensadores que disseminam esta forma de entender a liberdade esteja na
determinação da vontade à racionalidade. Continua o autor do Leviatã:
Portanto, quando se diz, por exemplo, que o caminho está livre, não se está
indicando qualquer liberdade do caminho, e sim daqueles que por ele
caminham sem parar. E quando dizemos que uma doação é livre, não se está
indicando qualquer liberdade da doação, e sim do doador, que não é
obrigado a fazê-la por qualquer lei ou pacto. Assim, quando falamos
livremente, não se trata da liberdade da voz, ou da pronúncia, e sim do
homem ao qual nenhuma lei obrigou a falar de maneira diferente da que
usou. Por último, do uso da expressão livre-arbítrio não é possível inferir
qualquer liberdade da vontade, do desejo ou da inclinação, mas apenas a
liberdade do homem; a qual consiste no fato de ele não deparar com entraves
ao fazer aquilo que tem vontade, desejo ou inclinação de fazer (LEVIATÃ,
II, XXI, p. 129).
A leitura feita por Hobbes em torno da questão do livre-arbítrio, não passa de um
artifício lingüístico utilizado pelos homens de má fé em busca de uma possível isenção de
Deus na culpa do pecado original. Nesta dimensão, o problema da liberdade e do livre-arbítrio
ganha consistência para o bispo de Bramhall100
, já que o livre-arbítrio é a causa do pecado
humano e a ‘porta de saída’ para Deus quando a discussão está voltada em encontrar e
denominar o autor e responsável pela incidência do pecado original na humanidade.
Entretanto, para Hobbes, esta discussão não passa de uma questão, em si, sem sentido, pois o
livre-arbítrio é apenas um equívoco lingüístico, de forma que “Hobbes reduz o livre-arbítrio a
uma conjunção de palavras sem sentido” (FRATESCHI, 2008, p. 97). Talvez, então, a suposta
importância e a atenção dedicadas por Hobbes a esta laboriosa questão esteja no âmbito do
auxílio aos menos favorecidos do aspecto da reflexão filosófica. Portanto, enquanto Bramhall
está preocupado com a punição dos pecadores e a ‘isenção’ de Deus, Hobbes está
vislumbrando e discutindo o problema da responsabilização moral101
.
Para Bramhall, que identifica o livre-arbítrio como a causa do pecado, Deus
pune com justiça os pecadores porque eles escolheram livremente
desobedecer a sua vontade, fonte absoluta da justiça. Hobbes, por sua vez,
recusa o livre-arbítrio e se vê, então, obrigado a provar que é justa a punição
do pecador, mesmo que ele não seja livre para escolher a sua vontade, isto é,
para escolher entre pecar e não pecar (FRATESCHI, 2007, p. 109).
Para continuarmos a reflexão acerca da liberdade e do livre-arbítrio, a partir deste
momento pretendemos apontar alguns indícios do argumento dos personagens envolvidos: de
100
Conforme Yara Frateschi “A polêmica entre Hobbes a Bramhall acerca do livre-arbítrio e da liberdade
humana começou em 1645 e se estendeu até 1658, com a publicação de um texto de Bramhall que não recebeu
resposta de Hobbes (Castigations of Mr Hobbes). Este artigo se baseia em quatro textos: Discourse of liberty and
necessity e A defence of true liberty de Bramhall; Of liberty and necessity e Questions concerning liberty,
necessity and chance, de Hobbes” (2007, p. 109). 101
Cf. FRATESCHI, 2007, p. 109.
114
um lado Thomas Hobbes recusando o livre-arbítrio e mesmo assim mostrando que o pecador
é culpado por seus atos, pois estes são efeitos de um processo que envolve o estímulo externo,
a deliberação e o ato livre em si e, do outro lado, o bispo Bramhall afirmando que o livre-
arbítrio é a causa da ação pecaminosa do homem, pretendendo, assim, salvaguardar Deus e
fazer do homem pecador um errante porque não soube administrar devidamente sua liberdade.
Para Hobbes a desobediência da ordem divina é chave de entendimento para punição
de todo aquele que não cumprir a lei civil. “Hobbes pode conciliar o que para o bispo é
irreconciliável, a saber, a negação da liberdade da vontade com a responsabilidade e a justa
punição do pecador e do súdito desobediente” (FRATESCHI, 2007, p. 110). O homem não
tem a liberdade da vontade, o homem é livre. É diferente dizer que o homem tem a liberdade
de dizer que o homem é livre. Se afirmarmos que o homem tem a liberdade, estamos
defendendo a noção de que a liberdade é uma dimensão própria na constituição do homem,
que ela é metafísica e, com isso, estamos ‘entificando’ a liberdade. A liberdade é um ser como
qualquer outro. Aqui, então, o livre-arbítrio tem sentido, pois ele é o responsável pela
administração desta liberdade ‘entificada’. Aplicando esta estrutura ao pensamento de
Hobbes, a fim de que o livre-arbítrio seja refutado, percebemos a sua coerência filosófica.
Quando o homem peca, sem recorrer ao mau uso da sua liberdade – livre arbítrio
(justamente porque para Hobbes isso se configura como um exagero lingüístico) – ele está
agindo conscientemente. Ele está agindo em sintonia com uma predisposição externa e
seguida de um processo de deliberação. A ação livre, seja ela pecaminosa ou não, é apenas
resposta a um estímulo que vem de fora. Da mesma maneira, o homem que vive dentro de um
Estado, sob a jurisdição de um soberano, quando agindo contrário a lei, está tocando na
questão da responsabilização moral. Este homem está rompendo com um pacto e, do ponto de
vista da moral já preestabelecido, tornando-se um irresponsável e, por isso ele pode e deve ser
punido com a devida consequência jurídica. Por esta razão, o ato do homem que não cumpre a
lei divina pode ser considerado pecado assim como ato do homem que não cumpre a lei civil
pode ser considerado imoral.
Para compreendermos a argumentação do autor do Leviatã, temos que ter em mente
que “a negação do livre-arbítrio por Hobbes está em harmonia com a sua concepção mecânica
de natureza e com seu determinismo” (FRATESCHI, 2007, p. 110), por conta da nova
interpretação de liberdade proposta por Hobbes. Esta novidade não dá margem para pensar e
muito menos para validar o livre-arbítrio, como queria o bispo Bramhall, porque somente um
corpo em movimento pode ser impedido de ação, coisa que a vontade do homem não se
115
ostenta de possuir. Tendo em vista que a polêmica entre a liberdade e o livre-arbítrio só pode
ser compreendida diante da concepção mecânica, Hobbes salienta que:
A questão, portanto, não está em se um homem é um livre agente, ou seja, se
pode escrever ou abster-se, falar ou calar, segundo sua vontade, senão se a
vontade de escrever ou a vontade de abster-se depende da sua vontade ou de
alguma outra coisa que esteja em seu poder. Eu reconheço aquela liberdade
pela que eu possa fazer algo se quero, mas dizer: “eu posso querer se quero”
me parece uma expressão absurda (LIBERTAD Y NECESIDAD, 1991, p.
133).
Hobbes ridiculariza a noção de que o desejo esteja atrelado à deliberação. O querer do
querer é uma inconsistência lingüística e real. Não existe tal declinação para esta afirmação e,
muito menos, uma realidade compatível com isso. O desejo é no homem a última faculdade
da deliberação e nada diferente disso se pode auferir. A vontade e a deliberação não são
corpos e assim não podem escolher em seguir este ou aquele caminho a ser tomado. Somente
os corpos em movimento estão propensos a trocar o rumo de suas coordenadas, mudarem de
lugar ou paralisar o movimento. Apenas eles, por conta disso, são suscetíveis de
impedimentos externos, podem sugerir a interpretação hobbesiana de liberdade.
Falar em livre-arbítrio (liberdade da vontade) neste contexto, não passa de um
equívoco lingüístico, isso porque se está remetendo liberdade a algo – vontade – que não é um
corpo e, se não é um corpo, não tem como estar em movimento para supostamente ser barrado
ou continuar livre. “A palavra ‘liberdade’ pode ser aplicada apenas aos corpos, pois só os
corpos estão sujeitos à mudança de lugar, e pode ser aplicada em igual medida a todos os
corpos, sejam inanimados, animados, irracionais ou irracionais” (FRATESCHI, 2008, p. 95).
O homem livre de Hobbes apenas reage às ações extrínsecas a ele. Em momento algum este
homem delibera e age sem a presença de alguma ação externa que o pressione ou não para a
ação. A existência de um corpo extrínseco ao homem é determinante para sua ação. Assim,
quem é livre para agir em resposta favorável ao objeto ou em repúdio a tal objeto é o homem,
e nunca a vontade do homem. Em certo sentido, o homem de Hobbes é ‘determinado’, pois só
reage aos comandos dos objetos externos a ele.
Estas foram algumas linhas gerais da argumentação de Thomas Hobbes no que
confere ao livre-arbítrio, efeito do conceito de liberdade estritamente corpóreo e material. De
outro lado, notamos a incisiva aversão do bispo Bramhall no que compete a este argumento de
Hobbes, de maneira que para o bispo, o grande erro de Hobbes:
É tornar vã a razão, fazendo-a coincidir com um mero apetite ou imaginação
e, em conseqüência, não conceber a distinção entre ato livre e ato voluntário,
isto é, entre o ato que procede da livre escolha da vontade racional após a
116
deliberação e aquele que decorre do apetite e é comum aos homens e aos
animais (FRATESCHI, 2007, p. 114).
Além desta forte crítica do bispo a Hobbes, com a intenção de definitivamente acabar
com a argumentação do autor do Leviatã, lemos:
Para Bramhall, o determinismo de Hobbes é “moralmente danoso” porque
retira dos homens a responsabilidade pelas suas ações. Para desbancar esse
homem que simplesmente reage à ação dos objetos externos, como “uma
bola de tênis reage à ação das raquetes”, Bramhall deverá recuperar o papel
da razão na determinação da vontade e mostrar que a liberdade não coexiste
com necessidade ou determinação extrínseca (FRATESCHI, 2007, p.112).
