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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
A PRAÇA É DO POVO — CULTURA POLÍTICA, TRANSIÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICAS NO BRASIL (1979 - 1989) — O CASO DE GOIÁS.
Eduardo Julich Leite de Oliveira Orientador Prof. Francisco Chagas Evangelista Rabelo
Goiânia 2002
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
A PRAÇA É DO POVO — CULTURA POLÍTICA, TRANSIÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICAS NO BRASIL (1979 - 1989) — O CASO DE GOIÁS.
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Sociologia da Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal de Goiás, para obtenção do título de Mestre em Sociologia. Área de concentração: Sociedade e Região. Orientador: Prof. Dr. Francisco C. E. Rabelo.
Goiânia
2002
EDUARDO JULICH LEITE DE OLIVEIRA
A PRAÇA É DO POVO — CULTURA POLÍTICA, TRANSIÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICAS NO BRASIL (1979 - 1989) — O CASO DE GOIÁS.
Dissertação defendida e aprovada em ________ de ____ de ________,
pela Banca Examinadora constituída pelos professores.
___________________________________________________________
Prof. Dr.Francisco Rabelo Evangelista
Presidente da banca
____________________________________________________________
Prof. Dr.
___________________________________________________________
Prof. Dr.
Dedico a Deus autor e consumador da vida. Ao meu pai Francisco José, amigo, incentivador, exemplo que foi grande responsável por minha formação. A minha mãe in memoriam pela vida.
Ao professor e orientador dessa dissertação, Dr. Francisco Chagas Evangelista Rabelo, pela confiança e dedicação. Ao Mestrado em Sociologia da UFG, e em especial ao Dr. Pedro Célio Alves Borges, pela credibilidade. Às inteligentes correções e acompanhamento da Prof. Darci Costa, que com seriedade, leu todos os manuscritos. Aos amigos, em especial a Lucimárcia. Aos parentes que contribuíram com ricas reflexões. Ao Departamento de Ciências Sociais e especialmente aos professores Dr. Francisco Chagas Evangelista Rabelo e. Pela contribuição nas correções a À minha esposa companheira Marta nesta trajetória. E aos meus filhos Francisco José Neto e Talita.
SUMÁRIO APRESENTAÇÃO CAPITULO 1 CULTURA POLÍTICA DEMOCRÁTICA E TRANSIÇÃO POLÍTICA
NO BRASIL 12
1.1 A cultura democrática em Mannheim 12 1.2 Cultura política em Almond e Verba 15 1. 3 A formulação do problema 23 1. 3. 1 Cultura política e a construção da democracia no Brasil 23 1. 3. 2 Mudança estrutural e pluralidade política 23 1. 3. 3 Democracia liberal e a questão social 27 1. 3. 4 A convivência de antigos e novos atores 29 1. 3. 5 Democracia e a hipertrofia dos órgãos de segurança pública x pressão das crescentes demandas sociais 31 1. 3. 6 O papel dos fatores psicológicos 33 1. 3. 7 Democracia e corrupção 35 1. 3. 8 Democracia e as esquerdas 36 1. 3. 9 Novas categorias de análise 37 2. O problema da pesquisa 41 3. Considerações metodológicas 42 CAPITULO 2 A TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA EM GOIÁS 43 CAPITULO 3 IMPASSES DO PROCESSO DE TRANSIÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICAS EM GOIÁS DEMOCRACIA NO BRASIL 96 CONSIDERAÇÕES FINAIS 112 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 119
SIGLAS UTILIZADAS
AI-5 Ato Institucional-5
ARENA Aliança Renovadora Nacional
CEDOC Central de Documentação
FMI Fundo Monetário Internacional
MDB Movimento Democrático Brasileiro
PCB Partido Comunista Brasileiro
PC do B Partido Comunista do Brasil
PDC Partido Democrata Cristão
PDS Partido Democrático Social
PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PRN Partido da Reconstrução Nacional
PSD Partido Social Democrático
PSDB Partido da Social Democracia Brasileira
PSP Partido Social Progressista
PT Partido dos Trabalhadores
UDN União Democrática Nacional
URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
RESUMO
Essa dissertação trata de um período específico da transição para a democracia no Brasil, com o enfoque regional, realiza uma análise a partir do comício pelas Diretas Já, na Praça Cívica em Goiânia no ano de 1984. A preocupação foi realizar uma análise do discurso por intermédio de momentos importantes, seja para a vida política nacional, seja para o retorno democrático no estado de Goiás. Dentre os aspectos próprios do processo político goiano, identificamos alguns que são também fatos políticos nacionais. A vida política nacional foi marcada por um longo processo de abertura e distensão democráticas. A análise da construção democrática ficou restrita aos anos que são compreendidos entre os anos de 1979 e 1989. A escolha do contexto político tomando-se por base os comícios das Diretas Já, permitiu realizar uma reconstituição do modelo democrático adotado no Brasil. Escolhemos os pronunciamentos de algumas personalidades políticas importantes no estado de Goiás que se constituíram em nosso material de análise. Para tanto, utilizamo-nos de dois modelos teóricos: a idéia de democracia delegativa de Guilhermo O’Donnel e de instituições mistas de Francisco C. Weffort. As análises finais permitiram verificar que o retorno democrático possibilitou a formação de um mercado político, que inclui elementos que estavam à margem da vida política oficial no Brasil. A nossa pesquisa foi exclusivamente documental, utilizamo-nos dos arquivos do CEDOC das Organizações Jaime Câmara, compreendendo somente pesquisa nos jornais disponíveis nesta empresa.
ABSTRACT
This dissertation deals with a specific period of the transition from the authoritarian rule to democracy in Brazil. The analysis, with a regional focus, starts in the year of 1984 during the political rally Diretas Já performed at the Praça Cívica in Goiânia. The main concern was to make a discourse analysis throughout important moments, considering either national political events or the reestablishment of democracy in the state of Goiás. Among peculiar aspects of the political process in Goiás, some of them were also identified as national political facts. An extended process of political relaxation and democratic decompression marked national politics. The analysis of democratic considered the 1979-1989 period. The choice of a political context based on the rallies of the Diretas Já movement allowed the reconstitution of the democratic model adopted in Brazil. The speeches of some of the most important political agents from the State of Goiás constituted the research material. Two theoretical models were used: the Idea of delegative democracy developed by Guilhermo O’Donnel and the concept of mixed institutions conceived by Francisco C. Weffort. The final analysis led to the conclusion that the reestablishment of democratic rule allowed the formation of a political market in which elements that had been kept at the margins of official politics in Brazil were included. The empirical research was based exclusively on secondary sources. Newspapers available in the Organizações Jaime Câmara’s CEDOC archives were used as research material.
APRESENTAÇÃO
Esta dissertação tem como objetivo analisar a transição e a consolidação
da democracia no Brasil, no período de 1979 a 1989, sob o enfoque da cultura política
como será exposto no referencial teórico. Escolhemos esse período por tratar-se,
primeiramente, do ano em que foi votada a lei da anistia política e da reforma
partidária que serviu de preparatório para as eleições diretas para governadores de
Estado. Em segundo lugar, por tratar-se da definitiva implantação do Estado de Direito
com o retorno das eleições para Presidente da República.
Transição para a democracia pode ser entendida como o período da
restauração completa das instituições democráticas que é concluído com o término dos
trabalhos do Congresso Constituinte (1988) e o retorno das eleições para Presidente da
República (1989).
Porém a transição e a consolidação democráticas não se referem apenas ao
plano das organizações de uma democracia importante de fato, sem as quais é
inconcebível a prática de qualquer tipo de democracia ou de alguma manifestação de
práticas democráticas em maior ou menor grau. Trata-se, em primeiro lugar, de pensar
a cultura democrática, que deve orientar a conformação da vida democrática, ou seja,
como prática social mais ampla.
O estudo da cultura política e de seus reflexos no processo de transição e
consolidação democráticas pode contribuir muito para o entendimento das relações
políticas e de poder no Brasil e, especificamente, em Goiás. Para tanto, os referenciais
teóricos de autores como Mannheim (1974), Almond e Verba (1992), que se
preocuparam em discutir os conceitos fundamentais servem de base para a
investigação, assim como estudiosos que discutiram ou rediscutiram o processo
político brasileiro — O’Donnell (1991), Lamounier (1992) e Weffort (1992).
A abordagem realizada inicia-se com a campanha nacional pelas Diretas
Já em 1984. A escolha desse momento foi feita por tratar-se de uma ocasião central no
processo político de instalação das instituições democráticas no Brasil. Existem outros
motivos, e um deles sem dúvida foi o palco político que o movimento pelas Diretas
significou. As análises dos discursos da Praça Cívica e também da Praça do
Bandeirantes serviram de base para montar o tipo de democracia com a qual a
sociedade passou a conviver.
Este trabalho não foi realizado com o intuito de construir discussões
teóricas mais amplas, mas apenas caracterizar Goiás com base nos fatos políticos
selecionados em nossa pesquisa e nos pronunciamentos de suas lideranças mais
importantes, notadamente, Iris Rezende Machado, os quais serviram de material
empírico para a caracterização em Goiás (ou com base em Goiás) do modelo de
democracia que então era constituída.
O primeiro capítulo apresenta a idéia que nos orientou, desde Mannheim
(1974), que nos serve de referencial teórico, para demonstrar o contraste histórico e
cultural que há entre a Europa, onde se desenvolve uma cultura política democrática e
os países latino-americanos (colônias de exploração), que incorporaram à sua história
as instituições burocráticas da democracia, até Francisco Weffort, que, além de
representar outro referencial teórico, fornece também elementos para caracterizar o
populismo nesta pesquisa. Ao analisarmos um dos políticos locais, Iris Rezende
Machado, tivemos que introduzir, brevemente um texto com essa referência
(conceitual), além do que esta análise apresenta também elementos históricos e sociais
para o desenvolvimento do fenômeno político que constituiu o populismo.
O segundo capítulo diz respeito quase que exclusivamente ao material da
pesquisa, com base em que procuramos construir um eixo de análise que teve em vista
os conceitos de cultura política, núcleo central desta investigação, de instituições
mistas, formulados por Weffort (1992), e de democracia delegativa, já bastante
difundidos pelos escritos de O’Donnell (1991).
No terceiro capítulo, tentaremos ampliar a discussão acerca de alguns
aspectos de natureza teórica apresentados no capítulo primeiro e que não haviam sido
ainda trabalhados, e que se impuseram, tendo em vista o material da pesquisa
analisado no capítulo segundo. Além disso, introduzimos, nas considerações finais, um
material de pesquisa a mais, que nos permitiu traçar, de maneira mais completa, as
interfaces do problema de pesquisa e, assim, incluir um aspecto importante da
democracia delegativa, que é o retorno à vida política oficial de muitos políticos, que
se tornou condição necessária para satisfazer a uma demanda política do mercado do
voto.
A escolha do período das Diretas Já (e de manifestação ocorrida dias
antes, na Praça do Bandeirantes) possibilitou a introdução do conceito antropológico
que é o rito de passagem1, juntamente com a análise de anos anteriores (período das
eleições diretas para governadores de estado), e assim caracterizar a democracia em
construção no Brasil.
A conclusão do trabalho no capítulo terceiro permitiu a construção de uma
análise entre o nacional (para o qual o conceito de democracia delegativa e de regimes
mistos foram elaborados) e o regional em Goiás.
Esperamos que este estudo sirva como material de análise e de reflexão
sobre o tema em questão, constituindo-se em mais um trabalho interpretativo do
período analisado.
1 A idéia de rito de passagem é entendida, pelos antropólogos, como complexo ritual associado a modificações importantes no status pessoal, como nascimento, adolescência e morte. Neste trabalho, será usada para caracterizar o período de transição marcado pela campanha das Diretas Já (E. Adamson Hoebel e Everett L. Frost, 1976).
CAPÍTULO I
Cultura política democrática e transição política no Brasil
1.1 A cultura democrática em Mannheim
A concepção iluminista da democracia baseia-se nos princípios de
liberdade, igualdade e fraternidade. Esses pressupostos tornaram-se caros para o
pensamento político ocidental, mas também introduziram valores no senso comum.
Na realidade, a idéia de democracia está diretamente associada ao
rompimento de direitos apriorísticos ou de nascimento, do sangue azul, de uma elite
aristocrática. Com o fim das últimas instituições feudais da civilização ocidental,
ocorrido com a Revolução Francesa, se estabeleceu o pensamento de que todas as
pessoas são iguais em essência, o que não quer dizer que todos possuímos as mesmas
qualidades ou capacidades, e sim que não há um grupo, uma classe, uma elite que seja
determinada a ser superior, como no caso de governos reais, sociedades divididas em
castas em que o sangue é determinante e que por isso tenha o direito natural de
governar ou mesmo que seja essa casta escolhida por um deus com o perpétuo direito
de governo. A essa igualdade, Mannheim denomina de primeiro princípio
fundamental da democracia ou do pensamento democrático, (1974).
O mesmo autor auxilia na compreensão de um segundo princípio
fundamental da democracia, imediatamente subordinada ao primeiro: o
reconhecimento da autonomia do indivíduo, do ego vital. Segundo Mannheim (1974),
em sociedades pré-democráticas, as decisões são tomadas por um pequeno grupo (o
grupo sangue azul) que determina a ação social da maioria, portanto, sem lugar para
manifestações da individualidade. Por isso, o segundo princípio encontra-se
diretamente subordinado ao primeiro; se há um grupo de eleitos que pode decidir,
posto que é melhor, todos devem entregar suas ações às deliberações superiores.
Por outro lado, se há igualdade ontológica de todos os seres humanos, já
não existe o direito natural de casta e nem de estamentos, portanto, as decisões
tomadas verticalmente deixam de existir, liberando os indivíduos e a individualidade
de cada um, podendo, agora, cada um decidir por ações que antes não eram possíveis
nem imagináveis.
Ora, isso conduz a uma terceira proposição ou princípio fundamental
básico, pois não existe mais a legitimidade de grupos sociais específicos para
governar. O indivíduo existia, anteriormente em seu corpo biológico, como
trabalhador, serviçal, etc., porém não existia como algo pensado em essência, como
alguém com direitos de decisão e ação. Ao existir legalmente ou de fato o indivíduo
pode passar a intervir em seu futuro. Existe aí uma lacuna de poder e de comando, que
coloca a questão: a quem pertence agora o direito de governar?
O terceiro princípio fundamental que caracteriza a democracia é o controle
dos governantes pelo voto (Mannheim, 1974). Inicialmente, os governantes são eleitos
e, logo em seguida, controlados pelo mesmo dispositivo legal (o voto) para que não
excedam à razão pela qual foram escolhidos, o que é mais claro no regime
parlamentarista, no qual se precisa sempre da maioria para se decidir e agir.
A existência, então, de elites na democracia ou as elites democráticas não
pressupõe superioridade ontológica ou superioridade de alguns seres sobre outros,
mas a capacitação técnica legal e política pela qual alguns indivíduos são escolhidos
(eleitos) para cumprirem, por determinado tempo, determinadas funções estatuídas.
Essa determinação legal funciona sempre e melhor em locais onde a cultura política
possui, em si, elementos fortemente arraigados da cultura democrática, no caso, então,
a presença e valorização da democracia no interior do meio social e especificamente
político, o que introduz o conceito de democracias ou de níveis de democratização
como poderemos ver mais adiante.
Quando os homens são ontologicamente iguais, há uma orientação
horizontal da essência humana. A introdução do conceito de igualdade ontológica do
indivíduo permite que cada um, livre de sua casta ou de seu estrato social, aja de
acordo com seu potencial individual, o que conduz a uma diferenciação pela
capacitação. Isto funciona sempre melhor, quando se garantem oportunidades iguais
de competição aos indivíduos, levando esse ou aquele a participar das elites sociais, no
caso, as elites políticas, que são controladas legalmente por mandatos eletivos e por
regras que determinam como se deve dar o jogo político, e também regras que devem
controlar o exercício político do poder pela elite que o conquistou. Deve-se apenas ter
em mente os determinantes históricos e culturais de cada sociedade.
