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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
ESCOLA DE DANÇA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA
DENISE TORRACA SOARES
LUDICIDADE DO PALHAÇO
CONTRIBUIÇÕES E CONVERGÊNCIAS COM A DANÇA
Salvador
2014
DENISE TORRACA SOARES
LUDICIDADE DO PALHAÇO
CONTRIBUIÇÕES E CONVERGÊNCIAS COM A DANÇA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Dança, Escola de Dança,
Universidade Federal da Bahia, como requisito para
obtenção do grau de Mestre em Dança.
Orientação Professora Drª Lenira Peral Rengel
Salvador
2014
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por
qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa
desde que citada à fonte.
Sistema de Bibliotecas da UFBA
Soares, Denise Torraca. Ludicidade do palhaço contribuições e convergências com a dança / por Denise Torraca Soares. - 2014. 92 f.
Orientadora: Profª. Drª. Lenira Peral Rengel. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Dança, Salvador, 2014. . 1. Ludicidade. 2. Palhaços. 3. Dança. I. Rengel, Lenira Peral. II. Universidade Federal da Bahia. Escola de Dança. III. Título. CDD - 793.3 CDU - 793.3
DENISE TORRACA SOARES
LUDICIDADE DO PALHAÇO
CONTRIBUIÇÕES E CONVERGÊNCIAS COM A DANÇA
Dissertação apresentada como requisito para obtenção do grau de Mestre em Dança,
Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia.
Aprovada em de 2014.
Banca Examinadora
Lenira Peral Rengel – Orientadora
Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo
Universidade Federal da Bahia
Fátima Campos Daltro de Castro
Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo
Universidade Federal da Bahia
Demian Moreira Reis
Doutor em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia
AGRADECIMENTOS
Agradecer é para mim um ato fundamental perante a vida. Numa caminhada que
na verdade já se estende por seis anos, são muitas as pessoas que compartilharam e
enriqueceram minhas reflexões.
Agradeço à minha orientadora e amiga, Lenira Rengel, pela paciência, dedicação
e sobretudo por sua generosidade. Registro a importância da convivência e das trocas
com Lenira, que muito me ensinou e contribui na busca por uma postura não dualista
com a vida.
Aos meus pais, Wânia e Carlos, que me deram o livre arbítrio na vida pessoal e
profissional. Em especial a meu pai que sempre acreditou no caminho da pesquisa
acadêmica e deu todo suporte necessário para estar aqui hoje, finalizando o mestrado.
Às queridas amigas e professoras, Líria Morays e Bárbara Santos, que
incentivaram a pesquisa e a participação no Programa de Pós-graduação em Dança.
À Márcio Vesolli por iniciar a caminhada comigo!
À João Lima pela generosidade e parceria.
À Jorge Silva, pelo incentivo, carinho e cuidado em momentos cruciais. Com
amor, lhe sou eternamente grata!
Aos meus colegas de mestrado, especialmente à Patrícia Cruz e Jussara Braga
por tornarem o caminho mais leve.
Aos integrantes da Paraboléu Cia Cênica. Gratidão à Ìcaro Ramos, Adriano
Junqueira, Jamile Souza, Omar Leoni, Tássia Peret, Paulo Amorim e Andréia
Fernandes.
Ao Programa de Pós-Graduação em Dança da UFBA, em especial às
funcionárias da secretaria Ana e Raquel, pela disponibilidade sem medir esforços.
Aos professores da banca, Fátima Daltro e Demian Reis.
Ao Grupo de Pesquisa Corponectivos em Dança.
À CAPES pela concessão de bolsa de estudos pelo período de 10 meses.
SOARES, Denise Torraca. Ludicidade do palhaço contribuições e convergências com a
dança. 92 f. 2014. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Dança.
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.
RESUMO
Elabora-se neste trabalho uma compreensão de ludicidade como estados do corpo e uma
reflexão sobre a utilização de ambos conceitos em práticas de dança. Estados do corpo
são referenciados no entendimento de Antônio Damásio (2011), e impulsionada a
discussão de estado de ludicidade a partir do entendimento de Cipriano Luckesi (2005).
Adota-se o(s) ―estado(s) de palhaço‖ e os processos de formação nessa arte, como
referência e articulação. A escolha se justifica em decorrência das experiências de
formação em palhaço que permitem reconhecer ―estados de ludicidade‖ na pesquisa
artístico-pedagógica. Questiona-se de quais maneiras os estados ludicidade do palhaço
podem contribuir na construção de proposições de ludicidade para criação em dança. A
fim de esclarecer o entendimento de palhaçaria que referencia a pesquisa, apresenta-se
um breve panorama sobre palhaços formados pela tradição do circo e palhaços oriundos
de situações de aprendizado que se configuram como um processo mais recente. Uma
importante referência em metodologia de formação foi o trabalho desenvolvido e
registrado pelo Lume Teatro, junto ao aporte conceitual elaborado por Luis Otávio
Burnier (2009), uma vez que se configuram como um dos principais responsáveis na
disseminação de novas formas de ensino-aprendizagem desta arte no Brasil. A partir do
contexto gerado compreende-se a capacidade de jogar e a atitude profanadora como
componentes da ludicidade do palhaço, sendo então, esses dois componentes definidos
como eixos de pesquisa do palhaço para a dança, bem como se espera que resultem em
material profícuo para o desenvolvimento da dança como área de conhecimento.
Palavras-chave: Ludicidade. Palhaço. Dança.
SOARES, Denise Torraca. Playfulness of clown contributions and convergences with
dance. 92 pp. 2014. Master Dissertation. Programa de Pós-Graduação em Dança.
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.
ABSTRACT
Is elaborated in this work an understanding of playfulness as body states and a
reflection on the existence of "playfulness states" in dance practices. Body states are
referenced in Antonio Damasio (2011), and boosted discussion of the playfulness states
from the understanding of Cyprian Luckesi (2005). We adopt the "clown state(s)" and
the processes of training in this art as a reference and articulation. The choice is justified
due to the experiences of training in clown for recognizing "playfulness states" in
artistic and pedagogical research. Question is how the playfulness states of clown can
contribute in building propositions of playfulness to create dance. In order to clarify the
understanding clown that references the research, presents a brief overview of clowns
formed by tradition of the circus and clowns come from learning situations that
constitute a more recent process. A important reference in training methodology was
work developed and registered by Lume Theatre together the conceptual contribution
prepared by Luis Otavio Burnier (2009), since it is configured as a major contributor to
the spread new forms of teaching and learning this art in Brazil. From the generated
context, it is understood the ability of playing and profaner attitude as components of
playfulness states of clown, and then these two components are defined as research axes
from clown for dance, and is expected to result in material fruitful for the development
of dance such as an area of knowledge.
Keywords: Playfulness. Clown. Dance.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 07
1. LUDICIDADE E ESTADOS DO CORPO NA DANÇA................................... 16
1.1 Sobre ludicidade: uma proposta para a dança........................................................ 16
1.2 Ludicidade como estados do corpo....................................................................... 20
1.3 Estado(s) de palhaço: a ludicidade como uma condição....................................... 38
2. DO PALHAÇO PARA A DANÇA....................................................................... 43
2.1 Palhaços – possibilidades de aprender................................................................... 43
2.2 Corpodançarino e Corpopalhaço............................................................................ 48
2.2.1 Corpopalhaço....................................................................................................... 49
2.2.2 Corpodançarino................................................................................................... 57
2.3 A capacidade de jogar, dança?............................................................................... 60
3. A PROFANAÇÃO COOPERATIVA.................................................................. 69
3.1 Jogo, Dança, Dispositivos....................................................................................... 69
3.2 Profanação no palhaço e na dança.......................................................................... 77
3.3 Atitude profanadora: gestando caminhos cooperativos.......................................... 80
CONSIDERAÇÕES.................................................................................................... 87
REFERÊNCIAS.......................................................................................................... 90
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INTRODUÇÃO
O tema ―lúdico‖ se faz presente desde o ano 2000, quando iniciadas as primeiras
aulas de dança para crianças concomitantemente aos estudos no curso de Pedagogia na
Universidade Federal de Santa Catarina. A partir deste contexto, que envolve um
conjunto articulado de propostas teóricas para fundamentação da prática em sala de aula
e as trocas com outros professores, o lúdico foi apresentado como uma possibilidade de
abordagem metodológica para qualquer conteúdo, capaz de flexibilizar as situações de
aprendizagem, tornando-as mais prazerosas e interativas. É um tema bastante difundido
em diferentes áreas do conhecimento. Os autores utilizados para fundamentar as
discussões reincidem com frequência, sendo Johan Huizinga, com o livro Homo Ludens
(2000), uma das principais obras de referência. O tema aparece em maior parte
associado às práticas de educação e assim, é comum a abordagem teórica e o argumento
do ―lúdico‖ como atividade histórica e social reconhecida nas práticas humanas ao
longo de sua existência. Do mesmo modo ocorre no contexto da dança, onde a
apropriação e discussão sobre o lúdico se dá especialmente nos projetos pedagógicos de
escolas, espaços alternativos de ensino da dança ou nos planejamentos individuais de
professores, ou seja, atividades relacionadas à educação.
No âmbito artístico, o desejo de introduzir elementos circenses à criação em
dança, no período de formação técnica na Escola de Dança da Fundação Cultural do
Estado da Bahia - Funceb, conduziu a percepção do lúdico como uma característica
marcante e simbólica do universo circense. Que se mostra associado à fantasia, à
estética do espetáculo e as emoções provocadas pelo virtuosismo acrobático
conjuntamente ao que é chamado de estupidez e ingenuidade dos cômicos. O lúdico
tornou-se o principal motivador para a investigação de movimento em um processo de
criação em dança que, se entende hoje, como ponto de partida da pesquisa que
posteriormente deu origem ao projeto de Mestrado.
Em decorrência de uma inquietação com qualidades muitas vezes atribuídas
como características obrigatórias do lúdico como, por exemplo, ―bonitinho‖,
―engraçado‖ ou ―divertido‖, iniciou-se também uma discussão em torno das produções
em dança que se dizem lúdicas. Muitas vezes, essas produções vêm carregadas de
estereótipos, exibem coloridos e formas acompanhadas de uma linguagem de
movimento bastante óbvia. Em contraposição, no próprio universo infantil as
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brincadeiras podem apresentar diferentes intensidades de malícia e maldade. Deixam de
ser lúdicas por isso? Se não deixam, o que caracteriza a brincadeira infantil como
lúdica? Sendo assim, quais as qualidades de movimento que poderiam ser geradas ao
revisitar as brincadeiras de infância? E quais estruturas coreográficas poderiam emergir
desses modos de organização do corpo? São questões de pesquisa surgidas no tempo de
estudante de dança no Curso Técnico Profissionalizante da Escola de Dança da Funceb,
a partir da observação de uma das características marcantes do universo infantil e
lúdico: a imersão com que vivem suas experiências.
Perceber a intensidade de experiências que as brincadeiras proporcionam aos
seus participantes, numa espécie de imersão, desencadeou a opção no trabalho
coreográfico de torná-las o código central sobre o qual se desenvolveu o processo
criativo. O material trazido para a sala a partir da observação atenta do cotidiano era
reorganizado na lógica da brincadeira infantil. Por exemplo, um senhor que se
encontrava sempre no mesmo lugar da cidade, muito bêbado e ainda por vezes, com a
calça que vestia com grandes manchas umedecidas de urina. A experimentação de
movimento estruturada a partir das sensações provocadas por esta figura conduziu a um
tipo de brincadeira: o desafio de deslocar pelo chão tendo as nádegas como o único
ponto de apoio permitido. Esta foi uma célula de movimento que ao ser desenvolvido
originou uma entre as sequências coreográficas que compuseram Verso para ao Léu. O
nome do trabalho fazia referência à falta de pretensão, à brincadeira ou o verso que se
joga ao vento, ao léu, e que mais tarde originou o trocadilho que dá nome ao grupo
Paraboléu Cia Cênica1 que também se configurou como espaço de investigação desta
pesquisa. Por outro lado, quando a prática de investigação corporal era realizada nas
ruas, o tema principal era a subversão. Como subverter regras implícitas em cada
espaço?
Certa vez, em 2007, na Praça do Campo Grande, na cidade de Salvador - Bahia,
após brincar com as sequências elaboradas previamente nos ensaios, observando-se as
possíveis modificações que o ambiente sugere nas mesmas - em função de uma escada,
do tipo de piso, ou da interlocução das pessoas - tomou-se a decisão de participar das
atividades corriqueiras do lugar. As pessoas praticavam caminhada atlética numa pista
1 Paraboléu Cia Cênica é um grupo de investigação em dança coordenado por Denise Torraca (autora dessa
dissertação), que se configurou também como espaço de pesquisa do palhaço na dança durante os anos de
2012 e mais intensamente, em 2013.
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ao redor da praça delimitada no chão por pedras de mármore. Num primeiro momento
seguiu-se o sentido de fluxo das pessoas, mas isto pareceu um tanto tedioso, confortável
demais. Uma vez que o tema era a subversão, decidiu-se então, caminhar no sentido
contrário e esta decisão implicou em outra forma de relação com o espaço e com as
pessoas, provocando alterações na dinâmica de caminhada de todos, exigindo agilidade
para desviar uns dos outros, bem como causou a alternância (ou interrupção) do ritmo
de cada um. Logo, a subversão do sentido de fluxo se expandiu ao modo de caminhar, e
assim, desenvolvemos uma brincadeira em que, sentados no chão, com as pernas
flexionadas, as pontas dos pés balançavam de um lado ao outro, junto ao balanço do
corpo com deslocamento para frente. Algumas pessoas demonstravam indiferença, mas
grande parte registrava no semblante a reprovação, o descaso e aparentemente até certo
repúdio. Visivelmente a atitude causava incômodos no contexto de uma praça tão
organizada e pode-se dizer, até higienizada, no sentido de uma manutenção da ordem
social e, literalmente, da limpeza do ambiente ser muito diferenciado do restante da
cidade. No entanto, quando em ambientes mais abertos e com maior circulação de
pessoas, era muito comum a aproximação de moradores de rua e bêbados em busca de
alguma forma de diálogo que, por vezes, parecia ainda causar algum tipo de
identificação. As descobertas e inquietações eram levadas novamente para a sala de
ensaio possibilitando outras percepções sobre o material já construído, e o
desenvolvimento de novas sequências de movimento.
Por necessidade da prática como educadora, de aprofundar o conhecimento
sobre a questão e buscar respostas às inquietações, a pesquisa sobre o lúdico revela
temas correlacionados como a história das brincadeiras, heranças africanas, holandesas
e portuguesas nas brincadeiras e jogos brasileiros. Em consequência, uma forte
indagação emerge da associação entre pesquisa bibliográfica e prática cotidiana: o
lúdico só é possível quando há brincadeiras e jogos? Esta é a pergunta que perpassa toda
a pesquisa, assim como os dois anos de experimentação em sala de aula e ensaio,
concomitantes ao estudo de mestrado, por vezes sem encontrar respostas. Certa vez,
uma aluna idosa apontou a ideia de que qualquer atividade pode ser lúdica, a depender
de como olhamos e nos relacionamos com ela. Estaria então, falando de um tipo de
atitude? O lúdico pode ser uma atitude? A aluna apresentou sabiamente, a nosso ver e
na argumentação deste trabalho, uma reflexão que constitui agora um dos argumentos
de pesquisa: a ludicidade como estados do corpo, que ela nomeou como uma atitude.
10
A partir destas questões, o entendimento de lúdico difundido no senso comum é
problematizado como uma das consequências do pensamento dualista mente/corpo, que
subsidia a organização das práticas educativas e pelo qual, pode-se afirmar, somos
educados desde a infância. Compreendemos que é este entendimento de corpo e
ludicidade que comumente fundamenta nossas práticas educativas e artísticas, quando
não há um contato com espaços de reflexão crítica sobre o assunto. Todavia nos
restringiremos à discussão de aspectos que fortalecem a possibilidade de um olhar
menos estigmatizado e superficial sobre a ludicidade.
A continuidade da pesquisa bibliográfica mostra que, de modo geral, os
argumentos e referências sobre o lúdico advêm das áreas de educação, psicologia,
psicomotricidade, história e sociologia. Quando encontrados de modo a relacionar-se
com uma prática de dança, os mesmos argumentos são apenas deslocados para outro
contexto e se restringem em grande parte às discussões sobre ensino da dança. Não
encontrando até o momento produções acadêmicas que conceituam ou relacionam a
ludicidade aos processos cognitivos do corpo e a partir deste ponto de vista, à
investigação e composição em dança. Desta forma, discutir ludicidade pelo olhar da
dança, com atenção aos processos do corpo no lugar das situações de jogo ou nas
atividades lúdicas, é a principal mudança de perspectiva proposta nesta pesquisa com o
argumento de que esse deslocamento do olhar pode possibilitar novas abordagens de
trabalho com o tema, específicas para esta área de conhecimento.
Em convergência com os objetivos de pesquisa, encontra-se uma questão
apresentada por Luckesi (2005) que contribui para redimensionar a discussão: ―que
efeitos a atividade lúdica produz na pessoa que a vivencia?‖ (LUCKESI, 2005, p.1). A
partir desta questão o autor diferencia sua abordagem das que são feitas pelos estudos
sociológicos, etnográficos, históricos ou descritivos sobre o tema, que se concentram
nas atividades. Luckesi (2005) propõe um entendimento que distingue a atividade lúdica
como o fenômeno vivenciado por pessoas, enquanto a ludicidade se caracteriza como
um fenômeno que ocorre internamente à pessoa, e assim desenvolvemos a discussão
inicial da pesquisa que propõe ludicidade como estados do corpo. Abordado aqui em
convergência com os estudos de Antônio Damásio (2011), neurocientista que se dedica
às questões da consciência e aborda seus diferentes níveis de complexidade,
contribuindo para a compreensão dos modos de organização do corpo e seus estados,
bem como para a reflexão da ludicidade como um acontecimento do corpo. A questão
11
apresentada inicialmente sobre as abordagens do lúdico nas práticas de dança é então
reformulada: se jogos e brincadeiras são comumente utilizados quando o objetivo é
torná-las lúdicas, é possível reconhecer em dança práticas que proporcionam ludicidade
aos seus participantes sem o seu uso?
O capítulo um discute abordagens do lúdico em dança tanto em relação aos
processos de ensino-aprendizagem como em relação a processos criativos, para o qual
se direciona com maior ênfase apresentando alguns exemplos. Contudo, consideramos
que processos criativos em dança também se configuram como processos de ensino-
aprendizagem, uma vez que pressupõe relações de troca de conhecimento. Constitui-se
o entendimento da ludicidade como estados do corpo, e a proposta de sua abordagem
em dança é elaborada a partir das experiências com processos de formação de palhaço.
Organizada a partir de Damásio (2011) encontramos em Silva (2012, p. 35) uma
definição de estados corporais como as mudanças nas condições gerais do corpo a partir
de acionamentos químicos e neurais. Argumentamos então, que todo o corpo é afetado
de forma ampla em diferentes níveis e, portanto, precisamos compreender os níveis de
complexidade da consciência juntamente aos estados do corpo a fim de reafirmar
também o conceito de corponectivo (RENGEL, 2007). Diante das reflexões sobre
ludicidade e estados do corpo, o conhecimento do denominado ―estado de palhaço‖
através de cursos de iniciação e oficinas, permitiu a elaboração do argumento de que
―estado(s) de palhaço‖ são facilitados pela vivência de estados de ludicidade.
A apropriação de descobertas e pesquisas relacionadas ao modo de operar do
corpo e referenciados em pesquisas e estudos recentes se legitima atualmente como uma
prática comum e profícua da dança contemporânea na formulação de suas obras. Assim,
―estados de corpo‖ têm sido investigados no desenvolvimento de composições e
criações coreográficas. Entretanto, o que diferencia a presente pesquisa é a investigação
específica dos estados de corpo que permeiam os estados de ludicidade do palhaço.
Compreendendo que não é possível delimitar um estado corporal único, o esforço se faz
também em discutir e identificar os estados de corpo que pluralizam o estado de
ludicidade do palhaço.
O fato de a palhaçaria ter se perpetuado por muito tempo pela tradição oral - que
ainda se mantém como uma das principais vias de difusão desta arte - justifica o uso não
somente de bibliografias da área, mas também a valorização de relatos e depoimentos de
mestres, parceiros e professores que compõem a experiência de aprendizado em cursos
12
e workshops. Teorias e discursos sobre o riso e a comicidade não serão abordadas, pois
o interesse de pesquisa está no que antecede a comicidade, nos princípios que tornaram
como se refere Reis (2013), o corpo ―o território privilegiado de descobertas‖ (REIS,
2013, p. 26).
Uma das chaves da arte da palhaçaria tem sido como extrair o riso das
plateias através da exposição de uma dramaturgia que parte da
realidade das vidas de seus praticantes: os palhaços. Talvez este seja
um dos motivos para que o próprio corpo desses artistas tenha se
tornado o território privilegiado das descobertas de sua comicidade.
(REIS, 2013, p.26).
Deste modo, interessa-nos o trabalho do artista, as formas de treinamento para
acessar um corpo risível, esse corpo disponível ao outro como possível objeto de riso. E
para tal, o capítulo dois apresenta variações de linhas de trabalho da arte do palhaço
juntamente com breves aspectos históricos, que contribuem para contextualizar o
trabalho metodológico de alguns mestres da palhaçaria a que se teve acesso ao longo de
seis anos de estudo, esclarecendo também o palhaço de referência nesta pesquisa. Deste
modo, dedicamos outra parte do capítulo dois ao aprofundamento de questões surgidas
no contexto da aprendizagem. A perspectiva aqui adotada considera a possibilidade de
descobrir-se palhaço através de processos de experimentação corporal, que objetivam a
construção de lógicas e modos de fazer particulares de cada palhaço. Este é mais um
fator que direciona a atenção aos modos de operar do corpo, implicando suas
singularidades, histórias de vida, ou seja, processos cognitivos. Essa linha de
investigação do palhaço foi difundida inicialmente pela escola de Jacques Lecoq, tendo
Luis Otávio Burnier e o Lume Teatro como um dos principais responsáveis pela
disseminação desta vertente na formação do palhaço brasileiro. Burnier (2009) se
dedicou ao estudo e criação de técnicas corpóreas específicas para a arte de ator, que
acabou por influenciar profundamente uma geração de palhaços brasileiros entre as
décadas de 1980 e 1990. No entanto, esta influência se restringe basicamente a pesquisa
do clown no contexto teatral, não exercendo muita influência sobre os palhaços de circo.
A partir da análise deste contexto se configura a delimitação de pesquisa dentre os
palhaços brasileiros, onde se faz a observação de que o uso de jogos e brincadeiras tem
papel importante nos processos de formação e treinamento, com a função de possibilitar
13
o conhecimento dos estados de ludicidade e restituir a capacidade de jogar, definida
como um eixo de pesquisa para a dança.
O capítulo três articula o conceito de profanação de Giorgio Agamben (2007),
no qual o jogo é integrado à discussão como uma nova dimensão do ―uso‖ que
especialmente as crianças conferem a humanidade. De tal modo, se reconhece a
profanação no palhaço por sua capacidade de jogar com aquilo que, em geral, tornamos
socialmente indisponível, separado à esfera privada. Compreendemos então, a
profanação como uma possível atitude na palhaçaria que em convergência com Kásper
(2004), constitui a potência política deste artista. Potência, compreendida como
capacidade de agir, de afetar e ser afetado pelo outro (KÁSPER, 2004) e política,
porque a atitude profanadora se configura como um contradispositivo (AGAMBEN,
2007). Ao considerá-la como ignição dos estados de ludicidade do palhaço a atitude
profanadora foi definida como o segundo eixo de pesquisa dos estados de palhaço para a
dança. Associada aos estudos de Tomasello (2010), desenvolvemos o argumento de que
com a atitude profanadora o artista deste ofício coopera na cogeração de modos de
existência, o que faz dela uma atitude também cooperativa.
A pesquisa se propõe a articular conceitos e reflexões sobre estado(s) de palhaço
na dança, porém é necessária a superação de alguns termos que induzem a
entendimentos dualistas ou dicotômicos tanto na bibliografia quanto nas referências de
oralidade dos cursos. Entretanto, não se trata de criar oposições conceituais e nem
mesmo de uma análise aprofundada sobre os discursos, mas de problematizar noções e
entendimentos que os termos geram, bem como de tornar mais claro ao leitor o
enraizamento dualista de nossa educação.
É neste sentido que percebemos também as contribuições dos estudos de
Damásio (2000, 2011). São esses estudos que nos permitem dar novo contexto aos
termos utilizados há muito tempo em diferentes práticas artístico-pedagógica, a fim de
alcançar formas de diálogo e condução das atividades que contribuam para a percepção
por parte dos participantes acerca desta problemática de como o corpo, o próprio corpo,
ou seja, a própria pessoa, de fato é.
Ao definir a capacidade de jogar e a atitude profanadora como componentes da
ludicidade do palhaço para a investigação em dança, estamos gestando um novo
caminho uma vez que se configura como uma proposição e entendimento específicos
desta pesquisa sobre uma das formas de conceber a palhaçaria.
14
O palhaço brasileiro, segundo relato dos autores estudados, é ainda pouco
pesquisado no contexto acadêmico do país, especialmente no que diz respeito aos
processos de formação. Uma das maiores referências brasileiras na articulação da
prática artística com a produção teórica e acadêmica é o ―Lume Teatro‖, assim como
sua metodologia de formação em palhaço, constituindo os argumentos que justificam a
escolha de mantê-lo entre as referências principais de uma pesquisa em dança.