O centro da argumentação do bispo de Bramhall está na desconstrução do argumento
hobbesiano. Assim, para o bispo os homens não agem em resposta aos objetos externos a eles.
A vontade dos homens não pode ser naturalmente determinada pela presença das coisas de
fora, o único elemento externo que teria tal condição é Deus, mas Deus não poderia
determinar a ação do homem em hipótese alguma, caso contrário, o homem não seria livre e
sim determinado, o que seria um exagero afirmar quando se trata da suposta benevolência de
um ser tão soberano como Deus. Deste modo, “para Bramhall, que identifica o livre-arbítrio
como a causa do pecado, Deus pune com justiça os pecadores porque eles escolheram
livremente desobedecer a sua vontade, fonte absoluta da justiça” (FRATESCHI, 2007, p.
109). Além disso, Bramhall pretende dar continuidade à função que a razão tinha na
argumentação escolástica102
quando a questão em discussão é a ação livre do homem.
Para os escolásticos, a razão exercia um posto primordial ao se sobressair,
naturalmente, à vontade do homem. A última palavra para a ação livre de um corpo humano
ocorrer ou não seguia a diretriz da razão. A razão, imbuída ou atenta ao ensinamento divino,
orientava o homem à prática do bem – a vontade de Deus – quando isso não acontecia – eis a
argumentação do bispo – era porque o homem não deixava com que a razão o guiasse pelo
caminho ‘preestabelecido’ por Deus. Quando isso não ocorria era porque o homem não se
abria à graça de Deus (evidentemente que isso só procede quando a busca do homem tende
para o bem ou para aquilo que supostamente Deus quer). Quebrar este ensinamento, que tem
por objetivo a orientação e a exortação do homem, é prejudicar-se e cair na esfera do pecado.
102
A escolástica, por via de seu maior representante, Santo Tomás de Aquino, tem suas bases profundamente
fixadas no pensamento de Aristóteles. Urge, então, esta nota explicativa em torno da concepção de homem livre
para o estagirita. “O ser do homem é uma substância composta: corpo material e alma espiritual. Como o corpo é
sujeito às paixões, a alma deve desenvolver hábitos bons, uma vez que a virtude é sempre uma força adquirida,
um hábito, que não brota espontaneamente da natureza. Aristóteles valoriza, então, mais do que seu mestre, a
vontade humana, a deliberação e o esforço em busca de bons hábitos. O homem precisa converter suas melhores
disposições em hábitos, de acordo com a razão: virtudes intelectuais. Mas esta auto-educação supõe um esforço
voluntário, de modo que a virtude provém mesmo da liberdade, que delibera e elege inteligentemente. Virtude é
uma espécie de segunda natureza, adquirida pela razão livre” (VALLS, 2005, p. 33).
117
Portanto, não seguir a razão – local onde Deus supostamente habitaria – é deixar de cumprir a
sua vontade e viver como um errante.
Thomas Hobbes compreende bem a argumentação dos escolásticos e é por esta razão
que percebe inconsistência nela. O autor do Leviatã não refuta a importância da razão para o
homem, ele apenas dá outra conotação literária em busca de argumentação mais responsável
da parte dos homens quando inseridos em um Estado. Por conta disso:
Hobbes sempre se empenhou em acentuar que essa distinção não implicava
que quem pensa racionalmente esteja “livre”, em algum sentido metafísico,
para ordenar seus pensamentos como lhe aprouver. Suas idéias acerca do
livre-arbítrio e do determinismo figuram entre as mais enigmáticas e
polêmicas de suas concepções aos olhos de seus contemporâneos
(testemunham-no seu prolongado debate com o bispo Bramhall), tendo
continuado a provocar consideráveis disputas (TUCK, 2001, p. 65).
Conforme Hobbes, o homem não tem dentro de si um ‘eu’ responsável pelo ato de
ponderar e deliberar sobre a ação livre a ser tomada (livre-arbítrio). O homem age livremente
porque pode e esse é seu direito. A própria ação é a liberdade (movimento). Muitas das ações
que determinados corpos desempenham, uma vez que todo e qualquer corpo é livre,
dispensam o raciocínio. Basta pensar na inexistência do ato de pensar para as águas que
correm livremente das montanhas, na pedra que é lançada, no pássaro que voa de galho em
galho. Que racionalidade existe em tais exemplos? Dessa maneira:
É claro que seu compromisso com as proposições de que não existe um “eu”
independente da atividade de pensar, e de que coisa alguma se move a si
mesma, descartava de imediato toda noção ortodoxa de livre-arbítrio: não há
coisa alguma capaz de ser livre e alterar as percepções e ações de um agente
à maneira ortodoxa. “Liberdade” ainda era para Hobbes palavra dotada de
sentido, mas significava tão-somente a condição de não ter nenhum
empecilho ao acesso àquilo que se deseja; a vontade propriamente dita, ou o
ato de querer, não poderia ser livre (TUCK, 2001, p. 65-66).
Continua Richard Tuck acerca da ideia do “eu livre” que Hobbes está desconstruindo:
A idéia do “eu livre” era tão imaginária quanto a do “eu”: “uma bola de
madeira que é atirada por um garoto, às vezes gira e outras vezes bate nas
pernas dos homens, pensaria, caso fosse sensível a seu próprio movimento,
que este procede de sua própria vontade, a não ser que sentisse aquilo que a
pôs em movimento [...]. Esse argumento metafísico conferia mais vigor ao
ataque à noção humanista tradicional de liberdade cívica, que, [...], Hobbes
empreendeu em suas obras políticas – porque, se se puder ser
verdadeiramente livre, não há sentido em proclamar que só se pode estar em
liberdade sob certo regime constitucional (2001, p. 65-66).
Visando responder as críticas de Brahmall, Hobbes fez uma distinção entre a vontade e
a razão; coisa que o bispo havia unido. “A vontade não é produto da razão e a prova disso é
118
que ela muda na medida em que mudam as coisas” (FRATESCHI, 2007, p. 114). A vontade é
uma inclinação que todo ser vivo tem para determinada coisa. O último apetite anterior a ação
propriamente dita do corpo. Não é uma característica peculiar do homem, mas sim de todo ser
vivo. A razão é uma faculdade calculadora, responsável por perceber o que é melhor para o
homem a fim de que a sua vida seja mantida, pois, após o estímulo dos corpos externos ao
homem, ele tende a calcular – fazer uso da razão – e assumir uma posição de posse ou de
aversão em relação ao objeto que iniciou tal movimento. Ao contrário disso, para o bispo de
Bramhall a razão é a última instância da ação do homem. A vontade, os apetites e tudo o que
tende a direcionar a ação do homem, tem que, necessariamente, passar pelo crivo da razão103
,
pois é ali, na consciência do homem, que Deus faz a sua morada e ajuda o homem a discernir
entre o certo e o errado.
Evidentemente que esta argumentação de Bramhall para Hobbes não tem fundamento
algum104
, de maneira que a razão é apenas mais uma faculdade que o homem possui para
auxiliá-lo na busca da sua preservação105
e não qualquer faculdade e ligação do homem com o
Divino. É neste campo do absurdo lingüístico que o autor do Leviatã faz a seguinte
comparação, muito aquém dos princípios da lógica. Contudo, é um artifício lingüístico
necessário para explicar o quanto o homem que assume a expressão ‘livre-arbítrio’ se
equivoca ao fazer uso e transmitir tal ensinamento.
E portanto se alguém me falasse de um quadrângulo redondo, ou dos
acidentes do pão no queijo, ou de substâncias imateriais, ou de um sujeito
livre, livre arbítrio, ou qualquer coisa livre, mas livre de ser impedida por
oposição, não diria que estava em erro, mas que as suas palavras eram
destituídas de sentido, ou seja, absurdas (LEVIATÃ, I, V, p. 29).
Como podemos notar nesta afirmação de Hobbes, o conceito de liberdade, como
ausência de impedimento externo, requer, precisamente, a ação do corpo, de forma que o
impedimento está para a ação do corpo e não para a vontade do corpo. O conceito de
liberdade, com base materialista, só tem sentido em ser pensado se junto com ele
remontarmos a todo o legado implícito nele, ou seja, a noção de que a liberdade não é um
atributo do corpo, mas sim o próprio movimento dele quando na ausência de obstrução
externa. Deste modo, “para Hobbes, a liberdade se refere à ação e não à vontade: um homem
103
“Mas essa idéia de que a razão é faculdade superior que deve determinar a escolha não faz nenhum sentido
para Hobbes, pois não há, para ele, nenhuma hierarquia natural ou moral entre as faculdades. No que diz respeito
à ação humana, a razão é apenas uma faculdade que calcula meios para fins postos pelo desejo e não uma
faculdade que põe fins morais” (FRATESCHI, 2007, p. 115). 104
“A negação do livre-arbítrio feita por Hobbes significa a negação da possibilidade de que a razão ponha fins
para os homens e se imponha sobre os desejos e sobre a vontade” (FRATESCHI, 2008, p. 101). 105
Cf. LEVIATÃ, I, V, p. 27.
119
pode ter liberdade para fazer o que quer, mas não está ao alcance do seu poder ou da sua
vontade escolher o que quer ou escolher a sua escolha” (FRATESCHI, 2008, p. 102). A
vontade do homem tem uma relação de causalidade com os objetos externos, isto é, ela só
pode ser despertada quando os objetos fora dela imprimirem um arrolamento de repulsão ou
de posse. Posterior a isso é que a razão tem a sua função, quando julgando – cálculo – o
benefício ou o malefício que este corpo externo pode trazer, instiga o homem a se aproximar e
possuir tal objeto ou a se distanciar por conta da sua periculosidade para a manutenção do
movimento vital.