O Brasil é um país que esteve à margem das revoluções sociais ocorridas
na Europa nos séculos XVIII e XIX, portanto, sem sofrer grandes influências das
idéias que conduziram às transformações sociais da época. Manteve uma estrutura
social agrária até o inicio do século XX. Em decorrência a cultura democrática teve
maior dificuldade de penetração seja na população, seja nas elites, embora que quando
se fala em democracia, se tenha em mente a melhoria das condições gerais de vida,
para fazer jus aos princípios do liberalismo econômico e político. Talvez não seja o
caso da não-aceitação total dos pressupostos democráticos mas de uma aceitação
regulada e controlada, desde que esses valores não ameacem a herança autoritária
presente na vida política brasileira, advinda de sua formação histórica essencialmente
agrária até início do século XX. Temos em mente, com Mannheim, que o
desenvolvimento da democracia é fruto do desenvolvimento cultural e social dos
povos da Europa Ocidental e mais especificamente dos anglo-saxões (Inglaterra, nas
Américas, os Estados Unidos — EUA — são herdeiros diretos dessa forma de
democracia). O movimento de libertação dos EUA, além de ser o primeiro do
continente americano, leva a característica não somente de revelar grandes
personalidades, mas de construir valores socialmente aceitos também pelas elites
políticas, e de repartir esses valores com a população da recém criada nação, o que
aproximou a população e as elites pelo do ideal democrático, citado por Mannheim.
Essa situação criou em todos os povos americanos e, posteriormente, nas novas nações
do continente, uma perspectiva de democracia com ampla participação popular, o que
no imaginário desses povos representam uma modificação do conteúdo autoritário.
Essa nova cultura, porém, não representa a história dos povos latino-americanos,
constituídos como colônias de exploração, e em decorrência, uma formação social de
distanciamento entre as elites e o restante da população, daí seu caráter autoritário. As
elites locais, nesses países, faziam anteriormente a ligação entre as colônias e as
metrópoles, uma condição de gerenciamento social que as destacava do restante da
população, levando-as a participar de uma cultura diferente da local, pois se sentiam
mais proximamente ligadas à metrópole. De maneira geral, há uma formação social,
política e econômica que não corresponde aos ideais de igualdade, liberdade e
fraternidade, criados no senso comum dessas novas nações, o que não significa que
esse ideal não tenha um forte peso valorativo para essas populações.
Especificamente no Brasil no século XX, ainda durante a Primeira
República, ocorreu o desenvolvimento do capitalismo industrial, com a existência de
um operariado com suas demandas que desencadeiaram as primeiras greves. Nesse
momento, existia já de, forma mais clara, alguma mudança na estruturação da
sociedade e a possibilidade de concretização do ideário democrático. Havia, então,
uma sociedade mais plural (não somente agrária), porém com demandas para as quais
não estava ainda acostumada. Portanto, os conflitos decisórios (expressão de
Mannheim) gerados no meio dessa sociedade ameaçavam o statu quo da época.
Considera-se, aqui, não a possibilidade da existência de uma democracia mais
desenvolvida, mas um vislumbre democrático possibilitado pela ocorrência do
capitalismo industrial, como já vimos. Este vislumbre possibilitou a ocorrência no
Brasil do primeiro período de autonegação democrática (expressão de Mannheim).
1.2 Cultura política em Almond e Verba
Iniciaremos nossa abordagem sobre a cultura política com o clássico
estudo de Almond e Verba, A cultura política (1992). Nessa obra, os autores não
apenas discutem as possibilidades do desenvolvimento da cultura política democrática
em países onde a democracia é uma realidade política recente, mas realizam
especialmente um estudo comparativo entre alguns países: EUA, Inglaterra, Itália e
México. Das análises realizadas por estes autores alguns aspectos são importantes
como: tradição e renovação política bem combinados e os aspectos cognitivo, afetivo e
valorativo que nos servem como instrumentos de análise.
A cultura cívica é um conceito oferecido por esses autores baseado no
entendimento de que uma sociedade democrática se estrutura na composição (é uma
cultura política mista) de três tipos culturais distintos: o primeiro é o da cultura
paroquial, o segundo tipo da cultura política de sujeição, e o terceiro da cultura de
participação.
O tipo paroquial caracteriza-se pela não-distinção das instituições
políticas, econômicas e religiosas, já o tipo cultural de sujeição é caracterizado pelo
interesse que os membros de uma sociedade dão ao aspecto do sistema político, mais
propriamente aos aspectos de output, de saída de um sistema, na prática do aparelho
administrativo incumbido da execução das decisões. Considerando os dois primeiros
tipos que compõem um tipo cultural tradicional, ao caráter tradicional une-se ao
terceiro tipo de participação (essa cultura permite que cada membro participe da vida
política), compondo uma cultura política de sociedade complexa, que são formadas
por diversos grupos e subgrupos, subjetivos (com interesses e visões sociais muito
próprios) que possuem suas culturas ou subculturas e se articulam entre elas. Esta
articulação desenvolve-se no tempo, e o choque entre elas nunca é suficiente para um
rompimento entre seus componentes (essa análise baseia-se na história da Inglaterra).
Dessa composição, desenvolve-se uma cultura cívica (cultura democrática).
Este conceito é útil pois permite perceber a sociedade pela complexidade e
diversidade. Sugere que se deve perceber a existência e a composição de fatores e
condicionantes mais ou menos tradicionais, mais ou menos democráticos. A história
do Brasil sugere que se devem buscar elementos mistos entre tradicionais e modernos
no país, durante o período de transição e consolidação democráticas, para verificar o
desenvolvimento de um tipo específico de democracia e do processo de
democratização.
Um outro aspecto da obra de Almond e Verba (1992) trata do cognitivo,
afetivo, e valorativo, seja do ponto de vista do indivíduo ou dos grupos que compõem
uma sociedade, e suas ações ou relações sociais obedecem a critérios sociais
estabelecidos por sua formação histórica e cultural.
A forma como um indivíduo ou um grupo de indivíduos percebe o mundo
passa pelas representações sociais que lhe são significativas, o que significa que um
determinado grupo social é composto por indivíduos que possuem uma concepção
(cognição), afetividade e relação de valores semelhantes ao mundo social que os cerca
e também dos objetos sociais2 com os quais se relacionam. Essa forma de relacionar-se
com o mundo social define as ações do grupo na vida política. Queremos esclarecer
que a sociedade oferece um menu (possibilidades socialmente dadas) de
representações sociais com o qual os diversos grupos que compõem a sociedade (ou
grupos que compõem subculturas) formam um padrão de ação. Dessa forma, uma
sociedade tende a ser mais aberta (democrática) ou mais tradicional (em relação à
cultura paroquial ou de sujeição). Assim, os aspectos psicológicos do indivíduo que
repercutem nas ações do grupo a que pertence estão subordinados às representações
sociais.
Aspectos recentes da vida nacional, (elementos recentes para o momento
da transição), podem ser o resultado da combinação de elementos conservadores e
modernos da sociedade brasileira. O conservadorismo resulta da estrutura social
brasileira e os modernos desenvolvem-se a com o crescimento dos centros urbanos, o
que não significa que o desenvolvimento social ocorra de forma espontânea (não-
controlada) entre os elementos tradicionais e modernos. A nova democracia resultante
do período de redemocratização (1979-1989) deverá ser analisada e percebida
baseando-se nos textos que fornecem o seu conteúdo.
Retomando os objetivos sociais interessam-nos evidentemente, os objetos
sociais da política. Novamente, utilizamos os mesmos autores já referenciados. Em
relação aos objetos políticos, Almond e Verba propõem:
Al tratar los elementos componentes de un sistema político, distinguimos, en primer lugar, tres amplias categorías de objetos: 1) roles o estructuras específicas, tales como cuerpos legislativos, ejecutivos o burocráticos: 2) titulares de dichos roles, como los son monarcas, legisladores y funcionarios,3)principios de gobierno, decisiones o imposiones de decisiones públicas y específicas (Almond e Verba, 1992, p. 180-181).
Estas estruturas estão conectadas com:
al proceso político (input) o al proceso administrativo (output). Por proceso político entendemos la corriente de demandas que va de la sociedad al sistema político y la conversión de dichas demandas en
2 Objetos sociais referem-se, neste trabalho, aos órgãos sociais que compõem o sistema social e com os quais os indivíduos se relacionam, com base nas representações sociais que tem desses organismos do ponto de vista cognitivo, valorativo e afetivo.
principios gubernativos de autoridad. Algunas de las estructuras incluidas de un modo predominante en el proceso político son los partidos políticos, los grupos de intereses y los medios de comunicación. Por proceso administrativos outputs entendemos aquel mediante ele cual son aplicados o impuestos los principios de autoridad del gobierno. Las estruturas predominantemente implicadas en este proceso incluirían las burocracias yu los tribunales de justicia (Almond e Verba, 1992, p. 181).
Os autores também afirmam que a cultura política de uma nação consiste
en la particular distribución entre sus miembros de las pautas de orientación hacia
objetos políticos (1992). A orientação refere-se aos aspectos internalizados entre
objetos e as suas respectivas relações. Almond e Verba (1992) incluem a orientação
cognitiva, referindo-se a conhecimentos e a crenças acerca do sistema político, dos
papéis que devem ser representados pelas instituições políticas e sua relação com o
público. Também incluem a orientação afetiva, que diz respeito aos sentimentos sobre
o sistema político e suas funções, e, ainda, a orientação valorativa, referindo-se aos
juízos e a opiniões sobre objetos políticos.
Os elementos de análise retirados de Almond e Verba permitem-nos
estabelecer a relação que os indivíduos pertencentes a grupos sociais específicos (seja
de classe social, seja por ocupação, ou como representantes classistas), mantêm com
os objetos políticos. Ajudam também na análise de como o exercício dos inputs e
outputs são realizados e a compreensão de elementos tradicionais da política
brasileira: personalismo, patrimonialismo e clientelismo, por exemplo. Assim, uma
relação clientelística consiste basicamente de apadrinhamento entre quem oferece um
bem político e alguém que dele necessita (Carvalho, 1997). Esta associação inclui uma
fidelidade, uma adesão, não às propostas políticas mas às necessidades. Existe uma
relação de dependência de favores e não de observância a direitos estabelecidos
legalmente. A relação é pessoal entre padrinho e apadrinhado e não por intermédio da
regulamentação e acontece em uma cultura política marcadamente patrimonialista.
Entendemos o patrimonialismo como uma política tradicional (Weber,
1994). O conceito weberiano de patrimonialismo, na forma que o entendemos e o
empregamos, aproxima-se ou está contido do tipo paroquial de Almond e Verba, já
que o primeiro não distingue as instituições políticas, econômicas e religiosas (esferas,
em um sentido weberiano).
Com esses fundamentos, conceituamos política tradicional como a não-
distinção ou separação do público pelo privado em que um indivíduo ou partido3 se
apropria do público criando uma relação de dependência (apropriados expropriados).
Um elemento da cultura tradicional é o personalismo.
Tendência a estabelecer vínculos de pessoa a pessoa (...) a família patriarcal teria fornecido os modelos de cultura política e de organização política brasileiras (...) os domínios rurais eram autárquicos, cada casa era uma verdadeira república. Nelas a família extensa seguia o modelo patriarcal, segundo o qual os membros associados por sentimento e deveres nunca por interesses nem idéias4 (Andrade, 1995, p. 16: grifos nossos).
Segundo esse argumento, a vida social dos sentimentos próprios à
comunidade doméstica penetra na esfera pública influenciando a relação governantes
governados. No Brasil a dificuldade de estabelecer relações modernas (racionalidade
democrática) no interior das instituições da democracia passa por um longo processo
de constituição cultural. As relações entre instituições democráticas, seja no plano
político (input) ou administrativo (output) passam, por essa mediação de valores,
afetos (preferências), segundo uma concepção de cordialidade, de emotividade, que
aumenta muito o caráter íntimo da política de compromisso pessoal ou de indivíduo,
em detrimento da racionalidade de um modelo burocrático, liberal e democrático.
Portanto, a análise do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) no
momento da transição e consolidação democráticas permite analisar as práticas de
poder do partido e o tipo de relação que mantém com a população.
Em relação à prática patrimonial-clientelística, podemos adiantar um
objetivo e uma hipótese, que se baseiam em uma análise de Carvalho (1997) sobre o
clientelismo. Segundo esse autor, o clientelismo pode aumentar ou diminuir ao longo
da história, ao estabelecer o objetivo de analisar as relações clientelísticas no PMDB
podemos perceber o nível de relações de clientelismo na transição e na consolidação
democrática. Isto é importante pois se trata de compreender analiticamente a relação
3 Nos partidos políticos existe uma relação de estamento que é uma forma de estratificação social, que, no processo histórico luso-brasileiro, é vinculada à aristocracia pré-burguesa, anterior ao princípio da soberania popular como fundamento político, moral e teórico do Estado, sobre estamento burocrático ver Raymundo Faoro (1997). 4 Utilizamo-nos Andrade (1995) por realizar um resumo das abordagens ou dos enfoques sobre a cultura social e política no Brasil. Sobre patrimonialismo, cordialidade ver Holanda, (1997).
entre duas culturas, uma secular, introduzida no Brasil com a República e outras, com
as instituições democráticas restabelecidas após a ditadura militar.
O sentido das ações de indivíduos, grupos sociais passa por cognição,
afetividade e valores construídos socialmente. Segundo o menu social, os indivíduos
aderem a orientações ou a grupos de orientações segundo seu particular entendimento
e sentimento — o quanto os valores democráticos penetraram em suas vidas, mas
também nas estruturas sociais seculares por intermédio de representações sociais, e,
passando a participar dessas representações, revelam ou não o amadurecimento das
relações democráticas. A composição ou o misto social que se estabelece com os
vários grupos na sociedade brasileira, a percepção (cognição) real que cada grupo tem
da vida política, são importantes para a vida democrática.
As críticas dirigidas ao trabalho de Almond e Verba não nos passaram
desapercebidas, quando nos utilizamos de seus conceitos básicos. Moisés (1995)
aborda algumas críticas que os trabalhos desses autores sofreram. Dentre elas, a de ser
uma análise conservadora, porque não aborda a questão entre cultura e estrutura
políticas, e o de ser etnocêntrica pois se baseia exclusivamente no modelo anglo-saxão
de democracia. Um outro aspecto é quanto às possibilidades de a democracia
estabelecer-se antes de sua consolidação. Em outras palavras, Almond e Verba
atribuem a consolidação democrática à cultura política considerando-a uma variável
absolutamente independente de qualquer outro fator. Não é essa a nossa percepção,
porque os autores em questão contextualizam os aspectos políticos da democracia e
destacam aspectos sociais relevantes como a composição entre os aspectos tradicionais
os de renovação social. Isso significa que a democratização ou a redemocratização
passa pela articulação entre os vários setores, e, portanto a crítica aos trabalhos de
Almond e Verba pode ser ignorada. Justamente a união desses dois aspectos —
novidade e conservação — vai permitir a transição para a democracia em alguns
sistemas políticos, dentre os quais, o brasileiro. A questão da etnocentricidade ou não
ao modelo anglo-saxão é para nós uma questão menor, primeiro porque a democracia
anglo-saxônica consolidou-se antes das demais; segundo, influencia a América Latina,
pois os Estados Unidos constituem um modelo de democracia; e terceiro lugar por
termos de escolher um modelo de democracia com o qual dialogar, e daí, considerando
as semelhanças ou diferenças e percebendo as dificuldades culturais, podemos nos
utilizar do modelo anglo-saxão.
Um aspecto importante de que não podemos esquecer é a composição das
elites políticas e de outros grupos sociais porque, no Brasil, assim como em outros
países, as velhas elites e os sistemas de poder socialmente dados não foram superados.
Consequentemente, a composição do novo com o velho é uma realidade que se deve
procurar para o sucesso das instituições democráticas e a formação de uma cultura
política. Se é uma realidade em democracias consolidadas (como no caso da
Inglaterra) é mais problemático em novas democracias e é preocupação demonstrada
em pesquisas realizadas5. Moisés (1995) chega mesmo a dizer que esse é um aspecto
menor da teoria dos autores, justamente pelo fator de estabilização das novas
democracias.
Se as instituições conduzem a valores democráticos ou se a existência
destes valores forma às instituições, há duas formas de apresentar o problema. No caso
de países como Inglaterra e Estados Unidos, democracias clássicas (tanto as
instituições quanto os valores democráticos) o processo se deu de forma concomitante
(Moisés, 1995). Em casos de países onde a democracia é um fato social recente, ou
ocorreu por implante, pelo aspecto legal, é necessário que as instituições sociais
existam para gerar a prática social do respeito à diversidade, ou seja, das instituições
(os órgãos de democracia) são portadores de símbolos que remetem a um imaginário,
uma representação social. Os órgãos da democracia são portadores de padrões sociais
regularizados conhecidos e aceitos regularmente.