A bibliografia apresentada na ―Encircopédia‖ de Mavrudis (2011) não traz
literaturas estrangeiras, pois a autora se propõe a elaborar um Dicionário do Circo no
Brasil, fato que reforça o argumento de que a pesquisa e sistematização de dados da arte
circense no Brasil é um processo recente. Interessante também observar que na
bibliografia apresentada pela autora as produções mais antigas datam do final da década
de 1970 e início de 1980, concentrando quase metade das referências bibliográficas na
virada do século XX e primeira década do século XXI. Reis (2013) também apresenta
revisão bibliográfica a partir da qual se pode observar que a produção brasileira na área
aumentou significativamente a partir do ano 2000, embora tenhamos produções de
grande reconhecimento e importância em períodos anteriores. Deve-se perceber também
que alguns autores do teatro são bastante utilizados como referência de leitura e
pesquisa para o trabalho técnico de palhaço que está sendo referenciado. Esses autores
significam uma ampliação no período histórico de produção bibliográfica, mas ainda
assim, suas produções se concentram nas três últimas décadas do século XX. Período
que coincide com o movimento das novas abordagens citado por Reis (2013, p. 47).
Na prática artística de dança já vem sendo desenvolvida uma pesquisa que leva o
palhaço para a cena em suas construções coreográficas. Mas como trabalhar o palhaço
em dança sem que sua figura esteja necessariamente em cena? Quais as contribuições
que o treinamento e suas bases técnicas podem trazer para processos de criação em
dança? São questões que surgem não somente da pesquisa bibliográfica e da intersecção
com as teorias do corpo, como também de uma necessidade emergente do fazer em
dança. Constitui-se um desafio de elaborar, questionar e sobrepor caminhos, uma vez
que o trabalho articula temas artísticos sobre os quais a pesquisa acadêmica ainda é
recente no Brasil. Cabe ressaltar também, que a ludicidade compreendida como um
acontecimento do corpo, além de uma discussão recente, é pouco abordado no contexto
da dança.
15
A pesquisa apresenta, portanto, dois aspectos distintos que podem ser
considerados como um avanço no estado da arte da questão: o primeiro diz respeito à
pesquisa teóricoprática de abordagem da ludicidade do palhaço em dança, e o segundo,
à proposição de um entendimento de ludicidade específico para a área da dança. Embora
o objetivo inicial tenha sido investigar desdobramentos artísticos do palhaço em dança,
o fato de a pesquisa ter sido realizada concomitante à prática de sala de aula com a
Paraboléu Cia Cênica, tornou inevitável perceber e refletir sobre as influências deste
estudo no âmbito pedagógico. Desenvolver e descobrir o potencial de palhaça envolve
uma mudança de perspectiva com que se olha o mundo, um deslocamento do ponto de
vista desde as relações pessoais e profissionais até do funcionamento da sociedade, dos
padrões que replicamos muitas vezes sem reflexão crítica. É a ampliação da dança na
palhaçaria e da palhaçaria na dança em processos cogeradores, praticados e pesquisados
num mesmo corpo.
16
1. LUDICIDADE E ESTADOS DE CORPO NA DANÇA
1.1 Sobre ludicidade: uma proposta para a dança
Em processos didáticos ou criativos de dança, comumente o lúdico aparece
relacionado aos jogos e brincadeiras que compõem momentos de descontração ou ainda
de aquecimento e preparação para uma atividade que se segue. Assim, diferentes formas
de jogo são incluídas quando se quer tornar uma atividade lúdica, divertida e prazerosa,
afirmando, de certo modo, os dois como práticas quase que indissociáveis e diretamente
relacionadas ao divertimento.
No dicionário (Dicionário de Português On Line – Michaelis, 2012) encontram-
se significados que convergem, em primeira instância, com suas aplicações nas práticas
corporais: ―Lúdico: 1- que se refere a jogos e brinquedos ou aos jogos públicos dos
antigos; 2- jogo ou divertimento; recreativo‖. No entanto, jogo no dicionário, não se
relaciona a este último de modo direto, mas inclui definições semelhantes: ―Jogo: 1-
Brincadeira, divertimento, folguedo; 2- Divertimento ou exercício de crianças, em que
elas fazem prova da sua habilidade, destreza ou astúcia. 3- Conjunto de regras a
observar, quando se joga; Cada tipo de jogo propõe uma forma de uso do espaço, do
ritmo e de relação entre os participantes‖.
Uma vez que a improvisação é um modo de fazer no qual a dança é criada no
momento em que acontece e por isso exige do dançarino a perspicácia para soluções
imediatas, ela pode ser um exemplo para essa questão proposta. Certas práticas de
improvisação, muitas vezes testam habilidades, ao mesmo tempo em que a astúcia para
resolução de problemas. No entanto, pode-se também criar restrições pela delimitação
do espaço, da forma de relação entre os participantes, pela imposição de regras ou a
criação de acordos, entre outros fatores que podem aparecer de modo diverso em
diferentes práticas de dança. Nessa perspectiva, essas práticas parecem de fato aderir
características de jogo, pois acordos são criados entre duas ou mais pessoas e operam de
modo semelhante às regras.
Importante esclarecer que o jogo agora em questão, é aquele no qual se
determina anteriormente a seu próprio acontecimento formas específicas de organização
do espaço, do tempo ou ritmo, bem como suas regras. Diante deste panorama inicial e
lembrando que as práticas de dança não ocorrem distanciadas de nossos modos de
17
compreensão de mundo, a primeira questão que apresento é: a existência do jogo se
configura como uma premissa do lúdico nas práticas de dança?
Em Pinho (2009) o jogo é entendido como lugar de conflito. Assim, para a
autora, qualquer questão proposta como um conflito a ser desenvolvido, pode trazer à
tona uma forma de jogo em dança. No trabalho realizado em sua pesquisa de doutorado,
os jogos foram construídos em procedimentos de experimentação e improvisação em
dança, que lhe permitiram identificar pontos de conflitos pessoais e/ou coletivos entre o
grupo com o qual trabalhava. A partir da identificação dos conflitos, foram criados
esboços para estruturas de jogo que novamente foram experimentados e só então,
sistematizados como roteiro de cena. Interessante perceber através dos relatos deste
estudo que os jogos a que se refere foram construídos na experiência do grupo e não
houve regras pré-determinadas, advindas de jogos convencionais de nossa cultura.
Trata-se de jogos criados especificamente para a dança, naquele espetáculo, e que
implicam estruturas coreográficas abertas à improvisação. Não se trata, portanto, da
total ausência das regras, mas de uma forma específica de construí-las na experiência de
um grupo. No caso da improvisação em dança, quando são criados procedimentos que
devam ser respeitados e mantidos por tempo determinado - o espetáculo -
provavelmente esses procedimentos irão gerar restrições que funcionarão de modo
similar às regras de outro jogo qualquer. Apresenta-se assim, um primeiro aspecto que
aproxima noções de jogo às práticas de dança: a regra como uma forma de restrição.
Em algumas situações, o conflito insinuava-se no olhar, na respiração,
ou na atitude que se transformava, mas não era sustentado nas relações
desenvolvidas por caminhos divergentes do meu desejo, pautadas,
antes, pela busca da desenvoltura do corpo em movimento, do que por
suas motivações internas (PINHO, 2009, p. 74).
Aparece na fala de Pinho (2009) um indicativo da dificuldade dos intérpretes em
sustentar os conflitos surgidos na improvisação em consequência de uma exacerbada
preocupação com a desenvoltura no movimento, deslocando o foco da proposta. Torna-
se visível a preocupação da autora e coreógrafa em desenvolver um tipo de
movimentação e estrutura pautada em motivações internas, pessoais, que para ela se
evidenciavam nos conflitos. Suscita também, a reflexão de que se o conflito é o lugar
em que o jogo acontece, sustentá-lo é o desafio de manter-se no jogo até que se
encontrem soluções para finalizá-lo. Contudo, se criam fluxos entre as restrições
18
estabelecidas para a improvisação e a liberdade dos participantes nos modos como se
relacionam com tais restrições. Os fluxos a que nos referimos nesta pesquisa são
cruzamentos de informações – próprias da situação e próprias da pessoa – que permitem
ao sujeito manter-se em estado de conflito, ou seja, conectado ao jogo. Assim,
evidencia-se que o olhar da pesquisadora já não está mais sobre a estrutura, e sim está
direcionado à pessoa que vivencia tal experiência. Se sustentar o jogo é papel de quem o
pratica, há algo que diz respeito à própria pessoa, ao corpo e seus modos de organização
e não mais a composição e as características do jogo.
A questão colocada por Luckesi (2005) e referenciada na introdução - ―que
efeitos a atividade lúdica produz na pessoa que a vivencia?‖ - notavelmente se aproxima
da questão que a prática desenvolvida por Pinho (2009) suscita. Todavia, se analisarmos
cuidadosamente a proposta desta última, embora efetue um deslocamento do sentido
convencional de jogo e desvie o foco da atividade para os intérpretes, ainda se esmera
em estruturas organizativas que também denomina por jogo. Portanto, continuam
existindo restrições que operam como outras regras quaisquer.
Luckesi (2005) propõe o entendimento de ludicidade em distinção à atividade
lúdica e ao jogo, que por sua vez, compreende como um fenômeno vivenciado por
pessoas. Observa que os jogos são certamente tipos de atividade lúdica, mas que nem
toda atividade lúdica será de fato um jogo e por este motivo aparecem de forma distinta
na escrita do autor. A ludicidade, todavia, é o fenômeno que ocorre à pessoa que
vivencia a atividade lúdica. Ela existe a partir de uma experiência lúdica, que ocorre em
um contexto determinado, coletivamente ou não, e que proporciona sensações de prazer.
Deste modo, ludicidade é compreendida como o estado interno do sujeito (LUCKESI,
2005), pois as sensações provocadas pela experiência lúdica somente poderão ser
vividas por cada pessoa. Contudo, é evidente nos argumentos do autor que quando se
refere a estado interno, está se referindo ao corpo e seus processos. Ou seja, ludicidade
é aquilo que ocorre nos/com corpospessoas2 quando envolvidos em uma experiência
lúdica. Há aqui, uma diferença sutil e importante de ser afirmada em relação aos termos
atividade e experiência lúdica. Quando utilizado o termo experiência se ampliam as
perspectivas daquilo que pode proporcionar estado interno de ludicidade, enquanto o
2 Rengel (2012) esclarece que corpo não é algo abstrato, que uma pessoa possui. A pessoa é o próprio corpo e
assim, propõe o uso do termo ―corpopessoa‖, no lugar de ―corpo da pessoa‖, como forma de afirmação deste
entendimento.
19
termo atividade se restringe ao que é propriamente reconhecido social e culturalmente
como tal. Desta forma, se reconhece a possibilidade de outras experiências de vida, que
não se caracterizam como uma atividade, se tornarem lúdicas por outra via, a via das
sensações e dos estados que provocam em quem as vivencia.
Pode-se considerar que Pinho (2009) propicia aos intérpretes um estado de
ludicidade, porém ainda a partir de estruturas de jogo. Apontam-se então, dois modos de
desenvolvimento de estados de ludicidade que reconhecemos habitualmente em dança:
o uso de jogos e práticas de improvisação. Desta forma, reconhecemos que não é difícil
deparar-se com práticas de dança que proporcionam estados de ludicidade a seus
participantes, porém ainda não é comum encontrar propostas que utilizam desta
concepção de ludicidade – como estado de corpo - para a composição e criação em
dança.
Diante da inquietação gerada pela prática em dança, fez-se a opção de vincular a
pesquisa aos estudos da arte do palhaço que vem sendo desenvolvidos no percurso de
aprendiz nos últimos seis anos. Esta opção se deve ao fato de reconhecer no palhaço,
estados de ludicidade não dependentes de estruturas pré-determinadas como ocorre no
caso da utilização de jogos. Estados de ludicidade podem estar relacionados a
brincadeiras e jogos, mas não se restringem a isso e nem ao universo infantil. O
percurso de aprendizado para ser palhaço é desta forma, permeado por muitas
brincadeiras e situações de jogo que se configuram como estratégia metodológica para
compreensão do estado de palhaço. Porém, desenvolver as estratégias para sustentá-lo é
o desafio do artista que se propõe a este ofício.
Lima (2012), referência no aprendizado da palhaçaria, argumenta sobre ―a
ligação profunda entre os princípios da palhaçaria e da ludicidade‖ (LIMA, 2012, p. 48).
Segundo seus estudos e pesquisas realizadas no Curso de Especialização Em Ludicidade
e Desenvolvimento Criativo de Pessoas,
O estado de palhaço se assemelha ao estado lúdico, um estado de
inteireza, sem senso de julgamento, com o corpo e mente totalmente
envolvidos e atentos ao aqui e agora, atentos a tudo que acontece ao
seu redor, vivendo com sinceridade e alegria aquilo que se faz
obrigatório para o palhaço (LIMA, 2012, p. 48).
A partir das experiências de formação juntamente ao diálogo com mestres e
com os escritos sobre a palhaçaria, se define a ludicidade do palhaço como tema de
pesquisa que com suporte de teorias do corpo, acredita-se que contribuirá na
20
sistematização de argumentos para sua abordagem na dança. Assim, se propõe
desenvolver o entendimento de ludicidade apresentado por Luckesi (1998, 2005)
associando-o a conceitos de corpo específicos dos estudos acadêmicos em dança e à
palhaçaria. Argumenta-se que é um modo de tratamento da questão que pode expandir
as possibilidades de experimentação, fugindo as abordagens que replicam um
entendimento que restringe ludicidade ao divertimento e similares.
1.2 Ludicidade como estados do corpo
O entendimento de ludicidade proposto por Luckesi (1998) distancia-se do uso
comum que atribui ao jogo funções terapêuticas, funções educativas e sociais discutidas
a partir de conceitos elaborados por autores do campo da sociologia, da história e da
cultura sobre atividades lúdicas.
Sem a intenção de apresentar uma configuração conceitual fechada de
ludicidade, Luckesi (1998, 2005) interessou-se em investigar o que a experiência lúdica
proporciona a seus participantes, o que ocorre internamente na pessoa que vivencia uma
experiência lúdica. No entanto, para fundamentar suas reflexões utiliza-se de autores da
psicologia que para compreender a experiência humana, subdividem-na em diferentes
dimensões e consideram que cada dimensão pode ser observada isoladamente, embora
atentem para o fato de que todas as dimensões coexistem e de que a compreensão da
pessoa de modo integral só será possível na observação da interação entre essas
dimensões. Desta forma aponta que a ludicidade, como propõe ser estudada e
vivenciada, abrange especificamente uma das quatro dimensões da experiência do ser
humano que é dimensão individual/interior, correspondente à dimensão do ―Eu‖
(LUCKESI, 2005, p. 5). A partir desta perspectiva determina aspectos que diferenciam a
atividade lúdica da ludicidade e assim, segundo o autor, a primeira caracteriza um
acontecimento externo que pode ser analisado em todas as dimensões do ser humano,
englobando tanto as que se relacionam unicamente a pessoa quanto as que relacionam a
pessoa ao coletivo ou ao contexto sócio cultural. Enquanto a segunda é de natureza da
―percepção interna da pessoa‖ (LUCKESI 2005, p. 6). O que em outras palavras quer
dizer que a experiência vivenciada por uma pessoa somente a ela pertence. As sensações
que uma experiência proporciona são internas, ocorrem no corpopessoa. O grupo não
sente, quem sente são seus integrantes. Um sentimento pode vir a se harmonizar em um
21
grupo e desse modo, por ele ser partilhado, mas será sentido unicamente por cada um
dos participantes. E seguramente, de modo distinto em cada um, configurando
experiências pessoais. Entretanto, ―como separar o modo como algo é sentido por
alguém de tudo o que contribui para que esse algo seja sentido do modo como é?‖
(KATZ, 2005, p.119). O modo como algo é sentido está relacionado às propriedades
especiais, chamadas ―qualia‖, desse algo. Segundo Katz (2005), qualia são as
características qualitativas que nos fazem experimentar algo de um jeito e não de outro.
Deste modo, pode-se compreender que um sentimento é de fato um acontecimento do
corpo, compreendendo também que não se pode isolá-lo do ambiente e de suas
propriedades. Por exemplo, dançar no canteiro de uma praça pública. Os sentimentos
que ocorrem ao dançarino estão relacionados às qualidades desse ―algo‖ que é ―corpo
dançando no canteiro da praça‖. Tudo integra o ―algo‖ que induz um sentimento: corpo,
ação de dançar, o canteiro, a praça, o espaço público. Se uma dessas condições fosse
modificada, seriam modificados também os estados produzidos.
Embora os argumentos de Luckesi (2005) estejam aparentemente embasados por
uma perspectiva de experiência fragmentada, ao separar interno e externo, o modo de
organização do pensamento no decorrer da escrita do autor, permite compreender que
quando usa o termo interno, o faz como forma de se referir ao que ocorre no corpo e,
portanto, não necessariamente é sentido da mesma forma por todos, ou como ele mesmo
menciona pode não ser visível ao outro. O fato de não ser visível ao outro, a outra
pessoa que observa, envolve aspectos próprios dos acontecimentos do corpo, de seus
modos de organização enquanto ser vivo. O autor utiliza também de uma vertente da
neurociência que considera a divisão do cérebro em hemisférios direito e esquerdo,
sendo o primeiro o hemisfério da emoção, do afeto e da criatividade e o segundo, o da
racionalidade. Deste ponto de vista, ludicidade pode ser compreendida como
Tudo aquilo que tem a ver com esse universo de coisas que estimulam
a trabalham a partir do envolvimento dos dois hemisférios do nosso
cérebro, sendo acionados simultânea e integradamente, aproveitando-
se da racionalidade, na medida necessária para uma organização
otimizada das coisas sem cercear o potencial criativo ligado ao
hemisfério direito, o hemisfério da emoção, do afeto, da criatividade
(LIMA, 2013, p. 29).
Frente a essas questões, busca-se aprofundar a discussão situando-a no campo da
dança, e para isso são abordados conceitos de corpo que nos conduzem a um olhar sobre
22
o mesmo um pouco diferenciado deste apresentado pelas teorias da ludicidade utilizados
por Lima (2013). As regiões e hemisférios do cérebro são conhecidos e considerados,
mas parte-se do pressuposto de que tudo opera de modo integrado em todos os seus
aspectos e que não há a possibilidade de compreender separadamente o racional e o
emocional de uma pessoa, isolando-a do ambiente ou fragmentando a experiência em
partes ou dimensões. Uma experiência é um todo, um conjunto.
Em Rengel (2007) o termo corponectivo ou corponectivar é utilizado como uma
tradução para a expressão embodiment, e desenvolvido conceitualmente a fim de buscar
uma solução para o entendimento dicotômico de corpo. Corponectivo se refere a
―situação de já estar conectado e em ato‖ (RENGEL, 2007, p.37). O que quer dizer que
a ação corpo/mente juntos não é então uma possibilidade, que ocorre em certas ocasiões
e outras não, mas é o próprio modo de estar no mundo e com ele se relacionar. Significa
a compreensão de mente e corpo trazidos juntos e não conectados, pois conectar implica
estarem antes, separados. Contudo, se assim entendermos, pensamento, ação e
movimento não podem ser compreendidos como operações cognitivas isoladas.
Pensamento e percepção não são também algo abstrato, que ocorrem primeiro em
alguma outra instância para depois tornar-se corpo, ou se corporificar, como alguns
autores têm traduzido o termo embodiment. Ambos são ações do corpo que implicam
atividade conjunta, no sentido mente/corpo juntos, abarcando seus aspectos químicos,
físicos e biológicos. Mas, se esse é o modo de operar do corpo, o que poderá ser então o
estado de plenitude? Ou ainda, que estados do corpo são esses que se diferenciam a
ponto de nos levar a afirmar que estamos inteiramente presentes em um momento e não
estamos no outro?
Segundo Luckesi (1998, p.2) ―o que mais caracteriza a ludicidade é a
experiência de plenitude que ela possibilita a quem a vivencia em seus atos‖. Há no
senso comum o entendimento equivocado de que uma característica básica da atividade
lúdica é ser divertida, porém como o próprio autor aponta, o aspecto fundamental da
ludicidade é o ―estado de plenitude‖ em que se vivencia uma atividade, que poderá ser
divertida ou não. Desse ponto de vista, o divertimento não é um pressuposto na
definição do que é ou não lúdico, o que ocasiona também reflexões em torno do que é a
atividade lúdica. Se a característica fundamental da ludicidade é o estado de plenitude e
o foco de compreensão é o estado interno, nem toda atividade socialmente identificada
como lúdica será de fato lúdica, ou seja, não necessariamente propiciará ludicidade a
23
quem a pratica. Em uma conferência Luckesi (2013)3 trouxe um exemplo que esclarece
essa relação no cotidiano escolar. Quando é proposta uma brincadeira em dada situação
de aprendizagem e uma das crianças afirma não querer participar, e o professor de
imediato responde coagindo-a que é obrigatória à participação. O fato de participar por
uma imposição já distancia a criança da experiência de ludicidade, uma vez que ela
provavelmente não se envolverá de modo integral. No entanto, é necessário cautela
neste exemplo, pois a participação em uma atividade por livre escolha também não é um
pressuposto gerador de ludicidade no entendimento de Luckesi (2005), mas o caso
contrário pode interferir negativamente, gerando o que denomina por fragmentação da
experiência no lugar de um estado de plenitude. A experiência negativa por vezes está
associada a uma dor, uma memória desagradável ou algo similar, que significa na
prática uma possível limitação pessoal no envolvimento com tal experiência. Limitação
porque a reação comum do ser humano à dor é a de tentar cessá-la, e neste caso, com os
argumentos do autor, uma experiência negativa poderá proporcionar ludicidade se quem
a vivencia conseguir ultrapassar essas limitações – ou resistências – transgredindo sua
relação com os aspectos que a tornaram negativa. E isso pode ocorrer com o aprendiz de
palhaço, uma vez que ele precisa aprender a expor sua verdade, suas características
físicas, sejam elas boas ou ruins, contribuindo para a transformação dos sentimentos –
como a dor – provocados pelas mesmas. Em contrapartida, a sensação de prazer é então,
facilitadora da ludicidade, pois o ser humano tende a se envolver com maior intensidade
nas experiências que lhe proporcionam bem-estar. Importante deixar claro, que não
estão sendo desconsiderados os casos em que há predileção pela dor, mas se reconhece
que neles também há formas de prazer. Novamente, as sensações de plenitude e de
prazer relacionadas à experiência lúdica constituem os argumentos para considerar que
somente poderão ser vividas internamente pela pessoa, embora possam ter repercussão
no grupo quando no caso de uma experiência coletiva (LUCKESI, 2005). O fator que
determina se uma experiência é lúdica ou não, é interno no sentido do que é próprio de
cada pessoa.
3 Conferência exposta durante o VII ENELUD – Encontro Nacional de Educação e Ludicidade na cidade de
Salvador – Bahia, em fevereiro de 2013.
24
Uma das vezes em que o grupo – Paraboléu Cia Cênica4 foi à rua vivenciar os
jogos que pratica em sala de aula como treinamento, observou-se uma incrível
ampliação das formas de fazer, especialmente de um dos jogos denominado ―bola
imaginária‖. O jogo é realizado em roda e cada jogador, quando sua vez, deve receber e
repassar a bola (imaginária) para outro jogador. Tendo a sala de ensaio como parâmetro:
estamos entre quatro paredes, num chão homogêneo e sem alterações de níveis, além de
não ter outras pessoas circulando. Treinamos a prontidão, a escuta do grupo, a
disponibilidade. Na praça, nos pareceu que todos esses aspectos foram intensificados
possibilitando o surgimento de novas jogadas com a bola, passando a incluir variações
de brincadeiras de bola que praticamos quando crianças. O surgimento de novas – ou
antigas – estruturas de jogo com a bola foi espontâneo e, ao que parece, foi facilitado
pela repercussão as atitudes individuais tinham no grupo. Também algumas pessoas
desconhecidas que praticavam suas atividades corriqueiras interferiram de modo a
estimular os processos de imaginação na brincadeira. Por exemplo, um senhor que em
intervalos regulares voltava a um banco próximo para fazer exercícios abdominais e
cruzava pelo meio da roda. Na primeira vez, ele se abaixou enquanto passava porque o
jogador ao seu lado estava recebendo a bola, como quem foge para não receber a bolada
na cabeça. Na segunda vez, coincidiu novamente da bola estar próxima onde ele
passava e então, repetiu a mesma ação e nos disse ―olha essa bola!‖. Atitudes como esta
fizeram o jogo ainda mais intenso provocando os participantes para a disponibilidade de
agir, à invenção, correr atrás da bola e envolver cada vez mais as outras pessoas que não
estavam formalmente inseridas na roda e, portanto, no jogo.
Luckesi (2005) considera que as histórias de vida de uma pessoa são de mesma
natureza da ludicidade e assim, justifica que uma mesma experiência produz sentidos e
reações diferentes em cada pessoa. A relação que cada um estabelece com um objeto ou
atividade com o qual entra em contato depende das referências que a pessoa tem ou não
sobre ele. Damásio (2011) afirma que ―a experiência pertence a cada organismo e a
nenhum outro‖ (DAMÁSIO, 2011, p.198). Histórias de vida são experiências, são
pessoais e únicas, implicam formas de relação com o mundo, fatores do ambiente e da
criação de cada pessoa, hábitos cognitivos decorrentes também de escolhas profissionais
e pessoais, integrando os processos de construção do conhecimento no corpo. De tal
4 Ver página 9.
25
modo, pelo termo ―vivido‖ entende-se aquilo que ocorre no corpopessoa, e não por
meio do corpo como se este fosse apenas local de acontecimentos, mas o protagonista
destes acontecimentos. Os órgãos, os neurônios operacionalizam, elaboram,
metabolizam cada operação cognitiva (RENGEL, 2007).
