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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - UFBA
FACULDADE DE DIREITO
Programa de Pós-Graduação em Direito
Doutorado em Direito Público
VALDIR FERREIRA DE OLIVEIRA JUNIOR
DIREITO FUNDAMENTAL TRANSINDIVIDUAL AO DESENVOLVIMENTO:
PROTEÇÃO INTEGRAL, SOLIDÁRIA E PLURALISTA
Salvador
2015
2
VALDIR FERREIRA DE OLIVEIRA JUNIOR
DIREITO FUNDAMENTAL TRANSINDIVIDUAL AO DESENVOLVIMENTO:
PROTEÇÃO INTEGRAL, SOLIDÁRIA E PLURALISTA
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito
da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial para obtenção do grau de
Doutor em Direito Público.
Orientador: Professor Doutor Manoel Jorge e Silva Neto.
Linha de Pesquisa: Proteção Constitucional dos Interesses Transindividuais.
Salvador
2015
3
O48 Oliveira Júnior, Valdir Ferreira de,
Direito fundamental transindividual ao desenvolvimento: proteção integral,
solidária e pluralista / por Valdir Ferreira de Oliveira Júnior. – 2015.
158 f.
Orientador: Professor Doutor Manoel Jorge e Silva Neto.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Direito, 2015.
1. Direitos fundamentais. 2. Políticas públicas. 2. Direito constitucional.
3. Solidariedade. I. Universidade Federal da Bahia
CDD- 342.085
4
TERMO DE APROVAÇÃO
VALDIR FERREIRA DE OLIVEIRA JUNIOR
DIREITO FUNDAMENTAL TRANSINDIVIDUAL AO DESENVOLVIMENTO:
PROTEÇÃO INTEGRAL, SOLIDÁRIA E PLURALISTA
Tese aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Direito Público,
Universidade Federal da Bahia pela seguinte
BANCA EXAMINADORA
Manoel Jorge e Silva Neto (Orientador) ____________________________________________
Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP
Universidade Federal da Bahia
Saulo José Casali Bahia_________________________________________________________
Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP
Universidade Federal da Bahia
Ricardo Maurício Freire Soares __________________________________________________
Doutor em Direito pela Universidade Federal da Bahia – UFBA
Universidade Federal da Bahia
André de Carvalho Ramos ______________________________________________________
Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo - USP
Universidade de São Paulo
Ana Paula de Barcellos _________________________________________________________
Doutora em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
5
Dedico esse trabalho aos destinatários e aplicadores das normas de direitos transindividuais
para que se diversifiquem as opções hermenêuticas de ampliação da sua força normativa e
possibilite a construção da cultura e sentimento interconstitucionais necessários à realização do
objetivo fundamental, valor supremo e direito fundamental, humano e comunitário
transindividual do desenvolvimento.
6
AGRADECIMENTOS
Agradeço inicialmente a Deus, por tudo que representa em minha vida.
Ao Professor Manoel Jorge e Silva Neto, o grande responsável por despertar meu interesse
acadêmico pelo pensamento solidarista e por continuamente desafiar-me com questões
essenciais à aproximação do texto constitucional brasileiro à realidade do seu povo, em
especial a proteção constitucional dos interesses transindividuais. Sou-lhe imensamente grato
pela paciência, zelo e preocupação demonstrados ao longo da pesquisa.
Aos demais Professores do Programa de Pós-graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da
Universidade Federal da Bahia por terem proporcionado momentos de profunda reflexão
teórica, com seus brilhantes ensinamentos e compromisso com a busca incansável pela
transformação do Direito num instrumento de libertação, solidariedade e realização da
dignidade existencial humana. Especialmente aos Professores Saulo José Casali Bahia, Ricardo
Maurício Freire Soares, Dirley da Cunha Junior, Heron Santana, Mônica Aguiar, Maria
Auxiliadora Minahim, Walber Araújo, Marília Muricy, Selma Santana, Alessandra Rapassi,
Paulo Pimenta, Edvaldo Brito, Paulo Cesar Bezerra, Rodolfo Pamplona e Fredie Didier Junior.
Aos Professores e Alunos da Universidade Estadual de Santa Cruz e Faculdade Independente
do Nordeste com quem pude compartilhar o exercício da docência de Direito Constitucional,
em especial aos Professores Carlos Valder do Nascimento, Eduardo Viana Portela e Laurício
Alves Pedrosa pelo convívio, amizade e companheirismo.
Aos Alunos e Servidores do PPGD/UFBA pela incansável luta no processo de construção de
um dos melhores programas de pós-graduação em direito do Brasil e do mundo.
Aos meus pais Valdir e Liete pelo exemplo constante de amor e presença em minha vida.
Minhas irmãs Áurea, Valéria e Vanilda, minha tia Zilda e meus queridos sobrinhos Marlon,
Giltinho, Leon, Túlio, Tácio, Morgana e Natália. Especialmente à minha esposa Mayara e aos
meus filhos Gustavo e Heitor.
7
We, heads of State and Government, ...are committed to making
the right to development a reality for everyone and to freeing
the entire human race from want.
UN Millennium Declaration
O que é irreversível no Brasil como no mundo é o empoderamento dos cidadãos,
sua autonomia comunicativa e a consciência dos jovens
de que tudo que sabemos do futuro é que eles o farão. Móbil-izados.
Manuel Castells
(In: Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet.
Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013).
8
RESUMO
No âmbito da tese se promoverá estudo de teoria dos direitos fundamentais, humanos e
comunitários em suas dimensões transindividual, dialógica e integral, buscando critérios
constitucionais para otimização da proteção ao desenvolvimento através das políticas
públicas e seu controle judicial. Propiciará, à luz pensamento solidarista e com
fundamento na teoria normativa das políticas públicas, reflexões críticas para aumento da
força normativa, social e política do núcleo axiológico fundamental da Constituição da
República Federativa do Brasil composto pelo sistema constitucional de proteção dos
direitos essenciais à dignidade existencial humana. O modelo contemporâneo de
organização e procedimento que se propõe constitucionalmente adequado ao controle
judicial das políticas públicas de desenvolvimento possui bases solidaristas. Assim,
compreender-se-á o desenvolvimento como solidariedade, inserido no contexto integral
de proteção dos direitos fundamentais transindividuais. A análise crítica constitucional,
normativamente orientada, permitirá a construção do modelo pluralista de alternativas,
oferecendo, à luz do pensamento possibilista, novos caminhos para maximização dos
efeitos substanciais das normas constitucionais, internacionais e comunitárias que
comporá o sistema constitucional integral de proteção do direito fundamental
transindividual ao desenvolvimento. O dever de progresso existencial, a vedação do
retrocesso, o controle da omissão dos poderes públicos, além dos critérios de aferição de
inexistência, ineficiência, deficiência e insustentabilidade econômico-social das políticas
públicas de desenvolvimento, serão, dentre outras, propostas de sistematização deste
modelo constitucional integral de proteção, com o consequente aumento da cultura
constitucional. O constitucionalismo em redes constitui novo mecanismo de
democratização dos debates e demandas sociais para a sociedade multicultural na teoria
de proteção integral, consolidando a ideia de cibercidadania e democracia digital . De
igual modo, impõe ao Estado a desburocratização e celeridade na resposta às novas
necessidades sociais, com “empoderamento” dos usuários do serviço público, transpondo
sua condição de sujeito passivo das políticas públicas para cidadão solidariamente
integrado ao processo de desenvolvimento. O Estado de bem-estar social clássico com
seu inadequado modelo de intervenção na sociedade não mais atende às perspectivas de
desenvolvimento do novo milênio. Torna-se fundamental a construção do modelo
sustentável de progresso existencial humano com bases solidaristas, com intervenções no
processo de distribuição das responsabilidades públicas e privadas relativas ao
desenvolvimento. O direito constitucional, para além da sua expressão literal, deve
constituir-se em fator positivo de estímulo ao desenvolvimento sustentável e solidarista.
PALAVRAS-CHAVE
Desenvolvimento humano; direitos fundamentais transindividuais; constitucionalismo integral;
políticas públicas; cultura constitucional; solidariedade; empoderamento; progresso existencial.
9
ABSTRACT
On the thesis will be promoted a study of fundamental rights theory, human and community in
their transindividual dimensions, dialogic and integral, seeking constitutional criteria for
optimizing the protection and development through public policies and its judicial control. It
will provide, in the light thinking solidarity and based on normative theory of public policy,
critical reflections to increase the normative, social strength and fundamental axiological core
policy of the Constitution of the Federative Republic of Brazil, comprises the constitutional
system of protection of essential rights to human existential dignity. The contemporary model
of organization and procedure that aims to constitutionally adequate judicial control of public
development policies has solidaristic bases. Thus, development will be understood as
solidarity, inserted in the full context of protection of fundamental rights. The constitutional
review, normatively oriented, allow the construction of the pluralistic model of alternatives,
offering the light of possibilistic thinking, new ways to maximize the substantial effects of
constitutional norms, international and community compose the entire constitutional system of
protection of the transindividual fundamental right to development. The existential progress
duty, the seal kicker, the default control of public authorities, in addition to lack of
benchmarks, inefficiency, disability and socio-economic unsustainability of public
development policies will, among others, systematization of proposals in this full constitutional
protection model, with a consequent increase of the constitutional culture. Constitutionalism in
networks is a new democratization mechanism of discussions and social demands for
multicultural society in the full protection theory, consolidating the idea of cyber citizenship
and digital democracy. Similarly, requires the State to reduce bureaucracy and speed in
responding to changing social needs, to "empowerment" of public service users, transposing
their status as taxable person of public policies for jointly integrated national development
process. The State of classic social welfare with its inadequate intervention model in society no
longer meets the new millennium development prospects. The construction of sustainable
model of human existential progress becomes essential with solidaristic bases, with
interventions in distribution of public and private responsibilities for the development.
Constitutional law, in addition to its literal expression, should become a positive factor
stimulating sustainable and solidarity development.
KEYWORD
Human development; transindividual fundamental rights; Full constitutionalism; public policy;
constitutional culture; solidarity; empowerment; existential progress.
10
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ADC – Ação Declaratória de Constitucionalidade.
ADIn – Ação Direta de Inconstitucionalidade.
Agrv. – Agravo.
Art. – Artigo.
Cfr. – Conferir.
CRFB – Constituição da República Federativa do Brasil.
Min. – Ministro(a).
ONU – Organização das Nações Unidas
PPGD – Programa de Pós-graduação em Direito
RE – Recurso Extraordinário
Recl. – Reclamação.
Reg. – Regimental.
STF – Supremo Tribunal Federal.
STJ – Superior Tribunal de Justiça
TIDH – Tratado Internacional de Direitos Humanos
TJ – Tribunal de Justiça.
UFBA – Universidade Federal da Bahia
11
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 13
1.1 Delimitação do Tema 13
1.2 Proposta de Trabalho 15
2 DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO 18
2.1 Direito fundamental ao desenvolvimento e sua proteção constitucional 19
2.2 Direito ao desenvolvimento humano e sua proteção internacional 25
2.3 Direito ao desenvolvimento e sua proteção comunitária 28
2.4 Dos limites e possibilidades de uma teoria constitucional integral de proteção 31
2.5 Âmbito de proteção, conteúdo, restrições e eficácia do direito ao desenvolvimento 37
3 JURISDIÇÃO INTERCONSTITUCIONAL E DESENVOLVIMENTO 44
3.1 Diálogo interconstitucional, interconstitucionalidade e jurisdição interconstitucional 45
3.2 Neoconstitucionalismo como marco teórico da jurisdição interconstitucional 51
3.3 Estrutura interconstitucional do direito transindividual ao desenvolvimento 55
3.4 Sistema de precedentes obrigatórios na Jurisdição Interconstitucional 58
3.5 Supralegalidade e status interconstitucional dos direitos humanos 64
3.6 As possibilidades do transconstitucionalismo na Jurisdição Interconstitucional 66
3.7 Abertura hermenêutica em ambiente plural e possibilidades da diatópica 68
3.8 Neofederalismo supranacional e interconstitucional 72
4 ESTADO CONSTITUCIONAL SOLIDARISTA E DESENVOLVIMENTO 79
4.1 Introdução ao pensamento solidarista 80
4.2 Fundamentos teóricos e filosóficos do Estado Constitucional Solidarista 94
4.3 A solidariedade na Constituição de 1988 101
12
4.4 O direito ao desenvolvimento econômico no constitucionalismo solidarista 105
4.4 Desenvolvimento como solidariedade 115
5 PLURALISMO E DESENVOLVIMENTO 119
5.1 O pluralismo na construção do desenvolvimento 119
5.2 Cibercidadania e (re)construção dos espaços públicos por demandas sociais 120
6 DIREITO AO DESENVOLVIMENTO E POLÍTICAS PÚBLICAS 125
6.1 A teoria normativa das políticas públicas 125
6.2 Parâmetros de controle judicial de políticas públicas 132
6.3 Políticas públicas e direito fundamental transindividual ao desenvolvimento 136
6.4 Teorias do mínimo e máximo existencial: adoção do progresso existencial 137
6.5 Ativismo administrativo como respostas sistêmicas ao controle judicial 140
7. CONCLUSÃO 143
7.1 Síntese das teses apresentadas 143
7.2 Considerações Finais 149
REFERÊNCIAS 151
13
1 INTRODUÇÃO
1.1 Delimitação do Tema
A presente tese tem por objeto de estudo o direito fundamental transindividual ao
desenvolvimento. Seu propósito inicial é demonstrar que o constitucionalismo integral, plural e
solidarista são pressupostos constitucionalmente adequados à transição da apatia e ausência de
pertencimento do povo à sua Constituição para afirmação da sua cultura constitucional e
cidadania participativa. Participação e pertencimento são pressupostos necessários à construção
do direito fundamental transindividual ao desenvolvimento no constitucionalismo emergente,
tendo o desafio de conciliar, de forma solidária, o âmbito de intervenção estatal com o domínio
da liberdade individual de autoafirmação das escolhas existenciais.
A proteção (inter)constitucional ao direito fundamental transindividual ao
desenvolvimento situará seu marco teórico no pensamento solidarista, agregando as conquistas
do neoconstitucionalismo e aprimorando a expansão da jurisdição constitucional dos direitos
transindividuais para os espaços internacional e comunitário, criando o que passaremos a
denominar “constitucionalismo integral” ou “teoria integral de proteção” (modelo que
estabelece diálogo hermenêutico aberto e diatópico entre as ordens interna, internacional e
comunitária).
Numa teoria integral de proteção, presente a expansão da jurisdição constitucional
dos direitos transindividuais para o domínio comunitário e internacional, a análise sobre o
âmbito de proteção, restrições, conteúdo e eficácia do direito fundamental ao desenvolvimento,
recai necessariamente em abordagem zetética, integral de proteção, pluralista de alternativas e
solidarista.
Tal abordagem deve-se ao fato de estar o direito ao desenvolvimento sujeito às
interferências dos fatores culturais, econômicos, políticos, jurídicos, sociológicos,
antropológicos, geográficos e até mesmo relacionados à psicologia das massas (visão zetética).
Sua proteção integral encontra-se juridicamente consolidada em espaços jurídicos
dialógicos e interculturais a exemplo das ordens interna, internacional e comunitária,
constituindo o direito fundamental ao desenvolvimento o valor supremo que consolida os
demais direitos fundamentais necessários ao progresso existencial humano (visão integral de
proteção).
14
O direito fundamental ao desenvolvimento demanda concretização pluralista de
alternativas. Fenômenos como a globalização, efeitos climáticos, terrorismo, demandas sociais
por novos direitos e crises econômicas devem constituir riscos calculáveis, previsíveis,
inseridos e dimensionados no seu domínio normativo para melhor definição do âmbito de
proteção, restrições e eficácia em sociedades complexas (visão plural).
O desenvolvimento no século XXI impõe a projeção das forças produtivas num
agir sustentável, a organização estatal desburocratizada, transparente e aberta aos avanços
tecnológicos, além da sociedade interligada em redes democráticas de cibercidadania para
consolidação de novos espaços públicos fundamentais para defesa dos valores comuns
considerados essenciais ao desenvolvimento, através dos laços de solidariedade envolvendo
direitos e deveres para além das nações e nacionalismos (visão solidarista).
As políticas públicas de redução das desigualdades sociais e regionais, erradicação
da pobreza e da marginalização, garantia do desenvolvimento nacional, construção de uma
sociedade livre, justa e solidária, promoção do bem de todos (art. 3º da CRFB – norma jurídica
do tipo política pública) constituem o marco constitucional determinante da atividade estatal e
parâmetro de aferição de (in)constitucionalidade integral das ações e omissões do poder
público. Tais ações e omissões perdem sua discricionariedade em sentido forte ao se
vincularem a estes mandamentos constitucionais. Na presente tese será demonstrado o caráter
normativo das políticas públicas e, por consequência, seus parâmetros de controle judicial.
O Estado Constitucional Solidarista se afirma democraticamente através do
fortalecimento e consolidação dos laços de solidariedade social – pela divisão social do
trabalho sustentável, por similitude, pelo pluralismo e pela justiça equânime na distribuição de
direitos e deveres. O desenvolvimento é construído, aprimorado e expandido nesses laços
constitucionais solidários de proteção, reflexivo das necessidades humanas existenciais em
equilibro sustentável com a continuidade da vida em todas as suas formas e igual dignidade.
Diante dessa primeira dedução sobre o desenvolvimento e principal hipótese de
trabalho, restam as seguintes hipóteses secundárias a serem investigadas nos capítulos
seguintes:
(I) O direito fundamental transindividual ao desenvolvimento orienta-se pelo
princípio constitucional da solidariedade;
(II) A jurisdição constitucional de proteção do direito fundamental ao
desenvolvimento consolida-se de forma dialógica entre as jurisdições interna, internacional e
15
comunitária possibilitando o constitucionalismo integral através da jurisdição
interconstitucional;
(III) Há relação direta entre aumento da cultura constitucional com consequente
fortalecimento da normatividade constitucional e a presença do constitucionalismo em redes de
cibercidadania criando novos espaços públicos de proteção dos direitos fundamentais;
(IV) O pensamento pluralista de alternativas é adequado ao regime jurídico-
constitucional integral de proteção do direito fundamental ao desenvolvimento;
(V) O direito é objeto cultural que se constrói através do tratamento lógico-
linguístico num processo de condicionamento recíproco entre ser e dever-ser, e que não deve
estar fechado à abordagem zetética (multidisciplinar);
(VI) O pensamento solidarista produz reflexos jurídicos na concretização do direito
fundamental transindividual ao desenvolvimento, oferecendo novas possibilidades de efetivá-
lo.
1.2 Proposta de Trabalho
Nosso propósito inicial é determinar qual o alcance e significado constitucional
contemporâneo do direito fundamental transindividual ao desenvolvimento que emerge de uma
teoria integral de proteção envolvendo os espaços jurídicos interno, internacional e
comunitário.
No capítulo II se adiantará uma hipótese central da tese: o direito fundamental
transindividual ao desenvolvimento expressa a opção do constituinte originário por inseri-lo
como valor supremo da sociedade (Preâmbulo) e objetivo fundamental da República (art. 3º).
Consolida a ideia de progresso existencial e reúne em seu âmbito de proteção, restrições,
eficácia e conteúdo, a indivisível e constante permanência dos demais direitos fundamentais
num patamar dinâmico de proteção que garanta a promoção de projetos existenciais de vida
coerentes com a necessidade humana por progresso e evolução.
No segundo capítulo será também realizada a análise comparativa entre as normas
constitucionais e os demais documentos jurídicos internacionais e comunitários que tratam do
desenvolvimento, fortalecendo a teoria integral de proteção e potencializando a jurisdição em
nível interconstitucional. Seu âmbito de proteção, restrições, conteúdo e eficácia passará por
16
abordagem crítica em face do pluralismo de teorias dos direitos fundamentais, para oferecer
adequada resposta à eficácia vedativa do retrocesso no contexto do direito ao desenvolvimento.
O capítulo III estará dedicado a precisar os contornos da jurisdição
interconstitucional de proteção ao direito fundamental transindividual ao desenvolvimento.
Partindo da concepção integral de proteção, será repensada a teoria da interconstitucionalidade,
agregando a dimensão internacional, diatópica e neofederativa para conformação do modelo
proposto na tese.
No capítulo IV cuidar-se-á dos institutos que fundamentam a compreensão do
pensamento solidarista, com a prévia análise da vinculação e condicionamento recíproco entre
o pensamento jurídico contemporâneo e o ideal de solidariedade, que, como ideal, transcende
as barreiras da ciência do direito. Ao final será feita breve incursão nos reflexos jurídicos do
pensamento solidarista em face da teoria integral de proteção, redefinindo, em alguns aspectos,
o regime constitucional do desenvolvimento. Nele serão identificados os novos fundamentos
teóricos e filosóficos do Estado Constitucional Solidarista, partindo das implicações da
solidariedade nas decisões políticas fundamentais que impactam o direito fundamental ao
desenvolvimento.
O Capítulo V ficará reservado aos estudos sobre constitucionalismo em redes de
cibercidadania com a construção de novos espaços públicos, além da perspectiva pluralista de
alternativas para compreensão do direito fundamental transindividual ao desenvolvimento. Ao
final do capítulo será feita análise sobre o novo modelo de organização estatal para o
desenvolvimento, sua estrutura desburocratizada, participativa, transparente e permeável às
novas tecnologias, numa realidade constitucionalmente adequada à teoria integral de proteção
ao desenvolvimento em ambiente plural.
O Capitulo VI encerrará a tese ao identificar o sistema constitucional de proteção e
concretização do direito ao desenvolvimento através de políticas públicas, estabelecendo
inicialmente novos parâmetros de aferição do seu conteúdo, como a proibição de retrocesso, o
dever de solidariedade e a inaplicabilidade da reserva do possível, todos filosófica e
juridicamente reorientados pelo pensamento possibilista desenvolvido por Häberle em seu
Pluralismo y Constitución. Estabelecerá a normatividade das políticas públicas estabelecendo
novos parâmetros de controle judicial.
17
Também abandonará a falsa perspectiva de direito ao mínimo e ao máximo
existencial enquanto direitos subjetivos, adotando a perspectiva do progresso existencial, mais
adequado constitucionalmente ao valor supremo do desenvolvimento.
A tese em alguns momentos deixará em aberto o caminho para a concretização do
direito fundamental ao desenvolvimento, compreendendo a historicidade das ideias-força que o
impulsionarão, sem, no entanto, nos anularmos para que a história se revele em nosso lugar,
mas refletindo dialeticamente sobre a historicidade da própria compreensão, apresentando a
visão de solidariedade, cidadania e jurisdição constitucional tanto útil quanto necessária à
realização do objetivo fundamental de garantia do desenvolvimento nacional para que o ser
humano possa ter uma vida em progresso existencial.
18
2 DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO
O presente capítulo oferece a análise situacional e prospectiva do direito ao
desenvolvimento, desde sua proteção constitucional, internacional e comunitária até a
definição do seu âmbito de proteção, conteúdo, restrições e eficácia enquanto direito
fundamental transindividual.
O contexto intelectual da ideia de progresso é formulado pela primeira vez na
história por Turgot1 em conferência pronunciada em Sorbona em 1750, onde passa a formular,
pela primeira vez uma lei de progresso, antecipando em mais de cem anos a famosa lei dos três
estados de Comte2 (teológico, metafísico e positivo). Para Turgot o progresso é, todavia
processo dependente em grande medida de circunstâncias acidentais, se as circunstâncias são
propícias o progresso não pode ser detido, em sua concepção o fim do progresso é a felicidade
e nitidamente vinculado ao conceito de liberdade, embora a ideia de progresso e liberdade seja
melhor desenvolvida em Condorcet3.
Serão Popper e Hayek, dois grandes pensadores sobre o progresso no século XX
que romperão com a perspectiva de leis condicionantes do progresso. Para Hayek a razão
humana é incapaz de predizer nem dar forma ao seu próprio futuro4. Segundo Popper não pode
haver teoria científica do desenvolvimento histórico que sirva de base para predizê-la5.
Outra forma de conceber o desenvolvimento como liberdade no novo liberalismo é
aquela que sustenta que a chave do progresso encontra-se na intervenção política6.
1 TURGOT, A. R. J. Discursos sobre el progreso humano (1750). Tecnos: Madrid, 1991.
2 Cfr. BURRY, John. La idea del progreso. Alianza editorial: Madrid, 1971, p. 143.
3 Nesse sentido: TEJADA, Javier Tajadura. El preâmbulo constitucional. Editorial Comares: Granada, 1997, p.
188. Sobre CONDORCET como filósofo da liberdade, NISBET, R. História de la idea de progreso. Gedisa:
Barcelona:1981, p. 291-299. Condorcet deixa claro que a liberdade não é possível sem igualdade, considerando a
igualdade formal como insuficiente, em sua obra defende a igualdade de direitos entre homem e mulher, também
combatendo o racismo e o imperialismo, em suas palavras “os povos saberão que não podem converter-se em
conquistadores sem perder sua liberdade”. CONDORCET. Bosquejo de um cuadro historico sobre los progresos
del espíritu humano (1795). Editora Nacional: Madrid, 1990. 4 HAYEK, F. A. Los fundamentos de la libertad. (1959). Unión Editorial: Madrid, 1991, p. 59-60.
5 POPPER, Karl. La miséria del historicismo. Tratus: Madrid, 1961, p. 12.
6 Cfr. TEJADA, Op. Cit. p. 200. No livro de Freedem, The new liberalism, se mostra a origem desta tese na
Inglaterra graças a obra de Hobson e Hobhouse. HOBSON fascinado pela ideia de uma sociedade em progresso
contínuo, sustentou a necessidade de que a ideologia liberal evoluísse no sentido de acelerar o progresso mediante
a ação dos poderes públicos. HOBHOUSE manteve a tese de que havia chegado a hora de utilizar os avanços do
conhecimento e o Estado democrático para o cumprimento do que denominava finalidade social. Resumidamente,
para tornar possível a continuidade do progresso é necessário criar um Estado capaz de intervir mediante políticas
de redistribuição nos processos sociais.
19
A formulação da expressão direito ao desenvolvimento e sua bases conceituais
foram formuladas pelo senegalês Keba M’Baye7 em conferência inaugural do Curso de
Direitos Humanos do Instituto Internacional de Direitos do Homem de Estrasburgo de 19728.
Contemporaneamente, Amartya Sen conceituará desenvolvimento como expansão
das liberdades substantivas. Assim, o desenvolvimento requer que se removam as principais
fontes de privação da liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e
destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência
excessiva de Estados repressivos9.
O desenvolvimento consagra-se no novo milênio como a questão central da
humanidade, núcleo convergente das principais teorias e movimentos sociais nos contextos
global, local e regional, produzindo reflexos jurídicos na democracia, liberdade, segurança,
propriedade, saúde, educação e mais acentuadamente no sistema de proteção aos direitos de
solidariedade (transindividuais).
2.1 Direito fundamental ao desenvolvimento e sua proteção constitucional
O direito fundamental ao desenvolvimento representa, para além de doutrina do
progresso existencial, o marco unificador dos direitos fundamentais presentes e dos demais
direitos humanos e comunitários convergentes para seu sistema aberto e integral de proteção.
Ele é fruto de nova geração de direitos que reclama sua integral proteção num regime
solidarista. Corretamente identificado como direito de solidariedade ou direito de terceira
geração/dimensão, assume feição transindividual.
Na Constituição da República Federativa do Brasil o desenvolvimento possui
diversas perspectivas sistêmicas, o que lhe permite dialogar com outras normas constitucionais
em ambiente plural de possibilidades normativas. É tratado como valor supremo, objetivo
7 M’BAYE, Keba. Le droit au développement comme un droit de l’homme. Revue des droits del’homme, v. V,
1972, p. 505-534. 8 Cfr. PELLOUX, Robert. Vraiset faux droits de l’Homme. Revue du Droit Public et de la Science Politique em
France ET à l’étranger. Paris: Libr. Générale, 1981, p. 61; ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Direito ao
Desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 197; FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos
fundamentais. 9.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 59. 9 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000, p. 17-18.
20
fundamental, direito fundamental transindividual e princípio estruturante de diversos regimes
constitucionais, desde o ambiental ao econômico, sua tarefa e concretização não são simples.
Para conhecer suas principais potencialidades sociais e normativas é necessário
referir-se ao sistema constitucional aberto, plural e democrático no qual está inserido e
principalmente, repensar a equívoca decisão da nossa jurisdição constitucional que atribuiu
ineficácia jurídica ao preâmbulo constitucional.
A Constituição Federal de 1988 divide-se estruturalmente em sua forma codificada
em: Preâmbulo Constitucional, Dispositivos Constitucionais Fixos (art. 1º ao 250) e
Dispositivos Constitucionais Transitórios (ADCT – art. 1º ao 98). Em sua Estrutura não
codificada (integrando parte do bloco de interconstitucionalidade10
) divide-se em: Dispositivos
Constitucionais decorrentes (conforme art. 5º, §2º, CRFB) que são os direitos fundamentais
decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição Federal, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, exceto os Tratados
Internacionais de Direitos Humanos incorporados na forma do art. 5º, §3º da CRFB, que
constituem os Dispositivos Constitucionais equivalentes ou direitos fundamentais equivalentes.
Conforme o citado §3º do art. 5º, os tratados e convenções internacionais sobre direitos
humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três
quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
Os Tratados Internacionais de Direitos Humanos decorrentes (art. 5º, §2º) e
equivalentes (art. 5º, § 3º) possuem o mesmo status interconstitucional (dialogam com as
demais normas constitucionais e comunitárias em idêntico patamar deontológico, passando por
ponderação no patamar axiológico objetivando a melhor proteção do ser humano no contexto
ontológico de aplicação).
Surgem, no nosso ordenamento jurídico, duas categorias de Tratados Internacionais
de Direitos Humanos, na incorreta visão do Supremo Tribunal Federal11
, uma com status
10
Fazendo referência em nível interconstitucional à conhecida expressão bloco de constitucionalidade (utilizada
pela primeira vez em 16 de junho de 1971 em decisão do Conselho Constitucional da França que integrou à
Constituição de 1958 a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e o Preâmbulo da Constituição
de 1946. Nesse sentido: FAVOREAU, Luis; LLORENTR, Francisco Rubio. El Bloque de la Constitucionalidad.
Madrid: Civitas, 1991). O bloco de interconstitucionalidade é formado por normas de direitos humanos,
fundamentais e comunitários, com forte vínculo intersistêmico, plural e unitário de proteção, destituído de
hierarquia recíproca e inserido num processo hermenêutico diatópico. 11
A tese da supralegalidade dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos prevaleceu no Supremo Tribunal
Federal no RE 466343/SP. Para a compreensão das diversas correntes doutrinárias sobre a posição desses tratados
no ordenamento jurídico verificar o voto vencedor do Ministro Gilmar Ferreira Mendes. Prevaleceu a tese da
21
supralegal e infraconstitucional – art. 5º, §2º e outra com status constitucional – art. 5º, § 3º.
Em nosso ponto de vista, já explicitado, os direitos humanos qualquer que tenha sido o seu
processo de incorporação à ordem interna, não estão situados no plano deontológico em
patamar inferior, tampouco superior aos direitos fundamentais e aos direitos comunitários.
A Constituição Federal de 1988 é pluritextual (possui mais de um conjunto
normativo ou articulado que determina seu conteúdo formal e material) por força da
Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo
Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007, incorporada nos termos do art.
5º, §3º da Constituição por decreto legislativo equivalente à emenda constitucional (Decreto nº
6.949, de 25.8.2009 Publicado no DOU de 25.8.2009), e a esse se soma o conjunto de Tratados
Internacionais de Direitos Humanos incorporados à ordem interna pelo procedimento exigido à
época em que não se fazia presente o citado § 3º do art. 5º da CRFB.
O desenvolvimento encontra-se referido no preâmbulo constitucional brasileiro de
1988 como valor supremo de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos nos
seguintes termos:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia
Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado
a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça
como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem
interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias,
promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO
DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
Os preâmbulos constitucionais estabelecem as ideias-força fundamentais que
conduzem o texto constitucional e neles estão estabelecidas diversas normas jurídicas de
conteúdo impositivo, pois nos preâmbulos constitucionais encontramos a síntese do sentimento
constitucional criador da nova ordem jurídica fundamental. Possuem eficácia como qualquer
outra norma constitucional12
.
infraconstitucionalidade (estão abaixo da Constituição) e suprelegalidade (estão acima das leis) dos Tratados
Internacionais de Direitos Humanos (nos termos do art. 5º, §2º da CRFB). Quanto aos Tratados Internacionais de
Direitos Humanos incorporados nos termos do art. 5º, § 3º da CRFB, estes possuem status constitucional (ex:
Tratado Internacional de Proteção à Pessoa Deficiente) e passam a integrar norma constitucional fora do texto
constitucional formal-codificado. 12
Também defendem a relevância jurídica do preâmbulo constitucional: SILVA NETO, Manoel Jorge. Curso de
Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 218; CUNHA JUNIOR, Dirley da. Curso de Direito
22
Segundo Jorge Miranda, a doutrina distribui-se entre três posições: A tese da
irrelevância jurídica (o preâmbulo não se situa no domínio do Direito, situa-se no domínio da
política ou da história); a tese da eficácia idêntica à de quaisquer disposições constitucionais
(é também conjunto de preceitos); entre as duas a tese da relevância jurídica específica ou
indireta, não confundindo preâmbulo e preceituado constitucional (participa das características
jurídicas da Constituição, mas sem se confundir com o articulado)13
.
Para Jorge Miranda, o preâmbulo é parte integrante da Constituição, com todas as
suas consequências; dela não se distingue nem pela origem, nem pelo sentido, nem pelo
instrumento em que se contém. Distingue-se (ou pode distinguir-se) apenas pela sua eficácia ou
pelo papel que desempenha. Tudo é constituição em sentido formal14
.
O Conselho Constitucional Francês admite a fiscalização de constitucionalidade em
face da violação aos princípios do preâmbulo. Este, porém, não foi o entendimento da nossa
Corte Constitucional. O Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 2076-5/AC, de
relatoria do Ministro Carlos Veloso, trazendo lições de Jorge Miranda, Manoel Gonçalves
Ferreira Filho e José Wilson Ferreira Sobrinho, decidiu pela tese da irrelevância jurídica do
preâmbulo. Afirmou o relator em seu voto: “O preâmbulo, ressai das lições transcritas, não se
situa no âmbito do Direito, mas no domínio da política, refletindo posição ideológica do
constituinte (...). Não contém o preâmbulo, portanto, relevância jurídica.
Importante observar que Jorge Miranda não se filia à corrente defendida pelo
Ministro relator da citada Ação Direta de Inconstitucionalidade, apesar de ter sido citado entre
as lições transcritas. A tese da irrelevância jurídica é rechaçada por Jorge Miranda e acolhida
pelo Supremo Tribunal Federal.
A opção pelos valores supremos de concretização dos direitos sociais e individuais,
da liberdade, da justiça, do bem-estar e da igualdade, torna tais valores, princípios
constitucionais de eficácia plena, judicialmente exigíveis, afinal, como afirmado no próprio
preâmbulo, esta é a razão de existência do Estado Democrático.
Constitucional. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 108; BRITO, Edvaldo. Limites da Revisão Constitucional. Porto
Alegre: FABRIS, 1993, p. 38-39. Edvaldo Brito relaciona aqueles que defendem a função normativa do
preâmbulo: Aristides Milton, Carlos Maximiliano, João Barbalho, José Duarte, Georges Vedel, Georges Burdeau,
Jorge Miranda e Josaphat Marinho. Pensam contrariamente: Aurelino Leal, Corwin, Hans Kelsen, Paulo
Bonavides, Pedro Lenza e Alexandre de Moraes. 13
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 437. 14
MIRANDA, Jorge. Op. Cit. p. 437-438.
23
Outro não foi o caminho adotado pela Constituição espanhola de 1978, que trouxe
no preâmbulo diversos preceitos que expressam a opção constituinte pela ideia de progresso e
desenvolvimento. Opção que se depreende da análise semântica de seus termos (consolidar,
fortalecer, progresso, avançada). Conforme Javier Tejada, dito progresso alcança sua plenitude
de significado em sua concepção global, como progresso social e político, aplicada ao conceito
de democracia15
.
A constituição brasileira de 1988 caracteriza o desenvolvimento como valor
supremo da sociedade. Ao estabelecer no contexto do seu preâmbulo, uma ordem objetiva de
valores constitucionais vinculantes, passa a constituir o desenvolvimento como decisão política
valorativa (wertentscheidungen), que expressa conteúdo axiológico universal com validez para
todos os âmbitos do direito. O desenvolvimento concretiza essa expressão valorativa (decisão
axiomática) no próprio texto constitucional como norma objetiva de princípio (objektive
Grundsatznormen), como direito fundamental transindividual (direito subjetivo de
solidariedade frente ao Estado e dotado de eficácia horizontal interprivada) e como objetivo
fundamental (norma programática ou política pública).
O art. 3º da Constituição Federal de 1988 estabelece dentre os objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil, o de garantir o desenvolvimento nacional.
Trata-se de norma fundamental programática, vinculante objetivamente para os poderes
públicos (com importante função sistêmica institucional, assumindo deveres de proteção e
garantia do progresso existencial, além de intervir positivamente nos processos político,
judicial, formativo das leis, econômico e administrativo) e subjetivamente para a sociedade
(em termos de direitos e deveres de solidariedade).
Esse objetivo fundamental cresce em dimensão normativa e importância
interconstitucional quando edifica sua proteção em níveis também comunitário e internacional,
como se expressasse necessidade comum da humanidade.
Nesse sentido, o constituinte originário de 1988, no art. 4º, IX, estabeleceu o
princípio de cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. Progresso e
cooperação somam-se de forma indissociáveis à prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II).
15
TEJADA, Javier Tajadura. El preâmbulo constitucional. Editorial Comares: Granada, 1997, p. 175 et seq. O
autor apresenta uma dupla perspectiva para o progresso: setorial (progresso da economia e da cultura) e global
(sociedade democrática avançada), Op. Cit. p. 176.
24
Os direitos humanos são pressupostos necessários ao progresso humano e condição
necessária para formação dos laços de solidariedade entre povos e nações.
O artigo 4º da Constituição Federal estabelece princípios estruturantes de regência
das relações internacionais e realça orientação internacionalista jamais vista na história
constitucional brasileira16
. Insere programaticamente (norma do tipo política pública) em seu
parágrafo único a busca por uma “comunidade latino-americana de nações” através da
integração econômica, política, social e cultural. Constrói, também de forma inédita, o marco
jurídico-constitucional comunitário.
Ao inserir no mesmo dispositivo constitucional (art. 4º) as orientações
internacional e comunitária, presente a abertura integrativa dos direitos fundamentais (art. 5º, §
2º) ao regime de comunitário e internacional de proteção ao progresso e ao desenvolvimento
existencial humano, nossa ordem constitucional consagrou o interconstitucionalismo multinível
(constitucional, internacional e comunitário).
O avanço contínuo do conhecimento humano é condição fundamental do
desenvolvimento. A vinculação das atividades de ensino, pesquisa e extensão e consequente
divisão social do progresso, situa a perspectiva solidarista para o desenvolvimento sustentável
na revisão das metas educacionais, onde a educação para o progresso humano produz reflexos
jurídicos na compreensão do direito fundamental à educação.
Os objetivos fundamentais (normas programáticas constitucionais ou políticas
públicas constitucionais) servem como paramentos de aferição da constitucionalidade das
demais políticas públicas (normas programáticas infraconstitucionais).
A sustentabilidade ambiental coloca a humanidade consciente dos riscos que deve e
é capaz de assumir para o progresso. Posturas muitas vezes indemonstráveis, como o princípio
da precaução (deixar de agir diante da incerteza científica), podem conduzir a momentos em
que, numa análise contextual, o deixar de agir poderá demonstrar-se infinitamente mais
catastrófico do que decidir arriscar-se diante da incerteza, principalmente quando as
possibilidades de proteção evidenciam-se mais favoráveis ao comportamento ativo.
O raciocínio para garantia e proteção de objetivos fundamentais, dentre eles o
desenvolvimento, é necessariamente análise de riscos e estabelecimento de metas estabelecidas
em políticas públicas projetadas por sistema organizativo, que deve ser capaz de oferecer
16
Nesse sentido: PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 13. ed. São
Paulo: Saraiva, 2012, p. 95.
25
respostas coerentes com o sistema interconstitucional e integral de proteção do progresso
existencial humano – não é tarefa fácil. A sociedade é por demais complexa para adoção de
modelo universal, muito menos nacional para suprir eficazmente suas necessidades, daí a
importância do modelo pluralista de alternativas proposto por Peter Häberle e a hermenêutica
diatópica de R. Panikkar.
O crescente avanço tecnológico presente no século XXI constitui fator favorável ao
desenvolvimento. Impulsionada pelas redes de indignação e esperança17
que se formaram entre
os jovens das diversas nações do mundo por meio das redes sociais em luta por direitos e
democracia, a internet permitiu a consolidação de novas formas de exercício de cidadania e
luta por progresso existencial.
A Constituição em sua abertura principiológica de escolhas normativas conduz
inegavelmente ao pluralismo e a solidariedade como fatores determinantes da integral proteção
do progresso existencial humano.
2.2 Direito ao desenvolvimento humano e sua proteção internacional
A Comissão de Direitos do Homem da ONU em 1977 apontou o direito ao
desenvolvimento em relação à cooperação internacional. No âmbito da UNESCO, em 1978, o
direito ao desenvolvimento foi inserido na Declaração sobre a raça e os preconceitos raciais.
Em 1981 a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Direitos dos Povos, aprovada na 18ª
Conferência de Chefes de Estado e Governo, reunida no Quênia, dispôs em seu artigo 22 o
direito ao desenvolvimento18
.
A Organização das Nações Unidas passa a adotar em 1986 através 146 Estados
favoráveis, um voto contrário dos Estados Unidos da América e oito abstenções (incluindo
Alemanha, Reino Unido e Japão) a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento. Logo em
seu artigo 2º estabelece: “a pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento e deve ser
ativa participante e beneficiária do direito ao desenvolvimento”.
17
Cfr. CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e Esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de
Janeiro: Zahar, 2013. 18
Art. 22 – 1. Todos os povos têm direito ao desenvolvimento econômico social e cultural, no devido respeito à
sua liberdade e identidade, e na igual fruição da herança comum da humanidade. 2. Os Estados têm o dever de
assegurar, individual ou coletivamente, o exercício do direito ao desenvolvimento. (Expressão isolada sobre o
desenvolvimento, ainda distante da sua contemporânea concepção de direito transindividual, esteve presentes na
Carta da ONU de 1945 em seu art. 55 – condições de progresso e desenvolvimento econômico).
26
O preâmbulo da Declaração de 1986 conceitua o desenvolvimento como processo
econômico, social, cultural e político abrangente, que visa o constante incremento do bem-estar
de toda a população e de todos os indivíduos com base em sua participação ativa, livre e
significativa no desenvolvimento e na distribuição justa dos benefícios daí resultantes.
Trata-se de direito inalienável, indivisível e interdependente que situa o ser humano
como participante ativo e beneficiário do seu processo de construção. O art. 2, 3 da Declaração
impõe o dever e direito estatal de formular políticas nacionais adequadas para o
desenvolvimento e reafirma a participação ativa, livre e significativa de todos os indivíduos no
desenvolvimento e na distribuição equitativa dos benefícios daí resultantes.
A Declaração da ONU estabelecerá as bases solidaristas e cooperativas para
assegurar o desenvolvimento e eliminar seus obstáculos. Propõe nova ordem econômica
internacional baseada na igualdade soberana, interdependência, interesse mútuo e cooperação
entre todos os Estados. Nasce para os Estados a responsabilidade primária pela criação das
condições nacionais e internacionais favoráveis à realização do direito ao desenvolvimento
(art. 3, 3) e o dever de eliminar os obstáculos ao desenvolvimento resultantes da falha na
observância dos direitos civis e políticos, assim como dos direitos econômicos, sociais e
culturais (art. 6, 3).