Instituições são padrões regularizados de interação que são conhecidos, praticados e aceitos regularmente (embora não necessariamente aprovadas normativamente) por agentes sociais dados, que, em virtude dessas características, esperam continuar interagindo sob as regras e normas incorporadas (formal ou informalmente) nesses padrões. Às vezes, mas não necessariamente, as instituições se tornam organizações formais, materializam-se em edifícios, carimbos, rituais e pessoais que ocupam funções que as autorizam a “falar pela” organização (O’Donnell, 1991, p. 27).
5 Como o trabalho de Cheibub e Soares: Instituições e valores: as dimensões da democracia na visão da elite brasileira (1996). Neste trabalho, os autores analisam quatro grupos no setor de elite: congressistas, administradores públicos, empresários e líderes sindicais, A percepção do sucesso da democracia em países como o Brasil passa pela perspectiva das elites.
Separar a análise institucional da análise cultural é uma opção
metodológica e teórica que, a nosso ver, pode causar mais problemas do que
apresentar soluções. A cultura expressa-se pela forma como uma sociedade e seus
indivíduos enxergam o mundo e, em decorrência disso elaboram seus padrões de
conduta com maior ou menor possibilidade de escolha, de acordo com essa mesma
sociedade6. Para nós, instituição e cultura são termos sinônimos, indicando o conteúdo
significativo de um determinado povo.
A análise das instituições como órgãos da democracia passa pela análise
das instituições não apenas como órgãos, mas ao sentido que os discursos podem
revelar como conteúdo significativo (e, portanto, determinaram as efetivas relações
sociais) que se manifestam em seu interior. Dessa forma, analisar a transição e
consolidação pela perspectiva de um partido importante na época possibilita
estabelecer as conexões políticas e os problemas ligados pelo passado sócio-político.
O uso dos termos input e output e a análise do posicionamento que os grupos
políticos7 e os demais grupos sociais estabeleceram diante dos objetos políticos, são
necessários para as práticas políticas culturalmente instituídas. A análise dos padrões
socialmente estabelecidos contidos nos discursos permite apreender a herança da
restauração dos órgãos democráticos e que possam estar presentes na vida política
brasileira em maior ou menor grau. O período iniciado em 1979, com a abertura
política, refere-se à transição da ditadura para a democracia, concluída no plano dos
organismos democráticos com a eleição direta para Presidente da República no ano de
1989.
6 Há um interessante trabalho de Georges Lapassade (1989) que trata de grupos, organizações e instituições. Esse trabalho trata as instituições como; a) grupos sociais oficiais, empresas, escolas, sindicatos (em relação a organismos sociais) e b) sistemas de regras que determinam a vida desses grupos com relação a padrões sociais instituídos. Uma outra contribuição é em relação à instituição ser um termo de Sociologia ou da Psicologia. O problema do psicologismo dessa ou daquela abordagem passa então pela definição epistemológica e de terminologia e apresenta prós e contras. Lapassade apresenta um resumo histórico da evolução do sentido do termo instituição. Os marxistas entendiam por instituições basicamente os sistemas jurídicos, o direito, a lei. Daí que, para o marxismo, as instituições e ideologias são as superestruturas de uma dada sociedade. Em uma fase posterior, o conceito assumiu uma importância primordial em Sociologia com a escola francesa. Durkheim definiu a Sociologia como uma ciência das instituições. Lapassade assinala uma terceira concepção de instituição, com o estruturalismo anunciando um quarto, que estava sendo preparado indicando P. Cardan. 7 Grupos políticos podem ser representados por partidos, ou simplesmente por grupos de pressão aos partidos, são compostos por elementos retirados dos grupos sociais e que atuam como seus representantes (elite política).
1. 3 A formulação do problema
1. 3. 1 cultura política e a construção da democracia no Brasil
Para interpretarmos um pouco a história brasileira do início do século XX,
pretendemos utilizar o conceito mannheimiano de autonegação democrática8. O início
da implantação do capitalismo industrial permitiu um nível maior de urbanização, com
o que se difundiram idéias diversas das anteriores de cunho exclusivamente agrário.
Essas idéias de vanguarda para a época em questão, início do século XX,
possibilitaram uma modificação na estrutura social vigente até então. As modificações
ocorridas permitiram que o país experimentasse sua primeira ditadura: o Estado Novo.
Uma ditadura só é possível quando já não existe um modo de vida social com base
exclusivamente em direitos preexistentes, necessitando que alguns princípios
democráticos já estejam sendo difundidos em uma determinada sociedade.
1. 3. 2 Mudança estrutural e pluralidade política
No do contexto sócio-político, as mudanças ocorridas no país, no início do
século XX até a ditadura do Estado Novo, permitiram maior pluralidade que a
existente durante o Brasil Império ,e embora a maior parte da população fosse rural,
já havia sido iniciado o processo de urbanização, com o desenvolvimento das
primeiras indústrias, possibilitando uma inovação na sociedade brasileira, uma
alternativa à experiência agrária.
Com os anos que se seguiram após o final do Estado Novo, com a
experiência populista trouxe um crescimento de movimento sociais. A nossa pesquisa
8 Mannheim (1974) chama de autonegação democrática a ocorrência de novas demandas decisórias em uma nova sociedade democrática. Essas demandas conduzem a um impasse decisório, que é resolvido com um período de ditadura que permite a viabilização ao menos das demandas mais antigas, afastando o perigo de indecisão. Esta autonegação não é desejável e deve ser evitada.
trata do aspecto do populismo manifesto na figura de Iris Rezende Machado e, para
respaldar nossas análises, utilizaremos uma obra de Francisco Corrêa Weffort — O
populismo na política brasileira (1978) — na qual aborda as origens sociais dessa
manifestação política.
O populismo é produto de um período de crise “um fenômeno político
multifacetado e freqüentemente contraditórios umas as outras” (Weffort, 1978). Os
políticos que se utilizaram dessa forma de manifestação política, o fizeram com seu
estilo pessoal para conquistar os votos populares dos grandes centros urbanos, com
“sua política pessoal quase sempre pouco explícita e sua ideologia, ainda menos
explícita e muitas vezes confusa” (Weffort, 1978).
O autor diz ainda que as manifestações populistas são tão individuais, que
se é tentado a pensar que o populismo é mais “um fenômeno de natureza pessoal que
de qualidade social e política”(Weffort; 1978). Uma das características básicas do
populismo é a manipulação e, “o populismo foi sem dúvida, manipulação de massas
mas a manipulação nunca foi absoluta” (Weffort, 1978). O autor chama a atenção
ainda nessa parte de sua obra que seria sumária a definição do populismo apenas pela
característica de manipulação da população pelos políticos.
A análise de Weffort fornece algumas características do populismo. O
populismo é desenvolvido em um período de crise política e social. Apresenta diversas
manifestações que dependem do caráter pessoal do líder populista, seu caráter
personalista. Por se ligar à personalidade do líder, é multifacetado e contraditório
mesmo no que diz respeito à política pessoal e à orientação ideológica. A manipulação
das massas introduz o que Weffort (1978) chama de oportunismo essencial de alguns
líderes. Além de permitir:
a manipulação das classes populares (...) foi também um modo de expressão de suas insatisfações. Foi ao mesmo tempo, uma forma de estruturação do poder para os grupos dominantes e a principal forma de expressão política da emergência popular no processo de desenvolvimento industrial e urbano. Foi um mecanismo através dos quais os grupos dominantes exerciam seu domínio mas também uma das maneiras através das quais esse domínio se encontrava potencialmente ameaçado. Esse estilo de governo e de comportamento político é essencialmente ambíguo e, por certo, deve muito à ambigüidade pessoal desses políticos divididos entre o amor ao povo e o amor ao poder. Mas o populismo tem raízes sociais mais profundas e a recuperação de sua unidade como fenômeno social e político é um problema proposto a quem estude a formação histórica do País nestes últimos decênios (Weffort, 1978, p. 62-63).
Um elemento caracterizador do populismo é a ambigüidade que pode ser
posto da seguinte forma: para exercer o poder, o político populista precisa fazer
concessões às classes populares e se relacionar de forma adequada com as elites
nacionais, o que oferece um equilíbrio instável ou fator de instabilidade a esses
governos, já que existe sempre o risco de se ceder mais do que necessário às demandas
populares. Esse tipo de liderança política precisa, portanto, construir um discurso que
ofereça possibilidades moderadas, em uma relação política conjuntural conflituosa
entre os interesses das elites e as classes populares.
Neste trabalho, utilizamos o populismo como manifestação social já que
não se trata de uma pesquisa unicamente com o tema populismo, mas que, por assim
dizer esbarra, nele no momento em que manipulamos os dados oferecidos pela
pesquisa empírica.
Weffort (1978) atribui algumas causas para o desenvolvimento desse
fenômeno político.
— Expressa o período de crise da oligarquia e do liberalismo;
— Constitui-se também em decorrência de “debilidades políticas dos grupos
dominantes urbanos quando tentaram substituir-se a oligarquia nas funções de domínio
político de um País tradicionalmente agrário, numa etapa em que pareciam existir as
possibilidades de um desenvolvimento capitalista nacional”, (Weffort, 1978);
— E representa, sobretudo “a expressão mais completa das classes populares no bojo
do desenvolvimento urbano e industrial (...) e a necessidade sentida por alguns novos
grupos dominantes, de incorporação das massas no jogo político”.
Ocorreu, portanto, uma situação sócio-econômica que permitiu o
desenvolvimento de demandas sociais modernas e um novo tipo de político (populista)
que lidava com os aspectos novos e tradicionais da política brasileira.
Por um período de dezenove anos, houve, no Brasil, uma primeira
experiência democrática. Consideramos como primeira experiência democrática o
período de 1945 a 1964, em que ocorreu um aprofundamento das condições anteriores:
desenvolvimento de um capitalismo industrial, urbanização, presença de diferentes
idéias. A sociedade brasileira não atingiu, em todos os seus setores, uma cultura
plenamente democrática. Considera a cultura democrática a existente naqueles países
que passaram por essa experiência na Europa, e que Mannheim (1974) analisa. O
Brasil vivenciou um desenvolvimento democrático paralelo ao europeu, no entanto, foi
iniciado bem depois. Houve uma proliferação de idéias que contrariavam o
pensamento social vigente (essencialmente rural). Entretanto, apesar de a sociedade já
conceber o novo, criou-se uma relação antagônica entre o novo e o pensamento
tradicional. A sociedade já permitia o novo, ao mesmo tempo, não o entendia, pois era
diferente da unidade social anteriormente existente.
Talvez, apenas se faça uma reinterpretação de Mannheim9, reinterpretação
porque se trata da utilização de um tipo de análise que se refere aos países europeus
dentro de uma realidade cultural distinta daqueles países analisados, segundo o qual a
ditadura é possível somente na democracia. De fato, mesmo na história brasileira, a
Ditadura do Estado Novo só foi possível após o país experimentar um processo de
modernização social, que foi a urbanização, O qual consiste apenas, nesse momento,
em uma readequação (expressão de Mannheim), e conduz este raciocínio para uma
tentativa de compreensão de um período de transição. No caso brasileiro, não se trata
somente da transição e consolidação de um regime de fato democrático, mas da
passagem de uma estrutura social para outra. Para Mannheim (1974), quando essa
transição falha, como já vimos, a transição implica criação de novas demandas, ou
seja, não se conclui a consolidação da democracia. A democracia possível é ainda
mais fraca que a estrutura social e, consequentemente, a cultura geral que determina o
processo político. A democracia nada mais é do que a manifestação difusa, na política,
da cultura (Mannheim, 1974) que ocorre em outros setores da sociedade. Países como
o Brasil não sofreram historicamente grande influência das idéias iluministas, ficaram
à parte dessas transformações. Daí, conclui-se que certos valores já estão fora do
contexto político geral, porque não fazem parte da estrutura sócio-cultural geral dessa
sociedade.
9 A utilização da análise democrática que Mannheim faz da experiência européia às condições históricas culturais e sociais brasileiras como um modelo paradigmático de nossa análise.
Enquanto na Europa já existia um apriorismo de direitos presente nas
aristocracias reais, ou prerrogativas estamentais, no Brasil, existia a superioridade de
direitos do senhor de engenho, do barão do café e de diversas oligarquias regionais
que não admitiam a perda de sua posição na hierarquia social. Se houve o
desenvolvimento de um regime presidencialista com forte influência dos fatores acima
citados, ocorreu paralelamente, a formação de uma burocracia sem os pressupostos
racionais, e que não configura uma proteção à concorrência democrática, tendo como
conseqüência a manutenção da diferença ontológica entre seres comuns e
aristocratas10, além da introdução da diferenciação dos indivíduos que tendem a
reiterar antigas diferenças. O indivíduo passou a existir mas essencialmente diferente e
a tentativa de equalização de demandas sociais repercutindo em ditaduras. Em
conseqüência, as elites econômicas e políticas apenas permitiam a presença da terceira
característica ou pressupostos democrático o controle dos governantes pelo voto —
enquanto a sua posição não esteve ameaçada. Permitia-se a existência de uma
democracia institucional. Não existe mais, nesse contexto sócio-político, uma
sociedade agrária. Persistem, contudo, fortes traços de uma estrutura social herdada
desse primeiro momento. A presença de elementos políticos que pertencem a uma
cultura política tradicional e sua convivência com um discurso democrático nos
permitirá verificar o conteúdo político da nova democracia brasileira com base em sua
variável regional em Goiás.
1. 3. 3 Democracia liberal e a questão social
Os países que passaram pela transformação original das organizações
sociais da democracia tiveram sua organização social fortificada em relação à cultura
democrática. O pensamento social foi fortemente influenciado por essa nova forma de
ver a sociedade, e os aspectos econômicos o foram diretamente pelas reivindicações
políticas. Esta é uma herança democrática, o que pode explicar, ao menos em parte, a
ausência de um pensamento que não permita tantas desigualdades sociais no interior
das democracias, e por outro lado, uma equalização política dos indivíduos que não
sofreram de fato grandes modificações no aspecto econômico. De acordo com o
pensamento liberal, em razão dos fatores de qualidade individuais, cada um estaria
livre para competir, resguardadas as condições iguais de concorrência entre os
diferentes indivíduos. Mas como garantir igualdade de concorrência entre operários e
capitalistas, se a diferença das condições de concorrência já estão determinadas
socialmente? Percebe-se a necessidade de uma diminuição das diferenças gerais de
vida, ainda que não se igualem socialmente todos os indivíduos já que se pressupõe a
diferença, na democracia liberal. Buscar a redução das desigualdades em aspectos
básicos como alimentação, saúde, moradia, educação, ao menos são fatores que
democraticamente pressupõem uma valorização do indivíduo, pelo respeito à
dignidade humana.
Essa valorização, segundo Mannheim, foi possível em virtude de dois
motivos (Mannheim, 1974): o primeiro é ideológico, conforme o pensamento cristão
difundia os ideais de igualdade dos homens; segundo, sociológico, posto que os
estratos sociais mais baixos começaram a fazer pressão, pois o princípio religioso foi
apropriado pelo senso comum, e as necessidades prementes de sobrevivência fizeram
ocorrer reivindicações. Se o que os movimentos socialistas buscavam era a igualdade,
o que se teve, por fim, no sistema burguês democrático e liberal, foi o atendimento a
reivindicações que diminuíram as diferenças, o que, na realidade, fortaleceu a
democracia e o jogo democrático desses países (Przeworski, 1989).
Portanto, se a realidade da democracia liberal não incluía a idéia de
diminuir as diferenças primárias de sobrevivência (pensando apenas no jogo
democrático), as manifestações sociais forçavam a inclusão, na pauta do formalismo
burguês, das necessidades das classes trabalhadoras. Se o pensamento popular,
presente nas democracias ocidentais, acreditou que a queda da Bastilha tornaria todos
economicamente iguais, exagerando os pressupostos liberais, a realidade social
européia forçou, como já vimos, a aceitação de reivindicações que passaram a fazer
parte de um imaginário democrático. Mas como ficam os países que, historicamente,
não vivenciaram essas lutas e conflitos reivindicatórios? Se herdaram esse ideário sem
10É bom termos em mente o conceito de Faoro de estamento burocrático.
a respectiva vivência histórica, então, não anexaram essas reivindicações a um modelo
de representação democrática, e não se estabeleceu uma igualdade ontológica de fato.
