universidade federal da paraÍba …livros01.livrosgratis.com.br/cp100111.pdfhenrique murachco (usp)...
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
CURSO DE PS-GRADUAO EM LETRAS
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
Joo Pessoa
2008
Livros Grtis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grtis para download.
WILLY PAREDES SOARES
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
Dissertao apresentada ao Curso de Ps-graduao
em Letras da Universidade Federal da Paraba, em
cumprimento s exigncias para obteno do Grau
de Mestre na rea de Literatura e Cultura, orientado
pelo Prof. Dr. Milton Marques Junior dentro da
linha de Tradio e Modernidade.
Joo Pessoa
2008
S676a Soares, Willy Paredes.
Abordagem Retrico-Filosfica in De Natura
Deorum: Liber Primus de Ccero / Willy Paredes Soares.-
Joo Pessoa,008.
131p.
Orientador: Milton Marques Jnior
Dissertao (Mestrado) UFPB/CCHLA
1. Ccero (De natura deorum) crtica e
interpretao. 2. Retrica. 3. Gneros retricos.
4. Filosofia antiga. 5. Literatura clssica.
UFPB/BC CDU: 82.085(043)
Agradecimentos
Ao Professor Dr. Milton Marques Junior, que me
proporcionou esta oportunidade e meu deu valiosos
conselhos sobre a cultura greco-latina;
Ao Professor Dr. Juvino Alves Maia Junior, pela ajuda
que me pde prestar sobre a lngua latina;
Ao Professor Marcos Vinicius Fernandes, cujo apoio no
poderia ser maior em relao lngua francesa;
Ao Professor Laerte Pereira da Silva, por minha
introduo nas letras clssicas;
A minha me, Vilma Paredes, pelo apoio constante.
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
Willy Paredes Soares
DISSERTAO APROVADA EM: _____/_____/_____
PROFESSOR DR. ______________________________________________
Milton Marques Junior (PPGL/UFPB)
Orientador
PROFESSOR DR. _______________________________________________
Juvino Alves Maia Junior (PPGL/UFPB)
Examinador
PROFESSOR DR. _______________________________________________
Henrique Murachco (USP)
Examinador
PROFESSOR DR. _______________________________________________
Arturo Gouveia (PPGL/UFPB)
Suplente
Joo Pessoa
2008
Cum multae res in philosophia nequaquam satis
adhuc explicatae sint, tum perdifficilis, Brute, quod
tu minime ignoras, et perobscura quaestio est de
natura deorum quae et ad cognitionem animi
pulcherrima est ad moderandam religionem
necessaria.
Ccero
Sumrio
1. Introduo..........................................................................................7
2. Contextualizao...............................................................................9
3. Retrica e Elementos Constituintes................................................34
4. Estruturao Retrica do Primeiro Livro.....................................71
5. Consideraes Finais........................................................................123
6. Referncias Bibliogrficas.................................................................128
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
7
1. Introduo
Ccero, em diversas obras que versam sobre Retrica procura estabelecer
os fundamentos essenciais para se conseguir uma perfeio oratria, dedicou parte de
sua vida fundamentao de conceitos relevantes formao do orador. Entendia que,
alm do conhecimento das tcnicas imprescindveis arte discursiva, era necessria a
utilizao de argumentos pertinentes que garantissem a persuaso dos interlocutores,
para isto recorreu constantemente s mais variadas reas de conhecimento, em especial,
filosofia.
A presente dissertao busca um estudo retrico pertinente, associado a
conceitos filosficos usados por autores da Antigidade Clssica aludidos por Ccero
como sendo os principais pensadores em que se baseia para obteno de conhecimento,
na referida rea, e para a fundamentao de sua teoria, calcada em conceitos gregos, que
ainda hoje exercem influncia sobre o pensamento Ocidental.
A dissertao consta de trs captulos, no primeiro, apresentar-se- a
contextualizao histrica em que se insere o autor, sc. I a.C, com explicaes de sua
trajetria de vida no mbito poltico-social, uma vez que h ntima ligao entre os
fatores polticos e a produo literria de Ccero. No segundo, apresentar-se-o
concepes sobre Retrica, seus elementos principais, as partes que a constituem e
aquelas referentes ao discurso, objetivando o estabelecimento de sua importncia para o
homem da Antigidade Clssica, explicitando alguns equvocos provenientes da m
leitura feita por autores modernos do texto clssico, principalmente, no que se refere s
partes do discurso e aos aspectos culturais. No terceiro captulo, analisar-se-o as partes
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
8
do sistema retrico utilizado pelo autor em seu texto filosfico De natura deorum,
tomando o primeiro livro dos trs que o constituem como corpus de pesquisa.
Convm observar que em De natura deorum, Ccero utiliza o dilogo, gnero
ilustre na tradio grega, para realizao de sua obra, o que lhe permite o alcance do
objeto desejado sem grandes dificuldades: a produo de uma obra filosfica relevante,
apesar de o campo filosfico em lngua latina apresentar-se praticamente intacto.
O modelo seguido por Ccero fora basicamente o dilogo platnico, utilizando-
se de personagens contemporneos com seus monlogos extensos para a exposio de
suas teorias, associados a sua participao como interlocutor.
O tratado De natura deorum configura juntamente com De inuentione e De fato,
os escritos teolgicos ciceronianos, que se dedicam apreciao das relaes entre as
divindades e os humanos, como pietas, fides e uirtus, sobretudo no mbito das relaes
histricas e sociais.
A religio romana, especialmente na poca em que Ccero est inserido, passava
por profundas transformaes, como a importncia do papel de auspicium, que
experimentava uma decomposio relevante e, freqentemente, associava-se aos
interesses polticos vigentes, perdendo gradativamente as caractersticas arcaicas que os
constituam. nesse panorama de ansiedade e incertezas que o autor compe seus
principais tratados filosficos, poca marcada pelo surgimento de novos cultos e
supersties no que se refere aos deuses.
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
9
2. Contextualizao
necessrio que os fatos acontecidos durante o sc. I a.C. sejam explicitados,
para que haja compreenso do plano poltico-social em vigor em Roma neste perodo
cujas duas primeiras dcadas foram marcadas por diversos conflitos. nesse contexto
que aparece a figura de Sila (Lucius Cornelius Sylla) que, segundo Mrio Curtis
Giordani (1968, 54), seria o mais propcio general, apesar de ser considerado um
poltico inescrupuloso, resoluo de divergncias polticas interiores que foram
motivadas pelo partido popular at aquele perodo e tambm pela conteno revoltosa
de Mitridates IV, rei do Ponto, que ameaava o prestgio romano no Oriente.
Mitridates, em 88 a.C., proclamava-se rei da sia, estabelecendo vrios
contratos de cunho social com povos daquela regio que afetavam diretamente os
interesses romanos. No entanto, Sila, em 85 a.C., apoiado pelos fencios e pelos rdios
fora o rei de Ponto a aceitar a paz em Dardanos, impondo Mitridates situao inicial,
antes das hostilidades.
A concesso de paz a Mitridates no pode ser considerada um ato solidrio, ou
com sentido afim, est ligada desordem interior e inteno de Sila de voltar para a
capital com o intuito de disputar o poder interno. Em 82 a.C, Sila foi feito ditador, aps
a dominao da Itlia e das provncias ocidentais por ele e seus partidrios,
estabelecendo um governo considerado tirano por muitos, calcado no terror e no
enriquecimento desonesto.
Para Pierre Grimal (2001, 46), Sila durante seu governo reuniu bastantes
poderes, dignos de um rei, o que lhe conferiu a tomada de decises e a impunidade por
muitos atos, como perseguio e morte de opositores que no eram da oligarquia
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
10
senatorial, suspenso normais das atividades republicanas e restaurao do poder do
Senado. V-se, desse modo, que a titulao rgia, mesmo que aparente, garantida pela
defesa dos interesses da oligarquia, que no decorrer de quarenta anos vinha perdendo
privilgios e via em Sila um forte aliado.
Em seu governo, Sila tomou a deciso de compor o tribunal apenas por
senadores, o que contrariava o prprio conceito inerente palavra, que deriva de tribus,
que originalmente designava o povo, a classe pobre, em oposio queles. Pode-se
afirmar que talvez o termo tribunal estivesse ligado aos curatores tribuum, ou os
tribunos da plebe, que surgem no mbito poltico em 494 a.C., criados com o intuito de
defender os interesses dos plebeus.
Diante desse panorama de reviravoltas polticas, os poderes dos tribunos foram
restringidos e os plebeus sentiam que anos de luta, para garantir uma participao mais
ativa nas decises sociais, tinham sido abolidos, sendo Sila o principal responsvel pela
sensao de retorno a pocas mais sombrias de opresso do povo pelos nobres.
A ditadura de Sila durou trs anos. Em 79 a.C, de forma surpreendente, ou
mesmo por razes que os historiadores consideram obscuras, ou pela averso ao instinto
de constante terror que poderia viver enquanto estivesse no exerccio do cargo, o ditador
renunciou ao poder, vindo a morrer, em 78 a.C.
Aps sua renncia, os fatos tomaram, basicamente, o rumo anterior, pois muitos
problemas, que Sila julgou ter resolvido, vieram tona, como a revolta de escravos no
Sul da Itlia, contra a qual lutaram dez legies, deixando outras regies vulnerveis a
invases ou mesmo no sendo usadas por seus generais para a desarticulao dos
piratas, que impediam a circulao de mercadorias, principalmente o trigo, provenientes
de terras longnquas que garantiam o abastecimento de Roma.
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
11
No mbito poltico, os plebeus em constantes manifestaes procuravam
restabelecer seus direitos, pois percebiam que o governo senatorial falhara
constantemente, levando-o a aceitar concesses cada vez mais graves aos interesses da
aristocracia.
Diante dos fatos, Roma necessitava de algum que tentasse estabelecer a ordem,
concentrando mais poderes que um magistrado. Surge, ento, a figura de Pompeu
(Cnaeus Pompeus), que no s havia combatido em batalhas importantes ao lado de Sila
mas tambm ocupado o consulado em 70 a.C. Portanto, com sua experincia, assumira
um papel relevante para a tentativa de resoluo das intrigas externas de Roma, o que
conseguira em pouco tempo. No entanto, as maiores dificuldades encontravam-se na
parte interna, devido s graves crises, principalmente, no campo econmico.