Na destacada visão de Flávia Piovesan, a concepção contemporânea de direitos
humanos caracteriza-se pelos processos de universalização e internacionalização destes
direitos, compreendidos pelo prisma da sua indivisibilidade19
. A Declaração de Direitos
Humanos de Viena, de 1993, afirma em seu parágrafo 5º: “Todos os direitos humanos são
universais, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os
direitos humanos globalmente de forma justa e equitativa, em pé de igualdade e com mesma
ênfase”.
A universalidade, interdependência e inter-relação também ocorrem no nível
interconstitucional entre os direitos humanos, fundamentais e comunitários no ambiente
pluralista, solidário e integral de proteção.
19
PIOVESAN, Flávia. Direito ao desenvolvimento – desafios contemporâneos. In: PIOVESAN, Flávia;
SOARES, Inês Virgínia Prado (Coordenadoras). Direito ao Desenvolvimento. Belo Horizonte: Editora Forum,
2010., p. 100.
27
Afirmará Flavia Piovesan, aproximando-se da visão habermasiana de democracia,
que “não há direitos humanos sem democracia e nem tampouco democracia sem direitos
humanos”20
. Essa premissa se confirma facilmente com a simples análise estatística dos
indicadores de desenvolvimento nos países de índole democrática.
As crises globais (climáticas, econômicas e endêmicas, apenas para citar algumas)
reforçam a necessidade primordial de manutenção de laços de solidariedade entre as nações.
Criam a atmosfera propícia à expansão das conquistas civilizatórias para o desenvolvimento
conjunto dos países (sem protagonismos), estabelecendo deveres correspondentes de
cooperação na construção da ordem global(izada) de desenvolvimento equitativo das nações
desenvolvidas e em progresso para o desenvolvimento.
Presente uma série de Tratados Internacionais de Direitos Humanos
indivisivelmente conectados à proteção integral ao desenvolvimento, a concretização do citado
direito fundamental transindividual encontra-se integrada de forma multinível e
interconstitucional com tais documentos jurídicos transnacionais e mais aproximadamente a
Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento no âmbito da ONU.
No plano internacional, a solidariedade entre as nações constituirá a base
existencial de construção e progresso dos Estados Constitucionais Cooperativos. Rüdiger
Wolfrum insere a solidariedade como princípio estrutural emergente no sistema internacional
de proteção da paz, no direito ambiental internacional e no ambiente de intervenção e
assistência humanitária21
.
O Consenso Europeu para o Desenvolvimento de 20 de dezembro de 2005 em seu
parágrafo 13 estabelece: “Solidarity. Global challenges must be managed in a way that
distributes thee cost and burdens fairly in accordance with basic principles of equity and
social justice. Those who suffer or who benefit least deserve help from those who benefit
most”22
.
20
Op. Cit. p.100. 21
Cfr. WOLFRUM, Rüdiger. Solidarity amongst States: an emerging structural principle of international Law.
In:PIOVESAN, Flávia; SOARES, Inês Virgínia Prado (Coordenadoras). Direito ao Desenvolvimento. Belo
Horizonte: Editora Forum, 2010, p. 57-72. Nessa mesma obra coletiva, porém mais direcionado ao contexto do
direito internacional do desenvolvimento: DANN, Philipp. Solidarity and the Law of Institutional Development
Cooperation. p. 73-93. 22
“Solidariedade. Os desafios globais devem ser geridos de uma forma que a distribuição dos custos e
responsabilidades aconteça de acordo com os princípios básicos de equidade e justiça social. Aqueles que
sofrem ou que beneficiam menos merecem a ajuda dos que mais se beneficiam "
28
A parte inicial do Consenso de Monterrey é dedicado a uma concreta lista de
deveres internos para os Estados receptores (nota 23, parágrafos 10-19). Essa lista cobre uma
série de aspectos, como garantia de consistência das políticas públicas macroeconômicas,
aumento da produtividade e práticas de boa governança, cuidar de instituições democráticas
sólidas de combate à corrupção. Conforme Phillip Dann, responsabilidade mútua entre as
nações é importante elemento dessa ideia23
.
2.3 Direito ao desenvolvimento e sua proteção comunitária
A proteção comunitária ainda é projeto embrionário na União Sul-Americana. Faz-
se presente no direito comum da União Europeia. Assim, faremos breve análise crítica do
direito comunitário europeu, com vistas à expansão da rede comunitária latino-americana.
Portanto, o que virá a seguir será muito mais propositivo que propriamente elucidativo da
realidade comunitária local.
O direito comunitário não é como o direito internacional público, trata-se, na lição
de Konrad Hesse de complexo jurídico autônomo, dotado de índole própria, cujo fundamento
de validez é sua proveniência do poder comunitário público24
. Sua validez intra-estatal assenta-
se sobre a decisão constitucional para a instituição em ato coletivo das comunidades25
. Ocorre
em nosso sentir, o fenômeno político de transnacionalização de parcela da soberania dos
Estados formando a dinâmica soberania compartilhada supranacional do bloco comunitário.
Percebe-se claramente que a retomada dos espaços transnacionais comunitários
pelo direito constitucional ocorre sempre em virtude de proteção deficiente dos direitos
fundamentais. Nesse sentido, observa-se o vasto debate na jurisprudência alemã (BVerfGE 37,
271; 58, 1; 73, 339) discutindo a reserva imanente do art. 24 da Lei Fundamental de Bonn para
proteção dos direitos fundamentais em face do seu conteúdo essencial, quando a proteção
comunitária não for suficiente, estabelece-se, em nosso ponto de vista, inadequada cisão entre
as ordens constitucional e comunitária, intervindo a norma constitucional enquanto o standard
de direitos fundamentais, geralmente obrigatório, do direito comunitário ainda não possui nível
23
Solidarity and the Law of Institutional Development Cooperation. Cit. p. 83. 24
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Trad. da 20ª edição
alemã de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 96. 25
HESSE, Konrad. Cit. p. 97. No direito alemão a autorização constitucional de participação encontra-se no art.
24, alínea l, da Lei Fundamental. No direito brasileiro, conforme já citamos, no artigo 4º, parágrafo único da
Constituição Federal.
29
adequado de proteção compatível com as exigências estabelecidas no marco constitucional
interno. A inadequação reside apenas na falta de diálogo interconstitucional, onde a proteção
insuficiente ou deficiente em nível comunitário poderia ser suprida através da integração
dialógica com as normas constitucionais internas no próprio espaço comunitário e vice-versa.
A cisão institucional entre as ordens internacional, constitucional e comunitária não
parece ser a melhor solução. O direito comunitário não deve buscar primazia sobre o direito
nacional como pressuposto da capacidade funcional da comunidade26
. O pressuposto da sua
capacidade funcional reside no diálogo interconstitucional diatópico destituído de hierarquia,
objetivando sempre a melhor proteção do ser humano. A base cooperativa de criação de uniões
supranacionais orienta-se por uma carta de direitos que amplia e reconhece tantos os tratados
internacionais de direitos humanos quanto os direitos fundamentais dos Estados que
solidariamente compõem a Comunidade de Nações.
A União Europeia, nos termos do art. 6º do Tratado de Maastricht, respeitará os
direitos fundamentais tal como os garante a Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos
do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950, e
tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados-membros, enquanto
princípios gerais de direito comunitário.
A falta de uma teoria integral dialógica de proteção de direitos multinível acarreta
alguns equívocos conceituais. O primeiro deles é identificar direitos essenciais à dignidade
existencial do ser humano no âmbito comunitário, ora como direitos fundamentais, ora como
direito humanos, afastando-lhe o caráter de autonomia dogmática.
O direito comunitário é formado não apenas por normas de organização e
procedimento, mas fundamentalmente por normas atributivas de direitos aos cidadãos
supranacionais, que vão desde o voto e a participação na composição da comunidade e
instituições, até a garantia de progresso existencial em solidariedade com seus concidadãos.
A preocupação comunitária encontra-se mais diretamente associada à proteção de
direitos transindividuais, conectados aos problemas transfronteiriços.
Porém, a inter-relação, sistematicidade, interdependência, unidade e
indivisibilidade dos direitos humanos, fundamentais e comunitários sobelevam a atuação
comunitária para o contexto integral de proteção dos direitos em nível interconstitucional.
26
Em sentido contrário, em defesa da primazia como pressuposto da capacidade funcional: HESSE, Konrad. Cit.
p. 98.
30
O Direito ao desenvolvimento reencontra e amplia seu âmbito de proteção27
no
direito comunitário. A ideia de progresso e desenvolvimento é estruturante da própria
identidade constitutiva da comunidade de nações, encontra tipificação expressa nos principais
documentos jurídicos das uniões supranacionais.
O Acordo de Cotonou (Acordo 2000/483/CE) de parceria entre os Estados de
África, das Caraíbas e do Pacífico e a Comunidade Europeia e seus Estados-Membros trata das
relações de cooperação da União Europeia com vistas ao desenvolvimento econômico, social e
cultural dos citados países.
Em oito de setembro de 2000, a Assembleia Geral da ONU adotou a Declaração do
Milênio, com o compromisso de adesão a um projeto mundial de redução da pobreza extrema
sob todas as suas formas. Associados à Declaração do Milênio, os Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio são os seguintes:
Reduzir a pobreza e a fome no mundo;
Garantir o ensino primário para todos;
Promover a igualdade entre homens e mulheres;
Reduzir a mortalidade infantil;
Melhorar a saúde materna;
Combater o HIV/AIDS e outras doenças;
Assegurar a sustentabilidade ambiental;
Participar numa parceria mundial para o desenvolvimento28
.
Conforme dados da própria União Europeia, ela contribui com 55% da ajuda
pública ao desenvolvimento mundial29
. A atividade da União Europeia na área do
desenvolvimento não é apenas compromisso político fundamental no contexto dos Objetivos
de Desenvolvimento do Milênio, é essencialmente compromisso jurídico-comunitário
assumido em seu Tratado constitutivo (artigo 178).
27
A definição do âmbito de proteção de um direito fundamental responde a pergunta acerca de que atos, fatos,
estados, sujeições, situações ou posições jurídicas são protegidos pela norma que garante o referido direito (Cfr.
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed. São Paulo:
Malheiros, 2011, p. 72). 28
Comunicação da Comissão ao Conselho, ao Parlamento Europeu e ao Comitê Econômico e Social Europeu de
12 de abril de 2005. COM (2005) 132 final. 29
Comunicação citada. p. 2.
31
Os laços de solidariedade interconstitucionais entre a ordem interna, internacional e
comunitária para garantia de proteção integral ao desenvolvimento, são por demais intensos,
para permitir o inadequado isolamento das jurisdições e organizações estatais na proteção de
direitos e atribuição de responsabilidades.
2.4 Dos limites e possibilidades de uma teoria constitucional integral de
proteção
Conforme observa Flávia Piovesan, uma das maiores fragilidades do sistema
internacional de direitos humanos atém-se às dificuldades de implementação de direitos – o
chamado implementation gap. Nesse sentido, destaca-se o desafio de implementação do direito
ao desenvolvimento30
.
Destaca-se a importante advertência de André de Carvalho Ramos:
Sem uma teoria sistematizada de direitos humanos repleta de marcos de
orientação para decisões futuras, deslegitima-se o próprio intérprete
internacional, que muitas vezes terá que avaliar atos estatais aprovados
por maiorias democráticas, mas violadores de direitos humanos de
minorias31
.
Nesse sentido, buscamos aliar ao desafio da implementação de direitos a teoria
sistematizada de proteção integral. O “constitucionalismo integral” ou “teoria integral de
proteção” nasce da necessidade de promover a organização sistêmica multinível para proteção
de direitos fundamentais, humanos e comunitários (direitos interconstitucionais).
Os direitos interconstitucionais, em sua maioria, possuem conteúdos axiológicos
coincidentes e em todos os casos, igual hierarquia deontológica. Porém, são protegidos
institucionalmente por jurisdições diversas (constitucional, internacional e comunitária), que
marcam seu ponto de vista normativo sobre o conteúdo, alcance, limites e possibilidades
hermenêuticas fora do sistema solidariamente integrado de jurisdições e distante das realidades
locais.
30
PIOVESAN, Flávia. Direito ao desenvolvimento – desafios contemporâneos. In: PIOVESAN, Flávia;
SOARES, Inês Virgínia Prado (Coordenadoras). Direito ao Desenvolvimento. Belo Horizonte: Editora Forum,
2010, p. 106. 31
RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 2014, p. 29. André de Carvalho Ramos destaca, na mesma passagem, a importância de sistematizar uma
teoria baseada na iuris prudentia para que possamos expor as insuficiências e tibiezas das decisões dos intérpretes
internacionais, que não podem nunca ser invocadas com temor reverencial ou como definitivo argumento de
autoridade. (a teoria da decisão em nível interconstitucional será tratada no próximo capítulo).
32
Equivocadamente, as diversas jurisdições (interna, internacional e comunitária)
estabelecem justificação heurística para sobrepor-se às demais jurisdições. Perdem-se no inútil
debate sobre o monismo versus dualismo, buscando para si inadequado protagonismo, quando
esse deve residir no ser humano e sua integral proteção.
A teoria integral de proteção estabelece diálogo hermenêutico aberto e diatópico
entre as ordens interna, internacional e comunitária no âmbito da jurisdição interconstitucional.
Numa teoria integral de proteção, presente a expansão da jurisdição constitucional
dos direitos transindividuais para o domínio comunitário e internacional, a análise sobre o
âmbito de proteção, restrições, conteúdo e eficácia do direito fundamental ao desenvolvimento,
recai necessariamente em abordagem zetética, integral de proteção, pluralista de alternativas e
solidarista.
Aproxima-se da perspectiva integral de proteção os deveres solidários dos
particulares na promoção do direito ao desenvolvimento. Hoje o Direito Privado reapresenta-
se, conforme Giorgio Oppo, como direito sim dos particulares, mas dos particulares uti cives;
direito dos particulares como portadores da sua própria singularidade, mas também da
necessidade de comunicá-la aos outros; da necessidade de isolar-se (que é algo a ser
respeitado) mas também de associar-se; da necessidade de defender a própria personalidade,
mas também de desenvolvê-la na comunidade que a enriquece e não a comprime32
.
As garantias instrumentais de proteção dos direitos, presentes no sistema
interconstitucional, são legitimamente utilizáveis no seu universo amplo de aplicação. Desta
forma, seria possível ao Ministério Público de qualquer país, propor Ação Civil Pública perante
a Corte Interamericana de Direitos Humanos utilizando-se dos instrumentos jurídicos
constitucionais, internacionais e comunitários de proteção mais eficazes do bloco de
interconstitucionalidade.
É reciprocamente possível a aplicação do controle de convencionalidade presente
na jurisdição internacional no âmbito interno de cada país. A jurisdição interna de proteção
integral dos direitos humanos, fundamentais e comunitários, em face do art. 5º, § 2º (cláusula
de abertura) combinado com o art. 102, III (controle difuso), ambos da Constituição Federal,
possibilita aos magistrados brasileiros o exercício do controle difuso de convencionalidade.
32
OPPO, Giorgio. Diritto privato e interessi pubblici. In: Revista di Diritto Civile, 1994, n 1, p. 26. No mesmo
sentido, repensando a responsabilidade sob essa mesma perspectiva: RICOER, Paul. Lê Concept de
Responsabilité. Essai d’Analyse Sémantique. In: Lê Juste. Espirit, 1992, p. 41-70.
33
No controle difuso de convencionalidade a questão interconstitucional é prejudicial
(deve ser decidida pelo juiz antes de julgar o pedido principal), trata-se de incidente de
interconstitucionalidade (por atingir direito humano ou comunitário que a República Federativa
do Brasil resolveu proteger). Voltaremos ao tema do controle de convencionalidade no capítulo
seguinte.
A teoria integral de proteção impõe a responsabilidade dos participantes do
processo judiciais envolvendo direitos interconstitucionais em contraditório cooperativo. As
novas concepções de devido processo legal cooperativo e de garantia do contraditório fazem-se
presentes no § 139 da ZPO33
Alemã que trata da condução material do processo. O art. 266 do
CPC de Portugal estabelece que a condução e intervenção no processo, devem os magistrados,
os mandatários judiciais e as próprias partes cooperarem entre si, concorrendo para se obter,
com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.
Os dispositivos acima indicados refletem o que denominamos cooperative due
process, que também se faz presente no Novo Código de Processo Civil francês, em seu art.
16: O juiz deve, em todas as circunstâncias, fazer observar, e observar ele mesmo o princípio
do contraditório. Ele não pode considerar, na sua decisão, as questões, as explicações e os
documentos invocados ou produzidos pelas partes a menos que estes tenham sido objeto de
contraditório. Ele não pode fundamentar sua decisão em questões de direito que suscitou de
ofício, sem que tenha, previamente, intimado as partes a apresentar suas observações.
Contemporaneamente relativiza-se o antigo postulado: dá-me o fato que te darei o
direito. Mesmo questões de direito (submetidas à intensa atividade interpretativa e criativa por
parte dos sujeitos processuais) devem submeter-se ao contraditório cooperativo, principalmente
numa teoria integral de proteção de direitos humanos, fundamentais e comunitários, onde o(s)
titular(es) dos direitos são os verdadeiros protagonistas do processo de concretização da norma
33
(1) O órgão judicial deve discutir com as partes, na medida do necessário, os fatos relevantes e as questões em
litígio, tanto do ponto de vista jurídico quanto fático, formulando indagações, com a finalidade de que as partes
esclareçam de modo completo e em tempo suas posições concernentes ao material fático, especialmente para
suplementar referências insuficientes sobre fatos relevantes, indicar meios de prova, e formular pedidos baseados
nos fatos afirmados. (2) O órgão judicial só poderá apoiar sua decisão numa visão fática ou jurídica que não tenha
a parte, aparentemente, se dado conta ou considerado irrelevante, se tiver chamado a sua atenção para o ponto e
lhe dado oportunidade de discuti-lo, salvo se se tratar de questão secundária. O mesmo vale para o entendimento
do órgão judicial sobre uma questão de fato ou de direito, que divirja da compreensão de ambas as partes. (3) O
órgão judicial deve chamar a atenção sobre as dúvidas que existam a respeito das questões a serem consideradas
de ofício. (4) As indicações conforme essas prescrições devem ser comunicadas e registradas nos autos tão logo
seja possível.Tais comunicações só podem ser provadas pelos registros nos autos. Só é admitida contra o conteúdo
dos autos prova de falsidade. (5) Se não for possível a uma das partes responder prontamente a uma determinação
judicial de esclarecimento, o órgão judicial poderá conceder um prazo para posterior esclarecimento por escrito.
34
no ambiente plural de possibilidades e democrático de intérpretes, na conhecida formulação
teórica de Peter Häberle.
O princípio da cooperação também decorre da boa-fé processual, que é standard
institucional de conduta, princípio que agrupa certas regras que exigem determinada atuação
das partes em suas relações, determinando postura ética e socialmente valorada de cooperação
e lealdade objetivando o exercício dos deveres solidários de proteção dos direitos
interconstitucionais envolvidos.
Outro aspecto relevante da teoria integral é o estabelecimento do standard inicial
de proteção ou delimitação prévia do conteúdo essencial. O núcleo intangível dos direitos
humanos, fundamentais e comunitários deve ser preliminarmente identificado e imediatamente
protegido em nível judicial, legislativo ou administrativo, antes de qualquer tomada de decisão.
Mantida a proteção do conteúdo essencial, a determinação do âmbito de proteção, conteúdo e
eficácia passará por processo democrático e cooperativo de decisão estatal,
argumentativamente orientado por processos transparentes de ponderação.
A teoria integral de proteção, com direitos inseridos numa complexidade estrutural
multinível de interconstitucionalidade, assume relevância o modelo de intervenção estatal
solidária, onde se busca o pleno desenvolvimento com o compartilhamento de tarefas e
responsabilidade, em grande parte, assumidas pelo Estado, de outro lado, vinculadas às
empresas transnacionais e ao setor privado interno em função do seu dever transindividual de
promoção do desenvolvimento social, cultural e econômico da sociedade que possibilitou a
expansão do seu capital.
A teoria de proteção integral é receptiva à teoria da eficácia direta e imediata dos
direitos fundamentais nas relações privadas – eficácia horizontal direta. Essa tese foi defendida
inicialmente na Alemanha por Hans Carl Nipperdey, a partir do início da década de 50.
Nipperdey justifica sua afirmação com base na constatação de que os perigos que espreitam os
direitos fundamentais no mundo contemporâneo não provem apenas do Estado, mas também
dos poderes sociais e de terceiros em geral34
.
A teoria da eficácia horizontal mediata ou indireta dos direitos fundamentais foi
desenvolvida originariamente na doutrina alemã por Günter Dürig, em obra publicada em
34
SARMENTO, Daniel. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais no direito comparado e no
Brasil. In: BARROSO, Luis Roberto. A nova Interpretação Constitucional - Ponderação, Direitos Fundamentais
e Relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 220
35
195635
, trata-se de construção intermediária entre a que simplesmente nega a vinculação dos
particulares aos direitos fundamentais e aquela que sustenta a incidência direta destes direitos
na esfera privada.
Diante da multiplicidade de empresas transnacionais com relevante participação no
processo econômico produtivo, sua vinculação direta à garantia do desenvolvimento é algo
inseparável da teoria integral.
Hoje, importante segmento da doutrina alemã, vem defendendo a tese de que a
doutrina dos deveres de proteção do Estado, em relação aos direitos fundamentais, constitui a
forma mais exata para solucionar a questão da projeção destes direitos no âmbito das relações
privadas, entre eles, autores com Joseph Isensee, Stefan Oeter, Klaus Stern e Claus-Wilhelm
Canaris36
.
Canaris, em obra dedicada ao estudo das relações entre os direitos fundamentais e o
direito privado, defende a natureza “imediata” da vinculação do legislador de direito privado
aos direitos fundamentais e a eficácia normativa destes como proibição de intervenção e
imperativos de tutela37
. Canaris refuta a doutrina da “eficácia imediata em relação a terceiros”,
mas afirma uma imediata vinculação do legislador de direito privado aos direitos
fundamentais. Para o autor, só deve falar-se de eficácia imediata em relação a terceiros se os
direitos fundamentais se dirigem imediatamente contra sujeitos de direito privado, como no
caso do art. 9º, nº 3, 2ª frase, da Lei Fundamental alemã38
.
Diferentemente de Canaris, entendemos que, destinatários das normas dos direitos
fundamentais são, não apenas o Estado e os seus órgãos, mas também os sujeitos de direito
privado, mesmo quando a norma fundamental não esteja dirigida imediatamente a estes
últimos, porém, decorra do sistema interconstitucional de proteção e seja razoável, adequada,
necessária e proporcional em sentido estrito a sua aplicação interprivada, para melhor proteção
ao bem jurídico lesado ou ameaçado de lesão numa relação jurídica entre particulares.
A construção de uma sociedade livre, justa e solidária demanda um conjunto de
tarefas conformadoras, direcionadas a assegurar a dignidade social do cidadão através da
igualdade de oportunidades. A justiça social e distributiva fortalecida pelos laços de
35
DÜRIG, Günther. Grundrechteund Zivilrechtsprechung. In: MAUNZ, Theodor. Festchrift für Hans Nawaiasky.
München: Beck, 1956. p. 157 et seq. 36
SARMENTO, Op. cit. p. 236 37
CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Tradução: Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo
Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2006, p. 28 et seq. 38
Ibidem, p. 55.
36
solidariedade, através do apoio mútuo entre as instituições sociais, governamentais e os
indivíduos, proporciona a igualdade de chances (garantidora das condições iniciais de
liberdade – através de políticas públicas que tornem intangível o conteúdo essencial dos
direitos fundamentais, principalmente em contextos de vulnerabilidade social); a igualdade de
resultados39
(garantidora das condições do bem-estar social em progresso existencial coletivo –
através do dever de proteção transindividual – ponderando a proteção individual em face da
coletividade e da distribuição global dos recursos) e a igualdade solidária (garantidora das
condições de participação ativa no desenvolvimento – através da intensificação dos laços de
solidariedade social).
O modelo federalista de cooperação (federalismo cooperativo) atribui aos entes
federados nova competência interconstitucional para proteção de direitos constitucionais
federativos como a redução das desigualdades regionais e o direito transindividual ao
desenvolvimento sustentável. Do dever de proteção integral às comunidades locais e regionais
na ordem interconstitucional, decorre a obrigação de promover simetria legislativa e
institucional-federativa com a eficácia ótima dos direitos humanos, fundamentais e
comunitários. Cria-se o correspondente direito federativo de participação ativa e representação
no âmbito interconstitucional. Nasce a relação de interconstitucionalidade federal externa -
diálogo de proteção integral entre Constituição Comunitária, Constituição Federal, Tratados
Internacionais de Direitos Humanos, Leis Orgânicas e Constituições dos entes federados.
Permanece a relação entre Constituição Federal e Constituições dos Estados –
interconstitucionalidade federal interna40
.
Por fim, diante da demanda crescente por direitos essenciais ao desenvolvimento, é
imprescindível à teoria integral de proteção a implementação de sistema transparente para
determinação dinâmica (alterável conforme necessidade e possibilidade da sociedade – setores
público e privado), porém substancial, de percentual do Produto Interno Bruto de cada país a
ser investido na promoção do direito ao desenvolvimento. A erradicação da pobreza e a
39
Na opinião de Ricardo Lobo Torres, a igualdade de resultados compõe a ideia de justiça. A sua obtenção
depende do nível de riqueza do país e da reserva da lei. Dworkin, em obra recente (A Virtude Soberana), distingue
entre igualdade de bem-estar e igualdade de recursos; a igualdade de bem-estar se aproxima da ideia de igualdade
de resultados. (A metamorfose dos direitos sociais em mínimo existencial. In: Direitos Fundamentais Sociais:
Estudos de Direito Constitucional, Internacional e Comparado. Cit., p. 37.) 40
Sobre a relação de interconstitucionalidade federal interna (artigo 25 da Constituição Federal): OLIVEIRA
JUNIOR, Valdir Ferreira de. Constitucionalismo multinível – contribuição para a compreensão da
Interconstitucionalidade no Estado Constitucional. Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE). Salvador:
Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 10, 2007, p. 9.
37
expansão das capacidades humanas para participação ativa e solidária no processo de
desenvolvimento são fundamentais na consolidação da sua permanência.
2.5 Âmbito de proteção, conteúdo, restrições e eficácia do direito ao
desenvolvimento
Na concepção de Pieroth e Schlink o âmbito de proteção é aquela fração da vida
protegida por uma garantia fundamental41
. Quanto mais amplo for o âmbito de proteção do
direito ao desenvolvimento, maior o número de atos possíveis de qualificação como restrição.
Concebemos o direito fundamental ao desenvolvimento como princípio dotado de
suporte fático amplo (posição prima facie – aplica-se por ponderação) e não como regra
(posição definitiva – aplica-se por subsunção)42
.
Alexy trabalha com a hipótese de que todos os direitos fundamentais possuem a
natureza jurídica de princípio. Nas palavras do professor da Universidade de Kiel: direitos
fundamentais como princípios são mandamentos de otimização. Como mandamentos de
otimização, princípios são normas que ordenam que algo seja realizado, relativamente às
possibilidades fáticas e jurídicas, em medida tão alta quanto possível43
.
Importante esclarecer que também as regras devem ser realizadas de maneira
otimizada44
, principalmente as regras constitucionais em face do princípio da máxima
efetividade. Tal percepção levou Alexy a concluir que a diferença entre regra e princípio é
qualitativa e não de grau45
. Com relação às regras não se processa ponderação: ou elas são
cumpridas ou não. Não ocorre ponderação em sentido técnico-jurídico46
.
41
Nesse sentido: PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Grundrechte – Staatsrechte II. 21. ed. Heidelberg: C. F.
Muller, 2005, p. 53-54. 42
Cfr. ALEXY, Robert. . Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros,
2008. P. 117 et seq. 43
ALEXY, Robert. Direitos Fundamentais, Ponderação e Racionalidade. Revista de Direito Privado. São Paulo:
RT, nº 24, 2005, p. 339. In: Teoria de los derechos fundamentales: el derecho y la justicia. Madrid: CEPC, 2002,
p. 83 et seq, Alexy fará a seguinte distinção: As regras são comandos de definição e os princípios são comandos
de otimização. Os princípios são normas com grau de generalidade relativamente alto, e as regras são normas com
grau de generalidade baixo. 44
Cf.: SILVA NETO, Manoel Jorge. O princípio da máxima efetividade e a Interpretação Constitucional. São
Paulo: LTr, 1999. 45
ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales…, p. 87. “(…) las reglas contienen determinaciones en
el ámbito de lo fáctica y jurídicamente posible. Esto significa que la diferencia entre reglas y principios es
cualitativa y no de grado. Toda norma es o bien una regla o un principio. 46
Em sentido contrário: ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios
jurídicos. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 52.
38
Aponta Claus–Wilhelm Canaris que os princípios não devem, fundamentalmente,
ser colocados num quadro de exclusividade. Os princípios ostentam o seu sentido próprio
apenas numa combinação de complementação e restrição recíprocas47
.
Ressalte-se que a ponderação não se confunde com a interpretação. Ensina
Canotilho que:
A actividade interpretativa começa por uma reconstrução e qualificação
dos interesses ou bens conflituantes procurando, em seguida, atribuir
um sentido aos textos normativos a aplicar. Por sua vez, a ponderação
visa elaborar critérios de ordenação para, em face dos dados normativos
e factuais, obter a solução justa para o conflito de bens 48
.
Constituindo a ponderação processo normativa e racionalmente orientado e
conformado pela harmonização ou concordância prática entre os valores constitucionais
fundamentais, a construção da norma de decisão, que se dará sempre no processo de
concretização da norma, deverão ser observados os fatores jurídicos e racionais que orientam a
ponderação.
Nesse ponto nos afastamos da ideia de suporte fático restrito de Friederich Müller
em sua teoria estruturante do direito. Para Müller, restrições pressupõem algo externo ao
direito fundamental, algo que não faz parte do seu conteúdo, ponto de vista que deve ser
rejeitado, já que a interpretação do programa da norma e a definição do âmbito da norma
seriam suficientes para definir, ao mesmo tempo, o conteúdo e os limites de cada direito
fundamental. A tese de Müller é, portanto, incompatível com a ideia de ponderação49
.
O amplo espaço de regulação ou de conformação (Regelung oder Ausgestaltung)
do direito ao desenvolvimento em nível interconstitucional, principalmente através de políticas
públicas, ausente reserva legal expressa, explicitando a possibilidade de intervenção legislativa
limitadora do desenvolvimento, faz surgir perigos decorrentes dos abusos e omissões capazes
de intervir no âmbito de proteção desse direito fundamental. Dessa forma apenas a colisão de
direitos fundamentais, comunitários e humanos com o direito ao desenvolvimento ou outros
47
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. 3. ed.,
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 92-93. 48
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional... Cit., p. 1221. 49
Nesse sentido SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais. Cit. p.87. Müller define programa da
norma como resultado do tratamento de todos os dados linguísticos do texto normativo; já o âmbito da norma
seria a porção da realidade social em sua estrutura básica, a qual o programa da norma autoriza definir a partir do
domínio geral de regulamentação (Juristische Methodik, p. 142).
39
valores jurídicos de hierarquia interconstitucional pode, excepcionalmente estabelecer
restrições, sempre num processo de ponderação normativa e concretamente orientado.
O caráter dinâmico e pendular do desenvolvimento aponta como uma de suas
garantias contra intervenções estatais excessivas a intangibilidade do seu conteúdo essencial. A
consolidação do regime interconstitucional do desenvolvimento expressa, a partir das suas
mais variadas funções, caráter multidimensional, com similar orientação axio-deontológica,
fundamentada na dignidade humana50
.
Em sentido diverso, porém muito próximo às nossas ideias, Duguit já afirmara:
“todo individuo tem a obrigação de cumprir na sociedade certa função em razão direta do lugar
que ocupa. O possuidor da riqueza pode realizar trabalho, que em função dessa riqueza, só ele
pode realizar. Só ele pode aumentar a riqueza geral fazendo valer o capital que possui. Está
socialmente obrigado a realizar essa tarefa”. A propriedade não é o direito subjetivo do
proprietário; é a função social do possuidor da riqueza. O Direito positivo não protege o
pretendido direito subjetivo do proprietário; mas garante a liberdade do possuidor da riqueza
para cumprir a função social que lhe incumbe pelo fato mesmo dessa posse, podendo-se dizer
que a propriedade se socializa51
.
O princípio da solidariedade oferece o fundamento às diversas funções, decorrentes
do exercício do direito-dever de propriedade, expressas nos artigos da Constituição Federal: 3º,
IV (função social trabalhista) 5º, XXII (função individual), XXIII (função social fundamental),
XXV (função garantística); 170, II (função principiológica da ordem econômica); 182, §2º
(função social urbanística); 186 (função social rural); 185, I (função de intangibilidade – com
fundamento no mínimo existencial); 185, II (função de intangibilidade – com fundamento no
desenvolvimento e dever de progresso); 216, I ao V, §1º (função cultural: artística, paisagística,
urbanística, histórica, arqueológica, paleontológica e científica); 225 (função ambiental).
O direito fundamental ao desenvolvimento decorre do objetivo fundamental
estabelecido no art. 3º, II da CRFB, tornando o dispositivo constitucional multifuncional.
Cumpre dupla função sistêmica: é direito fundamental transindividual (com todas as
consequências possíveis e decorrentes da inserção dos direitos fundamentais numa teoria
50
Para uma visão mais ampla dos diversos desdobramentos do princípio da dignidade da pessoa humana:
SOARES, Ricardo Maurício Freire. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo:
Saraiva, 2010. BARCELLLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da
dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. 51
DUGUIT, León. Las Transformaciones del Derecho (Público y Privado). Buenos Aires: Editorial Heliasta, 1975,
p. 240.
40
integral de proteção) e também é política pública fundamental (parâmetro de controle para
todas as políticas públicas de promoção do desenvolvimento).
Dirley da Cunha Junior, ao tratar dos direitos de terceira dimensão, que ele também
denomina direitos de solidariedade, ensina que tais direitos encerram poderes de titularidade
coletiva ou difusa atribuídos genericamente a todas as formações sociais – consagram o
princípio da solidariedade ou fraternidade e correspondem a momento de extrema importância
no processo de desenvolvimento e afirmação dos direitos fundamentais, notabilizados pelo
estigma de sua irrecusável inexauribilidade52
.
Manoel Jorge e Silva Neto irá inserir o direito ao desenvolvimento na categoria dos
interesses transindividuais, de natureza difusa, integrante da terceira geração de direitos
fundamentais e pensará a quarta geração fundamentada na busca da isonomia substancial
(direitos das minorias). Em suas palavras:
Embora tenham sido os direitos de caráter prestacional aqueles que, de
forma pioneira, exigiram que o Estado se afastasse do laisser-faire
laisser-passer, a própria natureza dos direitos fundamentais de terceira
e quarta gerações impôs a persistência de modelo de sociedade política
igualmente comprometida com a efetivação dos direitos da coletividade
(direitos ou interesses difusos – terceira geração) e com a busca da
isonomia substancia (direitos das minorias- quarta geração). Se é assim,
torna-se evidente que o abstencionismo estatal se põe em rota de
colisão com a concretização dos direitos fundamentais atuais53
.
Há um conteúdo essencial em todo direito fundamental cuja garantia torna incompatível à
constituição qualquer limite que invada o referido conteúdo54
. Nesse mesmo sentido preceitua a
Constituição alemã: Art. 19, § 2º, da Constituição de Bonn: “Em nenhum caso pode um direito
fundamental ser violado em seu conteúdo essencial” (“In keinem Falle darf ein Grundrecht in
seinem Wesensgehalt angetastet werden”).
A Constituição portuguesa também estabeleceu seu marco constitucional de
proteção ao conteúdo essencial no art. 18, § 3º: “As leis restritivas de direitos, liberdades e
garantias têm de revestir caráter geral e abstrato e não podem ter efeito retroativo nem diminuir
a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais”.
52
CUNHA JUNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2014, p.
483 53
SILVA NETO, Manoel Jorge. Curso de Direito Constitucional. 8. Ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 672-673. 54
SILVA NETO, Manoel Jorge. Op. Cit. p. 675.
41
O conteúdo essencial do direito fundamental transindividual ao desenvolvimento é
formado por uma projeção mínima de progresso existencial e vedação do retrocesso social.
Portanto, mantidas as conquistas sociais civilizatórias já alcançadas, deve o Estado intervir na
sociedade para melhoria dos padrões existenciais.
Mantidos os programas normativos interconstitucionais (enunciados linguísticos)
que integram o regime do desenvolvimento, eventuais mudanças no âmbito normativo
(realidade social) em situações críticas, são capazes de provocar retrocessos sociais. Nesse
ponto, a vedação do retrocesso provoca o dever estatal de planejar a retomada do progresso,
incluindo os direitos fundamentais de forma global e indivisível num processo inicial de
momentânea limitação recíproca, para, a seguir reestabelecer seu momento eficacial anterior à
crise. De igual modo, os saltos qualitativos de progresso e crescimento econômico, devem
provocar expansão e celeridade no cumprimento das metas de desenvolvimento, especialmente
nas áreas mais críticas ligadas à erradicação da pobreza, mortalidade infantil e combate às
endemias.
O mínimo existencial (existenzminimum) se confunde com o conteúdo essencial de
do direito fundamental ao desenvolvimento55
possuindo intangibilidade em face da reserva do
possível. A reserva do possível é aplicável apenas ao médio e máximo existencial, sempre
aferível no caso concreto envolvendo processo de ponderação, portanto, sua aplicabilidade fica
restrita ao âmbito de eficácia transcendente ao mínimo existencial.
No caso do Brasil, em que surgem políticas públicas como “O Brasil sem miséria”,
no momento em que a UNESCO em seu relatório sobre o desenvolvimento humano (Human
Development Report 1994. New York: United Nations Development Programme, 1994, p. 19)
apontou que: “Nas sociedades pobres o que está em risco não é a qualidade de vida — mas a
própria vida”, presentes os direitos fundamentais transindividuais ao desenvolvimento à
erradicação da pobreza (art. 3º, CRFB), é impensável relativização do núcleo essencial dos
55
Nesse sentido: PIEROTH/SCHLINK (Grundrechte Staatsrecht II. Heidelberg: C. F. Müller, 1999, p. 65)
afirmam que ”o conceito de limites dos limites (Schranken-Scranken) indica as restrições para o legislador quando
ele restringe o exercício dos direitos fundamentais” e nele incluem: - a reserva parlamentar; - o princípio da
proporcionalidade (proibição de excesso – Übermassverbot); - a garantia do conteúdo essencial (art. 19, § 2º, da
Lei Fundamental); - a proibição de leis casuísticas (art. 19, § 1º, alínea 1); - o dever estatal de clareza e plena
determinação do suporte fático e da consequência jurídica (princípio da determinação – Bestimmtheitsgrundsatz).
No mesmo sentido: Robert Alexy, Martin Borowski, Peter Häberle, G. Leisner (tais autores, mesmo divergindo em
pontos específicos, sobre o aspecto das restrições a partir das teorias interna e externa dos direitos fundamentais,
consideram intangível o núcleo essencial ou mínimo existencial. Existe doutrina que distingue conteúdo essencial
(presente em todos os direitos fundamentais) do mínimo existencial (ligados apenas às condições de existência e
sobrevivência do ser humano).
42
direitos fundamentais em face, tanto da reserva de orçamento, quanto da reserva do
economicamente possível.
A expressão “reserva do possível” (Vorbehalt des Möglichen) surgiu na decisão do
Tribunal Constitucional alemão (Bundesverfassungsgericht) envolvendo a possibilidade de o
Judiciário criar vagas na Faculdade de Medicina para estudantes habilitados no vestibular, mas
não classificados56
. Tal expressão foi adotada pela doutrina germânica57
e tem sido utilizada em
Portugal58
.
Todos os direitos sociais são fundamentais, que dependem de conjunturas
econômicas, jurídicas, políticas, sociais e culturais propícias à sua máxima efetividade. O fato
de existir retrocesso no plano ontológico (crises econômicas) não implica necessariamente a
diminuição de sua potencialidade normativa (em termos deontológicos e de proteção do seu
conteúdo essencial). A vedação do retrocesso social demanda análise complexa de ponderação
de interesses em ambiente pluralista de alternativas (realidade-necessidade-possibilidade),
jamais a retirada da sua fundamentalidade formal ou material.
J. Isensee afirma que as prestações sociais dependem da “soberania orçamentária
do legislador” (Haushaltssouveranität des Gesetzgebers), observa que a proteção dos direitos
sociais depende da conjuntura econômica (Wirtschaftkonjunktur) e que as “normas
constitucionais não afastam as crises econômicas (Verfassungsnormen banen nicht
56
Cf. BVerfGE 33: 303-333: Decisão (Urteil) do Primeiro Senado de 18 de julho de 1972:“Os direitos a
prestações (Teilhaberecht) ... não são determinados previamente, mas sujeitos à reserva do possível (Vorberhalt
des Möglichen), no sentido de que a sociedade deve fixar a razoabilidade da pretensão. Em primeiro linha
compete ao legislador julgar, pela sua própria responsabilidade, sobre a importância das diversas pretensões da
comunidade, para incluí-las no Orçamento, resguardando o equilíbrio financeiro geral ... Por outro lado, um tal
mandamento constitucional não obriga, contudo, a prover a cada candidato, em qualquer momento, a vaga do
ensino superior por ele desejada, tornando, desse modo, os dispendiosos investimentos na área do ensino superior
dependentes exclusivamente da demanda individual frequentemente flutuante e influenciável por variados fatores.
Isso levaria a um entendimento errôneo da liberdade, junto ao qual teria sido ignorado que a liberdade pessoal, em
longo prazo, não pode ser realizada alijada da capacidade funcional e do balanceamento do todo, e que o
pensamento das pretensões subjetivas ilimitadas às custas da coletividade é incompatível com a ideia do Estado
Social... Fazer com que os recursos públicos só limitadamente disponíveis beneficiem apenas uma parte
privilegiada da população, preterindo-se outros importantes interesses da coletividade, afrontaria justamente o
mandamento de justiça social, que é concretizado no princípio da igualdade”. In: SCHWABE, Jürgen (Org.).
Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Tradução de Beatriz Hennig e
outros. Montevideo: Fundação Konrad Adenauer, 2005, p. 658/667. Mesmo sentido: TORRES, Cit, p. 15. 57
ISENSEE, J. “Verfassung ohne soziale Grundrecht”. Der Staat 19: 372, 1980; BADURA, Peter. “Das Prinzip
der sozialen Grundrechte und seine Verwirklichung im Recht der Bundesrepublik Deutschland”. Der Staat 14: 36,
1975. Nesse sentido, com vasto referencial teórico no direito alemão: TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao
mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. 58
ANDRADE, J. C. Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra:
Almedina, 1983, p. 201.
43
Wirtschaftskrisen)59
. Conforme aponta Ricardo Lobo Torres, a reserva do possível não é
princípio jurídico, nem limite dos limites, mas conceito heurístico aplicável aos direitos sociais
que não seriam, em sua opinião, fundamentais60
, tese com a qual não concordamos.
Tais observações, no entanto ficam restritas ao âmbito de proteção dos direitos
fundamentais sociais em sua média e máxima efetividade, tratando-se de mínimo existencial, a
sua proteção antecede a própria elaboração do orçamento público. Flexibiliza o próprio
orçamento em face de futuras demandas para proteção do núcleo essencial dos direitos
fundamentais.