Damásio (2000) apresenta a compreensão de estado interno como um resultante
de processos químicos e biológicos que ocorrem no organismo, com o propósito de se
manter estável em relação às variações do meio externo (DAMÁSIO, 2000, p. 54). Este
é considerado um mecanismo básico dos seres vivos, necessário à sobrevivência, e
existente em diferentes níveis de complexidade. Dois aspectos são importantes de serem
observados em relação a essa proposição: primeiro, a mais simples descrição do que
considera o estado de um organismo, já é apresentada em relação ao meio externo,
emergindo uma questão de fundamental relevância para iniciar a reflexão: alterações no
estado interno do organismo são relacionadas às alterações do meio externo, ou seja,
interno e externo são implicados de relações; segundo, os diferentes níveis de
complexidade em que o mecanismo de regulação interna ocorre nos seres vivos
relacionam-se com outra questão recorrente nos enunciados de Luckesi (2005): ―estado
de consciência‖. Embora pontuados de modo distinto, os dois aspectos são tão
inseparáveis quanto o estado interno de um organismo do meio externo com o qual se
relaciona. Sendo assim, serão elucidados de modo a compreender cada um
conjuntamente com suas implicações, denegando uma suposta ordem dos fatores. Esta é
uma perspectiva diferenciadora neste estudo: a busca por uma compreensão não
hierarquizada dos processos do corpo que pode contribuir na transformação da crença
de que alguns órgãos comandam e outros apenas obedecem numa relação de
passividade. O Capítulo dois apresenta mais exercícios que problematizam a questão.
Quando reconhecemos que o estado interno é resultante de alterações nos
processos do corpo - químicos e biológicos - estamos reconhecendo um modo de operar,
no qual diferentes funções são conjuntamente acionadas para cumprir um mesmo
objetivo. Damásio (2000) afirma que o mecanismo básico de regulação dos estados do
corpo em relação ao meio externo visa preservar as composições químicas como modo
de lhe assegurar a vida. No entanto, os modos de operar deste mecanismo variam de
acordo com os níveis de complexidade de cada ser vivo estando presente desde os seres
unicelulares. Esta compreensão é importante para que possamos avançar na
26
diferenciação de estados, bem como esclarecer de que forma podemos ter, ou não,
conhecimento dos mesmos.
Quanto mais complexo o ser vivo, mais complexo será o mecanismo de
regulação dos processos que garantem a vida, envolvendo diferentes estruturas e
operações cognitivas. No caso do ser humano, esta estabilidade do meio interno não
somente corresponde à regulação da vida como está associada a mecanismos neurais
relacionados à existência do cérebro. Entretanto, o importante é perceber que há de fato
aspectos que pertencem ao meio interno e outros que pertencem ao meio externo ao
corpo, porém compreende-se que os dois existem na relação de um com o outro e não
isoladamente. Deste modo, ―meio externo‖ é outra expressão problematizada na busca
de coerência conceitual para a pesquisa. No modo como vem se construindo o
pensamento sobre os mecanismos de sobrevivência de um corpo, seus níveis de
complexidade e as relações que se formam, o meio externo é entendido como o
ambiente com o qual um ser vivo se relaciona e não apenas um lugar no qual se insere.
Logo, chamamos a atenção para o fato de que emoções e sentimentos são
acontecimentos químicos do corpo e não abstrações, produzidas num lugar ―além-
corpo‖. A partir da pesquisa realizada por Silva (2012), com referência em Damásio
(2011), temos a seguinte reflexão proposta pela pesquisadora:
podemos definir como estados corporais as mudanças globais no
estado do organismo (nas vísceras, nos músculos esqueléticos, no
cérebro) a partir de comandos químicos (corrente sanguínea) e
neurais, disparados pela emoção, que, por sua vez, podem ou não ser
submetidos à consciência (SILVA, 2012, p. 33).
A ludicidade segundo as definições de Luckesi (1998, 2005) apresentadas até
então, caracteriza-se como um ―estado de plenitude‖ e ―estado de consciência‖. Se
considerarmos que o estado interno caracteriza-se por variações de estados do corpo,
torna-se incoerente a tarefa de definir um estado corporal isoladamente, com
características estáveis e permanentes. Como se o ―estado de plenitude‖, por exemplo,
pudesse ser definido precisamente em suas propriedades e assim, caracterizar um
―estado de consciência‖ correspondente e estável. Se o estado do corpo está sendo
compreendido como um resultante das relações entre ele e o ambiente, não se pode
equivaler o objetivo biológico da estabilidade do mesmo em relação ao ambiente, à
permanência de um único estado de corpo. Para manter-se estável em relação ao
27
ambiente, o corpo necessariamente produz alterações que, por mais sutis que sejam,
ocasionam alternâncias de estados. Por isso o termo é adotado sempre no plural, do
mesmo modo que utilizado por Silva (2012), na tentativa de abranger a complexidade
da qual são resultantes, bem como ampliar a discussão aos níveis de consciência. Como
enfatiza Silva (2012), os estados do corpo podem ou não ser submetidos à consciência e
isso será compreendido na medida em que for se delineando a discussão sobre seus
níveis.
Ao se ter conhecimento dessas relações incessantes de troca entre corpo e
ambiente é possível argumentar que há uma compreensão não fragmentada da pessoa no
mundo e assim, criar novas relações com a definição de ludicidade como ―estado de
plenitude‖ em que se vive uma experiência. Neste sentido, estar pleno denota
certamente o envolvimento integral da pessoa em uma experiência, ou nas palavras do
autor é quando ―Não há divisão. Estamos inteiros, plenos [...]‖ (LUCKESI, 2005, p. 2).
O entendimento de estar pleno é então, o de viver integralmente uma experiência, o que
comumente ouvimos na linguagem popular pela afirmação ―de corpo inteiro‖. Assim, a
mudança de perspectiva está na compreensão de que a forma de existência do ser
humano já é o corpo integrado, é esse corpo inteiro que não pode ser separado. Dizer
que em um dado momento uma pessoa está integralmente ou plenamente presente,
significa acreditar que é possível de alguma forma, estar com o corpo dividido em outro
momento. Argumentamos que esta noção de corpo dividido se baseia no dualismo
corpo/mente e norteia nossas ações cotidianas, artísticas, pedagógicas, sem que
percebamos. Na compreensão de corpo deste estudo, mesmo quando a experiência é
vivida de modo aparentemente fragmentado, a integração estará certamente ocorrendo
porque ela é o modo de operar do corpo. Por exemplo, quando uma pessoa parece se
distanciar parcialmente do momento presente, seja qual for a experiência que está
vivendo, a tendência é interpretarmos como uma fragmentação da experiência em
consequência da compreensão de que a mente é algo que atua sobre o corpo e não junto
à ele, podendo assim, se separar por alguns instantes.
Há um exercício utilizado no treinamento de palhaço conhecido como Walk to
Wall - ou Caminhar para a Parede – que pode nos ajudar a esclarecer. As pessoas devem
caminhar em direção à parede de olhos fechados em diferentes etapas, até não utilizar
mais as mãos erguidas à frente do corpo para alcançar a parede. É muito comum as
pessoas que participam sentirem medo e demonstrar isto nas ações corporais como, por
28
exemplo, reduzir a velocidade com que caminha, expressar reações na face, ou parar de
respirar profundamente como o exercício solicita. O medo em si não é exatamente o que
alguns chamariam de fragmentação da experiência, mas a pausa para refletir sobre ele e
decidir sobre a continuidade da caminhada. De acordo com nossa proposta, nenhuma
das possibilidades é de fato uma fragmentação – nem o medo, nem a reflexão – pois as
emoções, ou sentimentos, interferem biologicamente sobre a razão e vice-versa. Na
ocasião do aprendizado do exercício, o professor condutor mostrava-nos as reações das
pessoas e fazia indicações com as mãos que induziam ao entendimento de que a pessoa
estava separando mente e corpo, pensando demasiadamente e deixando assim, a mente
dominar a ação.
Entretanto, o exemplo não denota essa fragmentação da experiência e do corpo,
mas ao contrário, implica que a pessoa redirecionou rapidamente sua atenção e com ela
processos da consciência, dando foco a outra sensação naquele instante, outro
pensamento, que redireciona em certo grau a experiência que está ocorrendo no
momento presente. ―Tanto o cérebro como o corpo propriamente dito são afetados de
forma ampla e profunda pelo apanhado de comandos que são disparados pela emoção,
alterando assim os estados do corpo, consciente ou inconscientemente‖ (SILVA, 2012,
p. 33). Somos então, induzidos nos processos corporais, às variações de estados que por
vezes aparentam nos distanciar da situação que está sendo vivenciada. Mas se os
comandos são o próprio corpo em atividade, argumentamos que não poderiam de fato
significar uma separação. No contexto da dança, o exercício tem contribuído para
facilitar a compreensão sobre fluxos de consciência e percebê-lo em curso, reconhecer
no movimento as inferências de um processo no outro, contribuindo para a construção
do conhecimento de quando a inferência da reflexão provoca pausas prolongadas na
sequência em desenvolvimento.
Damásio (2011) explica que ―a consciência tem flutuações. Não funciona abaixo
de certo limiar, e funciona do modo mais eficiente ao longo de uma escala nivelada‖
(DAMÁSIO, 2011, p. 210). Esta escala é por ele denominada de ―escala de intensidade
da consciência‖ e se evidencia com mais clareza na análise que faz entre os momentos
em que sentimos sonolência e momentos em que estamos muito despertos. O que
denomina de intensidade se caracteriza como um dos critérios de classificação da
consciência. Porém, para compreendermos essa classificação é necessário estudar
também os tipos, ou níveis, de consciência dos quais está se falando.
29
Luckesi (2005) se aproxima desta compreensão de mente/corpo juntos quando
esclarece que ―consciência não é algo abstrato e intocável, mas é aquilo que somos, é o
próprio Ser‖ (LUCKESI, 2005, p.5). Porém, ao se referenciar em teóricos da Psicologia,
Luckesi (2005) compreende o desenvolvimento da consciência juntamente às fases do
desenvolvimento humano, onde cada fase caracteriza assim, um estágio da consciência.
E consciência neste contexto é considerada a capacidade do corpo de perceber tudo que
lhe acontece, e acredita-se que, de acordo com as fases do desenvolvimento humano,
alcança níveis mais complexos em um mesmo organismo ao longo de sua existência.
Contudo, a partir de uma perspectiva que leva em consideração uma
argumentação evolucionista, os diferentes níveis de complexidade dos processos da
consciência podem ser observados a partir das estruturas funcionais de cada ser vivo,
como a existência de atividade mental e de um sistema nervoso, por exemplo. Percebe-
se na bibliografia de referência, que as atividades e operações relacionadas à existência
da mente são tratadas de modo a integrar um único sistema, o corpo. Assim, a
complexidade dos processos está diretamente relacionada à estrutura e será variável
fundamentalmente de uma espécie para a outra, e não num mesmo corpo que se tornará
mais complexo ao longo de sua vida. Em condições normais, são outros fatores que se
modificam no decorrer do tempo e não a estrutura do organismo em seu nível de
complexidade. O entendimento citado no parágrafo anterior de que consciência é aquilo
que somos, evoca ainda uma parte dos estudos da neurociência sobre a qual Damásio
(2011) se dedica: o ―Self‖. Do ponto de vista de suas definições, o self é mais um
processo da consciência e não se trata da percepção de si mesmo e sim do
―conhecimento de si‖. O ato de conhecer está implicado nos processos da consciência
em corpos complexos como o ser humano, enquanto a percepção existe desde corpos
extremamente simples em sua estrutura e não envolve necessariamente a consciência;
são processos distintos. Para o neurocientista, a consciência do modo como a
entendemos ―é um estado mental no qual existe o conhecimento da própria existência e
da existência do mundo circundante‖ (DAMÁSIO, 2011, p.197). Desta forma, o self
corresponde ao processo da consciência que permite ao ser humano além do
conhecimento de si a partir do mapeamento de seu próprio corpo, o conhecimento que
situa sua existência e é produzido nas relações com o mundo, permitindo-lhe conhecer
um contexto. É, portanto, a noção que um ser vivo tem de si mesmo enquanto realiza
uma tarefa, que por sua vez, irá gerar um conhecimento que pertence a um conhecedor -
30
o corpopessoa. Dessa forma, lhe são atribuídos dois sentidos: o self como um eu
material estruturado pelo conhecimento de seu corpo, e o self conhecedor como o
proprietário do conhecimento que é gerado pela experiência. Sabemos que todo
conhecimento pertence a alguém, e o self, pelo estudo aprofundado do corpo, é esse
processo que faz com que o corpopessoa se reconheça proprietário do conhecimento.
Dada a presença do estado de vigília e da mente, ambos necessários
para que estejamos conscientes podemos dizer que a característica
distintiva da nossa consciência é, liricamente falando, a própria noção
de si. [...] ‗a própria noção sentida de si‘ (DAMÁSIO, 2011, p.202).
Podemos dizer então, que é uma característica da consciência humana a
elaboração do conhecimento de si associado ao mundo circundante de forma mais
ampla do que outros seres vivos dotados de processos da consciência em nível mais
elementar. Corpos mais simples conseguem reconhecer, por exemplo, a aproximação de
um alimento e realizar um procedimento para capturá-lo, ou em um nível um pouco
mais desenvolvido, reconhecer uma situação de ameaça e reagir a ela. Mas sua
capacidade de resposta à ameaça será de certo modo limitada a um conjunto de
comportamentos. Quando o autor fala da ―própria noção sentida de si‖, ele inclui mais
um elemento – os sentidos – que se refere às operações cognitivas que estão envolvidos
no ato de experimentar processos que envolvem órgãos e funções específicas, operando
em conjunto. Portanto, não se trata exatamente de dimensões subjetivas da experiência e
sim de compreender minimamente a rede de mecanismos que resultam no conhecimento
- ou não - de estados do corpo, para então podermos delinear uma nova reflexão em
torno do estado de plenitude que configura a ludicidade.
Um dos fatores que permite identificar fluxos de informação entre corpo e meio,
é o (re)conhecimento nos estudos científicos de alternâncias nos padrões de ondas
elétricas do cérebro, que por sua vez, são indicadores de alterações do corpo. Um
exemplo claro é a alternância dos padrões de ondas elétricas produzidas entre o sono e a
vigília. Esses padrões de ondas são indicativos do nível de atividade mental, e deste
modo, o período da vigília é aquele em que há maior produção de ondas elétricas
indicando elevada atividade mental, em oposição ao período de sono. Se analisarmos
com um pouco mais de cuidado, o exemplo pode fortalecer também a compreensão de
que um processo mental é mesmo um processo do corpo e não uma abstração. Quando
estamos dormindo, os sentidos encontram-se reduzidos, não do ponto de vista de seu
31
potencial, mas da quantidade de informações a que tem acesso. Os olhos estão fechados,
o corpo permanece na posição horizontal por longo período, a luz possivelmente
permanece apagada e em geral, não há grandes variações olfativas e táteis. Assim,
menos ondas elétricas são produzidas e diminui o nível de atividade mental.
Reconhecemos esse estado do corpo como repouso. No entanto, as operações
elementares de regulação do corpo, o que denominamos no senso comum por funções
básicas, se mantém em atividade. Isso ocorre porque esses processos, como apresentado
outrora, correspondem ao nível mais elementar de consciência, e deste modo, no corpo
humano, não requer atenção especial para que ocorram. Correspondem aos processos
que operam de modo não consciente, ou seja, ações sobre as quais não temos
conhecimento a cada vez que realizadas, como o batimento cardíaco, os movimentos
peristálticos do intestino etc. Além das funções básicas do corpo, configuram já num
nível diferenciado de complexidade, o repertório de ações humanas por vezes
consideradas automatizadas: as ações cotidianas. Sobre elas, temos conhecimento de
quando estamos realizando cada uma, mas nem sempre precisamos direcionar o foco de
atenção para conseguir realizá-las. Não precisamos, por exemplo, reaprender a escovar
os dentes toda vez que o fazemos e por isso são também ações que conseguimos realizar
simultaneamente a outras. Pensamos no ato de dirigir um carro. Quando estamos
iniciando, temos dificuldade em abrir as janelas, pegar uma bolsa no banco de trás ou
tomar algo enquanto o carro está em movimento. À medida que nos tornamos mais
seguros na coordenação que envolve esta tarefa, vamos conseguindo realizar diferentes
ações ao mesmo tempo em que dirigir. Ou seja, um conjunto de alterações se estabiliza
até que a atenção seja novamente solicitada criando novas redes de informação. São as
alternâncias de padrões de atividade mental e, portanto, de estados do corpo, em que o
sono e a vigília representam os seus picos, havendo inúmeras gradações entre os dois.
Se este é o modo de operar do corpo, vejamos então, de que modo podemos identificar
essa ocorrência em dança. Consideraremos que as ações cotidianas equivalem aos
movimentos com os quais o dançarino já está habituado como, por exemplo, um
bailarino clássico que passa os braços pela segunda posição quando quer realizar uma
pirueta saindo de quarta posição dos pés. O corpo conhece essas ações – o caminho do
braços e a pirueta de quarta posição – em associação e assim, quando um bailarino
desejar realizar um giro de outra forma ele precisará direcionar a atenção a fim de
32
alcançar um novo padrão, que implica novas combinações de estados conscientes e não
conscientes.
Se pensarmos a amplitude de alterações dos estados do corpo que envolve
também o treinamento de um artista, podemos dizer que quando ele se percebe
conhecedor de um determinado estado corporal, está na verdade deixando de ter
conhecimento de alguns outros estados que ocorrem em alternância. Assim, pode-se
dizer que esse conhecimento dos estados do corpo pode constituir uma forma de seleção
dos elementos com os quais vai trabalhar, bem como de qualidades de movimento a
serem investigadas.
Para realizar qualquer ação, da mais simples a mais complexa, o cérebro forma
imagens de variados tipos. Ocorre é que existem imagens formadoras dos conteúdos já
conhecidos pelo corpo que são rapidamente acionadas quando reconhecida a
necessidade. Orientados pela função do self, os conteúdos – imagens – que o ato
experimental gera integram assim diferentes processos cerebrais na realização de uma
única ação. Envolvem os dois hemisférios do cérebro e ativa distintas regiões. As
imagens em questão não são como fotografias, ou como um quadro que depois de feito
não se altera mais, são fluxos de informação que sofrem modificações a todo instante
inferindo nos estados do corpo. Os sentidos, por exemplo, produzem imagens sensoriais
sobre tudo que se entra em contato como um som, uma superfície, uma cena assistida, e
assim integram junto às imagens referentes ao nosso estado corporal, os conteúdos da
consciência.
Obter e acumular conhecimentos como processos cerebrais são instruções que
surgem evolutivamente antes da consciência, que só veio a aparecer no seu sentido mais
amplo, depois que esses conhecimentos foram categorizados de diferentes formas e
manipulados pela imaginação e pelo raciocínio. A função do self, ao situar a existência,
imprime um contexto a esses conteúdos da consciência, imprimindo também um
propósito à ação. Segundo Damásio (2011) o comportamento, do qual vários outros
animais são dotados, ―é controlado por estímulos imediatos, sem inserção no contexto
mais amplo‖ (DAMÁSIO, 2011, p. 205). Deste modo, o conteúdo sem contexto
configura uma ação pontual, um comportamento desconectado de um propósito.
Comportamentos podem ser observados em corpos mais simples, desprovidos de
processos do self, pois estão vinculados à sobrevivência como, por exemplo, o
comportamento de captura do alimento realizado por um ser unicelular. No ser humano
33
a reação não intencional a algo, como retirar a mão quando colocada sobre uma
superfície quente evitando queimaduras, se caracteriza como um comportamento,
reflexo do organismo, onde níveis mais complexos da consciência não são acionados
para que a ação aconteça. O que não significa que o conhecimento do próprio corpo no
contexto está ausente, mas que em determinadas situações apenas mecanismos básicos
de regulação são suficientes para cumprir a tarefa e protegê-lo.
Quando o trabalho de olhos fechados é utilizado para aprendizagem do palhaço,
tem o objetivo de possibilitar ao artista o conhecimento de seus impulsos. No exercício
―Caminhar para a Parede‖, que ocorre de olhos fechados, respirando fundo, a
caminhada deve acontecer sempre na exalação, seguindo a direção para qual a
respiração conduz o corpopessoa. O guia para o movimento deve ser a respiração. Neste
exercício, o grupo sempre é dividido em dois, um de praticantes e outro de
observadores. Para quem observa as reações dos praticantes quando acreditam que vão
se bater com outro jogador ou com a parede, são em maior parte rápidas, ativadas por
reflexo, como erguer as mãos ou fazer uma expressão de susto, caracterizando um
comportamento pontual. Juntamente se dá o processo reflexivo sobre a situação do tipo
―será que continuo na mesma direção‖, ―será que devo parar de caminhar‖, buscando
soluções para a continuidade do exercício e isso é visível aos observadores.
Argumentamos que, além da capacidade de reflexão ser o diferencial da consciência
humana, somos condicionados pela convivência em sociedade a refletir sobre o que lhe
ocorre para então tomar qualquer decisão e o exercício propõe alcançar uma espécie de
desativação dessa estratégia de controle sobre a ação. Talvez possamos dizer que a
indicação de ―confiar no impulso‖, dada para este exercício, implica confiar nesta
capacidade do corpo de reconhecer, por exemplo, quando está em perigo e proteger-se.
Segundo Damásio (2000, p. 40) a consciência do modo como a entendemos, só
existe porque a função do self está presente, caso contrário, seríamos dotados de
processos mentais, mas não de consciência. Por conseguinte, os tipos de consciência
apontados pelo autor, são determinados pelas diferenciações de complexidade dos
processos do self, coexistentes em nosso corpo. A consciência em seu nível de
organização mais simples denomina-se consciência central e promove ao corpo sentido
do self do aqui e agora. Tem as características de estabilidade ao longo da vida, não é
exclusivamente humana e não depende da memória convencional ou operacional, do
raciocínio ou da linguagem. É o grau elementar da consciência existente em inúmeras
34
espécies, onde o self material é orientador do comportamento adaptativo, ou seja, está
diretamente relacionado à regulação da vida. A consciência em seu tipo mais complexo
denomina-se consciência ampliada ou autobiográfica e promove ao corpo o sentido
complexo do self. É o sentido que permite ser ―capaz de saber que seu organismo existe
e guiar a vida em função desse conhecimento‖ (DAMÁSIO, 2011, p. 228). No entanto,
a consciência autobiográfica não é apenas um ápice da complexidade, mas existe em
vários níveis de organização e considera-se que evoluiu e continua evoluindo ao longo
da existência de cada espécie, atingindo seus níveis mais elevados nos humanos. A
consciência autobiográfica nos permite reconhecer
Uma identidade e uma pessoa, você ou eu — e situa essa pessoa em
um ponto do tempo histórico individual, ricamente ciente do passado
vivido e do futuro antevisto, e profundamente conhecedora do mundo
além desse ponto (DAMÁSIO, 2000, p. 40).
Portanto, quando falamos na consciência como uma característica humana,
estamos falando na consciência autobiográfica em seu grau evolutivo mais elevado. O
ser humano, diferentemente de outras espécies, conhece sua existência, e este
conhecimento das condições em que se encontra no mundo guia suas ações, orienta seu
desenvolvimento social e cultural. Os dois níveis de consciência são fenômenos
biológicos correlacionados, porém a consciência central é alicerce para a ampliada. Se
ocorrer lesões nas áreas correspondentes à consciência central, por exemplo, a ampliada
será de alguma forma prejudicada, ela não se sustenta separadamente, mas o contrário
não ocorre (DAMÁSIO, 2000, p. 42). Importante salientar que os seres evolutivamente
mais complexos em estruturas e processos não operam sempre no ápice de suas funções.
Tudo opera junto e há flutuações entre operações mais elementares e operações mais
complexas. Desta forma, para compreender a flutuação a que se refere como flutuações
nos níveis de consciência – central e autobiográfica – existem dois critérios de
classificação: intensidade e abrangência.
A intensidade, que ocorre em níveis muito diferentes tem como representantes
de seus extremos o sono e a vigília. Como apresentado outrora, o período da vigília se
caracteriza de intensa atividade mental (com a compreensão de que ―mental‖ é corpo) e
o período de sonolência poderá ser o seu oposto quando não considerados aspectos
particulares ou disfunções do sono, não abordados neste estudo. A relação entre
35
intensidade e a flutuação dos níveis de consciência não é proporcionalmente crescente,
podendo em um período de alta intensidade, voltar-se a consciência central.
O outro critério para classificar a consciência é a abrangência, que quando
mínima estará em atuação com maior ênfase a consciência central e quando máxima, ou
de grande abrangência, haverá a articulação do sentimento do aqui agora (self central)
com outros conteúdos vinculados a experiências passadas e/ou a expectativas de futuro
(self autobiográfico). Quando a abrangência for máxima, ou próxima disso, a pessoa
poderá ter então, a sensação de não estar inteiramente presente, devido à associação
com muitas outras informações às quais o presente a remeteu por algum motivo. Mas
isto só é possível porque há o conhecimento do próprio corpo, que embora não seja o
protagonista no processo que rememora acontecimentos passados, todos os conteúdos se
mantêm ligados a essa referência, ao centro. A consciência de grande abrangência
implica a atuação da autobiográfica ―pois ela se manifesta mais acentuadamente quando
uma parte substancial da nossa vida está acontecendo, e tanto o passado vivenciado
como o futuro esperado dominam a ação‖ (DAMÁSIO, 2011, p. 211). Em práticas de
dança podemos observar esse acontecimento da seguinte forma: quando um dançarino
aprende uma sequência coreográfica nova, no primeiro momento se detém a conhecer
cada movimento, fixar a sequência e perceber como o corpo responde a esses
movimentos, estando a consciência central com maior ênfase a frente do processo. No
segundo momento, em que já conhece o conteúdo da sequência e compreende os modos
de organização do corpo para realizá-la, a consciência autobiográfica estará a frente da
ação, uma vez que serão acionados todos os conteúdos de experiências anteriores,
incidindo mais intensamente sobre processos relacionados à memória e à linguagem.
De tal modo, além da pessoalidade também configurada pelo self central, a
consciência autobiográfica nos dá uma identidade, pois está ligada a singularidade do
ser, mais especificamente aos aspectos constituídos na experiência. Por isso quando um
exercício é aplicado com um grupo cada corpopessoa responde de uma forma, produz
sentimentos diferentes. O ―Caminhar para a Parede‖ traz exemplos que evidenciam essa
questão no depoimento de dançarinos: 1) ―Caminhando para o muro, tenho a sensação
de querer chegar a um lugar onde há uma pureza no ambiente, a minha mente fica mais
leve, é como se eu me encontrasse com a minha infância‖; 2) ―A entrega chegou a 60%.