Nesse panorama de carncia das instituies internas, trs homens unem-se
secretamente, em 60 a.C, para conduzir o Estado de acordo com seus interesses, ao seu
modo de conduta. A esse pacto secreto entre Pompeu, Crasso (Marcus Licinius
Crassus) e Jlio Csar (Caius Iulius Caesar) deu-se o nome de Triunvirato, o primeiro.
Distintos acontecimentos acorreram, na poltica interna e na externa de Roma,
durante esse acordo, mesmo tendo sido estabelecido fora dos princpios legais. Mrio
Curtis Giordani (1968, 56) assinala dentre os principais fatos, algumas medidas tomadas
por Csar, que beneficiavam, aparentemente, a populao romana, pois ele estabeleceu
leis que faziam com que os governadores fossem mais responsveis, quando no
exerccio de suas funes, eles no poderiam abusar de seus poderes nas provncias, o
que, de certo modo, garantia aos trinviros maior domnio sobre os territrios romanos.
O contedo da chamada Acta Senatus, que era acessvel apenas aos senadores, foi
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
12
levado ao conhecimento da populao, tentando estabelecer assim maior confiabilidade
por parte da opinio pblica em suas atitudes.
Com a ajuda dos trinviros, Csar conseguiu o consulado, em 59 a.C, e
posteriormente fez com que lhe fosse concedido o governo da Glia cisalpina qual
conseguiu que o senado juntasse transalpina, que comandou durante um perodo de
cinco anos.
Aps sua partida para a Glia, Csar ajudou um patrcio, Cldio Pulcher
(Publius Clodius Pulcher) que havia conseguido passar plebe, o que lhe conferira o
direito de ser tribuno, com o intuito de ser eleito cnsul. Transformar-se-ia, deste modo,
em um agente de Csar dentro de Roma, durante o tempo em que este permanecesse na
Glia.
Cldio era considerado por suas atitudes, quando exercia a funo de tribuno,
como um revolucionrio, em muitas situaes mostrava-se contrrio s atitudes dos
senadores. No momento, em que fazia parte do consulado, concentrando em mos
maiores poderes, tomou atitudes drsticas, estabelecendo em Roma um verdadeiro
regime de terror. Organizou bandos armados e perseguiu seus adversrios polticos,
entre eles o clebre orador romano Ccero, que foi condenado por Cldio ao exlio.
Nitidamente se observa a ligao de Cldio com Csar, ora por tomar decises
que seriam do interesse deste, ora por tentar garantir o benefcio das classes menos
favorecidas, fato anteriormente realizado por seu partidrio. Paradoxalmente, institui,
por um lado, o pavor por suas atitudes e perseguies, por outro, garante a satisfao de
da populao por distribuir gratuitamente trigo, alm de lutar pela reduo de direitos de
censores e de tentar garantir a ampliao de concesses ao povo.
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
13
No mbito externo, durante o primeiro Triunvirato, Roma percebia alteraes
considerveis, a conquista de novas regies garantia aos chefes de poder um fcil e
rpido enriquecimento que, por um lado, expandia os limites territoriais de Roma e, por
outro, garantia a permanncia no poder dos trinviros, uma vez que havia a aparente
satisfao por parte da classe dominante.
Em relao poltica externa, o fato, que pode ser considerado mais importante,
trata da conquista da Glia por Csar, entre os anos de 58 e 50 a.C. apesar de decorrido
um perodo de quase uma dcada para a anexao da regio aos domnios romanos, as
diferenas tnicas, polticas e sociais entre os gauleses foram fatores determinantes para
o seu fracasso. Estas divergncias facilitaram a dominao da Glia, garantindo a Csar
enorme prestgio, dinheiro e o comando de um amplo exrcito, fatores que lhe
permitiriam posteriormente a conquista do poder em Roma.
O perodo, que mais selou a exaltao da aliana estabelecida entre os trs
trinviros, ocorreu de 55 a 53 a.C, pois Pompeu e Crasso foram eleitos cnsules e
Csar, alm de suas conquistas, quando se encontrava na Glia, teve seus mandatos
prolongados.
Aps seu consulado, Crasso recebe o comando das provncias da Sria, deixando
Roma e partindo para o Oriente, onde se empenharia em garantir a unidade dos
domnios romanos. No entanto, seria morto no campo de batalha em Carra, em 53 a.C.
Por outro lado, o governo da provncia da Espanha recebido por Pompeu aps
seu consulado, no entanto este faz se representar naquela provncia por meio de dois
legados. Desse modo, o trinviro poderia permanecer em Roma e se articular
politicamente.
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
14
Aps a morte de Crasso, a aliana entre os dois trinviros remanescentes
agravada por vrios fatores, dentre os quais Mrio Curtis Giordani (1968, 57) aponta os
dois principais para o desencadeamento da crise. O primeiro de carter pessoal diz
respeito morte da filha de Csar, casada com Pompeu, o que geraria o fim de uma
aliana entre ambos os polticos no que se refere a laos pessoais. O segundo seria a
prpria morte de Crasso em campo de batalha, o que, de certo modo, romperia a aliana
estabelecida entre os trs.
Associados a esses dois fatores mais diretos, Roma vivia momentos de
desordens polticas, provocados pelo candidato pretura Cldio, que organizava
diversos motins com seus bandos armados e levava morte seus opositores polticos.
No entanto, como vivia constantemente em meio a intrigas, seria assassinado na Via
Appia em janeiro de 52 a.C. Tais desavenas induziriam o senado a tomar atitudes mais
enrgicas, a fim de restabelecer a ordem em Roma, conferindo a Pompeu plenos
poderes e nomeando-o cnsul nico em 52 a.C.
O senado via em Pompeu , naquele momento, um candidato que proporcionaria
a garantia de seus ideais, o que o levou a conceder-lhe tamanha autoridade, fator que
muito desagradou a Csar.
Segundo Pierre Grimal (2001, 48), os aristocratas acabariam por entender que
Csar no representava a garantia das idias da Repblica, sendo Pompeu considerado
como o mais propcio para a defesa dos interesses aristocrticos. Embora Csar
detivesse em mos um forte poderio blico, o Senado resolveu retirar-lhe o comando da
Glia, em 49 a.C, o que fez crescer as desavenas entre os dois ex-trinviros.
Csar, insatisfeito com a situao, recusa-se a obedecer s ordens do Senado que
lhe tirava da administrao da Glia, alm disto, extrapola os limites de sua provncia,
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
15
atravessando o Rubico, pequeno riacho, entre Ravena e Rimini. Csar ento persegue
Pompeu que foge para a Grcia e, em seguida, retorna a Roma, impe a ditadura e
posteriormente consegue a consulado, fato que resultaria na queda da Repblica.
Aps a retirada de Pompeu para a Grcia, onde foi derrotado, em agosto de 48
a.C, na batalha de Farslia, ele foge para o Egito, onde assassinado por Ptolomeu.
Desta forma, Csar persegue os adeptos de Pompeu, sendo os ltimos vencidos na
batalha de Munda, na Espanha.
Csar garante aos seus partidrios posies privilegiadas e, aps a vitria em
Munda, recebe honrarias dignas de um deus, devido s suas realizaes, dentre as quais,
Mrio Curtis Giordani (1968, 59) aponta a proteo s classes menos favorecidas,
distribuio gratuita de trigo, restrio aos exageros das classes dominantes.
Visando romanizao dos povos conquistados, Csar conferiu-lhes alguns
privilgios, antes aferidos apenas aos cidados romanos. Tambm incentivou as
cincias, promovendo, em 45 a.C, a alterao do calendrio, instituindo-se o atual de
trezentos e sessenta e cinco dias, ao qual se acrescentaria, a cada quatro anos, um dia ao
ms de fevereiro, o chamado ano bissexto.
Apesar de Csar ter calcado seu governo na ordem e na justia, fazia-o
unicamente pela imposio e pela autoridade, o que gerava a indignao de muitos,
principalmente da aristocracia que via a restrio de suas regalias e a ampliao dos
benefcios da populao menos favorecida.
Devido repulsa da aristocracia, mesmo que de uma pequena parcela, Csar foi
assassinado em 15 de maro de 44 a.C, pois os aristocratas acreditavam que, com sua
morte, Roma retornaria ao regime anterior. O assassinato de Csar conferiu a Roma a
entrada em um longo perodo de conflitos internos.
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
16
Mesmo com a morte de Csar, o cesarismo continuou imperante em Roma
devido aos interesses da aristocracia, dos soldados e do povo. No entanto, com este fato
e a desordem gerada, Roma v a repetio de uma segunda aliana entre os trs
aspirantes ao poder: Marco Antnio (M. Antonius), antigo cnsul de Csar, que presidiu
aos funerais deste, almejando a simpatia popular; Caio Otvio (Gaius Octauius),
sobrinho neto de Csar e, legalmente, seu filho adotivo, na poca apenas com dezenove
anos e Lpido (M. Lepidus), antigo mestre da cavalaria de Csar.
Juntos formaram o chamado segundo Triunvirato, em 43 a.C, combateram os
republicanos, recomeando a guerra civil. Aps a vitria sobre estes partilharam os
domnios romanos entre si. Segundo Pierre Grimal (2001, 50), a Marco Antnio coube
o Oriente, a Lpido, a frica e a Caio Otvio, o resto do Ocidente.
O segundo Triunvirato diferia do primeiro por seu carter formal e, devido sua
legalidade, atravs da lei Titia foi criada uma nova magistratura que conferia aos novos
trinviros diversos poderes, at mesmo a publicao de editos com valor lcito.
Mesmo cada um dos membros do Triunvirato sendo responsvel por
determinada regio, a busca pelo poder e os conflitos entre eles foram inevitveis. Caio
Otvio conseguiu a adeso das legies de Lpido, em 46 a.C, forando este a abdicar.