Existe um modelo democrático, em que as elites se resguardam em seus direitos e
afirmam justamente que a democracia não tem que necessariamente estabelecer um
diálogo com setores sociais que reivindicam melhores índices sociais. Porém, isso
conduz a um anacronismo que leva a uma insatisfação social, já que a idéia que se tem
é de igualdade, mas, de outro lado, não se viabilizam projetos sociais ou se viabilizam
projetos sociais precários.
Como já vimos, existem condicionantes históricos que determinaram uma
estrutura cultural, social e econômica bem diversa da de países europeus que,
historicamente, sofreram a influência das idéias iluministas em sua estrutura sócio-
cultural e econômica. Porém, ocorreram transformações sociais e econômicas, desde o
início do século XX, que viabilizaram se não uma transformação total na sociedade
brasileira e permitiram uma anexação de idéias diferentes (não tradicionais, ou seja,
idéias do antigo agrarismo, ruralismo), no conjunto global desta sociedade.
A idéia levantada, anteriormente, é a de que a transição e posterior
consolidação democrática não estão apenas ligadas ao período de 1964 a 1985, mas
que esse período apenas revelou o problema da manutenção do statu quo vigente na
sociedade brasileira. As modificações sociais ocorridas no Brasil, no século XX, não
foi suficiente para romper totalmente com uma estrutura que se formou ao longo
desses quinhentos anos.
Considerando os grandes avanços ocorridos no século XX com a presença
dessa estrutura, deve-se perguntar se o presente momento democrático permitirá a
transformação dessa estrutura e, portanto, a transformação da sociedade e a
consolidação da democracia? É o que verificaremos no capítulo dois deste trabalho.
1. 3. 4 A convivência de antigos e novos atores
Além das indagações anteriores, deve-se propor ao menos uma ou outra:
como ou o que permitem ou desejam os grupos sociais que tradicionalmente detêm o
poder neste país, em relação a essas transformações sociais? A essa questão soma-se
outra, pois nenhum grupo político jamais permitiu ou permitirá alguma ação que
ameace a sua posição, então, como efetivar as necessárias transformações sem que os
grupos tradicionais se sintam ameaçados?
É claro então que se fala de transformações dessa estrutura, com a
manutenção de antigos grupos de poder no comando deste processo. Será isso
realmente possível? A resposta a esta questão só será possível com o desenrolar dos
fatos históricos e políticos, mas existem ponderações a serem feitas que poderão ser
realizadas mais adiante.
As outras opções presentes são: o retrocesso ou a ruptura, nesse caso, por
intermédio da revolução, com a derrota dos antigos grupos de poder. A segunda
hipótese parece ser a menos provável, em razão da busca do caminho de um consenso.
Existe sempre no horizonte a possibilidade de retrocesso ou então, de
rompimento das estruturas democráticas reimplantadas. Existe também a possibilidade
de que os sérios problemas sociais, pelos quais o país passa, venham fazer com que
esses grupos de poder se sintam ameaçados. Na realidade, essa possibilidade é talvez,
hoje, a que mais fortemente ameace as instituições democráticas. Depende muito então
da leitura que as elites políticas fizerem, no caso a grande burguesia, os militares,
grandes proprietários rurais e representantes politicamente acolhidos por estes grupos
e representantes das classes médias.
Por outro lado, deve-se pensar, ou ao menos se aventar a hipótese, de que
exista uma pressão na sociedade para as novas realidades. Porém, existe a
possibilidade da implantação de uma ditadura, como já vimos, se as elites políticas
brasileiras fizerem a leitura de que os crescentes problemas sociais do Brasil ameaçam
as instituições democráticas e daí seja necessário implantar-se um regime político mais
duro para se apaziguar os ânimos sociais.
No entanto, a leitura que estes grupos políticos fizerem podem conduzir à
percepção de que um regime ditatorial só irá agravar a situação. A conseqüência final
da ditadura de 1964 a 1985 foi uma grande concentração de renda e o crescimento da
dívida externa e a conseqüente entrada do Fundo Monetário Internacional (FMI) para
ajudar o país a gerir os seus negócios. Por outro lado, podem pensar que os graves
problemas sociais só poderão conduzir a uma crescente sublevação da população
brasileira em sua grande parte e, uma conseqüente e crescente falta de legitimidade do
regime. O regime militar no Brasil contou, no início, com o apoio da Igreja e dos
setores médios da sociedade. Posteriormente, esses mesmos setores retiraram o apoio,
enfraquecendo-se então o forte respaldo social ao antigo regime. A resposta hipotética
também a essa segunda possibilidade só pode ser dada em termos do preço político e
social que as elites possam estar dispostas a pagar, mas também e não isolado do preço
político, o da possibilidade do velho modelo econômico, que é, em grande parte,
responsável pela estrutura social como um todo. E velho modelo econômico sozinho,
porém, não explica a manutenção dessa estrutura, pois é resultado de uma determinada
cultura, bem como também as idéias contidas na velha sociedade, são expressões
também dessa mesma cultura política.
Neste momento, então, o problema da transição e consolidação
democráticas está bem definido como possível com a solução de problemas criados
por uma forte concentração dos recursos produzidos socialmente e essa concentração é
o resultado de um modelo social, mas também cultural de justificação de distribuição
dessa renda que hoje conduz a crescentes seqüelas sociais, e a forma como as elites
políticas brasileiras lidarão com o problema depende das condições reais da leitura
que fazem do problema, além dos aspectos estritamente político-institucionais.
Percebe-se que os problemas de criminalidade são resultantes de um forte processo de
exclusão social, mas ainda, são um caso de polícia ou de segurança pública — ao
menos é o que se percebe pelos meios de comunicação — ou como são pensadas as
instituições políticas.
1. 3. 5 Democracia e a hipertrofia dos órgãos de segurança pública x pressão das
crescentes demandas sociais
Embora a questão social seja uma grande preocupação que norteia esta
dissertação, é necessário atentar para outros desdobramentos que podem ajudar a
operacionalização da pesquisa ocultem a questão social da demanda social. Existe a
possibilidade do resguardo das instituições democráticas com uma ação forte dos
setores de segurança pública? Mas, além dessa questão, existe uma outra a ser feita:
como o modelo político liberal atual, que não implementa políticas sociais mais
amplas, conviverá, no país, com as crescentes demandas sociais, com uma pauta
reivindicatória de ação de segurança pública, aparentemente cada vez mais necessária?
Baseando-se no pressuposto de que o modelo político liberal não
pressupõe a igualdade social, mas a política, esse mesmo pressuposto, deve garantir
condições básicas de concorrência e disputa entre cidadãos livres. No entanto, o
movimento operário europeu, como foi dito, conseguiu anexar não somente em sua
pauta reivindicatória, mas também na dos governos, seguranças sociais básicas. Ora, o
operário ou o trabalhador, de forma geral, está em condições de desvantagem em
relação ao capitalista, ao patrão.
Vimos que a história brasileira diverge da história dos países europeus e
dos EUA, os quais se basearam em uma situação social, em que o sistema político
hegemônico era aristocrático ou apriorístico (a colônia norte-americana era negócio e
direito da coroa inglesa), porém, ainda assim, certas condições históricas permitiram
ou conduziram a mudanças.
Hoje, no Brasil, existe a possibilidade de fatores e composição desses
fatores que permitiram conduzir a uma transição democrática ou essa transição é
apenas mais um momento para uma necessária autonegação democrática, que
posteriormente venha algum dia permitir uma total modificação no país?
Pode-se dizer, então, que um trabalho que procure analisar sócio-
politicamente o período histórico atual (pós 64-85) necessita compreender a realidade
do Brasil. Mesmo que algumas respostas não sejam possíveis, pois se trata de um
fenômeno em trânsito, uma maior reflexão pode talvez conduzir a possíveis respostas
em um futuro que pode não estar necessariamente distante.
Nesse momento, impõe-se deixar bem claras duas idéias: a) o sistema
político liberal define igualdades políticas e não sociais. b) demandas sociais, porém
incluíram na pauta política11 as necessidades econômicas prementes de classes sociais
desfavorecidas. Portanto, apesar de que, inicialmente, a igualdade política não
contivesse a igualdade social, necessidades econômicas e sociais, dadas
historicamente, fizeram com que a cultura política admitisse a redução das
11 Como já foi visto, por motivo ideológico-religioso; a idéia de igualdade dos homens e as necessidades econômicas dos trabalhadores fizeram com que o pensamento de igualdade fosse realizado também com reivindicações econômicas.
desigualdades econômicas básicas, com reflexos nos padrões de saúde, educação,
moradia, salários, dentre outros. Isso ocorreu, porém, sem que nunca se pensasse na
eliminação da desigualdade de classes, já que o capitalismo a pressupõe. Por outro
lado, a desigualdade de classes convive com a igualdade ontológica de todos os
homens, e essa conduz, então, à idéia de igualdade de oportunidades que o modelo
liberal teve de anexar em relação a algumas demandas sociais mais urgentes. A relação
igualdade/desigualdade parece ser um paradoxo para a democracia e, especialmente,
para a formação de uma cultura democrática para as recém-criadas democracias, aqui a
questão cognitiva. Como veremos, a nossa pesquisa levantará elementos do discurso
político que trabalham a questão.
Pode-se pensar então em vários modelos históricos de autonegação
democrática, de acordo com a vivência cultural de cada país. Na perspectiva de que a
democracia se desenvolve em ambiente cultural mais amplo (na realidade então a
percepção da cultura política deve se inserir no ambiente social mais amplo e estar
bem clara), e, daí, determinando a cultura e a ordem política vigentes. Procuraremos
caracterizar o tipo brasileiro de transição para a democracia, analisando os aspectos
que ocorreram no estado de Goiás e que nos forneçam respostas para essa
caracterização.
Com esse arranjo sociocultural, procura-se entender a transição e a
consolidação democráticas em termos da cultura política que lhes serve de
fundamentação. Quando se fala de um contexto sócio-político e econômico, tem se em
mente uma prática, mas antes de tudo uma visão de se organizar a sociedade, podendo
então analisar-se a política a por essa ótica cultural que a análise do discurso nos
fornecerá.
1. 3. 6 O papel dos fatores psicológicos
Não necessariamente, optando-se por uma análise cultural, deve-se
abandonar alguma outra abordagem que possa, paralelamente, ajudar a compreensão
das diversas variáveis que podem incidir sobre a transição, levando ou não à
consolidação, mas se pode, também, se for o caso, remeter uma análise à outra. Por
exemplo: existe um tipo psicológico que influenciou esse ou aquele personagem
político de forma a reiterar um determinado tipo de transição política? O que se tem
em mente aqui é que o contexto social atende às necessidades dos indivíduos como
fornece também determinados personagens políticos que souberam se apresentar como
necessários para a situação política em questão. Portanto, há um contexto social que
incide sobre os indivíduos e uma sociedade passe a crer na força ou no poder especial
de um indivíduo em exercer a autoridade, uma sociedade que por algum momento
creia ou anseie por um líder que ofereça uma segurança social com um governo forte.
Uma sociedade com essa configuração já possui (pressupõe-se) uma
cultura política que permita que seus líderes sejam mais centralizadores que em outras
sociedades. Porém, em um dado momento de instabilidade sócio-econômica, a
permissão dos membros dessa sociedade torna-se mais premente. Daí, então, o líder
sobe ao poder com as mesmas crenças. Além disso, podem ocorrer manifestações
psicológicas que ajudem, em um dado momento, esse líder a se fazer benquisto, pois
essas manifestações levam o líder a inserir-se nesse contexto social, na medida que o
conduz a exercer o poder de uma forma em que a população o ache adequado. Por
outro lado, o exercício do poder ajuda a satisfazer as necessidades criadas por um
determinado tipo de ego. Uma demanda social pode produzir um líder que uma
sociedade em sua crença na prática de um tipo específico de poder, na condução dos
destinos desta nação ou estado. Existe então, a manifestação de um tipo específico de
personalidade política para um meio sócio-político específico.
Essa possibilidade, a crença em uma manifestação especial de poder
político e fatores a ele adjacentes, como os fatores que venham a pesar em uma
determinada formação de cultura política, devem ser analisados e pensados, em termos
de estrutura, visto que a estrutura contém uma formação social que orienta as diversas
ações, até das elites. Não existe, portanto, uma ação social que se estabeleça
socialmente com sucesso, se ela não for aceita por essa mesma sociedade, ou seja, uma
ação social, (global ou individual), bem aceita é aquela que se insere bem em
determinada sociedade, porque a sociedade lhe dá o devido respaldo. Em outras
palavras, para cada tipo de sociedade há determinadas expectativas em relação às
ações, configurando-as como ações específicas daquela sociedade.
O que foi dito nada mais é do que o caráter social da legitimidade política.
Como diz Weber (1994), dominação consiste na probabilidade de encontrar
obediência para ordens específicas (ou todas) de um determinado grupo de pessoas.
Significa que um determinado tipo de governo (com uma determinada orientação para
sua ação) pode sofrer uma determinada rejeição12, porém, se ocorrer a rejeição ou não-
aceitação de forma sistemática, generalizada e absoluta, a tendência é a dissolução de
uma determinada manifestação política. Deve-se, a despeito de fortes objeções
populares, a essa ou aquela medida, ter em mãos um trunfo com o qual a população e
grupos mais elitizados — que fazem também parte da população, porém de forma
específica, ou seja, mais ativa nesse ou naquele setor — aceitem as contradições
vigentes. Devem existir fortes motivos para que se creia que, apesar de tudo, pode-se
chegar a um termo que produza condições futuras melhores. O personagem político é
importante para articular o imaginário popular com a cultura social vigente.
1. 3. 7 Democracia e corrupção
Deve-se perguntar se mesmo com um nível de democracia ou
democratização, se a população acredita em igualdade política de condições, no
regime democrático, com a existência de casos graves de corrupção, crescente
criminalidade13, sem considerar que a população que paga impostos vota decidindo
sempre pela melhoria geral das condições de vida: saúde, educação, moradia,
habitação, empregos e melhores salários. Deve-se lembrar que a democracia se tornou
viável em países europeus justamente porque admitiu, em determinado momento, o
proletariado como consumidor de bens antes exclusivos de grupos sociais com
maiores recursos, também porque o movimento operário e dos trabalhadores, de
maneira geral, ganhava força e, posteriormente, também participação institucional —
12 Não está se falando aqui de pesquisas eleitorais, apesar delas serem importantes, nem considerando, neste momento, o regime parlamentarista. 13 Pessoas ou grupos de pessoas na sociedade tendem a crer em um regime mais duro para conter essas badernices, sem falar de movimentos sociais que são tratados também como bandidos ou simples baderneiros
No Brasil, há poder do voto, porém, ele parece decidir muito pouco para aquilo que as
classes mais baixas votam, além do que parece ter nascido não da luta, mas da benesse
das elites paternalistas, deixando, então, de ter aquele fator decisivo de força, uma
benesse com reminiscências antigas do tipo geral de bom senhor de engenho que
protege seus apadrinhados. Deve-se pensar, que o voto como instituição democrática
possui um fator decisório importante e que deve ser, primeiramente, respeitado e
sempre pensado como instituição da democracia. Caso não se obtenha uma melhora
naquilo para o que se destinou o voto, as reações podem ser de coerção, se a população
reagir de forma abrupta. Essas reações populares muito mais fortes em relação ao voto
podem desencadear ações militares mais decisivas, levando, talvez, a um princípio de
ruptura da ordem institucional vigente, pois existe sempre o risco de uma tendência a
uma crescente perda de legitimação do regime.
1. 3. 8 Democracia e as esquerdas
Finalmente, temos que considerar a questão das esquerdas como um
problema da democracia brasileira. Isso posto, levantaremos dois questionamentos.
Primeiro, o Partido dos Trabalhadores (PT) nunca chegou a eleger seu candidato a
presidente, o que se deve à percepção de que se eleito, esse partido não tem como
cumprir suas promessas de campanha (ameaça de golpe militar)? Além disso, existem
fatores que são mais importantes que o social, como por exemplo, a segurança, e a
eleição de um candidato do PT traz insegurança. Segundo, simplesmente, a sociedade
não quer a eleição de um partido de esquerda, ainda que com isso posterguem
mudanças sociais, o que se quer então é a solução por outra via que não a proposta
petista.