Nesta nova acepção apontada por Hobbes em torno do conceito de liberdade, para
além da função da razão no corpo humano, notamos uma liberdade negativa no sentido de não
denotar um atributo ao corpo, mas apenas uma condição relacional com o outro corpo externo
aquele. Ser livre é igual a não encontrar obstáculo algum para se mover, portanto, a liberdade
como negatividade consiste na ausência, na nulidade, na inexistência de qualquer corpo fora
do corpo que está em movimento a fim de que o seu movimento não seja interrompido. Além
disso, podemos dizer que ela é negativa porque não agrega nenhuma característica ou
qualidade ao corpo, mas apenas necessita da ausência de outros corpos para acontecer. É neste
sentido que concluímos que a vontade não está determinada pela razão, de maneira que esta
concepção de liberdade pode ser aplicada a todo e qualquer corpo, seja racional ou não.
Muito aquém de finalizar a discussão do livre-arbítrio, apenas refletindo algumas
questões, finalizamos este ponto enfatizando que para o bispo Bramhall as leis que viriam do
soberano seriam injustas se houvesse a necessidade dos homens praticarem tal ação. Seria
como se o homem não tivesse oportunidade de escolha. Para Hobbes, ao contrário, a ação
certa ou errada, punitiva ou não, não caberia à sua capacidade de fazer ou omitir, mas somente
ao fazer e isso é o significado de ser livre, agir independentemente do impedimento externo.
Para o bispo isso seria um absurdo; uma forma de julgamento e condenação desmerecidos.
Conforme Frateschi, Hobbes responde essa questão da seguinte maneira:
Como um positivista jurídico de estrita observância: a lei é justa porque é lei,
ou seja, porque deriva do poder absoluto do soberano civil. A paz requer a
soberania absoluta e é em nome dela que os homens fazem o pacto. Portanto,
não cabe aos súditos julgar a justiça da lei ou do governante, assim como não
cabe aos homens julgar a justiça das ações divinas: a justiça do deus mortal,
analogamente à justiça do Deus imortal, deriva do seu poder (2007, p. 120).
Hobbes afirma que não cabe ao homem discutir com Deus e nem com as ordens do
Estado. A função do súdito é seguir a lei, pois as leis são feitas para serem seguidas e
obedecidas e não burladas. A função das leis é a permanência da ordem estatal pacífica e a
120
preservação da vida. Enquanto que para o bispo Bramhall, se não houver liberdade da vontade
para o homem escolher, a punição se torna torpe e imerecida. Para Hobbes é o fato de o
homem ser determinado por corpos externos que torna a punição legítima, de forma que “o
que norteia toda ação e toda escolha é o princípio do benefício próprio, de modo que, quando
um homem delibera não faz mais do que “considerar se é melhor para ele fazer ou não fazer”
(FRATESCHI, 2007, p. 121). Eis que a liberdade em Thomas Hobbes é também educativa e
formadora da vontade dos homens106
.
A liberdade tende a educar justamente porque os homens agem sempre em benefício
próprio. Os homens sempre estarão buscando a sua proteção e projeção. Dessa maneira, no
Estado não se pode agir da maneira que se bem entende, o súdito é livre para agir somente nos
limites propostos pelo soberano – lei civil107
. Assim que a punição para aquele súdito que
romper com os limites propostos pelo pacto – lei – tende a mostrar para o súdito infrator que a
obediência à lei existe para o próprio benefício e não ao contrário. Como já afirmamos, as leis
servem para serem cumpridas e não burladas. O cumprimento das leis traz o progresso à
humanidade108
, ao contrário, a quebra delas conduz os homens diretamente para o estado
natural. Portanto, para Hobbes está decretado o fim do livre-arbítrio na ação livre do corpo
vivo, mostrando assim que o homem pode ser livre e responsável concomitantemente e, caso
sua ação transgrida o pactuado, ele poderá ser punido de maneira legítima – tanto pelo Estado
como por Deus.
3.3 A PROBLEMÁTICA DA LIBERDADE E DA NECESSIDADE HOBBESIANA
Com este ponto queremos mostrar que a liberdade é compatível com a necessidade109
,
no mesmo sentido em que o homem é absolutamente livre para agir em estado natural, a fim
106
“A punição é eficaz porque é exemplar e capaz de formar a vontade. Deste modo, é justo punir aquele que foi
contra a lei, não porque ele poderia ter feito de outro modo, mas porque o direito de punir deriva exclusivamente
do poder político do soberano civil; e a punição é eficaz porque ela tem em vista a correção e formação da
vontade a fim de evitar a transgressão futura” (FRATESCHI, 2007, p. 122). 107
“O soberano pode, portanto, punir um súdito que desobedeceu a lei, mesmo que ele não tenha sido capaz de
evitar o ato desobediente. É o caso, por exemplo, de alguém que, por medo da punição eterna – tão alardeada
pelos padres – acabou desobedecendo a uma ordem do governante. Nesse caso, o medo de arder no fogo do
inferno sobrepujou o medo da punição civil e determinou a sua vontade e, conseqüentemente, a ação. Tome-se
outro exemplo, o de Medéia. Embora ela tivesse muitas razões para não matar os seus filhos, vingar-se do seu
marido sobrepujou a todas. O desejo de vingança foi o último ditado do seu julgamento, e a ação criminosa
seguiu-se necessariamente. O fato de a ação ter sido necessitada pelo medo da danação eterna ou pelo desejo de
vingança, não impede que o desobediente ou a criminosa sejam responsabilizados e punidos, pois a
responsabilização seguida de punição visa evitar crimes” (FRATESCHI, 2007, p. 121). 108
Para Yara Frateschi, esta é “a solução de Hobbes para o problema de compatibilizar o determinismo e a
eficácia da punição: a punição passa a constituir a causa da vontade, da qual segue a ação obediente. Daí ele
dizer que fazer a lei é fazer a causa da justiça e necessitar a justiça” (2007, p. 121). 109
Cf. LEVIATÃ, II, XXI, p. 130.
121
de que o seu movimento vital seja preservado, também ele necessita limitar a sua liberdade
pactuando com os outros homens em favor da instituição de um mecanismo capaz de
governá-los pelas leis – o Estado. Esta discussão que se desencadeia110
entre Hobbes e John
Bramhall111
é um seguimento lógico da discussão já apresentada por nós em torno da
liberdade e do livre-arbítrio. Quando Bramhall salienta que a vontade é subordinada da
deliberação, e por isso a razão é a faculdade mais importante do homem, Hobbes enfatiza o
oposto, deixando claro que a vontade não é escrava da razão, mas que é o último apetite da
deliberação. Para não deixar dúvida, Hobbes as define da seguinte maneira:
A deliberação é a consideração das boas e más conseqüências de uma ação
futura, que por espontaneidade ou se entende a ação precipitada ou não se
entende nada; que a vontade é o último ato de nossa deliberação; que um
livre agente é aquele que pode fazer se quiser e abster-se se quiser, e que a
liberdade é a ausência de impedimento externo (LIBERTAD Y
NECESIDAD, 1991, p. 168)112
.
A vontade é a última instância propriamente antes da ação do corpo, seja em função do
apetite ou da aversão. Ou seja, “a deliberação não é senão a alternância de desejos e paixões,
assim como de pensamentos – eis o que é a deliberação; e ela encontra um fim quando, nessa
sucessão alternada, o último apetite ou a última aversão predomina e se faz a causa imediata
da ação – eis o que é a vontade” (MALHERBE, 2002, 53-54). A deliberação, ainda, conforme
Hobbes, é a antecipação de determinada ação futura, seja ela boa ou ruim.
A problemática sobre a liberdade e a necessidade em Hobbes é produto da linguagem
humana113
, excluindo assim qualquer via interpretativa que remeta à dimensão metafísica.
Hobbes caracteriza-se por sistematizar a liberdade e a necessidade humanas nos meandros da
mensurabilidade, da linguagem genuinamente física. Esta desconfiança se torna verdadeira
quando recordamos a célebre definição hobbesiana acerca da liberdade, enraizada no capítulo
XXI do “Leviatã”, a saber, “um homem livre é aquele que, naquelas coisas que graças a sua
força e engenho é capaz de fazer, não é impedido de fazer o que tem vontade de fazer”
(LEVIATÃ, II, XXI, p. 129). Todo homem é provido do mesmo direito: fazer tudo o que for
110
“Los Cavendish, llevados por su inquietud intelectual, organizaron en 1646 una discusión en la que el filósofo
mecanicista y el teólogo armeniano defendieron sus pontos de vista sobre a libertad y la necesidad” (Libertad y
necesidad y otros escritos, 1991, p. 23). 111
John Bramhall “pertencía a la secta fundada por Jacobus Arminius en Holanda, la cual defendía una doctrina
relativa a la libertad y la gracia muy cercana a la que sostenía el pensamiento católico-tomista y alejada, por
tanto, de la doctrina sobre la irreversibilidad de la gracia sostenida por Lutero y Calvino” Libertad y necesidad
y otros escritos, 1991, p. 21). 112
“La deliberación es la consideración de las buenas y malas consecuencias de una acción futura, que por
espontaneidad o se entiende la acción precipitada o no se entiende nada; que la voluntad es el último acto de
nuestra deliberación; que un libre agente es aquel que puede obrar si quiere y abstenerse si quiere, y que la
libertad es ausencia de impedimentos externos”. 113
Cf. MALHERBE, 2002, p. 45.