Em seguida, moveu grande nmero de romanos em defesa de seus ideais para tirar
Marco Antnio do comando do Oriente, apresentando argumentos diversos, dentre os
quais se pode destacar o fato de este ter como mulher Clepatra, rainha egpcia, o que
fez Caio Otvio suspeitar e levantar hipteses a respeito da integridade romana, uma vez
que um de seus lderes havia se associado a uma estrangeira, e que, a qualquer
momento, ela e seu aliado poderiam querer expandir seus domnios sobre o Ocidente.
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
17
Movendo a opinio romana sobre a manipulao de Marco Antnio por
Clepatra, Caio Otvio lana suas legies sobre aqueles, os quais na batalha de Actium
em 31 a.C, de forma precipitada fogem e, em 29 a.C, no vendo alternativa alguma,
suicidam-se. Desse modo, os romanos vem o regime republicano sucumbir e Caio
Otvio tornar-se senhor absoluto de Roma, sendo chamado pela primeira vez, em 27
a.C, de Augusto, reunindo em suas mos todos os poderes, e iniciando o Imprio.
O sculo em que Ccero est inserido marcado por diversos conflitos polticos,
que exercem direta ou indiretamente influncia em sua vasta obra literria, pois desde
muito jovem participou efetivamente da vida pblica romana. O nascimento de Ccero
(Marcus Tullius Cicero) data de 106 a.C, em Arpino, situada a cerca de 110 Km de
Roma, sendo sua famlia ligada ordem dos equites e ele era constantemente
considerado um estrangeiro ou chamado de homo nouus, pois sua ascendncia no era
nobre. Sua educao, juntamente com a de seu irmo Quinto, foi realizada em Roma,
onde ainda muito jovem teve a oportunidade de aprender e ouvir os mais ilustres retores
e filsofos.
Seu primeiro marco como orador, mesmo aos 26 anos, foi Pro Roscio Amerino,
em que discursava em defesa de Rscio Amerino, acusado de parricdio. A partir desse
momento, conseguiu xito na maior parte de seus discursos, quer fossem estes em prol
de um acusado ou contra um provvel inimigo de Roma. Atravs deles conseguiu
ascenso no mbito poltico, chegando at os mais altos cargos da Repblica e, por
outro lado, despertou o rancor em muitos de seus adversrios.
Seu interesse pela oratria e pela filosofia fez com que a partir de 79 a.C, Ccero
buscasse um aprofundamento de seus estudos nas letras gregas em Rodes e em Atenas,
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
18
procurando aumentar a prpria cultura, despertado pela leitura principalmente de
filsofos gregos.
Aps sua volta a Roma, em 75 a.C, foi feito Quaestor, ganhando destaque entre
os magistrados, pois em tal funo exercia a guarda do tesouro pblico e assessorava o
Praetor e o Proconsul, tendo este na provncia autoridade de Consul, o exerccio
daquele cargo por Ccero se deu na Silcia ocidental.
Juntamente sua ascenso poltico-social, Ccero cada vez mais ganhava
destaque por seus discursos, sendo crescente a procura de seus servios de orador pelos
membros da aristocracia romana. Dentre as suas dezenas de discursos, alguns foram
marcantes para o estabelecimento do autor como o clebre orador romano, considerado,
no poder argumentativo, pela crtica como igualvel apenas ao orador grego
Demstenes.
Por ser o mais notvel orador naquele momento em Roma e por parecer o mais
propcio aos interesses do Senado, em 70 a.C, foi convidado a acusar Verres (Cornelius
Verres), que desempenhava a funo de propraetor da Siclia, durante 3 anos, cujo
governo era considerado como smbolo de corrupo e de crueldade. O discurso
vitorioso de Ccero contra Verres publicado em Verrina, que Grimal (1997, 113)
afirma ser uma forma que o orador encontrou de denunciar a m administrao do
Estado por seus responsveis.
Devido a sua constante preocupao com os interesses pblicos, em 66 a.C, foi
feito Praetor Urbanus, o que aumentava ainda mais sua importncia no cenrio poltico.
No entanto, apesar de sua fama, Ccero no havia conseguido juntar grande fortuna,
exercendo seus atributos de orador, pois uma lei denominada Lex Cincia impedia que o
defensor recebesse pela causa defendida. Deste modo, em 62 a.C, para que pudesse
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
19
comprar a casa de Crasso, no Palatino, teve que pedir emprstimo a Cornlio Sila1, que
viria a defender posteriormente.
Sua condio financeira garantia-lhe a possibilidade de viver entre os filsofos e
os fillogos de sua poca. Este ltimo termo deve ser entendido como designador de
homem que tinha interesse pela linguagem antiga, particularmente a dos filsofos, que
tanto era prezada por Ccero. Segundo Grimal (1997, 116), estas preocupaes revelam
um homem envolvido pela vontade de saber, que no estava apenas ligado aos
interesses polticos, como se pode observar em vrias de suas obras de cunho filosfico,
principalmente as escritas no final de sua vida.
No entanto, parece que seu prestgio como orador e homem pblico lhe garantia
respeito de figuras romanas ilustres que, de certo modo, ajudariam em sua ascenso
poltica pretura, em 66 a.C, e ao consulado, em 63 a.C. Fatos que no seriam possveis
sem a ajuda da arte oratria que tanto Ccero prezava.
evidente que a importncia do orador e sua subida poltica no seriam
imaginveis sem o apoio da aristocracia, que via no autor a oportunidade de
convencimento do Senado para a expanso dos domnios romanos ocidentais e
orientais. Pode-se afirmar que havia tambm do lado da aristocracia interesse em que
Ccero fosse feito senador, principalmente por parte de Pompeu, que o considerava um
exmio aliado, apto defesa de seus interesses e contra o qual, dificilmente, pouco se
poderia fazer no que se refere arte do discurso.
O posicionamento favorvel de Ccero a Pompeu pode ser verificado em um dos
seus primeiros discursos polticos, denominado de De imperio Pompei, em que, afirma
Grimal (1997, 122), defendia os interesses de Pompeu sobre uma possvel centralizao
1 Cornlio Sila no deve ser confundido com Sila (Lucius Cornelius Sylla), ditador romano, morto em 78 a.C.
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
20
do poder, mostrando que este seria o mais bem preparado para enfrentar as adversidades
internas ou externas vivenciadas por Roma, em 60 a.C, como a possibilidade de guerra
civil e as invases brbaras, uma vez que Roma, devido disputa pelo poder, mostrava-
se fragilizada. Este posicionamento de Ccero gerava, por outro lado, hostilidades por
parte daqueles que tambm se mostravam interessados na centralizao do poder em
suas mos, como Csar.
Para o convencimento do Senado e do povo a respeito dos interesses, ou seja, do
que Pompeu representaria na defesa do Imprio, no pouco provvel que o orador
tenha se valido de um discurso tocante a respeito dos valores romanos, como a fides e a
uirtus, o que representaria para a honra daqueles a vitria sobre Mitridates. De um modo
geral, tal discurso parece apresentar-se ambguo, tanto fortalecendo a figura de Pompeu
quanto fazendo com que o povo romano buscasse apoi-lo pela exaltao de sua glria.
A vitria, neste caso, no seria de uma classe em especial, mas da prpria Roma.
A exaltao de Pompeu seria tambm a sua prpria, pois Ccero queria se
apresentar como um cidado notvel, alm disto, quando tenta levantar a moral do povo
pela fides e pela uirtus, o que conduziria a religio, alm da notoriedade oratria, nesse
momento, j podem ser observados elementos que o conduzem aos escritos filosficos,
que produziria nos anos finais de sua vida, como o livro De natura deorum. Por volta de
69 a.C, Ccero se considera um intermedirio entre o mundo divino e a cidade, talvez
por perceber a fragilidade ou mesmo a fidelidade do povo aos ritos religiosos.
Em 63 a.C, apesar de ser homo nouus, completa o cursus honorum e consegue
ser eleito consul. Profere em seus primeiros dias de consulado discursos que, segundo
Grimal (1997, 141), aparentemente vo ao encontro dos interesses da aristocracia, pois
tentava diferir uma lei agrria sugerida por Seruilius Rullus em que seriam distribudas
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
21
terras na prpria Itlia queles que no as possussem. Ccero, para evitar um conflito
interno considervel, consegue atravs de sua fora discursiva convencer os cidados
romanos dos graves problemas que surgiriam, se tal lei fosse aprovada.
No se pode, porm, classificar a atitude do orador como defesa dos interesses
aristocrticos, se se considerar que Seruilius Rullus, agindo daquela maneira, garantia os
interesses de Csar e Crasso, que, gerando conflitos internos, enfraqueceriam a figura de
Pompeu.
Dessa forma, deve-se perceber que Ccero no buscava prejudicar as classes
menos favorecidas, impedindo sua possvel melhoria, mas garantir os interesses de
Pompeu, que lutava no Oriente, e tambm os seus, mostrando-se um excelente lutador,
quando no se tratava do uso da fora fsica, mas do poder da palavra.
Outra preocupao de Ccero na funo de consul est diretamente ligada
popularidade, o que pode ser verificado em suas atitudes. Quando lhe foi atribuda a
Macednia atravs da eleio para que ele a comandasse e a Glia Cisalpina a Antonius,
providenciou Ccero uma troca no comando das provncias, pois se assumisse a
provncia da Macednia deveria se afastar de Roma, como este no era seu interesse,
uma vez que poderia haver articulaes contrrias sua poltica, preferiu a Glia
Cisalpina, o que foi aceito por Antonius em acordo.
Tal atitude garantia-lhe manobras polticas de seu interesse, porque Ccero se
preocupava com sua popularidade, o que facilitava de um modo geral a persuaso do
povo. Certamente, argumentando que seria mais til sua presena em Roma que, por
outro lado, dava-lhe possibilidades de desmanchar conspiraes que fossem contrrias
ao Estado, articuladas por Catilina, ou mesmo por Csar, j que Pompeu ainda se
encontrava fora de Roma.
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
22
O fato, que lhe restabeleceu a confiana do Senado e do povo de uma forma
geral, foi a descoberta da conjurao de Catilina, denunciada e levada ao Senado. Por
este motivo, segundo Grimal (1997, 156), Ccero recebe dos senadores o ttulo de
Senatus consultum ultimum, com o qual receberia a misso de defender a Repblica por
todos os meios. Este episdio foi escrito pelo autor em um dos seus mais conhecidos
discursos, denominado de In L. Catilinam, com o objetivo de servir como exemplo para
todos aqueles que pretendessem ir de encontro aos interesses da Repblica romana, o
que ainda o fez ser chamado de pater patriae.