Esta última hipótese reflete o caráter tradicional da reflexão política de
grande parte da população brasileira em relação a preferências políticas culturalmente
instituídas?
Uma não percepção da população da proposta de esquerda possibilita
ações não democráticas das elites políticas (intervenção militar)?
Se o fator cultural do contexto sócio-político brasileiro não permite de fato
uma prática social da democracia, pode ser porque esta de fato lhe seja estranha
criando um anacronismo, mas esse corpo estranho — conjunto de idéias de cunho
iluminista — esteja presente no imaginário da população, como foi dito. Sim, porém
não como prática e sim como algo que se espera, das elites políticas (o velho modelo
rural), daí a possível descrença com a democracia por não se perceber que este caráter
é reivindicatório e advém de lutas. Esta questão conduz novamente ao risco da
militarização do governo, ou seja, o risco do golpe militar.
Neste caso, então, a democracia delegativa é o resultado possível, ao
menos ainda, da prática política real.
Apenas para concluir, o modelo democrático adotado em países como o
Brasil — o delegativo é o desejado para países com determinado passado histórico?
Junte-se a isto que a democracia qualquer que seja, convive com diversos projetos
políticos. Existe ainda a possibilidade democrática da não-viabilização de projetos
sociais mais amplos, o que se pode ter, de acordo com a leitura realizada pelas
diversas elites políticas, pode justificar uma nova intervenção militar como resultado
justo e legal da autonegação dessa democracia.
1. 3. 9 Novas categorias de análise
Vejamos agora como alguns autores, tais como Lamounier (1992),
O’Donnell (1991) e Weffort (1992) abordam a questão das instituições, a transição e a
consolidação da democracia.
As possibilidades democráticas, então, parecem definidas diante do quadro
apresentado anteriormente. O desenvolvimento histórico-cultural aponta limitações do
conteúdo democrático em sociedades semelhantes à brasileira. Inicialmente, deve-se
pensar na construção e na preservação do quadro democrático no plano das
instituições. Segundo Lamounier (1992), para a construção de instituições
democráticas, é necessário, primeiro poder falar em instituições. Em um regime de
exceção isso não é possível, portanto, por mais penoso que seja o quadro institucional
no Brasil, com as críticas que se faça, então, à democracia brasileira, deve-se ter em
mente que as críticas e o poder falar a respeito dos problemas nacionais, já constituem
um avanço em relação à situação política anterior.
Ainda, segundo o autor, nos últimos vinte anos14, o Brasil passou por uma
seqüência de eventos institucionais que pode ser considerada extraordinária, não
apenas em relação à sua própria história, mas segundo qualquer caráter comparativo.
Essa transição histórica já foi, de certa forma, introduzida neste trabalho, com a
discussão sobre a mudança de um modelo social estritamente agrário para um modelo
mais urbano, com o desenvolvimento de um capitalismo industrial e a formação dos
principais centros urbanos, que possibilitaram isto a ocorrência de ditaduras.
Essa idéia de distensão social entendida, como a possibilidade da
convivência de múltiplos pensamentos dentro da sociedade conduz a um respeito ao
jogo político, ou seja, o fato de que a democracia é um sistema de arranjos político-
institucionais competitivos (Lamounier, 1992). Esse pressuposto é essencial para a
consolidação de um sistema democrático. Lamounier aborda, ainda, juntamente com a
construção de uma sociedade democrática — respeito ao jogo político institucional —
o fator de cultura política, à margem dos valores da Revolução Francesa (liberdade,
igualdade e fraternidade), mas com forte presença da cordialidade e de um certo tipo
de cultura conciliadora (de cima para baixo), além da percepção da necessidade de
desconcentração da riqueza (Mannheim, 1974), porém, para que isso ocorra deve-se,
primordialmente, respeitar o jogo político.
A análise institucional e econômica não dispensa as considerações sobre a
cultura democrática. A distensão social, iniciada no século XX, será suficiente, na
atual circunstância, para consolidar a democracia? Acredita-se que os fatores tais
como violência urbana, corrupção institucional, sejam relevantes para se pensar nessa
direção, além do que, bem provavelmente, sejam eles resultados do modelo econômico
e político que remete ao patrimonialismo, modelo que, do ponto de vista cultural, não
permite a separação das esferas públicas e privadas, situação que remete a um certo
tipo de hibridismo social, em que se mesclam uma estrutura social antiga com novos
fatores sociais (Weffort, 1992). Pode-se ter em mente, novamente, a idéia não apenas
de transição democrática, mas também de que o novo só é possível mantendo-se, no
14 A data da publicação do trabalho de Lamounier é 1992.
máximo, a estrutura sócio-econômica concentradora, porém, como já foi visto, de que
o novo (no caso, as modernas relações capitalistas que trazem consigo idéias novas)
não se encaixa na cultura geral, permeada pela concentração econômica e
centralização política, como acontece em países como o Brasil. Existe um impasse
novamente em relação às decisões a serem tomadas (Mannheim, 1974). Para onde as
mudanças estruturais ocorridas conduzirão? Para um novo período de autonegação
democrática ou se perceberá que as mudanças ocorridas tenderão a levar em conta as
demandas sociais (Aqui é preciso ter em mente a idéia de “eventos institucionais”)?
(Lamounier, 1992). A discussão institucional, as transformações ocorridas serão
suficientes para tornar aceitas as demandas sociais?
O hibridismo, que tem condicionantes históricos mais antigos
(tradicionais), convivendo com condicionantes mais recentes, conduz ao interessante
conceito de Guilhermo O’Donnell, sobre democracia delegativa (1991).
Segundo esse autor, as democracias delegativas não são democracias
consolidadas, porém, podem assim mesmo ser duradouras. Para ele, a crise social e
econômica que as novas democracias herdaram de seus antecessores faz com que se
dirijam para uma democracia delegativa e não representativa. Deve-se lembrar, que
essa crise foi antecedida pelo regime de exceção, o qual evidentemente, é
conseqüência de uma situação sócio-econômica, política e, sobretudo cultural. O
condicionante cultural, como já foi visto, orienta os demais: a economia é uma
condicionante em si mesma, porém, é reflexo de uma opção social e cultural de
organização. Não se pretende antagonizar conceitos de super e infra-estrutura: se a
necessidade primária de sobrevivência é uma determinante material, portanto, infra-
estrutural, a escolha de como se fazer isto é superestrutural com reflexos diretos na
infra-estrutura, e as duas instâncias mesclam-se, sem que se possa separá-las. Portanto,
a cultura tanto determina como é sinônimo de modo de produção, pois este modo é
reflexo de uma visão social comum de como organizar a sociedade.
O aspecto institucional é muito importante para O’Donnell (1991, p. 25-
40), pois constitui “padrões regularizados de interação que são conhecidos, praticados
e aceitos regularmente”. Tomando emprestado esse conceito, obtém-se a reiteração do
hibridismo com o reforço dos condicionantes históricos mais antigos (tradicionais),
que novamente conduzem a um impasse acerca de certas demandas sociais prementes.
Procura-se agora caracterizar, em linhas gerais, o que seja uma democracia
delegativa e a sua diferença de uma democracia representativa. Segundo O’Donnell
(1991), na democracia delegativa, quem ganha uma eleição presidencial tem o direito
de governar como lhe convém; é a encarnação da nação, distancia-se das promessas de
campanha. A democracia representativa inclui a idéia de accontability tanto no sentido
vertical (eleito/eleitores) quanto horizontal (em relação a outras instituições), ou seja,
quem governa não se afasta da população, mas deve responder por seus atos diante
dela.
Portanto, em uma sociedade com firmes instituições democráticas, quem
governa deve precaver-se em relação às suas ações, tanto ao público geral, quanto às
promessas de campanha com as quais chegou ao poder, o que se deve a uma prática
sócio-cultural institucionalizada. Ora, as democracias delegativas, mas também o fator
prática social instituída difere culturalmente do segundo, o que conduz a um
afastamento das elites eleitas da população que a elegeu. Assim sentem a possibilidade
democrática sem resposta as demandas sociais, em uma democracia adequada a uma
prática sócio-cultural instituída.
Ainda podem perceber outros fatores acerca das demandas sociais, e que
são abordados por Adam Przeworski (1994), que são pressupostos não menos
democráticos que os anteriores, e que conduzem a uma outra problematização, mesmo
acerca da descentralização de renda:
a) os resultados do processo democrático são incertos; (o jogo democrático) inclui
diversas possibilidades de deliberação;
b) a democracia é um sistema político em que partidos podem perder eleições;
c) a existência de competição reflete diferenças de orientação econômica,
organizacional e ideológica;
d) isto conduz a diferentes deliberações, porque democracia permite diferença de
níveis de força, em que os melhores organizados e com maior poder tendem a levar
vantagem sobre outros, porém, a democracia deve permitir possibilidade real de
representação a todos os grupos; (é claro que isso ocorre em diferentes níveis), a
condução de políticas de maior ou menor cunho igualitário depende da possibilidade
eleitoral de cada grupo, ou partido, mas reflete também as possibilidades reais de se
viabilizar ou não esses projetos, que podem ser ou não de cunho social.
2. O problema da pesquisa
Propomo-nos a investigar, nos pronunciamentos dos líderes políticos
envolvidos no processo de redemocratização, em Goiás e filiados ao MDB/PMDB, os
elementos que estão de acordo com a cultura democrática, nos termos e variáveis
discutidos, e os elementos persistentes de uma cultura política democrática, já
definidos.
Para tanto, delimitaremos a pesquisa ao período que compreende os anos
de 1979 a 1989, escolhido por tratar-se, primeiro, do período do aprofundamento da
abertura democrática e segundo, por compreender a luta pelas eleições diretas para
presidente da República (l984), o retorno do governo civil (l985), a instalação e
conclusão da Constituinte (l987-l988), o retorno às eleições para Presidente da
República (1989).
Circunscrever o objeto desta pesquisa ao estado de Goiás impõe-se, da
mesma forma, por várias razões. Primeiro, por tratar-se, de um lado, de um estado
eminentemente agrário, que pode servir a uma observação privilegiada da persistência
de uma política específica, e, de outro, dada a sua crescente urbanização, notadamente
da área do entorno de sua capital e da capital federal, oferecer também elementos de
uma cultura pluralista ou democrática. Segundo, em razão da continuidade dos
governos do PMDB, por longo período, que, embora não seja o único caso no Brasil,
contou com a permanência de um mesmo grupo no poder.
Optamos por considerar os pronunciamentos dos líderes do PMDB por
tratar-se do maior partido que, ainda no regime militar, aglutinou em sua legenda
(naquele período com a sigla MDB) muitas forças de oposição e que, abertamente,
lutava pela redemocratização da sociedade e da cultura política no Brasil. De fato, a
experiência da democratização no Brasil consagrou o Partido do Movimento
Democrático Brasileiro (PMDB) como expressão sintetizadora dos dilemas de ordem
simultaneamente institucionais, culturais e sócio-econômicas que constrangem o
aprofundamento da democratização política.
Em virtude de nos propomos a identificar, no nível de discurso, as
concepções que obstaculizam ou permitem o avanço de uma cultura política
democrática, aventamos como hipótese que, nesse período de transição e consolidação
democráticas, traços da cultura política brasileira, historicamente estabelecida com
base no agrarismo, mesclaram-se aos pressupostos de uma cultura democrática de
bases sociais urbana e pluralistas, reforçando o caráter híbrido da cultura política
brasileira.
3. Considerações metodológicas
Em vista do problema levantado, a pesquisa concentrou-se, em um
primeiro momento, nos pronunciamentos de posse de Iris Rezende Machado em seu
primeiro governo (1983-1986). Até as pesquisas preliminares, tínhamos a intenção de
iniciar a nossa investigação por esses discursos, mas conforme os dados foram sendo
coletados e tratados, percebemos que as nossas intenções de pesquisa deveriam mudar.
Por tratar-se de uma análise do discurso com o objetivo de revelar dados
históricos que nos servissem para perceber, localmente, elementos empíricos que
pudessem ser apreciados à luz das referências teóricas principais (O’Donnel e Weffort)
decidimos modificar o encaminhamento da pesquisa. Primeiro, o comício das Diretas
Já e o período histórico anterior (campanha para eleições diretas para governador) nos
serviram como base empírica eficiente de análise juntamente com a base teórica.
Posteriormente, percebemos que esses traços configurariam, de forma eficaz, o
período posterior, por tratar-se do momento gerador da Nova República. Utilizamos,
basicamente, a técnica de análise de discurso com suas variantes: análise de conteúdo
e análise simbólica, conforme havíamos proposto.
Capítulo II
A transição democrática em Goiás
Neste capítulo, buscamos, por meio de técnica da análise do discurso, a
verificação, do conceito político do PMDB. Busca-se o conteúdo em uma perspectiva
da possibilidade do desenvolvimento democrático no Brasil com base nas
possibilidades construídas em uma transição negociada entre vários setores da
sociedade brasileira.
Em um primeiro momento, trabalhamos, de forma descritiva, o conteúdo
imediato que os atores constroem para, em um momento subseqüente, realizar uma
análise simbólica do que foi dito.
A caracterização do período, por intermédio de análise discursiva, propicia
desvendarmos os valores de alguns atores políticos do PMDB, que tanto forjaram o
processo, quanto também foram impulsionados por ele, tanto no contexto da transição
quanto da reconstrução democráticas. Quando dizemos que os atores foram
impulsionados, queremos dizer que há um contexto cultural, no sentido amplo de
cultura como a fornecedora dos signos, das construções de significados que dirigem as
ações dos participantes de determinado ambiente cultural, que determina as
possibilidades político-democráticas do estado de Goiás, como amostragens particular
do Brasil.
Essas possibilidades políticas estão, portanto, vinculadas às noções de
democracia que dizem respeito, aos conceitos academicamente construídos, mas
também às noções que o senso comum cria para si mesmo, em relação ao exercício
democrático. As expectativas, como veremos, são forjadas tanto pela necessidade que
se tinha na época de construir uma sociedade com ampla participação popular, mas
também pelo saber captar estas expectativas dos atores políticos.
A democracia esta intimamente relacionada às possibilidades políticas de
se agir politicamente, e agir politicamente significa poder exercer influência, poder de
pressão, de acordo com objetivo que se busca, que no caso refere-se à idéia de a
democracia emancipar a população brasileira/goiana economicamente. Saber captar as
expectativas, do que a população compreende que seja o exercício democrático, e a
realidade de como os políticos compreendem a respeito da democracia, está
intimamente ligada às possibilidades construídas culturalmente, e serão analisadas
mediante os discursos/pronunciamentos dos atores, e muito especificadamente, por
meio de jornais da época.
O próprio conceito de transição negociada associa-se à realidade cultural
que determina, até mesmo de forma muito particular, como se estrutura o poder
econômico no Brasil.
Ao fazermos uma análise do discurso mediante os conceitos já fornecidos
pela teoria, não nos preocupamos com a prática, mas com os conteúdos que
determinam as práticas. Quando nos referimos à estruturação do poder econômico no
Brasil, não pretendemos fazer uma análise economicista, ou seja, buscar elementos
específicos da área econômica, mas apenas que algumas falas de alguns atores
apontam um certo cuidado de como a situação estava e como poderia de fato estar em
um futuro não muito distante, talvez calcificados, para resistirem às mudanças tanto
desejadas.
Tomaremos, nesta análise, muitas vezes o lado da abordagem que inclui as
perspetivas democráticas do senso comum, porque se formos analisar o discurso em
um contexto sócio-cultural, estamos dizendo que este contexto refere-se a alguém, que
no caso é uma parcela da população brasileira, o povo goiano, em relação ao conteúdo
das lideranças do partido brasileiro que foi de extrema importância para a transição
política ocorrida no Brasil. Esse conteúdo demonstra as reais possibilidades
democráticas, nível de democratização, democracia possível, e claro, se refere à
prática, que, entretanto, não será analisada neste trabalho. Significa apenas que o
conteúdo das lideranças do PMDB goiano estão implicadas com a cultura política
nacional expressa por suas elites, o que será determinante para o tipo de rito de
passagem. Manifestações populares como o movimento das Diretas já e a mediação
que foi feita com o governo federal para que ocorressem de forma controlada, são, por
exemplo, não apenas uma nova realidade política contida. Isto foi algo como que um
rito de passagem que iria demonstrar qual ser político nos teríamos, e que na sociedade
brasileira estava sendo processada. Isso nos conduz a uma idéia de síntese entre o
querer das elites nacionais e o querer de grande parte da população brasileira.