122
necessário e possível para se manter em movimento, de sorte que todo homem foi criado para
o movimento. Assim como o homem é livre, ele também necessita fazer uso dessa liberdade
para se preservar. A liberdade do homem é igual a sua necessidade de se manter vivo. O
homem é livre na medida em que abdica de tal liberdade ilimitada, por necessidade, para se
preservar e continuar vivo com uma liberdade limitada pelas leis civis; de forma que:
A liberdade e a necessidade são compatíveis: tal como as águas não tinham
apenas a liberdade, mas também a necessidade de descer pelo canal, assim
também as ações que os homens voluntariamente praticam, dado que
derivam de sua vontade, derivam da liberdade; ao mesmo tempo que, dado
que os atos da vontade de todo homem, assim como todo desejo e inclinação,
derivam de alguma causa, e essa de uma outra causa, numa cadeia contínua
(cujo primeiro elo está na mão de Deus, a primeira de todas as causas), elas
derivam também da necessidade. [...]. Portanto Deus, que vê e dispõe todas
as coisas, vê também que a liberdade que o homem tem de fazer o que quer é
acompanhada pela necessidade de fazer aquilo que Deus quer, e nem mais
nem menos do que isso (LEVIATÃ, II, XXI, p. 130).
Hobbes defende que a controvérsia entre a liberdade e a necessidade é estritamente
verbal, bastando, apenas, a análise esmiuçada do termo liberdade e necessidade para se
constatar que “a ação humana pode ser livre, mesmo sendo necessária” (MALHERBE, 2002,
p. 46). No capítulo XXI do “Leviatã”, que versa sobre a liberdade dos súditos, encontramos
justamente a idéia de que liberdade e necessidade são compatíveis, ou seja, a natureza114
concede ao homem a liberdade absoluta a fim de que busque os fins necessários para a
manutenção da sua vida. Em virtude das vantagens oriundas do estado natural, o homem
percebe que de nada lhe adiante a liberdade sem limites se a sua vida corre risco permanente
de encontrar um fim e, frente a isso, via cálculo, o homem sente a necessidade de limitar tal
liberdade e viver com possibilidades e expectativas reais de vida.
Em continuidade a essa ideia, analisando os primeiros parágrafos do capítulo XXI do
Leviatã, notamos a autenticidade da afirmação de Malherbe, ou seja, que o problema da
liberdade e da necessidade não passa de um exercício lingüístico. Para defender esta
concepção, vamos seguir em partes. Em primeiro lugar, todo corpo é livre se o seu
movimento não se deparar com nenhum obstáculo externo. Em segundo lugar, esta definição
é tão geral que vale tanto para os corpos racionais como para os não racionais. “Diz-se que
um rio é livre quando seu curso não é impedido; que um animal é livre quando pode mover-se
como quer; que um homem é livre quando o poder que tem para realizar seus fins não é
contrariado” (MALHERBE, 2002, p. 47). Todos os corpos são colocados no mesmo patamar
114
A definição de natureza, conforme Thomas Hobbes escreveu na Introdução ao “Leviatã”, é “a arte mediante
a qual Deus fez e governa o mundo” (1983, p. 05).
123
interpretativo, e para todos eles existe apenas a barreira externa, de maneira que quando a
limitação do movimento é inerente ao corpo, costumamos dizer que não lhe falta liberdade,
mas sim o poder de movimentação. Para o filósofo político de Malmesbury isso é um indício
de que a liberdade não é relativa ao interior do corpo, e apenas ao seu movimento, que é
externo ao seu corpo. O corpo não é o seu movimento, assim como seu movimento não é seu
corpo. Portanto, só conseguimos pensar em liberdade do corpo porque existe o movimento
que é fato real e mensurável, em contrapartida, o corpo não oferece toda essa postura de
verificabilidade.
Hobbes prende-se ao significado e ao uso da palavra liberdade, ao invés de assumir
uma dimensão ontológica. Esta atitude, para Malherbe, é normal, pois “cada um pode definir
as palavras como as entende” (MALHERBE, 2002, p. 47). A definição e o uso do termo
liberdade têm validade para todos os corpos desde que estes estejam em movimento, caso
contrário, existe apenas um abuso de linguagem115
. Portanto, a liberdade hobbesiana é a ação
livre do corpo e não a liberdade da vontade ou do desejo do corpo. Toda ação requer um
corpo em movimento. A liberdade não é um corpo que possa se movimentar. A liberdade não
passa de ausência de impedimentos externos de um corpo em movimento. Para existir ou não
existir a liberdade, conforme Hobbes, deve haver um corpo em movimento ou paralisado, mas
a liberdade em si nunca existirá. Aqui entendemos que o problema do abuso de linguagem,
denunciado por Hobbes, em relação ao problema da liberdade, está em atribuirmos à liberdade
uma condição que, conforme Hobbes, não existe, o livre-arbítrio. Não existe uma condição
administrativa para a liberdade. Como mostramos acima, o que existe é corpo em movimento
ou paralisado; uma concepção puramente mecânica e física. A concepção de liberdade de
Thomas Hobbes é puramente corpórea e muito distante, por iniciativa mesmo de Hobbes, da
concepção tradicional metafísica.
A compatibilidade, encontrada no capítulo XXI do “Leviatã”, entre liberdade e
necessidade é compreendida a partir da causa eficiente e do seu efeito. Poderíamos pensar em
um rio, quando na ausência de barragem externa, é livre para seguir seu caminho normal e
que, ao mesmo tempo, lhe é necessário seguir. O animal é livre para agir, mesmo que a causa
eficiente da sua ação seja a necessidade basilar da alimentação.
Diríamos assim que o rio, não havendo barragem, é livre para seguir seu
curso, e que lhe é ao mesmo tempo necessário segui-lo; que o animal vai
aonde lhe apraz, ainda que seu impulso seja dirigido pela fome que sente; ou
ainda, que um homem é livre para realizar a ação que projeta quando não se
depara com nenhum impedimento, ainda que sua vontade seja
115
Cf. LEVIATÃ, II, XXI, p. 129.
124
necessariamente determinada por um conjunto complexo de causas, de
motivos, de móbeis, de condições, de circunstâncias. A definição dada de
liberdade é portanto compatível com a mais estrita necessidade
(MALHERBE, 2002, p. 48).
Neste sentido que podemos pensar na criação do Estado civil, pois o homem é livre e
necessita criá-lo para a preservação do seu movimento vital. O homem constata, via cálculo e
linguagem, que a liberdade que lhe é própria no estado natural não lhe convêm para aquele
momento, então, ele sente a necessidade de pactuar com os outros homens e viver em uma
situação mais privilegiada e com mais condições de preservação vital. A liberdade e a
necessidade são compatíveis no sentido de que assim como o homem é livre, ele também
necessita buscar melhores condições para a sua própria preservação. Com efeito, dado que a
instauração do Estado civil tem uma concepção natural em seu fundamento:
A concepção mecanicista de liberdade sustentada por Hobbes é suficiente
para dar conta deste ato? Ou seria necessário supor no homem uma
faculdade moral original, capaz de autonomia, agindo por escolha, apta a
representar o bem, e que transforme o ser humano em uma personalidade
moral, irredutível a sua existência corporal, antes de fazê-lo uma
personalidade jurídica ou um cidadão? (MALHERBE, 2002, p. 49).
A antropologia hobbesiana, que é mecânica, serve como sustentáculo para a sua
concepção de política. A transição do esquema natural para a criação de leis capazes de
nortear e limitar os direitos outorgados pela natureza ao homem gera o Estado civil. “Notemos
igualmente que, se tomarmos a letra dos primeiros capítulos do Leviathan, aparece claramente
que a antropologia é reportada a uma física do movimento e que Hobbes se aplica a traduzir
todas as suas partes em termos de necessidade mecânica” (MALHERBE, 2002, p. 49). Tudo
direciona para a compreensão de que o homem segue uma necessidade ligada à sua
constituição natural enquanto homem provido de liberdade absoluta. A ‘mortificação’ da
liberdade é absoluta e necessária para que o homem continue a pensar em termos de
construção, projeção, planos futuros, em todos os campos da vida humana.
Desta citação de Michel Malherbe extraímos duas constatações acerca da liberdade
hobbesiana. A primeira constatação é uma reclamação de sentido, de maneira que a liberdade
humana, que tem como base a compreensão mecânica, e por ser mecânica é composta de
movimento e movimento, conforme Thomas Hobbes, gera tão e somente movimento. Como
pode, então, pela liberdade humana, que é movimento, surgir o Estado civil dotado de leis e
normas capazes de organizar a vida social dos homens? A segunda constatação gira em torno
da identidade do Estado civil que é instaurado a partir da antropologia mecânica. Ora, se a
compreensão mecânica é a base do movimento causador do Estado civil, isso significa que o
125
Estado não passa de uma máquina perfeita capaz de produzir finalidades específicas, assim
como uma fábrica de automóveis que gera apenas modelos preestabelecidos, mas, na
realidade do Estado civil isso não é verdadeiro. Basta analisar para verificar que até mesmo o
Estado civil carece de ordem para o seu bom funcionamento. Para responder a estas duas
interrogações é relevante levantar uma nova interjeição, a saber: a ordem política está
submetida aos mesmos princípios da ordem natural? A liberdade natural e civil configuram-se
essencialmente as mesmas? Ou devemos falar de uma liberdade natural e uma liberdade civil?
A antropologia de Hobbes fixa-se em uma dupla noção de movimento: o vital e o
animal. Conforme Heck: “a distinção entre um e outro não ancora sobre uma diversidade de
princípios, mas tem a ver com a maneira como cada um deles surge no organismo” (2002, p.
540). O movimento vital é a própria circulação sanguínea, respiração, todo movimento interno
que tem por objetivo manter o indivíduo com vida. Mais do que isso, o movimento vital tem
“lugar entre a concepção e a morte do ser humano, essa espécie de movimento ocorre no
interior do corpo e permanece infensa à vontade. Exemplos desse tipo de movimento são a
circulação do sangue, o pulso, a respiração, a digestão, e a excreção” (HECK, 2002, p. 540).
O movimento animal ou voluntário depende de uma ação externa, que cause pressão aos
sentidos, gerando, posteriormente, movimento interno, que pode ser tanto apetitoso como
aversivo. O movimento animal “se expressa na conduta externa do homem como andar, falar
e mover qualquer dos membros, da maneira como anteriormente foi imaginada pela mente”
(HECK, 2002, p. 540). O bem não é outra coisa senão aquilo que busca o desejo (apetite), o
mal, ao contrário, é aquilo que se desvia (aversão).