A importncia poltico-social do orador mostra-se no apenas pelos ttulos
recebidos, mas por sua ascenso social, conseguida pela defesa dos mais notveis
polticos romanos atravs de seus discursos, de quem recebeu nobres honrarias, dignas
de poucos cidados, mesmo Ccero no tendo nascido em Roma.
Eventos como esse geravam, por mais que demonstrassem a fora do orador,
intrigas, no apenas por parte daqueles sobre os quais Ccero havia proferido discursos
contrrios, como o caso dos partidrios de Catilina, mas tambm por parte daqueles
romanos mais conservadores que o consideravam, por ser proveniente de Arpino, um
estrangeiro. estabelecida, ento, sua residncia na parte nobre de Roma, em momento
de grande agitao poltica, quando Ccero tinha muitos admiradores por um lado, mas
por outro, vrios interessados em seu afastamento da vida pblica e da prpria Roma.
Constata-se, nesta agitao poltica, que em 60 a.C o Senado e a ordem eqestre
praticamente se mesclavam, crescendo a cada dia a fora da segunda. Nesse mesmo
perodo, Csar governava a Espanha Ulterior (1997, 184), em que havia exercido
durante um perodo de oito anos a funo de Quaestor. Csar havia comandado vrias
expedies, o que fazia crescer sua experincia militar, fato que posteriormente iria ser-
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
23
lhe de bastante utilidade. Em junho do mesmo ano, retornou a Roma almejando um
lugar no Senado, no seria muito difcil de consegui-lo, j que suas conquistas militares
o igualavam em glria a Pompeu.
Ento Csar eleito consul, no demorando para estabelecer a aliana secreta
com Pompeu e Crasso, denominada primeiro Triunvirato. No parece impossvel que
Ccero tenha sido convocado a participar dessa aliana, devido ao seu grau de
importncia perante o Senado. No entanto, pode-se dizer que de acordo com seu carter
e tica institudos na concepo grega de cidado, principalmente influenciado pelos
filsofos peripatticos, Ccero no poderia participar de tal aliana, pois seria uma
espcie de traio a si mesmo e a sua ptria. Suas atitudes, seus discursos o conduziam a
uma concepo de equilbrio no regime de governo, em que o Senado pudesse atuar
mais favoravelmente estabilidade social, e no apenas de acordo com o interesse de
poucos.
Os anos que se seguem so marcados tambm por grande agitao poltica. Em
59 a.C, Cldio Pulcher tribuno, tendo apoio de Csar e de Pompeu, no demora em
fazer ser aprovada uma nova lei, chamada de De capite ciuium, em que cidado algum
poderia ser condenado morte se no tivesse sido julgado por um tribunal composto por
populares do qual Ccero no faria parte.
Sentindo-se perseguido por Cldio, uma vez que praticamente no participaria
dos julgamentos, o que tornava mais prtica a absolvio dos aliados dos trinviros,
Ccero abandona suas vestes de senador e, segundo Grimal (1997, 193), passa a usar
trajes de simples cavaleiro, fato que conduziu a uma manifestao geral de senadores e
cavaleiros, afirmavam estes que o Estado no tinha mais um governo, que se
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
24
configurava na pessoa de Ccero, demonstrando o grau de importncia do orador nas
causas pblicas.
Diante das manifestaes, Ccero aconselhado pelo cnsul Calpurnius Piso
Caesoninus a deixar Roma para que no houvesse conflitos entre os cnsules. A sua
sada da cidade era desejada por Cldio que, desde que havia sido eleito tribuno,
buscava meios legais para expulsar Ccero de Roma. Aps sua sada, Cldio
providenciou um novo projeto de lei que condenaria Ccero ao exlio, principalmente,
por este ter julgado e condenado os cmplices de Catilina.
No exlio, certamente, longe da vida pblica, Ccero preparava seu retorno a
Roma, alm de se dedicar leitura e escrita, pois desse mesmo perodo o primeiro
livro do tratado De diuinatione. Aps vrias tentativas de anulao da lei do exlio por
parte de seus partidrios para que Ccero pudesse voltar a Roma, em sua totalidade
vetadas por Clodius, em 57 a.C, afirma Grimal (1997, 206), Pompeu convoca uma
reunio do Senado, que vota um projeto confirmando o retorno de Ccero a Roma. Esta
reunio certamente no contou com a presena de Clodius e seus partidrios. Ento, dias
depois Ccero deixaria a casa de seu amigo Atticus em Butroto, cidade martima do
piro, para ser aclamado em Roma durante os Ludi Romani, retomando assim seus
afazeres pblicos.
Em 51 a.C, Ccero foi enviado como proconsul para administrar a provncia da
Cilcia durante um ano, ao retornar a Roma, assistia cada vez mais runa da Repblica,
que era conduzida com fins pessoais pelos trinviros. Desse momento em diante, o
autor parece ter buscado na filosofia e na Retrica um abrigo para as suas decepes na
vida poltica, que se distanciava dia a dia dos ideais de cidado, que lhe garantira o
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
25
ttulo de pater patriae, uma vez que parte considervel de sua obra retrico-filosfica
foi datada a partir desse perodo.
Aparentemente decepcionado com o caminho pelo qual o Estado era conduzido
e vendo-se fragilizado, pois seus discursos j no tinham o mesmo grau de importncia
que na dcada anterior, Ccero parte para algumas investidas contra influentes romanos,
proferindo acusaes mais diretas ao herdeiro direto do cesarismo Marco Antnio, que
havia formado com Caio Otvio e Lpido uma ditadura coletiva denominada de
segundo Triunvirato. O discurso intitulado Orationes Philippicae pronunciado nos anos
44 e 43 a.C, no Senado e diante do povo, atraram contra Ccero a antipatia implacvel
de Marco Antnio, que a partir daquele momento perseguiu-o de todas as formas
possveis, colocando o nome do orador nas listas de proscrio. Deste modo, Ccero foi
morto em 7 de dezembro de 43 a.C.
A decadncia da Repblica e perda da influncia do autor em tal regime,
conduzem-no centralizao de suas atividades na produo literria, o que certamente
pode ser visto como de valor diminuto,ou seja, mesmo o autor sendo considerado um
homem das letras, no se dedicava prioritariamente literatura, pois apenas distante das
atividades polticas, embora tendo publicado alguns de seus discursos, parece
preocupar-se em escrever sobre assuntos que no tivesse contedo poltico, mas ligao
com as aflies da alma e com a formao filosfica que havia recebido ao longo da
vida.
Durante os ltimos anos de sua vida, entre 45 e 44 a.C, o perodo marcado por
grande agitao, tanto no mbito pessoal quanto no poltico, exerceu profunda
influncia em seus textos, a que faz referncia em De natura deorum, na narratio do
primeiro livro, como a morte de sua filha Tlia, em 45 a.C e a ascenso de Csar ao
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
26
poder aps a vitria sobre Pompeu, em 48 a.C, fato que conduziu o regime republicano
ao final.
Tantas aflies de carter pessoal deixaram marcas no esprito inquieto de
Ccero que, desde muito jovem, demonstrou interesse pela filosofia e, nessa fase
especificamente, deu nfase temtica filosfica, parecendo cumprir vrios objetivos ao
mesmo tempo, como a busca de consolo pela morte de sua filha, verificadas nas cartas a
tico, que podem ser consideradas as principais fontes sobre os conflitos vividos em
Roma nas ltimas dcadas da vida de Ccero.
Sed me mihi non defuisse tu testis es. Nihil enim de maerore
minuendo scriptum ab ullo est quod ego non domi tuae legerim. Sed omnem
consolationem uincit dolor. Quid etiam feci quod profecto ante me nemo ut
ipse me per litteras consolarer.2 (Carta a tico, XII, 14)
Se me perturbo, tu s testemunha, do que tenha morrido em mim. Na
verdade, nada, que eu tenha lido em tua casa, escrito por algum, diminuiu
minha aflio. Mas a dor vence toda consolao. O que eu fiz para que
ningum pudesse a mim mesmo consolar pelas letras?
Quando Ccero especifica domi tuae, certamente se refere ao perodo de exlio,
em que grande parte do tempo passou na casa de tico, lendo possivelmente filsofos
gregos, o que o conduzia a uma reflexo que no se pode dizer comum em Roma, j que
constantemente estava envolvido na defesa de alguma causa. No entanto, este
distanciamento da agitada vida poltica romana, que gerava, naquele momento, vrias
decepes, associada ambio de produzir um corpus filosfico extenso e de
qualidade, que at aquele momento no havia sido feito em lngua latina, que pudesse
2 A traduo das citaes extradas das obras, referidas na bibliografia, que no esto em portugus so de minha autoria, salvo as especificadas.
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
27
ser comparado s grandes obras gregas. Esta ambio leva o orador a escrever, entre 45
e 44 a.C, algumas de suas principais obras filosficas, como De natura deorum, De
finibus, Tusculanae Disputationes, De officiis.
Distanciado de seus ofcios polticos, marcado por desiluses produzidas pela
situao em que se encontrava Roma e verificando que todos os esforos empregados
no intuito de oferecer melhorias ao Estado, mais especificamente Repblica, que no
mais existia, Ccero resolve dar sua contribuio a Roma de outra maneira, que no
tentar livr-la de conspiraes idealistas de pequenos grupos de aristocratas, mas elevar
a lngua latina ao nvel da grega, com isto exaltar os romanos, atravs da produo de
obras filosficas, o que at aquele momento no havia sido feito, pois os prprios
escritores romanos consideravam a lngua latina privada de termos que pudessem
traduzir com objetividade os conceitos aprendidos dos gregos.