Foi uma luta: confiança X insegurança‖. Registrados por escrito são depoimentos de
dois dançarinos da Paraboléu Cia Cênica, referentes ao mesmo exercício, que nos
36
mostram tanto os fluxos da consciência como aspectos da identidade de cada
corpopessoa. O primeiro descreve uma reflexão um tanto elaborada que evidencia traços
da atuação da consciência autobiográfica e de sua identidade na infância. Enquanto o
segundo expôs um conflito consigo mesmo no aspecto da confiança, parecendo estar
mais atento aos estados do corpo que o induziam tanto a seguir em frente quanto a parar
de caminhar. A metáfora da ―luta‖ entre confiança e insegurança foi uma reflexão
elaborada após a realização do exercício para a escrita, e aí sim, com a consciência
autobiográfica mais atuante do que a central. O que ajuda a sustentar a hipótese de que
não há experiência fragmentada, e sim uma articulação de experiências no presente.
Em corpos complexos como o humano o próprio mecanismo básico de regulação
da vida, engendra uma coordenação tão grande de operações que da mesma forma
ampliam-se as variações que o organismo produz. Em consequência, durante uma
experiência há alterações de níveis de consciência que se dão no fluxo contínuo entre o
self central e o self autobiográfico, ou ainda entre as correntes principal e secundária do
autobiográfico. Ou seja, também a crença de que se pode relatar um único estado de
consciência correspondente para cada situação vivida não é de todo verdadeira.
Contudo, há aspectos que são específicos da consciência autobiográfica, que nos
auxiliam a esclarecer ainda mais suas flutuações, como a presença de uma corrente
principal e uma corrente secundária. Damásio (2011) afirma que a consciência é um
fluxo de informações no qual ora uma informação está à frente e, imediatamente,
quando outra informação se torna o foco, passa a estar na frente. O que define qual delas
estará à frente na orientação da ação é a atenção direcionada intencionalmente, ou pela
emergência de um padrão coerente na corrente secundária, que assim, ganhará o foco de
atenção e passará à corrente principal. Deste modo, quando temos a impressão de que
nos dispersamos da atividade que está sendo realizada é porque neste momento alguma
sensação ou lembrança referente à outra circunstância foi acionada pela experiência
presente. Se o pensamento é também corpo, é também uma operação cognitiva tanto
quanto mover os braços, o pensamento que se acredita nos distanciar do presente só
pode ter sido gerado pelo mesmo. Pela ação do corpo no tempo presente.
Perceber este acontecimento é perceber o fluxo da consciência, sua flutuação de
uma a outra informação, podendo nos tornar capazes de decidir, escolher conteúdos aos
quais será dada maior vazão. E assim, selecionar a informação a qual será dedicado o
foco de atenção é selecionar um conjunto de qualidades, imagens, sensações que
37
poderão ser desenvolvidas no processo criativo em curso. Só percebemos e tomamos
conhecimento do pensamento, aparentemente desconexo, que ocorre em meio a uma
ação, porque existem os processos da consciência. E então uma pessoa não deixa de
estar consciente da ação criativa para refletir sobre outra coisa, mas o foco da
consciência é deslocado para outro ponto dentro do próprio processo criativo.
O ―estado de plenitude‖ é o estado ao qual Luckesi (2005) se refere quando diz
que ―as próprias atividades lúdicas, por si mesmas, nos conduzem para esse estado de
consciência‖ (Luckesi, 2005, p.2). Se os critérios de classificação – intensidade e
abrangência – são considerados indicativos da flutuação da consciência ao longo de uma
experiência, buscaremos alcançar melhor compreensão sobre o estado de plenitude que
caracteriza ludicidade, a partir desses referenciais propostos por Damásio (2011).
Seguindo a linha de pensamento, argumentamos que o estado de consciência da
ludicidade ocorre quando há a combinação de estados de alta intensidade da
consciência, exemplificado pela vigília, e abrangência mínima, que proporcionará à
pessoa a noção do próprio corpo com ênfase no aqui agora, ou seja, com self central a
frente da ação no fluxo de consciência. Participar de um jogo, por exemplo, pressupõe
combinação semelhante e assim, no senso comum utilizam-se expressões como ―estar
entregue‖ ou ―de corpo presente‖ para denotar este estado de corpo que denominaremos
aqui como ―estados de ludicidade‖. Importante ressaltar que abrangência mínima e
máxima não são oposições estáveis, mas são extremos entre os quais existem gradações
não lineares.
Este modo de compreender a experiência, afirma concepções do corpo humano
como um corpo integrado, a corponectividade como de existir no mundo, tornando-se
mais coerente afirmá-la de grande ou baixa abrangência, no lugar de plena ou
fragmentada.
Ao delimitar o palhaço contemporâneo como referência para a pesquisa, os estados de
ludicidade são considerados cogeradores do que se denomina como estado de palhaço.
Argumenta-se que a possibilidade do treinamento para alcançar este estado, como
metodologia de formação, promove o conhecimento dos fluxos da consciência assim
como o conhecimento da alternância dos estados do corpo, aumentando a capacidade de
seleção do artista sobre as qualidades que irá desenvolver na construção do
corpopalhaço.
38
1.3 Estado(s) de palhaço: a ludicidade como uma condição
O palhaço é pessoal e único e, portanto,
amplo demais para ser fixado em um tipo ou
em uma maneira única de se comportar.
(PUCCETTI, 2006, p. 22)
Além da produção acadêmica brasileira sobre a arte de palhaço ainda não ser tão
ampla, não é tarefa simples encontrar estudos desenvolvidos especificamente sobre o
denominado ―estado de palhaço‖. Encontram-se nas teses ou dissertações trechos de
capítulos dedicados ao tema, ou discussões que perpassam o assunto sem que este seja
de fato o centro da questão. Entretanto, o que vem a ser estado de palhaço torna-se
importante neste contexto, na medida em que se elegeram os estados de ludicidade do
palhaço como um tema de pesquisa para a dança.
Considera-se que no corpo humano a corrente sanguínea, as células, correntes
elétricas e as sensações produzidas pelos sensores proprioceptores, entre outras, são
também aspectos físicos do corpo. Pode-se compreender da mesma forma, que as
condições emocionais e afetivas componentes de estados do corpo são físicas, pois são
reconhecidamente parte de operações biológicas e cognitivas. Portanto, a compreensão
de estado se dá a partir do tratamento de algumas questões como processos do corpo,
em contraposição aos argumentos que consistem em afirmar aspectos emocionais e
psicológicos como fatores de outra ordem, para além do corpo, reforçando dicotomias
conceituais.
Segundo o neurocientista Antônio Damásio (2000) os estados do corpo em seu
nível de organização mais simples, correspondem ao
(...) conjunto de mecanismos cerebrais que de modo contínuo e
inconsciente mantém o estado corporal dentro dos limites estreitos e
na relativa estabilidade requeridos para a sobrevivência. Esses
mecanismos representam continuamente, de modo inconsciente, o
estado do corpo vivo, em suas numerosas dimensões (DAMÁSIO,
2000, p. 53).
O estado do corpo vivo é mapeado no cérebro como mecanismo básico de
regulação da vida do organismo e desta maneira, são mecanismos ditos inconscientes
porque não é necessário direcionar atenção para realizá-los. São ações do corpo que
acontecem pelo instinto de manter-se vivo, como por exemplo, o mecanismo do medo
que faz com que um ser vivo se afaste de qualquer situação ameaçadora em busca de
39
garantir sua sobrevivência. Como já vimos, esse conhecimento do próprio corpo
corresponde aos processos da consciência em sua forma mais simples, a consciência
central.
Definimos que a experiência de ludicidade ocorre quando há estados de alta
intensidade da consciência, que requer muita atenção para os detalhes da situação
vivida, e abrangência mínima, que proporcionará com ênfase à pessoa, a própria noção
sentida de si.
No artigo ―No caminho do palhaço‖, Puccetti (2006), discute os princípios que
do seu ponto de vista orientam o treinamento e a atuação no ofício de fazer rir. Desta
maneira, ao descrever aspectos do que compreende como parte do estado de palhaço faz
alusão a dois estados de corpo que considera componentes sem os quais o estado de
palhaço propriamente, não acontece. São os estados de revelação e os estados de
presença que funcionam, para o ator, como uma espécie de pressuposto para a ação do
clown e abrangem assim, capacidades que devem ser desenvolvidas no treinamento.
Entretanto, argumenta-se que esses estados que conferem capacidades que podem ser
treinadas e desenvolvidas correspondem a processos do corpo mais elaborados, níveis
mais complexos de estruturas.
Uma das condições ao estado de revelação do palhaço é a experiência de sentir-
se exposto, de ser visto pelo outro e se revelar em sua humanidade, ou seja, com suas
fraquezas e inseguranças (PUCCETTI, 2006, p. 23). É a experiência de se permitir
revelar tudo aquilo que é próprio - íntimo - da pessoa, mas que no cotidiano é
mascarado de forma a corresponder aos padrões socialmente aceitos. Não poderá,
entretanto, ser desvinculado do estado de presença que traz como palavras-chave os
verbos ―ser‖ e ―estar‖, pois revelar-se implica assumir com integridade o próprio ser.
Novamente com referência em Damásio (2011), reforçamos o entendimento de que os
estados do corpo não ocorrem em ideais de estabilidade que permitem definir com
precisão os componentes de um estado em distinção a outro, mas pelo contrário,
reafirma a coexistência de estados.
Enquanto o estado de revelação evidencia-se nos processos de formação pelos
exercícios de exposição diante do olhar do outro, o treino do estado de presença busca a
investigação de movimentos não automatizados libertando-se das respostas prontas que
caracterizam o repertório de movimento habitual de cada pessoa. Para Puccetti (2006),
presença é levar ao extremo as consequências de viver cada ação no tempo em que ela
40
acontece, buscando ―liberar seus impulsos físicos e manter-se em um estado de
prontidão e concentração que o conecta interna e externamente, dilatando sua presença
física‖ (PUCCETTI, 2006, p. 23). Implica sentir, viver e fazer; elementos referentes ao
universo subjetivo que segundo Burnier (2009), compõem aspectos da dimensão interior
em distinção a outra dimensão que denomina de física do trabalho do ator.
Kásper (2004) argumenta sobre a lógica do palhaço e contribui para esclarecer o
que está de fato em questão com o uso das expressões dimensão interna e dimensão
física:
O palhaço trabalha com a exterioridade. Seus processos de
subjetivação podem ser acompanhados de fora. No palhaço tudo se
passa em seu corpo e de modo visível ao público. Tudo é
exteriorizado, ele precisa mostrar sua lógica, conquistando o público,
trazendo-o para jogar com ele (KÁSPER, 2004, p. 33).
Inebriado do estado de presença, o palhaço tem de mostrar ao público com suas
ações o que está pensando, qual a lógica de ação no mundo que define o que virá a
acontecer. Lógica, por conseguinte, não é um sinônimo de raciocínio, mas de produção
de sentidos que justificam suas atitudes. Essa produção de sentidos que se dá por
aspectos subjetivos – o modo de cada corpopessoa formular suas questões – e por isso
considerada interna, como própria da pessoa assim como a ludicidade. Entende-se que
os aspectos subjetivos são parte dos processos de construção do conhecimento no corpo
e diferem de pessoa a pessoa, de acordo com o lugar em que vive, as informações a que
tem acesso, as atividades que exerce ou não, e assim por diante. Exteriorizar e tornar
física a lógica de ação do palhaço significa então, evidenciar no corpo de modo visível
ao público a forma como articula o momento presente com o conhecimento adquirido
na experiência de vida. Entretanto, para alcançar esta habilidade é necessário o
desenvolvimento da capacidade de obter conhecimento sobre o próprio corpo,
envolvendo necessariamente seus estados. Para Puccetti (1998, p. 5) ―a técnica vem
depois para dar forma e corporeidade a esta presença cênica, construída pela busca da
plenitude‖.
O estado interno é codependente dos fatores externos, a mente constitui o corpo
e seus mecanismos cognitivos, e a consciência não diz respeito à percepção de si
mesmo, como geralmente se refere. Para Damásio (2011, p. 197) a consciência
corresponde ao conhecimento do próprio corpo (consciêcnia central) e o conhecimento
do contexto com o qual o corpo se relaciona (consciência autobiográfica). O processo da
41
consciência que permite a articulação dos conteúdos da consciência central e
autobiográfica é o self. Na prática, é o que compreendemos como o contexto, que por
sua vez, nos fazem reconhecer ou determinar um propósito às nossas ações.
Na prática da palhaçaria de Puccetti (1998), a base conceitual de que o palhaço
não interpreta, mas ao contrário, ele vive a cena a cada vez como se fosse a primeira,
tem como parâmetro o conceito teatral de representação que perpassa toda a experiência
teórico-prática do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais - LUME5. Segundo
Burnier (2009), representar implica uma coisa no lugar de outra no sentido de encontrar
um equivalente que possa representá-la. De modo contrário, quando o ator interpreta,
faz uma tradução da linguagem literária para a cênica, na qual atua como sendo outra
pessoa. Na perspectiva da representação, entretanto, ele não se coloca como outra
pessoa, ele apenas a representa em um possível equivalente. O desenvolvimento prático
deste conceito é um começo para o trabalho do estado de presença, pois pressupõe que o
ator vive a cena desenvolvida a partir de suas qualidades pessoais, em busca da não
automatização, e desta maneira, a técnica se distancia das noções de reprodução e
repetição mecanizadas (BURNIER, 2009, p. 24). No caso da dança, a utilização das
qualidades pessoais do dançarino na construção da cena, é mais comum no contexto da
dança contemporânea, mas nem sempre o uso de técnicas de dança se distancia da
reprodução e repetição esvaziadas.
As experiências vividas inspiram na reflexão de que parte do treinamento do
palhaço se concentra na dinamização de estados de ludicidade, utilizando-se de jogos e
brincadeiras, da ativação do imaginário e da criança interior como uma das formas de
compreensão do prazer de ser. São atividades que exigem concentração e prontidão no
momento presente, evocam sensações de prazer, além de provocar certo grau de
exaustão, facilitando a percepção do estado de presença e a disponibilidade corporal.
O estado de clown seria o despir-se de seus próprios estereótipos na
maneira como o ator age e reage às coisas que acontecem a ele,
buscando uma vulnerabilidade que revela a pessoa do ator livre de
suas armaduras. É a redescoberta do prazer de fazer as coisas, do
prazer de brincar, do prazer de se permitir, do prazer de simplesmente
ser (PUCCETTI, 1998, p.5).
5 É um coletivo de sete atores, com sede no Distrito de Campinas (SP), referência internacional no
redimensionamento do trabalho técnico e ético do ofício do ator. Fundado em 1985 por Luis Otávio Burnier
ao lado dos atores Ricardo Puccetti e Carlos Simioni, é também referência nacional e internacional na
metodologia de formação de palhaços.
42
O estado de presença que segundo Puccetti (1998, p. 5) é construído na busca
pela plenitude, parece corresponder ao ―estado de ludicidade‖ definido por Luckesi
(2005), pois além da plenitude busca a redescoberta do prazer de ser e fazer.
Rememorando a capacidade da criança de ser e se transformar em qualquer coisa. De tal
modo, estados de ludicidade são considerados como uma condição para o estado de
palhaço.
Do ponto de vista da evolução dos processos cognitivos, o ―sentimento de que
meu corpo existe e está presente‖ (DAMÁSIO, 2011, p. 230) é o mais profundo,
podendo ser classificado como um sentimento primordial que ocorre independente dos
objetos de interação. É o sentimento fundamental ao processo do self, constituindo a
base para que outros sentimentos relacionados à interação com os objetos aconteçam. É
preciso ter o sentimento da própria existência para então ter o sentimento de algo
relacionado a ela, que vem a ser o ―sentimento do que acontece‖ (DAMÁSIO, 2011, p.
230). Evolutivamente, são processos que aparecem distintamente, mas que são
complementares em suas funções e operam juntos. Domenici (2008) esclarece a questão
quando expõe que ―a percepção de um objeto gera mudanças no estado corporal, que
são percebidas pelo cérebro junto com o objeto e essa informação se associa àquela
imagem, como um qualificador‖ (DOMENICI, 2008, p. 3).
Se como visto até aqui, os estados corporais são instáveis, o desafio na ação do
palhaço é a sustentação de estados de ludicidade e esta é uma proposição de
contribuição para a dança e o dançarino: sustentar estados de ludicidade. O treinamento
deve proporcionar ao artista o desenvolvimento refinado da percepção dos estados de
corpo, a fim de alcançar a consciência das suas modificações na complexidade da
função do self. Este mecanismo de trabalho viabiliza a investigação das qualidades e
possibilidades de movimento a partir dos estados corporais para a futura codificação de
um repertório de ação, que será fundamental na tarefa de conquistar o público. O tempo
de sustentação é o tempo que o artista consegue manter-se disponível, no estado de
palhaço, agindo na sua lógica. Sucintamente, o estado de palhaço no entendimento do
Lume ―é um estado de afetividade, de vulnerabilidade, é levar ao extremo a conexão
consigo mesmo, é o saber se ouvir‖ (PUCCETTI, 2006, p. 24).
43
2. DO PALHAÇO PARA A DANÇA
2.1 Palhaços – possibilidades de aprender
Há que se considerar, para discutir a arte do palhaço, a variedade de estilos que
existem e implicam linhagens distintas, tradições de família e outros modos de fazer que
investem em metodologias de formação considerados mais atuantes nas últimas três
décadas. Estes estilos são representativos da polissemia do significado do palhaço em
sua construção histórica desde o século XVI. Entretanto, objetivamente interessam aqui
os processos históricos que resultaram nas diferentes abordagens de palhaço que podem
ser reconhecidas ainda hoje, bem como refletem no olhar da sociedade sobre a
palhaçaria. Especialmente, os aspectos que contribuem para a compreensão dos
elementos que integram o ensino/aprendizado da arte do palhaço, sobre os quais esta
pesquisa se dedica com maior atenção. E ensino/aprendizado tanto para o aspecto
artístico cênico, quanto o aspecto artístico-pedagógico.
Consensualmente em Bolognesi (2003), Reis (2013) e Mavrudis (2011) há uma
explicação inicial para o termo clown a partir da qual se desenvolve a discussão e o
confrontamento com dados históricos. No Dicionário Crítico Ilustrado do Circo no
Brasil (MAVRUDIS, 2011), encontra-se:
O termo palhaço também é conhecido como ‗clown‘, termo inglês que
deriva de ‗cloyne‘, ‗cline‘, ‗clowne‘, cuja etimologia reporta a
‗colonus‘ e ‗clod‘, que tem sentido de homem rústico ou homem do
campo ou desajeitado, grosseiro. Na pantomima inglesa, o clown era o
cômico principal, e tinha função de um serviçal. (Mavrudis, 2011, p.
304).
No referido Dicionário (2011) parece então, haver a consideração das duas
nomenclaturas como sinônimos, utilizados em diferentes contextos culturais e
geográficos, indicando ao mesmo tempo o clown como personagem da pantomima
inglesa. Aponta aspectos da etimologia da palavra que são bastante recorrentes em
literaturas que se dedicam a pesquisar esta arte. Da mesma forma ocorre com a palavra
palhaço que deriva de pagliaccio que ―origina-se do radial paglia (palha), do idioma
italiano, e tem a mesma expressão da matéria usada para o revestimento de colchões.‖
(MAVRUDIS, 2011, p. 304) Em sua origem mais primitiva a roupa do palhaço era feita
de tecidos grossos e revestida nas partes mais salientes como forma de proteger o corpo
44
das quedas e pancadas, tornando-se parecido com o enchimento dos colchões.
Conforme indica Reis (2013, p. 97) ―tanto o termo clown como pagliaccio parecem ter
surgido no século XVI e ter relação com o olhar urbano sobre o camponês.‖ Deste
modo, o autor argumenta sobre a carga negativa associada ao sentido primordial dos
termos palhaço e clown (REIS, 2013, p. 16), advinda de um olhar do homem urbano
sobre o homem do campo. E esta é a conotação identificada pela etimologia dos termos
que se reforça quando associados a personagens cômicos que surgidos na época. A
carga negativa a que se refere ainda se impregna de muitas formas no comportamento
social em relação a esta arte, observada, por exemplo, no uso do nariz vermelho fora do
contexto artístico, como em manifestações de ordem política ou social. Entretanto, Reis
(2013, p.16) considera que este fato implica a riqueza simbólica agregada a palavra
palhaço através da variedade de cargas emocionais que constituem sua diversidade de
apropriações.
O clown do século XVI inseria-se no contexto do teatro inglês, inicialmente
como personagem secundária e suas ―características principais eram a gratuidade de
suas intervenções e a liberdade de improvisação‖. (REIS, 2013, p. 98) A pantomima era
característica no teatro inglês no qual a figura do clown ganhou visibilidade e tornou-se
personagem principal. No mesmo período, a pantomima inglesa teve seu encontro com
a Commedia Dell‘arte italiana, onde o clown contracenava com personagens cômicos
que exerciam o papel principal. No entanto, segundo Reis (2013) o clown conquistou
maior importância ao longo dos séculos XVII e XVIII, em função desta união da
pantomima inglesa com a Commedia Dell‘arte que o tornou mais atraente para as
plateias, assegurando seu lugar nos espetáculos. ―Desse encontro resultou uma sugestiva
fusão que teve como ponto terminal a concepção do clown moderno e circense‖
(BOLOGNESI, 2003, p. 63), cuja consolidação se deu na virada do século XIX, com o
trabalho do ator inglês Joseph Grimaldi (1778-1837), mais conhecido como Joey ou Joe.
Considerado criador do clown circense, seu nome tornou-se sinônimo de palhaço na
Inglaterra. Uniu a máscara branca de Pierrô com características da personagem italiana
Arlequim. Os livros relatam que sua personagem original não era simpática, mas sim
cruel e desumana.
Para Bolognesi (2003, p. 61), a expansão da arte clownesca se iniciou durante os
séculos XVIII e XIX, com a aproximação de outras artes de palco. Ao final do século
XVIII um dançarino de corda passou a integrar os espetáculos do Anfiteatro de Astley –
45
onde nasceu o espetáculo circense – e pouco mais tarde a pantomima foi incluída no
circo equestre na França que manteve como foco das apresentações os números de
cavalo.
Concomitantemente a esse espírito feérico, o circo recebeu os artistas
saltimbancos que se afastavam das feiras esvaziadas. Nesse encontro
de segmentos díspares o circo viu-se diante das personagens cômicas
que ocupavam os tablados nas ruas e praças. (BOLOGNESI, 2003, p.
61,62)
Mudanças políticas e econômicas nos países europeus provocaram o
esvaziamento das feiras, que se constituíam como palco dos artistas saltimbancos e
então, o circo tornou-se uma nova possibilidade de atuação profissional. No entanto, do
encontro entre diferentes práticas artísticas – saltadores, acrobatas, malabaristas, etc.
entre os saltimbancos, a pantomima inglesa e números equestres – em um espaço já
reconhecido como circo, surge um tipo de cômico em que suas ações se restringiam a
paródia de números, especialmente os de montaria. No entanto, surge neste contexto
uma variedade de números circenses também parodiados por clowns que começam
assim, a se especializar como clowns saltadores, músicos, acrobatas, malabaristas, etc.
―Podemos dizer que prevaleceu na Europa do século XIX duas linhas de
palhaçaria principais, uma voltada para a cena e outra especializada em números que
parodiavam as atrações de habilidades circenses.‖ (REIS, 2013, p. 99). Esclarece assim,
que no século XIX a figura do clown ainda se fazia presente no ambiente do teatro, e já
caracterizava parte do espetáculo de circo com a paródia dos números de habilidades,
que perdurou até o século XX. Esta forma de organização do espetáculo circense é
considerada o princípio do espetáculo que conhecemos hoje, no qual existem dois
contrapontos principais: a tensão ocasionada pela sublimidade dos números de risco e
virtuosismo, e o relaxamento cômico, com o riso provocado pelo enfático corpo
grotesco dos clowns, ou palhaços.
Já no século XX, a arte do palhaço (REIS, 2013) desenvolve-se suscitando novas
abordagens quando praticantes do teatro começam a utilizar de modos diferentes os
mecanismos próprios do palhaço em suas criações artísticas e práticas pedagógicas
teatrais. Entre eles, Jaques Lecoq cuja metodologia tornou-se conhecida por enfatizar a
descoberta do palhaço pessoal de cada um. Sua escola se constituiu em um a forte
referência, formando gerações de alunos e influenciando as práticas artísticas a partir da
década de 1960 ―e disseminou consideravelmente sua abordagem técnica do palhaço
46
como caminho de pesquisa independente e desvinculado da palhaçaria clássica.‖ (REIS,
2013, p. 29) Lecoq desenvolveu uma linha de formação em que o processo de
descoberta do palhaço pessoal se dá na exposição do ser humano em suas fragilidades e
na improvisação surgida de situações de constrangimento. Junto a estes princípios,
também valorizou o uso do nariz vermelho, o que possivelmente tenha enfatizado aos
olhos dos seguidores e espectadores, a associação ao palhaço Augusto, pois nas duplas
formadas até o final do século XIX a ele era atribuído o comportamento atrapalhado,
desajeitado que conduz a situações embaraçosas.
Quando o clown entrava em cena parodiando os números circenses, esta ação já
se constituía em um modo de se expor ao ridículo. O Riso era provocado pelas
tentativas atrapalhadas do clown de obter sucesso. Assim, ao longo da história legitima-
se o palhaço como ―o artista cujo trabalho consiste em provocar o riso, expondo a si
mesmo ao ridículo‖ (MAVRUDIS, 2011, p.303). No entanto, com a metodologia de
Lecoq, o ridículo se constrói no próprio corpo ao expor e trabalhar com as
características do atuante. Nesta abordagem, o aprendizado não ocorre somente a partir
da execução de números clássicos do repertório clownesco, mas primeiramente no
trabalho que deve proporcionar ao artista o conhecimento de si mesmo conduzindo-o a
compreender aquilo que nele é risível.