A vida do indivíduo é uma sucessão de busca, quando existe o desejo, e de fuga
quando não existe o desejo de contrair determinado objeto. O desejo é um movimento em
direção ao objeto almejado, a sensação, ao alcançar este objeto, é o prazer; o contrário se
configura em desprazer. Geralmente os homens tendem a agir em busca do prazer e em
repulsão ao desprazer. Todavia, o prazer para determinado homem não é o mesmo prazer que
o outro prefere e procura. Por sua vez, a finalidade que o homem busca com o prazer é a
sensação de bem para o seu próprio movimento vital e nisso os homens se igualam,
independentemente do objeto que possa acarretar essa sensação ao homem. Da mesma forma,
os homens fogem da sensação do mal ou, simplesmente, do desprazer ou desagrado.
Portanto, o prazer (ou deleite) é a aparência ou sensação do bem, e
desprazer ou desagrado é a aparência ou sensação do mal.
Conseqüentemente, todo apetite, desejo e amor é acompanhado por um
deleite maior ou menor, e todo ódio e aversão por um desprazer e ofensa
maior ou menor (LEVIATÃ, I, VI, p. 34).
126
É frente esta afirmação de Hobbes que podemos entender a vida livre e prática do
homem, ou seja, um corpo livre preocupado com a manutenção do seu movimento vital, que
tanto pode se afastar como se aproximar do objeto em questão, tende a seguir sempre os
impulsos que ocasionam a sensação de bem e nunca a de mal. A aproximação ou o
afastamento do homem em relação ao objeto depende do seu desejo vinculado à deliberação.
Hobbes chama de deliberação “todo o conjunto de desejos, aversões, esperanças e medos, que
se vão desenrolando até que a ação seja praticada, ou considerada impossível” (LEVIATÃ, I,
VI, p. 37). Quando a vontade dá lugar à ação, melhor dizendo, quando a partir da vontade o
homem acaba agindo. Isso que caracteriza a deliberação.
Podemos, a partir desta caracterização de deliberação, pensar que a liberdade “finda
com a vontade; o último apetite, o último conatus, predominando sobre os outros
movimentos” (MALHERBE, 2002, p. 54). Dessa maneira, a liberdade “é, de alguma maneira,
o desejo inacabado ou o desejo contrariado pelo desejo, e o tempo da ação que se retarda”
(MALHERBE, 2002, p. 54). Isso gera a compreensão de que o homem é determinado a
buscar os seus fins quantas vezes forem necessárias e possíveis e o homem não tem como
negar-se a esta determinação natural, pois “o desejo de vida e de felicidade está inscrito na
natureza mesma dos homens, que não podem a ele se subtrair” (MALHERBE, 2002, p. 55). O
homem não pode recusar a sua própria vida, ele deve e tem total liberdade de buscar tudo o
que for urgente para seu movimento vital permanecer ativo. E é justamente neste ponto que
reside a interpretação central da liberdade como compatível com a necessidade. O homem não
pode se recusar de tentar se preservar. O homem é absolutamente livre e necessita fazer com
que esta realidade aconteça. Em relação a isso, portanto, não há maiores problemas, todo
homem, geralmente, se empenha no sentido de conquistar ou esquivar-se daquilo que lhe é
necessário para conservar a vida.
Quando os meios encontrados pelo indivíduo não alcançam obstáculos até a conquista
do objeto desejado, quando o homem realiza o fim que motivou seu movimento, podemos
dizer que a consciência que o indivíduo tem da sua liberdade é igual à consciência que o
indivíduo tem ao se movimentar para determinado fim. O que estamos afirmando é que para
além da liberdade humana existe no homem o conhecimento desta realidade. É frente esta
interpretação que entendemos a seguinte afirmação de Hobbes:
Por liberdade entende-se, conforme a significação própria da palavra, a
ausência de impedimentos externos, impedimentos que muitas vezes tiram
parte do poder que cada um tem de fazer o que quer, mas não podem obstar a
que use o poder que lhe resta, conforme o que seu julgamento e razão lhe
ditarem (LEVIATÃ, I, XIV, p. 78).
127
Consoante a Malherbe, esta definição de liberdade apresentada por Hobbes “não
concerne ao fim, concerne ao meio” (2002, p. 56), ou seja, ela não está na escolha efetiva da
conquista dos fins e sim nos elementos intermediários que conduzem o homem até o fim
estimado. O fim estimado por todo homem é a vida pacífica e prazerosa. No estado natural,
esta realidade se torna muito remota e quase impossível de acontecer, já, por sua vez, com a
instituição do Estado civil, a probabilidade do homem conseguir desempenhar isso com êxito
é extremamente mais satisfatória e possível, de sorte que as leis existem justamente para que
isso aconteça. “A liberdade tem, assim, este triplo aspecto: a escolha dos meios a seu prazer, o
domínio efetivo dos meios, e, portanto, a capacidade efetiva de realizar seus fins”
(MALHERBE, 2002, p. 56).
Quando os corpos não vivos estão em movimento é necessário que existam outros
corpos em movimento para que aqueles ganhem movimento, mantenham ou mudem de
direção, ou paralisem seu movimento. Contudo, quando os corpos são vivos, tais ações e
reações mecânicas são acompanhadas de representação e desejo e é isso que os impulsiona ao
movimento vital. O efeito de um corpo em movimento é outro corpo em movimento. O
movimento gera movimento, “mas também a consciência ou a paixão vivenciada”
(MALHERBE, 2002, p. 57). Assim podemos dizer que o poder é a liberdade que o homem
tem de buscar meios para o fim tão visado (a permanência do movimento vital), ou seja, é
livre todo aquele corpo que pode e que não é impedido de encontrar seus fins. Como
afirmamos, o movimento gera movimento. O homem é um corpo em movimento, tal
movimento só permanecerá enquanto a busca de elementos, que tenham por finalidade a
alimentação e a preservação desse movimento, for real e constante.
Neste contexto, a razão humana surge como uma importante aliada. Não mais como
uma instância puramente humana e ontológica, senão que como um instrumento de cálculo.
Por meio das leituras das obras de Hobbes, notamos que a razão humana não passa de um
poder que a natureza destinou aos homens. A razão humana como fonte de potência dá
margem interpretativa para uma dupla liberdade: “a de se subtrair ao caráter imediato do
desejo de vida para pensar os bens como fins, os quais pode-se atingir ou não atingir; a de
comparar os meios e se esforçar por escolher o melhor” (MALHERBE, 2002, p. 58). O poder
da razão, como ferramenta de deliberação humana, é um poder singular de representação. É
importante salientar que tal representação não diz respeito aos fins, mas aos meios que
conduzem os homens aos fins almejados.
Tanto no estado natural como no Estado civil o fim não varia, o fim é sempre o
mesmo: escapar da morte violenta e viver uma vida pacífica e prazerosa. Este é o fim que toda
128
humanidade se debate para alcançar. Todas as evoluções científicas, todos os avanços
tecnológicos, todas as pesquisas acadêmicas direcionam-se para este fim, apresentar respostas
convincentes à humanidade de como se deve agir para conquistar uma vida satisfeita e segura.
A lei civil legisla apenas sobre os meios. Ela proíbe tudo o que pode prejudicar a vida
prazerosa e pacífica do homem. A liberdade humana ganha consistência como meio neste
contexto, de maneira que no estado natural o homem é totalmente livre para manter sua vida
e, no Estado civil, vive a liberdade com certas restrições. Nesta condição o movimento vital é
garantido pelo Leviatã. Entretanto, quando a liberdade natural se coloca sem espécie alguma
de ressalva, ela é reduzida a nulidade. O que fica evidente é que o princípio da liberdade
hobbesiana deve procurar outro ponto de partida além da natureza, pois pactuar é um ato
contrário à natureza humana.
Hobbes deixou claro que a vida do homem em torno do bem comum é um acidente da
natureza e que os homens se procuram e aceitam a vida em sociedade por conveniência e por
maior probabilidade de preservação do movimento vital116
. Não existe um bem comum.
Existe apenas a preocupação com o próprio conforto e a própria preservação da vida.
Conforme Hobbes, a única maneira para se obter tais fins é a instituição de um poder comum,
capaz de agregar todas as vontades a uma só:
A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das
invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes
assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e
graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir
toda sua força e poder a um homem ou a uma assembléia de homens, que
possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só
vontade (LEVIATÃ, II, XVII, p. 105).
Continua o autor do Leviatã a exprimir como acontece tal instituição:
O que equivale a dizer: designar um homem ou uma assembléia de homens
como representante de suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se
cada um como autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa
praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e segurança
comuns; todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante,
e suas decisões a sua decisão. Isso é mais do que consentimento, ou
concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma
pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de um
modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro
meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta
116
“É certo que há algumas criaturas vivas, como as abelhas e as formigas, que vivem socialmente umas com as
outras (e por isso são contadas por Aristóteles entre as criaturas políticas), sem outra direção senão seus juízos e
apetites particulares, nem linguagem através da qual possam indicar umas às outras o que consideram adequado
para o benefício comum. Assim, talvez haja alguém interessado em saber por que a humanidade não pode fazer o
mesmo” (LEVIATÃ, II, XVII, p. 104). Thomas Hobbes apresenta seis razões pelas quais os homens não nascem
aptos para a vida em comum. Tais razões podem ser conferidas no capítulo XVII do Leviatã.
129
assembléia de homens, com a condição de transferires a ele deu direito,
autorizando de maneira semelhante todas as suas ações (LEVIATÃ, II,
XVII, p. 105).