Observando a carncia de uma produo intelectual que pudesse lhe atender as
necessidades, Ccero resolve escrever sobre filosofia, utilizando-se de dois recursos
bsicos no que se refere s lacunas latinas, ora traduzir os termos gregos por perfrases,
ora transcrev-los usando caracteres latinos, porm os explica para que possam ser
entendidos pelos romanos.
nessa atmosfera de tentativas de esclarecimento que o autor observa o quanto
so ambguos os cultos religiosos, as definies de deuses, a interpretao dos auspcios
e todos os atos que se ligavam religio. Esta situao no era verificada apenas em
relao aos latinos, os gregos tambm no haviam explicado objetivamente muitas
questes que envolviam os deuses, que em sua maioria praticavam atitudes dignas dos
seres humanos, como roubos, trapaas, perseguies. Ento, que seriam realmente os
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
28
deuses? Fariam apenas parte do devaneio humano? Poderiam influenciar nas atitudes
dos homens?
Objetivando a discusso destes questionamentos, no com o intuito de explic-
los diretamente, Ccero escreve o seu tratado filosfico que trata de questes referentes
aos deuses, intitulado De natura deorum, em 45 a.C, dois anos antes de sua morte,
perodo em que o autor se inquietava com questes relacionadas s sublimes
preocupaes da alma e com as aflies da velhice, marcada pela presena de uma
morte cada vez mais prxima.
O tratado De natura deorum, juntamente com De inuentione e De fato, configura
os escritos teolgicos ciceronianos em que o autor se dedica apreciao das relaes
entre as divindades e os humanos, sobretudo em questes referentes tradio romana,
calcadas em pilares como pietas, fides e uirtus. Ccero no prope em De natura
deorum dar explicaes objetivas sobre os diversos conceitos usados para caracterizar
os deuses, nem mesmo explicar qual seria a origem dos deuses, como sugere o prprio
ttulo da obra.
No entanto, usando-se um hbil estilo dialtico, prope a exposio das teorias
elaboradas pelos filsofos gregos mais conhecidos, at aquele momento, com o intuito
de confrontar suas proposies, a fim de levar ao leitor o maior nmero de informaes
possvel no que se refere ao pensamento humano a respeito dos deuses.
Ccero retoma conceitos filosficos gregos sobre os deuses, pois naquele perodo
Roma sofria grande influncia cultural da Grcia, alm de a formao do autor ter sido
basicamente realizada de acordo com os ideais gregos. Para que se entenda o
pensamento e as conjecturas intelectuais durante o sculo em que est inserido o autor,
necessrio saber que as das correntes filosficas de maior xito em Roma eram a
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
29
epicurista e a estica, as quais muito j haviam se desvinculado do pensamento grego de
que eram provenientes e, constantemente, sofriam interpretaes de cunho popular e
simplista.
A escola fundada por Epicuro era categoricamente criticada por Ccero devido
ao seu carter ideolgico e materialista, sobretudo no que se refere teoria atmica de
formao do cosmos, o que era visto pelo autor com o mais completo ceticismo, tpico
dos adeptos da Academia, escola filosfica a que estava vinculado e que se
caracterizava por um ponto de vista metodolgico bem mais amplo em relao
flexibilidade terica que o epicurismo e o estoicismo sugeriam.
As variadas correntes de pensamento que so utilizadas pelo autor, em De
natura deorum, apresentam uma tentativa de ele demonstrar que tais correntes se
encontram intimamente relacionadas, mas que, por outro lado, em muitos pontos
divergem completamente. Esta tentativa de vinculao de teorias proposta com o
intuito de motivar uma soluo para uma srie de problemas que envolvem o
julgamento da populao acerca dos seres divinos, porm a expectativa de que as mais
conhecidas teorias propostas pelos mais clebres filsofos anulada, no decorrer do
texto, quando Ccero tenta demonstrar, principalmente, atravs dos personagens que
aquilo que aparentemente entendido como um conceito inquestionvel, na verdade no
passa de mera contradio.
O acadmico Ccero, afirma ngel Escobar (1999, 21), recorre a um variado
repertrio de fontes para a elaborao de tratado filosfico De natura deorum, pois
notrio, no decorrer do texto, que muitos conceitos so levantados pelo autor, alguns
erroneamente, o que conduz ao entendimento de que ele tinha conhecimento terico
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
30
suficiente para levant-lo corretamente, quando preciso, ou distorc-lo objetivando a
exaltao de uma teoria posterior.
Desse modo, Ccero no aceita uma verdade nica e se mostra questionador da
unidade filosfica, em notvel estilo dialtico. Pode-se antecipar a idia de que o autor
no tem por objetivo, com o tratado De natura deorum, conduzir o leitor a uma possvel
verdade, que seria demonstrada no trmino do livro, sobre as questes que envolvem os
deuses. Isto sugerido pelo autor no exordium do primeiro livro, porm esta concepo
desfeita pouco a pouco ao longo do texto.
Ento, qual seria o objetivo de seu tratado? Qual a razo da utilizao do ttulo
De natura deorum, se no haver a explicao para a natureza dos seres divinos? Pode-
se dizer que o autor tem o interesse em demonstrar as mais variadas concepes sobre
os deuses, os cultos que os envolvem, as dspares crenas de diferentes povos e pocas,
sua possvel forma fsica aparente do homem, revelando-se conhecedor dos
fundamentos das principais escolas filosficas o suficiente para us-las em prol de sua
causa, ou seja, a de retomar antigas questes ligadas ao culto religioso que, naquele
momento, ainda exercia grande influncia nas relaes sociais.
Apesar de sua influncia no campo social, a religio romana, especialmente na
poca de Ccero, passava por profundas transformaes, geradas tambm pelas relativas
mudanas no mbito poltico-social, como a importncia do papel do auspicium, que
experimentava uma decomposio relevante e, freqentemente, associava-se aos
interesses polticos vigentes, perdendo gradativamente as caractersticas arcaicas que a
constituam. Sendo, portanto, neste panorama de ansiedade e incertezas, em poca
marcada pelo surgimento de novos cultos e supersties referentes aos deuses, que
escrito seu tratado.
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
31
Em De natura deorum, o autor deixa transparecer a influncia grega recebida
durante sua formao, optando pelo uso da estruturao dialgica para a composio de
seu tratado, o que pode lhe permitir o alcance do objeto desejado sem grandes
dificuldades, ou seja, a produo de uma obra filosfica relevante, apesar de este campo
em lngua latina apresentar-se praticamente intacto. O modelo seguido por Ccero fora
basicamente o dilogo platnico, utilizando-se de personagens contemporneos, que
fazem uso de monlogos extensos para a exposio de suas teorias acerca das
concepes divinas, associando-se a estes monlogos a participao do prprio autor,
que conduz a exposio terica dos personagens.
Ccero estrutura o seu tratado em trs livros, em que se pode observar uma
sucesso de quatro monlogos extensos: o primeiro discurso de Veleio (Gaius Velleius),
adepto da escola de Epicuro, marcado pela tentativa de o personagem enumerar os
ideais epicuristas sobre a questo dos deuses, proposta pelo prprio Ccero no incio do
dilogo. quele discurso se sucede o de Cota (Gaius Aurelius Cotta), partidrio da
Academia, o qual realiza crticas s idias levantadas por Veleio e, em seguida, constri
sua argumentao acerca dos deuses sob a tica acadmica. A estes dois discursos, que
so proferidos no primeiro livro, segue-se o do estico Balbo (Quintus Lucilius Balbus),
que tenta abordar a temtica sugerida munido dos ensinamentos da escola estica, no
decorrer de todo o segundo livro. Retomando seus argumentos, o acadmico Cota
intervm pela segunda vez, no terceiro livro, refutando a argumentao de Balbo,
finalizando o tratado sobre a natureza dos deuses.
Com esta estruturao do dilogo, o autor pretende garantir os interesses
acadmicos, mostrando-se partidrio da Academia, principalmente, por revelar certo
ceticismo em relao temtica abordada, propondo uma discusso que parece, em seu
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
32
incio, tentar esclarecer questes ambguas sobre os deuses, mas que se mostra, ao
trmino do livro, acentuar mais as dvidas vigentes.
Isto ocorre devido prpria estruturao do livro, o autor garante ao acadmico
Cota posio privilegiada para a exposio de seus argumentos, sempre sucede, nunca
sucedido, levando a acreditar que o autor no deseja que o acadmico seja refutado.
Associado posio do discurso de Cota est o espao a ele concedido, que ocupa cerca
de cinqenta por cento da obra, ou seja, mais da metade do primeiro livro e todo o
terceiro livro, que finalizado com os ideais de Ccero, representado pela figura de
Cota.
Quanto organizao do primeiro livro, tomado como corpus da presente
dissertao, procura-se a anlise das partes de que composta sua estrutura,
considerando a Retrica como cincia complementar da filosofia, para que aquela no
seja analisada como objeto meramente formal e desvinculado de seu contexto.
Considerando que o primeiro livro fora estruturado pelo autor em 44 partes,
procurar-se-o quais os possveis motivos que conduziram a dividi-lo desta forma. A
teoria retrica sugerida pelo prprio Ccero, em seus diversos escritos sobre Retrica,
levar luz os mais variados conceitos de oratria, aos quais o fizeram ser considerado
pela crtica o mais nobre orador romano do chamado perodo clssico, que se estende de
81 a.C a 70 a.D, conhecido como a idade de ouro da literatura latina, tanto pela forma
quanto pela substncia, em que durante a primeira metade deste perodo a prosa atingiu
a mxima perfeio.
A teoria sobre a diviso do discurso retrico sugerida ser observada para a
proposta de uma nova estruturao do primeiro livro, em que no se faz uso das 44
partes inicialmente aplicadas no texto original, mas de um nmero bastante reduzido,
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
33
dentre as quais, destacam-se apenas quatro, denominadas por Ccero de exordium,
narratio, confirmatio e confutatio.
Esta proposio est calcada nos aspectos conteudsticos do primeiro livro e na
disposio dos discursos apresentados, o que lhe daria uma melhor disposio para
conduzir quilo que o objetivo inicial da Retrica, ou seja, a persuaso.