O clown não representa, ele é – o que faz lembrar os bobos e bufões
da Idade Média. Não se trata de um personagem, ou seja, uma
entidade externa a nós, mas da ampliação e dilatação dos aspectos
ingênuos, puros e humanos (como nos clods), portanto ―estúpidos‖, do
nosso próprio ser (BURNIER, 2009, p. 209).
Desde a década de 1970, em muitos países vê-se o crescente interesse na arte do
palhaço. Esse interesse que historicamente proporciona novamente sua dissociação ao
espaço do circo abrangendo então a cena e a rua. Começa assim, a se propagar em
infinitas direções e tendências. Ao mesmo tempo, o circo atravessa um período de
impopularidade devido à modernização de meios de comunicação como a televisão.
Diante desses dois fatores, a impopularidade do circo e o aumento do interesse pela
figura do clown, cria-se espaço para a renovação contemporânea do palhaço no Brasil
em contraposição ao palhaço de circo que circulava todo país há muitas décadas. Diz-se
em contraposição, pois com este movimento surgem no Brasil novas abordagens que
articulam o palhaço as técnicas teatrais, influenciadas em grande parte pela metodologia
de Lecoq e seu dissidente mais conhecido, Philippe Gaulier. A essa geração de artistas
47
brasileiros que contribuiu para renovação da arte de fazer rir, Reis (2013, p. 47)
denomina como palhaços conquistadores. Alguns exemplos citados pelo autor são os
fundadores de grupos como o LUME Teatro, Teatro de Anônimo6 e Doutores da
Alegria7.
A adoção do termo clown no Brasil também ganha novo sentido com este
movimento, uma vez que clown era o nome usado por Lecoq. Já existiam de certa
maneira, fronteiras delimitadas entre teatro e circo no sentido da busca por uma
distinção das especificidades de cada arte, e a utilização do termo clown como marco de
sua apropriação no contexto teatral e como símbolo da renovação fundamentada na
pesquisa reforça sua separação do circo, delegando, não intencionalmente, ao termo
palhaço a impressão pejorativa do termo nas últimas décadas. Ou seja, um termo
estrangeiro substitui o termo local que designa a figura do cômico, no intuito de dar
visibilidade às diferenças de abordagem artística.
Distinguem-se ainda hoje duas linhas de aprendizado da técnica de palhaço,
porém, pode-se dizer que as duas se distinguem especialmente pelo contexto em que o
aprendizado ocorre. Uma, caracteriza os saberes ditos tradicionais transmitidos entre
famílias circenses ou também na experiência de convívio profissional no cotidiano
circense; e outra, que se caracteriza nas situações de aprendizado com artistas e mestres.
Importante, no entanto, ressaltar que dentre cada uma das linhas de aprendizado, há
também um gama enorme de variações nas concepções, modos de fazer e ensinar.
―Uma das principais alavancas cômicas do palhaço é o modo de se apropriar do
princípio do ridículo. Sobre a ligação vital entre o riso e o ridículo, a maioria dos
teóricos está de acordo. Daí a importância em nos determos também na experiência do
ridículo para compreender o universo do risível‖ (REIS, 2013, p.27). Este é um
princípio de ação que atravessa as mais variadas concepções de palhaço e formas de
6 O grupo teatral com sede no Rio de Janeiro, estrutura sua prática em processos de montagem,
apresentação e formação de atores sociais, desenvolvidos a partir de modelos de gestão e administração
coletiva. É o idealizador do Encontro Internacional de Palhaços Anjos do Picadeiro realizado desde 1996.
7 Doutores da Alegria é uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos que, desde 1991, atua junto
a crianças hospitalizadas, seus pais e profissionais de saúde. A essência do trabalho é a utilização da paródia
do palhaço que brinca de ser médico no hospital, tendo como referência a alegria e o lado saudável das
crianças e colaborando para a transformação do ambiente em que se inserem.
48
aprendizado. O fato de se colocar como objeto de riso do outro é tão marcante que
muitas vezes ofusca, para os leigos, as técnicas e diferenças de cada palhaço.
Este aspecto é muito importante na investigação do corpo palhaço e então, a
experiência do ridículo é bastante enfatizada nos processos de formação de diferentes
modos, como por exemplo, a partir da inversão da lógica competitiva de alguns jogos
dando destaque ao perdedor no lugar do ganhador. Evidência da importância do ridículo
como princípio corporal, está nas obras de Reis (2013) que dedica parte de um capítulo
ao ―ridículo‖ e de Bolognesi (2003) que dilui a questão entre os capítulos que abordam
um pouco menos os processos históricos e aprofundam mais a discussão do corpo no
contexto circense.
Quando se fala da arte do palhaço no Brasil hoje, estamos falando de
saberes artísticos transmitidos predominantemente, de um lado, pelos
palhaços da tradição dos circos, e de outro, de técnicas voltadas para
arte do palhaço desenvolvidas no contexto teatral, cujo aprendizado e
desenvolvimento se dão em sala, com artistas que misturam as duas
perspectivas. (REIS, p. 46).
Ao perceber e considerar as transformações no fazer artístico do palhaço nas
últimas décadas, enquanto entendimento e modo de operar, que o aproxima do campo
das investigações corporais, quais podem ser os pontos em comum entre os universos do
palhaço e da dança enquanto pensamento contemporâneo?
Assim como Ricardo Puccetti (2006), acreditamos que o ofício do palhaço pode
ser aprendido por meio de processos de experimentação corporal que estimulam a
revelação de aspectos moralmente repremidos de si próprio, como via de descoberta do
estado de palhaço.
2.2 Corpodançarino e Corpopalhaço
É claro que provocar o riso é parte da natureza do palhaço, mas
quando se trata da sua formação não é do riso que cuida. Pelo menos
não se trata o riso como elemento estruturante da construção do ―ser‖
palhaço. O riso é uma consequência da maneira peculiar de como o
palhaço se relaciona com todos e tudo a sua volta. (LIMA, 2012, p.
35).
49
2.2.1 Corpopalhaço
Na trajetória profissional podemos pontuar alguns acontecimentos que
contribuem no esclarecimento tanto dos desdobramentos artísticos quanto das escolhas
que configuram esta pesquisa. Os aspectos nela desenvolvidos são resultantes da
concomitante pesquisa teórico-prática nas áreas da dança e do palhaço desde o ano de
2007. Na arte do palhaço, vem sendo percorrido o caminho de aprendiz no qual as
primeiras experiências de composição e apresentação no formato de número, ocorreram
durante o período de mestrado, ou seja, a partir do ano de 2012. Deste modo, serão
discutidos os aspectos mais relevantes dos processos de Iniciação, Workshops e
Oficinas de palhaço a fim de esclarecer e justificar a opção de aprofundarmos as
discussões sobre processos de Iniciação. Serão assim, apresentadas possíveis
compreensões de um corpodançarino ao vivenciar propostas de investigação e criação
de um corpopalhaço, como forma de esclarecer o percurso artístico que tem gerado
condições para o desenvolvimento do projeto de pesquisa.
Beneficiada com uma bolsa da Fundação Cultural do Estado da Bahia houve a
oportunidade de participar, em 2007, da oficina denominada ―Clownaria Clássica‖ com
o mestre italiano Leris Colombaioni. Em português, uma possível tradução para o nome
da oficina é a expressão ―palhaçaria clássica‖, utilizada nesta pesquisa na compreensão
exposta por Reis (2013, p. 24) que a define como ―oriunda principalmente das tradições
circenses, como do palhaço Picolino e do Piolin no Brasil, ou, como os Colombaioni da
Itália.‖ A família Comlombaioni é de forte tradição artística e reconhecida como uma
das mais importantes na palhaçaria italiana. Descendentes da Commedia Dell‘arte, a
família migrou para uma nova forma de espetáculo, como a maioria dos artistas de rua
da época, com a criação do Circo Moderno, conta Leris Colombaioni em entrevista à
Circonteúdo (Gonçalves, 2009). Sobre sua primeira experiência no picadeiro, aos quatro
anos de idade, Leris afirma que seu pai lhe deu apenas algumas instruções pouco antes
de entrar em cena. Compreende-se neste estudo que se refere a um modo de
aprendizado comum às famílias circenses, no qual as crianças eram colocadas em cena
com breves instruções e deveriam realizá-las da maneira que lhes fosse mais
espontâneo. O ofício do palhaço era inicialmente aprendido no exercício de estar em
cena e posteriormente, viria o treinamento técnico, dos truques que valorizam e
enriquecem o número de cada palhaço. Esta perspectiva de aprendizado foi também
observada durante a temporada do ―Marcos Frota Circo Show‖, em Florianópolis, no
50
ano de 2003, quando da atuação como bailarina. Durante três meses se deu o convívio e
a observação dos modos de relação das crianças com os adultos e com a prática artística.
Havia um grupo de aproximadamente oito crianças responsável pelo que se denomina
de transições de cena do espetáculo. Vestiam-se com macacão de cetim, diferentes tipos
de chapéu e o nariz pintado com uma bolinha vermelha. As entradas eram espontâneas
em seus roteiros, com poucas marcações e sempre com ideias experimentais
combinadas entre as próprias crianças minutos antes da cena. Nos bastidores,
comentavam e se divertiam com os ocorridos no picadeiro, fossem eles inesperados ou
não, e fixavam as ações que pareciam ter funcionado diante do público. Naquele
contexto, sabia-se que estavam sendo observadas suas habilidades a fim de direcioná-las
também para outras técnicas de circo com o passar dos anos, bem como definir aqueles
que dariam continuidade na função do palhaço.
No curso com duração de quatro dias, Leris ensinou e treinou truques técnicos
da palhaçaria, e os denominava como acrobacia e, particularmente, este fato causava
curiosidade. Foi sem dúvida, uma experiência singular sobre a qual as reflexões mais
consistentes foram produzidas nos anos seguintes, ao entrar em contato com outras
maneiras de ensinar e treinar, além de compreender a relevância de tê-lo conhecido.
Fez-se então, o entendimento de que aquela oficina coordenada por Leris Colombaioni
direcionava-se a um público mais experiente, com uma prática de atuação na palhaçaria
a qual seria enriquecida com o legado técnico da família Colombaioni. Perspectiva que
parece considerar um processo semelhante às crianças do Circo Marcos Frota, que
adquiriam primeiro a experiência do picadeiro, de estar em cena construindo suas
estratégias de provocar o riso para depois, aprender especificidades técnicas desse fazer.
No entanto, se a questão da técnica for abordada do ponto de vista que vem sendo
discutido na dança contemporânea, pode-se considerar que a experiência do picadeiro
também se constitui como um treinamento técnico. Uma vez que a experiência do
picadeiro consiste em proporcionar ao aprendiz a percepção e seleção de estratégias que
funcionam melhor junto ao público, ela caracteriza a parte do aprendizado em que o
artista vai construindo sua técnica pessoal. O que funciona para uma pessoa, pode não
funcionar para a outra, e esta compreensão será mais facilmente alcançada na prática
juntamente com o público. Ao mesmo tempo, evidencia-se com a prática de Leris
Colombaioni uma forma de compreender a palhaçaria que não perpassa necessariamente
pela descoberta e investigação de estados.
51
Dois anos depois, a oficina com o grupo La mínima8 possibilitou fazer uma
distinção mais apurada do que o mestre Leris Colombaioni denominava por acrobacia.
Provavelmente devido ao histórico dos integrantes do grupo como trapezistas de circo, a
oficina de palhaço oferecida foi extremamente acrobática. O aquecimento era um forte
condicionamento físico composto de exercícios abdominais, repetições de séries de
apoios e corridas, seguido do treinamento de saltos e manobras em duplas que muito
lembraram experiências anteriores com cursos de acrobacia solo, como o da Escola
Pernambucana de Circo. Fez-se então, a compreensão de que a expressão acrobacia
recorrente nos comandos de Leris, implicava a necessidade de conhecimentos básicos
desta prática para conquistar agilidade nos truques assim como mostrava sua concepção
dos truques da palhaçaria como ações acrobáticas, em distinção da acrobacia solo. Em
nenhuma das duas experiências foram abordados jogos ou brincadeiras, bem como não
houve a prática de exercícios que simulasse a situação do picadeiro.
Experiências posteriores de formação trouxeram novas referências associando
estados do corpo, a prática de jogos e brincadeiras, e a pesquisa corporal através da
investigação de formas e qualidades de movimento, com exercícios de repetição,
dilatação e permanência.
O processo que hoje se chama iniciação do clown nada mais é do que
a condensação no tempo de uma série de experiências pelas quais o
ator clownesco passa e que o ajudam a encontrar ou confirmar seu
clown. A iniciação é uma vivência ―condensada‖, que provoca o
desencadeamento de um processo mais longo de criação do clown.
Devo esclarecer que nem sempre esse processo iniciático resulta na
criação do clown. (Burnier, 2001, p. 210).
Deste modo, observamos que a inserção de um conjunto de exercícios que
integram a prática denominada como picadeiro, é um ponto em comum entre os três
processos de Iniciação vivenciados para essa pesquisa, e que assumem a nosso ver
aspectos filosóficos da metodologia da escola de Jacques Lecoq. Embora algumas
outras propostas metodológicas encontradas se denominem como oficinas, a forma de
organização dos exercícios e os princípios desenvolvidos em seus conteúdos,
configuram para nós práticas semelhantes à Iniciação de palhaço. Observamos assim,
um modo de olhar e compreender corpo que parece encontrar pontos de convergência
com a dança contemporânea.
8 Grupo de teatro e circo, sediado em São Paulo, formado por Domingos Montagner e Fernando Sampaio.
52
Um exemplo é o ator, diretor e palhaço João Lima9 (2012), que nos fala em suas
oficinas que podemos entender os caminhos de formação do palhaço basicamente sobre
duas vias. Uma, em que o enfoque primeiro está no aprender a Ser palhaço, entender-se
corpopalhaço, para depois aprender a Fazer, ou seja, aprender a usar a técnica e se
relacionar com objetos e pessoas; a outra via seria o contrário: primeiro aprender o
Fazer, para depois aprender a Ser palhaço. Este modo de referenciar o aprendizado,
apesar de dicotômico, colabora para a compreensão dos principais pontos que
constituem o caminho do aprendiz: o trabalho pessoal de descoberta e apropriação das
características e mecanismos próprios de cada corpopessoa; e o treino dos princípios
técnicos que contribuirão no desenvolvimento de maneiras de se relacionar com o
mundo. Entretanto, do ponto de vista cognitivo sabe-se que Ser e Fazer não podem ser
separados, pois ambos são processos do corpo implicados em vínculo biológico na
construção de conhecimento. ―Aprender a Ser‖ implica ação tanto quanto ―Aprender a
Fazer‖ implica uma identidade. O fato é que são focos distintos em cada momento do
aprendizado influenciados por um modo de organização metodológica do ensino. Por
exemplo, no caso das crianças do Circo Marcos Frota, o treinamento do ―aprender a
Ser‖ estava totalmente integrado ao fazer, pois se dava na experimentação de cena no
próprio picadeiro do circo em relação direta com o público.
Para Puccetti (2006) ―o público ajuda o palhaço a aprender consigo mesmo, e
sem este aprendizado ninguém se torna um palhaço‖ (PUCCETTI, 2006, p.20). Por este
motivo, o picadeiro é introduzido nos processos de iniciação, a fim de gerar o espaço
para o exercício das relações, bem como experimentar o não-fazer ou o fazer como
impulso real ao se relacionar com o outro, e não ação como consequência de uma
decisão a priori, ou de um planejamento (PUCCETTI, 2006, p. 21). Como dizem João
Lima (2012) e Alexandre Casali10
(2011) se deixar ser visto pelo outro, o público, e vê-
lo também evoca uma qualidade de olhar diferenciada e fundamental para o palhaço.
9 João Lima é ator licenciado pela Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia. Diretor da Via
Palco Companhia de Teatro em Salvador com inúmeros espetáculos de palhaço e circo, que atua também
como palhaço. Nos últimos anos tem atuado como Professor convidado do curso de Pós-Graduação em
Ludicidade e Desenvolvimento Criativo de Pessoas, da Transludus, Salvador, na qual desenvolveu na
qualidade de estudante a monografia ―A ludicidade na arte de ser palhaço‖. Considerado mestre, coordena
cursos de Iniciação em Palhaço entre os quais, os de 2008, 2011e 2013, compõem o currículo da
pesquisadora.
10 Alexandre Casali é palhaço atuante e coordenador de cursos de ―Iniciação e Pesquisa na Arte do
Palhaço‖, pelo qual a pesquisadora, Denise Torraca, foi batizada com o nome de Bolshóia em 2011, na
cidade de Salvador.
53
Pode-se dizer então, que o corpopalhaço desenvolve a consciência – no sentido
de ter conhecimento – dos modos operantes do próprio corpo, como via de descoberta
das características pessoais a serem exploradas e que contribuirão na criação de uma
técnica pessoal. No corpodançarino o desenvolvimento de uma técnica pessoal se dá
comumente por necessidades geradas pelo coletivo ou por características da obra. Por
exemplo, um dançarino que tem um modo de se movimentar mais lento e demonstra
dificuldades com o que lhe solicita um ritmo acelerado. Ele terá de desenvolver seus
próprios métodos para alcançar a solicitação de acelerar o ritmo, enquanto no
corpopalhaço esta seria considerada uma característica específica daquele corpo, como
uma marca que permite reconhecê-lo em qualquer lugar, e que a partir dela são
investigadas qualidades complementares. Desta forma, afasta-se de concepções
abstratas do ―Ser‖ e enfatiza-se como cada corpopessoa é nos seus modos de
organização constituídos por sua história e cultura.
Antônio Damásio (2011, p. 27,28) traz reflexões importantes em relação à
história da mente no campo científico e dos estudos da consciência, onde considera a
perspectiva da mente separada do organismo ao qual pertence, uma distorção. Pelo fato
de ser um fenômeno diferente ―daquele encontrado nos tecidos e nas funções do
organismo‖ (DAMÁSIO, 2011, p.28), gera-se a impressão de que ela não possui uma
natureza física. ―Ver a mente como um fenômeno não físico, separado da biologia que a
cria e a sustenta, é a razão pela qual certos autores apartam a mente das leis da física,
uma discriminação à qual outros fenômenos cerebrais geralmente não estão sujeitos‖
(DAMÁSIO, 2011, p. 28). Deste modo, a afirmação esclarece o ponto de vista do autor
sobre aspectos relativos à questão da mente: 1. A mente é parte dos processos
biológicos; 2. É um, entre tantos outros, fenômenos cerebrais. Em complementaridade à
essa linha de pensamento, Rengel (2007) argumenta que a mente opera por princípios
químicos, físicos e biológicos em vínculo e utiliza a expressão ―menteScorpoS‖ como
forma de indicar atividade conjunta. Entre as produções da professora e pesquisadora
Rengel (2007, p. 37), o conceito de corponectivo11
como tradução de embodiment faz
referência à situação em que mente e corpo são trazidos juntos como modo de operar do
organismo, entendendo que esta é a forma de ser/estar no mundo, e não apenas uma
11
Capítulo 1, p. 20.
54
possibilidade. Desta forma diferencia-se dos termos e expressões que promovem o
entendimento de operações distintas – primeiro mente e depois corpo.
O termo embodiment, utilizado também no teatro com o sentido atribuído por
Stanislavisk (Burnier, 2009) como corporificar, no sentido de tornar-se corpo, se
aproxima muito da concepção de fisicalizar algo que está sendo sentido pelo ator ou
performer no ato da criação ou da cena. Esta concepção, no entanto, pode induzir ao
entendimento de que aquilo que ocorre ao artista no âmbito privado, como por exemplo,
uma sensação, não é física, ou ainda, não é corpo, mas tornar-se-á.
A experiência mais recente em um curso de Introdução ao Clown, com Michael
Kennard12
em junho de 2013 no Canadá, junto aos estudos, proporcionou novas
reflexões em torno da concepção do termo ―fisicalizar‖, apresentado na ementa entre
seus conceitos-chave do workshop. Comumente os primeiros exercícios de Picadeiro
tem um objetivo muito específico, e aparentemente simples, que é apresentar-se para o
público e treinar o olhar. Cada pessoa a sua frente deve ser olhada nos olhos pelo tempo
que for necessário. É um exercício que provoca reações das mais variadas sendo
bastante recorrente a expressão do choro. Do ponto de vista de quem assiste o exercício,
muitas reações podem ser observadas em movimentos sutis do corpo, como por
exemplo, os braços balançando levemente para frente e para trás, as mãos e punhos
cerrados, os dedinhos dos pés encolhidos como num sapato apertado, etc. São inúmeras
as formas de reação corporal à situação imposta: estar só, frente a certo número de
pessoas com toda a atenção direcionada a você, exclusivamente a você. E é neste ponto,
nesta espontaneidade de reações, que se inicia a pesquisa da fisicalidade do palhaço, e
por isso dito próprio de cada pessoa. Entretanto, como discutido, o termo fisicalizar
pode induzir a um entendimento dualista de corpo, como se todas as operações que se
sucedem corporalmente até que o braço comece a balançar, por exemplo, não fossem
físicas. E, importante ressaltar, que tal fato também acontece no treinamento de dança.
Num processo contínuo de prática artística, ensino e reflexão teórica João Lima
conta que vem repensando o nome do seu workshop para ―A arte de Ser palhaço‖. Em
2013 suas reflexões sobre processos de Iniciação e princípios da atuação do palhaço,
foram reunidas em sua monografia de conclusão na Especialização em Ludicidade e
12 Bacharel em Artes pelo Departamento de Drama da Universidade de Guelph, em 1986. Atuou como
clown do Theatre Resource Centre, Toronto, a partir de 1988. Foi Professor Assistente no Departamento de
Drama da Universidade de Alberta, de 2007 a 2012, tornando-se Professor Adjunto da mesma em 2012.
55
Desenvolvimento Criativo de Pessoas. Deste modo, além de parceiro nos diálogos e
aprendizados, mestre em cursos de iniciação, pôde-se também utilizar de uma produção
escrita do artista, na qual discute três princípios para o treinamento: o estado afetivo, a
dilatação psicofísica e a lógica genuína.
O estado afetivo é descrito então, como ―aquele em que o sujeito se encontra
presente, no aqui e agora, sensível, atento e conectado psicológica, fisiológica e
sensorialmente com toda a gama de sensações que está acontecendo interna e
externamente ao sujeito‖ (LIMA, 2013, p. 19).
Neste sentido, observa-se em comum na metodologia de diferentes cursos, a
indicação durante os exercícios de imprimir a qualquer ação, a intenção mais próxima o
possível de quando realizada em sua primeira vez. Ou seja, permitir-se experimentar
sempre. Estar disponível a surpreender-se até mesmo com ações de muito antes
conhecidas e praticadas. E as situações desconhecidas comumente geram um estado de
tensão relacionado ao inesperado, ao fato de não saber ao certo o que virá a ocorrer. O
que ao mesmo tempo nos mantém atentos, a espera do desconhecido. Então para o
diretor e artista, tensão e atenção se aproximam como componentes do que denomina
estado sensível.
Outro fator importante para ativação deste princípio é o olhar já referenciado (p.
50). Segundo mestres, o olhar nos mantém no presente, e esta é uma qualidade
fundamental para colocar-se disponível diante do público. Ao longo dos finais de
semana de formação com Casali em 2011, um comando era incessantemente repetido:
―não existe mais chão, não existem mais paredes, não existe teto, só existem os
olhares‖. Era uma forma de nos dizer que não utilizássemos de subterfúgios para desviar
dos olhos do outro e assim, nos tornamos caçadores de olhares. Michael Kennard, no
curso feito em 2013, chamou de espaço mágico o espaço que se cria, que se legitima
como vínculo entre artista e público pela conexão do olhar. Como forma de nos testar,
de averiguar se estamos disponíveis e atentos ao presente, arremessa chaves, garrafas e
cadernos no chão em direção ao aprendiz que está praticando o picadeiro. Seu objetivo
com esta atitude é também observar o modo como cada corpopessoa reage e, às vezes,
nem sequer é percebido, tamanha é a tensão daquele que está só no centro do círculo
com todos os olhares a ele direcionado. Se no dia-a-dia, alguém deixar cair uma garrafa
no chão, repentinamente, todos nós reagimos. Com diferentes reações, mas reagimos
todos.
56
Quanto ao entendimento de dilatação, argumentamos que se assemelha ao que
autores como, por exemplo, Bolognesi (2003) e Mavrudis (2011) descrevem como a
exposição exagerada das imperfeições e sentimentos do artista. Mais especificamente, a
dilatação denominada por Lima (2013) como psicofísica, refere-se à ampliação não
somente do movimento em termos de amplitude, mas de expressões faciais, gestos,
cacoetes, e por isso denomina psicofísica. Porque considera que alguns aspectos são de
ordem psicológica.
Para apresentar seus números, orienta-se por repertório tradicional
sobre o qual improvisa, como é o caso dos palhaços de circo, ou cria
seu próprio texto ou roteiro, ou simplesmente improvisa a partir de
motivos encontrados em meio a plateia, dando asas a imaginação. No
seu espetáculo, o que conta não é o que faz, mas sim ―como‖ faz. Uma
de suas principais características é a expressão corporal, geralmente
exagerada. (MAVRUDIS, 2011, p. 303).
Do ponto de vista do corpodançarino, observa-se que quando a dilatação é
associada a exercícios de permanência, resultam em posturas, em outros modos de
organização do corpo que estão, de acordo com nossos estudos, relacionados aos
estados. Uma vez que alteramos nosso modo de caminhar, por exemplo, com a
permanência dessa alteração poderemos ter maior conhecimento de outras alterações
desencadeadas. Uma mudança na respiração, uma dor que surge em um lugar qualquer
das pernas ou da coluna vertebral, uma transformação no posicionamento dos braços, e
assim por diante. Estas modificações visíveis a qualquer observador são alterações dos
estados do corpo e considera-se no treinamento do palhaço, a possibilidade de torná-las
conscientes, no sentido de ―ter conhecimento de‖. Portanto, metodologicamente o
princípio da dilatação auxilia o aprendiz na compreensão e na descoberta do estado de
palhaço.