Em relação à identidade desse pacto, Hobbes salienta: “Feito isso, à multidão assim
unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta a geração daquele grande
Leviatã, ou antes (falar em termos mais relevantes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos,
abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa” (LEVIATÃ, II, XVII, p. 105-106). Os homens
fazem isso conduzidos pelo desejo de vida satisfatória e pacífica. Mais do que um mero pacto,
mas uma verdadeira unidade humana, o Estado surge como um instrumento artificial na
tentativa de paralisação do poder ilimitado dos homens. Os homens o instituem porque
querem viver em paz e com esperança. A razão atuando como perfeito instrumento de
maquinação apresenta aos homens esta possibilidade como a mais viável. Os homens aceitam
o pacto e passam a viver sob o poder coercitivo da lei. “Portanto a justiça, isto é, o
cumprimento dos pactos, é uma regra da razão, pela qual somos proibidos de fazer todas as
coisas que destroem a nossa vida, e por conseguinte é uma lei de natureza” (LEVIATÃ, I,
XV, p. 88). Assim podemos procurar outros elementos que embasam o pacto:
Na vida civil, na cultura, de uma maneira geral no ato humano; mesmo
levando-se em conta que é própria à necessidade mecânica criar as
circunstâncias materiais indispensáveis e, de alguma forma, a urgência de
contratar, ela será totalmente ultrapassada por este ato não natural que é o
pacto (MALHERBE, 2002, p. 60).
A liberdade civil é aquela que acontece na presença da lei e nos limites propostos por
ela, de maneira que o homem é livre quando age segundo os limites impostos pelo Estado. De
que adianta a liberdade natural (ilimitada) se não há garantia de vida? O raciocínio mais
lógico e convincente que os homens chegam é a limitação da liberdade natural, gerando a
liberdade civil, em função da preservação do movimento vital, que caracteriza a liberdade do
súdito como compatível com a necessidade de pactuar. Por esta razão que Hobbes afirma ser
esta a única saída para o homem, ou seja, entre viver totalmente livre e com medo da morte
violenta, o homem opta por viver com suas ações limitadas, porém, com certeza de que pode
crer no amanhã e com fortes indícios de esperança em uma vida melhor e mais confortável,
amparada pelo Estado e suas leis. Este é o uso da razão que o homem faz.
A razão, poder de cálculo, procurando o meio de sair do estado de guerra,
encontrando-o enfim nela mesma, mas em seu poder de ficção (ou seja, de
representação eficaz): uma ficção não empírica, o pensamento de
autorização, é capaz de criar um novo poder, um deus mortal. Uma razão
artificiosa. Uma razão que não diminui em nada a necessidade natural (ela
prossegue ainda no estado civil, em outras condições), mas que foi capaz,
130
precisamente, de mudar a condição dos homens. Uma razão não impedida e,
portanto, livre, sem ser incompatível com a necessidade. Liberdade e
necessidade permanecem compatíveis. Mas a liberdade de que se trata na
ordem civil é a de um ser racional (MALHERBE, 2002, p. 64).
O homem, que agora está inserido no Estado civil, vivendo sob os ensinamentos da lei
estabelecida pelo soberano, ainda tem medo de morrer. O medo é uma paixão natural e
mesmo nos limites do Estado civil continua a existir, porém com menos intensidade. O medo
permanece no homem, o mesmo medo que o motivou a pactuar com os outros homens –
medo da morte violenta – contudo, no Estado civil o medo foi parcialmente removido, pois
existe a presença forte do poder do soberano obrigando com que os súditos cumpram a lei. A
lei, por sua vez, está a favor da vida e da paz dos súditos “dado que todo súdito é por
instituição autor de todos os atos e decisões do soberano instituído, segue-se que nada do que
este faça pode ser considerado injúria para com qualquer de seus súditos, e que nenhum deles
pode acusá-lo de injustiça” (LEVIATÃ, II, XVII, p. 109). Caso o súdito quebre o pacto
estabelecido entre os homens – desde que a finalidade do Estado esteja sendo cumprida: a
preservação da vida confortável e pacífica – não poderíamos falar em termos de uma
contradição do Estado, mas sim no sentido de uma contradição entre os súditos.
Conforme afirmávamos acima, o medo ainda é uma realidade permanente e constante,
pois ainda o homem tem medo de morrer, mesmo dentro dos limites do Estado civil. O medo
é um elemento fundamental para que a vida, mesmo dentro dos limites da lei civil, e as leis
permaneçam e sejam preservadas. Faz parte, então, do Estado civil o homem ter medo do que
possa acontecer com a sua vida, mas ainda assim poder projetar e maquinar ações futuras, dar
atenção aos seus anseios, poder cultivar a lavoura e a ciência, pois o Estado está para garantir
e preservar a vida pacífica. A função do Estado civil, portanto, está para diminuir o medo no
homem da morte violenta e para promover a esperança de uma vida melhor.
Visto que o fim dessa instituição é a paz e a defesa de todos, e visto que
quem tem direito a um fim tem direito aos meios, constitui direito de
qualquer homem ou assembléia que detenha a soberania o de ser juiz tanto
dos meios para a paz e a defesa quanto de tudo o que possa perturbar ou
dificultar estas últimas (LEVIATÃ, II, XVII, p. 109).
Portanto, dentre os muitos males existentes, o menor mal é a única possibilidade de
fuga desta situação improvável e insuportável. Ora, se não fosse insuportável, os homens
poderiam permanecer nesta condição natural de vida: liberdade ilimitada, direito a todas as
coisas. Entretanto, isso tudo de nada adianta se a vida não for preservada. O poder a todas as
coisas – a liberdade ilimitada, natural – necessita ser podada pelas leis civis. O homem
necessita tomar esta decisão junto com os outros a fim de que possa continuar o movimento
131
vital. A lei civil delimita a liberdade do homem, contudo, lhe dá maiores chances de vida. Do
surgimento do Estado civil nasce a lei, que são “essas regras da propriedade (ou meum e
teum), tal como o bom e o mau, ou o legítimo e o ilegítimo nas ações dos súditos, são as leis
civis” (LEVIATÃ, II, XVII, p. 110). O nascimento das leis civis só é possível pela
conciliação da liberdade com a necessidade dos homens. A liberdade dos súditos consiste em
abdicar da própria liberdade absoluta em troca da paz e da segurança e a esperança de uma
vida melhor e satisfeita, que são necessárias à preservação do movimento vital.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As interpretações que se ocupam do problema da liberdade em Thomas Hobbes nos
apresentam um filósofo político pouco sistemático – basta pensar no fato de que ele não
escreveu nenhuma obra específica para tratar da questão da liberdade do corpo. Tudo o que
temos para embasar nosso estudo sobre a liberdade está espalhado nas suas diversas obras.
Reservando, no “Leviatã”, dois capítulos, o famoso XXI – sobre a liberdade dos súditos – e o
XIV – da primeira e segunda leis naturais, e dos contratos. No “De Cive” existe a primeira
seção com a incumbência de relatar sobre a questão da liberdade. Além de uma obra, cuja
característica principal já é a aplicabilidade da liberdade em outra determinada discussão, a
saber, “Liberdade e Necessidade”. Mas, por outro lado, encontramos um filósofo preocupado
com a originalidade da problemática. Tanto é que a sua maneira de interpretar a liberdade é
marco decisivo de rompimento com a tradição filosófica passada. Hobbes calça seu
pensamento político na matematização da natureza e aplica esta compreensão a todo corpo –
racional e não-racional – com tanto que este corpo esteja em movimento. Hobbes é um
pensador rigoroso e fiel ao modelo racional apresentado pelos seus contemporâneos. Não
apenas assistiu o desenvolvimento científico de sua época, senão que ajudou a construí-lo.
Aqui reside a originalidade do pensamento de Hobbes com relação à liberdade do corpo.
Hobbes decide espontaneamente a reformular a definição de liberdade que até então
somente os seres racionais gozavam. A liberdade não é um atributo pertencente somente aos
racionais, mas pertence a todo corpo em movimento, seja racional ou não. O que possibilita
essa extensão da condição de ser livre a todos, é a inovadora interpretação de ciência de sua
época, ou seja, tudo é corpo e movimento (corpo em movimento). Isso rompe de vez com a
noção de finalismo de Aristóteles, especificamente à dimensão teleológica do ser, que se
movimenta em direção à atualização de suas potencialidades inerentes a si. Este é o fim da
compreensão de liberdade que pertencia ao agente deliberativo; como se a liberdade fosse
uma faculdade pertencente somente àquele ser que age se quer ou não. Dessa maneira,
Hobbes se exprime no Leviatã acerca da deliberação do ser racional: “e o nome deliberação
vem de ela consistir em pôr fim à liberdade que antes tínhamos de praticar ou evitar a ação,
conformemente a nosso apetite ou aversão” (I, VI, p. 37).
Conforme Hobbes, essa interpretação de liberdade fundamentada na deliberação vai
encontrar inconsistências teóricas com a sua definição clássica de liberdade, citada no capítulo
XXI do Leviatã: “liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de oposição (entendendo
por oposição os impedimentos externos ao movimento); e não se aplica menos às criaturas
133
irracionais e inanimadas do que às racionais” (p. 129), ou seja, a liberdade não é uma
deliberação, a liberdade é ação. A liberdade é mais do que uma reflexão da própria liberdade
– alusão ao livre-arbítrio – a liberdade é a ação própria do corpo de movimentar sem entrave
externo à sua ação. Falar em livre-arbítrio é a mesma coisa que falar de um ‘eu’ existente
dentro de ‘eu’ mesmo, assim um ficaria responsável por deliberar (livre-arbítrio) e o outro por
agir. Conforme o filósofo político inglês, isso é um absurdo; um exagero lingüístico próprio
de homens providos de má fé.
Um corpo voluntário é livre quando não é impedido de fazer o que pode fazer,
justamente porque o poder de fazer, que antecede e a ação do corpo, não tem mais uma
ligação com a doutrina moral e política e muito menos com a dimensão ontológica-metafísica.