A consequente intervenção judicial no orçamento é sempre aferível concretamente
em face das necessidades existenciais individuais e coletivas (a exemplo do contingenciamento
de recursos referentes à realização de festas populares para enfrentamento de epidemias,
combate à seca e desastres naturais), jamais ponderável em abstrato, afinal, o orçamento
público integra a ordem material fundamental de proteção intergral dos direitos, constitui sua
base econômica tecnicamente planejada para suprir as necessidades individuais e
transindividuais.
Assim, o direito fundamental social à educação poderia sofrer retrocesso em face
de efeitos climáticos, epidemias e até mesmo crises econômicas. Mas, seu reestabelecimento
progressivo, por tratar-se de direito social fundamental, demanda atitude estatal cooperativa e
pluralista para proteção do seu conteúdo essencial e dever de progresso existencial decorrente
do direito fundamental ao desenvolvimento.
Decorre naturalmente do direito ao desenvolvimento, inserindo-se em seu âmbito
de proteção, o dever estatal de planejamento e intervenção em crises de retrocesso social. Os
retrocessos são sucedidos por deveres de retomada do progresso, num ritmo ponderável com o
dever global e indivisível de proteção dos direitos fundamentais e respectivos núcleos
essenciais.
59
ISENSEE, J. “Verfassung ohne soziale Grundrechte”, cit., p. 372 e 381. 60
Cfr. TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial como conteúdo essencial dos direitos fundamentais. (texto
cedido pelo autor ao programa de mestrado/doutorado da Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Rio de
Janeiro: UERJ, 2008, p. 15.
44
3 JURISDIÇÃO INTERCONSTITUCIONAL E DESENVOLVIMENTO
A concretização dos direitos fundamentais, comunitários e humanos,
principalmente nos países em que tais direitos são constitucionalizados em virtude de sua
carência no plano fático, deve passar por critérios diferenciados de ponderação e concretização,
oferecendo novos contornos para definição do que se entende por norma constitucional,
analisando-a sob o prisma do pensamento possibilista filosófico kantiano (realidade-
necessidade-possibilidade)61
e normativo-estruturante62
(diferenciando texto de norma) para se
chegar à construção de um sistema constitucionalmente adequado de jurisdição
interconstitucional63
, capaz de oferecer integral proteção ao desenvolvimento.
No momento de superação da dogmática positivista pelo pós-positivismo e da
inserção da dignidade humana como qualificativo central do sistema de proteção do direito ao
desenvolvimento, surgem novos mecanismos para que o Poder Judiciário possa exercer seu
papel ativo na definição do conteúdo, restrições, eficácia, necessidade e possibilidade dos
direitos fundamentais, comunitários e humanos. Trata-se de expansão da jurisdição
(inter)constitucional numa estrutura dialógica de concretização desses direitos como marco
essencial do neoconstitucionalismo e da teoria integral de proteção.
A teoria integral de proteção une as diversas perspectivas (internacional,
constitucional e comunitária) do direito ao desenvolvimento num sistema interconstitucional
expandido de três níveis, sem hierarquia deontológica. Absorve as diversas possibilidades
oferecidas no plano multinível em pontes de transição intercultural no ambiente hermenêutico
diatópico, com participação popular em redes de cibercidadania, tendo a solidariedade e o
pluralismo como marcos teóricos.
61
O pensamento possibilista filosófico kantiano foi desenvolvido por Peter Häberle em sua obra Pluralismo y
Constitución: estudios de teoría constitucional de la sociedad abierta. Trad. Emilio Mikunda. Madrid: Tecnos,
2002, p. 62 et seq. O texto é tradução da versão revisada pelo autor em 2000 do seguinte texto original: Die
Verfassung dês Pluralismus. Studien zur Verfassungstheorie der offenen Gesellschaft, Athenäum TB-
Rechtswissenschaft, Könistein/Ts, 1980. 62
Nesse sentido: MÜLLER, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito. 3. ed. Tradução de Peter Naumann e
Eurides Avance de Souza. São Paulo: RT, 2011. 63
A ideia de interconstitucionalidade foi inicialmente desenvolvida por Francisco Lucas Pires, Introdução ao
Direito Constitucional Europeu, Coimbra, 1998. Expressão também utilizada por Gomes Canotilho em seu
Direito Constitucional e teoria da Constituição. p. 1407, e na sua nova obra: “Brancosos” e
Interconstitucionalidade – Itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. Coimbra: Almedina,
2006.
45
O sistema constitucional e interconstitucional de garantias e concretização dos
direitos fundamentais e humanos, enquanto criação humana, jamais poderia divergir da
natureza do seu criador: falível e em constante mutação, em busca de respostas mais eficazes
para proteção dos mais diversos interesses. Saúde, lazer, moradia, liberdade, democracia,
dignidade, educação, alimento, família, segurança, propriedade-função social, trabalho, vida,
igualdade, paz, meio ambiente sadio e sustentável e os demais bens jurídicos fundamentais,
constituem, de maneira interdependente, o núcleo de necessidades básicas existenciais de
qualquer ser humano. A maximização dos seus efeitos se revela como projeto de vida dos
integrantes das mais diversas culturas e diferentes sistemas jurídicos contemporâneos.
3.1 Diálogo interconstitucional, interconstitucionalidade e jurisdição
interconstitucional
A jurisdição interconstitucional busca estabelecer o diálogo intersistêmico de
proteção dos direitos humanos, comunitários e fundamentais em diferentes realidades culturais,
econômicas, políticas e sociais, porém não tão distintas do ponto de vista jurídico-normativo,
pois, as diversas ordens jurídicas dos Estados Constitucionais contemporâneos compartilham
princípios fundamentais comuns a exemplo do democrático, republicano, da dignidade humana
e os mais diversos direitos fundamentais, além de unirem-se cooperativa e solidariamente na
proteção internacional e comunitária dos direitos humanos. Passam assim, a estruturar o centro
do seu sistema jurídico a partir de suas soberanas escolhas constitucionais (direitos
fundamentais), comunitárias (direitos comunitários) e internacionais (direitos humanos) com
forte interferência nas múltiplas tradições jurídicas.
Há que se questionar a própria efetividade dos parâmetros constitucionais e
internacionais estabelecidos para tutela dos direitos fundamentais, comunitários e humanos
através, respectivamente, das jurisdições interna, comunitária e internacional, propiciando
tutela adequada às necessidades humanas, com o objetivo de conferir maior proximidade entre
46
texto constitucional, constituição supranacional comunitária, tratados de direitos humanos e
contexto social e assim criar o que Canotilho chama de identidade reflexiva64
.
O modelo de jurisdição interconstitucional proposto estabelece o diálogo
necessário aos sistemas interno, comunitário e internacional de proteção, adequando soluções
locais ao contexto amplo de significação dos direitos humanos em nível internacional, sem,
contudo, fechar aos debates internacionais a (re)significação dos direitos humanos partindo do
seu contexto de aplicação em realidades locais.
É com a autodescrição65
das identidades nacionais que as várias constituições dos
variados países reentram em formas organizativas superiores, com vistas à manutenção do
valor e função das constituições dos Estados66
. O fenômeno da interconstitucionalidade
pressupõe o fenômeno da interculturalidade constitucional67
.
A intercultura realça a ideia fundamental de partilha de cultura, de ideias ou
formas de encarar o mundo e os outros, rejeita a impossibilidade lógica de um
transculturalismo68
, sem, contudo, afastar a aplicação das variadas possibilidades oferecidas
pelo transconstitucionalismo69
, que adota modelo de diálogo transversal permanente entre
ordens jurídica em torno de problemas constitucionais comuns.
A teoria da interconstitucionalidade70
estuda as relações entre as diversas
constituições dentro do mesmo espaço político, a convergência, concorrência, justaposição e
conflitos de várias constituições e de vários poderes constituintes nesse mesmo espaço.
64
A identidade reflexiva, termo que Canotilho vai buscar em Luhman (Selbstreflexion dês Rechtssystems, in
Rechtstheorie, 1979, p. 159 et seq), se garante no momento em que se dota a constituição da capacidade de
prestação em face da sociedade e dos cidadãos. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição. 5. ed., Coimbra: Almedina, 2002. 65
Produção de texto com o qual e através do qual determinada organização se identifica com si própria (sentido
luhmanniano). 66
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 1408. 67
Op. Cit. p. 1409. 68
Não existem valores transculturais, pela simples razão de que um valor existe como tal apenas em um dado
contexto cultural. Cf. R. Panikkar, Aporias in the Comparative Philosophy of Religion, Man in World, XIII, 3-4
(1980), 357-383. Assim, Panikkar estabelecerá uma crítica intercultural, pela possibilidade de existência de
valores interculturais em seu texto: Seria a noção de direitos humanos um conceito ocidental? In: Direitos
Humanos na Sociedade Cosmopolita. Org. César Augusto Baldi. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 221. 69
Cf. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. Marcelo Neves recorre ao
conceito de “razão transversal” de Wolfgang Welsh em: Vernunft: Die zeitgenössische Vernunftkritik und das
Konzept der transversalen Vernunft. 2. Aufl. Frankfurt: Suhrkamp, 1996. 70
Interconstitucionalidade não é o mesmo que direito comparado, pois servem a finalidades diversas, apesar de
empregarem métodos similares. Enquanto no primeiro existe uma vinculação necessária entre as constituições, no
segundo uma determinada constituição serve de paradigma dogmático para estudo e aprofundamento de questões
jurídicas sem uma necessária vinculação. A interconstitucionalidade é fenômeno constitucional. O direito
47
Nosso objetivo é expandir o fenômeno da interconstitucionalidade (atualmente
situado entre constituições internas dos países e a constituição supranacional comunitária
desses mesmos países que formam a União Supranacional no exemplo paradigmático da União
Europeia) para o espaço internacional, dialogando cooperativamente com as convenções
internacionais de direitos humanos.
Os direitos humanos não deixam de integrar a ordem constitucional e comunitária;
primeiro, por coincidir em diversos aspectos com o núcleo de proteção dos direitos
fundamentais e comunitários; segundo, por existir nos principais Estados Constitucionais
contemporâneos norma constitucional e comunitária que recepciona ou incorpora material e
formalmente as convenções de direitos humanos ao seu sistema interno e regional de proteção,
sempre de forma dialógica e cooperativa, sem introduzir o elemento hierárquico71
.
A interconstitucionalidade é fenômeno apontado em mandamento constitucional
finalístico (política pública72
ou norma programática73
) de caráter fundamental: art. 4º,
parágrafo único da Constituição Federal: A República Federativa do Brasil buscará a
integração econômica, política, social e cultural dos povos da América latina, visando à
formação de uma comunidade latino-americana de nações.
As consequências e expansão da interconstitucionalidade no domínio federativo
(art. 25 da CRFB) que denominaremos interconstitucionalidade federal interna e
interconstitucionalidade federal externa serão analisadas no item 3.8.
comparado é método de estudo importantíssimo para identificação das famílias de Direito e os diversos sistemas
jurídicos. (nota do autor). 71
O elemento hierárquico na estrutura interconstitucional de proteção diminui o diálogo intercultural e
cooperativo entre direitos humanos, fundamentais e comunitários. Daí a incorreção e inutilidade do debate sobre o
status supraconstitucional, constitucional, infraconstitucional e supralegal, infraconstitucional, legal ou infralegal.
Os direitos humanos, fundamentais e comunitários possuem o mesmo e único status: interconstitucional, ou seja,
situam-se dialogicamente no contexto de unidade intercambiável, orientado axiologicamente pelo necessário e
presente pluralismo jurídico e cultural dos povos contemporâneos. 72
Em Ronald Dworkin, Levando os direitos a sério, publicado em 2002 pela editora Martins Fontes, a “política
pública” é espécie do gênero norma jurídica. Tal circunstância fora anteriormente percebida por Karl Loewenstein
em Political Power and the Governmental Process publicado em 1957 pela University of Chicago Press, onde
ressalta a substituição da lei pela política pública, mantendo-se a mesma separação entre a declaração, a execução
e o controle. A teoria jurídica de Ronald Dworkin encontra-se sistematizada em sua obra O Império do Direito. 73
Na perspicaz observação de Paulo Roberto Lyrio Pimenta, em Eficácia e aplicabilidade das normas
constitucionais programáticas, São Paulo: Max Limonad, 2009, p. 138: “tais programas além de obrigarem os
órgãos estatais, determinam o modo e as diretrizes através das quais o legislador ordinário deve legislar,
observando certos princípios”, com base nessa ideia inserimos o constituinte supranacional vinculado às diretrizes
constitucionais internacionais programáticas a exemplo do art. 4º, parágrafo único da Constituição Federal. Sobre
o tema ver importante trabalho de Vezio Crisafulli: Le norme “programmatiche” della costituzione. In: Stato,
popolo, governo – ilusioni e desilusioni costituzionale. Milano: Giufrè, 1985.
48
A construção em progresso do modelo supranacional de União Sul-americana
(UNASUL) implicará na futura formação da Constituição Comunitária para os povos da
América Latina em harmonia com os modelos constitucionais nacionais favorecendo o
constitucionalismo comunitário e intercultural.
Porém, a interconstitucionalidade aqui defendida já é possibilitada através dos
diversos sistemas constitucionais sul-americanos e do seu sistema internacional de proteção
dos direitos humanos.
Uma constituição supranacional para os povos latino-americanos apenas reforçaria
o diálogo interconstitucional em nível comunitário. Esse diálogo será fortalecido pala
identidade cultural e jurídica estabelecidas no sistema interamericano de proteção dos direitos
humanos, que impacta a ordem interna dos diversos países latino-americanos através do
exercício da jurisdição interconstitucional de defesa desses direitos em caso de conflito com as
leis nacionais e demais atos infraconstitucionais.
Nessa perspectiva nos esclarece Saulo Casali que desde o início, segue o Mercosul
um modelo de integração pouco arrojado. Nas suas exatas palavras “ao invés de seguir o
modelo supranacional (exemplo europeu atual), preferiu seguir o modelo interestatal”74
.
Já existe verdadeiramente uma jurisdição interconstitucional dos direitos humanos
e fundamentais, o aprimoramento do exercício dessa jurisdição na via tanto concentrada quanto
difusa e o cabimento de eventual recurso para Tribunais Internacionais, criando precedentes
para as ordens jurídicas locais, constitui paradigma constitucional e internacionalmente
adequado de conexão entre os diversos sistemas jurídicos contemporâneos. Esse diálogo
ocorrerá necessariamente em bases constitucionais solidaristas75
e internacionais
cooperativas76
.
O Human Rights Act de 1998, a nova carta de direitos fundamentais do Reino
Unido, é o maior exemplo de contribuição para o convívio interconstitucional, onde aquele
74
BAHIA, Saulo José Casali. O Mercosul e seus projetos institucionais. In:BAHIA, Saulo José Casali
(Coordenador). A efetividade dos direitos fundamentais no Mercosul e na União Europeia. Salvador: Paginae
editora, 2010, p. 531. Outra importante observação faz Saulo Casali: O fato da institucionalização do Mercosul
haver ocorrido apenas no plano intergovernamental e não supranacional faz do Mercosul um ente de existência
meramente diplomática. Inexiste controle político direto (deputados Mercosulinos eleitos diretamente, faltando no
processo, por completo, a participação da sociedade civil (Op. Cit. p. 537). 75
Sobre o pensamento solidarista ver nosso: O Estado Constitucional Solidarista: estratégias para sua efetivação
In: Tratado de direito constitucional. Tomo I. 2. ed. Coordenadores: Gilmar Ferreira Mendes; Ives Gandra da
Silva Martins e Carlos Valder do Nascimento. São Paulo: Saraiva, 2012. 76
Cfr. Peter Häberle. Estado Constitucional Cooperativo. Trad. Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio
de Janeiro: Renovar, 2007.
49
país, tradicionalmente dotado de constituição flexível, começa a permitir a existência de
declaração de incompatibilidade entre as leis e a carta de direitos fundamentais, criando nova
espécie de supremacia constitucional através da declaração de incompatibilidade de lei em face
dos direitos previstos no Human Rights Act (ressalte-se que tal declaração não acarreta a
nulidade da lei).
A Corte Constitucional do Reino Unido, criada em outubro de 2008, revela ao
Parlamento a contrariedade da lei aos direitos humanos, cabendo ao Parlamento revogá-la ou
modificá-la77
.
Atualmente, já se pode falar em exercício de jurisdição constitucional no Reino
Unido através do controle de incompatibilidade. A centralidade dos direitos humanos,
enquanto característica do neoconstitucionalismo, relativiza o princípio que perdurou por mais
de trezentos anos no sistema britânico: o princípio da supremacia do parlamento. Tal realidade
demonstra a importância dos direitos humanos, comunitários e fundamentais no novo
constitucionalismo global e multinível.
Também a Nova Zelândia acompanhou o novo paradigma constitucional de
centralidade dos direitos fundamentais ao estabelecer seu Human Rights Amendment Act em
2001. A flexibilidade constitucional (ausência de hierarquia entre norma constitucional e leis
ordinárias) tem sido superada através da supralegalidade78
ou análise de incompatibilidade das
leis em face dos direitos fundamentais nos países de constituição flexível.
Tal fenômeno ocorre de forma diversa em nosso sistema: a supralegalidade dos
direitos humanos incorporados por decreto legislativo simples insere novo mecanismo para o
exercício da jurisdição constitucional: possibilidade de declaração de incompatibilidade da lei
em face dos Tratados de Direitos Humanos, que não difere substancialmente do controle de
constitucionalidade das leis e dos atos do poder público, mas apresenta critérios diferenciados
de aplicação e recursos interpostos perante Tribunais Internacionais.
77
Nesse sentido: BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraiva,
2009, p. 14. 78
A tese da supralegalidade dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos prevaleceu no Supremo Tribunal
Federal no RE 466343/SP. Para a compreensão das diversas correntes doutrinárias sobre a posição desses tratados
no ordenamento jurídico, verificar o voto vencedor do Ministro Gilmar Ferreira Mendes. Prevaleceu a tese da
infraconstitucionalidade (estão abaixo da Constituição) e supralegalidade (estão acima das leis) dos Tratados
Internacionais de Direitos Humanos (nos termos do art. 5º, §2º da CRFB). Quanto aos Tratados Internacionais de
Direitos Humanos incorporados nos termos do art. 5º, § 3º da CRFB, este possuem status constitucional (ex:
Tratado Internacional de Proteção à Pessoa Deficiente) e passam a integrar norma constitucional fora do texto
constitucional formal-codificado.
50
Possuindo, tanto os direitos humanos quanto os direitos fundamentais e
comunitários, natureza principiológica, o seu desdobramento, detalhamento e concretização em
nível infraconstitucional ocorre, muitas vezes, através de normas de natureza finalística
(políticas públicas) que passam por controle judicial de imposição de existência (diante da
omissão do poder público em criá-las legislativamente ou executá-las adequadamente pela via
administrativa); dever de progresso (diante da estagnação do poder público); vedação do
retrocesso (diante da contração do poder público); dever de proteção do núcleo essencial
(diante das reservas impostas ao mínimo existencial pelo poder público em busca de
maximização permanente dos efeitos existenciais, impedindo política “eleitoreira” de eternizar
a miséria através de equivocada aplicação da teoria do mínimo existencial, convertendo o
mínimo existencial e o máximo potencial na ideia de progresso existencial); princípio da
diferença79
(diante da violação dos interesses das minorias excluídas das conquistas
civilizatórias).
O progresso existencial pressupõe a dimensão jurídica concretizável da dignidade
da pessoa humana como valor expansível para as demais normas do ordenamento e da própria
constituição naquilo que Ricardo Maurício Freire Soares identifica como marco axiológico
fundamental e valor-fonte de todos os demais valores jurídicos, convertendo-se em verdadeira
fórmula de justiça substancial 80
.
O exercício dialógico e intersistêmico da jurisdição interconstitucional será
fundamentada e explicitada nos tópicos seguintes, por consolidar numa única jurisdição o
marco normativo constitucional, comunitário e internacional que estabelece a proteção integral
do direito fundamental transindividual ao desenvolvimento.
79
No que se refere especificamente ao princípio da diferença, é preciso corrigir o equívoco ainda presente em
nossas Instituições que é o fato de não estarem, com raras exceções, a serviço das camadas sociais menos
favorecidas. Realizando o que Rawls denomina princípio de igualdade de oportunidades equitativas, reforçado por
um princípio de redistribuição ou princípio de diferença, segundo o qual as únicas desigualdades aceitáveis são
aquelas que beneficiam aos mais desfavorecidos (RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. 4. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, §§ 11-13 e 46.) 80
SOARES, Ricardo Maurício Freire. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.São Paulo:
Saraiva, 2010, p.131.
51
3.2 Neoconstitucionalismo como marco teórico da jurisdição
interconstitucional
No aspecto pragmático, a primeira jurisprudência (verdadeiro marco do
neoconstitucionalismo) que apresenta a concepção de Constituição como ordem de valores ou
ordem objetiva axiológica, que conforma a vida social e demanda sua aplicação em todos os
âmbitos do Direito, vem do Tribunal Constitucional Federal alemão, através da sentença Luth
(BVerfGE 7, 198 – Luth) de 1958, onde se estabelecem os conceitos centrais de valor,
ordenamento valorativo, hierarquia valorativa e sistema de valores, em que se apoiará
posteriormente o Tribunal Constitucional em numerosas decisões81
.
Sob o aspecto teórico, segundo Susanna Pozzolo82
, o neoconstitucionalismo
caracteriza-se, dentre outro fatores, pelo reconhecimento da força normativa à Constituição,
passa por distinção qualitativa e forte entre regras e princípios83
, ressaltando a expressão
valorativa dos princípios. Afirma a precedência e pertinência da moral no contexto jurídico84
.
Na perspectiva neoconstitucionalista, o jurisdição interconstitucional exerce papel
(cri)ativo85
. Não existem questões insuscetíveis de apreciação judicial, principalmente em face
da constitucionalidade (art. 5º, §3º da Constituição Federal) e da supralegalidade (art. 5º, § 2º
da Constituição Federal) dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, com ressalva do
nosso entendimento sobre a idêntica hierarquia deontológica86
entre direitos humanos,
fundamentais e comunitários.
81
Nesse sentido: CRUZ, Luis M. La constitución como orden de valores, problemas jurídicos y políticos: un
estúdio sobre las orígenes del neoconstitucionalismo. Granada: Editorial Comares, 2005, p. 9. O autor cita outras
sentenças de 1952, 1956 e 1957 que perfilavam o entendimento que se consolidou no caso Luth. 82
POZZOLO, Susanna. Neocostituzionalismo e positivismo giuridico. Torino: Giappichelli, 2001. 83
Op. Cit. p. 45 et seq. 84
Ibidem. p. 61, 147, 155 e 159. 85
O papel (cri)ativo dos intérpretes da constituição no neoconstitucionalismo refere-se à criação de novas
possibilidades de efetivar e harmonizar direitos fundamentais em conflito perante a realidade (possibilidades
fáticas – adequação e necessidade; possibilidades jurídicas – proporcionalidade em sentido estrito). Não se
confunde com discricionariedade em sentido forte (fruto do positivismo ainda impregnado na Lei de Introdução às
Normas do Direito Brasileiro), onde na ausência da lei o juiz cria o direito aplicando analogia, costumes e
princípios gerais do direito (como se princípio não fosse lei-norma). No neoconstitucionalismo, a
discricionariedade é aplicada em seu sentido fraco (Ronald Dworkin – Levando os direitos a sério), existe maior
segurança jurídica, pois, o juiz e os demais intérpretes da constituição devem decidir com base nos princípios
estabelecidos normativamente na Constituição e seus respectivos desdobramentos. 86
O mesmo não pode ser afirmado com relação ao plano axiológica (valores), onde a hierarquia axiológica se faz
presente no momento da ponderação entre interesses contrapostos diante de situações concretas de incidência do
plano deontológico (dever ser) no plano ontológico (ser).
52
Guastini, acertadamente, identifica nesse atual momento constitucional a
constitucionalização do ordenamento jurídico87
, conforme tal perspectiva, todas as normas
infraconstitucionais além de se submeter à “filtragem constitucional” são permeáveis aos
valores constitucionais que transcendem o âmbito dogmático de uma disciplina jurídica
específica, não será, portanto, através das garantias constitucionais do contribuinte, apenas para
exemplificar, que será possível afirmar a constitucionalização do direito tributário, mas através
de valores especificamente constitucionais estranhos ao conteúdo dogmático daquela disciplina
como dignidade humana, democracia, cidadania e solidariedade. Aqui se adota a perspectiva de
interconstitucionalização do ordenamento, permeando as diversas disciplinas jurídicas à
proteção integral comunitária, internacional e constitucional oferecida ao desenvolvimento
enquanto direito transindividual.
Ausente o sentimento de pertencimento ao texto constitucional de 1988 por parte
da maioria da população brasileira e em face de cultura constitucional ainda incipiente no
contexto de interpretação e aplicação das normas constitucionais em toda potencialidade
normativa que oferece a teoria integral de proteção dos direitos fundamentais, em destaque os
transindividuais, objeto de maior preocupação nas ordens internacional e comunitária, ainda é
leviana a afirmação de que efetivamente estamos vivendo a (inter)constitucionalização do
ordenamento jurídico. Muitos dos caminhos aqui propostos constituem, num universo plural de
possibilidades hermenêuticas, alternativas possíveis para o futuro alcance da sobredita
interconstitucionalização.
Susanna Pozzolo insere a Corte Constitucional como verdadeiro gestor desse novo
constitucionalismo88
. Tudo passa a ter referencial constitucional – exemplo claro dessa nova
realidade é a interpretação conforme a Constituição. A mudança aqui proposta, impõe
internacionalização através dos direitos humanos, filtrando as decisões internas através das
convenções internacionais de direitos humanos e do sistema de precedentes dos Tribunais
Internacionais, expandindo os valores internacionalmente reconhecidos nessas convenções para
87
A constitucionalização do ordenamento jurídico consiste num “proceso de transformación de un ordenamiento
al término del cual el ordenamiento en cuestión resulta totalmente ‘impregnado’ por las normas constitucionales”
(GUASTINI, Riccardo. La “Constitucionalización” del Ordenamiento Jurídico: el caso italiano. Trad.: José María
Lujambio. In: Neoconstitucionalismo(s). Edición de Miguel Carbonell, Madrid: Editorial Trotta, 2003, p. 49). 88
POZZOLO, Susanna. Neocostituzionalismo e positivismo giuridico. Cit. p. 104.
53
os diversos ramos do direito de forma dialógica, estabelecendo também o diálogo
compreensivo e dúctil89
com as normas constitucionais e comunitárias.
A Carta Magna, através dos seus princípios fundamentais, passa a produzir efeito
irradiante sobre todas as normas infraconstitucionais. Tal percepção é importantíssima para
defesa do efeito irradiante do objetivo fundamental de construção da sociedade solidária sobre
o ordenamento jurídico e reconhecimento do desenvolvimento como valor supremo, direito
fundamental transindividual e objetivo constitucional fundamental.
Aqui se insere também a centralidade dos direitos fundamentais e a importância do
discurso racional90
. Direitos fundamentais que se traduzem em princípios. Discurso racional
que se concretiza e se orienta pelo raciocínio jurídico denominado ponderação91
.
Outro marco teórico importante que percebemos no neoconstitucionalismo é a
relação entre linguagem e interpretação. A linguagem deve ser percebida enquanto ser
(existencial), e não como terceira coisa que se interpõe entre o pesquisador e seu objeto de
estudo, como a percebeu Heidegger e Gadamer. A linguagem é constituinte e possibilitadora da
compreensão, através dela estabelecemos o nosso “ser-no-mundo”. Dirá Witgenstein: os
limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo92
, enquanto Gadamer
afirmará: o ser que pode ser compreendido é linguagem93
.
89
Sobre o caráter dúctil ver ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia. 7. ed. Madrid:
Editorial Trotta, 2007, p. 14. Essa caráter dúctil permite uma coexistência pluralista entre os diversos valores e
princípios constitucionais, como forma de não renunciar sua unidade e integração. Nesse ponto o autor estabelece
um diálogo com o pensamento pluralista de alternativas ou possibilista de Peter Häberle também citado neste
trabalho. 90
SANCHÍS, Luis Prieto. Neoconstitucionalismo y ponderación judicial. In: Neoconstitucionalismo(s). Edición de
Miguel Carbonell, Madrid: Editorial Trotta, 2003. p. 157: Adverte o autor sobre a necessidade de: “depurada
teoría de la argumentación capaz de garantizar la racionalidad y de suscitar el consenso en torno a las
decisiones judiciales”. 91
Nossa proposta de raciocínio por ponderação passa pelo que denominamos: fatores de ponderação. Propomos a
inserção da razoabilidade no plano jurídico e existência e a proporcionalidade no plano jurídico de validade,
assim, a sanção por violação à razoabilidade é a inexistência, enquanto que a violação à proporcionalidade
acarreta nulidade. Nesse sentido: OLIVEIRA JUNIOR, Valdir Ferreira de. Fatores de ponderação na interpretação
e concretização dos preceitos fundamentais – procedimentos normativo e discursivo. Revista do Programa de
Pós-graduação em Direito – Universidade Federal da Bahia. Salvador: UFBA, Nº 13, 2006. 92
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado Lógico-Filosófico e Investigações Filosóficas. Tradução e prefácio: M. S.
Lourenço. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, proposição 5.6. 93
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I – Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad.
Enio Paulo Giachini. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 512. Gadamer parte do postulado, criado por Heidegger, de
que a compreensão já é sempre interpretação. Nesse ponto encontra-se sua divergência com Emilio Betti, para
esse último, a interpretação é o caminho para se chegar à compreensão (BETTI, Emilio. A interpretação da lei e
dos atos jurídicos. São Paulo: Martins Fontes, 2007).
54
A linguagem não serve a uma série de reproduções verbais de fatos. Cada
linguagem expressa determinada forma de vida: a colaboração de indivíduos por compartir
modos de ação estabelecidos por convenções entendidas comumente. O fenômeno
hermenêutico desenvolve aqui a sua própria universalidade à constituição ontológica do
compreendido, na medida em que a determina, num sentido universal, como linguagem, e
determina sua própria referência ao ente como interpretação94
.
Gadamer95
conclui afirmando que não existe nenhuma compreensão totalmente
livre de preconceitos, embora a vontade do nosso conhecimento deva sempre buscar escapar de
todos os nossos preconceitos.
Afinal, quem quiser compreender um texto, realiza sempre um projetar. Tão logo
apareça um primeiro sentido no texto, o intérprete, partindo da sua pré-compreensão, antecipa
um sentido do todo. Naturalmente que o sentido somente se manifesta porque quem lê o texto
lê a partir de determinadas expectativas e na perspectiva de um sentido determinado. A
compreensão do que está posto no texto consiste precisamente na elaboração desse projeto
prévio (pré-compreensão), que, obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado com
base no que se dá conforme se avança na penetração do sentido. Nesse projeto de revisão
constante é que Gadamer desenvolverá a sua ideia de círculo hermenêutico96
.
Afirma Engish, na conclusão dos seus estudos em Introdução ao pensamento
jurídico, naquela que seja talvez a lição mais importante de sua obra:
(...) trata-se de superar um puro positivismo legalista e de permitir à voz do
espírito objetivo ressonância no Direito. Mas a dilucidação teorética e a
legitimação destes esforços conduz inegavelmente para além da heurística e
da metódica jurística enquanto tais, conduzem para o domínio do pensamento
filosófico e dos particulares modos de conhecimento. Este domínio tem o
jurista na verdade que o abranger no seu olhar e de o manter presente na sua
visão como pano de fundo das suas reflexões97
.
94
GADAMER, Hans-Georg. Op. Cit., p. 612. 95
Ibidem, p. 631. 96
Ibidem, p. 356. 97
ENGISH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. Trad. J. Batista Machado. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2004, p. 387.
55
O Direito é um dos campos do conhecimento mais próximos da sociedade, sujeito
aos influxos da pluralidade moral da humanidade, refletindo as diferentes necessidades e
valores que a integram e aberto às contribuições das demais ciências sociais, identificando-se
como ciência compreensiva e fundada no ideal de solidariedade.
Os processos formais e informais de mudança da Constituição representam, ou
devem representar os reflexos da constante atualização do texto constitucional, para adaptá-lo
ao contexto social em que é aplicado, principalmente pela centralidade que os direitos
fundamentais ocupam no ordenamento jurídico.
Nessa mesma perspectiva, afirma Canotilho que a identidade da constituição não
significa a continuidade ou permanência do “sempre igual”, pois, num mundo sempre
dinâmico, a abertura à evolução é elemento estabilizador da própria identidade98
.
3.3 Estrutura interconstitucional do direito transindividual ao
desenvolvimento
O direito transindividual ao desenvolvimento é espécie do gênero direito
interconstitucional (possui âmbito de proteção multinível – direito humano, fundamental e
comunitário).
A estrutura interconstitucional dos direitos fundamentais, comunitários e humanos
deriva da convergência de interesses locais, transnacionais e internacionais em sua integral
proteção; legitimamente inseridos nesse sistema interconstitucional por múltiplos fatores
históricos, econômicos, sociais, políticos e culturais, que transcendem a análise do presente
trabalho. Tais direitos representam a necessidade de reconhecimento de cada nação da sua
condição humana em progresso e comunhão com outros povos. É a confirmação de que seu
projeto de vida enquanto sociedade encontra-se integrado com valores que historicamente
foram solidificados nos mais diversos textos e culturas constitucionais contemporâneos,
enquanto expressão de conquistas civilizatórias para o progresso existencial da humanidade.
O caráter estrutural interconstitucional afasta a hierarquia entre direitos humanos,
fundamentais e comunitários, portanto, todos eles devem derivar de manifestação do mesmo
poder constituinte em competente exercício reformador (poder constituinte derivado). Desta
98
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5. ed., Coimbra: Almedina, 2002,
p. 1057.
56
forma, devem ser introduzidos mecanismos formais de incorporação de direitos humanos e
comunitários (os direitos fundamentais já o são) através do processo legislativo próprio das
Emendas Constitucionais nos países que adotarem o modelo de jurisdição interconstitucional.
Qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito fundamental ou humano merece o
mesmo tratamento jurídico-constitucional, é o que se extrai da interpretação da cláusula de
abertura constitucional presente no art. 5ª, § 2º da Constituição, portanto, entendemos como
obrigatória a incorporação dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos obedecendo ao
processo legislativo próprio das Emendas Constitucionais, sendo aqueles Tratados
Internacionais de Direitos Humanos anteriores à Emenda Constitucional 45/2004 (emenda que
inseriu, dentre outros dispositivos, o §3º ao art. 5º), recepcionados com status constitucional,
em consonância com a própria jurisprudência do STF sobre a inexistência de
inconstitucionalidade formal superveniente. Esta seria, em nosso ponto de vista, a interpretação
conforme a constituição do novo dispositivo constitucional (§3º do art. 5º) inserido por
Emenda99
.
Cabe observar que o Supremo Tribunal Federal adota atualmente a tese da
supralegalidade dos direitos humanos incorporados ao sistema jurídico por decreto legislativo
aprovado por maioria simples, enquanto aqueles incorporados pelo processo legislativo da
Emenda Constitucional possuem status constitucional (são material e formalmente decretos
legislativos equivalentes às emendas Constitucionais).
Apesar de defender o status (inter)constitucional de todos os Tratados de Direitos
Humanos atualmente incorporados ao nosso sistema jurídico, divergindo do atual entendimento
do STF sobre a supralegalidade, tal posição não desvirtua, tampouco diminui o papel da
jurisdição interconstitucional, desde que o status supralegal ofereça proteção eficiente e
adequada em face da legislação infraconstitucional e dos demais atos do poder público.
Os problemas de ordem recursal (Recurso Extraordinário) e do direito de ação
(ADI, ADPF, ADC, ADO), principalmente no que se refere ao regime constitucional do
controle de constitucionalidade difuso e concentrado, presente um sistema constitucionalmente
expresso de controle de convencionalidade (art. 5º, § 2º e 102, III da CRFB), necessariamente
levará o Supremo a duas alternativas igualmente adequadas: a) aplicar por simetria as normas
99
Nesse mesmo sentido: Manoel Jorge e Silva Neto defende a tese da recepção com status constitucional, em aula
do programa de pós-graduação do doutorado em direito público da Faculdade de Direito da UFBA, na disciplina
Teoria da Constituição, em janeiro de 2013.
57
do controle difuso e concentrado ao controle de convencionalidade (supralegalidade)
admitindo inclusive Reclamação Constitucional em face dos precedentes dos Tribunais
Internacionais de Direitos Humanos, ou b) modificar sua jurisprudência para adotar a tese aqui
defendida sobre o status (inter)constitucional superveniente dos Tratados Internacionais de
Direitos Humanos em face da Emenda Constitucional 45/2004 (art. 5º, § 3º da Constituição) ou
adotar o status constitucional em interpretação conforme o art. 5º, § 2º, conforme voto vencido
do Min. Celso de Melo, fundamentado em conhecidas e inspiradoras lições de Flávia
Piovesan100
e Cançado Trindade101
.
A alternativa “a” foi adotada no julgamento do Recurso Extraordinário 466.343
onde ficou definida a supralegalidade dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, pois
nesse recurso alagava-se violação a direito humano previsto no Pacto de San José da Costa
Rica102
.
A supralegalidade dos Direitos Humanos em matéria tributária foi discutida no RE
460.320/PR – Rel. Min. Gilmar Mendes (Informativo 638)103
. A cooperação internacional
viabilizaria o combate à dupla tributação internacional enquanto garantia fundamental do
contribuinte e preservação da capacidade contributiva, reforçando o incentivo ao
desenvolvimento nacional.
Nesse contexto, ficou registrado que, tanto quanto possível, o Estado
Constitucional Cooperativo reivindicaria a manutenção da boa-fé e da segurança dos
compromissos internacionais, ainda que diante da legislação infraconstitucional, notadamente
no que se refere ao direito tributário, que envolve garantias fundamentais dos contribuintes e
cujo descumprimento colocaria em risco os benefícios de cooperação cuidadosamente
articulada no cenário internacional. Reputou que a tese da legalidade ordinária, na medida em
que permite às entidades federativas internas do Estado brasileiro o descumprimento unilateral
de acordo internacional, conflitaria com princípios internacionais fixados pela Convenção de
Viena sobre Direito dos Tratados (art. 27). Dessa forma, reiterou que a possibilidade de
100
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 4. ed. São Paulo: Max
Limonad, 2000. Mais especificamente, sobre os impactos do direito comunitário, seu recente trabalho: Proteção
dos direitos sociais: desafios do ius commune sul-americano. In: Revista do Tribunal Superior do Trabalho. Vol.
77, nº 4, out/dez 2011. Brasília: TST, 2011, p. 102. 101
TRINDADE, A. A. Cançado: A interação entre direito internacional e o direito interno na proteção dos
direitos humanos. Arquivos do Ministério da Justiça, 182, p. 27-54, 1993. 102
Em decisão recente (RE 460320/PR, rel. Min. Gilmar Mendes, 31.08.2011), o STF voltou a debater a questão
da supralegalidade dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos. 103
RE 460320/PR, rel. Min. Gilmar Mendes, 31.8.2011
58
afastamento da incidência de normas internacionais tributárias por meio de legislação ordinária
(treaty override), inclusive em sede estadual e municipal, estaria defasada com relação às
exigências de cooperação, boa-fé e estabilidade do atual panorama internacional. Concluiu,
então, que o entendimento de predomínio dos tratados internacionais não vulneraria os
dispositivos tidos por violados. Enfatizou que a República Federativa do Brasil, como sujeito
de direito público externo, não poderia assumir obrigações nem criar normas jurídicas
internacionais à revelia da Constituição. Observou, ainda, que a recepção do art. 98 do CTN
pela ordem constitucional independeria da desatualizada classificação em tratados-contratos e
tratados-leis.
Essa decisão embrionária expõe através dos argumentos construídos pelo Min.
Gilmar Mendes, razões fortes e suficientes para adoção do modelo interconstitucional de
jurisdição, objetivando expandir a proteção constitucional do direito fundamental
transindividual ao desenvolvimento para os âmbitos internacional e comunitário.
3.4. Sistema de precedentes obrigatórios na jurisdição interconstitucional
O sistema de precedentes obrigatórios na jurisdição interconstitucional, estabelece
a harmonização necessária ao convívio interconstitucional de parcelas igualmente legítimas da
soberania estatal: a jurisdição interna, a jurisdição internacional e eventualmente a jurisdição
comunitária. Poderíamos exemplificar com a coincidência entre os âmbitos de proteção,
conteúdo, restrições e eficácia do direito à liberdade de expressão em níveis interno
(constitucional), internacional (convenções de direitos humanos) e comunitário (cartas
comunitárias de direito) formando assim o bloco de interconstitucionalidade104
.
Nesse processo destaca-se a importância da previsibilidade das decisões judiciais.
A “adesão ao precedente deve ser a regra, e não a exceção, supondo-se que os litigantes devam
ter fé na administração imparcial da justiça das cortes”; do contrário, “o trabalho dos juízes
aumentaria quase até a exaustão se toda decisão tomada pudesse ser reaberta em todo caso, e
alguém não pudesse delinear seu próprio caminho na segurança dos caminhos traçados por
outros que vieram antes dele” 105
.
104
Cfr. Nota 08. 105
CARDOZO, Benjamin N. The Nature of judicial process. New Haven: Yale University Press, 1921, p. 34 e
149.
59
Constitui a segurança jurídica verdadeiro direito fundamental marcado por
multifuncionalidade capaz de produzir reflexões que vão desde o conceito constitucionalmente
adequado de direito adquirido, coisa julgada, da estabilidade das relações jurídicas até questões
sobre a proteção de direitos fundamentais, a proibição de retrocesso social, além de sua própria
eficácia e efetividade106
.
A modificação dos precedentes (overruling) e seus efeitos (modulação) no sistema
de precedentes obrigatórios são problematizados por Humberto Ávila a partir proteção da
segurança jurídica. No que se refere à segurança jurídica e a proteção da confiança, o problema
não é a mudança jurisprudencial em si, mas os seus efeitos. Se ela surpreender o indivíduo que
exerceu intensamente os seus direitos de liberdade e de propriedade confiando e podendo
confiar na sua permanência, a mudança de orientação pode ter efeitos negativos expressivos.
No âmbito tributário a mudança pode afetar desfavoravelmente quem atuou confiando na
mantença da decisão anterior e efetuou todos os seus cálculos econômicos com base no quadro
normativo anterior. A aplicação do novo entendimento também a esses casos causa efeitos
restritivos de direitos fundamentais. Em suas palavras: “a mudança jurisprudencial provoca um
déficit de confiabilidade e de calculabilidade do ordenamento jurídico”107
.
A modulação de efeitos (prospectivos, pro futuro, ex nunc, etc.) e a instituição de
regras de transição108
(diminuindo os efeitos impactantes) em qualquer grau de jurisdição
interna e até mesmo interconstitucional é o instrumento adequado para garantia da
harmonização entre o princípio de proteção da confiança (vedação de surpresa para os que
depositaram legítimas expectativas nos precedentes obrigatórios) e as mudanças
jurisprudenciais que ocasionalmente possam ocorrer no sistema de precedentes obrigatórios.
O precedente é enunciado normativo dinâmico, recorte da realidade jurídica que
discursivamente construiu a norma de decisão num contexto de aplicação plural de premissas
maiores válidas (programas normativos) em face da premissa menor (contexto ou situação
fática) que servirá como ponto de partida para futuras construções normativas.
106
Nesse sentido: SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da
pessoa humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no Direito Constitucional brasileiro.
Revista de Direito Constitucional e Internacional, Ano 14, Número 57. São Paulo: RT, 2006, pp. 5-48. 107
ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica – Entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. 2.
ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 471. 108
Sobre a citada técnica vide a importante decisão do Supremo Tribunal Federal sobre terras indígenas (Petição
3.388-4 Roraima) proferida no processo de demarcação de Raposa Serra do Sol.
60
É na decisão judicial (norma jurídica concretizada) e não na norma abstratamente
considerada (programa normativo) que a segurança jurídica se consolidará para proteção da
confiança e estabilidade do sistema de precedentes em nível interconstitucional.
O novo modelo de precedentes deve inserir-se num sistema aberto, orientado a
valores, capaz de estabelecer, em caráter persuasivo e não vinculante109
, permeabilidade aos
precedentes dos Tribunais de outros países (fora do espaço integrador da jurisdição
interconstitucional) que tenham enfrentado problemas similares aos surgidos em nosso sistema.
O aprimoramento do diálogo transconstitucional (Marcelo Neves,
Transconstitucionalismo) e interconstitucional (Canotilho, Brancosos e
Interconstitucionalidade) entre as principais Cortes Internacionais de proteção aos direitos
humanos, deve fundar-se necessariamente na garantia do desenvolvimento humano existencial,
construída na e a partir da diversidade cultural e do pluralismo, respeitando a soberania de cada
país e projetando-a na perspectiva solidarista e cooperativa.
A existência de jurisdição interconstitucional reflete o modelo neoconstitucional de
centralidade na proteção dos direitos humanos, comunitários e fundamentais, coerente com o
modelo constitucional aberto pelos artigos 5º, §2º e 4º, I ao X e seu parágrafo único, tudo da
Constituição Federal de 1988, realidade já presente em algumas Cortes Constitucionais
europeias.
Aqui no Brasil, a supralegalidade dos Tratados Internacionais de Direitos
Humanos, já provoca a construção desse novo modelo, que, em boa hora, poderia ser referido
no novo sistema de precedentes como forma de abertura axiológica do processo civil aos
valores constitucionais, internacionais e comunitários naquilo que denominamos
interconstitucionalização do direito.
O principal efeito dos precedentes obrigatórios é o vinculante. A vinculação aos
precedentes é algo que decorre naturalmente do sistema constitucional de repartição de
competências do Poder Judiciário, reforçando a conformidade funcional estabelecida pelo
representante constituinte originário e consolidando a confiança do povo na coerência e
eficácia das normas constitucionais estruturantes desse mesmo Poder.
109
DIDIER JR. Fredie, BRAGA, Paula Sarno, OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil, Vol. II. 7.
ed. Salvador: Juspodivm, 2012, p. 394: O precedente persuasivo (persuasive precedent) não tem eficácia
vinculante; possui apenas força persuasiva (persuasive authority), na medida em que nenhum magistrado está
obrigado a segui-lo (artigos 285-A, 476 a 479, 546 todos do CPC e art. 105, III, c da CF).
61
O convívio, num espaço de harmonização e concordância prática entre a liberdade
oferecida aos juízes de primeiro grau para decidirem as novas demandas e a segurança jurídica
fixada pelos Tribunais internos, comunitários e internacionais através de sistema
interconstitucionalmente adequado de precedentes, decorrerá da liberdade oferecida aos juízes
de primeiro grau através de mecanismos de distinguishing, overruling, prospective overruling,
overriding, modulação de efeitos, estabelecimento de regras de transição etc. e o necessário
aumento na carga argumentativa da decisão judicial na proposta inicial de superação/revogação
ou não incidência de precedentes obrigatórios, ocorrendo ganho na liberdade sem o sacrifício
da segurança jurídica oferecida por um sistema de precedentes, afinal, tal segurança não requer
a imutabilidade.
Luiz Guilherme Marinoni adverte que embora a eficácia direta da decisão não se
confunda com a coisa julgada, a primeira necessita da segunda para permitir a indiscutibilidade
e a estabilidade da decisão transitada em julgado110
.
Do ponto de vista subjetivo, a eficácia obrigatória dos precedentes garante a
previsibilidade aos jurisdicionados, enquanto a coisa julgada garante à parte a segurança de que
o resultado que lhe foi conferido pela jurisdição não será alterado111
.
Enquanto a decisão judicial opera diversos efeitos de natureza objetiva, subjetiva,
inter partes, erga omnes, que dizem respeito diretamente à situação jurídica controvertida, seja
declarando, constituindo, modificando ou extinguindo-as, o precedente transcende às situações
jurídicas tratadas na decisão transitada em julgado, para produzir efeitos em situações futuras
substancialmente semelhantes àquelas tratadas no precedente. A coisa julgada conforme Daniel
Mitidiero produz três efeitos: positivo (impede que a questão principal decidida, quando
retorna como questão incidental num novo processo, seja decidida de maneira diversa),
negativo (impede que a questão principal decidida seja novamente julgada como questão
principal em outro processo) e preclusivo (impossibilidade de rediscutir argumentos –
alegações e defesas – que já foram discutidos e aqueles que o poderiam ser, mas não o
foram)112
.
A interpretação e a aplicação do precedente remetem a uma complexa
hermenêutica de segundo grau, onde ocorrerá não construção, mas reconstrução da norma de
110
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. 2. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 299. 111
Op. Cit., p.311. 112
MITIDIERO, Daniel. Coisa Julgada, limites objetivos e eficácia preclusiva. Introdução ao estudo do Processo
Civil – primeiras linhas de um paradigma emergente. Porto Alegre: Fabris, 2004, p. 204 et seq.
62
decisão (com fundamento na igualdade – mesma razão, mesmo direito; e segurança jurídica –
necessidade de previsibilidade e permanência diante do mesmo quadro fático e normativo),
modificando a fórmula clássica da metódica estruturante de Müller: programa normativo113
(texto da norma abstrata) + âmbito normativo (realidade social) = norma de decisão, para a
seguinte fórmula: programa normativo + âmbito normativo + programa jurisprudencial
(sistema de precedentes – enunciados textuais) = norma de decisão.
A hermenêutica desse novo espaço (programa jurisprudencial) deve considerar
novas mudanças ocorridas nos dois itens iniciais da fórmula (modificações legislativas e
mudanças sociais para produção de overruling, muito comum no processo informal de
modificação da constituição, conhecido por mutação constitucional) além de considerações
doutrinárias sobre o conteúdo, restrições e eficácia dos programas normativos, e, por fim, a
visão sociológica, antropológica, psicológica (zetética) no que se refere aos fatos sociais ou
âmbito de aplicação desses mesmos programas com objetivo de otimizar os efeitos jurídicos
socialmente desejados (daí a importância do distinguishing e também do overruling).
O precedente obedece a processo subsuntivo similar à aplicação das regras, aplica-
se por subsunção, sem constitui per se norma jurídica dessa espécie, precedente não é lei, não
se confunde com programas normativos abstratos do tipo regra, princípio ou política pública,
também não é norma de decisão senão especificamente nos casos que provocaram a sua
criação. Precedente é texto criado pelo Poder Judiciário através dos seus tribunais, destinado a
fixar teses aplicáveis aos futuros casos idênticos.
Embora de precedentes possamos extrair regras, a exemplo da razoabilidade e da
proporcionalidade, onde passou o STF a fundamentá-las no direito fundamental ao devido
processo legal, caracterizando-os como princípios constitucionais implícitos dotados de força
normativa, o precedente não se confunde com o princípio ou a regra, apenas reconhece, por
vezes, a sua existência por desdobramento de outro princípio expresso (a tese em si, o stare
decisis, o precedente aponta a força normativa dos programas normativos abstratos implícitos
ou decorrentes, ou regras114
da razoabilidade e da proporcionalidade). Nessas decisões não
constitui o precedente uma norma jurídica, apesar de aplicar-se da mesma forma que as regras
113
Apenas o programa normativo pode ser classificado em regra, princípio ou política pública. A norma de
decisão é sempre aplicada por subsunção, portanto é norma concretizada formulada para incidir no caso carente de
decisão, traz a regra concreta no dispositivo e, por vezes, fixa, reafirma, modifica ou afasta teses jurídicas (criando
precedentes) em sua fundamentação. 114
Robert Alexy em sua Teoria dos Direitos Fundamentais refere-se à razoabilidade e à proporcionalidade como
regras e não princípios – pois se aplicam por subsunção
63
(por subsunção) aos casos futuros idênticos. Medida provisória e lei possuem a mesma força
normativa e mesma forma de aplicação, nem por isso medida provisória é lei, apenas tem força
de lei quando altera provisoriamente o ordenamento jurídico.
Não temos juízes legisladores, mas concretizadores, que por força dos princípios
estruturantes aqui discutidos, devem estar inseridos num sistema de precedentes que preservem
a autoridade e permanência das decisões dos Tribunais a que estejam vinculados,
especialmente as decisões da jurisdição interconstitucional dos direitos humanos, fundamentais
e comunitários.
A hermenêutica dos precedentes transcende à lógica dedutiva presente nas leis,
mesmo com toda complexidade das novas conquistas da hermenêutica filosófica
gadameriana115
, pois leva necessariamente a processo de análise lógico-indutivo em sua
formação, gerando raciocínio “particular-particular” para identificar a similitude entre os casos
e observar os pontos capazes de fundamentar a distinção, particularidade ou similitude que irão
conduzir à subsunção do precedente ao novo caso carente de decisão.
Sendo o precedente norma de decisão que fez atuar num determinado contexto
histórico (âmbito, setor ou domínio normativo) o programa normativo, ao servir de fundamento
para futuras tomadas de decisão, ele participa como um enunciado normativo dinâmico, onde o
intérprete atribuirá significado ao seu texto de forma indissociável de dois momentos histórico-
circunstanciais completamente distintos (do precedente e do novo caso similar).
Toda aplicação e interpretação de precedente é processo de reconstrução da norma
jurídica, que se diferencia da construção do lead case (caso original que se firmou o stare
decisis). Pelo respeito à igualdade, segurança jurídica, democracia, solidariedade e integridade
do sistema jurídico interconstitucional, obriga o juiz a observá-lo, seja para afastá-lo, modificá-
lo, superá-lo ou fazer que nele se exerça qualquer processo hermenêutico objetivando a
(re)construção de uma ordem interjurídica substancialmente justa.
115
GADAMER, Hans-Gregor. Verdade e Método I – Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad.
Flávio Paulo Meurer. 7. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2005.
64
3.5 Supralegalidade e status interconstitucional dos direitos humanos
A Corte Interamericana de Direitos Humanos utilizou pela primeira vez a
expressão “controle de convencionalidade” 116
em 25.11.2003 no caso “Myrna Mack Chang
versus Guatemala”. No caso CIDH Lacayo versus Nicarágua, sentença de 25.01.1995 a Corte
afastou a possibilidade de controle abstrato de convencionalidade. Em Suárez Rosero versus
Equador, sentença de 12.11.1997 a Corte reconheceu sua competência para exercício de
controle abstrato de convencionalidade117
.
Portanto, a teoria do controle de convencionalidade não é tão nova como se
pensa118
, muito menos posterior à Emenda Constitucional 45/2004 que adicionou o § 3ª ao
artigo 5º da Constituição de 1988, tampouco contemporânea à decisão do Supremo Tribunal
Federal sobre a supralegalidade dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos incorporados
por decreto legislativo simples (diferente dos decretos legislativos equivalente às Emendas
Constitucionais do citado §3º).
A expressão controle de incompatibilidade é apresentada no Human Rights Act
britânico de 1998, nesse controle se afere a (in)compatibilidade vertical entre os atos do
Parlamento e a Constituição do Reino Unido (declaration of incompatibility).
116
Sobre controle de convencionalidade: ANDREWS, Neil. A Suprema Corte do Reino Unido: reflexões sobre o
papel da mais alta Corte Britânica. Revista de Processo. Nº 186. São Paulo: RT, 2010. BAHIA, Saulo Casali
(Coord.). A efetividade dos direitos fundamentais no Mercosul e na União Europeia. Salvador: Paginae, 2010.
SAGUÉS, Néstor Pedro. El “control de convencionalidad” como instrumento para la elaboración de um ius
commune interamericano. In: BOGDANDY, Armin Von; MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer; ANTONIAZZI,
Mariela Morales (Coord.). La Justicia Constitucional y su internacionalización hacia un ius contitutionale
commune em América Latina? México: Instituto de Investigaciones Jurídicas de la Unam, 2010. t. 2;
CAPPELLETTI, Mauro. Giustizia costituzionale soprannazionale. Rivista di Diritto Processuale, 1978, p. 1-32. 3
– SUDRE, Frédéric. A propôs Du “dialougue de juges” et du controle de conventionalite. Paris: Pedone, 2004.
Destaca-se no Brasil a tese pioneira de André de Carvalho Ramos: A responsabilidade internacional do Estado
por violação de direitos humanos. 1999. Tese (Doutorado) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo,
São Paulo. p. 132. André de Carvalho Ramos foi um dos primeiros autores brasileiros a defender a existência de
“controle de convencionalidade” inclusive de crivo de normas constitucionais em face de violação às normas
internacionais de direitos humanos. 117
Cfr. SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito
Constitucional. São Paulo: RT, 2012, p. 1180 et seq. Na parte específica da obra em que aprofundam o tema, os
citados autores buscam sistematizar os estudos sobre controle de convencionalidade para o direito constitucional
brasileiro, com vasto referencial teórico. Cite-se também o importante trabalho de MAZUOLI, Valério de
Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. 118
A novidade é equivocada mesmo quando referida ao controle exercido pela jurisdição interna, pois, várias
decisões judiciais no contexto latino-americano já aplicavam, em diversos âmbitos, os Tratados Internacionais de
Direitos Humanos internalizados em seu respectivo sistema como norma parâmetro para afastar a incidência e até
mesmo efetuar o controle de (in)compatibilidade vertical da lei interna em face da convenção de direitos humanos.
65
A importância do controle de convencionalidade para o sistema interconstitucional
de proteção e efetividade dos direitos, sobreleva o controle de incompatibilidade das leis e atos
do poder público e até mesmo dos particulares em face do direito constitucional, internacional
e comunitário ao nível interconstitucional.
Defendemos a ampliação do objeto de proteção do sistema interno de controle de
constitucionalidade dos atos do poder público e dos particulares para abranger também os
direitos humanos e comunitários (todos indistintamente, por ser a Constituição interna de cada
país a fonte jurídica de soberania através da qual tais direitos se expressam), da mesma maneira
as Cortes Internacionais e Comunitárias devem utilizar as fontes constitucionais internas para
solução dos conflitos sob sua jurisdição (interconstitucional)119
.
Reserva-se o controle de convencionalidade para as Cortes Internacionais de
Direitos Humanos (Tratados de Direitos Humanos, além dos direitos fundamentais e
comunitários que constituam desdobramento de direitos humanos) e o controle de
incompatibilidade para os Tribunais Comunitários (Constituição supranacional, além dos
direitos humanos e fundamentais que constituam desdobramento de direitos comunitários).
Nos citados desdobramentos deve necessariamente existir diálogo compreensivo
entre as decisões internas, internacionais e comunitárias e pluralismo transversal para dialogar
com as comunidades locais e espaços decisórios ultraestatais, num ambiente hermenêutico
diatópico, do qual trataremos mais adiante.
Essa dimensão intersistêmica também foi referida quando tratamos do sistema de
precedentes para a jurisdição interconstitucional. Cabe aqui apenas observar que, independente
do modelo ou termo adotado, seja controle de incompatibilidade, constitucionalidade ou
convencionalidade, tal controle, onde quer que ocorra, deve necessariamente harmonizar em
sua decisão o conteúdo, restrição, limites e eficácia dos direitos humanos, fundamentais e
comunitários, conduzindo-os a uma concordância prática, maximizando seus efeitos
valorativamente orientados para o progresso existencial, num contexto dialógico e destituído
de hierarquia deontológica entre os três planos normativos que integram a jurisdição
interconstitucional.
A solidariedade entre órgãos de proteção de direitos humanos, fundamentais e
comunitários, consolidada numa mesma jurisdição interconstitucional, permite à Comissão
119
Em sentido diverso, defendendo modelo específico de controle de convencionalidade: MAZZUOLI, Valério de
Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 2. ed. São Paulo: RT, 2011.
66
Interamericana de Direitos Humanos (nos termos do artigo 61.1 da Convenção Americana de
Direitos Humanos combinado com os artigos 4º, II, 5º, § 2º da CRFB), promover a defesa tanto
interna quanto internacional do direito transindividual ao desenvolvimento, exercendo o
controle difuso de convencionalidade nas jurisdições interna, internacional e comunitária,
inclusive por meio de Ação Civil Pública, contribuindo assim, para formação da cultura
interconstitucional de pertencimento ao modelo expansivo, dialógico e integral de proteção dos
direitos interconstitucionais.
3.6 As possibilidades do transconstitucionalismo na jurisdição
interconstitucional
A jurisdição interconstitucional estabelece relações entre três planos normativos
específicos da jurisdição (constitucional, internacional e comunitária) através do seu núcleo
comum (direitos humanos, fundamentais e comunitários120
) num diálogo interconstitucional.
Apesar das autonomias do direito constitucional, internacional e comunitário,
compreende-se que a soberania estatal juridicamente presente e delimitada nas constituições
internas como fundamento e elemento constitutivo do próprio Estado é o ponto de partida para
construção dos sistemas de direito internacional e comunitário.
Portanto, tais ramos autônomos devem necessariamente referir-se a valores
constitucionais materiais comuns estabelecidos nas ordens internas dos países que a integram,
além de respeitar a sua soberana escolha constitucional de ingresso e retirada do espaço
120
Por direitos comunitários entendemos todos os direitos essenciais à dignidade humana existencial no espaço
comunitário, consolidados cultural, social, política, econômica e historicamente numa determinada união
supranacional comunitária como expressão das conquistas civilizatórias comuns aos diversos países dessa mesma
comunidade. Tais direitos podem se constituir em desdobramento de direitos humanos e fundamentais do seu
locus comunitário, a exemplo do direito de participação política e voto nas suas instituições como expressão da
cidadania comunitária, que, mesmo não presente na constituição comunitária, poderia desdobra-se do direito de
cidadania previsto no Pacto de Direitos Civis e Políticos (nível internacional) ou dos direitos fundamentais de
participação (nível constitucional dos Estados membros da comunidade), como reflexo das relações de
interconstitucionalidade. Para estudo mais aprofundado e específico sobre sistema jurídico comunitário ver a
importante e sólida obra de José Souto Maior Borges: Curso de Direito Comunitário. 2. ed. São Paulo: Saraiva,
2009. No mesmo sentido, referindo-se às regras comunitárias e defendendo a criação do parlamento mercosulino:
Saulo José Casali Bahia: O Mercosul e seus projetos institucionais. Cit. p. 529.
67
internacional e comunitário, sempre numa avaliação estratégica do próprio Estado, limitada e
materializada pela vontade constituinte permanente do povo121
.
O modelo constitucional cooperativo aberto para recepção e incorporação de
tratados internacionais na ordem jurídica interna em termos constitucionais delimitados e a
formação de comunidades de nações orientada por preceitos constitucionais programáticos, a
exemplo do art. 4º, incisos e parágrafo único da Constituição Federal brasileira, favorece os
fenômenos da inter e transconstitucionalidade, adotando o paradigma emergente da formação
de Uniões Supranacionais com respectiva carta de direitos, passa a produzir reflexões sobre
esse novo espaço dialógico de decisões comunitárias e sua relação com as ordens interna e
internacional.
A transconstitucionalidade possui duas concepções possíveis e distintas. Na
primeira concepção ela seria a transcendência das disciplinas autônomas para formação do
novo modelo constitucional sem fronteiras, próximo à ideia de constitucionalismo global, onde
desaparecem os limites entre as disciplinas internacional, constitucional e comunitária,
ultrapassando e superando o plano relacional e interacional entre elas, constituindo o nível
superior e futuro de constitucionalismo.
Na segunda concepção temos a relevante contribuição de Marcelo Neves com sua
teoria do transconstitucionalismo, onde defenderá a existência de pontes de transição entre as
ordens constitucional, internacional e comunitária, tendo como ponto de partida metodológico
a “dupla contingência”, presente na relação de observação recíproca entre ego e alter na
interação dos sistemas sociais, buscando formas transversais de articulação para a solução do
problema, cada uma delas observando a outra, para compreender seus próprios limites e
possibilidades de contribuir para solucioná-lo122
. Nessa última concepção, o
transconstitucionalismo é pressuposto essencial e necessário para o adequado exercício da
jurisdição interconstitucional.
O modelo de constitucionalismo societário de Gunther Teubner, para quem, a
constitucionalização é primeiramente processo social e apenas em segundo lugar processo
121
O esboço da materialização dessa vontade constituinte permanente do povo será apresentada no capítulo V que
tratará do constitucionalismo em redes de cibercidadania, ampliando o espaço público de democracia direta e
participativa. 122
NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 270 et seq.
68
jurídico123
, existe a proposta de aplicação de uma ordem pública transnacional para solução dos
conflitos interconstitucionais aplicável não por uma autoridade hierárquica central a todos, mas
por cada um dos sistemas em seus correspondentes conflitos, o princípio desse metadireito
constitucional que tem por objeto a resolução do conflito seria o princípio da sustentabilidade
dos regimes interconstitucionais reforçando a solidariedade orgânica de cada um face aos
demais124
.
3.7 Abertura hermenêutica em ambiente plural e possibilidades da diatópica
A teoria da interconstitucionalidade com referência a autonomia dos espaços
jurídicos constitucionais, comunitário e internacional, parte da concepção de sistema aberto e
orientado a valores comuns, formando o sistema complexo125
de inter-relação entre os direitos
humanos, fundamentais e comunitários no ambiente dialógico e diatópico126
. O propósito deste
item é situar algumas propostas de ordenação e redução dessa complexidade.
A constituição de cada Estado deve conferir fundamento axiológico e normativo ao
direito comunitário e internacional, passando a caracterizar-se como Estado Constitucional
Cooperativo127
e a exercer função unificadora, menos hierarquizante, mais compreensiva e
dúctil entre os diversos valores tutelados.
Os direitos fundamentais, humanos e comunitários, possuem natureza normativa
principiológica, são normas jurídicas da espécie princípio, distingue-se, portanto, das regras e
123
TEUBNER, Gunther. Consitutional Fragments: Societal Constitucionalism and Globalization. Trad. G.
Nordury. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 102-103. O termo constitucionalismo societal é atribuído a D.
Scully, Theory of Societal Constitucionalism: Foundations of a Non-Marxistic Critical Theory, Cambridge,
Cambridge University Press, 1992. 124
Em sentido similar: TEUBNER, Cit. p. 157; p. 171 et seq. 125
A racionalidade e a cientificidade começaram a ser redefinidas e complexificadas a partir dos trabalhos de
Bachaelard, Popper, Khun, Holton, Lakatos, Feyerabend. Nesse sentido: MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita:
repensar a reforma, reformar o pensamento.Trad. Eloá Jacobina. 19. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011, p.
90. Para o autor do pensamento complexo, a constituição de um objeto e de um projeto, ao mesmo tempo
interdisciplinar e transdisciplinar, é que permite criar o intercâmbio, a cooperação, a policompetência (Op. Cit., p.
110). 126
Atribuímos o mesmo sentido presente no termo “hermenêutica diatópica” de R. Panikkar em seu: Seria a noção
de direitos humanos um conceito ocidental? In: Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Org. César
Augusto Baldi. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. 127
Para compreensão do Estado Cooperativo, ver: HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Trad.
Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.
69
das políticas públicas128
. A abertura hermenêutica129
conferida pela estrutura dos princípios
encontra-se no seu caráter possibilístico de normas de desdobramento130
dotadas de força
constitutiva fora do que elas literalmente significam131
.
Princípios são normas que ordenam que algo seja realizado, relativamente às
possibilidades fáticas e jurídicas, em medida tão alta quanto possível. Princípios são
mandamentos de otimização132
.
Alexy deixa claro em seus estudos que todos os direitos fundamentais são
princípios133
, o que reafirma o conteúdo essencial da constituição como texto aberto e
concretizável, na qual prevalece o raciocínio por ponderação134
para os princípios e por
subsunção para as regras.
Na hermenêutica diatópica, proposta por R. Panikkar, parte-se de uma reflexão
temática sobre o fato de que os loci (topoi ou lugares comuns) de culturas historicamente não
relacionadas tornam problemáticas a compreensão de uma tradição com as ferramentas de
outra e as tentativas hermenêuticas de preencher essas lacunas135
.
Esclarece Panikkar, ao propor sua abordagem hermenêutica diatópica: um
problema é como, a partir do topos de uma cultura, compreender os construtos de outra136
. O
128
Sobre a distinção entre regras, políticas públicas e princípios: DWORKIN, Ronald: Levando os direitos a sério.
Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Distinguindo regras de princípios: ALEXY, Robert. Teoria
dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. 129
No que se refere à abertura subjetiva ou pluralidade de intérpretes: HABERLE, Peter. Hermenêutica
Constitucional – A sociedade aberta dos Interpretes da Constituição: contribuição para a interpretação
pluralista e “procedimental” da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Editor, 1997. 130
Nesse sentido: Edvaldo Brito parte da ideia de sistema para localizar os princípios e sua função, tendo por base
o estudo de 1967 de Claus Wilhelm Canaris sobre os sistemas na ciência do direito, avança e diferencia normas-
princípio de normas-regras: BRITO, Edvaldo. Limites da revisão constitucional. Porto Alegre: Fabris Editor,
1993, p. 64-65. Em aula do doutorado em direito da UFBA, semestre 2012.2, na disciplina sistema constitucional
tributário, conceituou princípios como normas de desdobramento, por sempre produzir uma série de
consequências não previstas no seu preceito primário (programa normativo textualmente expresso). 131
Cfr. ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia. 7. ed. Madrid: Editorial Trotta,
2007, p. 110. Para Zagrebelsky, as regras, com efeito, se esgotam em si mesmas, não possuem nenhuma força
constitutiva fora do que elas mesmo significam. 132
ALEXY, Robert, Theorie der Grundrechte. Traduzida para o espanhol: Teoria de los derechos fundamentales:
el derecho y la justicia. Madrid: CEPC, 2002, p.86. 133
Op. Cit. p. 86 et seq. Importante observar que o autor refere-se aos direitos fundamentais da Constituição
alemã. 134
Friederich Müller (metódica estruturante), Jürgen Habermas (teoria da ação comunicativa), Konrad Hesse
(método hermenêutico concretizador), dentre outros, não aceitam a teoria da ponderação na forma proposta por
Robert Alexy em sua Teoria dos direitos fundamentais. 135
Cfr. Panikkar. Myth, Faith and Hermeneutics. New York: Paulist Press, 1979, p. 8 et seq. 136
PANIKAR, R. Seria a noção de direitos humanos um conceito ocidental? In:BALDI, Cesar Augusto
(Organizador). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro Renovar, 2004, p. 208.
70
método de investigação num ambiente multicultural deve buscar os equivalentes
homeomórficos em detrimento das analogias. Nas exatas palavras de Panikkar
“homeomorfismo não é o mesmo que analogia; ele representa um equivalente funcional
específico, descoberto através de uma transformação topológica”137
. Portanto, no
estabelecimento de diálogos interculturais mutuamente compreensíveis, é preciso entender
quais valores são essenciais em cada contexto cultural para alcançar o desenvolvimento e o que
funcionalmente, em termos de proteção jurídica, se exige ou propõe para o progresso
existencial dos seus integrantes.
Em jurisdição interconstitucional a hermenêutica jurídica será necessariamente
diatópica, pois a referência a valores comuns concretizáveis em espaços sociais diversos, deve
observar a perspectiva intercultural, compreendendo discursivamente as estruturas e
construções culturais de cada povo a partir dos lugares comuns (topoi) de outra cultura e vice-
versa.
Afinal, quem fala tem de poder justificar sua fala. Só o preenchimento dos deveres
discursivos, especialmente a observação dos deveres de defesa e esclarecimento, garante
suficientemente afirmações confiáveis. Só deste modo permanece um diálogo racional em
andamento, o qual possibilita a justificação de afirmações teóricas e práticas numa medida
considerada ótima138
.
A técnica do pensamento problemático funda-se no senso comum, na idéia de
acordo entre a maioria, acentua-se o caráter retórico como critério decisivo para o acerto na
solução de determinado problema. Afirma Viehweg que as premissas fundamentais são
legitimadas através da aceitação do parceiro na conversa139
.
Os processos formais e informais de mudança das constituições e convenções
internacionais de direitos humanos em convívio interconstitucional representam, ou devem
representar os reflexos da constante atualização dos programas normativos interconstitucionais,
para adaptá-los ao contexto social em que são aplicados, principalmente pela centralidade que
137
PANIKAR, R. The Intrareligious Dialogue. New York: Paulist Press, 1978, p. XXII. Seu exemplo de
homeomorfismo é esclarecedor: As palavras brâman e Deus, não são análogas nem simplesmente equívocas (nem
unívocas, certamente). Elas também não são precisamente equivalentes; são homeomórficas, desempenham um
certo tipo de função respectivamente correspondente nas duas tradições diferentes onde estão vivas. 138
VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Tradução: Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília:
Departamento de Imprensa Nacional, 1979, p. 105. 139
Op. Cit. p. 24
71
os direitos fundamentais, comunitários e humanos ocupam nos sistemas jurídicos
contemporâneos e a forte demanda social por sua efetividade e implementação.
A interpretação e concretização dos direitos interconstitucionais, principalmente
nos países em que os direitos essenciais à realização da condição humana são
constitucionalizados e internacionalmente protegidos em virtude de sua carência no plano
fático, devem passar por critérios diferenciados de exercício da jurisdição interconstitucional
tanto difusa quanto concentrada, legitimando o modelo pós-liberal de exercício dessa
jurisdição, através do ativismo judicial interconstitucionalmente adequado e necessário
conforme as demandas locais, nacionais e comunitárias.
Através da existência de direitos fundamentais equivalentes (Tratados
Internacionais de Direitos Humanos equivalentes às Emendas Constitucionais – art. 5º, §3º da
Constituição Federal) e de integração latino-americana através de direitos fundamentais
decorrentes (Tratados Internacionais de Direitos Humanos incorporados pelo processo
legislativo simples – art. 5º, §2º, da Constituição Federal, com status supralegal ou, conforme
defendemos, constitucional) possibilita-se o exercício da jurisdição interconstitucional com
deveres de proteção da ordem internacional dos direitos humanos em face das leis e atos do
poder público.
A efetivação da constituição plural e intercultural identificada reflexivamente na
proteção dos direitos humanos para os povos da América Latina cria novos parâmetros para o
exercício jurisdicional.
Os novos institutos jurídicos comunitários e o avanço do neoconstitucionalismo no
reforço do âmbito de proteção e a centralidade dos direitos humanos têm produzido reflexos na
ordem jurídica interna do Brasil. Sistematizar os critérios que favorecem o diálogo
interconstitucional para estabelecer deveres de proteção ao progresso existencial humano e
novas possibilidades hermenêuticas para o direito fundamental transindividual ao
desenvolvimento (em nível nacional, internacional e comunitário) é vital para a construção do
modelo de jurisdição interconstitucional contemporânea e edificação da teoria integral de
proteção.
72
3.8 Neofederalismo supranacional e interconstitucional
O Estado Federal teve seu marco inicial em 1787 com a famosa Convenção da
Filadélfia, que, como solução proposta à superação das dificuldades inicialmente encontradas
pelas treze colônias inglesas ao se libertarem, formaram uma confederação de Estados
soberanos através de um tratado celebrado em 1776 e ratificado em 1781, conhecido como
“Artigos de Confederação”.
A Confederação transmudou-se em Federação. Este foi o primeiro e grande passo
para a consolidação da forma de Estado Federal. O segundo e não menos importante foi a
materialização dos acordos e compromissos firmados na Convenção de Filadélfia, através da
substituição dos Artigos de Confederação, pela Constituição dos Estados Unidos de 1787, a
primeira constituição escrita do mundo, um dos marcos do constitucionalismo liberal.
A constituição é, pois, a base jurídica do sistema federativo, consolida o acordo
firmado e recepciona as regras essenciais da convivência entre a unidade e as entidades
componentes140
. A Constituição Federal é o pacto federativo do tipo de Estado Federal.
São características do federalismo: o bicameralismo141
(existência de câmara –
Senado Federal – que representa os interesses dos respectivos Estados-membros e que participa
da formação da vontade nacional através do processo legislativo ao lado dos representantes do
povo – Câmara de Deputados); a proibição de secessão (é vedado ao Estado-membro separar-
se da União, declarar-se independente, afinal, a Federação é indissolúvel); a autonomia dos
entes federados (os entes são dotados de autonomia política, administrativa, financeira e
normativa); a repartição de competência (toda federação pressupõe certa partilha de
competências que se orienta de acordo com o princípio da predominância do interesse); a
cláusula de proteção (aqui pressupomos a super-rigidez constitucional que mantém o pacto
federativo afastado de reformas constitucionais tendentes a aboli-lo, constituindo verdadeira
cláusula-pétrea – art. 60, § 4º, I da CRFB, que se completa pela existência de órgão(s)
encarregado(s) do controle de constitucionalidade).
140
MONTERIO, Yara Darcy Police. Partilha de competência na Constituição de 1988. Normas Gerais:
Características e elementos configuradores. In: Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política – 21. São
Paulo: RT, 1999, p. 148. 141
Louis Le Fur. État Federal et Confédération d’États. Paris: Marchal et Billard, 1896, p. 679. Com relação às
comunidades locais afirmará: “elles son appelées à prendre part à la volonté de l’État, participant ainsi à la
substance même de la souveraineté fédérale”.
73
Numa sequência necessária à compreensão do neofederalismo supranacional e
interconstitucional, passaremos a tratar do princípio da solidariedade no atual federalismo
cooperativo brasileiro.
A repartição de competências é a pedra angular do sistema federativo, daí a
necessidade de compreendermos inicialmente o modelo federativo e sua evolução para que
possamos compreender as consequentes mudanças no sistema de repartição de competências
em nível interconstitucional.
A competência envolve a atribuição de determinadas tarefas bem como os meios de
ação (poderes) necessários para sua persecução. Além disso, a competência delimita o quadro
jurídico de atuação de uma unidade organizatória relativamente à outra.
No modelo neofederativo vigora a descentralização política, ou seja, a competência
legislativa conferida às unidades parciais (União – Leis Federais, Estados – Leis Estaduais,
Distrito Federal – Leis Distritais e Municípios – Leis Municipais), coexistindo com a
competência legislativa constitucionalmente conferida à unidade total (República Federativa do
Brasil – Leis Nacionais) 142
e integrada ao ordenamento comunitário (normas supranacionais) e
internacional (Tratados Internacionais de Direitos Humanos) através das relações de
interconstitucionalidade federal externa.
O neofederalismo supranacional reclama maior capacidade de servir e de
consolidar o processo de integração interconstitucional na União Supranacional.
Para Guidens, que defende uma Europa federal, no âmbito das relações
internacionais, a União Europeia deve deixar de renunciar ao poder, inclusive o militar. A nova
narrativa para a UE, de fato, pressupõe o poder – o poder de praticar o bem num mundo que
não é um paraíso kantiano de paz eterna, nem uma guerra hobbesiana de todos contra todos143
.
Em Häberle, federalismo e regionalismo são princípios de estruturação interna do
Estado Constitucional. É fato que certos Estados unitários ou centralistas clássicos, como
142
Não devemos confundir União (ente da federação) responsável em matéria legislativa pelas Leis Federais (ex:
Lei 8112/90 – Estatuto dos Servidores Públicos Federais; Lei dos Juizados Especiais Federais etc.) com a
República Federativa do Brasil (Estado Federal) responsável em matéria legislativa pelas Leis Nacionais (ex:
Código Civil, Código Penal, Estatuto do Idoso, Estatuto da Criança e do Adolescente etc.). Muitos confundem
devido ao fato de tanto a União quanto o Estado Federal possuírem o mesmo órgão legislativo (Congresso
Nacional). Tecnicamente, a distinção se justifica. 143
GUIDENS, Anthony. Continente turbulento e poderoso: qual o futuro da Europa?Trad. Gilson César Cardoso
de Sousa. São Paulo: Editora UNESP, 2014, p. 20-21.
74
França e Itália, encontram-se em vias de regionalização. A força impulsora desse processo
decorre, em último termo, da própria Europa e suas instituições144
.
A União Supranacional possui características próprias, seu modelo federativo de
organização, contando com representação das nações soberanas na composição do parlamento,
rodízio de países na presidência da União, economia integrada para o desenvolvimento global
da comunidade, não permite confundi-lo com o federalismo clássico, tampouco o federalismo
nacional contemporâneo. Sua estrutura e função sistêmica demandam compartilhamento de
competências com os países soberanos que a integram.
O convívio interconstitucional neofederativo implica, como se pode observar, em
divisão de competências. Para que não descaracterize o Estado federal, há que ser mantida a
unidade do todo através da comunhão de interesses nacionais e supranacionais. Tal comunhão
ocorre naturalmente através da convergência de interesses da Comunidade de Nações para o
desenvolvimento sustentável dos países que a compõem. A ação comunitária orienta-se para o
progresso existencial solidário e permanente, seu elo fundamental encontra-se nos direitos
interconstitucionais (fundamentais, humanos e comunitários) que determinará o modelo
cooperativo de divisão de competências e responsabilidades.
A República Federativa do Brasil (Estado Federal) é dotada de soberania145
, ao
contrário das unidades parciais que possuem apenas autonomia (administrativa, política,
financeira e normativa), ao passo que a União Supranacional é dotada de soberania de
convergência (parcela da soberania dos países que a integram converge para sua formação
permitindo o exercício de poderes de integração econômica, cultural, social e política
objetivando o desenvolvimento global da comunidade).
Neste sentido, apresenta-se o neofederalismo como modo de preservar a
particularidade no âmbito de uma união supraestatal maior, mantendo o equilíbrio entre a
soberania da nação como um todo e a autonomia dos entes federados, concomitantemente à sua
interdependência e integração interconstitucional com a União Supranacional, que em nosso
entendimento é fortalecido pelos laços de solidariedade que deve existir entre os entes.
A solidariedade constitui a base do pacto federativo e das relações de
interconstitucionalidade. Não foi por acaso que a Constituição Federal de 1988, em seu art. 3º,
144
HÄBERLE, Peter. Puralismo y Constitución. Cit., p. 123 145
Relembrando que, na concepção solidarista, a noção de soberania não se fundamenta no poder de mando, mas
na capacidade de servir, passando necessariamente pela noção de serviço público.
75
estabeleceu o objetivo fundamental de redução das desigualdades entre as diversas regiões do
país.
O art. 43 da CFRB preceitua que, para efeitos administrativos, a União poderá
articular sua ação em um mesmo complexo geoeconômico e social, visando a seu
desenvolvimento e à redução das desigualdades regionais.
No mesmo sentido, concretizando o pensamento solidarista, a CFRB em seu art.
159, I, c estabeleceu:
A União entregará, do produto da arrecadação dos impostos sobre renda
e proventos de qualquer natureza e sobre produtos industrializados,
quarenta e sete por cento na seguinte forma: três por cento, para
aplicação em programas de financiamento ao setor produtivo das
Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, através de suas instituições
financeiras de caráter regional, de acordo com os planos regionais de
desenvolvimento, ficando assegurada ao semi-árido do Nordeste a
metade dos recursos destinados à Região, na forma que a lei
estabelecer146
.
O modelo federativo nasceu inicialmente da necessidade da integração de campos
de poder exclusivos e limitados, conformadores de uma unidade detentora, igualmente, de um
campo de poder exclusivo e restrito. Trata-se do federalismo dual.147
Aqui existia uma
igualdade absoluta, em matéria de competência, entre as esferas governamentais estaduais e a
União, nesse momento não se falava em competência comum ou concorrente, apenas em
exclusiva (enumeradas ou remanescentes) – daí o seu modelo horizontal de divisão de
competências – o que fosse competência do Estado-membro não seria da União.
Registrando o exemplo dos Estados Unidos, que por força do momento histórico
vivido durante a Grande Depressão em 1929, verificou a imperiosa necessidade de fortalecer o
poder central, podemos perceber a tônica do federalismo cooperativo, marcado pela
interferência do poder federal em esfera de atribuições antes consideradas exclusivas dos
Estados148
.
Essa experiência cooperativa já se fazia presente na Constituição alemã de Weimar
de 1919, e Austríaca de 1920, que já traçavam modelo de federalismo cooperativo e que
146
No mesmo sentido, CFRB, Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: Art. 42. Durante 25 (vinte e
cinco) anos, a União aplicará, dos recursos destinados à irrigação: I - vinte por cento na Região Centro-Oeste; II -
cinquenta por cento na Região Nordeste, preferencialmente no semi-árido. 147
MONTERIO, Yara Darcy Police. Op. Cit., p. 150.
148 Nesse sentido: ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. 2. ed. São
Paulo: Atlas. 2000, p. 36.
76
serviram de modelo para a nossa Constituição Federal de 1934. Em momentos constitucionais
anteriores, vínhamos seguindo o clássico modelo federalista norte-americano de federalismo
dualista rígido.
No federalismo cooperativo, não ocorre o completo abandono da técnica de
repartição de competência horizontal, apenas surge nova técnica, denominada vertical, onde se
prevê área de competências que pode ser compartilhada – competências comuns ou
concorrentes149
.
No modelo neofederativo e interconstitucional é possível existir tanto as
competências privativas e exclusivas do ente supranacional, quanto as comuns e concorrentes.
Apesar da tendência centrípeta150
desse último modelo de federalismo, Fernanda
Almeida, citando Berard Schwartz151
, ressalta que, embora essa expansão seja uma realidade, é
muito improvável que num futuro previsível o sistema federativo seja substituído por uma
forma unitária de governo, com a eliminação da autonomia estadual. É que remanesce
profundamente arraigada na sociedade norte-americana a tradição federalista, formada
exatamente à base da preservação da autonomia das entidades federadas, de cuja importância
há uma consciência, à medida que a manutenção de governos estaduais fortes confere ao
sistema americano força democrática não encontrada na administração centralizada,
monolítica152
.
No federalismo norte-americano percebe-se claramente a colaboração
intergovernamental recíproca de base consensual, com consequente preservação da higidez dos
princípios e práticas da federação.
No que cabe à Federação brasileira, embora tenha ela se formado diversamente da
matriz norte-americana, já que aqui houve processo de formação centrífugo, espelhou a nossa
Federação, que nasceu com a República (Constituição de 1891), no modelo americano,
149
Nesse sentido: MELLO, Rafael Munhoz de. Características essenciais do federalismo. In: Revista de Direito
Constitucional e Internacional. São Paulo: RT, nº 4, 2002, p. 151. 150
Não devemos confundir tendência centrípeta, com federalismo centrípeto, enquanto o primeiro traduz-se na
tendência que possui a federação em atribuir um maior número de competências ao ente central (centralização), o
segundo refere-se à origem do federalismo, dito centrípeto por ter se originado “de fora para dentro”, ou seja, os
Estados, antes soberanos abrem mão de suas respectivas soberanias para forma um único Estado soberano: o
Estado Federal (exemplo: EUA), opõe-se a esta última concepção, o federalismo centrífugo, onde um Estado
Unitário desmembra-se em vários estados autônomos para formar a federação, conservando a sua soberania
(exemplo: Brasil). 151
American Constitutional Law.
152 ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Op. Cit., p. 36, et seq.
77
inicialmente no dual federalism. Foi com a Constituição de 1934 que fomos buscar inspiração
no federalismo cooperativo alemão da Constituição de Weimar de 1919 e austríaco de 1920.