O terceiro princípio de Lima (2013), a lógica genuína diz respeito à forma de
construção das ações em cena, o ―como faz‖ dito por Mavrudis (2011, p. 303). Para que
as ações tenham sentido para o público também, é importante o modo como elas são
realizadas. O artista precisa ser verdadeiro, honesto consigo mesmo e com o público
sobre aquilo que está sentindo no momento e deixar isso aparecer nas ações, no corpo
em cena. Aquilo que não deu certo ou não foi programado, o nervoso ou a ansiedade, ou
qualquer outra ocorrência não precisam ser disfarçados a fim de cumprir os pré-
estabelecidos. De modo diferente, o dançarino muitas vezes não deve permitir que os
57
sentimentos surgidos no momento interfiram no conjunto da obra, ou em sua
performance especificamente. Por exemplo, se a partir de uma marcação para o
dançarino entrar em cena com um andar descontraído e a expressão facial de
tranquilidade e bem estar, e pouco antes de entrar recebe uma notícia de perda familiar.
A tarefa de manter a expressão facial de tranquilidade se tornará mais difícil e o
dançarino tentará mesmo assim, cumprir a determinação prévia da cena, enquanto o
palhaço deve estar preparado para se aproveitar do inesperado ou de qualquer erro em
cena. Mas precisa desenvolver a habilidade de mostrar ao público, preferencialmente
sem o uso da fala, porque está agindo de tal maneira. Por exemplo, se não deu certo
esconder-se com uma cortina porque ela é muito pequena, tentará se esconder com a
outra cortina mesmo que ela seja idêntica à primeira. Este desajuste do modo de se
relacionar com o mundo causa o riso, e assim, a graça está no corpopessoa, no modo
como formula suas ideias e as situações que se envolve por consequência. O riso é uma
consequência do seu modo de ser/estar no mundo.
2.2.2 Corpodançarino
No contexto da contemporaneidade, além da variedade nos modos de ser
palhaço implicados por fatores como linha de formação e conhecimento técnico, há
também uma diversidade nas finalidades com que o estudo e o treinamento da técnica
são aplicados. Esta ampliação se deve em parte às novas abordagens surgidas entre as
décadas de 70 e 80, com o movimento de renovação das artes circenses (REIS, 2013, p.
47). Esta pesquisa, por exemplo, tem por objetivo discutir a integração do treinamento
do palhaço com a investigação de movimento em dança. Logo, torna-se necessário
refletir também sobre aspectos e modificações do pensamento em dança que vem se
construindo nas últimas décadas, e que configuram o contexto atual da dança
contemporânea, bem como da pesquisa em dança. Integram o referencial para o
entendimento sobre a arte do palhaço proposto por um corpo dançarino e, mais
especificamente, com o objetivo de avançar na discussão do denominado estado de
palhaço.
A dança contemporânea busca novas qualidades e formas de organização do
movimento no corpo dançarino, e torna cada vez mais latente o questionamento do que
é movimento de dança. De modo a contribuir com a discussão, Domenici (2008) afirma
que
58
No pensamento contemporâneo essa noção deve incluir também
micro-movimentos articulares ou a simples modificação dos estados
tônicos do corpo: modificações sutis provocadas pela modulação da
tensão muscular que modificam a qualidade do movimento.
(DOMENICI, 2008, p. 1).
A professora e pesquisadora fortalece o argumento de que o trabalho de corpo
que enfoca a percepção de seus estados e suas modificações está entre as características
que constituem a dança contemporânea hoje. Neste contexto, a valorização do corpo em
cena se dá de modo distinto quando da aplicação de técnicas codificadas historicamente
como o ballet clássico e as técnicas de dança moderna. Em consequência, o treinamento
para o dançarino contemporâneo é muitas vezes determinado e codificado pelo próprio
processo de criação em acordo com as necessidades emergentes das questões de
pesquisa. Também, o entendimento de dança exposto implica que a forma de
pensamento que rege o processo é contemporânea e sendo assim, não carrega consigo
nenhum protocolo rígido de regras e/ou combinações que determinam previamente ao
processo, as qualidades resultantes na obra artística. Desta forma, o processo de criação
ganha novas atribuições que o tornam tão importante quanto seu resultado, aproximando
a dança do movimento que se configura nas artes a partir da segunda metade do século
XX. Entretanto, o que sempre provocou inquietações pessoais é o fato de que em ambas
as artes que são o foco deste estudo, o palhaço e a dança, o espaço de experimentação
de conceitos e possibilidades é o próprio corpo. Segundo Reis (2013)
Uma das chaves da arte da palhaçaria tem sido como extrair o riso das
plateias através da exposição de uma dramaturgia que parte da
realidade das vidas de seus praticantes: os palhaços. Talvez este seja
um dos motivos para que o próprio corpo desses artistas tenha se
tornado o território privilegiado das descobertas de sua comicidade.
(REIS, 2013, p.26)
É um modo, mesmo que não intencionalmente, de reafirmar a não separação em
aspectos da pessoa e aspectos do corpo. A pessoa é o corpo. O corpo é personalidade,
emocional, racional, tudo junto. É corponectivo.
Corpo dançarino aprendiz de palhaço. Inevitavelmente o terreno de inquietações
e resignificação do corpo na prática de dança contemporânea suscitou uma série de
perguntas sem respostas diante dos exercícios de treinamento. A intensidade das
experimentações corporais nos processos de iniciação à arte do palhaço provocam
verdadeiros encontros com qualidades de movimento adormecidas em um corpo ainda
59
modulado por uma série de códigos advindos de modos de fazer dança. Principalmente
ao código do balé clássico correspondente ao treinamento mais intensivo ao longo de
muitos anos.
Uma dificuldade encontrada é a de se dispor e se movimentar sem vislumbrar
uma continuidade sequencial de movimentos, muito empregada na dança, ou pré-
organizar instantaneamente uma intenção de movimento, ou ainda, libertar-se do
repertório advindo dos modos de organização do corpodançarino apreendidos em uma
vida inteira de dança. Mas ao mesmo tempo, a inquietude de perceber que a
investigação corporal no treinamento do palhaço muito se aproxima da pesquisa e
criação em dança contemporânea. Até compreender que, nos dois casos, o corpo é de
fato o lugar de pesquisa e experimentação, porém regidos por lógicas e finalidades
completamente distintas. O palhaço busca em sua investigação alcançar um corpo
cômico e o que o público espera quando vai assisti-lo, é o riso. E na dança
contemporânea, o dançarino busca alcançar uma forma de investigação do movimento a
partir da proposta, do estilo ou das intenções do diretor da obra, enquanto o público da
dança contemporânea já não sabe mais exatamente o que esperar quando vai assisti-la,
tão ampla é a variedade de suas concepções e modos de fazer.
A descoberta pessoal da lógica de cada palhaço se dá pelo trabalho corporal e
será ela a orientadora de outras descobertas, junto ao desafio de sustentação dos estados
de ludicidade, a exemplo das reações corporais que são tão importantes para evidenciar
esta lógica pessoal para o público. Talvez mais uma distinção da prática da dança para o
palhaço esteja nas relações de cada um com a criação e a performance em cena. Deste
modo, argumentamos que no corpopalhaço a performance engloba a criação como uma
continuidade de seu processo e pesquisa em ato, pois ele deve estar apto a se relacionar
com as reações do público e assim, sua improvisação em cena nem sempre pode ser
prevista no roteiro. Enquanto na dança contemporânea, embora também seja um
processo em continuidade, a criação habitualmente é compreendida como anterior a
performance. Sem desconsiderar a existência de trabalhos de dança que se propõem ao
ato da criação em cena, mas apenas reconhecendo que em maior parte das obras haverá
um roteiro pré-organizado com as especificações dos momentos em que poderão ocorrer
improvisações, associado a elementos de cena como iluminação, objetos, etc.
Nas experiências de dança o estado de presença, ou estados de ludicidade,
podem ou não acontecer, mas raramente é uma condição para o seu acontecimento.
60
Mesmo quando estados de presença estão no cerne da proposta, das questões colocadas
para a cena ou para o processo de criação, a dança sempre acontecerá em cena, com ou
sem estados específicos. Sem a intenção de diminuir, no entanto, sua importância para a
dança ou desconsiderar que as qualidades da mesma serão modificadas. Mas este não é
o caso do palhaço. Ele acontece na reinvenção de estados de ludicidade que
transbordam em um corpo cômico, sem limites, até provocar o riso da plateia. Caso
contrário, o palhaço cairá na teatralização estereotipada correndo o risco de tornar a
cena artificial.
Contudo, com a observação de que os jogos e as brincadeiras aplicados ao
treinamento do palhaço contemporâneo operam como modo de experimentação e
descoberta desses estados, definimos a capacidade de jogo (RYNGAERT, 2010) como
o primeiro eixo de pesquisa do palhaço para a dança.
2.3 A capacidade de jogar, dança?
E aí o aprendiz de palhaço percebe que ele não tem
outra escolha a não ser continuar caminhando.
(PUCCETTI, 2006, p. 25)
Como esclarecido ao longo deste capítulo, compreendemos a importância dos
jogos na formação do palhaço contemporâneo. Todavia, uma das características desta
pesquisa é a convergência de autores que deslocam o foco de suas reflexões da atividade
para a pessoa que a vivencia, ou mais especificamente para os processos do corpo em
determinadas situações.
Pesquisadora em dança, Pinho (2009) se interessou nas especificidades da
improvisação e motivada por certo desconforto com a observação de que as questões de
envolvimento coletivo demandam em geral, soluções coreográficas convencionais que
muitas vezes acabam por imprimir na improvisação características de outros modos de
criação em dança. A interação coletiva e a busca de soluções mais apropriadas para a
improvisação são seus focos de pesquisa. A estruturação de jogos-cena é o que propõe
como solução coreográfica para improvisação, pois argumenta que ao mesmo tempo em
que orienta o desempenho dos interpretes, os mantêm integrados a ―uma ação conjunta
dentro de um campo aberto de escolhas‖ (PINHO, 2009, p. 11). Embora ludicidade não
61
seja um conceito utilizado e nem mesmo um tema de interesse da pesquisadora, as
situações elaboradas são, à luz desta pesquisa, reconhecidas como propulsoras de
estados de ludicidade para os intérpretes, a partir das qualidades de presença e prontidão
que possibilitam. É um exemplo de utilização de estruturas de jogo como organização
coreográfica para a cena improvisada de dança.
Dois autores ocupam lugar nuclear na compreensão conceitual dos estados de
ludicidade: Luckesi (2005) e Damásio (2011). O primeiro valoriza o modo como as
experiências são vividas por cada um e, sobretudo, as sensações que provocam no
corpo. Desta forma, permite delinear um campo amplo de possibilidades de
experimentação da ludicidade e redefini-la tendo em vista os processos corporais que
resultam do envolvimento da pessoa com as atividades que lhes são propostas. A partir
da associação das questões de Luckesi (2005) com os estudos de Damásio, que
facilitaram o entendimento sobre estados corporais e os processos da consciência,
chegamos à indicação do que denominamos de estados de ludicidade, como um dos
eixos de pesquisa do palhaço para a dança. A partir desta rede conceitual, do
reconhecimento sobre o papel da integração de jogos e brincadeiras no treinamento do
palhaço contemporâneo e mais ainda, do desejo de transgredir o jogo como
possibilidade de organização de cena, chegou-se à definição do segundo eixo de
pesquisa: a capacidade de jogar.
Da área teatral, Ryngaert (2009) se preocupa especialmente com a relação das
pessoas com o jogo e com o mundo, provocando também para uma mudança de
perspectiva nas discussões sobre o jogo. A leitura deste autor permite esclarecer modos
de fazer teatro em que as preocupações convergem com os dizeres de Pinho (2009).
Assim, são como um fio condutor nos processos de criação e estruturação da cena: o
não enrijecimento em estruturas pré-organizadas e o não esvaziamento em decorrência
da falta de propósitos claros. Ryngaert (2009) também apresenta preocupações muito
próximas às da arte de palhaço do ponto de vista pela qual ela é compreendida nesta
pesquisa em dança, esclarecendo aspectos que podem estar presentes também em
proposições para o trabalho do artista em geral, e não somente para o palhaço.
O Lume Teatro é também um exemplo, no qual os princípios éticos e técnicos
são desenvolvidos tendo em vista o trabalho de corpo em sua mais ampla compreensão,
a partir dos fundamentos da não interpretação. As especificidades do palhaço
caracterizam apenas uma entre as vertentes de pesquisa do grupo.
62
Deste modo, para desenvolver a capacidade de jogar como eixo de pesquisa do
palhaço para a dança, serão abordadas primeiramente as distinções entre técnica de
treinamento e técnica de representação discutidas por Burnier (2009). Entretanto, sem
nos dedicar à nomenclatura e suas origens, nos interessa especificamente o
entendimento de treinamento e a relação que descreve como inevitável entre estas duas.
O autor afirma que estão entrelaçadas, pois o treinamento deve preparar o artista na
técnica dentro das opções artísticas e estéticas da obra em construção. ―Ou seja, as
técnicas estão vinculadas às suas expressões artísticas‖ (BURNIER, 2009, p. 171) e no
caso do teatro, tanto a técnica de representação como a de treinamento, está vinculada a
sua forma de expressão. Como o exemplo citado pelo autor, para uma representação
teatral de um texto expressionista não faria muito sentido utilizar de técnicas realistas. E
na expressão artística da dança, de que modo podemos pensar essa relação? Certamente
será muito diferente se a referência for dança contemporânea. Existem muitos grupos
que em cena trazem a dança contemporânea, mas em seu treinamento utilizam de
técnicas como o ballet clássico, dança moderna de Graham, entre outros. Mas se for o
caso de uma encenação de um ballet de repertório, o treinamento deverá ser o próprio
ballet. A relação entre o que se treina e o que se dança em cena pode ser explicada de
diversas maneiras. Uma vez que não foi definida anteriormente a estética de dança a ser
apresentada, mas sim o que se quer no treinamento para criação dessa dança, o desafio
aqui está na reflexão de quais elementos da formação do palhaço podem se constituir
como componentes para um treinamento em dança, tendo em vista a (co)geração de
estados de ludicidade. Para isso no dedicaremos agora, a compreensão do que vem a ser
a capacidade de jogar, bem como aos elementos que a integram.
Com o foco na compreensão das relações que as pessoas criam com o jogo,
Ryngaert (2009) o define como uma zona intermediária que funciona como campo de
experimentação criativa. Para alcançar esta reflexão propõe como parâmetro de
compreensão, os modos de experiência da criança com o jogo e deste ponto de vista,
podemos perceber que há também uma mudança de perspectiva sobre o espaço-tempo.
Assim como autores mais tradicionais sobre o assunto, Ryngaert (2009)
considera que um jogo tem entre suas características marcantes, o espaço-tempo
definidos, onde e quando começa e termina. E se refletirmos sobre a atitude da criança,
o espaço-tempo em que ocorre continua sendo definido, mas quem o define é a própria
63
criança. Muitas vezes, um jogo acaba quando ela se desinteressa por ele ou quando
surge outra brincadeira, que pode ser uma transformação da primeira. Aí o jogo não terá
finalizado, mas haverá se transformado em outro. Da mesma maneira ocorre com o
jogador que, ao conquistar o aumento da sua capacidade de jogo, vive cada vez mais
intensamente a imersão nesta zona intermediária de experimentação. Denomina de
intermediária porque considera que o jogo não é nem aquilo que ocorre no corpo do
jogador, e nem é a situação ou a própria atividade, mas é um espaço potencial, o que
está no ―entre‖, nas relações e tensões que se constroem. Assim, transita entre o real e o
imaginário, constitui-se como uma possibilidade de experimentação do real com a
diminuição de seus riscos, como acontece com a criança que permite que uma
brincadeira se transforme em outra, pela fluência criativa. Para Puccetti (2006, p. 25) o
tempo de sustentação do jogo é o tempo que o artista consegue se manter disponível, no
estado de palhaço, de jogar na lógica do palhaço.
Ricardo Puccetti (1999) em um de seus artigos faz menção a uma concepção de
palhaço cuja metodologia de criação abrange a uso de máscaras e que muito se
assemelha a esse espaço potencial de experimentação. Afirma então que ―o clown, para
Sue Morrison13
, não é um estilo, é o espaço de onde você atua, espaço onde tudo é
possível, onde nada é fixo. O clown existe na relação entre as máscaras e a platéia, ele
está "entre".‖ (PUCCETTI, 1999, p. 92). É como o entendimento do espaço mágico14
proposto por Michael Kennard, que conduz ao entendimento deste espaço do entre,
como uma espécie de vínculo que se cria entre artista e público, como uma zona de
sobreposição de fluxos, uma zona de encontro.
Uma vez considerado o jogo como a zona intermediária, o que está no entre, está
afirmando também o espaço do coletivo, o ambiente que se cria e configura o espaço-
tempo chamado jogo. Por esse motivo o engajamento e concentração de cada jogador
atuam como aspectos favoráveis à criação deste campo de experimentação.
Vejamos novamente um exemplo citado no capítulo um sobre o jogo da bola
imaginária. Praticá-lo em grupo, fora do contexto da sala, exigiu um engajamento e
concentração muito maior e observou-se que isto possibilitou de fato o aumento da
13
Sue Morrison é internacionalmente reconhecida como professora orientadora de trabalhos de clown e
bufão, performer experiente, diretora The Theatre Resource Centre, na cidade de Montreal – CA, coordena o
curso conhecido com O Clown através da Máscara, em continuidade a metodologia de Richard Pochinko.
14 Capítulo 2, p. 55.
64
capacidade de jogo que, como uma via não apenas de mão dupla, mas de muitas mãos,
potencializou o próprio jogo. De tal modo que diferentes formas de brincar com a bola
foram surgindo espontaneamente no decorrer da atividade. O campo de experimentação
criativa estava instalado e uma vez que bola (imaginária) foi lançada para o alto no
centro da roda, sem ser direcionada a nenhum outro jogador, todos compreenderam de
imediato que a bola seria então, de domínio daquele que a alcançasse primeiro. Mas
como saber quem alcançou primeiro uma bola imaginária? É uma negociação
decorrente do fluxo criativo em curso. É o jogo sendo reinventado mais uma vez. Muito
embora esta não seja uma experiência de dança especificamente, é imprescindível que
ela ocorra, com a ―bola imaginária‖ ou qualquer outro jogo em grupo, para gerar o
conhecimento no corpopessoa tanto dos estados como da capacidade a ser desenvolvida
para a dança, enquanto modo de agir.
Ryngaert (2009) ao defender que não devemos nos enrijecer em regras de
funcionamento nem do processo, nem do produto, argumenta que a capacidade de jogo
implica especialmente outras formas de relação entre processo e produto.
Consideremos, portanto, a abertura para um público como uma
possibilidade, não como um objetivo final que deve ser atingido a
qualquer preço, sobretudo em detrimento dos indivíduos. O
acabamento de um trabalho (sempre provisório) é uma eventualidade,
não uma exigência que impõe a ditadura de resultados visíveis. (RYNGAERT, 2009, p. 32).
Desta maneira, nos interessa as relações que constrói entre improvisação como
técnica de treinamento, desenvolvimento da capacidade de jogo e as possibilidades de
interação com o público que podem ou não gerar modificações na cena. Porém, em
divergência
O clown se alimenta dos estímulos que vêm de seus espectadores,
interagindo com eles, numa dinâmica de ação e reação. Essa interação
com os espectadores e também com outros clowns significa uma
possibilidade de alteração da sequência das ações do clown.
(BURNIER, 2001, p. 219).
A afirmação esclarece a abertura e disponibilidade ao outro, aos estímulos que
vem da plateia como uma condição na atuação do clown, mas assume a alteração de seu
roteiro ou sequência de ações como uma possibilidade decorrente dessa abertura.
Mesmo quando o palhaço apresenta uma cena cuja partitura é toda codificada
65
sequencialmente, ele deve manter-se neste estado de abertura, no estado de presença
capaz de reagir a qualquer estímulo do ambiente. A partir da interação dessas duas
perspectivas, o treino que resulta no aumento da capacidade de jogo é considerado como
uma forma de conquistar habilidades de interação, ou desenvolver uma atitude de
disponibilidade com o público.
A imersão no espaço potencial de criação é referida também por Ryngaert
(2009) como um ―estado de jogo‖ ao qual o artista permite abandonar-se na medida em
que alcança hábitos de concentração. Assim, discute mecanismos pessoais que
influenciam tanto no aumento da capacidade de jogo quanto podem frear a possibilidade
de se empenhar nele. Esses mecanismos serão apresentados a partir de um recorte em
função das convergências com aspectos encontrados nas Iniciações em palhaço, bem
como para direcionar o debate para a dança.
A discussão que se apresenta no primeiro capítulo através da pesquisa de Pinho
(2009) evidencia a dificuldade dos dançarinos de sustentar o jogo proposto em função
de uma preocupação exagerada com a forma e a estética do movimento. Preocupação
esta, muito comum no bailarino de formação técnica convencional. Para Ryngaert
(2009) seria uma forma de negação do jogo em consequência da própria dificuldade de
jogar, que pode ser escondida em seu ―saber-fazer‖. Na dança, além do exemplo de
Pinho (2009), podemos relatar que, em geral, dançarinos que têm essa dificuldade de
jogar, quando convidados ao espaço potencial de experimentação, utilizam-se de ―cartas
nas mangas‖, de ações e movimento que já dominam, mantendo-se numa zona de bem-
estar que ilusoriamente os protege de qualquer constrangimento, ou do sentimento de
ridículo.
A capacidade de jogo de um indivíduo se define por sua prontidão de
levar em conta o movimento em curso, de assumir totalmente sua
presença real a cada instante da representação, sem memória aparente
daquilo que se passou e sem antecipação visível do que irá ocorrer no
instante seguinte. (Ryngaert, 2009, p. 54-55).
Essa compreensão parece muito próxima à descrição de Puccetti (2006) sobre o
estado de presença do palhaço, bem como se aproxima de Damásio (2011), em relação
ao fluxo de consciência. Neste sentido, quando nos mantemos atentos ao aqui agora, o
66
self central está mais atuante na ação, sem exigir habilidades de memória e raciocínio
elaborado sobre o mundo o cerca.
Uma qualidade comumente atribuída ao palhaço é a ingenuidade, que aparece
em Ryngaert (2009) como um dos mecanismos que contribui para o aumento da
capacidade de jogo e, portanto, é mais um argumento para considera-la um eixo de
pesquisa. O autor entende como ―ingenuidade a capacidade do jogador de não antecipar
o comportamento do outro mediante suas próprias reações. Ainda aqui, trata-se de estar
presente no instante, portanto, de fingir ignorar o que vai se passar, a ponto de toda vez
dar a impressão de uma descoberta‖ (RYNGAERT, 2009, p. 57). Embora pareça
contraditório quando utiliza o termo ―fingir‖, referencia aspectos que vimos discutindo
como ―dar a impressão de uma nova descoberta a cada vez que realizada uma mesma
ação‖ e assim, argumentamos que trata exatamente da atitude de se dispor a esperar que
as reações aconteçam, mesmo quando seus resultados já são conhecidos. Coloca a
ingenuidade como uma qualidade necessária quando se vive o jogo como campo de
experimentação, para gerar a possibilidade de se surpreender e surpreender ao outro.
Utilizando o termo pureza aparentemente como um sinônimo de ingenuidade,
um dos dançarinos da Paraboléu Cia Cênica relata sobre sua experiência com jogos,
relacionando-a com mudanças de estado: ―Estando neste estágio de pureza, meu corpo
começa a perceber as vibrações do ambiente e começa a reagir às pequenas coisas que
vem ao meu encontro‖. A relação que cria entre ―pureza‖ e a capacidade de reação é
muito clara.
Quando Ryngaert (2009) apresenta suas reflexões sobre a ingenuidade como
propulsora da capacidade de jogo, associada a não antecipação, deixa transparecer
similaridades com outro elemento que integra a investigação para o corpopalhaço: o
impulso. Quando afirma que ―o engajamento no jogo exige uma mobilização rápida de
todos os sentidos, sem antecipação‖ (RYNGAERT, 2009, p. 57) se aproxima das
exigências de reagir com prontidão sem permitir o espaço-tempo da reflexão para
depois colocar-se em movimento no espaço.
Ferracini (2003, p. 103) utiliza-se das compreensões de Grotowski para definir
o impulso como aquilo que precede imediatamente a ação. Mas, a partir do
entendimento de corponectivo, estamos então, afirmando que o impulso e a ação são
67
concomitantes, exceto quando há uma pausa reflexiva para a tomada de decisão.
Todavia o mais importante é que se refere ao impulso para demonstrar e explorar o
―enraizamento‖ do movimento no corpopessoa. Puccetti (2006, p. 23) quando aborda o
uso da exaustão em sua metodologia, explica que o faz em busca de ―diminuir o lapso
de tempo entre o impulso físico e a concretização da ação no espaço‖ (PUCCETTI,
2006, p. 23). Assim, podemos compreender pela indicação de ―seguir o impulso do
movimento‖ durante os exercícios, como uma indicação de permitir-se exercitar a
―capacidade de ―não-pensar‖ como uma condição para a ação, e somente ‗agir com o
corpo‘‖ (PUCCETTI, 2006, p. 23). Citação que embora dualista em sua estrutura
linguística, nos auxilia a tornar mais claro a intencionalidade das orientações dada aos
aprendizes, sabendo-se, no entanto, que agir e pensar constituem conjuntamente ações
cognitivas. Deste modo, a antecipação assim como o ―saber-fazer‖ é considerada como
um fator de intimidação da capacidade de jogo.
Por fim, para exemplificar outras qualidades que favorecem o jogo,
denominadas por Ryngaert (2009) como engajamento e mobilização, e relacioná-las
como co-geradoras de estados de ludicicidade do palhaço trazemos uma observação de
outro dançarino da Paraboléu Cia Cênica: ―É preciso acreditar no jogo para poder
acessar qualquer outro estágio que não seja cotidiano. Deixar-se inebriar pela
‗atmosfera‘‖. Quando se refere a acreditar no jogo, está tratando de estratégias para
alcançar o engajamento necessário para sustentar o jogo e manter-se em estados de
presença.