Tomamos, por conseguinte a perspectiva da população brasileira, primeiro,
porque entendemos que a democracia se realiza em um contexto mais amplo, e não
apenas democracia formal. No jogo político, de extrema necessidade para reforçar a
cultura democrática, são feitas as perguntas não-formais: por que se joga? Por que se
está nesse jogo? Em outras palavras, por que, de período em período, a população vai
as urnas manifestar a sua vontade política? Isto significa de forma simples que
expectativas políticas devem concretizar-se com alguma intensidade significativa.
Escolhemos a perspectiva da população brasileira, primeiro, porque nela se
concretiza a democratização, com a sua participação; em segundo lugar, ela, constrói
como ideal democrático, os anseios, os significados da democratização; e em terceiro
lugar, baseamos no princípio de que a democracia não é somente forma, um ritual que
se cumpre ao final de um mandato, e a escolha de novos representantes, mas ocorre
justamente (ao menos em tese) para que os eleitores viabilizem, com a escolha de seus
representantes, os seus anseios, as suas demandas. Assim assumimos a seguinte
posição: o jogo político, as disputas eleitorais ocorrem não apenas para que as elites
políticas se alternem no poder, mas para que sejam viabilizados novos projetos para a
sociedade brasileira.
A análise do discurso possibilita verificarmos também os arranjos, as
tramas que se processavam com a população. Ao buscar o conceito democrático
nacional, analisaremos como esse imaginário popular foi trabalhado em relação à
simbologia presente na população. Aí a síntese à qual nos referíamos entre o que a
população esperava da democratização, e o que estava sendo articulado na transição,
com base nas elites políticas, das quais o PMDB possui um grande peso histórico, o
que permite aprender, ao menos em parte, o conceito significativo da democracia
brasileira.
Como primeiro passo, em nosso trabalho realizamos uma leitura do
período que ficou conhecido como o movimento das Diretas Já, que se refere a uma
ampla mobilização popular pelo retorno das eleições para Presidente de República. A
vantagem de se realizar uma análise posterior, é poder ordenar os acontecimentos em
nível crescente ou decrescente de importância, sem se prender ao aspecto cronológico
ou diacrônico dos acontecimentos. A análise será sincrônica, busca em seu ponto
máximo, por nós considerado, o sentido em que se processou esta pesquisa. O ponto
máximo de nossa análise é aquele que torna mais evidente o tipo de redemocratização
ocorrida no Brasil e que nos permite reorganizar a leitura dos fatos sociais e históricos,
justamente o período das Diretas Já.
Se fôssemos realizar um trabalho diacrônico, partiríamos da abertura
política iniciada no final da década de 1970 e que permitiu o retorno ao Brasil de
vários exilados políticos, e que possibilitou uma organização não mais unipartidária,
mas pluripartidária. Não realizamos nosso trabalho dessa maneira por entendermos
que a diacronia permite uma seleção de aspectos que melhor nos cabem analisar. E
apesar da importância do período acima citado, bem como outros, deveríamos nos ater
em aspectos do processo que a análise do discurso já viabiliza em muitos aspectos e
que nos permitem ser o mais objetivos possíveis.
Antes de apresentar a leitura realizada, vamos deixar claro que a transição
democrática é por nós considerada em primeiro plano, como um fato político que se dá
em um período mais ou menos difuso, e que pode ser compreendido desde o período
em que o Brasil foi governado pelo Presidente Ernesto Geisel, quando o regime
político começou a apresentar sinais de abrandamento, e o governo que iniciou os
primeiros passos para preparar a condução da redemocratização brasileira. Esse
período inicia-se com a eleição do primeiro presidente eleito no Brasil depois da
ditadura militar até sua posse, entre os anos de 1975 a 1989/1990, portanto
quatorze/quinze anos. No primeiro momento, houve o retorno das instituições
democráticas como instrumentos viabilizadores do jogo democrático e não ainda como
práticas sociais culturalmente apreendidas e aprofundadas. Nesse sentido, a transição
democrática brasileira ainda não foi concluída, para a vitalidade das instituições e um
conceito amplo de significados que a democracia permite empreender: viabilizar
demandas sociais, incluindo a perspectiva econômica e social.
A caracterização do tipo de processo de redemocratização por qual o
Brasil viveu permite realizar uma análise que mostra os contrastes entre o discurso e as
reais possibilidades democráticas brasileira. No período referente ao movimento das
Diretas Já, pode-se notar o tom conciliatório e até mesmo esquivo do discurso como
na matéria: Oradores evitaram colocações de revanchismo: Embora prudentes, eles
advertiram que o povo clama o direito de votar para Presidente, publicado por um
jornal goianiense:
Seja através da característica e convicta prudência do governador de Minas, Tancredo Neves, seja através da refreada veemência dos oposicionistas mais duros, como o líder do PT na Câmara dos Deputados, Airton Soares, os discursos do comício de ontem na Praça Cívica se esquivaram de colocações revanchistas, canalizando a exigência de eleições diretas já sem o tom provocativo que os grupos mais moderados do PMDB temiam. Com exceção apenas da linguagem mais solta do cacique e deputado Mário Juruna, evitaram os oradores atribuir ao movimento do qual o comício de ontem faz parte o caráter de uma “tomada da Bastilha”, como bem assinalou Airton Soares, embora advertindo que “este povo que está hoje nas ruas reclama o direito cívico de escolher o Presidente pelo o voto de direito, mas poderá voltar de novo às ruas para exigir que os insensíveis a seu apelo deixem o poder” (O Popular 13 de abr. de1984, p. 4).
Nas colocações feitas à época, pode-se perceber o peso, de um lado, da
necessidade de provar ao governo federal que não havia nenhum interesse que pudesse
contrariar o que deveria ser uma transição medida e intermediada entre o desgastado
governo militar e as lideranças políticas da oposição, e, de outro lado, a necessidade de
manifestar à população brasileira, no caso, à goiana, que o sentido da transição
implicava uma manifestação dos desejos e anseios populares que de fato
movimentavam as forças políticas (os representantes populares ou a oposição à
ditadura), por meio das estruturas formais de poder (Presidência da República,
Congresso Nacional e governos locais) e que deveriam implementar modificações na
estrutura social, cultural e econômica de poder, de acordo com as aspirações que
conduziram ao movimento das Diretas Já e às pressões populares anteriores, e que
cobravam o retorno ao Estado de Direito.
Essas colocações iniciais apontam a princípio o caráter híbrido do processo
social e político de retorno à democracia, que é a conciliação dos anseios populares,
mas com o resguardo das antigas estruturas sociais de poder. A matéria do jornal, ao
referir-se ao tom que evitasse uma aparente tomada da Bastilha isso indica alguns
pontos importantes.
Primeiro, não se tratava de uma revolução popular e que a população
tivesse tomado à força o poder. Segue-se a isso que deveria ser passada a imagem da
soberania popular que evidenciasse o momento, mas que não ferisse ou infligisse, por
outro lado, uma idéia de derrota das forças que haviam realizado vinte anos atrás o
golpe militar; esse segundo ponto é de extrema importância para demonstrar a
delimitação e os limites do processo político vivido no país. Um terceiro elemento que
destacamos é que, não havendo o rompimento sonhado com o passado, mas a
transição, restou, enaltecer o espírito popular, seus anseios e necessidades concretas, o
que, muitas vezes, conduziu o discurso para um populismo conservador.
Vamos tomar genericamente o conceito de populismo inicialmente sem
nenhum tom valorativo-pejorativo, mas como as ações governamentais que se dirigem
à população como um todo, que incluem demandas sociais em projetos de governo, e
movem tanto as estruturas formais, como também as estruturas sociais. Há algo de
circular nesse raciocínio — as demandas sociais, o poder formal, acionam
modificações na estrutura social, que representem de fato mudanças que garantam aos
membros de uma sociedade política sua efetiva introdução nas decisões políticas:
solução de demandas socialmente dadas. Por outro lado, o populismo conservador, o
populismo que não implementa soluções estruturais em sua sociedade, ou porque essas
mudanças não são possíveis historicamente, ou porque, ainda que fosse possível não
uma revolução social, mas a implementação de modificações que alterassem em um
quantum a estrutura de poder socialmente dada, as lideranças em questão não estariam
dispostas a arriscar essas modificações, seja por comodismo, seja pelo conforto do
poder, seja por ambos, preferindo em seu discurso mostrar uma valorização retórica da
população, e quando muito realiza um trabalho de superfície. Ações de governo
populista apontam o assistencialismo, as obras de superfície, que evidenciam um
determinado tipo de ação que se traduz em algum tipo de benefício popular, como por
exemplo, a construção de ginásios, os mutirões, os shows. Não questionamos aqui a
validade dessas ações em um nível superficial, mas também necessário. Devemos
perceber que a retórica deixa de tratar o problema real — a essência das estruturas
sociais antidemocráticas que conduziram a ditadura — e aponta em seu discurso ações
que não alteram o cenário político, (diretamente relacionado com as estruturas de
poder conservadora), mas apenas o readaptam a um novo tipo de obrismo
modernizador, que modifica a forma, os aspectos superficiais das relações
econômicas. Referimo-nos às novas formas de tecnologia, mas também pode ser
considerado, por exemplo, o que vem acompanhando essas relações de superfície, que
introduzem profundas modificações no interior da sociedade, mas que são
modificações de cunho conservador. Significa aliar as modificações tecnológicas para
reforçar um modelo de organização econômica e social que realize ao máximo a
exploração dos indivíduos, aumentando as distâncias sociais e criando um modelo de
exclusão social. Esse tem sido a perspectiva do neoliberalismo para sociedades como a
brasileira — um tipo de populismo que se apresenta com maior ou menor grau de
personalismo. As ações populistas são sempre vinculadas a um personagem que
representa, ao menos no nível do imaginário, os mais altos anseios populares, aquele
que veio para resolver todos os problemas em questão ou aquele que no seu nível de
governo, veio viabilizar a democracia à sua maneira. Como teremos oportunidade de
demonstrar neste trabalho, não faltaram ações populistas no cenário político goiano.
Nesse ponto é necessário destacar que a transição democrática brasileira,
assim como de outros países da América Latina, não se trata apenas e tão somente de
uma modificação interna, de desgaste de um regime de exceção, e do crescimento dos
anseios de participação política da população brasileira. Refere-se também para o fato
de que o processo de redemocratização tenha representado um desgaste no modelo
centralizador do Estado, que foi amplamente exercido pelos governos militares, em
oposição às modificações propostas já no final da década de 1970 e início da década
de 1980 de cunho neoliberal, tanto no EUA quanto na Inglaterra. Essas modificações
não poderiam vir a ser implementadas por governos desgastados e centralizadores, de
pouca ou nenhuma representatividade popular, enfim governos que já não tinham
como arcar com os ônus de novas transformações.
Essas transformações somente poderiam ocorrer com a criação de novas
perspectivas de ação governamental e assumidas por novos governos
democraticamente eleitos, relacionadas a um modelo econômico, a um modelo
político, com a estreiteza dos vínculos democráticos que foram desenvolvidos na
sociedade brasileira e que a ditadura ajudou tanto a manter como a aprofundar. Isto
tem a capacidade de reforçar alguns pontos que podem ser extremamente negativos
para a criação de uma mentalidade, de uma cultura que seja favorável à democracia, e
que também compreenda a amplitude de um governo democrático ou de um regime
plenamente democrático.
O primeiro ponto que o período que compreende os governos militares no
Brasil seja lembrado com saudosismo, caso não se consigam os avanços sócio-
econômicos.
O segundo ponto, na realidade é uma variável independente e que ocasiona
o primeiro ponto15, é que somente os militares sabem governar e, portanto, o governo
brasileiro deveria ser militarizado.
Um terceiro ponto constitui uma hipótese meramente especulativa, a de
que esse descontentamento sirva, em algum dia futuro, para criar a legitimidade de um
governo de exceção novamente em países como o Brasil. Trata-se de uma hipótese
especulativa e talvez até mesmo tendenciosa, de um lado, e de outro, não podemos
deixar de atentar que, existe a possibilidade de inquietações populares vez ou outra
conduzirem a um reacionismo e a um revisionismo historicamente compartilhados. Na
história brasileira, o exercício democrático é de fato uma exceção à regra das
manifestações de governo, que encontram ampla base na população, como por
exemplo A marcha pela família, pela Igreja e por Deus, na década de 1960. O que
pode ser aproveitado disto, ao menos, é o fato de que nenhum objeto estranho a uma
cultura venha a tornar-se um more, algo que dirija as mentes e os corações de um povo
sem que ao menos a população anseie por esse objeto e mesmo o entenda. Portanto,
tendo o constituído como essencialmente necessário, talvez nesse caso o que se deseja,
o que se anseia e compreenda-se, sejam somente melhores condições de vida,
possíveis de serem obtidas tanto nas ditaduras, quanto nas democracias. Não se
conseguindo uma forma de governo, pode-se tentar em um outro, e, portanto, a
democracia para muitos não é algo necessário, mas realmente banalizado, e a
internalização de valores democráticos depende da efetivação de valores concretos.
Para isso, confiar (entenda-se os limites dessa palavra) em governos
democráticos em países latino-americanos serviu sempre para o retorno dos militares
ao poder, sempre que se abalavam as estruturas de poder que resguardam os recursos
econômicos.
15 Não temos a intenção de realizar uma pesquisa nesse sentido, mas apenas aventar algumas possibilidades que, vez ou outra, escuta-se no meio da população, por causa da frustração de anseios populares, intimamente relacionados à democratização e à melhoria das condições de vida.
O MDB e, posteriormente PMDB16, foram partidos híbridos de nascença e,
em essência com a sua composição orgânica, acabaram servindo de ponte para uma
nova democracia. O PMDB é um partido que comportava lideranças políticas que não
governavam e que, portanto, estavam ansiosas por exercer o poder, e uma oposição
que se compunha de forma cada vez mais híbrida (o caso do Sarney e da Frente
Democrática), e que representou a oposição legítima — a oposição do diálogo com as
lideranças do regime militar — em oposição a outra oposição, não tão legítima, a dos
partidos de esquerda. Os fatos da época permitem perceber o hibrismo, a conciliação e
o conceito nada equivocado de democrático, apesar de um pragmatismo conservador
(utilizamos uma redundância por entender que nem sempre a prática seja
necessariamente conservadora). A mesma reportagem do dia 13 de abril de 1984, com
o subtítulo Os intoleráveis, assinala:
A teatróloga Ruth Escobar, que deu o seu recado ao ser introduzida no rodízio dos apresentadores do comício, recorreu também a uma linguagem mais dura sem extravasar para os limites do que possa ser considerado provocação. Em todo o caso, ela refletiu bastante o grau de absoluta rejeição que o movimento pelas Diretas Já absorveu em relação à hipótese de se limitar a sucessão do Presidente Figueiredo às opções que circulam no raio do colégio eleitoral indicando para essa decisão. Foi muito clara ao declarar à massa: “Vocês querem Maluf? Vocês querem Andreazza?”, demonstrando que as restrições absolutas da campanha pró-diretas já não fecham sinal verde para possíveis alternativas conciliatórias, o que da margem para interpretar que neste caso, buscar conciliação e consenso podem incluir uma solução do tipo Aureliano Chaves, tese que de resto se enquadra muito bem nos conselhos do governador mineiro Tancredo Neves. O líder petista da câmara dos deputados Airton Soares, demonstrou, por exemplo, que a proposta pelas eleições diretas, irreversível nos seus princípios básicos, não impede porém que sejam aceitos critérios eleitorais “com as candidaturas que mais combatemos também disputando dentro de igualdades democráticas plenas” (O Popular, 13 de abr. 1984, p. 4; grifo nosso).
A fala da teatróloga Ruth Escobar parece apontar uma crítica ao absoluto
conservadorismo das propostas do governo federal, que a população brasileira, de
forma geral rejeitaria, e remetem a pelo menos dois pontos importantes.
16 Não negamos o valor histórico e potencial desse partido como o único que podia agregar a oposição possível no país, especialmente a direita que não estava no governo.