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
34
3. Retrica e Elementos Constituintes
Para a sociedade atual, a concepo de retrica bastante se distancia do que
primordialmente este termo designava, muitos a associam a um discurso adornado e em
sua maioria vazio quanto ao significado. Desse modo, preciso estabelecer uma
definio geral, a fim de se obter as partes determinantes da retrica que, em seu sentido
lato, entendida como uma arte discursiva, que pode ser exercida por um indivduo
participante ativamente de uma sociedade. Por outro lado, a retrica, em seu sentido
restrito, pode ser compreendida propriamente como um discurso em que se defende uma
parte interessada, um indivduo, ou parapei/qw, arte de persuadir pouco a pouco, vencer
atravs da persuaso. um sistema de formas de pensamento e de linguagem
elaborados, que est associado aos fins de quem discursa para que se atinja um
determinado objetivo.
As formas de pensamento e de linguagem podem ser reconhecidas, usadas e
nomeadas pelo rtwr, orador por excelncia, em seu discurso, havendo dois atributos
em comum: poder pr disposio dele, primeiramente, diferentes aplicaes e, mesmo
que sejam divergentes, no so completamente arbitrrias, pois o objetivo de um
sistema composto por formas dispor variados subsdios para as mais diversas
aplicaes; segundo, estar disponvel a todo aquele que precise aplicar uma ou mais
formas do sistema, no carecendo de conhec-lo minuciosamente ou de t-lo presente
na conscincia, de modo sistemtico e definido, no ato da aplicao do discurso, muitas
vezes, usado mesmo sem o devido conhecimento.
Deve-se acrescentar que as formas lingsticas e retricas so intermediadas de
bou/lhsij, volio ou inteno da qual se utiliza o orador com contedos que exercem
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
35
efeito sobre o ouvinte, pois so os nicos envolvidos e interessados pela meno
discursiva, especialmente no discurso do uso nico3, ou seja, aquele que proferido
uma nica vez pelo orador numa determinada situao histrica com inteno de
modific-la.
A respeito de tal modo discursivo, Lausberg (2004, 80) menciona que parte
integrante de um de seus trs gneros. Primeiramente, a questo acerca da situao,
quaestio, discutida sem que seja necessrio, para exposio da situao, um discurso
prprio, apenas que este seja apresentado com clareza. Segundo, o discurso de deciso
proferido pelo rbitro da situao, na alterao ou na permanncia daquela, bastantes
vezes, alm do interesse do rbitro, esto ligados ou so atingidos pela situao ainda
outros indivduos, que, freqentemente, dividem-se em partidos, esforando-se para que
a situao no se altere ou adote determinado preceito; por sua vez os partidos dirigem-
se ao rbitro da situao e procuram influenci-lo, usando de parapei/qw, para que se
modifique ou se conserve a situao num sentido favorvel a um determinado partido.
Terceiro, o discurso de deciso proferido pelo rbitro da situao, que pode modific-la
por meio da ao ou atravs da palavra. Sta/sij ou situao pode ser um estado
encontrado numa determinada altura discursiva pelo orador e que diz respeito a si
mesmo ou a um grupo de indivduos, em que se forma um todo em relao ao status,
sendo empregada pelo mesmo com inteno modificadora.
As formas de pensamento e de linguagem, segundo Lausberg (2004, 82), so
acrescidas de contedos importantes conforme a situao, porm o efeito de seu
contedo depende diretamente da inteno do sujeito falante, sendo que, para que seu
teor desempenhe qualquer circunstncia considervel, o ouvinte deve encontrar-se, atual
3 Lausberg considera oposto a esse discurso, o de uso repetido que objetiva manter conscientes a complexidade e a continuidade da ordem social. (2004, 81)
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
36
e efetivamente, em uma situao semelhante do emissor, alm disto aquele tem de
dominar, pelo menos empiricamente, as mesmas formas lingsticas que este, sejam elas
gramaticais ou lexicais, para que o discurso atinja o objetivo pretendido pelo emissor.
A retrica anterior a toda e qualquer histria, afirma Olivier Reboul (2004, 1),
pois no se concebe que os homens no tenham utilizado a linguagem como mtodo
persuasivo desde os primrdios. Apesar disso, pode-se afirmar que est diretamente
ligada tradio grega, sendo uma inveno dos gregos, h( r(htorikh/, adjetivo utilizado
como nome abstrato, correspondendo a h( te/cnh r(htorikh/, que se refere a um
ensinamento distinto, independente dos seus contedos, o qual possibilitava defender
qualquer causa ou tese. te/cnh ou ars, na terminologia latina, pode ser determinada por
uma facultas inerente ao indivduo capaz de comprov-la na prtica, por todos os meios
possveis, o que no entendimento grego denomina-se du/namij, estado de ser que resulta
de uma experincia: xij, objetivando desempenhar importante papel social.
Esse ato pode ser repetitivo e almeja sempre o mrito por excelncia: a virtus,
a)reth/. Esta palavra possui tamanha importncia para o homem da Antigidade Clssica
que, segundo Werner Jaeger (2003, 27), no h em lngua moderna um termo
equivalente exato, talvez nem mesmo uma perfrase resgatasse sua acepo, a qual se
aproxima no apenas do uso puramente moral, mas de uma conduta muito elevada
distinta do homem comum, e associada apenas ao herosmo guerreiro.
Em geral, de acordo com a modalidade de pensamento dos tempos
primitivos, designa por arete a fora e a destreza dos guerreiros ou lutadores
e, acima de tudo, herosmo, considerado no no nosso sentido de ao moral
e separada da fora, mas sim intimamente ligada a ela. (Jaeger, 2003, 27)
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
37
Arete, conceitualmente, na Antigidade usada em seu sentido mais amplo, no
apenas para designar a excelncia humana, mas tambm a superioridade dos deuses;
desse modo, o homem comum no tem arete, que primitivamente designava um valor
objetivo quilo que qualificava, uma fora prpria constitutiva de sua perfeio, a qual
no pode ser dissociada da concepo oratria ciceroniana que em vrias de suas obras4
se esfora para representar o orador perfeito, aquele que na sucesso de um discurso
agrada e deslumbra as mais variadas espcies de ouvintes. No sentido mais restrito
associado oratria, arete ou perfeio de uma realizao artstica consiste no sucesso
obtido pelo efeito pretendido pelo orador, e considerando-se o partidarismo discursivo,
a virtus alcanada atravs do sucesso da persuaso.
O papel social do orador tem fundamental importncia para a cultura clssica,
no se deve confundir o discurso retrico desta poca com qualquer outro de poca
recente, tais afirmaes relacionam-se diretamente com as consideraes de Ccero (De
inuentione, I, 1), em que se examina a origem da chamada eloqncia, no definindo se
esta ars, correspondente te/cnh na terminologia grega; exercitatio, mele/th ou natura,
fu/sij, o que remete a uma remota discusso da Antigidade sobre a origem da retrica,
apesar de esta nascer e se desenrolar por excelentes motivos. Uma tese recorrente no
pensamento ciceroniano a do homem eloqente e virtuoso que se organiza e funda
cidades, primitivamente, da seu grau de importncia.
Ac si uolumus huius rei, quae uocatur eloquentia, siue artis siue
studii siue exercitationis cuiusdam siue facultatis ab natura profectae
considerare principium, reperiemus id ex honestissimis causis natum atque
optimis rationibus profectum.
4 Em Bruto e no Orator, h vrias passagens em que Ccero se vincula definio do que seria um orador ideal.
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
38
Nam fuit quoddam tempus, cum in agris homines passim bestiarum
modo uagabantur et sibi uictu fero vitam propagabant nec ratione animi
quicquam, sed pleraque uiribus corporis administrabant, nondum diuinae
religionis, non humani officii ratio colebatur, nemo nuptias uiderat legitimas,
non certos quisquam aspexerat liberos, non, ius aequabile quid utilitatis
haberet, acceperat. Ita propter errorem atque inscientiam caeca ac temeraria
dominatrix animi cupiditas ad se explendam uiribus corporis abutebatur,
perniciosissimis satellitibus.
Quo tempore quidam magnus uidelicet uir et sapiens cognouit, quae
materia esset et quanta ad maximas res opportunitas in animis inesset
hominum, si quis eam posset elicere et praecipiendo meliorem reddere; qui
dispersos homines in agros et in tectis siluestribus abditos ratione quadam
conpulit unum in locum et congregauit et eos in unam quamque rem inducens
utilem atque honestam. (De inuentione, I, 2)
E por outro lado, se desejamos observar a origem desta coisa, que
denominada eloqncia, ou se a origem da arte, ou do estudo, ou mesmo da
reflexo, de certo modo, ou ainda da fora a partir do princpio dos feitos,
encontr-la-emos desde as causas mais dignas, e por outro lado, o progresso
desde as melhores causas.
Realmente, houve certo tempo em que os homens desordenadamente
vagavam maneira dos animais nos campos e viviam de alimento selvagem,
porm a maior parte servia fora do corpo. Ainda no havia o culto aos
deuses, a relao de respeito mtuo no era respeitada, ningum tinha visto
casamentos legtimos, filhos certos, nem conhecia a justia igualitria dos
proveitos, tampouco a tinha aceitado. Desse modo, entretanto, ao lado do erro
e da ignorncia, o desejo do nimo, senhor cego e audacioso, abusava das
companheiras perniciosas para se satisfazer pela fora fsica.
por isso que, neste tempo, um homem sem dvida superior e sbio
reconheceu se pudesse realiz-la e transmiti-la para instruir da melhor forma,
a qualidade fosse a matria que existiria para grandes feitos. Ele reuniu e
congregou, at certo ponto, os homens dispersos pelos campos e nas selvas
escondidas, atravs do argumento, em um s lugar e por uma atividade
louvvel e digna que induz, inicialmente, ao lado da inexperincia que
exclama.
Para Ccero, a origem daquilo que designado eloqncia quae vocatur
eloquentia confunde-se com a prpria origem do homem, da a dificuldade de uma
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
39
definio exata sobre qual seria o marco inicial da retrica. No entanto, deve-se
observar que surge com o prprio homem, que antes do estabelecimento das cidades,
eram nmades, no tinham lugar definido, homines passim bestiarum modo uagabantur,
e iguais aos animais vagavam pelos campos.
A organizao dos homens confunde-se com a do prprio pensamento,
configurado no orador que, atravs de meios persuasivos, reuniu-os mesmo antes dos
cultos aos deuses, o que demonstra o grau de primitivismo do discurso retrico e a
importncia do orador que foi capaz de organizar os mais ignorantes seres, certamente
ele deve ser considerado magnus uidelicet uir et sapiens, como afirma Ccero.