Revendo o entendimento de técnica de treinamento apresentado logo no início
deste subtítulo, e buscando deslocá-lo para a dança, seria necessário elencar os
componentes da dança que se deseja treinar para então elaborar um treinamento
adequado. Neste caso, com o objetivo de encontrar elementos do palhaço, a partir de
seus processos de formação e treinamento, que possam contribuir para a abordagem dos
estados de ludicidade do palhaço em dança, a capacidade de jogar se configura como o
segundo eixo de pesquisa. Diferentemente de Ryngaert (2009) denominamos aqui como
capacidade de jogar, no infinitivo, porque conduz ao entendimento da capacidade de
uma ação, que é jogar.
Consideramos, ao observar o campo conceitual elaborado neste capítulo, que o
aumento da capacidade de jogar pode resultar no aumento da capacidade de imaginação
68
e criação também nas práticas de dança. A exemplo das práticas da Paraboléu Cia
Cênica pôde-se perceber que alguns dançarinos, quando engajados no espaço-tempo do
campo de experimentação, demonstram sentir-se livres para a criação sem preocupar-se
com a qualidade dos resultados no juízo de bom ou mau, ou mesmo para uma
continuidade improvisada das sequências codificadas para treinamento. Estas atitudes
de criação começam a aparecer espontaneamente, no sentido de não ser solicitados, mas
são evidentemente resultantes do treinamento que vem sendo desenvolvido.
69
3. A PROFANAÇÃO COOPERATIVA
Profanação é o contradispositivo que restitui ao
uso comum àquilo que o sacrifício tinha separado e
dividido. (Agamben, 2009, p. 45).
No primeiro capítulo foram apresentadas algumas abordagens e consequentes
compreensões de jogos em dança. Foram citados exemplos do uso de jogos na
elaboração de estruturas coreográficas, como possíveis características de práticas de
improvisação ou para gerar um roteiro de cena. Sobre o assunto não nos faltam
pesquisas, referências e experimentos relacionados à criação da cena na dança e no
teatro. Nossa discussão tem como eixo de pesquisa a ludicidade do palhaço e assim,
propõe a capacidade de jogar e não especificamente os jogos como elementos
compositivos. Na pesquisa em dança, na qual se optou por compreender o palhaço em
seus modos de formação contemporâneos, a capacidade de jogar foi definida como um
eixo observado especialmente a partir das práticas de treinamento. Entretanto, o que
diferencia a capacidade de jogar do palhaço da capacidade de jogar de um ator ou de um
dançarino improvisador? Argumenta-se que é a atitude profanadora que opera como
motivadora de suas ações no jogo.
Para desenvolver esta reflexão, bem como na busca por compreender possíveis
implicações destas condições de atuação quando deslocadas para o fazer da dança, serão
apresentados na perspectiva de Giorgio Agamben (2007, 2009) os conceitos de jogo,
dispositivo e profanação. Em complementaridade ao entendimento de jogo elaborado
até então, constituem o referencial a partir do qual o seu sentido é recriado,
caracterizando as especificidades desta pesquisa.
3.1 Jogo, Dança, Dispositivos
Um fato é sabido sobre os jogos tradicionais, ou teatrais, que têm sido utilizados
como exemplos de pesquisa: sem a presença das pessoas o jogo não acontece. Mas,
além da presença, é necessário que essa tenha as qualidades de um estado de prontidão,
de alerta, que traz vivacidade e dinamismo à experiência, à ação de jogar, ou nas
palavras de Ryngaert (2009) engajamento e concentração. Assim, jogos e brincadeiras
70
são realizados nos treinamentos de palhaço como um caminho metodológico de
compreensão desta potencialidade de presença, bem como de outros elementos
considerados componentes dos estados de palhaço. Segundo Puccetti (2006) o estado de
palhaço ―pressupõe o jogo entre o palhaço e o público, ou seja, a capacidade do palhaço
interagir, utilizando seu repertório de ações, gags e de ideias, com cada indivíduo da
plateia‖ (PUCCETTI, 2006, p. 21). A afirmação esclarece que não se trata somente de
construir a cena no ato da sua realização a partir de uma relação de jogo. A cena pode
ser organizada previamente por um roteiro, ou simplesmente definindo uma ação que
configura um objetivo em cena, porém, as reações do público não podem ser
organizadas pelo artista previamente. Desta forma, este ―entre‖ o público e o palhaço é
o que constitui o jogo, definido anteriormente como a zona intermediária de
experimentação e criação (Ryngaert, 2009). Sendo assim, é um jogo ausente de
marcações e regras combinadas a priori entre os jogadores, é iniciado e sustentado pelos
estados de presença do artista, um jogo criado na cena onde ele deve estar apto a
responder a qualquer tipo de reação do público. Por exemplo, quando apresentado um
número clássico de palhaço denominado ―ping-pong de piolho‖ e utilizada uma piada de
ir até o público e escolher uma pessoa para catar um piolho. Como se o piolho do jogo,
na cena, tivesse fugido para outra cabeça fora do espaço da cena. A ação de buscar um
piolho entre o público foi incluída no roteiro de cena do artista, mas a reação do público
e da pessoa que foi escolhida naquele instante é um elemento surpresa e o palhaço deve
estar apto a reagir de modo proporcional ao que o público propõe (Puccetti, 1999, p.
92). Para o palhaço, desenvolver esta capacidade de jogar é importante para conquistar
o espaço do diálogo com o público e assim, gerar a zona intermediária de criação – o
jogo. É uma forma também, de afirmar o momento presente da cena, naquele espaço-
tempo finitos, com aquelas pessoas que colaboraram para acontecer dessa forma e não
de outra. São características e qualidades que definem o jogo a cada circunstância em
que ele ocorre, nos conduzindo novamente a questão dos ―qualia‖15
, relacionada aos
estados do corpo. Segundo Damásio (2011, p. 312) qualia diz respeito tanto aos
sentimentos que fazem parte de qualquer experiência subjetiva, quanto ao modo como
esses sentimentos são produzidos no corpo. Sendo assim, é a qualia que torna única
cada experiência.
15
Capítulo 1, p. 19.
71
A presença do público é sem dúvida, necessária para o palhaço, mas o jogo pode
não acontecer com o público. Entretanto, há a necessidade de criar a zona intermediária
de experimentação, e por mais que o público não experimente diretamente, ele terá a
sensação de experimentar junto. O palhaço vai jogar, vai encontrar uma forma de jogar
com objetos de cena, objetos do ambiente, de modo que o público vai se sentir
convidado ou participante de alguma forma.
Em Agamben (2007) o jogo é integrado à discussão como uma nova dimensão
do ―uso‖, e argumenta que as crianças e os filósofos é quem conferem esta nova
dimensão à humanidade. Entretanto, nos atentaremos especialmente à criança cujas
formas de ação podem ser consideradas uma referência importante para o palhaço. A
característica da ingenuidade muitas vezes presente nas atitudes da criança lhe confere
um lugar de disponibilidade nos modos de ver o mundo e com ele se relacionar. Ainda
em processo de conhecimento do mundo, ela age espontaneamente, ainda pouco
influenciada por julgamentos e preconceitos, no desconhecimento das leis e das
formalidades da vida adulta. Deste ponto de vista, a compreensão de ingenuidade
converge com o sentido apresentado por Ryngaert (2009), que se faz associada à
capacidade de não antecipar-se diante do comportamento do outro, como quem prevê
suas ações e reage premeditadamente. Este comportamento pode ser considerado
comum no adulto e, muitas vezes, ocorre por automatismos de resposta, pelo desejo de
minimizar o tempo de realização de uma tarefa, pelo receio das consequências do
comportamento do outro, por ansiedade, etc. A criança que está ainda mapeando e
organizando conteúdos dos primeiros contatos com o mundo, se coloca de modo mais
disponível no sentido de permitir-se experimentar e agir para então conferir as
consequências, ou sem preocupar-se com elas. Por isso
As crianças que brincam com qualquer bugiganga que lhes caia nas
mãos, transformam em brinquedo também o que pertence à esfera da
economia, da guerra, do direito e das outras atividades que estamos
acostumados a considerar coisas sérias. (AGAMBEN, 2007, p. 67).
A ingenuidade da criança é o que mantém vivo o que Lima (em curso ministrado
2011) denomina como ―olhar lúdico‖. Nós, adultos, perdemos a ingenuidade e o ―olhar
lúdico‖ sobre o mundo na medida em que nos limitamos a uma perspectiva de realidade
que enrijece os modos de fazer e diminui as possibilidades de ação, onde coisas sérias
não são passíveis de brincadeira. É muito comum um adulto tentar limitar a imaginação
72
da criança dizendo-lhe que ―não se brinca com coisa séria‖. Mas, com este estado de
disponibilidade nas formas de se relacionar, a criança profana transformando qualquer
coisa em brinquedo, conferindo-lhe um novo uso, e junto, um novo significado.
Podemos até avançar nesta direção problematizando se não seriam as crianças ainda
pouco capturadas pela gama de dispositivos a que Agamben (2005) se refere, pautado
na obra de Michel Foucault. O processo de adaptação social – ou adequação – se dá
mais intensamente ao longo da infância e adolescência na convivência em instituições,
na família, no aprendizado das leis, nos espaços coletivos, etc. Ou seja, como nos afirma
Agamben (2005) nas relações entre seres viventes e dispositivos.
Deste modo, a partir do momento que conhecemos um objeto e seu uso comum,
e lhe agregamos uma nova forma de uso estaremos gerando jogo no sentido proposto
por Agamben (2005). E na medida em que conseguimos compartilhar novos usos
conectando-se ao outro, alcançamos a zona intermediária de criação, que caracteriza o
jogo para Ryngaert (2009). Se considerarmos então, que agregar novos usos e
significados é, de modo geral, o que faz o palhaço, perceberemos que ele é de fato um
jogador.
Agamben (2007) se intriga sobre o uso e o papel do termo dispositivo na obra de
Foucault. Em busca de compreender com maior profundidade o termo em questão,
Agamben (2007) traça o que denomina por genealogia teológica, que configura uma
espécie de teoria sobre suas origens e as implicações práticas das mesmas que
sobrevivem até o mundo moderno. Interessa-nos, sobretudo, as reflexões que o
permitiram avançar filosoficamente ao conceito de profanação, central nas
considerações desta pesquisa em dança.
O nome genealogia teológica advém de um aspecto fundamental para a posterior
compreensão do modo como ações de profanação são proferidas e como se tornam um
problema, ou uma ausência, na contemporaneidade. É a herança teológica do problema
cristão da Trindade, que Agamben (2007) localiza ao encontrar o termo latino
―dispositio‖ utilizado como tradução do grego Oikonomia, que quer dizer administração
da casa. O autor afirma que o termo introduz o entendimento disseminado até hoje de
Deus dividido em ser - quando das coisas divinas - e ação - quando das coisas terrenas.
O que introduz também a separação, a cisão entre ser e ação como questão filosófica
advinda de uma concepção de Deus que irá legitimar por muito tempo inúmeras
práticas, religiosas ou não, da sociedade ocidental. É uma forma de separação que
73
regulariza especialmente o que é de um domínio outro, que não do homem e, portanto,
sagrado, daquilo que pode ser alcançado por ele e, portanto, de livre uso, profano. Por
exemplo, as noções de Aprender a Ser e Aprender a Fazer16
como instâncias separadas,
que permeiam de algum modo processos de formação do palhaço com os quais se teve
contato. O Ser parece estar separado como algo especial, equivocadamente como um
aspecto mais filosófico do que prático e o Fazer parece estar para a ação, e por isso
podemos relacionar como algo mais próximo, de domínio do homem comum. E essa
ideia pode ser reforçada ainda por outra questão: nem todos que se propõem ao processo
iniciático da palhaçaria alcançam realmente a descoberta do seu palhaço pessoal, ou
seja, é como se este Ser continuasse distante e separado, como uma esfera especial e até
então indisponível. No entanto, é para além de uma perspectiva dualista, uma visão
romântica sobre ser palhaço que o separa da vida em curso, embora a intenção das
experimentações na formação seja exatamente o contrário.
Para nós, o fato de maior importância no estudo das origens do termo
dispositivo, é que o termo Oikonomia já designava ―um conjunto de práxis, de saberes,
de medidas, de instituições cujo objetivo é de administrar, governar, controlar e orientar,
em um sentido em que se supõe útil, os comportamentos, os gestos e os pensamentos
dos homens‖ (AGAMBEN, 2005, p. 12). Deste modo, dispositivo, como tradução dele,
também aparece carregado desta compreensão de governabilidade, que cumpre o papel
de orientar comportamentos em nome de um bem maior. Também sinaliza que o
conjunto de saberes e práxis de governabilidade e controle já existiam associados às
noções de separação entre o ser e a ação.
O fato é que com toda a evidência os dispositivos não são um acidente
no qual os homens caíram por acaso, mas eles têm a sua raiz no
mesmo processo de "hominização" que tornou "humanos" os animais
que classificamos sob a rubrica homo sapiens. (Agamben, 2005, p. 13
– 14).
A ideia de governabilidade e orientação do pensamento dos homens também é
interessante para os objetivos de pesquisa. Porém faz-se necessário situar que o termo
pensamento é usado em sentido ampliado, como gestos, atitudes, comportamentos.
Entende-se que são todos eles processos do corpo e o uso dos termos separadamente
16
Capítulo 2, p. 51, 52.
74
pode nos induzir a compreensão equivocada de que comportamentos e gestos são
produzidos no corpo e o pensamento produzido por uma mente que age sobre ele.
Agamben (2005, p. 9) esclarece que ao propor o uso do termo dispositivo não
está focado em elementos específicos que compõem as estruturas de poder, mas na rede
que se estabelece entre estes elementos. Impulsionado pela necessidade de avançar no
entendimento sobre a questão, e transgredir em parte o contexto do termo Giorgio
Agamben (2005) identifica nas referências encontradas a possibilidade de ampliar ainda
mais a classe dos dispositivos e desenvolver a seguinte proposição: a divisão de tudo em
dois grandes grupos, os seres viventes e os dispositivos. Deste modo, considera o sujeito
como um terceiro grupo entre esses dois, resultante das relações entre os seres viventes
e os dispositivos. O que implica que não utiliza a expressão ―sujeito‖ como um
sinônimo de pessoa ou indivíduo, mas sim que sujeitos são produzidos na relação direta,
ou em suas palavras, no ―corpo-a-corpo‖ com os dispositivos. Neste sentido, processos
de subjetivação são aqueles que tornam sujeitos os seres viventes, uma espécie de
individuação produzida pelas formas de relação que cada vivente estabelece com os
dispositivos. Assim, o autor convida para um olhar diferenciado que envolve a
ampliação do entendimento de dispositivo, aproximando-o da realidade do mundo
contemporâneo e das relações de consumo.
Seguindo essa linha de pensamento vejamos exemplos de dispositivos a fim de
delinear os aspectos que nos interessam enfatizar para discutir atitudes profanadoras
como motivação na capacidade de jogar. As tecnologias, como telefones celulares e
tablets com capacidade de processamento para diversos aplicativos que nos incitam a
um ideal de liberdade e autonomia, assim como o acesso a portais de internet com uma
imensa variedade de conteúdos são exemplos de dispositivos do nosso cotidiano atual.
São dispositivos pelos quais somos capturados quase sem escolha, apresentados a nós
como possibilidades de interação com o outro e com outras culturas. Mas, de que ponto
de vista essas são verdadeiramente possibilidades de interação? Podemos ainda refletir
sobre as mídias como dispositivos, os sistemas de transporte de uma cidade entre outros.
Desta forma, nós, seres viventes somos incessantemente capturados por dispositivos que
tratam de nos governar e nos guiar para o bem (Agamben, 2005, p. 13). O bem parece
ser então um discurso que justifica ações de governabilidade que orientam
comportamentos na tentativa de garantir algum tipo de ordem.
75
Kásper (2004, p. 39) quando se refere à existência de valores superiores à vida,
está se reportando a essa rede que estabelece relações de bem e mal, que nos captura e
nos mantém submissos a uma ordem vigente, aos saberes ditos superiores, ao poder
instituído ao qual devemos seguir servindo. A esses mecanismos denomina como
paixões tristes, que implicam a separação de nós mesmos daquilo que podemos, de
nossa potência. De modo semelhante ao entendimento de dispositivos em Agamben
(2005), as paixões tristes são o mecanismo pelo qual o poder captura nossa potência. A
partir desta colocação, das paixões tristes como uma forma de repercussão dos
dispositivos em nossas vidas, tornou-se mais simples buscar exemplos na dança. Os
formatos de audição para grupos profissionais vigentes ainda hoje, ditam modelos de
corpo, de dança, de modos de vestir e se preparar para tal. Possível afirmar que são
paixões tristes na vida de muitos dançarinos, que diante das exigências se veem
afastados de sua potência, daquilo que ele pode (e quer) em sua singularidade enquanto
dançarino.
Silva (2012) afirma que ―os dispositivos, aparentemente inofensivos, agem na
forma de controle e poder com tom de invisibilidade e mudam nosso comportamento e,
consequentemente, os estados do corpo, ou seja, nós mesmos sem que nos demos conta‖
(SILVA, 2012, p. 37). Surpreendemo-nos então, ao verificar que ao contrário, ―o
palhaço não se deixa capturar pelos afectos tristes. Talvez seja isso que, em primeiro
lugar, o faça um libertário, fora da ordem, livre. Ele é ativo, alegre‖ (Kásper, 2004, p.
35). Não se trata de afirmar que dispositivos não atuem sobre o palhaço, mas eles agem
na valorização de sentimentos positivos, contribuindo para transgredir os valores que
enaltecem o bem aplicando punições sobre o mal. No jogo da cena, ele rompe com
padrões gerados pela atuação de dispositivos.
Uma vez compreendido que os dispositivos atuam no corpo, tentaremos
direcionar o foco para tais processos, mais do que às formas de articulação dos
dispositivos especificamente. A perspectiva exposta por Silva (2012) questiona de que
modo ―operam nos estados de corpo, e como o corpo reordena, reorganiza e transforma
isso em dança‖ (SILVA, 2012, p. 37), bem como questiona se é possível profanar ou
apenas compreender as modificações que imprimem no corpo. Ainda em concordância
com a perspectiva pela qual o termo dispositivo vem sendo apresentado, acredita-se que
a proliferação ou crescimento dos dispositivos é acompanhado pela igual proliferação
de processos de subjetivação, onde um mesmo vivente pode ser lugar de múltiplos
76
processos. Com alguns exemplos Silva (2012, p. 38) ajuda a esclarecer o que no corpo
denuncia o processo de subjetivação pelo qual o vivente foi capturado, como
chocólatras, usuários de ipod, de facebook, telespectadores de novelas, do jornal da
manhã, etc.
os dispositivos são assimilados pelo corpo, fundam outros modos de
organização neuromuscular, estabelecem hábitos e padrões de
comportamento e, consequentemente, modificam a paisagem corporal,
ou seja, os estados do corpo, e interferem, portanto, na dança em todos
os seus aspectos. (SILVA, 2012, p. 37).
Deste modo, nos parece que tudo que o corpo faz pode ser uma resposta à
atuação de dispositivos e, se assim considerarmos, os elementos de cena também podem
ser ditos como tal, visto que promovem mudanças no corpo. Por exemplo, a iluminação
de um espetáculo de dança comumente não permite ao dançarino ver o público, pelo
posicionamento de seus refletores, pela intensidade da luz, etc. O que para alguns pode
ser uma solução para características como a inibição, o medo do ridículo diante de uma
pessoa com quem tem maior proximidade. Entretanto, se for um espetáculo com células
de improvisação, que prevê a utilização de espaços entre o público, a luz deverá se
estender sobre ele também intervindo em todos os corpos, dançarinos, ou não.
Os argumentos de Kásper (2004) relativos à prática do clown, de que as formas
determinadas dizem respeito às relações de saber, e as regras coercitivas, às relações de
poder, contribuem para o entendimento de que ambas são determinantes dos modos de
existência em nossa sociedade. No diálogo com Agamben (2009) podemos então nos
perguntar: e aqueles que não se adéquam ou se opõem a formas e a regras da sociedade?
Kásper (2004) nos fala da capacidade que todos temos de fugir ao controle ou submeter-
se a ele, e nos apresenta uma terceira possibilidade, as regras facultativas que
―produzem a existência como obra de arte, regras ao mesmo tempo éticas ou estéticas
que constituem modos de existência ou estilos de vida‖ (Kásper, 2004, p. 26). Para
Kásper, ética, estética e política estão ligadas a criação de modos de existência e assim,
argumenta sobre a potência política que há na ação do palhaço. O palhaço utiliza a
nosso ver, como componente da capacidade de jogar, atitudes questionadoras das
formas de reprodução de saberes e poderes instituídos, que orientam a um modo de
existência como padrão. Questiona os poderes instituídos e as relações de poder no
exercício de desconstrução de uma lógica empregada socialmente como modo correto
de agir, juntamente com a valorização da ingenuidade, do grotesco, de estados de
77
miséria, do ridículo. O que interessa, é o entendimento do quanto os dispositivos podem
direcionar escolhas e/ou modos de vida que aparentam ser prioritariamente definidas
por cada um de nós.
Para Ryngaert (2009, p. 61) uma pessoa incapaz de jogar é aquela que conhece
de antemão todas as respostas e soluções, sua forma de relação com o mundo se dá a
partir de formas premeditadas e convencionalmente estabelecidas. Se considerarmos
que na sociedade contemporânea os dispositivos têm reforçado a reprodução de um
padrão de existência, quando nos deixamos capturar por eles, nos tornamos incapazes de
jogar. Da mesma forma, tornamo-nos pouco abertos à experimentação porque assim,
eliminam-se os riscos. No entanto, ―o espírito de jogo, por sua vez, consiste em
considerar toda nova experiência como positiva, quaisquer que sejam os riscos a que ela
nos expõe‖ (RYNGAERT, 2009, p. 61). Diante das questões que estão sendo expostas
sobre o jogo do palhaço de referência da pesquisa, a afirmação parece mesmo estar se
referindo especificamente a ele, a sua forma de relacionar com o mundo. Assume-se o
campo de experimentação como multiplicador das formas de relações com o mundo,
pois nos possibilita perceber que há sempre outras perspectivas, diferentes da nossa,
sobre uma mesma situação.
Na perspectiva metodológica do Lume Teatro a experimentação e o treino
técnico visam construir uma relação transformadora com o outro e com o mundo,
atuando na afirmação sobre o que foge – o padrão, a regra – como positivo. O treino
para redescobrir o “olhar lúdico” sobre o mundo, sem fechá-lo nele mesmo, um olhar
aberto à imaginação, a outras possibilidades de relação com ele.
3.2 Profanação no palhaço e na dança
Uma solução estratégica no corpo-a-corpo com os dispositivos para liberar o que
foi capturado e separado, é a profanação (Agamben, 2005). O conceito de profanação se
configura na continuidade dos estudos relacionados à origem do termo dispositivo e,
portanto, são compreensões indissociáveis.
A partir da consideração de que profano ―em sentido próprio denomina-se àquilo
que, de sagrado ou religioso que era, é devolvido ao uso e à propriedade dos homens‖
(Agamben, 2007, p. 65) podemos avançar na concepção do que vem a ser a profanação
ou do que implica o ato de profanar. Primeiramente, perceber a relação que se propõe
78
entre ―usar‖ e profanar chamando a atenção de que não está em questão a noção
utilitarista de uso que aplicamos a todas as coisas, mas uma forma especial de uso à qual
o que era sagrado pôde ser submetido. Um segundo aspecto é a observação de que o
profano decorre de uma separação social e historicamente instituída e que se legitima
em nossas concepções e práticas cotidianas: a separação entre duas esferas, o divino e o
profano; os deuses e o humano. Assim, em oposição ao profano ―sagradas ou religiosas
eram as coisas que de algum modo pertenciam aos deuses‖ (Agamben, 2007, p. 65) e,
portanto, na perspectiva da separação estavam indisponíveis ao homem. A profanação é
a restituição daquilo que lhe foi separado ao uso comum do homem, ou seja, se o
mecanismo de separação e captura nas sociedades modernas é um dispositivo, o ato de
profanar implica politicamente a desativação do mesmo.
Como vimos, a subjetivação decorrente das relações entre viventes e dispositivos
infere no corpo e age na orientação de comportamentos. Na medida em que novas
orientações são geradas os viventes desvinculam-se das anteriores e neste sentido,
podemos refletir sobre as necessidades criadas pela sociedade capitalista,
incessantemente lançadas no mercado e induzidas como objeto de desejo. Ao absorver
as necessidades de mercado, é como se fossemos nos distanciando da noção do que é de
fato necessário à criação e à manutenção de nossas vidas, o que então parece ser
denominado por Agamben (2005) como separação de si mesmo. Este fenômeno é
agravado pelo fato de que os dispositivos capitalistas atuam mais incisivamente pela
homogeneização e desta maneira, desativá-los torna-se uma tarefa um tanto difícil. É
como uma espécie de vínculo que se forma e, ao mesmo tempo, legitima a captura, que
é o próprio mecanismo de separação das esferas. Por exemplo, o uso dos chamados
―dispositivos móveis‖ para o acesso de dados disponibilizados nas redes. Quando não
estamos em posse de um, nos produz a sensação de estar desatualizados, de uma
comunicação não eficiente ou até de falta de mobilidade. Por outro lado, o fato de a
maioria das pessoas possuir um desses, diante daquele que não possui, evidencia a
presença de resíduos do sagrado especialmente quando o uso é um desejo. Entretanto,
na esfera capitalista o uso é substituído pelo consumo, que destrói a coisa, traçando
assim, a impossibilidade de usá-lo e, portanto, profaná-lo.
Um espetáculo de dança. Em seu formato mais comum, independente do tipo de
espaço em que se realiza, o modo de se colocar do dançarino gera delimitações entre
cena e público. Ambos convivem no mesmo espaço-tempo, porém, há uma sacralização
79
da cena que, operando como uma esfera separada do público, não pode ser
interrompida, modificada ou acessada em ato por um cidadão comum. Com exceção do
performer, e de espetáculos interativos, o dançarino ocupa na cena, um lugar intocável,
que ao final será devolvido para o convívio no profano. Totalmente oposto, o palhaço
tem como um dos efeitos dos estados de presença a restituição da própria cena, do
espaço mágico do sagrado, ao uso livre dos homens.