Porém, os caminhos da Federação brasileira orientaram-se por novo norte, em que
se verifica a coexistência da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, tal qual não ocorre
no modelo norte-americano, tampouco no modelo alemão. Por tal fato atribui-se ao
federalismo brasileiro o termo federalismo de segundo grau153
- tipo de federalismo em que o
município é ente da federação dotado de autonomia e competências próprias derivadas
diretamente do pacto federativo (CRFB).
Entre nós o sistema do federalismo dual só encontrou acolhida no Texto
Constitucional de 1891, já que a Carta de 1934 recepciona as influências dos movimentos que
levaram ao surgimento do intervencionismo estatal, iniciando o deslocamento centrípeto de
competências e poderes, passando ao modelo cooperativo.
A interconstitucionalidade federativa externa cria o sentimento de expansão da
cultura constitucional de proteção de direitos para os Municípios, realidade ausente nas
respectivas leis orgânicas. O empoderamento dos cidadãos nos espaços públicos locais decorre
do fortalecimento das relações interconstitucionais no âmbito municipal.
A tarefa que se seguiu com a assembleia nacional constituinte, instalada em
01.02.1987, no que se refere à partilha de competências e a umbilicalmente ligada restauração
da Federação foi algo de extraordinário, e tendo sido cumprida veio a dar nova feição a nossa
Federação. O principal aspecto do federalismo cooperativo brasileiro, retomado pela
Constituição Federal de 1988, é a absorção do pensamento solidarista e interconstitucional na
busca da redução das desigualdades regionais e da proteção integral ao desenvolvimento.
Temos que buscar o federalismo cooperativo de equilíbrio (solidarista), estruturado
em laços interconstitucionais de expansão dos direitos humanos, fundamentais e comunitários
nas realidades locais, onde as regiões menos favorecidas desenvolvam seu potencial produtivo
para saírem da situação de dependência, contribuindo para o desenvolvimento econômico do
país. Portanto, as políticas públicas, em todos os níveis, quando, ingenuamente, distribuem
recursos sem contraprestação produtiva, são fraternalistas (mínimo existencial), jamais
solidaristas (máximo potencial). Para concretizar o princípio solidarista é necessária a
153
Contrariamente, entendendo que município não é ente da Federação: SILVA, José Afonso da. Curso de Direito
Constitucional Positivo.São Paulo: Malheiros, 2005, p. 101.
78
existência de contraprestação, ideia reforçada pelo princípio constitucional da eficiência e do
dever de progresso (CFRB, respectivamente: art. 37, caput e art. 3º, II).
Outro aspecto relevante do neofederalismo é a solidariedade educacional, científica
e tecnológica que deve existir entre os entes da federação, tanto em nível vertical (União,
Estados, Distrito Federal e Municípios), horizontal (Estados ou Municípios entre si), quanto
interconstitucional (Entes federados e União supranacional) através de “protocolos de
cooperação para o desenvolvimento”. Algo que também deve ser estendido à Administração
Pública Direta e Indireta dos entes federados integradas interconstitucionalmente ao projeto
comunitário.
Os deveres interconstitucionais comuns de transparência, desburocratização,
abertura democrática para participação ativa do cidadão no desenvolvimento, responsabilidade
financeira, pluralismo, solidariedade social e progresso existencial humano, passam a condição
de princípios estruturante do novo federalismo de integração, despertando a consciência dos
cidadãos de pertencimento a uma entidade política durável com propostas viáveis de proteção
integral do direito transindividual ao desenvolvimento.
79
4 ESTADO CONSTITUCIONAL SOLIDARISTA E DESENVOLVIMENTO
Do ensinamento de Zenão – escoliasta, Proculus retira uma imagem cosmológica
da solidariedade: Se o mundo é constituído por uma alma única, é necessário que haja
simpatia entre as partes que a compõem. Um século mais tarde, Panécio de Rodes, amigo do
historiador Políbio, dos círculos aristotélicos de Roma, evocará o sonho de uma sociedade
universal e fraternal154
.
Cultiva-se a ideia de sociedade universal onde o indivíduo é elemento tanto mais
ativo quanto estiver consciente de nela participar, como bem observa Duvignaud155
. Essa
solidariedade do homem para com a humanidade é claramente perceptível em Cícero no seu
Tratado dos deveres:
É importante, pensam os estoicos, que se saiba bem que é a natureza
que faz com que as crianças sejam amadas pelos pais: é o ponto inicial
donde procede a sociedade universal do gênero humano que
descrevemos (...) Donde se segue que, em geral, os homens são
confiados pela natureza uns aos outros: pelo fato mesmo de ser homem,
um homem não deve ser estranho a outro homem.
Marco Aurélio vai além no sonho de uma solidariedade universal, aproximando-se
da virtude próxima à caridade ou do amor ao próximo: “Num sentido, o homem é o ser mais
próximo de nós, de tal modo que devemos ser benfeitores e tolerantes para com os homens”
(Pensamentos)156
.
A solidariedade que hoje se constrói já superou a mera fraternidade da Revolução
liberal burguesa, é a sua evolução. Não obstante o grande lema da revolução francesa estar
expresso na trilogia liberté, egalité et fraternité (liberdade, igualdade e fraternidade), este
último termo não se fazia presente na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do
Cidadão de 1789. Ela irá reaparecer em 1948, quando da Declaração Universal dos Direitos do
Homem, da ONU, que em seu art. 1º dispôs: Todos os seres humanos nascem livres e iguais
em dignidade e em direitos. Eles são dotados de razão e de consciência e devem agir uns em
relação aos outros com espírito de fraternidade.
154
DUVIGNAUD, Jean. A solidariedade – Laços de Sangue e Laços de Razão. Trad. Vasco Casimiro. Lisboa:
Piaget, 1986, p. 16. 155
Ibidem, p. 18 156
Cfr.: Op. Cit. p. 19
80
4.1 Introdução ao pensamento solidarista
Nascido do choque de ideias e diversas formulações teóricas ao longo do século
XVIII e XIX157
, ressurge o solidarismo, através da ideia de direito social que emerge com
Grotius, com Leibniz158
, com os fisiocratas do século XVIII, com os enciclopedistas, que
animam a Revolução Americana e dá forma a essa federação, que inflama a França de 1789 a
1791, e que os jacobinos perverterão. Ideia que ressurge entre filósofos e pensadores sociais, de
Fichte a Proudhon, que Marx admite e depois recusa, que reencontramos na Comuna de Paris.
Uma imagem nova, sem dúvida, que evoca simultaneamente a autonomia dos grupos perante o
Estado e a cumplicidade dos homens face aos poderes159
.
Viu-se no termo “solidariedade”160
a deformação do latino solidus, que designa,
entre os juristas romanos, o laço que une entre si os devedores de uma quantia, de uma
obrigação, em relação à qual cada um é responsável pelo todo161
. Sua etimologia é apontada
por Jean Arnaud como substantivo abstrato formado sobre o adjetivo solidário, por sua vez
derivado do latim in solidum, que equivale a “totalidade”, “o todo” (Cícero). Neste sentido, os
primeiros textos do Digeste: “in solidum esse” (D. 13, 6, 5, 15) significa simplesmente a
indivisibilidade no uso162
.
Curiosidade histórica nos aponta Nicoletti ao afirmar que “solidariedade” foi pela
primeira vez utilizada em 1840, no contexto da filosofia social, por um são-simonense, P.
Leroux, que diz tê-la pedido emprestado aos legistas para introduzi-la em filosofia; trata-se de
substituir a caridade cristã pela solidariedade humana. Porém, isto já era possível de ser
encontrado nos textos de Voltaire ou de Chateaubriand, embora não num sentido específico.
Leroux usa precisamente a solidariedade como elemento constitutivo essencial da sociedade e
157
Nesse sentido: FARIAS, José Fernando de Castro. A Origem do Direito de Solidariedade. Rio de Janeiro:
Renovar, 1998, p. 187; DUVIGNAUD, Jean. Op. Cit., p. 11. 158
Essa ideia de reabilitação do direito social em Grotius e Leibniz deve-se a Georges Gurvitch: L’Idée de droit
social. Paris: Librairie du Recueil, 1931. 159
DUVIGNAUD, Jean. Op. Cit., p. 11 et seq. 160
Traduções: Alemão: Solidarität; Inglês: Solidarity; Espanhol: Solidaridad; Francês: Solidarité; Italiano:
Solidarietà; Holandês: Solidariteit; Grego: Αλληλεγγυη; Russo: Солидарность; Japonês: 連帯; Coreano: 연대;
Árabe: التضامن . 161
Op. Cit. p. 11-12. 162
ARNAUD, Jean. Dicionário enciclopédico de teoria e de sociologia do direito. Tradução: Patrice Charles, F.
X. Willlaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 766.
81
princípio do progresso de humanidade, antecipando assim a visão de Comte163
e, parcialmente,
a de Durkheim164
.
A solidariedade é termo plurissignificativo. Em ética, é compreendida como
“sentimento do grupo que supõe simpatia mútua e disposição para combater e lutar uns pelos
outros” (Ibn Khaldoun, em Moccad-dimat-Prolégomènes, citado por Bell). Em teoria política,
é “consciência acrescentada de direitos e de responsabilidades” (Cerroni). Em teoria do direito
privado, é categoria específica de relações de obrigação, caracterizada pela unidade-integridade
do vínculo obrigatório e a pluralidade de sujeitos. Em sociologia, é consenso entre unidades
semelhantes que somente pode ser assegurado através do sentimento de cooperação que deriva
necessariamente da similitude e da divisão do trabalho (Comte, Curso... L. XLVIII); é fato
social que consiste no consenso espontâneo das partes do todo social (Durkheim); traduz-se em
características das relações sociais onde a ação de cada um dos participantes implica todos os
outros (Weber); é a Integração institucionalizada da cooperação (Parsons)165
.
Próxima à ideia de solidariedade, conforme sugerem Solari e Petrone, está a noção
fischtiana de Gemeinde der Iche, que irá dar em Hegel, cuja reflexão sobre o “nós” terá
influência decisiva sobre a reflexão filosófica ulterior, de Husserl a Sartre, passando por
Bérgson, Scheler e Ortega. Também a noção de comunicação proposta por Jaspers relaciona-se
com a solidariedade166
.
A solidariedade é fato social, dirá Durkheim, seu estudo pertence ao domínio da
sociologia167
, fato que só pode ser bem conhecido por intermédio dos seus efeitos sociais. O
direito reproduz as principais formas de solidariedade social. Classificando as diferentes
espécies de direito, o professor em Bordeaux e depois em Paris, identificará as diferentes
espécies de solidariedade, em obra publicada em 1893 – La division du travail social.
O que faz com que, mesmo sendo mais autônomo, o indivíduo dependa mais
intimamente da sociedade? Como pode ser cada vez mais individual e, ao mesmo tempo,
sempre mais vinculado por laços de solidariedade? Questiona Durkheim168
.
163
Comte considera a solidariedade como a grande lei natural que governa o conjunto dos fatos sociais, do ponto
de vista tanto estático quanto dinâmico, a linha divisória entre a simples expressão biológica e a dignidade
humana (ARNAUD, Jean, Dicionário..., cit., p. 768). 164
Ibidem, p. 766-768. 165
Ibidem, p. 766. 166
Nesse sentido: ARNAUD, Jean: Op. Cit., p. 767. 167
DURKHEIM, Emile. Da Divisão do Trabalho Social. Trad. Eduardo Brandão. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1999, p. 34. 168
Ibidem, p. 50.
82
A vida em sociedade não pode se estender em nenhum campo sem que a vida
jurídica a siga simultaneamente nos mesmos relacionamentos. Em Durkheim, o direito é o
“símbolo visível” da solidariedade social. Para analisar as diversas formas de solidariedade é
que passa a analisar as diversas formas de direito169
.
Criticando a clássica divisão do direito em público e privado (tal divisão baseia-se
numa noção tanto obscura quanto mal-analisada), Durkheim irá propor uma classificação da
solidariedade social seguindo a classificação das regras jurídicas de acordo com as diferentes
sanções que são ligadas a elas170
.
Há dois tipos de sanção. Umas consistem essencialmente numa dor ou numa
diminuição infligida ao agente, privando-o de algo de que desfruta. Diz-se que são repressivas
– é o caso do direito penal. Quanto ao outro tipo, consiste no restabelecimento das relações
perturbadas sob sua forma normal, estando ligada à reparação das coisas. Existem, portanto,
sanções repressivas organizadas ou sanções apenas restitutivas171
.
O vínculo de solidariedade social a que corresponde o direito repressivo é aquele
cuja ruptura constitui o crime. Assim, o direito penal simboliza a solidariedade por similitude,
a que Durkheim denomina solidariedade mecânica. Todos os membros do grupo são
individualmente atraídos uns pelos outros, por se assemelharem, mas também são apegados ao
que é a condição de existência desse tipo coletivo, isto é, a sociedade que formam por sua
reunião. A solidariedade, nascida das semelhanças, vincula diretamente o individuo à
sociedade172
.
Afirma Durkheim que é essa solidariedade que o direito repressivo exprime, pelo
menos no que ela tem de vital. De fato, os atos que ele proíbe e qualifica de crimes são de dois
tipos: ou manifestam diretamente a dessemelhança demasiado violenta contra o agente que as
realiza e o tipo coletivo, ou ofendem o órgão da consciência comum. Essa força que é chocada
pelo crime e que o reprime é a mesma; ela é produto das similitudes sociais mais essenciais e
tem por efeito manter a coesão social que resulta dessas similitudes173
.
169
TREVES, Renato. Sociologia do Direito. Tradução: Marcelo Branchini. São Paulo: Manole, 2004, p. 57. 170
Da Divisão do Trabalho Social. p. 36. Durkheim não admite a existência de direito privado, acredita que todo
direito é público, porque todo direito é social. Todas as funções da sociedade são sociais. (Op. Cit. p. 103) 171
Ibidem, p. 37. 172
Ibidem, Capítulo II, p. 76-78. 173
Ibidem, p. 80.
83
Essa conexão que se estabelece entre os indivíduos, criando vínculo entre
consciências individuais e consciência coletiva é fundamental para compreensão da
solidariedade por similitude defendida por Durkheim e situa-se num nível mais psicológico que
propriamente sociológico.
Já a solidariedade devida à divisão do trabalho ou orgânica corresponde à sanção
restitutiva. As relações reguladas pelo direito contratual, comercial, processual, administrativo
e constitucional exprimem concurso positivo, cooperação que deriva essencialmente da divisão
do trabalho174
.
Parte do direito civil tem, pois, como objeto determinar a maneira como se
distribuem as diferentes funções familiares e o que elas devem ser em suas relações mútuas;
isso quer dizer que exprime a solidariedade particular que une entre si os membros da família
em consequência da divisão do trabalho doméstico, exemplifica Durkheim175
. Essa divisão do
trabalho familiar domina todo o desenvolvimento da família. O direito administrativo
estabelece a divisão funcional dita administrativa. O mesmo ocorre com o direito
constitucional no caso das funções governamentais e o sistema de divisão de competências.
A divisão do trabalho cria entre os homens todo o sistema de direitos e deveres que
os ligam uns aos outros de maneira duradoura. Do mesmo modo que as similitudes sociais dão
origem a um direito e a uma moral que as protegem. A divisão do trabalho social dá origem a
regras que asseguram o concurso pacífico e regular das funções divididas176
.
Ao final de sua obra, Durkheim faz referência à ideia de justiça, que será
desenvolvida por seu discípulo, Léon Duguit. Afirma Durkheim, que não basta haver regras,
elas têm de ser justas e, para tanto, é necessário que as condições externas de concorrência
sejam iguais. Muitas das construções teóricas de Durkheim, em especial o seu conceito de
“consciência coletiva”, serão revistas por Gurvitch177
, Hauriou e tantos outros que se orientam
pelo pensamento solidarista.
O grande mérito de Durkheim, a despeito das críticas que lhe foram dirigidas,
constituiu em apresentar a concepção de solidariedade bem próxima da sociedade, constituindo
quase que a identidade reflexiva da própria sociedade, fundando as bases do que se denominou
174
Cfr. DURKHEIM, Émile. Op. Cit., p. 98. 175
Ibidem, p. 99. 176
Ibidem, p. 429. 177
GURVITCH, Georges. La Vocation Actualle de la Sociologie. Antécédents et Perspectivas. Paris: Presses
Universitaires. 2. ed. 1963. Tomo I, p. 2 et seq.
84
solidarismo sociológico e que, posteriormente, Duguit desenvolveria para construir o seu
solidarismo jurídico178
.
A solidariedade aparece hoje como atualização da fraternidade. Diferencia-se do
solidarismo fundamentalmente por seu referencial cristão179
(importância decisiva das noções
de caridade e comunhão)180
.
A fraternidade é vista por Derrida como a amizade que reúne as vontades e oferece
solidez ao poder. É também postulado não cumprido da Revolução burguesa de 1789181
.
Ser solidário é assumir responsabilidades comuns para com o outro e desse para
conosco, num vigiar constante e recíproco entre parceiros da sociedade, onde cada tarefa
cumprida no interesse de servir ao próximo faz parte da edificação democrática e pluralista do
Estado Constitucional Solidarista.
O fato de Robespierre, Couthon, Saint-Just, terem, em nome da moralidade cujos
segredos detinham, utilizado o terror e a guilhotina como instrumento de controle social, foi o
que lhes permitiu liquidar fisicamente os seus opositores, conduzir Condorcet ao suicídio e
abater mesmo o criador do tribunal contra-revolucionário – Danton. Uma moralidade
exasperada que, mais tarde, encontrou estímulos no mundo entre ditadores políticos, racistas ou
religiosos. “Não pode haver liberdade para os inimigos da liberdade”, proclama um deles; mas
quem a define?182
. No Brasil, uma placa pendurada no saguão de delegacia paulista no auge
dos “anos de chumbo” afirmou: “Contra a pátria não há direitos”183
, lema que insiste em
perdurar nos processos judiciais que reclamam qualquer pretensão indenizatória em face do
Estado, através do sistema inconstitucional de precatórios em prática no país.
178
Apesar de Durkheim se interessar pelo fenômeno jurídico, está bastante próximo do pensamento sociológico
de Comte – todo empenhado no estudo do problema do consensus – muito distante das concepções individualistas
e contratualistas de Spencer, a quem Durkheim dirige muitas das suas críticas. Nesse sentido: Renato Treves:
Socilologia del Diritto, p. 60; R. Aron: Lês étapes de la pensée sociologique, p. 372 et seq; J. Davignaud, F.
Farrarotti e A. Izzo, Individuo e società in Durkheim. 179
Pensamento presente em 1891, com a promulgação da Rerum novarum. Leão XIII inaugura nova época para a
doutrina social cristã, fundadas sobre três pilares: justiça, amor e solidariedade. Justiça, porque ela expressa o
direito básico de todo homem para o seu desenvolvimento; amor, porque ele recria as forças interiores para o
exercício das virtudes; solidariedade, porque, fruto da justiça e do amor, ela impele para a doação desinteressada.
(ULLMANN, Reinholdo; BOHNEN, Aloysio. O solidarismo. São Leopoldo: Unisinos, 1993, p.159) 180
Para melhor compreensão do solidarismo cristão ver: Reinholdo Ullmann e Pe. Aloysio Bohnen: O
solidarismo; Pe. Fernando Bastos de Ávila: Solidarismo – Alternativa para a globalização. 181
DERRIDA, Jaques. Politiques de l’amitié. Paris: Galilée,1994. 182
DUVIGNAUD, Jean. Solidariedade – laços de sangue e laços de razão. Tradução: Vasco Casimiro. Lisboa:
Piaget, 1986, p. 92 183
GASPARI, Elio. A Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
85
O Solidarismo oferecerá uma via diferente da dos fanáticos do individualismo
exasperado que alarga a consciência de si até às dimensões de uma consciência de todos.
Afirmará Duvignaud: “O sonho de Platão na República, onde confia aos sábios a direção da
cidade, não é diferente do dos adeptos do Terror de 1793, nem do das ditaduras que encontram
no princípio de uma razão ou de uma moral absolutas a legitimidade de um poder
extorquido”184
. O Estado se constrói democrática e solidariamente nos degraus do pluralismo
político, num processo de desenvolvimento edificado na ampla participação popular e
transparência das ações estatais, retirando sua legitimação através da garantia de acesso
universal ao progresso existencial humano.
Discípulo de Émile Durkheim (1858-1917), Léon Duguit (1859-1928) também
receberá influência de outro grande representante da “Escola sociológica francesa”, Auguste
Comte (1798-1857).Sua doutrina fornecerá as bases do solidarismo jurídico chegando mesmo a
constituí-lo.
A compreensão do solidarismo de base constitucionalista edificado por Duguit será
fundamental para solidificar a teoria integral de proteção do direito fundamental
transindividual ao desenvolvimento, reconhecidamente, o direito de solidariedade de maior
amplitude normativa, multicitado nas constituições nacionais, comunitárias e tratados
internacionais185
.
Em sua crítica da doutrina individualista, Duguit afirma que o homem natural,
isolado, que nasce livre e independente dos outros homens, e com direitos constituídos por essa
mesma liberdade e essa mesma independência, é abstração alheia à realidade. De fato, o
homem nasce membro da coletividade; viveu sempre em sociedade e só pode viver em
sociedade, e o ponto de partida de qualquer doutrina sobre o fundamento do direito deve ser,
sem dúvida, o indivíduo implicado nos laços de solidariedade social186
.
Aqui a sociedade humana é fato primário e natural, e não o produto da vontade
humana. Percebe Duguit que a humanidade está muito dividida em certo número de grupos
sociais, e o homem só se concebe como verdadeiramente solidário daqueles homens que
184
DUVIGNAUD, Jean. Op. Cit. p. 93. 185
O solidarismo também produzirá reflexos na compreensão do federalismo, provocando mudanças em suas
bases cooperativas, nas relações de interconstitucionalidade federativa interna (Constituições Estaduais em
diálogo com as Constituições Federais) e de interconstitucionalidade federativa externa (Constituições estaduais
em diálogo com os Tratados Internacionais de Direitos Humanos e Constituição Comunitária). 186
DUGUIT, Léon. Fundamentos do Direito. Tradução: Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN Editora, 2003,
p. 11.
86
pertencem ao seu grupo. Esses grupos revestiram diversas formas contingentes, sendo as
principais na ordem cronológica: a horda, a família, a cidade, a nação187
.
Os homens do mesmo grupo social são solidários uns com os outros: primeiro,
porque têm necessidades comuns que só podem garantir satisfação pela vida em comunidade;
segundo, porque têm necessidades diferentes e aptidões diferentes pela troca de serviços
recíprocos, devidos ao desenvolvimento e emprego das suas diferentes aptidões188
, ao primeiro
motivo (igualdade de necessidades) liga-se a solidariedade por similitude, ao segundo, a
solidariedade por divisão do trabalho social189
.
A solidariedade por similitude, que nasce da igualdade de necessidades satisfeitas
pela existência da vida em comum, pressupõe a união de esforços. Já a divisão do trabalho se
orienta pela diversidade de aptidões em face de interesse comum. A solidariedade é fato porque
os homens estão submetidos a esta força que os fazem sentirem-se membros do todo social;
mas, ao mesmo tempo, a solidariedade é ideia, pensamento individual, representação de um
estado, ao qual, como critério de suprema justiça, deve acomodar-se a conduta dos homens190
.
Além de ter a solidariedade como fundamento do direito, expressada tanto pela
similitude quanto pela divisão do trabalho social, Duguit, ao discutir a distinção (com a qual
não concorda) entre direito público e direito privado, afirmará a importância do espírito de
justiça:
Diz-se muitas vezes: - o espírito que deve presidir ao estudo do direito
público não é o mesmo que deve inspirar o estudo do direito privado.
Na verdade, não compreendemos o que isso quer dizer. Sempre
julgamos que o espírito que se deve aplicar ao estudo do direito é o
espírito de justiça. É seguramente com esse espírito que se deve estudar
o direito privado. Pretenderá alguém que se deva estudar o direito
público com espírito diferente? Não podemos acreditá-lo191
.
187
Op. Cit. p. 16. 188
Op. Cit. p. 17. 189
DUGUIT, Léon. L’Etat, le droit objectif et la loi positive. Paris: Albert Fontemoing Éditeur, 1901, p. 40-49.
Manual de Derecho Constitucional. Tradução: José G. Acuña. Granada: Editorial Comares, 2005, p. 6. Na
tradução brasileira: Fundamentos do Direito. Tradução: Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN Editora, 2003,
p. 17 existe um equívoco na tradução dessa passagem do pensamento de Duguit, apontando a primeira espécie de
solidariedade por divisão do trabalho, quando na verdade Duguit a afirma por similitude, por esse motivo nossa
pesquisa foi efetuada em obra original em francês e na tradução espanhola, acima citadas. 190
DUGUIT, Léon. Manual de Derecho Constitucional. Tradução: José G. Acuña. Granada: Editorial Comares,
2005, p. 6. et seq 191
Ibidem. p. 36 et seq.
87
Duguit retira da soberania o seu poder de mando para convertê-la em capacidade de
servir192
. Momento em que converte a própria noção de soberania em noção de serviço
público193
, paralelamente opera a transformação do conceito de liberdade, fundamento
indestrutível da autonomia individual.
Seguindo os ensinamentos de Durkheim, Duguit afirma que a solidariedade que
existe entre os homens do mesmo grupo é dupla: os homens estão unidos entre si por: primeiro
por laços de solidariedade os quais Durkheim denomina mecânica ou por similitude e, ademais,
por laços de solidariedade chamada orgânica, ou por divisão do trabalho.
A solidariedade por similitude resulta do fato de que os homens, vivendo em
sociedade, são, em muitos aspectos, semelhantes uns aos outros, unem-se através dessa
igualdade.
A solidariedade orgânica ou por divisão do trabalho além de unir os indivíduos,
estabelece a interdependência inserindo-os como membros da mesma sociedade, relacionando-
os através da diferenciação. Esta última classe de solidariedade é característica das sociedades
que tenham alcançado alto grau de civilização.
O Estado encontra-se submetido à regra de desenvolvimento da solidariedade
assim como o são os próprios indivíduos, sendo a vontade dos governantes, “uma vontade
jurídica capaz de impor constrição somente no momento em que se manifesta nos limites que
lhe são traçados pela regra do direito”194
.
O Estado não é outra coisa senão o produto da diferenciação natural entre os
homens do mesmo grupo do qual deriva o que se chama de potência pública, que não pode, de
nenhum modo, ser legitimada por sua origem, mas somente pelos serviços que presta de acordo
com a regra de direito195
.
Muitas ideias de Duguit refletirão em Adolfo Posada, no tratamento que este último
confere à concepção teleológica de Estado196
. O Estado surge idealmente da decisão consciente
192
DUGUIT, Léon. Soberania y libertad. Tradução e Prólogo: José G. Acuña. Madrid: Francisco Beltran, 1924. 193
O Estado não é poder de mando, soberania; é cooperação de serviços públicos organizados e controlados pelos
governantes, afirmará Duguit. Manual de Derecho Constitucional..., p. 72 et seq. Trate..., t. II, p. 54. 194
Op. Cit. p. 259. 195
Cfr.: TREVES, Renato. Sociología del Diritto. p. 131; DUGUIT, Léon. Trate..., p. VII. 196
POSADA, Adolfo. La crisis del Estado y el Derecho Político. Madrid: C. Bermejo, 1934, p. 25: “sumergido en
el derecho, y más ceñido al hombre” se defiende una Política y un Derecho político de contenido social, de
cimentación histórica y realista, pero volcados hacia el ideal y las exigencias éticas.
88
de estabelecer meio idôneo a serviço da realização dos fins da vida humana e, antes de tudo,
para garantia da liberdade e do progresso existencial humano (direito fundamental
transindividual ao desenvolvimento). Daí que para Posada o Estado seja constitutivamente
Estado serviçal, de serviços públicos oferecidos aos cidadãos. O Estado seria desse modo o
reflexo da solidariedade197
. Aqui se percebe a confluência entre os pensamentos de Duguit e
Posada198
.
Para Posada a forma de Estado constitucional social refletiria a implicação
constitucional e ética na realização da justiça social e na harmonização jurídica da esfera
individual e social do homem em seus diversos papeis sociais, estabelecendo sistema de
garantias dos direitos e liberdades essenciais, com vistas a mais ampla realização dos fins
humanos. Sua “ideia pura de Estado” reflete seu compromisso com o regime de Estado de
Direito comprometido com os direitos humanos199
, sendo a substância condicionante de sua
forma jurídica. Nesse aspecto, cresce em relevância a junção solidária de perspectivas
constitucionais, internacionais e comunitárias no processo de proteção do desenvolvimento.
No mesmo sentido, Duguit afirmará a reforma social como tarefa central do
Estado, revisando o constitucionalismo liberal individualista200
, fornecendo as bases para o
constitucionalismo social e solidário.
Chegará o dia em que a solidariedade humana absorverá as solidariedades locais,
regionais ou nacionais; dia em que o homem se considere cidadão do mundo? Duguit observa
que “em todas as formas de agrupamento humano existe uma única realidade, a pessoa
humana, isto é, a consciência e a vontade do indivíduo” e conclui afirmando que “essa
individualidade parece mais viva e mais ativa quanto mais coerente, complexo e compreensivo
é o grupo social”201
. Construir esse ideal universal passa necessariamente por três fenômenos
relacionados à nossa concepção de solidariedade: o pluralismo, a cooperação
interconstitucional-intercultural e a teoria integral de proteção.
197
Nesse sentido: José Luis Monero Pérez e José Calvo Gonzáles. La Teoría Jurídica de León Duguit. In:
DUGUIT, Leon. Manual de Derecho Constitucional. Tradução: José G. Acuña. Granada: Editorial Comares,
2005, estudio preliminar, p. XLII. 198
Adolfo Posada, em boa medida, foi um dos introdutores do pensamento “deguitiano” na Espanha. 199
POSADA, Adolfo. La Idea Pura del Estado. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1935. 200
Cfr. MONERO PÉREZ, José Luis, e CALVO GONZÁLES, José. “León Duguit (1859-1928) Jurista de una
sociedad en transformación. Revista de Derecho Constitucional Europeo, N. 04, 2005. 201
DUGUIT, León. L´État, le droit objectif et la loi positive. Paris: Albert Fontemoing Éditeur, 1901, p. 80.
89
Maurice Hauriou (1856-1929), professor em Toulouse, colocou-se contra as
concepções de direito e de Estado de Duguit, que ele chama de subjetivistas na medida em que
concebem “as regras de direito com a volição subjetiva da pessoa do Estado”. Também
condena o objetivismo por colocar tudo sobre a regra de direito, pois, para Hauriou, o
verdadeiro elemento objetivo do sistema jurídico é a instituição, e afirmará: “são as instituições
que fazem as regras de direito e não tais regras que fazem as instituições“. As instituições são
substancialmente o centro e a fonte da juridicidade202
.
A instituição (Estado, igreja, família, sindicato etc.) é fato incontestável, ideia
objetiva transformada em obra social por um fundador, ideia que recruta adesões no meio
social e sujeita a seu serviço vontades subjetivas indefinidamente renovadas, afirmará
Hauriou203
.
As instituições sociais, na concepção de Hauriou, duram um tempo mais ou menos
longo, segundo a melhor ou pior resposta apresentada às necessidades do meio social e
conforme as suas ideias se aproximem da verdade e da justiça204
.
Com relação à fraternidade, Hauriou refere-se às instituições de beneficência
pública para os indigentes, os enfermos, menores abandonados e idosos.
Para Hauriou, o processo de institucionalização é composto por três formas de
solidariedade: a solidariedade orgânica, a solidariedade representativa e a solidariedade ética.
Essas formas de solidariedade estão em perpétua articulação e interação, formando a
conciliação prática e teórica na sociedade global. O mundo social será processo de construção,
trazendo em si as raízes de uma ordem institucional em expansão205
.
A instituição possui obra a realizar no meio social, que se traduz na afirmação do
princípio da solidariedade. A proximidade desse ideal é que determinará a sua continuidade e
permanência, transformação ou extinção, sempre refletindo as novas necessidades sociais.
A dinâmica e institucionalização das Forças Tarefas estabelecidas pela ONU para o
desenvolvimento global constituem reflexo dessa última concepção de solidariedade. Em
setembro de 2000, os líderes mundiais comprometeram suas nações com oito Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio (ODM) a serem alcançados até 2015. Essas políticas públicas
202
HAURIOU, Maurice. Princípios de Derecho Público y Constitucional. Tradução: Carlos Ruiz del Castillo.
Granada: Editorial Comares, 2003, p. 28 et seq. 203
Ibidem, p. 91. 204
Ibidem. p. 97. Mais adiante Hauriou substituirá o termo verdade por verdade moral e, por fim, apenas Moral. 205
Cf.: FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito de solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998,
p. 249-251
90
internacionais buscaram reduir para metade a pobreza extrema, impedir a propagação do HIV /
AIDS (com 24,7 milhões de pessoas vivendo com HIV na África Subsariana em 2013, a região
continua sendo a mais afetada pela epidemia de AIDS conforme dados da UNAIDS206
) e
prover educação primária universal. Para conseguí-los ao Secretário-Geral lançou diversas
iniciativas, incluindo o Desafio Fome Zero.
Entre os anos de 2004 a 2010 destacam-se os trabalhos da High-Level Task Force
on the implementation of rights to development. O Working Group on the Right to
Development permanece em atividade desde 2000. Também integra o sistema de forças tarefas
o UN System Task Team on the Post-2015 UN Development Agenda. Mais informações sobre a
agenda de desenvolvimento pós-2015 podem ser encontraras no “World We Want 2015” (site
de propriedade conjunta de agências das Nações Unidas e organizações da sociedade civil –
associação igualitária de colaboração).
Gurvitch, rompendo com a tradição clássica, e com Duguit mais do que com
Durkheim, fala de socialidade ao invés de solidariedade, que seria uma de suas formas. Ele faz
distinção entre a socialidade por fusão parcial dentro do “nós” – interpenetração – e a
socialidade por simples interdependência – relação, comunicação207
.
Ainda sugere Gurvitch que o único sentido preciso de solidariedade distinto da
coesão/interdependência não pode estar isento de parentesco com aquilo que, depois de
Hauriou, ele chama de “ordem integrativa”, cuja expressão organizada são as associações
igualitárias de colaboração208
.
Toda a construção teórica de Gurvitch e sua concepção solidarista passam pela
compreensão de direito social.
O direito social é direito autônomo de comunhão integrando, de maneira objetiva,
cada totalidade ativa do real, que encara valor positivo extratemporal. Esse direito se desprende
diretamente do “todo” em questão para regular sua vida interior. O direito social precede, na
sua camada primária, toda organização do grupo e só pode se exprimir de maneira organizada
se a associação é fundada sobre o direito da comunidade subjacente objetiva e pela penetração
desse direito na comunidade. O direito social se endereça, na sua camada organizada, a sujeitos
206
Disponível em: http://www.unaids.org/sites/default/files/20150123_Champions_PR2_en.pdf. Acesso em 12 de
janeiro de 2015. 207
ARNAUD, Jean, Dicionário enciclopédico de teoria e de sociologia do direito. Tradução: Patrice Charles; F.
X. Willlaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 769. 208
Ibidem. p. 770-771.
91
específicos que observam a multiplicidade de seus membros na vontade única da cooperação
ou do estabelecimento209
. Essa concepção de Gurvitch afirma a ideia de superação do “direito
de dominação ou subordinação” próprio do direito romano pelo “direito de integração ou de
comunhão de interesses” presente na realidade interconstitucional de proteção integral ao
desenvolvimento.
Na participação de todos em torno da construção do que Gurvitch denomina “fato
normativo” de “relação com outrem” e na participação direta do “todo”, fundada sobre o
direito social, que se manifesta a ligação especial entre os sujeitos desse direito; isto é, a
interdependência mútua e a fusão parcial de suas pretensões e de seus deveres
correspondentes210
.
Em L’Expérience Jurídique et Philosophie Pluraliste, Gurvitch desenvolverá
estudos sobre pluralismo jurídico e democracia, chegando a designar o “reino do direito” como
verdadeiro “astro condutor” do Estado democrático.211
Nesse ponto, descobre novas
possibilidades para jurisdição interconstitucional de proteção.
Gurvitch acrescenta três novas dimensões à problemática sociológica do pluralismo
jurídico: (i) A pluralidade dos ordenamentos do direito social não repousa apenas na
multiplicidade dos grupos ou associações. O direito social pode corresponder a quadros sociais
supra-funcionais, como a nação, as classes sociais e a comunidade internacional; (ii) Junto ao
direito social, cuja fonte é essencialmente coletiva, manifesta-se o direito interindividual que se
baseia no intercâmbio entre os indivíduos. Ora, se o direito social tende a predominar no seio
dos grupos e dos outros quadros sociais, o direito interindividual seria essencialmente
desenvolvido no ordenamento jurídico do Estado, particularmente no estágio do liberalismo
econômico; (iii) A clivagem formal/informal na realidade social do direito não fornece
representação adequada da relação direito do Estado/direito da sociedade, pois cada quadro de
direito social, estatal ou não, revela ser a morada da dinâmica constante entre o direito
organizado e o direito inorganizado que lhe é subjacente212
.
209
GURVITCH,Georges. L’Idée du Droit Social. Paris: Librairie du Recueil, 1931, p. 15 et seq. 210
Ibidem. p. 22. 211
Cf.: FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito de solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998,
p. 275. 212
GURVITCH, Georges. Élements de sociologie juridique. Paris: Aubier, 1940. Ver também: BELLEY, Jean-
Guy. “Georges Gurvitch et les professionels de la pensée juridique”, In: Droit et Societé. Paris: LGDJ, 1986, nº 4,
p. 353-371
92
Cabe-nos apreender com Ricoer que o sentido de um texto não está por detrás do
texto, mas à sua frente. Não é algo de oculto, mas algo de descoberto. O que importa
compreender não é a situação inicial do discurso, mas o que aponta para um mundo possível,
graças à referência não ostensiva do texto. A compreensão tem menos do que nunca a ver com
o autor e sua situação. Procura apreender as posições de mundo descortinadas pela referência
do texto. Compreender um texto é seguir seu movimento do sentido para referência: do que ele
diz para aquilo de que ele fala. Neste processo, o papel mediador desempenhado pela análise
estrutural constitui a justificação da abordagem objetiva e a retificação da abordagem subjetiva
ao texto213
.
O texto fala de mundo possível e de modo possível de alguém nele se orientar. Os
horizontes oferecidos pelo pensamento solidarista em nossos estudos pretendem ser o caminho
para se chegar a esse mundo possível que nos foi prometido – de uma sociedade livre, justa e
solidária em progresso existencial.
O fundamento do princípio da solidariedade é compreendido de diferentes formas.
Seja considerando-o fundamento do direito ou base de sustentação da sociedade. Nada é mais
comum e próprio da solidariedade do que o ideal de contribuição para o crescimento
psicológico, material, cultural, espiritual, filosófico, físico, sentimental, enfim, de todas as
potencialidades humanas, respeitando sempre o pluralismo de concepções e modos de vida que
se afirmam no progresso existencial através do direito fundamental transindividual ao
desenvolvimento.
Tudo que se faz e que se constrói, tanto científica quanto culturalmente, deve
buscar reafirmar sempre o pensamento solidarista, na busca do bem comum, na afirmação da
justiça, na liberdade conciliada pelo respeito e ajuda ao próximo, jamais pelo egoísmo pessoal.
À luz desse novo paradigma, muitas ideias classicamente afirmadas pela teoria do
direito carecem de revisão epistemológica e filosófica. Mesmo porque nosso entendimento
aproxima-se cada vez mais da compreensão da teoria do direito enquanto disciplina filosófica,
distanciando-se da concepção dogmática.
A solidariedade se concretiza no compartilhar – modos de vida, interesses comuns,
papéis sociais, sentimentos, conquistas, conhecimentos, experiências – refletindo o que
passamos a denominar solidariedade pela afirmação do pluralismo, tema que será aprofundado
213
RICOER, Paul. Teoria da Interpretação – o discurso e o excesso de significação. Tradução: Artur Morão.
Lisboa: Edições 70. 1976, p. 99
93
em tópico específico. De modo que a sociedade venha a constituir-se num espaço de
cooperação e solidariedade, até mesmo na vertente abandonada pelo Estado Constitucional
Pluralista que buscamos recuperar.
Michael Walzer, em Êxodo e revolução, afirma o seguinte:
Primeiro, onde quer que vivas é provavelmente o Egito. Segundo, que
sempre há um lugar melhor, um mundo mais atrativo, uma terra
prometida. E, terceiro, que o caminho a essa terra é através do deserto.
Não há forma de chegar aí exceto unindo-se e caminhando214
.
Para nós que desejamos observar a solidariedade enquanto princípio do progresso
da humanidade e de realização da própria condição humana concretizar-se ainda nesta vida,
não poderíamos deixar de referenciar o pensamento pragmatista, já presente em Duguit215
e
com o qual tivemos contato a partir dos debates entre Rorty e Habermas em Filosofia,
Racionalidade e Democracia e que, decisivamente, influenciaram muitas das nossas
construções teóricas.
Em breve síntese, o pragmatismo vincula todo o discurso de legitimação e
pretensão de correção das diversas teorias com a verificação empírica de sua aptidão para
produzir transformações na realidade, no caso específico do nosso estudo, a concretização
constitucional do pensamento solidarista integra a teoria integral de proteção em ambiente
plural e democraticamente consolidado em redes de cibercidadania participativa objetivando
garantir o progresso existencial humano através do direito fundamental transindividual ao
desenvolvimento.
A solidariedade há que ser vivida muito mais que contemplada, afinal, o Estado
Solidarista é algo em que nos transformamos.
Se um dia o pensamento de Hannah Arendt sobre a concepção de poder sem
violência foi capaz de se concretizar através das ações de Gandhi em sua “desobediência
pacífica”, negando o que outrora pensou Max Weber, também a solidariedade há que
converter-se em ação.
214
WALZER, Michael. Exodus and Revolution. USA: Basic Books, 1985, p. 149. 215
A teoria pragmática do direito fora exposta por Duguit em conferências pronunciadas na Universidade de
Madrid em novembro de 1923. Nesse sentido: SALDAÑA, Quintiliano. El Pragmatismo jurídico – Conferencias
pronunciadas en la Universidad de Madrid. Madrid: Francisco Beltran, 1924.
94
A solidariedade concretizada é que confere identidade e força normativa aos textos
interconstitucionais contemporâneos, constituindo seu novo marco teórico e a via possível de
afirmação do desenvolvimento no novo milênio.
4.2 Fundamentos teóricos e filosóficos do Estado Constitucional Solidarista
As formações conceituais aqui apresentadas refletem não apenas o real, o já
seguramente alcançado. O Estado Solidarista não é apenas possível forma (futura) de
desenvolvimento do tipo “Estado Constitucional”216
; ele já assumiu conformação na realidade
e é, necessariamente, a forma necessária de estatalidade legítima do amanhã, de reafirmação da
justiça social, do pluralismo e dos direitos fundamentais.
Muito mais importante que fortalecer a solidariedade no âmbito estatal é fortalecê-
la na (e a partir da) sociedade, compreendendo a sua complexidade e o seu pluralismo.
Complexidade que não se reduz à falaciosa dicotomia Estado-Sociedade. Pluralismo que se
afirma na ideia de alteridade compreensiva, respeito às diferenças, luta pelas minorias
excluídas do acesso aos mais diversos direitos fundamentais, diversidade de ideias e
expectativas de vida e, acima de tudo, pelo fortalecimento dos laços de solidariedade social.
Toda mudança institucional será vã se não partir dessas premissas. Tais premissas constituem
verdadeiro paradigma na interpretação e concretização do texto constitucional em seu
conjunto.
O Estado possui razão de existir, fundamento que lhe confere legitimidade e
permanência. O Contratualismo, em termos gerais, afirma que o Estado é produto da decisão
racional do homem em face da necessidade social. Dentre os filósofos políticos que seguem tal
corrente de pensamento estão: Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704) e Jean-
Jacques Rousseau (1712-1778).