A organizao da cidade liga-se, de acordo com a Antigidade, descoberta das
qualidades que existiam nos homens e sua capacidade de realizao de grandes feitos,
por aquele dotado de grande fora de eloqncia, nico capaz de coordenar e de instruir
em um mesmo lugar indivduos to diversos e marcados pela falta de organizao, os
quais o escutaram entusiasticamente devido a sua elaborao discursiva. Este preceito
conduz importncia da Retrica Antiga nascida e formada nos sculos V e IV a.C,
como arte capaz de convencer, para o homem da Antigidade Clssica.
De acordo com Dante Tringali (1988, 9), a Retrica Antiga denominada dessa
forma apenas para diferenci-la das outras dela derivadas5, a qual tem suas fontes
primordiais em Aristteles e, tradicionalmente, definida como teoria e prtica do
discurso retrico, que supe um emissor, r(h/twr, o qual pronuncia o texto diante de um
receptor.
No entanto nem todo texto pronunciado diante de um espectador considerado
retrico, pois este tipo discursivo deve ser persuasivo e dialtico. Desse modo, ele trata
5 Vrios tipos de retrica so apresentadas por Dante Tringali (1988,17), dentre elas a Clssica, a Semitica, a Nova e a Retrica das Figuras.
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
40
sempre de uma questo discutvel, controversa e provvel, da receber tal denominao,
entende-se que no deve chegar a um denominador comum, mas a probabilidades, logo
pode ser considerado uma abordagem sobre questes aceitveis.
Formalmente, especifica-se por buscar persuadir a respeito de uma questo
imprecisa, plausvel e discutvel, tendo por diferencial, quando se refere ao discurso de
um modo geral, a finalidade persuasiva. Em conseqncia, tem-se por assimilao a
probabilidade de gerar um outro para que haja um confronto. Isso ocorre em razo de a
matria ser dialtica: um discurso gera um outro em um ato potencial, sendo que este
pode ser imediato, retardado ou ainda ficar em aberto. Desse modo, a Retrica Antiga
tenta explicar os problemas referentes elaborao e efeitos do discurso, tendo
objetivos especficos: instruir a produo de discursos persuasivos estruturados e bem
elaborados.
Segundo Aristteles, h( r(htorikh/ uma espcie de dialtica e no constitui uma
cincia particularmente, fundada em princpios prprios, no sentido restrito do termo,
usa das mesmas formas de faculdade que a dialtica, mesmo quando trata de um assunto
especfico; a tentativa de julgar a retrica ou a dialtica como cincias pode conduzir
falha, ao obscurecimento de sua natureza real, pois estas so apenas faculdades mentais.
(H rhtorik stin ntstrofoj t dialektik
mfterai gr per toiotwn tinn esin koin trpon tin
pntwn st gnwrzein ka odemij pistmhj
fwrismnhj di ka pntej trpon tin metcousin mfon
pntej gr mcri tinj ka xetzein ka pcein lgon ka
pologesqai ka kathgoren gceirosin. (1354 a, 2-6)
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
41
A retrica a outra face da dialtica; pois ambas se ocupam de
questes mais ou menos ligadas ao conhecimento comum e no
correspondem a nenhuma cincia em particular. De fato, todas as pessoas de
alguma maneira participam de uma e de outra, pois todas elas tentam em
certa medida questionar e sustentar um argumento, defender-se ou acusar.6
Observa-se que o termo usado por Aristteles define bem a concepo de
retrica (H r(htorikh/ e)stin a)nti/strofoj. No entanto, Manuel Alexandre Jnior
prefere a traduo de a)nti/strofoj por outra face, o que conduz a um distanciamento do
pensamento aristotlico, pois no h uma especificao do que seria a outra face, que
pode conduzir a um significado diferente do atribudo por Aristteles.
Se a retrica a outra face da dialtica, a retrica seria o argumento inicial ou a
tese, pois a dialtica seria a contra-argumentao, o que no sugere o que foi afirmado
por Aristteles. Desse modo, o termo a)nti/strofoj deve ser entendido com uma opinio
contrria sobre o avesso, uma contrapartida ou mesmo um movimento contrrio, no
sendo necessariamente o prprio argumento inicial.
Esse paralelismo entre retrica e dialtica tambm aceito por Ccero, ao
traduzir o conceito aristotlico por ex altera parte respondere dialecticae, para que haja
uma melhor apreenso da terminologia usada por Aristteles, deve-se ento
compreender a)nti/strofoj pela apreciao grega daquilo que desempenham um
movimento contrrio, ou mesmo, duas espcies de um mesmo gnero, a prova7; dois
modos de prova que afinal se distinguem pela diferena dos meios probatrios que
empregam: um, o silogismo formal completo e a induo geral; o outro, o entimema
formalmente incompleto e o exemplo. 6 As tradues citadas do livro Retrica de Aristteles so de autoria de Manuel Alexandre Jnior (1998).
7 As provas so classificadas por Aristteles (1356a) em artsticas e inartsticas. Estas no so produzidas, podem ser confisses, testemunhos, etc.; aquelas, criadas pelo orador.
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
42
A retrica no apenas semelhante dialtica, mas se contrape a ela, no
pertencendo, desse modo, a nenhum gnero prprio e definido. Mesmo assim no
perodo clssico evidente sua utilidade, uma vez que no tem por finalidade a
persuaso, mas objetiva o discernimento entre os meios persuasivos que devem ser
utilizados com maior pertinncia em cada caso.
Aristteles distingue trs formas de retrica, ou mais propriamente trs gneros
retricos, mostrando as regras da eloqncia judiciria, que expe o carter positivo ou
negativo de uma ao no passado, tendo por finalidade o justo e o injusto; da eloqncia
epidtica, que pe em evidncia o carter nobre ou vil de uma ao presente, tendo o fim
no elogio ou na censura, no belo ou no feio, podendo ser acrescentados, a estes, outros
raciocnios acessrios; da eloqncia deliberativa, a qual procura convencer por adotar
alguma deciso futura, tendo por finalidade o conveniente ou o prejudicial, revelando-se
a recomendao aconselhadora ou dissuasria.
Estin d tj htorikj edh tra tn riqmn tosotoi
gr ka o kroata tn lgwn prcousin ntej. sgkeitai
mn gr k trin lgoj, k te to lgontoj ka per o lgei
ka prj n, ka t tloj prj totn stin, lgw d tn
kroatn.. (1358 a, 36 1358 b, 4)
As espcies de retrica so trs em nmero; pois outras tantas so as
classes de ouvintes dos discursos. Com efeito, o discurso comporta trs
elementos: o orador, o assunto de que fala, e o ouvinte; e o fim do discurso
refere-se a este ltimo, isto , ao ouvinte.
As espcies de retrica citadas por Aristteles centram-se nos trs elementos
essenciais do discurso, daquele que fala, sobre o que se fala e em relao a quem se fala,
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
43
de modo que esses elementos produzem a necessidade da existncia de trs formas de
discursos retricos, dikaniko\n ge/noj, e)pideiktiko\n ge/noj e sumbouleutiko\n ge/noj.
O genus iudiciale ou dikaniko\n ge/noj tem como paradigma o discurso diante de
um tribunal com a finalidade de acusar ou defender, a apreciao feita pelo rbitro da
situao que considera fatos passados relevantes ao momento discursivo presente. Neste
gnero, no s se devem considerar as razes pelas quais se comete uma injustia, a
disposio dos que as cometem e o carter e a disposio daqueles que sofrem, como
tambm se devem considerar o nmero e a quantidade das premissas que constituem os
silogismos.
O genus demonstratiuum ou e)pideiktiko\n ge/noj possui como caso paradigmtico
o louvor e a censura, aquele associado diretamente virtude8, esta a seu contrrio, pois
o referido gnero considera a inteno de alterar a situao, caracterstica fundamental
ao discurso, dada na inteno do orador o qual pretende confirmar determinada situao
como constante. Tal confirmao conseguida atravs da utilizao de determinados
recursos oratrios como o elogio9, o conselho e o encmio10. Aquele um discurso que
apresenta a grandeza de uma virtude, diretamente ligado s aes produzidas, este se
refere s obras e s circunstncias que conduzem s provas. O elogio e o conselho
pertencem a uma espcie semelhante, uma vez que o que se apresenta no conselho,
torna-se encmio mudando-se a forma de expresso.
O genus deliberatiuum ou sumbouleutiko\n ge/noj tem como paradigma o
conselho ou o desaconselho apenas sobre as aes que podem vir a acontecer, o orador
8 Poder de conservar e produzir os bens, mais til aos outros, pois uma faculdade de fazer o bem. 9 Epainoj utilizado em um contexto mais abrangente para designar elogio ou louvor. 10 Egkw/mion mais utilizado no gnero retrico.
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
44
que pretende aconselhar deve tirar suas premissas principalmente de temas11 como
finanas, guerra e paz, defesa nacional, importaes e exportaes, e legislao. A
deliberao possui um fim em vista, segundo Aristteles, pois todo e qualquer
indivduos, estando ou no em conjunto, almeja algum objetivo no que escolhem fazer
ou no que evitam, a este se d o nome de felicidade12, pois a ela esto ligadas todas as
aes que versam sobre os conselhos ou dissuases.
O orador, para atingir os seus fins, dispe de meios que no se submetem
propriamente a falar da retrica, tais como provas materiais, exemplos ou confisses.
No entanto, ele deve saber utilizar os meios tcnicos, estruturando bem seu discurso e
sua argumentao, que bastante importante para que se demonstre ou que se prove,
levando assim convico. nesta ocasio que ele faz uso do entimema e do exemplo.
A retrica no est disposta, normalmente, no domnio do raciocnio especfico
ou de alguma cincia, porm pode recorrer a raciocnios relevantes de uma cincia
particular, sobretudo tica e poltica. Os outros meios tcnicos visam, de uma parte,
levar em conta o estado do ouvinte, sua situao psicolgica, sua idade, a hierarquia
social a que pertence, com o intuito de apresentar a este espectador um julgamento
provisrio e que o conduza a formar uma idia favorvel sobre o carter do orador, e, de
outra parte, provocar no ouvinte a benevolncia da qual o orador necessita.