Quando Agamben (2007) propõe o jogo como (re)uso menciona especialmente a
possibilidade de restituir aquilo que já havia sido de livre uso, mas em algum momento
foi subtraído à esfera da sagrado. Quando expande esta reflexão ao sistema capitalista
mantém como parâmetro a ―usabilidade‖ da coisa. As relações que disponibilizam ou
subtraem as coisas do mundo dos homens, não dizem respeito somente a aspectos
religiosos ou sagrados no sentido etimológico do termo. Mas implica primeiramente
uma separação. Desta forma, se o jogo tinha a restituição do uso como uma finalidade, e
o uso na sociedade capitalista está em vias da inexistência ―fazer com que o jogo volte à
sua vocação puramente profana é uma tarefa política‖ (Agamben, 2007, p. 68).
Manter vivo o movimento de ser afetado e reagir é uma filosofia política. O
clown não pode parar esse movimento, não pode deixar de se afetar pelo que vem do
mundo, pelo que acontece ao seu redor e isso também deve sempre ser demonstrado ao
público, diferentemente do dançarino. O que não significa que as outras pessoas não
sejam afetadas pelos acontecimentos ao seu redor, mas evidencia que o clown traz uma
maneira específica de elaborar e demonstrar o que lhe afeta. Faz parte do aprendizado
de clown aprender a lhe dar com que nos afeta de maneira a exteriorizar a reação e não
mais escondê-la ou disfarça-la em prol de uma ética socialmente instituída, que nos traz
medo de ofender o outro, nos faz guardar ressentimentos de situações mal resolvidas,
etc. Ou ainda, em prol de um roteiro ou da estética de cena. Neste sentido, o que mais se
aproxima no contexto da dança é o dançarino improvisador.
Portanto, a potência política está na sua capacidade de jogar, restituindo ao uso
comum tudo aquilo que é socialmente compreendido como indisponível, reforçado em
nossos hábitos, etiquetas, normas de convivência, ou seja, por dispositivos. Potência na
compreensão elaborada por Kásper (2004, p. 29) é a capacidade de agir, de afetar e ser
afetado pelo outro.
Deixemos um pouco de lado a figura do clown, apreendendo apenas
com seu modo de existir, pensando na potência crítica desta política
80
específica do exercício da alteridade, exercida por ele – consistindo,
como vimos, na capacidade de agir sem guardar ressentimentos, sem
culpas, sem se deixar contagiar pelas paixões tristes, sem se vitimizar,
mantendo-se ligado à sua potência. (Kásper, 2004, p. 38).
Deste modo, a potência política do palhaço está sendo relacionada ao exercício de alteridade
que implica sua prática, visto em sua disponibilidade de brincar com aquilo que, em geral,
optamos por manter escondido em função do medo do julgamento do outro, medo de ser feio,
incorreto, antiquado. Este é o ponto de partida para considerar a alegria, ou as paixões alegres,
como base da potência de agir, afetar e ser afetado, desvinculando-a completamente do fazer
graça, do ser divertido ou engraçado. Segundo Kásper (2004), a alegria é ação e está ligada à
liberdade que o palhaço vive, experimenta, conectando-se novamente com sua potência,
entendida como poder de agir. São as paixões alegres um caminho para a atividade, a ação. E
por isso relaciona a alegria, ou o estado de alegria, à potência política nesta arte. Ao criar novos
modos de existência, sua lógica de agir pela alegria, questiona valores estabelecidos atuando
num plano político sutil; denuncia, por exemplo, o potencial autoritário que há em todos nós
quando evidencia em suas ações, o jogo de disputas pelo exercício do poder cotidianamente
vivido nas relações com o outro (Kásper, 2004, p. 38).
3.3 A atitude profanadora: gestando caminhos colaborativos
Com a discussão desenvolvida até o momento, esclarecemos que os dispositivos
atuam e operam como mecanismos de captura e separação, para então encaminhar a
discussão com um entendimento de profanação enquanto atitude. Mais especificamente,
junto aos nossos objetivos de pesquisa, refletir sobre a profanação do palhaço como
atitude que pode ser geradora de ações e práticas em dança.
Para situar a reflexão num contexto mais amplo, cabe ponderar que a arte
contemporânea traz aspectos de profanação como característica em comum em suas
obras, ou seja, podemos reconhecer o ato de profanar como parte de sua tarefa no
mundo, assumindo então, que profanar não é uma exclusividade da palhaçaria e nem da
dança enquanto arte. Desta maneira, formas de arte são (re)criadas, (re)inventadas e
disponibilizadas ao público de modo a intervir no cotidiano com provocações aos seres
viventes produzidas pela inversão de sentido de ações e objetos comuns. Formas de
provocação que por vezes, evidenciam e problematizam a disseminação dos processos
81
de assujeitamento, bem como questionam a passividade pela qual esses processos são
corponectados17
.
O palhaço restitui no espaço do círculo mágico um modo de relação pautado no
outro, no olhar, que vai à direção contrária do que somos conduzidos pelos dispositivos
de competição, de hierarquias hegemônicas, de modelos de corpo, de separação de
classes, de regulação dos padrões de obras artísticas, de padronização da vida e de
nossos comportamentos. É o caminhar juntos, convidar o público a ir junto com ele e
quem sabe se reconhecer na possibilidade de errar, de ser ridículo e poder assumir isso.
Segundo Lima (2013), o palhaço
é aquele que tem consciência da sua condição de imperfeito e a aceita.
Aquele que, diferente dos demais, na ânsia de ser o melhor, o mais
bonito, o bem sucedido, o perfeito, tal qual Deus, acaba por se tornar
invejoso, arrogante, injusto, preconceituoso e até cruel com os outros,
com o próximo e consigo mesmo. (LIMA, 2013, p. 13).
Lima (2013) afirma que se trata de um posicionamento perante a sociedade.
Mostrar suas fraquezas, seus defeitos, assumindo-se diferente do modelo ideal pelo qual
somos persuadidos com ação dos dispositivos, de fato é uma decisão e concordamos
que é um posicionamento diante da sociedade. Encontramos também em Burnier (2009)
a descrição do palhaço como aquele que ―é a encarnação do trágico na vida cotidiana; é
o homem assumindo sua humanidade e sua fraqueza e, por isso, tornando-se cômico‖
(BURNIER, 2009, p. 206). O que implica reconhecer o que a sociedade despreza
porque entende como defeitos e fraquezas, simplesmente como qualidades de um corpo
que almeja uma condição liberta de julgamentos, livre da necessidade de classificá-las
como boas ou ruins. Para o autor, aí está o caráter ―profundamente humano‖
(BURNIER, 2009, p. 209) do palhaço que conquista a disponibilidade recíproca do
público, bem como pode gerar processos de identificação, coparticipação, reflexão
crítica.
[...] acontecerá o encontro verdadeiro entre dois sujeitos e essa relação
se intensificará ainda mais quando o sujeito público percebe que o
sujeito palhaço, que brinca com suas imperfeições e fraquezas nada
mais é do que seu próprio reflexo, aceitando sua condição de humano
e passando a permitir-se rir de si mesmo. (LIMA, 2013, p. 20).
17
Derivação do conceito de corponectivo, capítulo 1, p. 20.
82
O fato de ―brincar‖ com esse aspecto humano, se expondo ao ridículo, denuncia
também o outro naquilo em que ele próprio é risível sem, no entanto, depreciar a vida
ou desqualificar qualquer pessoa perante a sociedade. É deste modo, uma ação muito
sutil, onde nem sempre o público se perceberá provocado desta maneira. Mas esta é,
sem dúvida, uma das contribuições do palhaço. Segundo Kásper (2004), nós
aprendemos a depreciar a vida e em função disso, vivemos paralisados no presente. A
autora defende que sentimentos como medo e esperança são a mesma coisa porque
ambos nos paralisam no presente em função de um possível futuro. Entretanto, o
primeiro nos mantém a espera de algo ruim que pode vir a acontecer, e o segundo nos
mantém a espera de algo bom.
Nas discussões de Agamben (2007), referenciado no estudo de Walter Benjamin,
o capitalismo é compreendido em analogia com a religião. Considera-se que o
capitalismo ―se desenvolve de modo parasitário a partir do cristianismo‖ (AGAMBEN,
2007, p. 70) e assim, é definido como religião da modernidade. Tem-se então, a
valorização do culto, mas neste caso não um culto ―voltado para a redenção ou para a
expiação de uma culpa, mas para a própria culpa‖ (AGAMBEN, 2007, p. 70). O
sentimento de culpa também é paralisante e é reforçado na sociedade capitalista, onde o
uso é substituído pelo consumo, tudo que é produzido e vivido é separado numa esfera
que não mais define uma divisão substancial, tornando o uso duravelmente impossível.
Podemos refletir sobre a culpa como um sentimento que contribui na manutenção do
sistema capitalista, por exemplo, pela crença de somos unicamente responsáveis pelo
sucesso que obtemos na vida, ou não, a partir de nossas escolhas no mundo. Muitas
vezes perpetuamos - inclusive como educadores – este discurso que funda o
individualismo nas práticas sociais, destrói pelo princípio mesmo do consumo o bem
comum, e instaura a propriedade como via única de direito ao uso. Porém, o consumo
na perspectiva de Agamben (2007) implica a não usabilidade, uma vez que este ―destrói
necessariamente a coisa, não é senão a impossibilidade ou a negação do uso, que
pressupõe que a substância da coisa permaneça intacta‖ (AGAMBEN, 2007, p. 72).
Assim, à sociedade do consumo foi retirado o direito ao uso, e com ele a possibilidade
de profanar. No entanto, a profanação se tornou um desafio urgente.
Os dispositivos que interferem no corpo de modo a estimular estados de
imobilidade, podemos dizer que é o que Kásper (2004) denomina por paixões tristes,
afirmando que advêm dos poderes estabelecidos em nossa sociedade, e nos fazem ter
83
sentimentos como culpa e medo, nos distanciando de nossa potência. A autora
argumenta ainda que a culpa, assim como o medo nos imobilizam, nos entristecem.
Culpa por tudo aquilo que desejo, mas diante de uma incapacidade pessoal não pode ser
consumido, o medo de errar perante uma sociedade que estipula padrões de
comportamento para uma vida dita bem sucedida e a esperança de se ter no futuro o que
não se tem hoje.
Em dança, percebe-se ainda haver essa preocupação em produzir o melhor, o
bem sucedido e o perfeito de um modo que muitas vezes desqualifica o corpopessoa que
não se enquadra, mesmo quando se assume estruturas e propostas flexíveis para sua
criação. Esse parâmetro pode ser o do próprio criador, coreógrafo ou diretor, que em
função de uma idealização sobre a obra, possivelmente irá desconsiderar um conjunto
enorme de outras qualidades. Portanto, acreditamos que mesmo em coletivos de dança,
trabalhos contemporâneos, entre outros exemplos, haverá um parâmetro do que é
melhor ou bem sucedido para aquela montagem específica. Faz parte do modo como
aprendemos estar no mundo, classificar, selecionar e por vezes, qualificar.
Ao trazer o palhaço como parâmetro de ação no mundo, estados de alegria
podem ser considerados como dispositivo de resistência nas relações de poder, pois
operam na valorização dos sentimentos positivos e são propulsores de criatividade, de
novos modos de ser. Deste modo, a alegria enquanto estados do corpo e potência
política ―não está necessariamente ligada ao riso, mas a algo que nos coloca em
movimento‖ (KÁSPER, 2004, p. 30), que nos impulsiona ao agir. Pensemos na criança
mais uma vez, como muitas vezes ela surpreende ao adulto de tal forma com colocações
fruto de sua ingenuidade, que proporciona uma mudança de atitude ou de perspectiva da
situação. Lima (2013) afirma que a criança, pelo fato de ser ainda menos influenciada
pela sociedade e seus vícios, é mais verdadeira nas suas atitudes para com o mundo.
Assim sendo, ―uma criança, nos primeiros anos de vida, quando pratica uma ação não
pensa nas consequências ou utilidade dessa ação. O que vai ganhar ou vai perder, se o
modo de executá-la é feio ou bonito, certo ou errado. Ela simplesmente o faz. A ação é
valida por si só‖ (LIMA, 2013, p. 29). E assim propõe novas formas de uso.
Tomasello (2010) traz como questão central de sua pesquisa a predisposição da
criança em cooperar. Segundo o autor, os comportamentos que demonstram sua
natureza colaborativa, aparecem relativamente cedo, antes que os pais tenham lhes
84
ensinado este tipo de conduta e é comum em crianças de diferentes culturas em uma
determinada faixa etária (TOMASELLO, 2010, p. 28). A partir das observações de
pesquisa afirma que
Casi no hay indicios de que en cualquier de las tres acciones que
mencionamos – ayudar, informar y compartir – el altruismo que
muestran los niños sea producto del intercambio cultural, de la
intervención de los padres ni de ninguna otra forma de socialización.
(TOMASELLO, p. 50).
Diante de todo o contexto discutido, o significado de altruísmo também nos
parece ter relevância. Um dos significados que encontramos no dicionário Houaiss
(2010) para altruísmo, além da compreensão do cuidado e preocupação com o outro, é
de um amor desinteressado ao próximo, o que se aproxima com algumas qualidades
descritas tanto em relação à criança quanto ao palhaço. O fato de amar
desinteressadamente, ou agir de maneira desinteressada sobre as consequências, ou
sobre os juízos de valor como afirma Lima (2013), está muito ligado a esses dois
universos.
Segundo Tomasello (2010, p.51), as influências da sociedade sobre a criança
dividem-se em dois conjuntos: a interação com os outros – se refere como experiência
direta – e o que aprende sobre interagir a partir das reações e correspondentes
resultados, e contribui para trazer novamente a reflexão sobre os níveis da consciência18
.
Se pensarmos nos níveis de complexidade do corpo, a experiência direta é mapeada no
nível da consciência central como um conjunto de ações e reações, possíveis de gerar
comportamentos. Mas no nível da consciência autobiográfica, ou ampliada, a
capacidade de reflexão sobre a experiência direta permite gerar novos conteúdos a partir
de combinações que levam em conta também o contexto, ou seja, as relações entre
experiência, reações e resultados já conhecidos e pessoas envolvidas. É o conhecimento
– como conteúdo da consciência – gerado na experiência, que somado aos juízos de
valor adquiridos ao longo do tempo, muitas vezes nos faz agir antecipadamente à reação
do outro.
A partir da compreensão da alegria como estados do corpo, afetar-se de alegria
implica agir na positividade, brindar a vida em suas condições reais, e perceber toda
característica simplesmente como uma qualidade, afastada do juízo de ser boa ou ruim.
18
Capítulo 1, p. 35,36.
85
Estamos falando então, da colaboração pela disponibilidade que há nos estados de
ludicidade, e não por algum tipo de obrigação em colaborar. Não é qualquer
colaboração, podendo assim, argumentar que são também estados colaborativos de
corpo.
O palhaço vem para rememorar coletivamente outros modos de vida, outras
possibilidades de existência no mundo que foge aos padrões e, porque não, nascem da
desativação de dispositivos, de formas de profanação. Vamos ao princípio mais básico
de todos para um palhaço: (re)aprender a olhar nos olhos. Uma tarefa que parece tão
simples e se tornou um desafio, porque quando olhamos o outro nos olhos estamos
também abrindo ―a porta‖ para que o outro nos veja. E esse, não é qualquer olhar, é
aquele inebriado de altruísmo, de amor desinteressado pelo outro. É uma forma de
recorrer à natureza colaborativa do ser humano e reafirmá-la enquanto caminho
possível.
A partir do entendimento de dispositivo apresentado por Silva (2012, p. 37), foi
esclarecido que do ponto de vista dos processos do corpo, quando este responde a ação
de dispositivos, tem sua paisagem corporal modificada, pois uma vez ―assimilados pelo
corpo, fundam outros modos de organização neuromuscular, estabelecem hábitos e
padrões de comportamento‖ (SILVA, 2012, p. 37). Um contradispositivo age do mesmo
modo, promovendo mudanças na paisagem do corpo, modificando o fluxo de
alternâncias de estados. A profanação constitui-se como o contradispositivo do palhaço
que ao gerar um campo de experimentação criativa, institui possibilidades de criação de
novos modos de coexistência.
Reconhecemos que a ação da profanação pode não se realizar por completo, no
sentido de alcançar a desativação de dispositivos, mas a atitude profanadora ocorre e
instaura, ao menos naquele espaço-tempo, outros modos operantes. Porém, o artista – o
palhaço – se vê transformado pela experiência que agrega a profanação enquanto atitude
perante a sociedade e forma de relação no corpo-a-corpo com os dispositivos. Quando
Lima (2013) afirma que ―quando uma pessoa vê seus defeitos como qualidades essa
pessoa não se preocupa com o julgamento do outro e nem julga a si própria. É uma
pessoa livre para fazer o que quiser e como quiser‖ (LIMA, 2013, p. 50), está
enfatizando uma mudança do olhar que se tem sobre uma mesma situação. É uma
mudança de perspectiva, sobre uma característica pessoal que passa de qualidade
negativa e merecedora de rejeição, nos âmbitos do julgamento, para tornar-se uma
86
qualidade positiva. No entendimento de Kásper (2004, p. 28) o que substitui o juízo
como um sistema de crueldade, é o combate que, ao contrário de depreciar a vida como
ele o faz, cria modos de coexistência.
Lima (2013) compreende o palhaço como um ser ―generoso, sincero, sem medo
de julgamento e o que é melhor, sem a predisposição de se julgar e julgar o outro que
está à sua frente‖ (LIMA, 2013, p. 13). De tal modo traz consigo a generosidade, uma
característica tão distanciada de nós mesmos por uma sociedade que valoriza a
propriedade material e intelectual - dispositivos. É a captura e a separação daquilo que
segundo Tomasello (2010) parece ser natural no corpopessoa quando ainda pequenos.
Depois de adultos, utilizamos da capacidade de reflexão para medir e ponderar o que e
como devemos compartilhar. Restituir a generosidade como forma de relação social, ou
de sociabilidade e troca de conhecimento, é uma ação política e um contradispositivo
operante. Para Kásper (2004) ―as dimensões ética, política e filosófica estão imbricadas
neste aspecto da afirmação da vida, da ação, no lugar da reação‖ (KÁSPER, 2004,
p.44).
O termo gestar tem entre suas acepções ―formar e sustentar (um filho) no próprio
organismo‖ (Dicionário Houaiss, 2010). E a nosso ver, o palhaço tem como desafio na
caminhada sustentar ética e filosoficamente atitudes que consideramos cooperativas na
gestação de um mundo diferente. Culturalmente, a gestação acompanha também a
noção de médio e longo prazo, que exige cuidado e maturação, e no caso desta pesquisa,
o cuidado e maturação dos componentes da ludicidade do palhaço definidos para a
investigação em dança - capacidade de jogar e atitude profanadora. Consideramos
também que estes componentes no palhaço atuam como micropolíticas numa sociedade
competitiva e individualista.
87
CONSIDERAÇÕES
Com o entrelaçamento teórico gerado a partir do contexto da dança e da
formação treinamento do palhaço, compreendemos que a utilização de jogos e
brincadeiras se faz necessária para que possamos reaprender a jogar e compreender as
capacidades cognitivas geradas por esta habilidade. Bem como a fim de alcançar a
capacidade de gestar paixões alegres em nosso dia-a-dia, de reaprendermos nos deixar
contagiar pelo fluxo criativo e aumentar nossa capacidade de contagiar ao outro
também. Enrijecemos-nos em padrões comportamentais gerados pela disseminação de
um modelo de sociedade, de sucesso profissional, de família, de pessoas perfeitas, ou
seja, disseminados por dispositivos. Ao mesmo tempo criamos nossas próprias
exigências como parte deste contexto, e nelas podemos encontrar e desenvolver
estratégias para gestar novos modos de existência. Concluímos que a vivência com
jogos e brincadeiras é necessária para estimular certos processos e estados do corpo aos
quais dificilmente dedicamos devida atenção. Então o jogo se caracteriza como
estratégia metodológica para facilitar a descoberta de estados de ludicidade na formação
do palhaço contemporâneo. O desafio de refletir sobre a utilização de jogos específicos
de treinamento do palhaço para apreensão de estados de ludicidade, foi alcançado nas
correlações conceituais que vem sendo experimentadas com a Paraboléu Cia Cênica. O
grupo se encontra uma ou duas vezes na semana para um treinamento técnico de dança,
bases acrobáticas e exercícios utilizados na formação de palhaço.
Com o trabalho da Paraboléu Cia Cênica consideramos que prática de jogos
promoveu o aumento da capacidade de jogar que parece ter potencializado a capacidade
de criação dos dançarinos, demonstrada ao longo dos encontros na continuidade das
sequências de movimento com a proposição inesperada de algo novo. Elabora-se a
reflexão de que a atitude de profanação é possível e é praticada em dança,
especialmente na contemporânea, no sentido de profanar as convenções advindas
historicamente de padrões técnicos, coreográficos, musicais, etc. Ou seja, no modo de
organização da obra como um todo, mas não especificamente como uma atitude
exercida pelos dançarinos durante todo o processo de criação, assim como na cena. Com
referência no palhaço que assumimos aqui como contemporâneo, a profanação se
configura como uma atitude pode-se dizer quase vital. Entretanto, argumentamos que
pelo fato de a profanação ter se tornado um desafio no mundo moderno, sentimos a
88
necessidade de extrapolar a sala de ensaio e construir ações de rua para vivenciar
atitudes de profanação para além das relações nos jogos. O que também converge com a
metodologia de treinamento do palhaço difundida pelo Lume Teatro, onde propõe a
prática de investigação corporal em sala combinada com o que denomina por saídas de
rua. Observando a trajetória em dança desde os relatos da introdução, experimentar na
rua as relações criadas no ensaio, vem se constituindo como um hábito de investigação e
parte componente do processo de criação. As saídas de rua possibilitaram a reflexão de
que subversão muito se aproxima da profanação, ao mesmo tempo em que a etimologia
da palavra subversão nos impulsiona a mais um questionamento, a partir da qual as duas
passam a ser opostas. Etimologicamente, a subversão incita atitudes de aniquilamento,
de destruição de algo, enquanto a profanação não opera contra, no sentido de eliminar
sua existência, mas opera no encontro dos diferentes que evidencia a multiplicidade dos
caminhos, coopera para que outras coisas venham acontecer e novos modos de
existência possam ser gestados. Este processo teve implicações artísticas, tendo como
um dos resultados, a sistematização de uma intervenção urbana de dança. A
intervenção, denominada ―Permita-me‖ é estruturada em duas grandes ações que trazem
como fundamento o estímulo da capacidade de jogar (Ação 1) e a atitude profanadora
(Ação 2). Na palavras de Agamben (2009), ―os viventes‖ de praças públicas são
induzidos a exercitar as duas habilidades nas formas de relação que o grupo propõe.
A prática de sala de aula – ensino do ballet – possibilitou a compreensão de que
estados de ludicidade podem ser proporcionados por uma metodologia de trabalho que
promova ao aluno a sensação de bem estar com o contexto, bem como com os próprios
erros. O medo de errar pode paralisar as pessoas e fazer com que recuem diante da
possibilidade de tentar, de se arriscar para então conhecer as consequências e aprender
com elas. Não nos permitimos a uma série de atitudes em função do medo do ridículo,
da opinião dos outros – ou do professor – com o olhar quase sempre direcionado ao que
pode ser negativo naquela experiência. Aprendemos a não investir na positividade.
Somos condicionados em nossa educação a acreditar que as consequências de um erro
serão provavelmente negativas. E esta forma de conhecer o mundo tem consequências
desastrosas nas práticas de ensino-aprendizagem. A repressão a diferentes formas de
existência não está mais nas palavras ou atitudes do professor, coordenador ou diretor,
ela está nos modos de organização da educação que priorizam em geral, uma única
89
visão de mundo. E conviver com o erro é também um aprendizado na busca artística
com o palhaço.
Outro resultado de pesquisa foi a sistematização de uma oficina para
arte/educadores que traz como questão central reconhecer e discutir implicações do
dualismo corpo/mente nas escolhas metodológicas dos professores. Denominada
―Corpo, Ludicidade e Arte/educação‖ a oficina integrou a programação do XXIII
CONFAEB (Congresso Nacional da Federação de Arte/educadores do Brasil) em Porto
de Galinhas, em novembro de 2013. Composta de exercícios de treinamento do palhaço,
devidamente contextualizados, a oficina provocou os participantes para a percepção dos
fluxos de consciência e partir deste eixo, algumas questões foram expostas no decorrer
da oficina como, por exemplo, porque temos a tendência em privilegiar alguns sentidos
e não outros nas atividades com educando de ensino regular. De forma muito sagaz,
uma das participantes, quando questionados sobre a separação mente/corpo, afirmou ser
essa uma questão muito enraizada em nossas práticas e por isso tão difícil de ser
transformada, ou mais adequadamente, transmutada.
A compreensão do que é ser palhaço implica mudanças éticas e filosóficas para a
vida em todos os âmbitos. Ao final do período de dois anos, as configurações estéticas
são ainda um processo com experimentações que indicam possíveis caminhos para a
montagem de um espetáculo. Enquanto às contribuições pedagógicas se configuram na
descoberta de uma metodologia de trabalho que se aplica a qualquer idade e técnica,
pois se trata de um modo de organização e acolhimento para o outro, ao utilizar
conteúdos e combinações técnicas. O envolvimento pessoal e artístico com o palhaço
trouxe contribuições pedagógicas especialmente no que tange às formas de tratar o
corpo em busca de estimular uma construção coletiva, que enfatiza atitudes cooperativas
e generosas, com a intenção de promover o aumento da capacidade de afetar o outro e
se deixar ser afetado enquanto modo de se relacionar nas práticas de dança e, por que
não, na vida.
90
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