Em Hobbes tal razão será a paz e a segurança que deve o Estado garantir perante a
sociedade beligerante, afinal, em sua concepção, “o homem é o lobo do próprio homem”. Sem
a espada os pactos não são senão palavras, dirá Hobbes. Na sua concepção, os termos do
contrato se darão da seguinte forma: o Estado assume estrutura institucional que na prática se
apresentará virtualmente auto-suficiente, pela magnitude das suas atribuições, auto-referencial
216
Parafraseando Peter Häberle. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução: Marcos Augusto Maliska e Elisete
Antoniuk. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 5
95
pelos fundamentos do seu poder, hermética por sua impermeabilidade aos reclamos dos
súditos, incondicional porque o cumprimento dos seus fins é incompatível com a formulação
de reservas por parte dos contratantes no momento de contratar, impune, pois, toda sanção
pretendida aplicável ao soberano seria uma sanção do súdito contra si mesmo, e irreversível
devido aos perigos de retorno à situação pré-contratual217
. Seu produto institucional é o Estado
absolutista218
.
Locke fundamenta a existência do Estado na garantia da liberdade, propriedade e
igualdade entre os indivíduos. Os homens em estado de natureza são livres para ordenar seus
atos e para dispor de suas propriedades conforme sua própria vontade, dentro dos limites da lei
natural, sem necessidade de pedir permissão e sem depender da vontade de outra pessoa e são
iguais, posto que não haja coisa mais evidente que o fato de seres da mesma espécie e idêntica
natureza, nascidos para participar sem distinção de todas as vantagens da natureza e para
servir-se das mesmas faculdades sejam também iguais entre si, sem subordinação ou
sujeição219
. Seu modelo de Estado é o liberal (mínimo) e o homem é por natureza um ser
egoísta que quer apenas o seu progresso pessoal. O Estado deve fixar as regras (legislação),
difundir seu conhecimento (educação), evitar sua violação (segurança) e castigar seu
descumprimento (justiça) 220
. Locke também afirma o direito de resistir à opressão do
governante que descumpre os termos estabelecidos no contrato221
.
Rousseau afirmará a incompatibilidade entre igualdade e propriedade, pois é nesta
última que se encontra a origem da desigualdade222
entre os homens, no momento em que um
deles cercou determinado espaço territorial e afirmou: “isso é meu” e encontrou pessoas
suficientemente simples para acreditá-lo, foi esse o fundador da sociedade civil. Quantos
crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele
que, arrancando as estacas, tivesse gritado aos seus semelhantes: “Defendam-se de ouvir esse
impostor; estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de todos e que a terra não pertence
217
HOBBES, Thomas. Leviatán. Trad. Antônio Escohotado. Madrid: Ed. Nacional, 1983, p. 223 et. seq. 218
Nesse sentido: ROSATTI, Horacio Daniel. Teorías sobre el origen y justificación del Estado. In: Revista de
Direito Constitucional e Internacional. São Paulo: RT, nº 35, 2001, p. 55. 219
LOCKE, John. Ensayo sobre el gobierno civil. Trad. Amando Lázaro. Madrid: Ed. Aguilar, p. 5 220
Ibidem, p. 73 et seq. 221
Ibidem, Capítulo XVIII (“De la tiranía”), p. 155. 222
Originariamente Rousseau percebe dois tipos de desigualdade: a primeira, natural ou física, decorre da
diferença de idade, da saúde, das forças do corpo ou qualidades do espírito, esta não lhe interessa em nada; a
segunda, moral ou política, parece estar estabelecida com o consentimento dos homens, após uma espécie de
convenção e é a única que merece que sejam descritos a sua origem e seu processo. Nesse sentido: PISIER,
Evelyne. História das Idéias Políticas. Trad. Maria Alice Farah Calil. Barueri: Manole, 2004, p. 82.
96
a ninguém”. Serão, portanto, a liberdade e a igualdade, os fundamentos do Estado para
Rousseau, em sua percepção, o homem é bom por natureza223
, e cada um, unindo-se a todos, só
obedece, contudo, a si mesmo, daí que a lei, na concepção de Rousseau, é a expressão da
vontade geral224
. Obedecendo à lei que se prescreveu a si mesmo o homem torna-se livre.
Os contratualistas e outros pensadores políticos dos séculos XVII e XVIII, a
exemplo de Montesquieu, Voltaire, Sieyès, contribuíram historicamente para a formação do
Estado Constitucional, fruto do movimento conhecido por constitucionalismo, concretizado na
Inglaterra após a Revolução Gloriosa de 1688 e que resultou na Monarquia Constitucional
daquele país; reafirmado no movimento de Independência das Treze Colônias Inglesas em
1776 que deu origem aos Estados Unidos da América e a primeira constituição escrita do
mundo em 1787; e, por fim, a Revolução Francesa de 1789, marco histórico do final de uma
era, que se inicia sob novos ideais e novas esperanças, que se fizeram presentes na Declaração
Universal de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, incorporada à Constituição da França
de 1791.
Com o fim do absolutismo na Inglaterra e França, com a incorporação da teoria da
tripartição dos poderes estabelecida por Montesquieu225
nos diversos textos constitucionais do
mundo, as sociedades modernas partem em busca da liberdade através limitação do poder do
Estado em face do indivíduo, liberdade expressada nos direitos e garantias individuais. O
modelo de Estado que se seguirá, após o absolutismo, será o Estado Liberal – laisser faire
laisser passer que le monde va de lui même (deixai fazer deixai passar que o mundo se
autogoverna), seu marco teórico no campo econômico será a obra A riqueza das nações de
Adam Smith, onde ficou afirmado que a maior contribuição que o indivíduo poderia oferecer
ao Estado seria a contribuição do seu egoísmo pessoal (o liberalismo econômico é uma das
grandes conquistas da burguesia).
O Estado Constitucional passará por nova mudança de paradigma. Após as duas
grandes guerras mundiais, revoluções ocorridas no México (1910) e na Rússia (1917), o
capitalismo encontrará seus primeiros limites, expressos na segunda geração de direitos
223
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 6. 224
Conforme Pisier, interpretando Rousseau: A vontade geral dá a vida ao corpo político: a soberania é o seu
exercício, e a legislação, seu movimento.Op. Cit, p. 86. 225
O Espírito das Leis. São Paulo: Martins Fontes, 2005. As idéias de Montesquieu, expressas no Livro XI de O
espírito das leis, sobre as funções de legislar, administrar o Estado e aplicar as leis, já se faziam presentes em
Aristóteles e Locke. O que ele trouxe de novidade foi a execução destas três funções por órgãos distintos, como
forma de evitar abuso do poder, através da desconcentração do poder num único órgão.
97
fundamentais (sociais, econômicos e culturais) e nesse momento o Estado precisava fortalecer-
se para atender essas novas demandas sociais que agora lhe impunha obrigação de fazer e não
apenas abster-se de interferir na liberdade dos indivíduos. Os indivíduos passam a titularizar
direitos fundamentais sociais (saúde, moradia, lazer, previdência, trabalho), exigindo do Estado
prestações positivas. Surge o Estado Social. O Poder Executivo, neste tipo de Estado, passa a
executar novo tipo de norma jurídica: a política pública (criada pelo Poder Legislativo e
controlada pelo Poder Judiciário, com participação ativa do Ministério Público, Defensoria
Pública e do povo na otimização dos seus efeitos).
A “grande depressão” dos EUA (1929), por outro lado, apontará a falência do
liberalismo econômico, em seu lugar surge o intervencionismo estatal. Verifica-se a falência do
modelo Liberal. O Estado passa a ser dualista: busca o desenvolvimento econômico para
garantir o bem-estar social.
O Estado afirmar-se-á enquanto Estado Constitucional Social, buscando a sua
legitimidade na realização dos direitos sociais, econômicos e culturais, na conquista da
igualdade material, superando a mera igualdade formal.
Agora o Estado é chamado a intervir na sociedade para garantir a igualdade, afinal,
os direitos de segunda geração constituem direitos a uma prestação positiva (status positivo de
Jellinek226
).
A primeira constituição do mundo a incorporar os direitos de segunda geração
(econômicos, sociais e culturais) foi a Constituição do México de 1917, seguida da
Constituição da Alemanha de 1919.
Os principais avanços em termos de constitucionalismo social foram incorporados
na nossa Constituição de 1934, como a nova dinâmica aplicada às relações de trabalho, saúde,
educação, família etc.
Na Constituição de 1946, ao disciplinar a ordem econômica, o constituinte
prescreveu a sua organização de acordo com o postulado da justiça social, promovendo a
conciliação da livre iniciativa com os valores sociais do trabalho227
.
226
Teoria dos quatro status de Jellinek (Teoria General del Estado, p. 306 et seq): Negativo (fazer tudo que a lei
não proíbe); Positivo (exigir do Estado aquilo a que está obrigado); Ativo (participar das ações do Estado);
Passivo (acatar as ações do Estado). Tese que também é seguida por José Carlos Vieira de Andrade em relação
aos direitos fundamentais: Direitos de defesa; Diretos a uma prestação; Direitos de participação. 227
Nesse sentido: SILVA NETO, Manoel Jorge. Curso de Direito Constitucional. Cit., p. 56.
98
É chegado o momento do Estado Constitucional Solidarista. Estado
necessariamente envolvido por práticas interconstitucionais e pluralistas, voltadas para a
concretização dos direitos fundamentais, comunitários e humanos. Em nossa concepção, o
legítimo fundamento do Estado encontra-se na solidariedade, tendo a dignidade humana como
valor fonte e finalidade última de sua atuação. Encontra-se também no caminhar constante e
eficaz rumo ao cumprimento dos objetivos fundamentais (políticas públicas) de construção de
uma sociedade livre, justa e solidária, garantia do desenvolvimento nacional, erradicação da
pobreza e da marginalização, redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do
bem de todos sem quaisquer formas de discriminação.
A solidariedade, em teoria política, é às vezes invocada como princípio de
coexistência democrática. É nesta qualidade que ela é retomada nos textos constitucionais (p.
ex. a Constituição espanhola de 1978, art. 2) 228
.
A Constituição Federal Suíça de 1998 consagrou em seu preâmbulo:
“Independência e Paz em solidariedade e abertura para o mundo”.
A crítica da razão constitucional obriga-nos a perguntar pela relevância do
conteúdo da teoria para o mundo real. O desenvolvimento constitucional toma em consideração
o arranjo de novas formas de organização, de novos processos político-sociais e de novas
soluções para os problemas nascidos dentro dos sistemas ou subsistemas sociais. Se quisermos
captar em poucas palavras a dança molecular da teoria da constituição diríamos que ela tem de
lidar com problemas de complexidade dinâmica, adaptabilidade, auto-organização, emergência
e evolução229
.
A ponte evolutiva da teoria da constituição reside no constitucionalismo solidarista.
O fundamento do direito é solidariedade ou a interdependência social, todos os membros da
sociedade, pela regra de direito, são obrigados a nada fazer em contrário à solidariedade social
e fazer tudo o que está em sua capacidade para que assegure a sua realização230
.
A solidariedade pertence ao nível constitucional. É o seu referencial e primeiro
fundamento, experiência presente e nunca acabada, em constante construção.
228
ARNAUD, Jean, Dicionário enciclopédico de teoria e de sociologia do direito. Tradução: Patrice Charles, F.
X. Willlaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 769. 229
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5. ed., Coimbra: Almedina, 2002,
p. 1315-1316. 230
DUGUIT, Léon. Traité de Droit Constitutionnel. Paris: Éditeurs E. de Boccard, 1930, p. 640.
99
A constituição italiana de 1948 refere-se à solidariedade em seu artigo 2º:
A República reconhece e garante os direitos invioláveis do homem, seja
como indivíduo, seja nas formas pelas quais se desenvolve a sua
personalidade e exige o cumprimento de deveres inderrogáveis de
solidariedade política, econômica e social.
O constituinte italiano afirmou o dever de solidariedade como político, econômico
e social. A distinção dimensiona os possíveis reflexos do princípio solidarista nos mais
diversos campos da vida em sociedade.
Como se lê no relatório da Comissão Econômica da Assembleia Constituinte
italiana, sobre a prestação tributária, foi dito que: “o critério lógico preferível é fazer
referência à pertinência do sujeito à entidade impositora, declarando esta pertinência nos seus
três aspectos: político (cidadania), econômico (produção, comércio e/ou consumo de bens) e
social (participação na vida da sociedade nacional)” 231
.
O artigo 3º da Constituição italiana nos ajuda a compreender o papel do Estado na
construção desta festejada solidariedade multidimensional:
É tarefa da República remover os obstáculos de ordem econômica e
social que, limitando de fato, a liberdade e a igualdade dos cidadãos,
impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana e a efetiva
participação de todos os trabalhadores na organização política e
econômica e social do país.
Trata-se de objetivo inafastável de qualquer Estado que se queira Constitucional e
Solidarista. Nesse mesmo sentido caminhou a Constituição Portuguesa.
A atual Constituição portuguesa faz expressa referência ao princípio da
solidariedade em seu artigo 66.º, 2, d, que trata do Ambiente e Qualidade de Vida,
estabelecendo o seguinte:
Para assegurar o direito ao ambiente, no quadro de um
desenvolvimento sustentável, incumbe ao Estado, por meio de
organismos próprios e com o envolvimento e a participação dos
231
VANONI, Ezio. Opere Giuridiche, vol. II. Milão: Giuffrè, 1962, p. 475. No mesmo sentido: GIUFFRÈ, Felice.
La solidarietà nell’Ordinamento Costituzionale. Milão: Giuffrè, 2002, p. 1: “o estudo dos princípios fundamentais
da Constituição permanece sempre atual, pois eles parecem representar, se não a dogmática política do Estado ou
o ceticismo político do cidadão, ao menos a fisionomia sintética da instituição soberana, portanto a organização
essencial das relações entre cidadãos e o Estado” citando G. Dossetti nos trabalhos preparatórios da Assembleia
Constituinte italiana.
100
cidadãos: Promover o aproveitamento racional dos recursos naturais,
salvaguardando a sua capacidade de renovação e a estabilidade
ecológica, com respeito pelo princípio da solidariedade entre gerações.
A afirmação de proteção e defesa do meio ambiente é direito fundamental de
terceira geração, expressão do ideal de fraternidade da revolução francesa, atualmente
concretizado através do princípio da solidariedade.
Foi em artigo específico (art. 71º, 2) sobre a proteção dos cidadãos portadores de
deficiência que a Constituição portuguesa reafirmou o princípio da solidariedade ao dispor:
O Estado obriga-se a realizar uma política nacional de prevenção e de
tratamento, reabilitação e integração dos cidadãos portadores de
deficiência e de apoio às suas famílias, a desenvolver uma pedagogia
que sensibilize a sociedade quanto aos deveres de respeito e
solidariedade para com eles e a assumir o encargo da efectiva
realização dos seus direitos, sem prejuízo dos direitos e deveres dos
pais ou tutores.
A preocupação com a pessoa deficiente deve ser objeto de políticas públicas e
ações afirmativas concretas de realização da suas necessidades sociais. Rampas de acesso aos
transportes coletivos e a todo e qualquer local de acesso público, reserva de vagas em concurso
público e programas de inserção no mercado de trabalho, integração com a sociedade, tudo
isso, quando efetivamente realizado, caracteriza a concretização do princípio da solidariedade e
constitui direito fundamental do cidadão portador de deficiência.
É no capítulo III (dos direitos e deveres culturais), artigo 73º (da educação, cultura
e ciência) que a Lei Fundamental portuguesa avança no tratamento do princípio da
solidariedade reafirmando aquela que pensamos ser a melhor via de concretização do princípio
da solidariedade: a educação. Assim dispôs o texto constitucional:
O Estado promove a democratização da educação e as demais
condições para que a educação, realizada através da escola e de outros
meios formativos, contribua para a igualdade de oportunidades, a
superação das desigualdades económicas, sociais e culturais, o
desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de
compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade, para o
progresso social e para a participação democrática na vida colectiva.
A Constituição Federal de 1988 não se filiou a nenhuma concepção específica de
solidariedade, aproxima-se, no entanto, da tese defendida por Duguit. A solidariedade a ser
101
concretizada no texto constitucional demonstra infinitas possibilidades de aplicação, afinal, a
nossa Constituição é texto vivo, aberto e pluralista.
4.3 A solidariedade na Constituição de 1988
O preâmbulo constitucional brasileiro de 1988232
faz referência à sociedade
fraterna, enquanto o art. 3º, I preceitua como objetivo expresso da República Federativa do
Brasil, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Afirma o pluralismo no art. 1º,
IV como fundamento da República Federal e Democrática.
Sociedade solidária, em nossa concepção, constitui o centro de gravidade de
desenvolvimento e efetividade do direito233
. Unindo a perspectiva sociológica à perspectiva
jurídica podemos defini-la como a instituição determinante das condições de possibilidade da
vida social que serão tão amplas quanto maiores forem os laços de solidariedade que unem
seus indivíduos para o cumprimento do projeto político fundamental estabelecido em nossa
Constituição para o progresso existencial humano.
A sociedade solidária se constrói na percepção de que os vínculos de solidariedade
que a mantém é que determinam o seu grau de desenvolvimento e, consequentemente, o
fortalecimento do seu subsistema social, político, jurídico, econômico, cultural, psicológico,
filosófico e científico.
A sociedade solidária possui seu aspecto mais significativo na sua vinculação com
a sociedade livre e justa.
A vinculação entre liberdade, justiça e solidariedade não é gratuita. Liberdade sem
justiça social é ilusória e opressora. A Justiça que se afirma na ausência da liberdade impõe o
medo e o descrédito. A sociedade que se constrói egoisticamente, refratária às ideias e
232
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado
Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-
estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e
sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução
pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL. 233
Cf.: E. Ehrlich, em prefácio de seu Grundlegung der Soziologie des Rechts, München u. Leipzig: [s.e.], 1913,
p. 3, afirma: “Nos tempos atuais, como em qualquer outra época, o centro de gravidade do desenvolvimento do
direito não se situa nem na legislação, nem na ciência jurídica, nem tampouco na jurisprudência, porém na própria
sociedade”.
102
concepções solidaristas, não é justa, tampouco livre, porque a liberdade pressupõe que o outro
igualmente o seja.
Assim, a busca pelo equilíbrio e reciprocidade entre justiça, liberdade e
solidariedade é essencial para concretização do projeto constitucional de sociedade
estabelecido no art. 3º da CFRB.
Numa sociedade marcada pela exclusão social, denegação de justiça,
desigualdades, pessoas que vivem em situação de subsistência, a solidariedade, muito mais que
o novo marco teórico do pensamento constitucional, constitui a nova possibilidade de
afirmação da dignidade humana e concretização do Estado Constitucional Solidarista. Estado
que deve, necessariamente, estar a serviço dos pobres, vítimas do atual sistema ecológico,
social, cultural, político e econômico, vítimas do Estado que clama por transformações
institucionais. É preciso solidarizar a nossa Democracia, nossa República, nossa Federação.
Já com relação aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, eles refletem o
equilíbrio de dois subsistemas: o liberal e o social. Duguit acreditava firmemente que as
sociedades modernas estivessem evoluindo para este projeto solidarista234
.
No entanto, a concepção individualista de liberdade, que motivou a construção da
doutrina sobre o fundamento do direito e à limitação do Estado, com grandes repercussões na
Revolução de 1789, tem lugar de relevo na história das ideias políticas, com reflexos no atual
sistema político brasileiro. Essa concepção é ainda a base da legislação, ainda que esta seja
cada dia mais convergindo para o solidarismo – veja o princípio da socialidade no novo Código
Civil brasileiro. Permanece, por vezes, o erro de alguns teóricos e dos legisladores em
considerar a liberdade individual como dogma intangível e definitivo, universal.
Estamos em época de transição na qual o fundamento individualista de limitação ao
poder é substituído pouso a pouso pelo fundamento solidarista. Na doutrina individualista se o
Estado pode fazer certas leis é porque o individuo tem certos direitos subjetivos contra ele, que
se conservam na medida em que se fazem leis que limitando o direito de uns, preservam a
liberdade de todos. Exemplo disso é o direito de propriedade. Ao contrario, na concepção
solidarista da liberdade, o individuo não tem nenhum direito, ele tem deveres sociais, e o
Estado não pode fazer nada que o impeça de cumprir estes deveres, notadamente o dever de
234
DUGUIT, Léon. Fundamentos do Direito. p. 11 et seq. Traité de Droit Constitutionnel. Paris: Éditeurs E. de
Boccard, 1930, p. 640.
103
realizar livremente suas atividades. Não há aqui direito subjetivo do individuo contra o
Estado235
.
Esta diferença teórica tem reflexos na prática. Na concepção individualista cada um
tem o direito de agir, trabalhar, atuar em todos os domínios, mas não está obrigado a isso. Esta
concepção não pode prosperar na consciência moderna. O homem que tem capacidade física e
idade para trabalhar não pode restar inativo, sob pena de ser inútil à sociedade236
.
O projeto político fundamental estabelecido no artigo 3º da Constituição Federal é
dever de todas as instituições sociais e do próprio indivíduo imbuído do seu dever de
solidariedade decorrente da divisão social do trabalho.
Se o homem é obrigado a trabalhar ele não está, no entanto, obrigado a trabalhar no
que está além de suas forças. Se um homem abusa do outro na exploração de seu trabalho
compromete os valores sociais. Aqui reside a legitimidade de todas as leis da época moderna
de todos os países que organizam o exercício do trabalho237
.
Convergindo para a concretização do pensamento solidarista, o constituinte
originário estabeleceu no art. 4º, IX da Constituição Federal o princípio da cooperação entre os
povos para o progresso da humanidade. Aqui o Brasil passa a integrar o conjunto dos Estados
Constitucionais Cooperativos.
Mas é preciso ir além. A ideia expressa no supracitado dispositivo constitucional
demanda a existência de novo constitucionalismo, que busca manter o equilíbrio entre três
fenômenos: a interconstitucionalidade, a interculturalidade e a solidariedade traduzida em
cooperação internacional.
Solidariedade, fraternidade e cooperação são termos que o legislador constituinte
utilizou para conferir maior densidade fenomenológica ao pensamento solidarista.
Constituindo a solidariedade o fundamento do próprio direito, podemos perceber
em todos os dispositivos constitucionais a influência do pensamento solidarista. Afinal, a
solidariedade é via de concretização de muitos dispositivos constitucionais, principalmente
aqueles que reafirmam a solidariedade por similitude, atribuindo deveres de proteção a toda
sociedade.
235
DUGUIT, Léon . Traité de Droit Constitutionnel. Cit., p. 642 236
Ibidem, p. 643. 237
Op. Cit. p. 645. Conclui Duguit: se o individuo tem o dever de trabalhar, de se instruir, o Estado deve garantir a
todos um mínimo de instrução gratuita e deve enfrentar o problema do desemprego. Se o individuo tem ainda o
direito a assistência, o Estado deve intervir para lhe proporcionar esta assistência.
104
É com fundamento no pensamento solidarista que Manoel Jorge e Silva Neto
supera a literalidade estabelecida no caput238
do art. 5º da Lei Fundamental brasileira, para,
com base no princípio da proteção isonômica, estender as garantias e direitos nele
estabelecidos, também aos estrangeiros não residentes no país239
.
Questiona o autor: Que espécie de sociedade solidária é esta que desrespeita as
garantias mínimas da pessoa humana pelo mero e simples fato de ser estrangeiro sem
residência no país? Responde com a seguinte colocação: (...) o estrangeiro não residente é, sem
dúvida alguma, destinatário das garantias individuais mencionadas no art. 5º da Constituição,
(...) se tivermos em conta o fato de o constituinte originário, por alguma razão, um dia, ter
inscrito como objetivo fundamental do Brasil a construção de uma sociedade solidária240
.
O primeiro aspecto da solidariedade reside na preocupação com o outro, criando
entre pessoas de contextos socioculturais estranhos entre si (nacional e estrangeiro), espécie de
coesão solidária, decorrente do fato comum que lhe atribui a sua simples condição humana.
Muitos autores atribuem à terceira geração ou dimensão dos direitos fundamentais
o ideal de solidariedade. Outros afirmam a existência da quarta geração em que também se
percebe a influência do pensamento solidarista, todos estão igualmente corretos.
Nesse sentido, manifestou-se o Supremo Tribunal Federal:
“O direito a integridade do meio ambiente — típico direito de terceira
geração — constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva,
refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a
expressão significativa de um poder atribuído, não ao indivíduo
identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente
mais abrangente, a própria coletividade social.
Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) —
que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais —
realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração
(direitos econômicos, sociais e culturais) — que se identifica com as
liberdades positivas, reais ou concretas — acentuam o princípio da
igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes
238
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos
termos seguintes:” 239
SILVA NETO, Manoel Jorge e. O princípio da máxima efetividade e a Interpretação Constitucional. São
Paulo: LTr, 1999, p. 37. 240
Ibidem, p. 39.
105
de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações
sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um
momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e
reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto
valores fundamentais indisponíveis, nota de uma essencial
inexauribilidade.” (MS 22.164, Rel. Min. Celso de Mello, DJ
17/11/95)241
.
O direito fundamental transindividual ao desenvolvimento no Estado Solidarista,
objeto de estudo no nosso próximo item, deve ser compreendido em suas múltiplas
dimensões242
, conferindo-lhes unidade e sistematicidade, sem, no entanto, abandonar a
densidade epistemológica que a correta classificação em direito de terceira geração oferece
para a compreensão da sua historicidade.
O direito ao desenvolvimento é em sua essência um direito de solidariedade.
Pressupõe, no entanto a expansão das liberdades substantivas já referidas por Amartya Sen, a
exemplo do acesso à educação, que se vincula diretamente à ideia de sociabilidade e interação
com o outro através da comunicação. Seu ambiente de consolidação é o espaço democrático,
pluralista e participativo, onde impera o reino das liberdades, e permite ao ser humano
construir o seu progresso existencial, sem o qual estaria comprometida toda a ordem objetiva
de valores estabelecidos na Constituição.
Os laços de solidariedade se fortalecem quando as opiniões se manifestam num
ambiente democrático, pluralista, culturalmente fortalecido, tolerante, livre de discriminações,
num debate livre e racional capaz de fortalecer a própria construção da cidadania participativa.
4.4 O direito ao desenvolvimento econômico no constitucionalismo solidarista
A inserção da Constituição Federal como projeto estrutural fundamental de uma
sociedade solidária, pluralista e sem preconceitos, num Estado Democrático destinado a
241
No mesmo sentido: "Meio ambiente — Direito à preservação de sua integridade (CF, art. 225) — Prerrogativa
qualificada por seu caráter de metaindividualidade — Direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão) que
consagra o postulado da solidariedade. ADI 3.540-MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 03/02/06.No mesmo
entendimento: RE 134.297, 22/09/95. 242
Dentre as possíveis dimensões dos direitos fundamentais podemos destacar: espacial, temporal, eficacial,
procedimental, institucional, discursiva, positiva, negativa, ativa, passiva, axiológica, ontológica, deontológica,
teleológica, filosófica e existencial.
106
assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos dessa mesma sociedade,
demanda a existência de sistema constitucional que propicie a concretização desses valores.
O Direito Constitucional Econômico trata da disciplina jurídica que a Ordem
econômica (mundo do ser) recebeu da Lei Fundamental, passando essa parcela da ordem
jurídica a denominar-se Constituição Econômica.
Para Vital Moreira, a Constituição Econômica é o conjunto de preceitos e
instituições jurídicas que, garantindo os elementos definidores de determinado sistema
econômico, instituem determinada forma de organização e funcionamento da economia e
constituem, por isso mesmo, determinada ordem econômica, assim, para o citado autor, da
Constituição Econômica de economia capitalista orientada, faz parte não só as normas que
asseguram a propriedade e disposição privada dos meios de produção e outros direitos
fundamentais econômicos (liberdade de empresa, liberdade de trabalho), mas também aquelas
que determinam o papel do mercado e do Estado na orientação do processo econômico, aquelas
que definem os princípios fundamentais da organização econômica stricto sensu (associações
econômicas), das finanças do Estado, sob o ponto de vista da sua relevância econômica
(constituição financeira), do estatuto da empresa nos seus aspectos externos e internos
(constituição da empresa), da posição do trabalhador (constituição do trabalho) 243
.
Ensina Josaphat Marinho que a Constituição econômica traduz-se no complexo de
normas básicas reguladoras do fato econômico e das relações principais dele decorrentes 244
.
A proximidade entre os conceitos de ordem econômica (mundo do dever ser) e de
Constituição econômica é obvia. Eros Roberto Grau afirma que, compreendendo a
Constituição Econômica como conjunto de preceitos que institui determinada ordem
econômica (mundo do ser) ou conjunto de princípios e regras essenciais ordenadoras da
economia, é de se esperar que, como tal, opere a consagração de determinado sistema
econômico. Cuida-se de sistema afetado por determinado regime econômico, que se caracteriza
243
MOREIRA, Vital. Economia e Constituição: para o conceito de Constituição econômica. Coimbra: Faculdade
de Direito, 1974, p. 32. 244
MARINHO, Josaphat. Constituição econômica. Separata de Revista de Direito Administrativo. São Paulo, n.
156, pp. 2-15, 1984, p. 2.
107
numa moldura explicativa dos princípios da intervenção do Estado e da sua atuação financeira,
tanto no plano das ideologias inspiradoras como nos das instituições de enquadramento245
.
O intervencionismo estatal teve seu ápice na Constituição de 1967, com as
alterações que lhe foram feitas pela Emenda Constitucional número 1 de 1969. A Constituição
de 1988, porém, estruturou o regime constitucional de intervenção muito mais liberal do que o
anteriormente vigente, adotando o sistema capitalista de economia descentralizada, baseada no
livre mercado.
O modelo de Estado intervencionista do pós-guerra buscará o desenvolvimento
econômico para poder realizar o bem-estar social, realidade presente na Constituição mexicana
de 1917, e na alemã de 1919 (primeiras constituições a incorporarem os direitos fundamentais
sociais, econômicos e culturais). Ocorrem reflexos jurídicos246
em razão dessa atuação estatal
no domínio econômico, podendo-se citar as transformações nas estruturas política e econômica
da sociedade. Temos como exemplo concreto dessa transformação (Estado Liberal – Estado
Intervencionista), os Estados Unidos da América após a “grande depressão” de 1929.
No que se referem às normas constitucionais de conteúdo econômico, seus reflexos
repercutem no direito positivo infraconstitucional. Tais repercussões traduzem-se na
introdução de novos conceitos, na ordem jurídica, operando como princípios gerais, tais como
a noção de boa-fé objetiva, a de causa, também, no sentido objetivo, o dirigismo contratual e a
teoria do abuso de direito 247
.
Já no preâmbulo da Lei Fundamental estabeleceu o poder constituinte originário o
objetivo de instituir o Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos
sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a
justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
fundada na harmonia social.
245
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e crítica). 9ª ed. revista e
atualizada. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 72-73. 246
Nesse sentido: BRITO, Edvaldo. Reflexos Jurídicos da Atuação do Estado no Domínio Econômico. São Paulo:
Saraiva, 1982, p. 18. 247
BRITO, Edvaldo. Aspectos da Tutela da Concorrência no Estado Dualista. In: MARTINS, Ives Gandra e
NALINI, José Renato (organizadores). Dimensões do Direito Contemporâneo: estudos em homenagem a Geraldo
de Camargo Vidigal. São Paulo: Editora IOB, 2001, p.251.
108
Prossegue o art. 1° estabelecendo como fundamentos da República Federativa do
Brasil: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores
sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político.
O art. 3° preceitua como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III
- erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV -
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação. Todos, objetivos conformadores do regime jurídico do bem-
estar social.
Todos os direitos sociais como a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer,
a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, previstos no art. 6°, bem como os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais,
além de outros que visem à melhoria de sua condição social, previstos no art. 7° compõem o
supracitado regime.
O art. 170 funda a ordem econômica na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça
social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III -
função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa
do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental
dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela
Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003) VII - redução das desigualdades regionais e
sociais; VIII - busca do pleno emprego.
Importante ressaltar as interconexões que em 1961, Orlando Gomes já fazia entre
direito e desenvolvimento, com profunda análise sobre o regime jurídico civilista e o processo
de desenvolvimento. Destacou a expansão do consumo e os novos modelos de organização da
economia em face da multiplicação das empresas de grandes dimensões, com o Estado
abandonando sua atitude abstencionista e passando a intervir na vida econômica, fazendo-se
empresário, dirigindo a economia, controlando ou fiscalizando certos setores da atividade
econômica e estimulando a iniciativa privada. Percebe-se em todas as classes a aspiração de
109
melhoria do “standard de vida”248
. Expande-se o interesse da sociedade no processo de
desenvolvimento.
O art. 170, VI implica no desenvolvimento de ordem econômica sustentável,
conforme preceitua o art. 225, artigo referente ao bem-estar ambiental.
O art. 174 prescreve que: como agente normativo e regulador da atividade
econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e
planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. O
§ 1º do citado art. estabelece que: a lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do
desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos
nacionais e regionais de desenvolvimento. O § 3º determina que o Estado favorecerá a
organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio
ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros.
No que se refere à Política Urbana o art. 182 preceitua que a política de
desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais
fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da
cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.
O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento
equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o
compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que
disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram,
conforme o art. 192.
Por fim, estando caracterizadas muitas das normas constitucionais de conteúdo
econômico que compõem o regime jurídico do bem-estar social e do desenvolvimento
econômico, apesar de terem suas particularidades, eles mais se interpenetram do que se
separam. Tal fato nos leva a concluir pela existência de regime único, havendo uma vinculação
necessária entre desenvolvimento econômico e bem-estar social.
A legitimidade da ordem econômica e, por consequência, do superávit primário
mínimo (receitas menos despesas, sem considerar o pagamento de juros) com vistas à
realização do bem-estar social e do desenvolvimento econômico, possui orientação axiológica.
248
GOMES, Orlando. Direito e Desenvolvimento. Salvador: Publicações da Universidade da Bahia, Serie II – 24,
1961, p. 42-43.
110
A manutenção do superávit não poderá afetar a adequada e necessária prestação dos serviços
públicos essenciais e o direito fundamental transindividual ao desenvolvimento.
Essa orientação axiológica nada mais é do que os valores fundamentais
estabelecidos na Constituição conformadores das ordens econômica e social, e que vincula
tanto a intervenção estatal na ordem econômica quanto o setor privado na condução dos seus
negócios jurídicos e no exercício do direito de propriedade com vistas à concretização do
Estado Constitucional Solidarista promotor do desenvolvimento.
Os investimentos devem superar as propostas “fraternalistas” a exemplo de
programas como o Bolsa Família249
, fazendo com que o povo brasileiro alcance sua dignidade
e realize a sua função solidária, contribuindo diretamente para o desenvolvimento do país
através da divisão social do trabalho, penso que é chegado o momento de afirmarmos, como o
fez a Constituição Portuguesa, o direito fundamental ao trabalho. Assim, concretizando o
direito fundamental ao trabalho, alcançaremos grande parte das promessas constitucionais
ainda não cumpridas, conferindo maior legitimidade às políticas públicas estatais.
Ainda sobre a legitimidade, não podemos ignorar a lição de Manoel Jorge e Silva
Neto ao trata do planejamento em sua obra Direito Constitucional Econômico: “será
imprescindível considerar o planejamento econômico em sua bimembridade constituinte: é
resultado da opção política do governo em face da conjuntura econômica, mas não poderá ser
aceito como mito pela sociedade se se distanciar excessivamente dos desígnios da comunidade
em tema de condução da economia” e diz que: “para ser considerado um mito, o planejamento
econômico terá de obter um nível de consensualidade bastante elevado em torno de suas
diretrizes250
”.
Portanto, a legitimidade da ordem econômica também se fundamenta no consenso
que deve existir em torno dos seus valores fundamentais.
Canotilho afirma que a constituição confere legitimidade à ordem política e dá
legitimação aos respectivos titulares do poder político. Precisamente por isso se diz que a
constituição se assume como estatuto jurídico do político (Castanheira Neves) num duplo
sentido – o da legitimidade e da legitimação. O esforço de constituir a ordem política segundo
249
As políticas públicas que garantem o mínimo existencial são adequadas em situações emergenciais, porém,
devem ser acompanhadas por políticas públicas de inclusão social e desenvolvimento capazes de evoluir
processualmente para o máximo existencial, favorecendo a máxima efetividade dos direitos fundamentais. Sobre
tal gradação, em sentido similar, ver: ALEXY, Robert. Teoria de los derecho fundamentales. Cit., p. 468. 250
Direito constitucional econômico. São Paulo: LTr, 2001, pp. 58 e 59. Também reconhecendo o planejamento
como mito: BURDEAU, Georges. Trate de Science Politique.2. ed. Paris: LGDJ, Tomo IV, 1969.
111
princípios justos consagrados na constituição confere a esta ordem indispensável bondade
material (legitimidade) e ao vincular juridicamente os titulares do poder, justifica o poder de
“mando”, de “governo”, de “autoridade” destes titulares (legitimação)251
.
Quando a lei constitucional logra obter validade como ordem justa e aceitação, por
parte da coletividade, da sua “bondade intrínseca”, diz-se que a constituição tem
legitimidade252
.
A legitimidade, porém, não reside simplesmente no consenso, tampouco na sua
bondade intrínseca, ela também reside na sua efetividade e na realização do que Renato Alessi
denomina interesse público primário253
, compreendido, em nosso entendimento, pela soma dos
interesses individuais vinculados ao ideal solidarista. A ideia de existir interesse público
secundário (puramente estatal desvinculado do interesse primário da sociedade) é
contraditória e perverte a atividade pública, provocando aumento considerável da litigiosidade
ente indivíduo/coletividade e o Estado. A defesa do interesse “público” secundário constitui
grave ofensa ao sistema integral de proteção do direito ao desenvolvimento.
A livre iniciativa encontra sua disciplina jurídico-constitucional de forma ampla
nos espaços normativos referentes à liberdade, especificamente nos arts. 5°, II, VI, IX, XIII,
XIV, XV, XVI, XVII, XX e 206, II da CRFB. Portanto, ela não se reduz, como aponta Eros
Roberto Grau, a liberdade econômica ou liberdade de iniciativa econômica254
.
A liberdade de iniciativa econômica é liberdade pública precisamente ao expressar
não sujeição a qualquer restrição estatal senão em virtude de lei, esquece a doutrina de
completar o entendimento: senão em virtude da lei conforme a Constituição, mais precisamente
em conformidade com os valores que compõem o arbítrio conformador do Estado
Constitucional Solidarista.
Nesse sentido, cite-se o acórdão lavrado na Ação Direta de Inconstitucionalidade
n° 319-4 – Distrito Federal:
251
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5. ed., Coimbra: Almedina, 2002,
p. 1421. 252
CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. Cit., p. 1421. 253
O jurista italiano Renato Alessi em conhecida tese expôs a distinção entre interesse público primário (o
interesse geral da coletividade) e interesse público secundário (o interesse do Estado). Sistema istituzionale del
diritto amministrativo italiano. 3. ed. Milano: Dott. A. Giuffrè. Editore, 1960, p.197. 254
Op. Cit., p. 186.
112
Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 8.039, de 30 de maio de
1990, que dispõe sobre critérios de reajuste das mensalidades
escolares e da outras providencias. - Em face da atual Constituição,
para conciliar o fundamento da livre iniciativa e do princípio da livre
concorrência com os da defesa do consumidor e da redução das
desigualdades sociais, em conformidade com os ditames da justiça
social, pode o Estado, por via legislativa, regular a política de preços
de bens e de serviços, abusivo que é o poder econômico que visa ao
aumento arbitrário dos lucros. - Não e, pois, inconstitucional a Lei
8.039, de 30 de maio de 1990, pelo só fato de ela dispor sobre critérios
de reajuste das mensalidades das escolas particulares.
Considera a presente decisão, a livre iniciativa como valor constitucionalmente
conformado pelos demais valores fundamentais que integram a ordem econômica, como a
justiça social e a redução das desigualdades sociais, percorrendo o caminho que lhe traça o
regime jurídico constitucional de bem-estar social e desenvolvimento econômico,
aproximando-o do pensamento solidarista.
Não foi outro o entendimento adotado, que não o de conciliar a ordem econômica
com a ordem social, buscando a vinculação recíproca entre as mesmas, chegando a tratar
especificamente dos valores sociais da livre iniciativa.
Aqui se percebe claramente o quanto se torna importante a identificação do regime
jurídico constitucional de bem-estar social e desenvolvimento econômico, pois são os valores
fundamentais que compõem esse regime que conformarão não só a atividade estatal, mas
também e principalmente a atividade econômica desenvolvida pelos particulares (eficácia
direita e imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas).
O planejamento qualifica a intervenção do Estado sobre e no domínio econômico,
na medida em que esta, quando consequente ao prévio exercício dele, resulta mais racional255
.
A planificação se caracteriza por processo de intervenção sistemática do Estado no
domínio econômico, no qual não existe a figura da liberdade de mercado. A planificação
econômica pressupõe a inexistência de mercado, a exemplo da ex-URSS.
255
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. Cit., p. 161.
113
Já o planejamento é modalidade de intervenção indireta do Estado no domínio
econômico que se opera por meio da indução dos agentes privados à obediência à normativa
econômica256
.
O que de mais importante a Constituição estabelece para o planejamento
econômico é o seguinte: como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado
exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este
determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. A lei estabelecerá as
diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual
incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento (art. 174,
caput e § 1°).
Essa “indicatividade” não se traduz em mero conselho, posto que é norma com
status constitucional, devendo, portanto, ser interpretado como norma constitucional de
conteúdo econômico e inserida dentro do regime jurídico constitucional do bem-estar social e
do desenvolvimento econômico.
Grande passo nesse sentido foi dado por Miguel Reale, ao afirmar que o princípio
da indicatividade estatuído no art. 174 da CFRB não se trata de indicação irrelevante ou sem
consequências. Ela traduz rumo preferencial de ação que não pode deixar de ser levado em
conta pelos empresários ao assumirem os riscos de uma operação à margem do plano oficial,
não podendo contar, por exemplo, com os incentivos criados pelo Estado para fins de
desenvolvimento257
.
O planejamento é instrumento de racionalização que o Estado dispõe pra
intervenção na ordem econômica, axiologicamente orientado pelos ditames fundamentais
conducentes à realização do desenvolvimento e do bem-estar social, que nesse aspecto indica e
determina de forma direta as atividades do setor privado.
Existe relação de eficácia horizontal entre o setor privado e os direitos
fundamentais, o que nos leva a crer que o planejamento econômico só é indicativo para o setor
privado quanto aos meios e às técnicas dispostos pelo Estado para consecução de determinados
objetivos. Quando esses objetivos traduzem-se em direitos fundamentais, eles também
vinculam os particulares em suas respectivas atividades.
256
SILVA NETO, Manoel Jorge e. (comunicação pessoal em exame de qualificação). No mesmo sentido ver seu:
Direito Constitucional Econômico. São Paulo: LTr, 2001, p. 46 et seq. 257
REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o Conflito de Ideologias. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2005,
p. 45.
114
Para que tal mudança ocorra, é importante que o setor público tome consciência
desta possibilidade e estabeleça planejamento específico para o setor privado ligado à
efetividade dos direitos fundamentais, trabalhando com normas de direito premial258
(incentivos fiscais, subvenções, parcerias público-privadas etc.), buscando conciliar o direito
fundamental de propriedade como sua função social e solidarista.