O primeiro ponto é que se não se queria em absoluto uma decisão
meramente formal ou que aceitasse tão somente uma opção pelo modelo democrático,
mas com candidatos oficiais (do governo). O segundo ponto é que se deveria avançar,
mas sem dar um passo muito grande, e aceitar a candidatura de uma direita
progressista (ou meramente não-situacionista), e um candidato situacionista, no caso,
um vice. Isso parece demonstrar que, apesar da carência de mudanças, a sociedade
brasileira sempre temeu uma modificação mais radical da política. Os anseios por uma
maior mudança no aspecto econômico, o temor da mudança política que viesse a
indicar uma orientação mais a esquerda sempre fizeram temer não somente a classe
média, mas também as classes mais populares, que são orientadas, geralmente,
segundo a formação de opinião das classes médias. Uma situação que diverge do que é
demonstrado nas praças e nos comícios e que parece sempre indicar mais do que
realmente se tem, às vezes, trata-se somente de uma situação reativa de cópia de
situações que mexem com as emoções, mas que não tratam de fato com as orientações
reais dos indivíduos ou com a percepção que esses tenham dos fatos, sem falar das
concepções que as camadas mais populares têm do processo. Além disso, a presença
em grandes agrupamentos, além de mobilizar contingentes de um lado não muito
politizados, de outro, reúne contigentes politizados, mas que não representam o
pensamento das classes médias, apesar de compostas por pessoas que fazem parte
delas, mas facilmente sugestionáveis, e, de pouca eficácia decisória como as camadas
mais jovens da população.
Isso é colocado aqui dessa forma, para contrastar com a representatividade
absoluta que um movimento de massas pode ter em relação a setores mais amplos da
população. Primeiramente, as pessoas são movidas pelo simples fato da mera
mobilização, ou seja, do festejo. Segundo, assim como o PMDB era representativo de
vários setores da sociedade, com várias tendências, também esse tipo de manifestação
contava com participantes de várias tendências ideológicas ou que meramente queriam
participar, o que diminuía muito o tipo de legitimidade que se pretendia. Por isso,
quando se fala em uma reunião tão grande, já se sabe que se fala, não a um indivíduo,
mas a vários. O PMDB, que agregava a grande parte dos anseios oposicionistas, já
havia construído um discurso, em média, conservador e que conseguia estabelecer
uma relação entre os vários setores da sociedade e as suas propostas democráticas.
Pode-se estabelecer que se pretendiam sérias modificações econômicas,
mas temia-se temiam as orientações políticas (de poder) que essas viessem a tomar. O
mundo está dando uma virada para sair de um Estado do Bem-estar Social para um
modelo neoliberal como preconizava o presidente Collor, eleito em 1989. No Brasil,
sonhava-se ainda com a perspectiva democrática de implementar políticas estatais, que
servissem para introduzir mudanças políticas populares, mas que eram limitadas no
modelo internacional, a que se aliavam o débito brasileiro com o Fundo Monetário
Internacional (FMI) e as mudanças ocorridas no ano de 1982. Havia uma limitação
muito grande ou um anacronismo decisório, o que só tende a reforçar ações populistas
do tipo conservadoras, uma espécie de ópio que as recém-criadas democracias
precisam, mas que entram em crise no final da década de 1980 e início da década de
1990, justamente no governo anacrônico do presidente Collor, pelo forte apelo
populista a caça aos marajás. Esse governo foi de extrema corrupção, mas também, o
que reforça o anacronismo, implementou as primeiras medidas neoliberais, que não
tinham apelo do tipo populista. Foi necessário um segundo Fernando, sociólogo, para
dar conta do recado, com um discurso enxuto, assim como se enxugaram várias ações
populares, ações políticas de cunho econômico como costumavam ser na década de
1980, os movimentos reivindicatórios dos sindicatos, e que não se relacionam também
a um ideário socialista/comunista.
O segundo ponto refere-se ao segmento do discurso relativo ao
pronunciamento do líder petista Câmara dos Deputados, Airton Soares, parece uma
conclusão extremamente democrática, mas como se suportasse em suas costas um
peso nada democrático. Deve-se suportar uma concorrência democrática com forças
que nunca foram democráticas, ou que sempre entenderam a democracia por um único
viés: o seu. Em outras palavras, já que existe a possibilidade de realização da
democracia (composição democrática ou de forças democráticas, às vezes nada
democráticas), não há nada mais antidemocrático ou de uma oposição irresponsável do
que impedir que forças distintas (outrora golpistas) disputem democraticamente o
poder.
O caminho que se delineava constituía em um desafio para democracias,
como a brasileira — como manter o jogo democrático com as regras que estabeleciam
as possibilidades de manifestações de oposição e a implementação de um conjunto de
políticas econômicas que hoje se tornam cada vez mais questionáveis do ponto de
vista da população. Um outro trecho da reportagem do dia 13 de abril de 1984, com o
subtítulo Ilegitimidade, destaca:
Já outro senador goiano do PMDB, Mauro Borges, preferiu estigmatizar a ilegitimidade das regras de sucessão presidencial em vigor, criticou os equívocos do regime nascido da revolução de 64, mas adotou também um tom moderado. Não fez, por exemplo, alusão dos militares, personagens que entraram no discurso de Airton Soares distinguidas entre alguns, minoria segundo ele, e a maioria, desejosa também a seu ver de uma normalização democrática .No trecho do seu pronunciamento em que se referiu aos militares, o líder do PT na Câmara dos Deputados foi bem explícito. “Do lado de lá, estão os que formam uma minoria encastelada no Congresso defendendo seus interesses antipopulares, de lado de lá estão os encastelados no poder, estão as forças internacionais que negociam com Delfim Netto e o querem por mais dez anos a serviço de seus interesses, do lado de lá estão alguns militares, pois também a maioria dos militares deseja a normalidade democrática” (O Popular, 13 de abr. de 1984, p. 4).
A crítica realizada pelo senador Mauro Borges foi o tom do movimento
pelas Diretas porém, não foi o suficiente naquele momento para a aprovação da
emenda Dante de Oliveira, já que os receios de que o poder viesse a ser ocupado pela
esquerda ou por elementos que estivessem muito próximos a ela foram uma constante
preocupação, que norteou todo o processo de redemocratização. O dirigismo, ou o
controle que o processo de democratização sofreu, exemplifica os temores de uma
política que assumisse uma orientação própria. Mais adiante, utilizaremos algumas
citações que ilustrarão os temores e a subordinação ao controle pelo governo federal.
Se esse tipo de passagem política satisfaz, identifica-se com o modelo apresentado por
Almond e Verba (1992), como uma composição entre setores mais progressistas da
sociedade que reclamam maiores transformações, e outros que pretendem resguardar
seus direitos historicamente constituídos. A síntese que se realizou não foi exatamente
a pretendida ou a esperada, segundo manifestações de líderes da esquerda como o
deputado Airton Soares quando se referem a Delfim Netto e aos interesses
internacionais, que preferia aguardar mais dez anos um regime de exceção para
consolidar ainda mais os seus interesses no Brasil.
A constituição híbrida da democracia brasileira verifica-se também quando
Airton Soares afirma que a grande parte dos militares era favorável ao processo de
democratização. A questão no discurso de Airton Soares não é determinar a
quantidade de militares favorável ou não ao retorno da democracia mas sim como esse
retorno foi construído. Primeiro percebe-se uma satisfação, no discurso, de poder
contar com a aprovação de grande parte dos militares ao retorno democrático17. O
discurso de Soares evidencia a aprovação dos militares e demonstra contar com ela.
Segundo o líder do PT na Câmara de Deputados, existiam alguns inimigos do Brasil,
que já não são mais os militares, mas uma minoria deles, aliados ao então ministro
Antônio Delfim Netto e aos interesses internacionais. Note-se que os militares que não
aprovam o retorno à democracia não são citados, e nem é o caso, apenas se apresenta a
insatisfação popular, um inimigo que existe, mas não é visível. Quanto aos interesses
internacionais, pode-se construir uma relação, mas quem está por trás desses
interesses? Novamente o discurso aponta o abstrato, que existe, mas de forma tão
ampla que não é fácil de ser enxergado, e pode apenas ser abstraído. Por fim, como um
bode expiatório está o ministro Delfim Netto. Mas ele é ministro da minoria que não
quer o retorno à democracia ou da maioria que era representada pelo então Presidente
da República João Batista de Oliveira Figueiredo? O discurso do líder do PT era
circular, no sentido de uma construção retórica, que compõe, nesse tipo de transição,
com aqueles que estão saindo do poder.
O hibridismo democrático de viés conservador parece apontar o respeito às
instituições militares e a necessidade da reconstrução da normalidade democrática.
Como vimos, para Airton Soares, a maioria dos militares desejava o retorno das
instituições democráticas. Mais à frente veremos como esse discurso especificamente
se assemelha à forma como Iris Rezende Machado se dirige às instituições militares e
a pessoa do Presidente João Batista de Oliveira Figueiredo.
A matéria do dia 11 de abril de 1984, um dia antes do comício das Diretas
Já, em Goiânia; traduz um pouco as articulações que foram necessárias para a
reinauguração democrática no Brasil e tem como título, Iris veta discursos de
comunistas no comício. Segue transcrição da matéria:
Os membros do comitê supra partidário, reunidos ontem de manhã na sede do diretório regional do PMDB, foram informados oficialmente pelo
17 Como veremos no último capítulo, trata-se do que Weffort (1992) denomina conversão de líderes às
propostas democráticas.
secretário do Interior e da Justiça, Antônio Magalhães, da decisão do Governador Iris Rezende Machado de não permitir que representantes dos partidos clandestinos façam uso da palavra durante o comício de amanhã, na Praça Cívica, pelas eleições diretas para Presidente da República. O governo, no entanto, concordou com um meio termo: admitiu que os deputados federais Aldo Arantes (PMDB-GO) e Roberto Freire (PMDB-PE), embora não sendo apresentados como representantes do Partido Comunista do Brasil e do Partido Comunista Brasileiro, respectivamente, defendam as pregações e a legalidade das duas correntes ideológicas.
LAMENTÁVEL. Luiz Carlos Orro, da Comissão Estadual pela Legalização do PC do B, lamentou a atitude do governador Iris Rezende, mas admitiu que, no momento, o mais importante é lutar pela aprovação da emenda Dante de Oliveira, objetivo comum que, conforme ressaltou, está unindo todos os partidos considerados oposicionistas. Paulo Vilar, em nome do PCB, declarou que a solução encontrada foi a melhor possível, argumentando: “O momento não é oportuno para se falar com prioridade na legalização dos partidos clandestinos. Devemos nos unir no objetivo de todos os oposicionistas, que é o restabelecimento das eleições diretas”. O presidente do PMDB, deputado Tobias Alves, em rápidas palavras, justificou a decisão do Governador (...) O senador Henrique Santillo, também presente, estendeu sua fala conclamando os populares a fazer pressão sobre deputados federais e senadores contrários à aprovação da emenda Dante de Oliveira. No entanto, a exemplo do que ficou determinado para o comício de amanhã, na Praça Cívica, não se permitiu o uso do palanque para divulgação das mensagens dos partidos clandestinos. Seus integrantes se limitaram à distribuição de panfletos e convites para o comício monstro pelas diretas, amanhã, na Praça Cívica (O Popular, 11 de abr. de 1984, p. 3).
Outras duas matérias tratam o mesmo assunto:
Irapuan vê ação comunista “Existe uma diretiva da Terceira Internacional de que elementos dos partidos comunistas devem se disseminar por todos os demais partidos, inclusive os democráticos”. A denúncia foi feita ontem pelo deputado federal Irapuan Costa, do PMDB, ao ser perguntado no programa Bom Dia Goiás, da Televisão Anhanguera, sobre se é contra ou a favor da legalização dos partidos colocados na clandestinidade no Brasil. Embora tenha respondido que é pela legalização dos partidos clandestinos, Irapuan ressalvou que “discuto muito a eficácia dessa medida, porque a legalização pura e simples não faz com que elementos pertencentes a estes partidos venham a se filiar”. E denunciou: “Existe uma diretiva internacional, de que os elementos dos partidos comunistas devem se disseminar por todos os demais partidos, inclusive os democráticos”.
DESVIOS DE RUMO Dizendo que sua linha de conduta é democrática — “muito próxima daqueles que tiveram a consagração popular maior, em particular o governador Iris Rezende e o senador Mauro Borges” — Irapuan enfatizou ser um dever seu, como parlamentar bem votado, procurar corrigir os desvios de rumo do PMDB. “Se o partido deve ser democrático, ele não pode absolutamente ter um segmento minoritário comandando-o. Se ele é democrático, não pode ter um segmento antidemocrático ditando suas normas”, observou, indagando: “Se o partido é democrático, ele pode seguir
o rumo ditado por elementos de dupla militância, que pertencem a outro partido colocado na ilegalidade e que não é democrático?”. Sobre as reações que provocou ao afirmar recentemente que a campanha pró-eleições diretas estava sendo conduzida pelos radicais de esquerda, Irapuan foi incisivo: “Elas vieram justamente dos segmentos mais extremados do partido e nós sabemos que os extremistas são muito intolerantes”. Frisou que todas as tentativas dos radicais de esquerda contra ele fracassaram e, hoje, o governador Iris Rezende comanda a campanha, recomendando que não haja extremismo.
NÃO VAI SAIR
Irapuan Costa Júnior garantiu que jamais passou por sua cabeça a possibilidade de deixar o PMDB, frisando que “este é o meu partido, pelo qual fui eleito com uma votação muito expressiva e onde hoje estou propugnando por suas bandeiras”. Ressaltou que não critica o PMDB — “um partido que colheu vitórias importantes em todo o País” —, mas apenas os setores minoritários que se arvoram em majoritários. “Setores antidemocráticos que se fazem crer democráticos; setores que não são nacionalistas, mas internacionalistas; setores que não são cristãos, como é a maioria do povo goiano e do povo brasileiro”, concluiu. (O Popular, 11 de abr. de 1984, p. 3).
“Momento impõe prudência” O deputado Frederico Jayme Filho exortou ontem os políticos de oposição a compartilharem da preocupação do governador Iris Rezende que, “embora pessoalmente empenhado em fazer do comício de amanhã, na Praça Cívica, o maior acontecimento político de todos os tempos em Goiás, não deseja que haja pretexto para um retrocesso comandado pelos radicais de direita”. Segundo o parlamentar, “o engajamento dos políticos conscientes e responsáveis de Goiás na campanha pró-diretas é um fato sobre o qual não pode e não deve pairar qualquer dúvida. Todos estamos de coração e peito abertos desfraldando esta que é, por certo, uma das maiores, senão a maior de todas as bandeiras populares”, declarou Frederico Jayme, acrescentando: “Entretanto, mesmo receptivos e integrados nesta luta, creio que nós políticos, temos uma responsabilidade que se sobrepõe à do cidadão comum. Trata-se não apenas de participar, mas de saber canalizar essa força que brota do fundo da consciência de todos e dela tirar o insumo que haverá de sensibilizar os atuais detentores do poder, levando-os a desistir dessa obstinação inglória e antidemocrática, que é a de se perpetuar no mando, deserdados do povo”.
EXACERBAÇÃO O deputado Frederico Jayme acha que, no comício de amanhã, os oradores devem evitar a exacerbação verbal porque, na sua opinião, o momento impõe prudência. “E nem sempre - observou —, o ataque frontal, impiedoso, é mais produtivo do que uma reação estudada, que toca na ferida, sangra, mas aparentemente não justifica uma sublevação irracional”. Continuou Frederico Jayme afirmando estar certo de que a mobilização popular em favor das eleições diretas é hoje motivo “de grande receio e temor por parte daqueles que usurparam o poder. Daí entender que eles buscam desesperadamente qualquer pretexto que os levem a justificar o injustificável. E Goiás, que jamais, em época alguma, deixou de participar dos grandes eventos que, de uma forma ou de outra, contribuíram para mudar os rumos da história do Brasil, não pode oferecer esse pretexto” (O Popular, 11 de abr. de 1984, p.3).
O hibridismo democrático ou a composição orgânica das forças que
lutavam pela redemocratização do Brasil deveriam demonstrar, em seus discursos, não
ir além do necessário para o restabelecimento da ordem democrática. Se o PMDB
guardou em si políticos de várias orientações políticas e ideológicas, foi necessário,
porém, afastar e demonstrar esse afastamento por parte de suas lideranças de setores
mais à esquerda do partido, que, naquele momento, estavam impedidas de compor
esse hibridismo.