Um recurso de que o orador se vale em seu discurso a dialtica (dialektikh/),
que pode ser associada a um meio tcnico que permite fazer silogismos a partir de
opinies admissveis sobre um tema proposto, e tambm de no contradizer uma
afirmao que se quer defender. Pode-se definir o quadro formal da dialtica,
11 No que concerne elaborao a materia (filh) pode ser denominada thema (qe/ma). 12 O conceito de felicidade para Aristteles est ligado ao de auto-suficincia pessoal, o alcance de bens internos, os da alma e os do corpo; e a aquisio de bens externos, a nobreza, os amigos, o dinheiro e a honra.
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
45
escolhendo um tema e fazendo com que dois protagonistas se afrontem, geralmente
diante de um outro que poder ser o rbitro da situao.
Um dos oradores prope uma tese, que o segundo se esfora por refutar,
estabelecendo uma tese incompatvel com a proposta pelo primeiro. Caso o argumento
inicial seja positivo, o orador deve refutar, se for negativo, deve-se estabelecer. O meio
usado para a confirmao ou dissuaso o silogismo vlido, caso apenas seja o
controverso se utiliza de raciocnios invlidos. Este um tipo de raciocnio sofstico que
se atribui vitria sobre um ponto particular, no entanto as dedues silogsticas da
dialtica no se apiam em premissas verdadeiras, ao contrrio, em opinies notveis,
pois elas so aceitas pela maior parte dos indivduos ou pela maioria dos filsofos, logo,
no mtodo dialtico, devem-se evitar premissas paradoxais.
Pierre Pellegrin (2002, 21) afirma que a dialtica composta por trs funes: o
exerccio intelectual, as semelhanas com o outro e o conhecimento de carter
filosfico, o qual desenvolve a capacidade de argumentao mesmo na adversidade,
levando a uma aptido em discernir o verdadeiro do falso.
A essas funes se pode acrescentar uma quarta, associada aos primeiros
princpios cientficos, que no se podem afirmar indissolveis ou se provarem
teoricamente, e de que a dialtica tem uma funo examinadora. Faz-se necessrio
colocar prova os princpios das cincias, examinando as idias admissveis a propsito
de seus princpios13, o que confere dialtica um lugar de destaque, e permite-lhe
escapar de uma classificao cientfica, prpria a cada cincia, porm no lhe
conferido o estabelecimento de tais princpios. Efetivamente, no se tem, para
estabelec-los, um processo rigoroso comparvel deduo. O material sobre o qual se
13 A)rch/ epistimologicamente se relaciona com proposies, que servem de premissa ao silogismo.
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
46
deve trabalhar, no conjunto das opinies, deve ser bem fundamentado. O confronto
destes conceitos, sobretudo quando so diferentes ou incompatveis entre si, permite
uma triagem eficaz entre a verdade e o erro.
Outro meio tcnico usado com instrumento retrico o silogismo (sullogismo/j),
consistente no esquema completo da estrutura de pensamentos principais com
pensamentos argumentantes. O silogismo usa de raciocnios estabelecidos numa
assero considerada como vlida a partir de premissas14 assumidas como verdadeiras
ou de natureza implicativa, uma afirmao que necessita de um vnculo lgico entre as
premissas e a concluso. Especificamente, o silogismo um raciocnio, ele parte de
duas proposies, denominadas premissas, que tm um termo em comum, chamado de
meio-termo, e de uma proposio chamada concluso, em que esse meio-termo
desaparece. A primeira premissa chama-se maior; a segunda, menor.
O silogismo consiste, conforme Lausberg (2004, 88), na apresentao prvia da
finalidade a provar (propositio), como Scrates mortal; e nas frases colocadas antes
da concluso, denominadas premissas ou rationes. A premissa maior, que muitas
vezes introduzida por uma partcula conclusiva, a prova, cujo sujeito maior no seu
grau de amplitude que o sujeito da propositio, como Todos os homens so mortais. A
premissa menor, que muitas vezes introduzida por uma partcula adversativa, uma
prova, a qual mostra o sujeito mais limitado no seu grau de amplitude que o sujeito da
premissa maior, como Scrates um homem.
Por sua vez, a concluso (conclusio) acrescenta proposio o arremate final
para as oraes condicionais colocadas anteriormente, toma, preferencialmente, a forma
14 Rationes ou provas.
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
47
de um perodo, como Scrates mortal. Desse modo, tem-se a estruturao do
silogismo, que apresenta todas as partes, sucessivamente:
Se todos os homens so mortais
e se Scrates um homem,
ento Scrates mortal.
Esses silogismos podem ser divididos, segundo Pierre Pellegrin (2002, 52), em
vlidos e no vlidos, este ltimo pode conter uma falha de raciocnio proveniente do
seguinte esquema: todo A B, todo C B, logo todo A ser C invlido, pois no existe
uma ligao direta entre estes termos, que precisam do intermdio de B para que se
realize a unio indireta, sendo, portanto, falha e pouco persuasiva uma concluso gerada
sem o auxlio do termo intermedirio.
H tambm os perfeitos e os imperfeitos, este ltimo pode precisar de
proposies adicionais, que resultam, certamente, de proposies situadas, mas que no
figuram explicitamente nas premissas, desse modo toda proposio um discurso que
afirma ou nega algo ou alguma coisa, podendo ser universal, caso afirme ou negue
alguma coisa de um sujeito universal, por exemplo, Todos os homens so mortais.
O silogismo pode ser tambm particular, caso o sujeito seja tomado
particularmente, por exemplo, certos animais so quadrpedes ou indefinido, se a
atribuio ou a no atribuio se faa sem a indicao quer da universalidade quer da
particularidade, como se verifica, por exemplo, na possibilidade de afirmao de que o
prazer no um bem.
O silogismo pode ser estruturado em forma reduzida e no apresentar
todas as partes constituintes, sendo denominado entimema (e)nqu/mhma):
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
48
[...] n toj nqummasi t sunestrammnwj ka
ntikeimnwj epen fanetai nqmhma ( gr toiath lxij
cra stn nqummatoj) ka oike t toioton enai par
t scma tj lxewj. sti d ej t t lxei sullogistikj
lgein crsimon t sullogismn polln keflaia lgein, ti
toj mn swse, toj d' troij timrhse, toj d' Ellhnaj
leuqrwse kaston mn gr totwn k llwn pedecqh,
sunteqntwn d fanetai ka k totwn ti ggnesqai. (1401 a,
5-13)
No caso dos entimemas, expressar uma coisa de forma concisa e
antittica parecer ser um entimema (pois tal forma de expresso domnio do
entimema) e parece que tal processo deriva da prpria forma de expresso.
Para se exprimir de maneira semelhante do silogismo, til enunciar os
pontos capitais de muitos silogismos. Por exemplo: salvou uns, castigou
outros, libertou os Gregos. Ora, cada um destes pontos j estava demonstrado
por outros, mas quando se rene tem-se a impresso de que deles resulta
alguma coisa.
Tal reduo pode consistir na diminuio de amplitude, neste caso tem-se a
conservao do pensamento principal e a limitao das rationes ou a supresso do
pensamento principal do silogismo, fazendo do e)nqu/mhma uma nfase de pensamento.15
Diversas vezes, a reduo se configura na carncia da acuidade de provas ou mesmo na
volatilizao da funo da prova. No entanto, para que seja considerado como
e)nqu/mhma, importante que haja sua demonstrao.
15 Ratiotinatio uma nfase de pensamento, em que, a partir de circunstncias simultneas, podem-se tirar concluses. Muitas vezes, esconde-se a expresso atrs de uma aparentemente inofensiva.
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
49
3.1. A arte retrica e seus elementos discursivos
O orador necessita no apenas de conhecimento em sua prpria arte, mas
importante que se expresse dentro de seus princpios, sendo, pois, seu papel discorrer
sobre as coisas que o costume e as leis o instruram. Desse modo, deve conhecer as
partes fundamentais Retrica para que se alcance o consentimento do ouvinte at onde
for possvel:
Oportet igitur esse in oratore inuentionem, dispositionem,
elocutionem, memoriam, pronuntiationem. Inuentio est excogitatio rerum
uerarum aut ueri similium, quae causam probabilem reddant. Dispositio est
ordo et distributio rerum, quae demonstrat, quid quibus locis sit
conlocandum. Elocutio est idoneorum uerborum et sententiarum ad
inuentionem adcommodatio. Memoria est firma animi rerum et uerborum et
dispositionis perceptio. Pronuntiatio est uocis, uultus, gestus moderatio cum
uenustate. (Retrica a Hernio, I, 3)
O orador deve ter desse modo inveno, disposio, elocuo,
memria, pronunciao. Inveno a imaginao de coisas verdadeiras ou
verdades similares, que tornem a causa plausvel. Disposio a ordem e a
distribuio das coisas, que demonstra, o que deve ser colocado em cada
lugar. Elocuo a ordem de acomodaes vocabulares e de sentenas
cmodas inveno. Memria a firme percepo, no nimo, de coisas tanto
de palavras quanto de disposies. Pronunciao a moderao com
elegncia de voz, semblante e gesto.
Para que o orador consiga manter com mais facilidade a ateno do ouvinte,
tanto Ccero (De inuentione, I, 9) quanto o autor de Retrica a Hernio concordam em
dizer que o orador deve se utilizar dos princpios da arte retrica, inuentio, dispositio,
ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO
50
elocutio, memoria e pronuntiatio, pois neles se encontraro os artifcios necessrios a
cada momento do discurso.
Na inuentio, encontram-se pensamentos adequados matria conforme o
interesse do orador, permitindo um maior grau de credibilidade, mesmo em situao
adversa. Segundo Lausberg, a inuentio no compreendida como processo de criao,
mas como recordao de pensamentos aptos para o discurso, os quais j existem na
semi-conscincia do orador e precisam ser despertados por tcnica mnemnica e
mantidos conscientes por meio de exercitao.
A dispositio ou oi)konomi/a constitui-se da ordenao partidria favorvel atravs
da escolha dos pensamen