É com fundamento no pensamento solidarista, e nos dispositivos constitucionais
relativos à solidariedade e à justiça social, observados em diversas passagens da Lei
Fundamental, mas principalmente naquilo que se identifica como regime
interconstitucional do bem-estar social e do desenvolvimento econômico, que devemos
promover a releitura do princípio da indicatividade dos planos.
A solidariedade transnacional é outro aspecto importante já destacado quando
tratamos do sistema internacional e comunitário integral de proteção ao desenvolvimento259
.
Objetivando a concretização desse regime é que o presente tópico visa oferecer a
sua contribuição para a realização da Constituição e concretização do pensamento solidarista.
Afinal, como Duguit já afirmara, todo individuo tem a obrigação de cumprir na
sociedade certa função em razão direta do lugar que ocupa. O possuidor da riqueza pode
realizar trabalho, que em função dessa riqueza, só ele pode realizar. Só ele pode aumentar a
riqueza geral fazendo valer o capital que possui. Está socialmente obrigado a realizar essa
tarefa. A propriedade não é o direito subjetivo do proprietário; é a função social do possuidor
da riqueza. O Direito positivo não protege o pretendido direito subjetivo do proprietário; mas
garante a liberdade do possuidor da riqueza para cumprir a função social que lhe incumbe pelo
fato mesmo dessa posse, podendo-se dizer que a propriedade se socializa260
.
É o Estado intervencionista que busca o desenvolvimento econômico para poder
realizar o bem-estar social. Ocorrem reflexos jurídicos em razão dessa atuação estatal no
domínio econômico, podendo-se citar as transformações nas estruturas política e econômica da
sociedade, por duas tendências destacadas pelo autor: a primeira, a de o Estado apossar-se do
258
Para maior compreensão do direito premial ver: BOBBIO, Norberto. Da Estrutura à Função – Novos Estudos
de Teoria do Direito. Tradução: Daniela Beccaccia Versiani. Barueri: Manole, 2007, p. 14 et seq. 259
Nesse sentido: Rüdiger Wolfrum. Solidarity amongst States. Cit. Também Philipp Dann. Solidarity and the law
of institutional development cooperation. Cit. 260
DUGUIT. Léon. Las Transformaciones del Derecho (Público y Privado). Buenos Aires: Editorial Heliasta,
1975, p. 240.
115
indivíduo e tomando-lhe a posição de protagonista indiscutível; a segunda, a de dirigir a
sociedade passando a modelá-la como um tutor261
.
O crescimento econômico liga-se aos aspectos quantitativos da economia, de
incremento da produção e exportação, entrada de ativos financeiros, aumento do superávit etc.,
sem uma correspondente vinculação aos aspectos qualitativos tais quais os aumentos
sucessivos dos indicadores de desenvolvimento humano, a redução das desigualdades sociais,
mobilidade etc., essenciais à existência do desenvolvimento econômico. Não existe
desenvolvimento econômico com retrocesso ou estagnação do bem-estar social, pode até
existir desenvolvimento econômico sem crescimento econômico, e vice-versa. Assim,
crescimento não é sinônimo de desenvolvimento.
O crescimento econômico não é um fim em si, ele deve estar vinculado aos
objetivos fundamentais e ao regime jurídico-constitucional do bem-estar social e do
desenvolvimento econômico para traduzir-se na concepção de direito fundamental
transindividual ao desenvolvimento aqui apresentada.
4.5 Desenvolvimento como solidariedade
Sociedades de grande escala, especializadas numa complexa divisão do trabalho
social e criadas numa cultura solidarista, estabelecem a comunidade na qual os indivíduos
podem descobrir a textura da vida moral, compreender a verdadeira solidariedade ou
transcender à anomia do individualismo sem essência, em que se faz presente a seguinte
máxima kantiana: “Age de forma que trates a humanidade, tanto na tua pessoa, como de
qualquer outro, sempre também como fim e nunca unicamente como meio” 262
.
O desenvolvimento projeta-se na condição de direito fundamental transindividual
de solidariedade. As perspectivas e novas propostas para o desenvolvimento encontra-se na
nova dinâmica de concretizar os direitos fundamentais pela via solidarista, de reafirmar sob
novas bases o pacto federativo de índole cooperativa, aproximar o direito da ideia de justiça,
oferecendo novos mecanismos de redução das desigualdades sociais e regionais em ambiente
plural de possibilidades oferecidas pela teoria integral de proteção.
261
Cfr. BRITO, Edvaldo. Reflexos Jurídicos da Atuação do Estado no Domínio Econômico. Cit. p. 18. 262
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. 2. ed. Lisboa: Edições 70, 2007, p. 59. Trata-
se do 2º imperativo categórico.
116
Favorecendo a realização do objetivo fundamental de construir uma sociedade
livre, justa e solidária, na realidade pluralista, caminhamos em direção ao novo
constitucionalismo integral, aproximando as comunidades vulneráveis da afirmação da sua
cidadania solidária e participativa na construção do seu próprio progresso existencial e
cumprindo deveres de solidariedade ao participar como sujeito ativo do desenvolvimento.
Duguit já afirmara: “todo individuo tem a obrigação de cumprir na sociedade certa
função em razão direta do lugar que ocupa. O possuidor da riqueza pode realizar trabalho, que
em função dessa riqueza, só ele pode realizar. Só ele pode aumentar a riqueza geral fazendo
valer o capital que possui. Está socialmente obrigado a realizar essa tarefa”. A propriedade não
é o direito subjetivo do proprietário; é a função social do possuidor da riqueza. O Direito
positivo não protege o pretendido direito subjetivo do proprietário; mas garante a liberdade do
possuidor da riqueza para cumprir a função social que lhe incumbe pelo fato mesmo dessa
posse, podendo-se dizer que a propriedade se socializa263
, ou, no que é próprio da sua visão: se
solidariza.
O desenvolvimento como solidariedade de dimensão transindividual ultrapassa o
âmbito da juridificação constitucional e das leis internas de cada nação264
. Por mais que o
pluralismo de Peter Häberle, e a teoria estruturante de Friedrich Müller remetam a aspectos
relevantes da realidade social como parte integrante da norma de decisão, é preciso ir além. A
solidariedade é antes de tudo fenômeno social integrativo.
É necessário que os impulsos do constitucionalismo societal (societal
constitutionalism) sejam expandidos de forma interconstitucional para os subsistemas sociais
globais (economia, ciência, cultura, política, religião, mídia). Questionará Teubner: os atuais
subsistemas globais estão desenvolvendo uma dinâmica de crescimento descontrolado que
deve ser submetida a restrições constitucionais?265
Entendemos que sim, porém essa dinâmica
deve ocorrer no espaço diatópico interconstitucional, em que a vinculação aos valores
263
DUGUIT, León. Las Transformaciones del Derecho (Público y Privado). Buenos Aires: Editorial Heliasta,
1975, p. 240. 264
Em sentido diverso da nossa tese, apresentando profunda abordagem sob o prisma da Constituição Federal e
das leis internas: RISTER, Carla Abrantkoski. Direito ao desenvolvimento: antecedentes, significados e
consequências. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. A autora justifica sua abordagem sob o prisma interno por
entender que existe falta de implementação e ausência de garantias dos direitos humanos, que sofre críticas de
legitimidade (necessidade de haver legislação que os garanta), de coerência (ausência de mecanismos que os dote
de exigibilidade) e cultural (por não traduzirem valores universais (Op. Cit. p. 522). 265
TEUBNER, Gunther.Constitutional Fragmente: societal constitutionalism and Globalization. Cit., p. 10.
117
constitucionais transnacionais sejam horizontalizados (eficácia interprivada direta266
), com
participação autônoma dos subsistemas sociais com foco no seu desenvolvimento em regime
de solidariedade.
Nesse ponto parece concordar Teubner ao defender que a agenda para o
constitucionalismo transnacional muda no seguinte contexto: não é a criação, mas sim a
transformação fundamental de uma pré-existente ordem constitucional267
(em nossa concepção,
interconstitucional). Com os parâmetros normativos atualmente existentes já é possível
expandir o paradigma integral, solidário e pluralista da proteção interconstitucional ao
desenvolvimento.
O contexto não hierárquico se expande da interconstitucionalidade (enquanto
expressão da esfera jurídica) para os subsistemas sociais solidariamente participantes do
desenvolvimento (enquanto expressão da esfera social) e destinatário das normas
internacionais, constitucionais e comunitárias, sem protagonismos.
As decisões que resguardam o interesse público devem ser tomadas não apenas por
governos, mas por diversos subsistemas sociais, em particular, o econômico268
. A
fragmentação faz com que cada área de ação desenvolva sua própria racionalidade, em intensa
competição por posições de poder e influência social. Daí a necessidade de
interconstitucionalizar as relações entre atores sociais organizados de forma a promover sua
autonomia e assegurar sua compatibilidade mútua numa contemporânea divisão social do
trabalho para a sociedade complexa269
.
A tecelagem dos fragmentos é também possibilidade oferecida por Marcelo Neves
em sua teoria da transconstitucionalidade, ao promover diálogos entre ordens jurídicas em
questões constitucionais através de pontes de transição270
.
266
Grande impulso interconstitucional para implementação da eficácia interprivada dos valores
interconstitucionais foi produzido pela ONU: UN Human Rights Committe, General Comment N. 31, Nature of
the General Obligation Imposed on States Parties to the Covenant, 26 de maio de 2004, UN Doc. CCPR/C/21/
Rev. 1/Add. 13, par. 6-8 (The Comment emphasizes that States Parties are not only required to refrain from
violating the rights of individuals, but must also prevent the violation of individual rights by private persons).
Sobre o tema: CLAPHAM, Andrew. Human Rights in the Private Sphere. Oxford: Oxford University Press, 1996
e também seu Human Rights Obligations of Non-State Actors. Oxford: Oxford University Press, 2006. 267
TEUBNER, Cit. p. 11. 268
Ibidem, p. 33. 269
No mesmo sentido, porém destacando o aspecto apenas constitucional: TEUBNER, Cit. p. 40. SCULLI,
Theory of Societal Constitutionalism. Cit. p.208. Não é pro acaso que Teubner conclui seu Constitutional
Fragments, cit. p. 173, afirmando, a partir de Emile Durkheim (1933), que a moderna divisão do trabalho exige
um constitucionalismo societal de solidariedade orgânica. 270
NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. Cit. p. 290-291.
118
Não se pode perder de vista que a integração interconstitucional através da unidade
ética de valores convergentes (direitos humanos, fundamentais e comunitários) em face da
confluência social heterogênea de interesses (convergentes, divergentes e mesmo insurgentes)
não pressupõe o consenso global mundial ou mesmo comunitário sobre determinado modelo de
progresso ou desenvolvimento, ele pressupõe um projeto solidarista de defesa de setores
sociais excluídos do progresso existencial como sujeitos ativos do seu próprio
desenvolvimento.
O que se exige na sociedade mundial do presente, como bem observou Marcelo
Neves, é a promoção da inclusão, reduzindo o crescente setor de exclusão, trata-se da
integração social no sentido da teoria dos sistemas (Luhmann) – chance da consideração social
de pessoas, de incluí-las no acesso aos benefícios dos sistemas funcionais271
.
Mas não se trata de incluí-los de maneira a torná-los hiperdependentes dos sistemas
(necessitados, sem liberdade), mas, de intensificar os laços de solidariedade orgânica ou por
diferenciação, para que cada indivíduo possua a responsabilidade e o dever de projetar seu
progresso na dimensão transindividual de cooperação para o progresso coletivo.
De outro lado, a solidariedade mecânica ou por similitude (que fundamenta a
existência de um direito interconstitucional sancionador – decorrente dos deveres integrais de
proteção) coibirá as práticas dos modelos sistêmicos patológicos, inicialmente vinculando-os
diretamente ao projeto interconstitucional, solidário, pluralista, diatópico e integral de proteção
dos direitos humanos, fundamentais e comunitários, posteriormente intervindo na sua atuação
para direcioná-lo ao modelo de desenvolvimento sustentável inclusivo (fundamentando a
existência de um direito interconstitucional premial).
271
Ibidem. p. 292. Nesse sentido Niklas Luhmann alerta para o perigo da “avalanche de exclusão” em face da
desmontagem do Estado Social, mesmo nas regiões mais desenvolvidas do globo (Die Politik der Gesellschaft.
Frankfurt: Suhrkamp, 2000, p. 427 et seq.
119
5 PLURALISMO E DESENVOLVIMENTO
5.1 O pluralismo na construção do desenvolvimento
Manoel Jorge e Silva Neto afirma que o pensamento possibilista, enquanto forma
de compreender a constituição, parte da ideia de que a norma não é algo perfeito e acabado,
senão simplesmente “pura possibilidade jurídica”. Consubstancia-se tal ideia na tríade:
“realidade-possibilidades-necessidades” e apoia-se no racionalismo crítico kantiano,
desenvolvido por Peter Häberle em Pluralismo y Constitución272
.
O pensamento possibilista oferece ao sistema interconstitucional de proteção
integral ao desenvolvimento uma análise jurídico-funcional do alcance de metas que refletem
diretamente na situação concreta dos indivíduos e seus laços de solidariedade para o
fortalecimento da dimensão transindividual do progresso, já que as normas jurídicas,
especialmente as de natureza principiológica, somente podem ser conhecidas mediante sua
confrontação com a própria realidade.
Este modo de reflexão desenvolve enormes potencialidades produtivas. O
pensamento possibilista ou pluralista de alternativas significa pensar em e desde alternativas,
ampliando o horizonte visual para dar espaço a outras novas realidades, já que considera que
estas corrigirão a trajetória da anterior, especialmente no que diz respeito as que se englobam
sob a dimensão do temporal a nível normativo, adaptando-as e adequando-as.
Consequentemente, quanto mais aberta, plural e política for determinada ordem constitucional
– junto com sua correspondente parte dogmática – tanto mais relevante será este tipo de
reflexão, quanto mais a Ciência jurídica vai elaborando e perfilando com mais nitidez seus
próprios conceitos, entre eles, o de alteridade compreensiva (superando a ideia tolerância que
hierarquiza inadequadamente as concepções éticas do tolerante e do tolerado), pluralismo,
direitos das minorias, representatividade de interesses não organizados ou institucionalizados e
finalmente, os de direitos sociais e interculturais fundamentais ou básicos273
.
272
SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de Direito Constitucional. Cit., p. 98. 273
Nesse sentido: HÄBERLE, Peter. Pluralismo y Constitución. Cit., p. 62-64.
120
O raciocínio possibilista oferece ao sistema interconstitucional do desenvolvimento
a análise jurídico-funcional do alcance de metas que refletem diretamente na situação concreta
do progresso existencial coletivo, já que as normas jurídicas somente podem ser conhecidas
mediante sua confrontação com a própria realidade.
O pluralismo de alternativas pressupõe a sociedade aberta e a concepção de normas
interconstitucionais como processo público. A natureza normativa programática e
principiológica dos diversos mandamentos interconstitucionais, próprios do marco dirigente e
processual de garantia integral do desenvolvimento, envolve planejamento técnico mais
próximo da realidade de instituições abertas e processos democráticos participativos.
A impossibilidade concreta de alcançar objetivos normativamente estabelecidos
remete a outras possibilidades de reforço da garantia que se busca proteger ou maximar os
efeitos, nesse caso, as políticas públicas de desenvolvimento. Daí a multiplicidade de caminhos
oferecidos, em nível doutrinário, jurisprudencial e legislativo, para que o direito transindividual
ao desenvolvimento torne-se funcionalmente efetivo, factível. Como exemplos de
possibilidades e alternativas surgem diversas técnicas, critérios e princípios integrativos do
âmbito de aplicação do desenvolvimento: dever de progresso, vedação contextualizada do
retrocesso e proporcionalidade, imunidade do mínimo vital, isonomia, justiça fiscal,
solidariedade tributária, dever de concorrer para os gastos públicos, eficácia horizontal ou
interprivada direta etc.
5.2 Cibercidadania e (re)construção dos espaços públicos por demandas
sociais
Nosso objetivo é propor a analise crítica das possibilidades de construção de novos
espaços públicos para consolidação da democracia participativa e direta. Partiremos dos
estudos sobre cibercidadania de Pérez Luño274
e da análise sociológica dos movimentos sociais
na era da internet de Manuel Castells275
, para produzir conclusões decorrentes de uma teoria
integral, solidária e plural de proteção ao direito fundamental transindividual ao
desenvolvimento.
274
LUÑO, Antonio-Enrique Pérez. ?Cierciudadani@ o [email protected]? Barcelona: Editorial Gedisa, 2012. 275
CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de
Janeeiro: Zahar, 2013.
121
Por que hoje um conceito tão antigo, como o de cidadania, atrai novamente a
atenção dos constitucionalistas e dos filósofos práticos? Esse conceito tem sido central no
âmbito da filosofia moral e política. Cidadão é aquele que pertence a uma comunidade política
moderna, cujas instituições pretendem ser justas e precisamente adquirem sua legitimidade
dessa pretensão de justiça276
. Exercer cidadania é participar ativamente desse processo de
construção.
O sonho grego da cidadania cosmopolita é concretizado no novo modelo de
cidadania adotado na Europa – a cidadania multicultural, onde se busca conciliar a diversidade
de culturas com a necessidade de uma ética universal.
A partir do mundo filosófico, foram empreendidos três caminhos para construir
uma ética universal com força normativa ou, ao menos, para refletir sobre a possibilidade de
construí-la277
:
1) Tomar como ponto de partida uma determinada cultura e tentar estender as suas
hipóteses éticas às restantes (Liberalismo Político278
).
2) Detectar nas diferentes culturas os valores e princípios éticos que já
compartilham e construir, a partir deles, uma ética global (Crítica Social Imanente279
).
3) Tomar como ponto de partida um fato e descobrir, mediante reflexão
transcendental, um núcleo racional normativo que não possa negar-se sem entrar em
contradição (Pragmática transcendental280
).
Partindo para construção do modelo de ética cívica na sociedade pluralista, Adela
Cortina, se aproxima mais da ideia de cidadania solidária. O direito na perspectiva pós-
positivista deve pretender estar justificado dentro de um referencial moral e ético.
As características dessa ética cívica são, resumidamente, as seguintes281
:
276
CORTINA, Adela. Ética e Cidade Cosmopolita. Trad. Cláudio Molz. In: Direito e Legitimidade. MERLE,
Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz. São Paulo: Landy, 2003, p. 275. 277
Ibidem, p.278. A classificação que segue é proposta por Adela Cortina. 278
John Rawls, em The Law of Peoples, tenta aplicar no âmbito internacional o procedimento de contornar as
diferenças entre doutrinas que abrangem o bem, construindo uma concepção moral de justiça, extensiva a países
não liberais. RAWLS, John. The Law of Peoples. Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1999, p. 279. 279
WALZER, Michael. Thick and Thin: moral argument at home abroad. Notre Dame: Notre Dame Press, 1994.,
identifica as moralidades densas (thick morality), encarnadas em cada sociedade particular, e a moralidade tênue
(thin morality), extensível além das fronteiras, afirma ser possível, através dessa última, chegar a um conjunto de
mandamentos negativos, que poderiam ser estendidos a todas as sociedades. (Op. Cit., p. 280) 280
Nesse ponto se reconhece o caráter dialógico da razão, através da argumentação se discute as possibilidades da
moralidade tênue, fundamentando a obrigatoriedade de uma ética universal (CORTINA, Adela. Cit., p. 281). 281
CORTINA, Adela. Op. Cit., p. 284 et seq. Ver também, da mesma autora: Ética mínima. Madrid: Tecnos,
1986; Ética aplicada y democracia radical. Madrid: Tecnos, 1993.
122
1) É realidade social e não construção filosófica; faz parte do mundo vital de uma
sociedade pluralista. Conjunto de valores e princípios que os grupos dessa sociedade, que
propõe modelos de uma vida boa, já compartilham;
2) É o tipo de ética que vincula as pessoas como cidadãos e não como súditos nem
vassalos;
3) É dinâmica. Constitui a cristalização dos valores compartilhados por diversas
propostas de vida boa;
4) A ética cívica é uma ética pública (de se fazer conhecida ao público através da
opinião pública, com razões compreensíveis e admissíveis);
5) É uma ética dos cidadãos, portanto própria dos membros da sociedade civil, não
uma ética estatal;
6) É uma ética laica, que não aposta em nenhuma determinada confissão religiosa,
mas também não se propõe a eliminá-las.
A democracia plural é produto do compromisso ético e humanístico com a
efetividade dos direitos fundamentais pela via solidarista, que dinamiza o sonho kantiano de
comunidade ética cosmopolita na exata medida que a cidadania tende a ser interconstitucional
e ciberparticipativa, integrada em redes tecnológicas expansivas das possibilidades de inclusão
e empoderamento sociais.
Vencem o sentimento constitucional de pertencimento ao processo público
desenvolvimentista e a empatia solidária de contribuir para o progresso existencial humano.
Perdem as decisões autocráticas e de retrocesso social das oportunidades equitativas, em
decorrência das redes de indignação e esperança por direitos de participação no processo
democrático de desenvolvimento que se formarão no constitucionalismo plural.
Existindo maior integração entre os Estados Constitucionais Cooperativos, onde os
princípios conformadores da efetividade dos direitos humanos constituem a sua base ética, o
direito internacional público deixa de ser o conjunto de normas e princípios que regulam as
relações entre as nações para adquirir o contorno de um “direito internacional dos direitos
humanos”, garantindo status específico aos cidadãos dos diversos países282
.
A democracia na perspectiva solidarista de proteção integral se materializa, em
termos gerais, quando o conteúdo dos atos dos representantes faz-se justo em face dos
282
Nesse sentido: TORRES, Ricardo Lobo. A Cidadania Multidimensional na Era dos Direitos. In: Teoria dos
Direitos Fundamentais. Ricardo Lobo Torres (organizador). 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 310.
123
cidadãos283
possibilitando o pleno desenvolvimento da condição humana em termos sociais,
econômicos e culturais, respeitando as liberdades fundamentais e fortalecendo os laços de
solidariedade para o progresso transparente.
A existência de mecanismos deslegitimadores (impeachment, recall,
responsabilidade política, destituição, moção de censura284
), como instrumento necessário ao
exercício da cibercidadania em favor da efetividade dos direitos fundamentais, está diretamente
relacionada ao fortalecimento da democracia.
Nas palavras de Bobbio: “Enquanto as liberdades civis são uma condição
necessária para o exercício da liberdade política, a liberdade política – ou seja o controle
popular do poder político – é uma condição necessária para, primeiro, obter e depois, conservar
as liberdades civis”285
.
A possibilidade de exercício e o efetivo exercício dos direitos fundamentais é uma
condição necessária da democracia: isto significa que os direitos humanos não substituem a
democracia; mas uma democracia digna desse nome se baseia nos direitos humanos286
.
A cidadania solidária também se concretiza na forma de participação política
reivindicatória das condições básicas de vida digna para todos, garantindo o acesso aos bens
indispensáveis ao mínimo existencial. Efetiva-se na satisfação das expectativas dos menos
favorecidos, proporcionando-lhes justa igualdade de oportunidades, pois, onde a exclusão
social se faz presente, a liberdade e a justiça não se manifestam, senão para poucos.
O mundo atual atravessa revolução informacional, com impactos que vão da
substituição do capitalismo industrial pelo capitalismo informacional em redes globais à
transformação dos laços de amizade e afetividade.
283
Nesse mesmo sentido: CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Cit., p.
294. 284
Canotilho denomina tais mecanismos de procedimentos constitucionais deslegitimadores, reconhecendo-lhes a
sua importância em termos iguais ou maiores que os procedimentos eleitorais legitimadores. A fórmula de Popper
é a expressão mais sugestiva deste modo de conceber o princípio democrático: “A democracia nunca foi a
soberania do povo, não o pode ser, não o deve ser”. A justificação da democracia em termo negativos e
basicamente procedimentais, pretende por em relevo que a essência da democracia consiste na estruturação de
mecanismos de seleção dos governantes e, concomitantemente, de limitação prática do poder, com instituições
políticas adequadas e eficazes para um governo sem tentações tirânicas. (Op. Cit., p. 292) 285
BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997, p. 65. 286
MÜLLER, Friedrich. Teoria e interpretação dos direitos humanos nacionais e internacionais – especialmente
na ótica da teoria estruturante do direito. In: Direitos Humanos e Democracia. Clemerson Merlin Clève et. al
(organizador). Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 50.
124
As novas tecnologias e a comunicação global em redes sociais abertas permitem a
proximidade e o contato imediato com fatos nunca antes perceptíveis ao espírito crítico.
Representaram o principal instrumento de luta pela democracia no Egito e muito possivelmente
provocará profundas transformações na reivindicação democrática por direitos e liberdades.
A sociedade democrática avançada e pluralista requer a superação do agnosticismo
axiológico e do formalismo positivista287
impondo ao Estado integrado em redes de
cibercidadania a realização de fins materiais éticos de igualdade e liberdade, que contribuam
para reforma social e econômica justa das condições para o progresso humano.
Não se trata aqui de impor determinado sistema econômico. É evidente que a
conjuntura econômica é determinante para o progresso e desenvolvimento, como também é
evidente que a apatia participativa reflete no aumento das desigualdades sociais. Trata-se de
projetar os valores interconstitucionais fundamentais de igualdade material e proteção integral
do desenvolvimento para todo e qualquer modelo econômico que se venha adotar, expandindo
os instrumentos e formas de democracia direta e participativa.
A solidariedade estabelece o vínculo (social, político e cultural) de
ciberparticipação democrática entre nações livres e iguais, sem protagonismos ou heróis, na
constante presença do espírito crítico de indignação e consequente luta por valores, objetivos e
direitos interconstitucionais, construídos no ambiente pluralista, intercultural, complexo e
diatópico de múltiplos interesses transindividuais estabelecidos e em processo de construção na
e para a sociedade.
O elemento democrático no processo de desenvolvimento é dos seus principais
possibilitadores, princípio de humanização das ações estatais que consolida a intercultura
constitucional participativa no atual estágio de luta por progresso, em redes de indignação e
esperança. Para além de “ouvir as vozes das ruas”, é necessário conferir ao povo o
empoderamento participativo e solidário na construção da ordem interconstitucional em
expansão.
287
Cfr. ARAGÓN REYES, M. Constitución y Democracia. Madrid: Tecnos, 1989, p.42. No mesmo sentido:
LUÑO, A. Perez. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución. 4. ed. Madrid: Tecnos, 1991, p. 224;
TEJADA, Javier Tajadura. El Preámbulo constitucional. Cit., p. 227
125
6 DIREITO AO DESENVOLVIMENTO E POLÍTICAS PÚBLICAS
6.1 A teoria normativa das políticas públicas
O Poder Executivo, no Estado Solidarista, passa a executar novo tipo de norma
jurídica: a política pública288
(criada pelo Poder Legislativo e controlada pelo Poder Judiciário,
com participação ativa do Ministério Público, Defensoria Pública e do povo na otimização dos
seus efeitos). A política pública é mandamento finalístico, estabelece fim ou objetivo que
fomenta ou realiza determinado direito, passando a compor seu regime jurídico. As políticas
públicas constitucionais possuem natureza constitucional-fundamental conforme ínsito nos
artigos 3º e 4º, parágrafo único, da CRFB ou constitucional-geral, também previstos nos
artigos 23, 43, 182, 193, 196, 201, 203, 205, 206 e 207, 210, 217, 218, da CRFB.
A concepção normativa de policy (política pública) que Ronald Dworkin289
introduziu na estrutura da norma jurídica ao lado das regras e dos princípios, tem peso relativo
e se abre para a ponderação, porém no contexto de metas, de forma distinta da norma princípio.
Argumentos de política não se confundem com argumentos de princípios. Nossa proposta de
controle judicial de políticas públicas estabelece critérios coerentes com tais diferenciações.
Mas, os argumentos de policy não têm sido desenvolvidos pela doutrina brasileira,
que ficou presa ao debate algum tanto estéril sobre os princípios e as regras conforme observa
Ricardo Lobo Torres290
.
A Constituição da Irlanda de 1937 em seu art. 45, § 1º, fez referência expressa às
políticas públicas sociais: “The principles of social policy set forth in this Article are intended
for the general guidance of the (Parliament). The application of those principles… shall not be
cognisable by any Court under any of the provision of this Constitution”.
288
Karl Loewenstein possui interessante obra sobre esse assunto: Political Power and the Governmental Process
publicado em 1957 pela University of Chicago Press, onde ressalta a substituição da lei pela política pública,
mantendo-se a mesma separação entre a declaração, a execução e o controle. Em Ronald Dworkin, a política
pública (policy) é espécie do gênero norma jurídica (O Império do Direito; Levando os direitos a sério). 289
DWORKIN, Ronald. Taking Rights Serionsly. Cambridge: Harvard University Press, 1980, p. 26 290
Cfr. TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial como conteúdo essencial dos direitos fundamentais. (texto
cedido pelo autor), p. 11. Para um debate mais amplo: TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo existencial.
Rio de Janeiro: Renovar, 2008. Na concepção do citado autor o processo de ponderação para policy é o mesmo
aplicável aos princípios.
126
Nas lições de Ran Hirschl sobre o novo constitucionalismo, irá arguir que a
tendência global no sentido da autorização judicial (judicial empowermant) através da
constitucionalização pode ser entendida como parte e parcela de um processo em larga escala
pelo qual a autoridade para realizar a política pública (policy-making authority) é
crescentemente transferida pelas elites hegemônicas da arena política majoritária (majoritarian
policy-making arenas) para os corpos semi-antônomos e profissionais da política pública
(semiautonomons, profissional policy-making bodies), com o objetivo primário de isolar as
suas preferências pelas políticas públicas (policy preferences) das vicissitudes da política
democrática (democratic politics)” 291
.
As atuais políticas públicas infraconstitucionais (bolsa família, fome zero,
educação para todos, centro de apoio à família, habitação popular, incentivo ao pequeno
produtor, etc.) em nossa concepção, devem ocupar o referencial concretizador dos direitos
fundamentais e humanos, sujeitas aos parâmetros de controle judicial fundamentado nos
princípios da proteção eficiente, da cláusula impeditiva de retrocesso e do dever de
maximização dos efeitos diante das possibilidades fáticas e preservando o núcleo essencial
mínimo (mínimo existencial) de cada direito fundamental ou humano.
O direito fundamental ao progresso existencial impõe às políticas de mínimo
existencial a sua gradual redução de usuários: quem ingressa no programa “bolsa família” deve
ser inserido num programa ou política pública de acesso ao emprego e renda para não mais
necessitar daquele amparo social mínimo.
Todas as normas estabelecidas nos artigos 1º ao 17 e 37 caput da Constituição
Federal de 1988 são normas do tipo princípio (standards, mandamentos de otimização), com
exceção dos artigos 3º e 4º, parágrafo único, que são normas do tipo política pública
(mandamentos finalísticos com objetivos para o futuro). O correto exercício do ativismo
administrativo partindo de argumentos de princípios ou de política impõe tal compreensão.
A ausência de políticas públicas concretizadoras dos direitos fundamentais
importam em omissão inconstitucional sujeita a controle judicial. Tal controle pode ser
provocado em sede de ação civil pública, ação popular, mandado de segurança, mandado de
injunção, habeas dignitate, ou exercício do direito de ação, demandando do magistrado a
coragem necessária à proteção e à efetivação das políticas publicas de proteção aos direitos
291
HIRSCHL, Ran. Towards Juristocracy. The Origins and Consequences of the New Constitutionalism.
Cambridge: Harvard University Press, 2004, p. 16.
127
fundamentais. Podemos citar como exemplo a manutenção de transporte coletivo gratuito para
universitários que estudam em município diverso de seu município de origem (política pública
de fomento ao direito fundamental à educação superior). Tal política pública deve ser criada no
âmbito legislativo (ou suprida a omissão legislativa inconstitucional através de decisão judicial
no exercício do controle difuso de constitucionalidade292
), não pode sofrer retrocesso social e
deve passar pelo dever de otimização e de progresso diante das possibilidades fáticas do
município, preservando o núcleo essencial mínimo de proteção. O mesmo raciocínio se aplica
às políticas públicas de doação de medicamentos, tratamento de saúde, proteção ao
consumidor, saneamento básico etc.
Ao Judiciário atribui-se papel mais (cri)ativo para que sua função se identifique
solidariamente com a concretização dos direitos fundamentais e que a jurisdição se afirme
como novo elemento de inclusão social293
, contribuindo diretamente na consecução dos
objetivos fundamentais da República.
O Poder Judiciário não atua apenas com legislador negativo (declaração de
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo), atua também como legislador positivo (decisão
em mandado de injunção para suprir a omissão legislativa, atuando na concretização do
direito).
De igual modo, atua como administrador negativo (declaração de
inconstitucionalidade e ilegalidade dos atos do Poder Executivo) e administrador positivo
(decisão em que impõe a execução do orçamento para garantia de direitos – Lei Orçamentária
como lei material; controle da omissão, do dever de otimização/progresso, da
insuficiência/eficiência na execução das leis e políticas públicas, condenando o Estado em
obrigação de fazer).
Não estamos defendendo aqui a possibilidade de “Governo dos Juízes”, mas a
atuação razoável e proporcional do Poder Judiciário, através do ativismo judicial em face das
omissões dos demais Poderes em concretizar os direitos expressos na Constituição Federal que
comprometem a existência digna do ser humano.
292
Sobre o controle de constitucionalidade das omissões: FARIA, Luiz Alberto Gurgel de. O controle da
constitucionalidade na omissão legislativa: instrumentos de proteção judicial e seus efeitos. Curitiba: Juruá
Editora, 2001. 293
Sobre o último aspecto, identificando a Jurisdição como elemento de inclusão social: MOREIRA DE PAULA,
Jônatas Luiz. A jurisdição como elemento de inclusão social: revitalizando as regras do jogo democrático. São
Paulo: Manole, 2002.
128
Ao Ministério Público cabe maior participação na proteção dos interesses das
minorias carentes, passando de fiscal da lei a construtor do projeto constitucional de uma
ordem jurídica materialmente justa, esse o sentido solidarista a ser atribuído ao art. 129, III da
CFRB294
. As Ações Civis Públicas constituem remédio fundamental no processo de
fiscalização e defesa dos cidadãos em face das omissões inconstitucionais.
A Defensoria Pública na defesa dos necessitados, com os novos instrumentos que
as recentes reformas infraconstitucionais lhe proporcionaram (legitimidade para propor ação
civil pública295
, comunicação em no máximo vinte e quatro horas das prisões em flagrantes de
pessoas que não possam pagar advogado, etc.) tem acompanhado a nova tendência das
reformas constitucionais no sentido de fortalecer a dimensão institucional de proteção aos
direitos fundamentais.
Ao Legislativo cabe a tarefa de concretizar, em nível político-legislativo, a partir
do texto da norma constitucional, através de decisões políticas com densidade normativa, os
atos legislativos, os preceitos da Constituição296
. Posteriormente lhe incumbe o dever
democrático de produzir leis simples e acessíveis às camadas sociais mais carentes, num
diálogo aberto à participação ativa de todos os destinatários da norma; em suma, é preciso
legislar objetivando atingir o interesse público primário (do povo) e fundamentalmente em
defesa das comunidades carentes de amparo social, político e econômico.
Destarte, realizar os direitos fundamentais partindo de atividade legislativa torna-se
possível com uma maior democratização dos processos legislativos e do próprio direito, mas,
acima de tudo, em não havendo participação popular no diálogo formativo das leis, respeitando
adequadamente a autonomia dos cidadãos individuais, fortalecendo os laços de solidariedade.
Afinal, os juristas podem certamente contribuir para a realização da razão e da justiça, mas não
podem fazer isso sozinhos. Isto pressupõe uma ordem racional e justa297
.
Em nível executivo, com base no texto da norma constitucional e das subsequentes
concretizações desta a nível legislativo (também a nível regulamentar, estatutário), desenvolve-
294
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: III - promover o inquérito civil e a ação civil
pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e
coletivos. 295
Para uma interpretação conforme a constituição da legitimidade da Defensoria Pública para propor a ação civil
pública, esta deve estar voltada para defesa dos necessitados, sob pena de violar o princípio de interpretação
constitucional da correção ou conformidade funcional. 296
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Cit., p. 1206. 297
ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação
jurídica. São Paulo: Landy Editora, 2005, p. 281.
129
se o trabalho concretizador, de forma a obter uma norma de decisão solucionadora dos
problemas concretos298
. Nossa Constituição é notadamente dirigente; portanto, grande parte da
concretização dos seus preceitos se dá através de políticas públicas ou programas de ações
governamentais desenvolvidas pelo Governo299
. Política pública (preceito normativo que
estabelece fins, objetivos ou programas) é espécie do gênero norma jurídica e pode ser objeto
de controle judicial, atribuindo-se ao Legislador o dever de estabelecer normatividade
suficiente para concretização das políticas públicas fundamentais (art. 3º da CFRB e demais
normas programáticas) sob pena de incorrer em omissão inconstitucional.
Assim, conforme ensina Dirley da Cunha Junior, a expansão do papel do Juiz é
exigência da sociedade contemporânea, que tem dele reclamado, mais do que mera e passiva
inanimada atividade de pronunciar as palavras da lei, um destacado dinamismo ou ativismo na
efetivação dos preceitos constitucionais, em geral, e na defesa dos direitos fundamentais, em
especial, frequentemente inviabilizados por inação dos órgãos de direção política300
.
As políticas públicas constitucionais e infraconstitucionais exercem função
essencial no sistema de proteção aos direitos fundamentais, passando por novos critérios de
elaboração, execução e controle. A execução adequada de políticas públicas concretizadoras de
direitos fundamentais e humanos constitui a principal função administrativa a ser
desempenhada em nível executivo. Análises, projeções, definição de metas e estudos de
impacto coletivo na maximização dos efeitos relativos à aplicação de direitos fundamentais, e
principalmente a garantia do seu núcleo essencial, constituem o marco jurídico-constitucional
do exercício do que passaremos a denominar “ativismo administrativo”.
Realizar direitos fundamentais partindo de práticas administrativas constitui dever
muitas vezes negligenciado em face da equivocada percepção do caráter exclusivamente
infralegal dos atos administrativos. Cabe observar que todo ato infralegal é, antes de tudo,
infraconstitucional, portanto atos administrativos são também atos jurídicos densificadores de
direitos fundamentais e encontram-se diretamente vinculados às escolhas normativas
constitucionais, internacionais e comunitárias, em especial ao desenvolvimento humano.
298
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Cit., p. 1206. 299
Karl Loewenstein possui interessante obra sobre esse assunto: Political Power and the Governmental Process
publicado em 1957 pela University of Chicago Press, onde ressalta a substituição da lei pela política pública,
mantendo-se a mesma separação entre a declaração, a execução e o controle. Em Ronald Dworkin, a política
pública é espécie do gênero norma jurídica (O Império do Direito). 300
CUNHA JUNIOR, Dirley da. Controle Judicial das Omissões do poder público. São Paulo: Saraiva, 2004, p.
336.
130
A ausência de legislação específica para detalhar a concretização de direitos
fundamentais não é argumento válido para negar sua aplicabilidade em nível administrativo,
principalmente em virtude da aplicabilidade imediata desses direitos. Caberá a administração
pública aumentar a sua pré-compreensão constitucional para estabelecer seu correto conteúdo,
as restrições constitucionalmente admitidas e alcance eficacial, independente de legislação
específica, e na presença desta realizar a sua interpretação em conformidade com a
constituição, afastando conteúdos e interpretações com ela conflitantes.
A interpretação e concretização dos direitos fundamentais, principalmente nos
países em que os direitos essenciais à realização da condição humana são constitucionalizados
em virtude de sua carência no plano fático, devem passar por critérios diferenciados de
exercício da função administrativa, legitimando o modelo pós-liberal e solidarista de
Administração Pública, através do ativismo administrativo constitucionalmente adequado,
cabendo aos poderes públicos no exercício do ativismo (administrativo ou judicial) inserir na
fundamentação de suas decisões argumentos de política (alcance de metas, objetivos ou
programas interconstitucionais estabelecidos) ou argumentos de princípios (otimização de bem
jurídico interconstitucionalmente protegido).
A Constituição Administrativa é o conjunto de princípios, regras, políticas públicas
e instituições jurídicas que, garantindo os elementos definidores de determinado modelo
funcional administrativo, instituem determinada forma de organização e funcionamento para a
Administração Pública e constituem, por isso mesmo, determinada forma de atuar
concretamente os interesses públicos primários, assim, faz parte não só as normas que regulam
diretamente a função administrativa (artigos 37 ao 43 da Constituição Federal), mas também os
direitos fundamentais (art. 5º ao 17, 145, 150, 225, 226 todos da Constituição Federal, além
dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos e normas comunitárias) que constituem a
razão suficiente e eficiente das práticas administrativas, além daquelas que definem os
princípios fundamentais da organização estatal (artigos 1º ao 4º da Constituição Federal).
Canotilho afirma que a constituição confere legitimidade à ordem política e dá
legitimação aos respectivos titulares do poder político. Precisamente por isso se diz que a
constituição se assume como estatuto jurídico do político (Castanheira Neves) num duplo
sentido – o da legitimidade e da legitimação. O esforço de constituir a ordem política segundo
princípios justos consagrados na constituição confere a esta ordem indispensável bondade
131
material (legitimidade) e ao vincular juridicamente os titulares do poder, justifica o poder de
“mando”, de “governo”, de “autoridade” destes titulares (legitimação)301
.
Quando a lei constitucional logra obter validade como ordem justa e aceitação, por
parte da coletividade, da sua “bondade intrínseca”, diz-se que a constituição tem
legitimidade302
.
A crise institucional que compromete diretamente a eficiência do sistema
constitucional de proteção aos direitos fundamentais é, em grande parte, atribuída ao fato de
não contarmos com um eficiente sistema de proteção ao patrimônio público, temos um sistema
de segurança pública que carece de tecnologias, valorização profissional e formação técnica e
humanística adequadas, que, por consequência, apresenta taxas de esclarecimento (clearence
rate303
) próximas à impunidade e inadequado modelo institucional redutor de criminalidade.
Faz-se necessária a atribuição de autonomia orçamentária e administrativa aos
órgãos de segurança pública (controlada externamente pelos demais poderes, com fiscalização
direta do Ministério Público, e orientação estratégica de um Conselho Nacional de Segurança
Pública com amplos poderes disciplinares). A segurança pública deve atuar de forma integrada
e estrategicamente orientada por questões de política criminal capazes de reduzir e inibir
práticas delitivas.
A autonomia e integração entre os diversos órgãos estatais e federais de segurança
pública, com um Conselho Nacional de Segurança Pública nos moldes do Conselho Nacional
de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público é o pressuposto para o equilíbrio entre
o direito fundamental coletivo e social de segurança com os demais direitos fundamentais de
liberdade, num momento em que o próprio Estado é vítima da violência que ele não teve
capacidade de conter. É preciso repensar o Estado, sua estrutura, funcionamento e a própria
ideia de separação de poderes para a garantia e fortalecimento dos direitos fundamentais,
humanos e comunitários.
301
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5. ed., Coimbra: Almedina, 2002,
p. 1421. 302
Op. Cit., p. 1421. 303
Taxa que mede a eficácia da polícia e os níveis de impunidade, equivalendo ao percentual de crimes
esclarecidos, calculado a partir do número de crimes que a polícia registra: levando-se em conta o total de
ocorrências registradas, que proporção resultou em inquéritos encaminhados ao Judiciário, com a indicação de um
provável culpado.
132
6.2 Parâmetros de controle judicial de políticas públicas
A concretização dos direitos fundamentais a partir de políticas públicas
infraconstitucionais passa, inicialmente, pela análise da compatibilidade entre tais políticas e o
sistema constitucional de proteção aos direitos fundamentais e, nesse contexto, pode-se
depreender que as políticas públicas definidas legislativamente, num espaço de democracia
participativa, devem otimizar os mandamentos constitucionais fundamentais, favorecendo a
sua aplicabilidade imediata e impondo aos poderes públicos a impossibilidade de retrocesso
social em termos daquilo que já foi alcançado e o dever de progresso para alcançar novas
possibilidades de concretização.