A compreensão hobessiana de liberdade segue outra diretriz interpretativa, aquela aplicada a
todos os corpos em movimento, a qual, analogicamente, será aplicada ao corpo humano e
livre nos meandros do Estado civil. A definição de liberdade como ausência de impedimento
externo ao corpo em movimento é encontrada em dois momentos distintos das obras de
Thomas Hobbes. A primeira vez está contida no capítulo sobre as leis de natureza117
, capítulo
XIV, e a segunda em um capítulo específico, a saber, no XXI, sobre a liberdade dos
súditos118
. É frente estas duas passagens que percebemos uma liberdade que se dá em dois
sentidos: a liberdade em estado natural e a liberdade dos súditos.
Em relação à liberdade em estado natural, o homem é totalmente livre e provido de
poder de uso dos meios necessários ao seu movimento vital. É um estado sem leis, normas ou
regras. Cada homem age da maneira mais conveniente para a sua preservação.
O relato das paixões dado por Hobbes as tratava, afinal, como amplamente
benéficas: aquilo que os homens sentem com ardor ou desejam ardentemente
é aquilo que os ajuda a sobreviver, e eles não podem desejar por muito
tempo um estado de coisas em que sua sobrevivência esteja em risco. Essa
concepção era terreno comum entre Hobbes e muitos de seus
contemporâneos, inclusive Descartes: todos afirmavam que idéia tradicional
de que a razão podia controlar as paixões era um erro, e que (adequadamente
compreendidas) nossas emoções nos guiam na direção correta. No relato de
117
“Por liberdade entende-se, conforme significação própria da palavra, a ausência de impedimentos externos,
impedimentos que muitas vezes tiram parte do poder que cada um tem de fazer o que quer, mas não podem
obstar a que use o poder que lhe resta, conforme o que seu julgamento e razão lhe indicam” (LEVIATÃ, I, XIV,
p. 78). 118
“Liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de oposição (entendendo por oposição os impedimentos
externos do movimento); e não se aplica menos às criaturas irracionais e inanimadas do que às racionais. Porque
se tudo o que estiver amarrado ou envolvido de modo a não poder mover-se senão dentro de um certo espaço
determinado pela oposição de algum corpo externo, dizemos que não tem a liberdade de ir mais além. E o
mesmo se passa com todas as criaturas vivas, quando se encontram presas ou limitadas por paredes ou cadeias; e
também das águas, quando são contidas por diques ou canais, e se assim não fosse se espalhariam por um espaço
maior, costumamos dizer que não têm a liberdade de se mover da maneira que fariam se não fossem esses
impedimentos externos” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 129).
134
Hobbes, os homens não querem ferir os outros simplesmente por feri-los;
eles desejam ter poder sobre os outros, é certo, mas apenas para assegurar
sua própria preservação (TUCK, 2001, p. 75).
Podemos dizer que é uma liberdade em função do benefício próprio, pois o homem
não está preocupado com o movimento vital do outro. O que lhe interessa é a própria
conservação e melhores condições de vida para si próprio. As várias menções que Hobbes faz
do estado natural, em diversas de suas obras119
, caracterizam-se não pela frieza que o autor do
Leviatã descreve a natureza humana, mas pelo desdobramento original e próprio em que
apresenta a concepção de homem. O homem sempre foi mostrado pela história da
humanidade como um ser social, pronto para viver de bem o outro. Um homem aberto às
relações interpessoais, livre e consciente de sua condição. Contudo, com Hobbes, o caminho
sofre uma alteração substancial. O homem não é mais visto como um ser de relações sociais,
aberto às relações interpessoais, mas como um ser de interesse próprio e individual. Um ser
que vive à procura de benefícios para si mesmo. Podemos denominar o caminho que Hobbes
desenvolveu como: do natural ao civilizado.
Hobbes alcança tamanha genialidade no campo da política porque a sua maneira de
pensar a política, o homem na sua relação com si mesmo e com o outro, as leis na vida do
homem, o paradoxo entre liberdade e determinismo, tudo isso é muito inovador para o sistema
político da época e o atual. Na época de Hobbes a liberdade era pensada em termos da
liberdade da vontade – livre-arbítrio – e sempre subordinada à razão, por este motivo, a
liberdade pertencia exclusivamente ao homem, ser racional. Com Hobbes a liberdade era
pensada no sentido físico, pertencente a todo corpo, racional ou não, contanto que estivesse
em movimento. Assim como um homem é livre para agir em conformidade com a sua
necessidade, também uma pedra, um rio, um cão igualmente são. O homem não se ostenta
mais de ser o centro do mundo por conta da sua condição de racional e teológica – imagem e
semelhança do Criador. O que existe no mundo, conforme Hobbes e uma vasta gama de
pensadores que estipularam os parâmetros da ciência nascente120
, com base na linguagem
matemática, são corpos e movimento, melhor dizendo, corpos em movimento.
119
Cf. De Cive, a primeira seção que trata sobre a liberdade e os capítulos XIII, XIV e XV do Leviatã, todos com
considerações acerca da condição natural do homem. 120
“E quando Lord Cavendish enviou seu filho naquela que seria chamada a “Grande Viagem”, feita entre 1610
e 1615, Hobbes o acompanhou como tutor, embora apenas três anos separassem o pupilo do mestre – outra
relação encarada com inúmeras sutilezas e cheia de ambigüidade. Percorrer a Europa na qualidade daquilo que
um de seus amigos franceses mais tarde descreveriam como conducteur d’un Seigneur tornou-se uma das
principais atividades de Hobbes: além da jornada de 1610-1615, ele percorreu a Europa com o filho de outra
família em 1630 e, em 1634-1636, acompanhou o filho de seu pupilo de 1610 num tour similar ao que fizera
com o pai. Essas viagens deram a Hobbes uma oportunidade de conhecer políticos e intelectuais por todo o
continente europeu a que provavelmente nenhum outro pensador importante teve acesso; em 1636, ele já
135
O nosso objetivo, com esta dissertação de mestrado, foi mostrar justamente essa
caminhada transitória do conceito e compreensão do termo liberdade, evidentemente, sem
adentrar propriamente na conceitualização da liberdade defendida pela tradição filosófica.
Assim, no primeiro capítulo, intitulado “A física hobbesiana”, mostramos como Hobbes
assumiu e, mais importante do que assumir, ajudou a construir o cenário científico do século
XVII. Um cenário profundamente materialista e físico. Desapegado às normas oriundas de
Deus e estritamente preocupada em colocar o homem no centro do mundo e das suas ações,
principalmente das ações livres dentro do commonwealth. Mostramos, ainda, que o maior de
todos os legados deste tempo à forma de Hobbes pensar o homem em sua relação pessoal –
seja natural ou política – é a noção de movimento. O movimento que acontece em todo corpo,
seja ele racional ou não.
O movimento pode ser tanto animal – quando acontece sem a intenção de que
aconteça: corrente sanguínea e respiração – e o movimento voluntário, que o próprio nome já
diz, ou seja, depende da vontade do corpo para acontecer. Ousamos afirmar que o movimento
é o princípio da filosofia de Hobbes, pois nenhum corpo vivo pode deixar de manter o
movimento, de sorte que o movimento é igual à vida e a paralisação deste movimento é igual
à morte. Que ser vivo, usufruindo da sua sanidade mental em condições perfeitas opta pela
morte ao invés da vida? Fechamos o capítulo mostrando que as leis de natureza – nos
prendemos mais na primeira, aquele que afirma que todo homem deve procurar a paz – são
conseqüências do uso correto da razão ou, em uma linguagem apropriada, as leis naturais são
efeitos da reta razão. Os homens agem conforme a sua maneira de entender que aquilo seria o
melhor para a preservação do seu movimento vital e justamente isso é buscado. A vida
pacífica e fundamentada na esperança é o fim de toda ação humana. Portanto, nenhum homem
pode deixar de buscar a paz e de preservar a própria vida, por mais complicada que ela seja de
ser vivida, mesmo no estado natural.
No estado natural há uma liberdade de tudo a todos. Neste estado é regra que todo
homem se preserve, seja da maneira que for, pois os homens, aqui, são totalmente livres para
agir da maneira mais conveniente e provável para que a sua vida se mantenha. Tendo em vista
que é regra que todo homem deve se preservar, a situação se torna uma generalização de
conflitos, seja em potência ou ato; o famoso estado de guerra, ou seja, ‘a guerra de todos
contra todos’. No que concerne a esta passagem, citamos Richard Tuck:
conhecera a maioria dos grandes filósofos de sua época, de Galileu (com quem provavelmente travou contato em
Florença na primavera de 1636) aos franceses Pierre Gassendi e Marin Mersenne – este último era o único canal
efetivo de comunicação com René Descartes (na época, virtualmente escondido nos Países Baixos) e foi quem
pôs Hobbes e Descartes em contato, ainda que eles só tenham se encontrado em 1648” (TUCK, 2001, p. 17).
136
Mas Hobbes de fato acreditava que essas criaturas não poderiam fruir uma
existência social decente, a não ser que fossem capazes de usar linguagem
moral comum para descrever suas atividades. Essa é simplesmente uma
suposição profundamente arraigada de seu trabalho, suposição nunca
justificada de modo pleno, mas implicada de maneira constante pela forma
como ele descrevia o problema do conflito humano (2001, p. 75).
Deixamos claro, também, que neste estado o homem não age desta maneira
aparentemente ‘animalesca’ porque está disputando uma mulher em comum, o mesmo porco
que o outro também está querendo ou a posse da terra que o outro já está cultivando. A
questão aqui não é em termos de escassez de benefícios – meios – para a preservação do
movimento vital, mas a questão nuclear é pensar como agiria o homem na ausência de um
poder comum, capaz de educá-lo e puni-lo. Esta é a idéia fundamental do estado natural.
Dando seguimento a este pensamento, no capítulo segundo, denominado
“Antropologia de Hobbes: corpo físico e livre”, mostramos que os aspectos da vida humana
transcendem a idéia metafísica da realidade no instante que Hobbes se apropria de uma nova
semântica para seu pensamento em torno do homem e da política. Iniciamos pensando que o
homem está inserido em uma categoria totalmente original, a categoria de não ser um homem
político, mas de se fazer e se condicionar para política. Conseqüentemente, seguindo uma
esfera lógica, o estado natural também só pode ser avesso ao Estado civil, esse sim, político
porque é gerido e mantido por leis comuns e fortes, capazes de limitar as ações de todos os
súditos. Contudo, o estado natural, para o filósofo político inglês, não é uma realidade
histórica e sim um artifício lingüístico a fim de exemplificar o modo pelo qual os homens
viveriam na ausência de um poder comum. O estado natural não passa de uma condição
hipotética dentro do pensamento político de Hobbes. Está presente como um dos lados de
uma dicotomia. Uma necessidade correlata para facilitar a compreensão das pessoas quando
da busca por compreensão política. É como conseguir pensar no quente por conta no frio, no
seco por causa do molhado, na dor por saber o que é a ausência de dor, na saúde por já ter
ficado sem ela, enfim, o estado natural é um dos lados necessários de um produto intelectual
em torno do pensar político.
Posterior à demonstração que o estado natural é uma esfera possível do pensamento
político de Hobbes, demonstramos que o homem natural – também em condição provável –
vive constantemente em busca de paz – primeira lei de natureza. O homem busca a paz
porque no fundo ele anseia uma vida melhor e mais tranqüila, aliás, esse é um sentimento
presente em toda a humanidade e não apenas no homem natural ou no súdito de Hobbes.
Acontece que no estado natural não existe lei positiva, cuja submissão a ela traga benefício
137
para todos. O que existe neste estado é o princípio do benefício próprio, cuja principal
característica é a busca incessante de cada homem por tudo aquilo que é melhor para o seu
movimento vital. Esta forma isolado do homem agir é o que caracteriza a ‘guerra de todos
contra todos’. Um espaço no qual não existe leis e normais. A única lei é a própria
preservação do movimento vital. Sendo que a preservação da vida é o fim último da própria
vida, o homem percebe que neste estado natural não há possibilidade de manter essa sua
certeza vital. Então, o homem começa a procurar uma saída viável para esta condição
paralisar, pois de nada adiante a liberdade ilimitada e a posse de tudo o que existe na natureza
se não existir a possibilidade de vida. Neste meio o medo da morte violenta entra como um
importante indicativo de que o homem deve procurar uma saída para sua condição natural.
Frente a esta constatação, o homem passa a utilizar da sua razão – não mais como um
elemento definidor da essência – e da sua linguagem para enfrentar o problema e encontrar
uma saída. A razão surge na situação desbancada de seu lugar de glória, mas como um
simples instrumento de cálculo, capaz de prever o que é mais favorável ou o que é menos
conveniente ao homem a fim de que a sua vida permaneça. Pela razão o homem é capaz de
‘prever’ o futuro e se precaver da possível situação ou reação vindoura. A razão dá ao homem
condições favoráveis para ele se acautelar daquilo que não é tão importante para sua vida. A
linguagem aparece na esfera estrita da comunicabilidade. A função que ela carrega é a de
externalizar aquilo que o homem, calculando, tem contido em sua cabeça. Portanto, podemos
falar de dois tipos de linguagem ou, melhor dizendo, de discursos, a saber, o mental e o
verbal. O verbal é o responsável por demonstrar aos outros homens aquilo que o homem tem
no seu pensamento. A função da linguagem, então, é tornar conhecido dos outros homens
aquilo que tanto o homem maquina em sua cabeça. E uma dessas maquinações, talvez a mais
importante que o homem possa ter tido, dentro do contexto político, pois tem como pretensão
a preservação do movimento vital, é a instituição do Leviatã.
O Leviatã é criado porque é impossível o homem manter a sua vida em paz dentro do
estado natural. Entretanto, dentro do Estado civil – Leviatã – a liberdade do homem se torna a
liberdade do súdito e isso tem alguns indicativos próprios. É visando justamente manter o
direito natural, mas de maneira dosada, que os homens criam o Estado. O estado tem a função
de manter a vida dos súditos livre de grandes riscos ou, ao menos os mais visíveis e
prováveis, e garantir a paz, a segurança e a esperança de uma vida produtiva.
Porque as leis de natureza (como a justiça, a equidade, a modéstia, a piedade,
ou, em resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam), por si
mesmas, na ausência do temor de algum poder capaz de levá-las a ser
respeitadas, são contrárias a nossas paixões, as quais nos fazem tender para a
138
parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes. E os pactos sem a
espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a
ninguém. Portanto, apesar das leis de natureza (que cada um respeita quando
tem vontade de respeitá-las e quando pode fazê-lo com segurança), se não
for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada
um confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e
capacidade, como proteção contra todos os outros (LEVIATÃ, II, XVII, p.
103).
A instituição do Estado acontece para a preservação da paz. Basta lembrar que a busca
pela paz configura-se na primeira lei de natureza121
. O fim pelo qual todo homem se
movimenta. As leis naturais por elas mesmas não servem para nada, pois orientam o homem
somente em esfera individual e pessoal. Tem que haver, necessariamente, um poder
suficientemente grande para que ocorra a segurança dos homens e eles ganhem sentido em
existir. Mesmo com a instituição do Estado, o interesse do homem ainda se dará na esfera
privada, contudo, não caberá mais a ele cuidar do seu próprio direito, e sim ao soberano, o
qual ‘herdou’ todos os direitos privados e, por esta razão, é o poder supremo. “Do mesmo
modo que o pensar, assim também a honra do soberano deve ser maior do que a de qualquer
um, ou a de todos os seus súditos. Porque é na soberania que está a fonte da honra”
(LEVIATÃ, II, XVIII, p. 112).
O terceiro e último capítulo, que tem como título “Os efeitos da concepção de
liberdade na relação entre o estado de natureza e o Estado civil em Thomas Hobbes”,
demonstrou que o conceito de liberdade tradicional, aceito e disseminado como uma condição
ontológica, somente do ser racional, é questionado por Hobbes e em troca vê-se uma nova
interpretação em torno da liberdade surgindo no horizonte da política. Esta nova maneira de
pensar a liberdade tem raízes fixadas na ciência nascente de sua época, a qual Hobbes ajudou
a construir. A mesma ciência que tem caráter matemático e físico e que enxerga o mundo
como um local cheio de corpo e movimento. Imbuído nesta concepção científica, a liberdade
é entendida por Hobbes como puramente corpórea. Os efeitos que emanam desta nova visão
científica e política em torno da liberdade é a compatibilidade da mesma com a necessidade e
a visão de que o livre-arbítrio não passa de um equívoco lingüístico.
A discussão em torno da liberdade e do livre-arbítrio ganha forma quando Hobbes é
colocado em contato com o bispo Bramhall, árduo defensor da prevalência da razão sobre a
vontade do homem. Para o bispo, os homens sentem desejo e tendência por coisas
convenientes ou não ao seu movimento, contudo, a razão determina ao homem o que ele fará
ou não. Além disso, o livre-arbítrio tem um importante papel se considerado como um ser um
121
Cf. LEVIATÃ, I, XIV, p. 78.
139
autônomo dentro da constituição do próprio homem. A vontade é a liberdade da própria
liberdade. É semelhante à constituição de um único homem composto por dois: um capaz de
discernir diante do elemento que lhe chama atenção – livre-arbítrio – outro para desempenhar
a ação propriamente dita. Tudo isso para livrar Deus de ser o criador ou o culpado do pecado
original, ou seja, o homem opta pelo pecado porque quer – eis a ação do livre-arbítrio, optar
por caminhos, até mesmo os desagradáveis aos ensinamentos de Deus – e não porque Deus
tenha determinado ou possibilitado ao homem tal condição. Portanto, com a prevalência da
razão sobre a vontade, o homem transfere para si mesmo toda culpa por determinada ação.
Para o pensador político inglês isso não acontece exatamente dessa maneira, de sorte
que a vontade é o último apetite que antecede a ação do homem. A vontade tem diretamente
uma incidência na ação livre do homem, pois ele é determinado pelos elementos externos a
ele. Tais elementos imprimem no homem uma reação apetitosa ou aversiva em direção ao
objeto desejado à preservação do movimento vital. Contudo, a vontade não é livre justamente
porque ela não é um corpo e se não é um corpo também não está em movimento a fim de que
encontre ou não encontre impedimentos externos à sua ação. Neste sentido, a liberdade e a
necessidade ganham significado como compatíveis, pois, da mesma maneira que o homem é
absolutamente livre para preservar sua vida, ele também necessita e não pode eximir-se de tal
tarefa. É por conta da liberdade e da necessidade que o homem pactua com os demais homens
e juntos instauram o Estado, cuja liberdade fica limitada, entretanto com maior possibilidade
de vida e paz122
. “Mas como através disso protegem a indústria de seus súditos, daí não vem
como conseqüência aquela miséria que acompanha a liberdade dos indivíduos isolados”
(LEVIATÃ, I, XIII, p. 77).
Portanto, visando responder a questão inicial – por que os homens, procurando sempre
ser livres, criaram um mecanismo capaz de limitar sua própria liberdade? – e ratificando o
título da presente dissertação, “A aplicabilidade do movimento na concepção de liberdade e
seus possíveis efeitos em Thomas Hobbes”, mostramos a transformação sofrida pelo conceito
de liberdade, herança da ciência nascente, e as possíveis implicações que isto angariou. A
liberdade é puramente corpórea e pertencente a todo corpo. Atento ao desejo de viver, o
homem a limita com a criação do Estado, espaço no qual o homem continua ser livre.
122
“As paixões que fazem os homens tender para a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são
necessárias para uma vida confortável, e a esperança de consegui-las através do trabalho. E a razão sugere
adequadas normas de paz, em torno das quais os homens podem chegar a acordo” (LEVIATÃ, I, XIII, p. 77).
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