A omissão do poder público na garantia de direitos fundamentais (liberdade,
segurança, saúde, moradia, educação, lazer, proteção integral às minorias etc.) impõe controle
judicial efetivo, permitindo ao Poder Judiciário exercer ativamente o controle dos demais
Poderes304
. As ações civis públicas constituem o principal instrumento de controle destas
omissões inconstitucionais.
Por maior que seja o esforço em revelar novas possibilidades de concretização dos
direitos fundamentais e compreender o fenômeno constitucional, será vã sem a clara percepção
de que a as políticas públicas passam por controle de constitucionalidade difuso e
concentrado em virtude de sua:
a) Inexistência: a omissão inconstitucional impõe ao poder judiciário o dever de condenar
o poder omisso em obrigação de fazer, quando se tratar de omissão executiva, atuando
como administrador positivo; em se tratando de omissão legislativa, a partir do
mandado de injunção e da ação de inconstitucionalidade por omissão, cabe suprir a
ausência de lei atuando como legislador positivo, tendo o sistema constitucional de
proteção aos direitos fundamentais como critério de orientação axiológica (valor) e
deontológica (dever-ser), fixando o plano ontológico (ser) para estabelecer o âmbito
normativo (contexto fático) que exercerá forte influência no processo de construção da
norma jurídica;
304
Cfr. OLIVEIRA JUNIOR, Valdir Ferreira de. Administração Pública no neoconstitucionalismo. In: Tratado de
Direito Administrativo. 2 vol. Coord. Adilson Abreu Dallari, Carlos Valder do Nascimento e Ives Gandra da Silva
Martins. São Paulo: Saraiva 2013.
133
b) Deficiência: controle da otimização e do dever de progresso305
– com fundamento no
princípio constitucional da eficiência e no valor fundamental do desenvolvimento, toda
atuação do poder público deve ser sempre otimizada. Mesmo os atos administrativos
vinculados e principalmente os discricionários, passam por controle judicial, legislativo
e administrativo de proteção integral (proibição de proteção deficiente e deveres de
proteção integral). As políticas públicas impõe dever de transparência (sua execução
deve estar aberta ao acompanhamento popular), dever de justificação conjuntural (a
respectiva reserva orçamentária deve ser destacada do orçamento global de proteção de
direitos fundamentais, justificando seu percentual de aplicação em face da real
necessidade conjuntural da população – daí sua dimensão transindividual), dever de
resultado (suas metas devem ser avaliadas em face dos resultados alcançados,
permitindo reformulação técnica dos métodos de alcance no universo plural de
possibilidades), dever de responsabilidade (atribuição de responsabilidades políticas e
sociais mútuas - accountability); dever de progresso (as políticas devem ser formuladas
em coerência com a necessidade de progresso existencial humano – cultural,
econômico, político, social e ético); dever de sustentabilidade (as políticas devem
possuir pluralidade de fontes de custeio e financiamento através da integração
interconstitucional – inclusive federativa, para manter seus padrões de proteção em face
das demandas sociais, obedecer a critérios técnicos de economicidade e projetar o
padrão ético-constitucional de defesa intergeracional do meio ambiente).
c) Extinção: vedação de desamparo social – as política públicas existentes não podem
sofrer extinção sem que sejam substituídas por outra capaz de oferecer igual ou melhor
proteção aos direitos fundamentais. Existe cláusula vedativa de extinção expressamente
imposta ao Poder Constituinte Derivado (CRFB, art. 60, §4º, IV) com relação aos
direitos fundamentais e por consequência ao seu sistema de proteção;
d) Retrocesso: A vedação do retrocesso significa que diante das possibilidades fáticas e
jurídicas, as políticas públicas existentes não podem sofrer retrocesso. Aquilo que já foi
305
Sobre os deveres de otimização: ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgilio Afonso da
Silva. São Paulo: Malheiros, 2008; Sobre os deveres de progresso e proibição de retrocesso: SARLET, Ingo
Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
134
conquistado em termos de proteção e concretização de direitos fundamentais e
humanos, por meio de políticas públicas, deve ser mantido ou substituído, no universo
pluralista de alternativas por técnicas mais aprimoradas e reorientadas pela
economicidade (dever de progresso)306
. André de Carvalho Ramos insere a proibição
do retrocesso como característica inata dos direitos humanos, e nesse tema destaca a
importância da cláusula do “desenvolvimento progressivo” prevista no artigo 2.1 do
Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais e no artigo 1º do
Protocolo de Direitos Sociais, econômicos e Culturais da Convenção Americana de
Direitos Humanos (Protocolo de San Salvador). Em suas palavras: “o conceito de
progressividade abarca dois sentidos: por um lado, sugere-se a gradualidade da plena
efetividade; de outro, impõe-se o dever ao Estado de garantir o progresso, ou seja,
veda-se consequentemente o retrocesso”307
.
Não há caminhos para a humanidade concretizar a dignidade humana, que não seja
o da realização dos seus direitos fundamentais através de políticas públicas que ofereçam
proteção adequada e eficiente, orientadas pelos princípios instrumentais da vedação de
retrocesso, do dever de otimização, da garantia do núcleo essencial mínimo dos direitos
(mínimo existencial) e da proteção às minorias.
Devemos oferecer uma via interpretativa que confira maior efetividade ao regime
jurídico-constitucional de proteção aos direitos fundamentais, com vistas à adequação da
realidade social ao Texto Constitucional. Aprimorar os instrumentos constitucionais
garantidores da concretização desses direitos, verificando seu alcance e eficácia é o objetivo
deste tópico.
Analisando a eficácia das atuais políticas públicas infraconstitucionais que
concretizam direitos fundamentais, tendo como parâmetro de controle (por via de ação ou
omissão) as políticas públicas fundamentais estabelecidas no art. 3º da Constituição Federal,
306
A vedação do retrocesso ao desenvolvimento passa por fortes interferências do âmbito normativo (Friedrich
Müller - teoria estruturante do direito). Portanto, em virtude de determinados contextos fáticos pode existir
retrocesso econômico, político e até mesmo social. A vedação do retrocesso encontra-se presente, porém, de
forma permanente, no contexto dos programas normativos interconstitucionais e integrais de proteção ao direito
fundamental ao desenvolvimento (não podem sofrer mutações que retrocedam sem justificativa jusfundamental).
Ele orienta a intervenção estatal nos momentos de crise, impõe deveres solidaristas de cooperação e remete
necessariamente ao contexto social amplo (global, regional, local) de múltiplas necessidades de proteção, para
construção da norma de decisão. Em contextos de retrocesso impõe-se o dever de retomada do progresso. 307
RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos. Cit. p. 253-254.
135
percebemos a falta de interdependência entre o sistema constitucional de proteção dos direitos
fundamentais e as políticas públicas infraconstitucionais (sejam elas federais, estaduais ou
municipais). Muitos membros do Poder Executivo, e até mesmo do Judiciário, ainda
confundem política pública com política de governo. Política pública é espécie de norma
jurídica.
É fundamental para compreensão do sistema constitucional de proteção dos direitos
fundamentais, sistematizar os critérios de solução de conflitos entre tais direitos, já que um
direito fundamental só é passível de restrição em conflito com outro direito fundamental de
igual ou superior relevância (concretamente estabelecida), a partir de uma ponderação de
interesses, orientada pelos critérios da razoabilidade (afastar decisões absurdas) e da
proporcionalidade (dentre decisões não absurdas, escolher a mais adequada – resolve o
problema ou fomenta a sua solução; necessária – menos gravosa; e proporcional em sentido
estrito – quanto maior a restrição de determinado direito, maior deve ser a realização do
outro)308
.
Devemos compreender os direitos fundamentais em suas múltiplas dimensões
(interprivada ou horizontal, vertical, institucional, procedimental, objetiva, subjetiva, negativa,
positiva, ativa e passiva), conferindo-lhes unidade e sistematicidade, sem, no entanto,
abandonar a densidade epistemológica que a correta classificação em gerações oferece para a
compreensão da historicidade e evolução dos direitos fundamentais.
Após estas observações, concluímos que é necessário identificar o sistema
constitucional de proteção e concretização do progresso existencial, estabelecendo
inicialmente novos parâmetros de aferição do seu conteúdo, como a proibição de retrocesso, o
dever de solidariedade e a inaplicabilidade da reserva do possível, todos filosófica e
juridicamente orientados pelo pensamento possibilista (na construção da norma jurídica buscar
a interseção entre realidade, necessidade e possibilidade).
308
Sobre aplicação das regras (aplicam-se por subsunção) da razoabilidade e proporcionalidade consultar:
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.
136
6.3 Políticas Públicas e Desenvolvimento
Para Inácio Rangel, o impulso para o desenvolvimento tem origem, não no
processo de produção, mas no processo de distribuição, que é fato estritamente social, por que
diz exclusivamente respeito às relações entre os homens309
. Porém, a distribuição das
responsabilidades sociais presente no regime jurídico-constitucional (integral e
multidimensional) da propriedade inclui, dentre outras, a dimensão social e solidária,
constituindo reflexo de intervenção positiva do direito no processo de desenvolvimento.
As políticas públicas, dado seu caráter normativo abstrato de cumprimento de
metas ou objetivos, sempre vinculados ao paradigma constitucional do desenvolvimento
estabelecido no artigo 3º da CRFB, possuem natureza transindividual e estão sempre
associadas a algum dever estatal de proteção de direitos ou fixação de deveres de solidariedade
social. O que torna, portanto, desnecessário maior esforço argumentativo para estabelecer as
relações entre políticas públicas e desenvolvimento.
Nesse sentido Ana Paula de Barcellos propõe, no ambiente plural de possibilidades
hermenêuticas das políticas públicas, cinco objetos que podem sofrer controle jurídico e
judicial (sem prejuízo de outros), são eles: a fixação de metas e prioridades por parte do Poder
Público em matéria de direitos fundamentais; o resultado final esperado das políticas públicas;
a quantidade de recursos a ser investida em políticas públicas vinculadas à realização de
direitos fundamentais, em termos absolutos ou relativos; o atendimento ou não das metas
fixadas pelo próprio Poder Público; a eficiência mínima (entendida como economicidade) na
aplicação dos recursos públicos destinados a determinada finalidade310
.
Manoel Jorge e Silva Neto defende o controle judicial de políticas públicas a partir
dos parâmetros constitucionais programáticos e dos princípios constitucionais fundamentais.
Ao analisar a omissão municipal em não contemplar política pública destinada à erradicação do
trabalho infantil no âmbito da norma de planejamento econômico, o autor defende a
309
RANGEL, Inácio. Introdução ao estudo do desenvolvimento econômico brasileiro. Salvador: Publicações da
Universidade da Bahia, 1957, p. 27. 310
BARCELLLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos
fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. Revista de Direito do
Estado. Rio de Janeiro, v. 1, n. 3, jul./set. 2006, p. 17-54.
137
possibilidade instrumental de controle judicial dessa omissão através da ação civil pública311
.
No que se refere ao desenvolvimento e o sistema de responsabilização pela edição ou pela
prática da ação ofensiva ao desenvolvimento, o Estado ofensor terá de arcar com os custos
decorrentes de sua deletéria iniciativa, seja por meio de imposição de indenização dirigida à
diminuição dos efeitos daquela atitude, seja ainda através do fomento econômica via remessa
de bens ou prestação de serviços ao país vitimado312
.
As políticas públicas interconstitucionais multiníveis (local, regional, nacional,
comunitário e internacional) de desenvolvimento, receptiva aos avanços institucionais de
proteção integral, devem possuir plataformas integradas de compartilhamento de informações e
tecnologias, dotadas de ampla transparência (ações, investimentos, metas, indicadores e
resultados) além de possuir a indispensável abertura para participação popular e sistema de
responsabilização política e social.
6.4 Teorias do mínimo e máximo existencial: adoção do progresso existencial
O progresso existencial assume a feição mais próxima e coerente com o sistema
constitucional de proteção integral ao direito fundamental transindividual ao desenvolvimento.
Vale destacar a advertência de Ricardo Lobo Torres, ao afirmar que os direitos
sociais se transformam em mínimo existencial quando são tocados pelos interesses
fundamentais ou pela jusfundamentalidade. Em sua teoria a ideia de mínimo existencial, por
conseguinte, se confunde com a de direitos fundamentais sociais stricto sensu. Os direitos
fundamentais originários, ao contrário, são válidos e eficazes em sua dimensão máxima313
.
Apesar de discordar do pensamento de Ricardo Lobo Torres, expresso na citada
obra, quando o mesmo afirma que os direitos sociais não são fundamentais, senão numa
parcela mínima e apenas para os que vivem em estado de pobreza, entendemos o louvável
objetivo do autor, que é a busca pela efetividade dos direitos fundamentais sociais nas
comunidades carentes. Diferentemente, para nós, os direitos sociais são fundamentais em sua
dimensão tanto mínima, quanto máxima para todos os cidadãos (inclusive estrangeiros não
311
SILVA NETO, Manoel Jorge e. Controle de políticas públicas na Justiça do Trabalho. Revista Eletrônica sobre
Reforma do Estado (RERE). N. 18. Salvador: IBDP, 2009, p. 10. Disponível em:
http://www.direitodoestado.com/revista/RERE-18-JUNHO-2009-MANOEL-JORGE.pdf. Acesso em 12/12/2014. 312
SILVA NETO, Manoel Jorge e. Direito ao desenvolvimento e responsabilidade do Estado: o dano nacional.
Artigo cedido pelo autor (não publicado), 2014, p. 9. 313
TORRES, Ricardo Lobo. Op. Cit., p. 2.
138
residentes no país) que transitem em território nacional brasileiro e principalmente no espaço
comunitário, local e internacional de exercício da jurisdição interconstitucional.
A proteção do conteúdo essencial ou mínimo existencial, embora esteja conectada
mais diretamente ao direito à vida, deve ser compreendida também em relação a outros direitos
fundamentais, humanos e comunitários, a exemplo da moradia, lazer, educação, formação
profissional, assistência médica, cidadania, salário mínimo (este último já constitui mínimo
existencial) etc.314
.
Afinal, como assevera Ana Paula Barcelos, para quem vive no absoluto desamparo
e ignorância, a distância que o separa da dignidade, ainda que em seu conteúdo mínimo, é todo
caminho de volta à sua própria humanidade315
. A máxima efetividade316
dos direitos
fundamentais, humanos e comunitários, traduz-se em dever de progresso existencial, que fática
e juridicamente se consolidará nos promissores caminhos oferecidos pela jurisdição
interconstitucional.
Inexiste direito ao mínimo existencial como afirma Ricardo Lobo Torres. Adotar
tal perspectiva seria afirmar o direito à permanência numa situação de subsistência
incompatível com o direito ao desenvolvimento. O que existe na verdade é um dever de
proteção ao mínimo existencial (conteúdo essencial) dos direitos fundamentais que resulta em
sua intangibilidade.
Com a proteção do núcleo essencial intangível, surge imediatamente o direito ao
progresso existencial (busca pela máxima efetividade) até o que científica, social e
economicamente se projeta como máximo existencial em equilíbrio sustentável e solidário com
os demais sistemas vivos.
Nesse processo se destaca o direito ao máximo existencial317
na original visão de
Miguel Calmon Dantas. O máximo existencial, na concepção aqui adotada, constitui meta ou
objetivo (policy). Representa a máxima efetividade do direito fundamental ao
desenvolvimento, o ponto (dinâmico e em constante transformação) de chegada do direito
314
Nesse sentido: ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Cit., p. 466 et seq. 315
BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. 2. Ed. Renovar: Rio de Janeiro,
2008, p. 355. 316
Sobre o princípio da máxima efetividade, ver o importante trabalho de Manoel Jorge e Silva Neto: O princípio
da máxima efetividade e a Interpretação Constitucional. São Paulo: LTr, 1999. 317
DANTAS, Miguel Calmon. Direito ao máximo existencial. Tese de doutoramento apresentada ao Programa de
Pós-graduação (mestrado e doutorado) da Universidade Federal da Bahia. Salvador: UFBA, 2011.
139
transindividual ao progresso existencial, se é que algum dia o ser humano dará por encerrada
sua expectativa de progresso.
É na eficácia e permanência das intervenções estatais garantidoras das conquistas
constitucionais civilizatórias de progresso (individual, social e solidário) que reside o âmbito
de proteção do direito fundamental transindividual ao desenvolvimento. O direito ao
desenvolvimento individual é expressão da sua indivisibilidade coletiva e difusa e dela decorre.
Robert Alexy aponta critérios mínimo e máximo dos direitos fundamentais sociais:
o programa mínimo compreende o espaço vital mínimo (minimalen Lebensraumes), os direitos
mínimos (Minimalrechte) ou os pequenos direitos sociais (kleine Sozialrechte); o máximo,
quando se fala de “plena realização dos direitos fundamentais” (volle(n) Verwirklichung der
Grundrechte) ou quando o direito à educação se caracteriza como pretensão à emancipação
cultural-intelectual318
.
A determinação do núcleo mínimo dos direitos fundamentais pode ser definido
legislativamente, com ou sem critérios normativos ou sociopolíticos (exemplos: salário
mínimo, ensino fundamental público e gratuito, moradia). Porém, apesar de expressamente
positivados, os direitos fundamentais se constroem na realidade social de cada país e
dependem, inegavelmente, do seu nível de desenvolvimento econômico.
No Brasil já podemos afirmar que o mínimo existencial em termos de direito
fundamental à educação pública e gratuita (direito público subjetivo – art. 208, § 1º da CRFB)
não é mais o ensino fundamental e sim o ensino médio, administrativa, legislativa e
judicialmente exigível, e em certos contextos de ponderação integrados ao desenvolvimento
existencial, também o ensino universitário (atualmente fomentado através de políticas públicas
que democratizam o acesso ao ensino). Tal perspectiva decorre das cláusulas de vedação de
retrocesso social e do dever de otimização e de progresso dos direitos fundamentais,
alcançando, cada direito fundamental a sua dimensão máxima em termos de efetividade no
ambiente dinâmico de proteção integral do pluralismo de alternativas.
Importante indicador divulgado pela Organização para a Cooperação e o
Desenvolvimento Econômico - OCDE (Organisation for Economic Co-operation and
Development - OECD), na publicação Education at a glance 2014, é a proporção de pessoas de
25 a 34 anos com ensino superior completo ou mais em 2012. Na comparação com os países
318
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Cit. Termos em alemão do original: Theorie der
Grundrechte, cit., p. 455 et seq.
140
membros da OCDE (a entidade reúne atualmente 34 membros), o Brasil, identificado pela
Organização, ao lado da China e Índia como um dos gigantes emergentes, possui a menor
proporção de pessoas com ensino superior dessa faixa etária dentre todos os países319
.
6.5 Ativismo Administrativo como resposta sistêmica ao controle judicial
Não está afastado, mas sim reforçado, na perspectiva integral, solidária e pluralista,
o exercício da função administrativa convergente e ativamente orientada para proteção de
direitos interconstitucionais (ponderando interesses individuais, coletivos e difusos em
concordância com o interesse público primário). A existência de direitos “contra” o Estado é
uma contradição em termos, pois cabe ao mesmo protegê-los em seu conteúdo mínimo
essencial (independente de qualquer limitação fático-orçamentária) e efetivá-los gradualmente
(diante das possibilidades fáticas e jurídicas) em progresso existencial orientado à sua máxima
efetividade em sede administrativa.
Portanto, muitas das decisões tomadas no exercício do ativismo judicial (garantia
de tratamentos de saúde, proteção das minorias, ações afirmativas, moradia básica etc.)
poderiam ser deferidas em processos administrativos no exercício do ativismo administrativo,
onde o espaço discricionário estaria reduzido pela vinculação do Poder Executivo ao sistema
interconstitucional integral de proteção dos direitos fundamentais (afinal o juízo de
ponderação, partindo da razoabilidade e da proporcionalidade é legalmente determinado na
própria Lei de Processo Administrativo – Lei 9784/99, decorre do princípio constitucional do
devido processo legal substancial e dos deveres de interconstitucionais de proteção).
A construção de uma sociedade livre, justa e solidária demanda um conjunto de
tarefas conformadoras, muitas delas já citadas ao longo do trabalho, direcionadas a assegurar a
dignidade social do cidadão através da igualdade de oportunidades. A justiça social e
distributiva fortalecida pelos laços de solidariedade, através do apoio mútuo entre as
instituições sociais, governamentais e os indivíduos, proporciona a igualdade de chances
(garantidora das condições iniciais de liberdade – através de políticas públicas); a igualdade de
319
A média da OCDE é de 39,2%, O Brasil, em último lugar, encontra-se com a proporção de 15,2%. Fonte:
Education at a glance 2014: OECD indicators. Paris: Organisation for Economic Co-operation and Development -
OECD, 2014. Disponível em: <http://www.oecd.org/edu/Education-at-a-Glance-2014.pdf>. Acesso em: dez.
2014.
141
resultados320
(garantidora das condições do bem-estar social – através da garantia do mínimo
existencial) e a igualdade solidária (garantidora das condições de desenvolvimento do ser
humano – através da intensificação dos laços de solidariedade social321
).
A ausência ou negação dos direitos fundamentais do cidadão em face de eventual
omissão ou inativismo administrativo representa o eclipse constitucional da liberdade e da
justiça, a presença do ativismo, impactada pela nova forma de atuação administrativa frente a
aplicação direta dos direitos fundamentais, torna possível a construção do novo modelo de
Administração Pública, encarregada de irradiar os efeitos das normas constitucionais
fundamentais na ordem jurídica infralegal. O direito administrativo contemporâneo será o
reflexo da cultura constitucional-administrativa, construída nos degraus do pensamento
solidarista e partindo da legítima expectativa de desenvolvimento pessoal através do progresso
existencial.
Porém, o ativismo administrativo demanda outro conteúdo eficacial para o direito
fundamental transindividual ao desenvolvimento: a garantia de proteção ao patrimônio mínimo
familiar em progresso existencial permanente (moradia, alimento, salário, lazer e demais bens
materiais fundamentais que garantam sua condição digna de existência) na perspectiva de
dever fundamental de proteção à propriedade mínima. A conquista de direitos deve partir de
oportunidades oferecidas pelo Estado e pela Sociedade, que, para os indivíduos que ainda
percorrem o caminho em busca da dignidade humana (a exemplo dos milhões de brasileiros
que se encontram em situação de insegurança alimentar grave322
), deve partir de políticas
públicas garantidoras do progresso existencial e desenvolvimento do indivíduo para não mais
necessitar de amparo social mínimo.
320
Na opinião de Ricardo Lobo Torres, a igualdade de resultados compõe a ideia de justiça. A sua obtenção
depende do nível de riqueza do país e da reserva da lei. Dworkin, em obra recente (A Virtude Soberana), distingue
entre igualdade de bem-estar e igualdade de recursos; a igualdade de bem-estar se aproxima da ideia de igualdade
de resultados. (A metamorfose dos direitos sociais em mínimo existencial. In: Direitos Fundamentais Sociais:
Estudos de Direito Constitucional, Internacional e Comparado. Cit., p. 37.) 321
Cfr.: OLIVEIRA JUNIOR, Valdir Ferreira de. Tratado de Direito Constitucional, 2 Volumes. (Vários Autores)
Coordenação: Ives Gandra da Silva Martins; Gilmar Ferreira Mendes e Carlos Valder do Nascimento. 2. Ed. São
Paulo: Saraiva, 2012. 322
Insegurança alimentar diminui, mas ainda atinge 30,2% dos domicílios brasileiros. No nordeste o índice atinge
46,1 % (leve, moderada e grave). Dados do PNAD, 2009: do total de domicílios, 5,0% (2,9 milhões) foram
classificados como insegurança alimentar grave. Esta situação atingia 11,2 milhões de pessoas (5,8% dos
moradores de domicílios particulares). Para compreensão da atual distribuição de renda no Brasil consultar: IBGE.
Síntese dos indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira 2014, disponível para
download em: ftp://ftp.ibge.gov.br/Indicadores_Sociais/Sintese_de_Indicadores_Sociais_2014/SIS_2014.pdf.
142
Seria possível, nessa perspectiva, a contratação temporária de indivíduos em
situação de insegurança alimentar ou sem acesso ao mercado de trabalho, para serviços
públicos de pequena complexidade e sua inserção em programas de treinamento e capacitação
por parte da administração pública323
para posterior desenvolvimento profissional e acesso ao
mercado de trabalho, incentivando o setor privado (eficácia horizontal) com benefícios fiscais e
tributários a participar com o poder público neste projeto político fundamental de inclusão
social e redução das desigualdades, contribuindo diretamente para o desenvolvimento do país
através da divisão social do trabalho. Penso que é chegado o momento de afirmarmos no Brasil
o direito fundamental a um patrimônio em progresso existencial a ser concretizado pelos
poderes públicos e sociedade como caminho necessário à concretização do direito fundamental
transindividual ao desenvolvimento.
As dimensões transindividual, interconstitucional e transnacional do direito ao
desenvolvimento impõem ação coletiva das administrações públicas integradas em redes de
cooperação e solidariedade (os textos constitucionais, internacionais e comunitários
determinam juridicamente essa ação). Os valores fundamentais que integram esse sistema
interconstitucional cooperativo conduzem à compreensão de que, antes de implementar
qualquer projeto sério de desenvolvimento (nos termos propostos pela ONU no UN System
Task Team on the Post-2015 UN Development Agenda), há que se resolver o problema dos
países com alto índice de vulnerabilidade social no que se refere a manutenção da própria vida
(principalmente em contextos agravados pela miséria absoluta, violência e conflitos armados).
As soluções científicas, tecnológicas, sociais, jurídicas, interculturais e políticas para o
desenvolvimento nos países mais vulneráveis possuem bases solidaristas – impõe ao receptor
de cooperação o direito/dever de tornar-se participante ativo do processo global de
desenvolvimento.
143
7. CONCLUSÃO
7.1 Síntese das teses apresentadas
O desenvolvimento no século XXI impõe a projeção das forças produtivas num
agir sustentável, a organização estatal desburocratizada, transparente e aberta aos avanços
tecnológicos, além da sociedade interligada em redes democráticas de cibercidadania para
consolidação de novos espaços públicos fundamentais para defesa dos valores comuns
considerados essenciais ao desenvolvimento, através dos laços de solidariedade envolvendo
direitos e deveres para além das nações e nacionalismos.
O Estado Constitucional Solidarista se afirma democraticamente através do
fortalecimento e consolidação dos laços de solidariedade social – pela divisão social do
trabalho sustentável, por similitude, pelo pluralismo e pela justiça equânime na distribuição de
direitos e deveres. O desenvolvimento é construído, aprimorado e expandido nesses laços
constitucionais solidários de proteção, reflexivo das necessidades humanas existenciais em
equilibro sustentável com a continuidade da vida em todas as suas formas e igual dignidade.
O desenvolvimento consagra-se no novo milênio como a questão central da
humanidade, núcleo convergente das principais teorias e movimentos sociais nos contextos
global, local e regional, produzindo reflexos jurídicos na democracia, liberdade, segurança,
propriedade, saúde, educação e mais acentuadamente no sistema de proteção aos direitos de
solidariedade (transindividuais).
O direito fundamental ao desenvolvimento representa, para além de doutrina do
progresso existencial, o marco unificador dos direitos fundamentais presentes e dos demais
direitos humanos e comunitários convergentes para seu sistema aberto e integral de proteção.
Os preâmbulos constitucionais estabelecem as ideias-força fundamentais que
conduzem o texto constitucional e neles estão estabelecidas diversas normas jurídicas de
conteúdo impositivo, pois nos preâmbulos constitucionais encontramos a síntese do sentimento
constitucional criador da nova ordem jurídica fundamental.
A constituição brasileira de 1988 caracteriza o desenvolvimento como valor
supremo da sociedade. Ao estabelecer no contexto do seu preâmbulo, uma ordem objetiva de
valores constitucionais vinculantes, passa a constituir o desenvolvimento como decisão política
valorativa, que expressa conteúdo axiológico universal com validez para todos os âmbitos do
144
direito. O desenvolvimento concretiza essa expressão valorativa (decisão axiomática) no
próprio texto constitucional como norma objetiva de princípio, como direito fundamental
transindividual (direito subjetivo de solidariedade frente ao Estado e dotado de eficácia
horizontal interprivada) e como objetivo fundamental (norma programática ou política
pública).
A Constituição em sua abertura principiológica de escolhas normativas conduz
inegavelmente ao pluralismo e a solidariedade como fatores determinantes da integral proteção
do progresso existencial humano.
Presente uma série de Tratados Internacionais de Direitos Humanos
indivisivelmente conectados à proteção integral ao desenvolvimento, a concretização do citado
direito fundamental transindividual encontra-se integrada de forma multinível e
interconstitucional com tais documentos jurídicos transnacionais e mais aproximadamente a
Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento no âmbito da ONU.
O direito comunitário não deve buscar primazia sobre o direito nacional como
pressuposto da capacidade funcional da comunidade. O pressuposto da sua capacidade
funcional reside no diálogo interconstitucional diatópico destituído de hierarquia, objetivando
sempre a melhor proteção do ser humano. A base cooperativa de criação de uniões
supranacionais orienta-se por uma carta de direitos que amplia e reconhece tantos os tratados
internacionais de direitos humanos quanto os direitos fundamentais dos Estados que
solidariamente compõem a Comunidade de Nações.
O direito comunitário é formado não apenas por normas de organização e
procedimento, mas fundamentalmente por normas atributivas de direitos aos cidadãos
supranacionais, que vão desde o voto e a participação na composição da comunidade e
instituições, até a garantia de progresso existencial em solidariedade com seus concidadãos.
O Direito ao desenvolvimento reencontra e amplia seu âmbito de proteção no
direito comunitário. A ideia de progresso e desenvolvimento é estruturante da própria
identidade constitutiva da comunidade de nações, encontra tipificação expressa nos principais
documentos jurídicos das uniões supranacionais.
Os laços de solidariedade interconstitucionais entre a ordem interna,
internacional e comunitária para garantia de proteção integral ao desenvolvimento, são por
demais intensos, para permitir o inadequado isolamento das jurisdições e organizações estatais
na proteção de direitos e atribuição de responsabilidades.
145
O “constitucionalismo integral” ou “teoria integral de proteção” nasce da
necessidade de promover a organização sistêmica multinível para proteção de direitos
fundamentais, humanos e comunitários (direitos interconstitucionais).
Numa teoria integral de proteção, presente a expansão da jurisdição
constitucional dos direitos transindividuais para o domínio comunitário e internacional, a
análise sobre o âmbito de proteção, restrições, conteúdo e eficácia do direito fundamental ao
desenvolvimento, recai necessariamente em abordagem zetética, integral de proteção, pluralista
de alternativas e solidarista.
É possível a aplicação do controle de convencionalidade presente na jurisdição
internacional no âmbito interno de cada país. A jurisdição interna de proteção integral dos
direitos humanos, fundamentais e comunitários, em face do art. 5º, § 2º (cláusula de abertura)
combinado com o art. 102, III (controle difuso), ambos da Constituição Federal, possibilita aos
magistrados brasileiros o exercício do controle difuso de convencionalidade.
A teoria integral de proteção, com direitos inseridos numa complexidade
estrutural multinível de interconstitucionalidade, assume relevância o modelo de intervenção
estatal solidária, onde se busca o pleno desenvolvimento com o compartilhamento de tarefas e
responsabilidade, em grande parte, assumidas pelo Estado, de outro lado, vinculadas às
empresas transnacionais e ao setor privado interno em função do seu dever transindividual de
promoção do desenvolvimento social, cultural e econômico da sociedade que possibilitou a
expansão do seu capital.
Nasce a relação de interconstitucionalidade federal externa - diálogo de
proteção integral entre Constituição Comunitária, Constituição Federal, Tratados
Internacionais de Direitos Humanos e as Leis Orgânicas e Constituições dos entes federados.
Permanece a relação entre Constituição Federal e Constituições dos Estados –
interconstitucionalidade federal interna.
Diante da demanda crescente por direitos essenciais ao desenvolvimento, é
imprescindível à teoria integral de proteção a implementação de sistema transparente para
determinação dinâmica (alterável conforme necessidade e possibilidade da sociedade – setores
público e privado), porém substancial, de percentual do Produto Interno Bruto de cada país a
ser investido na promoção do direito ao desenvolvimento.
O caráter dinâmico e pendular do desenvolvimento aponta como uma de suas
garantias contra intervenções estatais excessivas a intangibilidade do seu conteúdo essencial. A
146
consolidação do regime interconstitucional do desenvolvimento expressa, a partir das suas
mais variadas funções, caráter multidimensional, com similar orientação axio-deontológica,
fundamentada na dignidade humana.
O direito fundamental ao desenvolvimento decorre do objetivo fundamental
estabelecido no art. 3º, II da CRFB, tornando o dispositivo constitucional multifuncional.
Cumpre dupla função sistêmica: é direito fundamental transindividual (com todas as
consequências possíveis e decorrentes da inserção dos direitos fundamentais numa teoria
integral de proteção) e também é política pública fundamental (parâmetro de controle para
todas as políticas públicas de promoção do desenvolvimento).
O conteúdo essencial do direito fundamental transindividual ao
desenvolvimento é formado por uma projeção mínima de progresso existencial e vedação do
retrocesso social. Portanto, mantidas as conquistas sociais civilizatórias já alcançadas, deve o
Estado intervir na sociedade para melhoria dos padrões existenciais.
Todos os direitos sociais são fundamentais, que dependem de conjunturas
econômicas, jurídicas, políticas, sociais e culturais propícias à sua máxima efetividade. O fato
de existir retrocesso no plano ontológico (crises econômicas) não implica necessariamente a
diminuição de sua potencialidade normativa (em termos deontológicos e de proteção do seu
conteúdo essencial). A vedação do retrocesso social demanda análise complexa de ponderação
de interesses em ambiente pluralista de alternativas (realidade-necessidade-possibilidade).
A intervenção judicial no orçamento é sempre aferível concretamente em face
das necessidades existenciais individuais e coletivas (a exemplo do contingenciamento de
recursos referentes à realização de festas populares para enfrentamento de epidemias, combate
a seca e desastres naturais), jamais ponderável em abstrato, afinal, o orçamento público integra
a ordem material fundamental de proteção intergral dos direitos, constitui sua base econômica
tecnicamente planejada para suprir as necessidades individuais e transindividuais.
Decorre naturalmente do direito ao desenvolvimento, inserindo-se em seu
âmbito de proteção, o dever estatal de planejamento e intervenção em crises de retrocesso
social. Os retrocessos são sucedidos por deveres de retomada do progresso, num ritmo
ponderável com o dever global e indivisível de proteção dos direitos fundamentais e
respectivos núcleos essenciais.
A jurisdição interconstitucional busca estabelecer o diálogo intersistêmico de
proteção dos direitos humanos, comunitários e fundamentais em diferentes realidades culturais,
147
econômicas, políticas e sociais, porém não tão distintas do ponto de vista jurídico-normativo,
pois, as diversas ordens jurídicas dos Estados Constitucionais contemporâneos compartilham
princípios fundamentais comuns, além de unirem-se cooperativa e solidariamente na proteção
internacional e comunitária dos direitos humanos. Passam assim, a estruturar o centro do seu
sistema jurídico a partir de suas soberanas escolhas constitucionais (direitos fundamentais),
comunitárias (direitos comunitários) e internacionais (direitos humanos) com forte
interferência nas múltiplas tradições jurídicas.
Possuindo, tanto os direitos humanos quanto os direitos fundamentais e
comunitários, natureza principiológica, o seu desdobramento, detalhamento e concretização em
nível infraconstitucional ocorre, muitas vezes, através de normas de natureza finalística
(políticas públicas) que passam por controle judicial de imposição de existência; dever de
progresso; vedação do retrocesso; dever de proteção do núcleo essencial; princípio da
diferença.
O sistema de precedentes obrigatórios na jurisdição interconstitucional,
estabelece a harmonização necessária ao convívio interconstitucional de parcelas igualmente
legítimas da soberania estatal: a jurisdição interna, a jurisdição internacional e eventualmente a
jurisdição comunitária.
A teoria da interconstitucionalidade com referência a autonomia dos espaços
jurídicos constitucionais, comunitário e internacional, parte da concepção de sistema aberto e
orientado a valores comuns, formando o sistema complexo de inter-relação entre os direitos
humanos, fundamentais e comunitários no ambiente dialógico e diatópico.
A República Federativa do Brasil (Estado Federal) é dotada de soberania, ao
contrário das unidades parciais que possuem apenas autonomia (administrativa, política,
financeira e normativa), ao passo que a União Supranacional é dotada de soberania de
convergência (parcela da soberania dos países que a integram converge para sua formação
permitindo o exercício de poderes de integração econômica, cultural, social e política
objetivando o desenvolvimento global da comunidade).
Apresenta-se o neofederalismo como modo de preservar a particularidade no
âmbito de uma união supraestatal maior, mantendo o equilíbrio entre a soberania da nação
como um todo e a autonomia dos entes federados, concomitantemente à sua interdependência e
integração interconstitucional com a União Supranacional, que em nosso entendimento é
fortalecido pelos laços de solidariedade que deve existir entre os entes.
148
A interconstitucionalidade federativa externa cria o sentimento de expansão da
cultura constitucional de proteção de direitos para os Municípios, realidade ausente nas
respectivas leis orgânicas. O empoderamento dos cidadãos nos espaços públicos locais decorre
do fortalecimento das relações interconstitucionais no âmbito municipal.
Os deveres interconstitucionais comuns de transparência, desburocratização,
abertura democrática para participação ativa do cidadão no desenvolvimento, responsabilidade
financeira, pluralismo, solidariedade social e progresso existencial humano, passam a condição
de princípios estruturante do novo federalismo de integração, despertando a consciência dos
cidadãos de pertencimento a uma entidade política durável com propostas viáveis de proteção
integral do direito transindividual ao desenvolvimento.
A ponte evolutiva da teoria da constituição reside no constitucionalismo
solidarista. O fundamento do direito é solidariedade ou a interdependência social, todos os
membros da sociedade, pela regra de direito, são obrigados a nada fazer em contrário à
solidariedade social e fazer tudo o que está em sua capacidade para que assegure a sua
realização.
O direito ao desenvolvimento é em sua essência um direito de solidariedade.
Pressupõe, no entanto a expansão das liberdades substantivas. Seu ambiente de consolidação é
o espaço democrático, pluralista e participativo, onde impera o reino das liberdades, e permite
ao ser humano construir o seu progresso existencial, sem o qual estaria comprometida toda a
ordem objetiva de valores estabelecidos na Constituição.
O pensamento possibilista oferece ao sistema interconstitucional de proteção
integral ao desenvolvimento uma análise jurídico-funcional do alcance de metas que refletem
diretamente na situação concreta dos indivíduos e seus laços de solidariedade para o
fortalecimento da dimensão transindividual do progresso, já que as normas jurídicas,
especialmente as de natureza principiológica, somente podem ser conhecidas mediante sua
confrontação com a própria realidade.
O raciocínio possibilista oferece ao sistema interconstitucional do
desenvolvimento a análise jurídico-funcional do alcance de metas que refletem diretamente na
situação concreta do progresso existencial coletivo, já que as normas jurídicas somente podem
ser conhecidas mediante sua confrontação com a própria realidade.
A democracia plural é produto do compromisso ético e humanístico com a
efetividade dos direitos fundamentais pela via solidarista, que dinamiza o sonho kantiano de
149
comunidade ética cosmopolita na exata medida que a cidadania tende a ser interconstitucional
e ciberparticipativa, integrada em redes tecnológicas expansivas das possibilidades de inclusão
e empoderamento sociais.
A política pública é mandamento finalístico, estabelece fim ou objetivo que
fomenta ou realiza determinado direito, passando a compor seu regime jurídico. As políticas
públicas constitucionais possuem natureza constitucional-fundamental ou constitucional-geral.
Com a proteção do núcleo essencial intangível, surge imediatamente o direito ao
progresso existencial (busca pela máxima efetividade) até o que científica, social e
economicamente se projeta como máximo existencial em equilíbrio sustentável e solidário com
os demais sistemas vivos.
O ativismo administrativo demanda outro conteúdo eficacial para o direito
fundamental transindividual ao desenvolvimento: a garantia de proteção ao patrimônio mínimo
do administrado em progresso existencial permanente na perspectiva de dever fundamental de
proteção à propriedade mínima. A conquista de direitos deve partir de oportunidades oferecidas
pelo Estado e pela Sociedade, que, para os indivíduos que ainda percorrem o caminho em
busca da dignidade humana, deve partir de políticas públicas garantidoras do progresso
existencial e desenvolvimento do indivíduo para não mais necessitar de amparo social mínimo.
7.2 Considerações Finais
O direito fundamental transindividual ao desenvolvimento é interconstitucional e
multinível, sintetiza solidariamente as principais preocupações comunitárias, internacionais e
constitucionais. Expande, numa teoria integral de proteção, seu universo plural de
possibilidades sociais e normativas.
A participação cidadã no progresso existencial humano através de oportunidades
equitativas é indissociável do interconstitucionalismo em redes de cibercidadania, da
transparência das ações interconstitucionais (compreendidas como processo público), no
empoderamento coletivo possibilitado pela compreensão do desenvolvimento como
solidariedade.
O neofederalismo interconstitucional convergente e as possibilidades oferecidas
pela teoria integral de proteção fortalecem os Municípios ao inseri-los num sistema que
secularmente os excluiu do processo decisório.
150
O Estado Constitucional Solidarista e seu sistema integral de proteção ao
desenvolvimento são conformados pela Constituição Federal de 1988 em seu preâmbulo, nos
artigos 1º ao 4º (princípios fundamentais), bem como nos demais dispositivos do direito
constitucional organizatório e principalmente no diálogo interconstitucional entre direitos
humanos, comunitários e fundamentais. Legitima-se na exata medida que conseguem garantir e
tornar eficazes os direitos e garantias interconstitucionais. Seus limites, diretrizes,
possibilidades e funções institucionais estão todos vinculados ao fortalecimento dos laços de
solidariedade social e à expansão do mínimo vital num constante dever de progresso
existencial da condição humana. Porém, compreendê-los em sua essência, é compreendê-los
como o móvel das aspirações políticas, sociais, culturais, econômicas e normativas do seu povo
em constante desenvolvimento.
Devemos caminhar na direção de uma República interconstitucional de
responsabilidade compartilhada e multilateralmente exercitada, construída por um povo que
governa a si próprio, que decide seus destinos e contribui solidariamente nas decisões políticas
fundamentais do Estado324
para o desenvolvimento e o progresso existencial.
Quando o Estado e seu sistema de proteção de direitos não forem capazes de
garantir a existência digna e o progresso do seu povo é o momento de repensar a sua própria
razão de existência e descobrir novas possibilidades organizatórias, afinal o Estado constitui
meio para se alcançar os fins interconstitucionalmente estabelecidos.
O processo plural e interconstitucional de desenvolvimento tem por diretriz a
dignificação do ser humano, há que percebê-lo como sujeito ativo do seu próprio
desenvolvimento, agregar as circunstâncias necessárias a torná-lo livre das necessidades
existenciais básicas para que possa participar do universo de oportunidades equitativas de
progresso e escolher livre e solidariamente o seu projeto de vida digna em cooperação
sustentável com a humanidade.
324
Nesse sentido: NICOLET, Claude. L’Idée republicaine en France (1789-1824). Broché: Gallimard, 1995.
Afirma Claude Nicolet que a república não se constitui em se deixar governar por um ‘dono’, uma ‘casta’ e, a
fortiori, um ‘Estado diferenciado’. A República é povo que governa a si próprio. p. 398 et seq.
151
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