Estava reafirmando uma cultura política que via na esquerda um risco às
instituições da democracia. E se ainda naquele tempo havia o sério risco de
interferências da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) nas ações
de políticos da esquerda marxista, contudo, esse perigo passou a não existir mais após
os anos de 1989/1991, com a queda do muro de Berlim, que evidenciava a diminuição
da força e da influência soviética no mundo ocidental e posteriormente se confirmando
o próprio fim do Estado soviético. Ainda assim, havia o receio de uma possível
orientação de esquerda em um nível mais amplo de governo.
As falas de Luiz Carlos Orro Partido Comunista do Brasil (PC do B) e de
Paulo Vilar Partido Comunista Brasileiro (PCB) evidenciam as negociações que foram
necessárias para que a transição para a democracia se completasse. O retorno em
definitivo às instituições democráticas deveria ocorrer com a submissão temporária à
marginalização político-partidária de seus respectivos partidos, que significava uma
submissão ao regime. As esquerdas que inicialmente lutaram contra o regime e que
foram a motivação ideológica para o golpe de 1964 estavam já contidas no
pragmatismo político que estava sendo instalado. Foi permitida literalmente a
panfletagem dos partidos de esquerda ou a oficialização de sua marginalização política
naquele momento de transição, que era justamente o que não era possível,
especialmente no período em que vigorou o Ato Institucional-5 (AI-5), uma ironia à
história das forças do regime militar. O senso comum não percebeu que a viabilização
de outros projetos políticos de governo passavam por uma adequação diferenciada do
que foi feito, com forças da esquerda que gerariam um caldo político e cultural mais
amplo.
A cautela em relação aos procedimentos dos discursos estavam
evidenciados nas as falas de representantes de vários setores políticos. O então senador
Henrique Santillo fez o seu discurso em plena Praça do Bandeirante, local em que
havia sido instalado o Placar das Diretas Já, que indicava os nomes de congressistas
que votariam ou não a favor da emenda Dante de Oliveira. Mesmo os líderes da
esquerda que falavam eram escolhidos com cautela, o que era uma demonstração de
um controle, de um policiamento do governo, que conduzia o processo para uma
elitização das falas nas participações que eram permitidas. O sentido desse
policiamento aponta, é claro, um evidente controle dos ânimos da esquerda, mas
também uma artificialização do processo, a construção plástica do que deveria ser uma
participação política de grande abrangência popular.
A fala do deputado Frederico Jayme Filho, além de também demonstrar e
patentear os receios que alguma manifestação saísse do controle do que deveria ser
uma manifestação de civismo, traz um condicionante que pode ser lido como um duplo
sentido quando fala dos políticos conscientes. De um lado, os políticos conscientes
deveriam participar do grande comício, pois ele representava a luta pela manifestação
soberana do voto popular na escolha do Presidente da República. De outro, os
políticos conscientes estavam limitados na sua fala (e por causa de sua compreensão
dos fatos), à forma de condução no comício, que definiria a forma de conduta durante
todo o processo. Isto evidentemente excluiria qualquer político que realizasse algum
tipo de manifestação mais aguerrida do rol dos políticos conscientes. Trata-se de um
indicador de uma construção de consciência, das reais possibilidades da democracia
que estava sendo construída, ou da construção de um consenso nacional que não
apontasse um modelo distinto daquele que estava sendo gerado.
A orientação demonstrada na fala de Irapuan Costa Júnior aponta um zelo
democrático paternalista, um cuidado com a política nacional (uma possível
esquerdização), mas também é um chamado para as lideranças do PMDB goiano
prestarem atenção aos elementos do partido que tivessem uma dupla militância, o que
significava falta de afinação com o conteúdo ideológico do PMDB, e que pessoas
haviam se infiltrado no partido. Irapuan Costa Júnior constrói a imagem dessas
pessoas como tendo um alto nível de periculosidade, como bandidos, por possuírem
ideais democráticos distintos das lideranças do PMDB que construíram a imagem do
partido e nesse momento estavam construindo o processo de redemocratização.
Questionar se os membros do partido iriam migrar para chapas que os identificassem
como uma esquerda marxista aponta uma construção de um imaginário que percebe
esses elementos, como pessoas com intenções ilegítimas, como dissimuladores de suas
reais condições políticas, como se fosse possível não conhecer, não perceber quem
seriam esses velhos militantes e como se os novos militantes que fossem por eles
apresentados ou formados não pudessem ser identificados em suas orientações, na
convivência diária, nas discussões e nos exames das idéias. A construção desse
imaginário político a respeito desses indivíduos pelos setores bem mais à direita do
PMDB demonstra a preponderância das idéias políticas, da composição orgânica
ocorria no partido, o que ajudou a configurá-lo como uma base ideológica muito clara.
A direção que o PMDB tomava na realidade a oposição permitida durante o regime
militar evidenciava os cuidados a que estava sendo submetido.
As falas evidenciavam a responsabilidade do governador Iris Rezende — a
sua consciência em conduzir o processo (a de Irapuan Costa Júnior), a preocupação
que o então governador de Goiás demonstrava na condução do processo em mostrar ao
país que Goiás era um estado responsável (a de Frederico Jayme) e que somava com o
restante da nação para a implementação mais rápida possível do Estado de Direito com
o restabelecimento das eleições diretas para Presidente, assim como o entendimento
demonstrado por Luís Carlos Orro e Paulo Vilar do mais valoroso, do mais
importante. Ficava evidente a submissão à autoridade e à pessoa do governador Iris
Rezende, o que demonstrava uma cadeia de comando que tinha a intenção de
representar para os militares que agora o país poderia viver uma democracia e escolher
todos os seus representantes. O encadeamento político e social que estava em processo
teve, com os comícios das diretas para eleição de Presidente da República, a prova de
fogo das reações populares e também a aceitação e que a democracia que estava em
construção era do ponto de vista ideológico e jurídico, plenamente aceitável: o regime
democrático é a convivência pacífica de forças políticas e sociais distintas e até
mesmo antagônicas que devem disputar nos pleitos eleitorais suas propostas, e
respeitar a decisão soberana da maioria.
Apresentamos o conteúdo da matéria Uma verdadeira aula de política
para o povo:
A Praça Cívica foi do povo e de sua ânsia democrática desde a madrugada de ontem, quando os militantes das tendências políticas e das entidades de
classe disputavam os melhores locais para afixar imensas e coloridas faixas. A disputa dos melhores lugares também começou cedo, principalmente entre os ativistas do Partido dos Trabalhadores e do Bloco Popular do PMDB. Uma disputa em que ninguém foi vencedor, ou saiu derrotado, apesar de alguns incidentes entre os defensores da legalização dos partidos clandestinos e a polícia política — o delegado do Dops de Goiânia, Antônio Magalhães, não conseguiu esconder sua estupefação ao ver na parede do Fórum uma imensa bandeira do Partido Comunista do Brasil. A manifestação em si acabou sendo uma verdadeira aula de política para grande parte do público, desacostumado com o contato com as grandes lideranças nacionais e com as mais consolidadas forças e tendências ideológicas. Quando os deputados federais Roberto Freire, do Pernambuco, e Aldo Arantes, de Goiás, defenderam a legalização dos dois partidos comunistas — Brasileiro e do Brasil — áreas menos politizadas do povo demonstraram um certo espanto e uma grande curiosidade para ouvir discursos considerados proibidos. A festa democrática, que começou na madrugada, conseguiu reunir pacífica e alegremente, políticos, estudantes e militantes de tendências ideológicas diversas com pivetes, bêbados, pirados, prostitutas e policiais que antes da alvorada antecipavam o clima do comício. O dia raiou — límpido e quente — e a Banda Municipal da Prefeitura alertou a população para o espetáculo de logo mais a tarde. A passeata da banda começou às 6,15 horas, da Praça do Trabalhador, subindo pela avenida Goiás até à Praça Cívica. Depois da banda, a primeira passeata que chegou à Praça Cívica foi a dos pequenos jornaleiros. Uma manifestação muito mais de alegria do que política. O sorriso tinha um só motivo: a camiseta amarela, das Diretas Já, que eles ganharam dos organizadores do comício. O percurso foi feito pelos garotos foi em ritmo de maratona: eles saíram pela Avenida Goiás rumo à Praça do Bandeirantes e subiram a Avenida Tocantins correndo e gritando Diretas Já (O Popular, 13 de abr. de 1984, p. 3).
O tom que se evidencia nessa matéria é de paternalismo e de cordialidade,
procurando uma conciliação nacional que pode ser percebida também em Goiás. Se,
nos preparativos do comício, realizado no dia 12 de abril de 1984, o teor foi de
precaução ideológica com os condutores do processo outra matéria do mesmo dia 13de
abril de 1984 com o título principal 390 mil no comício pelas diretas em Goiânia: foi a
maior concentração pública da história de Goiás. A mobilização durou o dia todo.
Apresentava demonstrações de afeto e convivência harmoniosa e ilustrava, no final do
comício, a declaração do então governador Iris Rezende Machado:
O dia de hoje será um dos mais felizes de minha vida, pois o povo veio aqui lutar por melhores dias, melhores condições de vida para, ou seja, uma vida digna para todo brasileiro. Estou feliz porque Goiás demonstrou ao país que está querendo mesmo eleições diretas para Presidente da República. (O Popular, 13 de abr. de 1984, p. 3)
O que deixava mais claro o tom festivo e tornava os ânimos populares
mais brandos, contribuía para a aceitação pelo regime de que a população brasileira
estava pronta para ser reintroduzida no Estado democrático, e que a população devia
desviar sua paixão de objetivos políticos mais ambiciosos para objetivos de menor
exigência e, assim, conviver pacificamente com aqueles que controlavam o processo.
O tom paternalista, de cordialidade e conciliação, pode ser percebido nas
afirmativas pelas disputas pelos espaços físicos, nos quais se veriam melhor os
oradores e ouvir os seus pronunciamentos, e que ninguém sairia vitorioso ou
derrotado. Trabalha-se com simbolismos que procuram resumir no local em que
ocorreu o comício, como espaço a reprodução do que ocorreria em nível nacional, com
a disputa dos espaços políticos. A aula de política a que a população presente na Praça
Cívica foi submetida tornou-se possível porque essa população esteve em contato com
as chamadas grandes lideranças de tendências ideológicas variadas. Passa-se a
impressão de que a população em si mesma, quer dizer, cada indivíduo que a compõe,
é incapaz de auto-aprendizagem e de agir por conta própria. Esse aspecto serve para
ilustrar o tipo de democracia delegativa, no que diz respeito ao afastamento dos
políticos em relação às suas propostas feitas à população em período de campanha. A
população deve perceber que o que se promete não é de fácil implementação, e o caso
da emenda Dante de Oliveira é exemplo significativo, como veremos no terceiro
capítulo, pois os anseios e desejos estão subordinados às reais possibilidades que
passam a ser os objetivos a serem buscados. A concepção que pode se ter é a de um
grande laboratório social e político a que todos ali foram submetidos, por conseguinte,
indiretamente a população que assistia à manifestação pela televisão e rádio, respondia
ou não de forma positiva, criando-se uma expectativa quanto ao que estava sendo
representado naquele dia. Como foi visto, a matéria publicada citou o espanto do chefe
da polícia política, em relação às bandeiras vermelhas e às faixas apresentadas em
prédio público. Percebe-se uma conjunção simbólica também nesse ato, que pode ser
percebido como a força popular que não teve como ser resistida, porque naquele
momento estavam evidenciados ideais brasileiros, em que, parte, ali comparecia, para
ajudar a compor a nova realidade nacional. Os simbolismo está tanto na mensagem das
faixas, como no aparente espanto e perplexidade manifestado pelo delegado. A
perplexidade aponta um possível exagero das condições previamente estabelecidas,
mas não constituiu resposta negativa, que seria a efetiva retirada da faixa de um prédio
de um órgão público, que era um local por onde eram realizadas parte das ações de um
dos poderes que compunha a oficialidade do regime.
Na realidade, como locais apropriados para um laboratório social, seria por
ali que se faria a leitura das possibilidades democráticas brasileiras. Em um local
restrito, pois a faixa apenas adornava a casa de um poder público, não havia nenhuma
ameaça de fato ao estado das coisas, além do que satisfazia, com muito menos,
expectativas criadas durante anos, em que manifestações simples como estas eram
severamente reprimidas, e a sua aceitação era vista como um grande avanço18.
Trabalhava-se simbolicamente como o imaginário popular, com a necessidade de se
descobrir, com o grande movimento das Diretas Já, se a população brasileira aceitaria
a proposta democrática que lhe estava lhe sendo dirigida. Nesse sentido, as Diretas Já,
foram um palco, um teatro para a verificação das forças políticas e ideológicas que
transitariam por ela, uma resposta aos verdadeiros e reais anseios de democratização
que se revelaram não-violentos ou aventureiros. Desta forma, foi sendo aprofundada a
legitimação democrática em questão, com as lideranças políticas que lhe davam
respaldo popular. Tendo em vista as expectativas que foram sendo criadas nos dias que
antecederam ao comício em Goiânia, e que podemos perceber com a preocupação
demonstrada na fala de Frederico Jayme Filho, o comício foi um sucesso absoluto.
A transição política que ocorreu no Brasil somente foi possível porque os
partidos de oposição aderiram ao modelo de redemocratização. Em Goiás o tom
muitas vezes foi emocionado, com um tom embargado, sobretudo o de Iris Rezende
Machado que constantemente alternava uma demonstração de afeto ao povo goiano,
do qual se dizia ser legitimo defensor, com o espírito conciliatório que norteou o
comício pelas diretas. Em reportagens que serão vistas adiante Iris Rezende Machado
enfrentava a desconfiança de que era um candidato implantado pelo regime militar. No
entanto ele refutava essas acusações dizendo ser um representante do povo, um
homem do povo, cujas origens humildes não negariam seu discurso. Mas justamente
em seu tom conciliatório, reside a desconfiança em relação aos seus propósitos. Os
18 Isto pode ser visto como uma modernização superficial das relações de poder e de política, nas manifestações que eram antes proibidas. Eram manifestações populistas: realizadas pelas elites políticas que estavam presentes naquele espaço e que consideravam que sem elas, o processo político não se
discursos de Iris Rezende Machado, suas falas, seus pronunciamentos públicos
geralmente apresentavam um forte apelo emocional, não aparentemente gratuito, a
emoção pela emoção. Normalmente, o candidato não discutia projetos políticos, ou
esses se resumia em defender a parcela do povo brasileiro que o havia eleito para
governo, e necessitava ser salvo daqueles que apenas pensavam em seus próprios
interesses. Seus discursos apelavam para os valores mais íntimos e tradicionais da
sociedade brasileira, tais como, a família, a religião (a vontade de Deus). Seus
pronunciamentos não buscavam um recurso intelectualizado, mas intuitivo, procurava
uma adesão reativa às suas propostas, ou à sua afabilidade popular.
Seus pronunciamentos emocionais por um lado, valorativos, eram seguidos
por negativas em relação à adesão ao regime militar. É interessante reparar que esse
homem com ideais, sentimentos, tão amplamente divulgados por si mesmo,
basicamente vinculado às forças populares, demonstra não raramente uma afabilidade
com o regime, e o seu espírito moderador aponta o diálogo, como o possibilitador da
representação popular. O povo brasileiro, o goiano especificamente, é segundo esse
discurso, um povo trabalhador, sofredor e carece, por excelência, de alguém que seja o
portador do consenso, e que seja basicamente o possibilitador da representação
legitima de um povo também moderado, em seu dia-a-dia sofrido. Iris Rezende
Machado apresenta-se como um homem sensível e sua sensibilidade equilibrada o faz
perceber de forma mais clara a concretude dos fatos, os vários ângulos, que o elege
para perceber tanto o homem comum quanto a necessidade de um diálogo preciso,
afável com o governo federal, único discurso capaz de realizar o entendimento
nacional19. Quando alguém consegue captar os anseios populares, ou a sua média, em
um momento de ansiedade por transformações, mas delicado quanto a direção a
seguir, e traduz estes anseios de forma competente em seu discurso político, de forma
a atrair para si, no imaginário popular, a figura daquele que irá restabelecer a direção
que deve ser tomada, a expressão dos anseios populares, cria-se a possibilidade
legitima, pelo voto popular, desse representante, tomar em suas mãos o desejo pelas
daria. Percebe-se a cadeia de poder e a subordinação da população a esta cadeia, e que a elite tanto no comício como na vida política, seria a legitima representante popular.
transformações. Essa pessoa, como representante popular legitimo, a figura do pai,
pode manipular o imaginário popular, tanto para suas idéias de consenso, quanto
também dirigir o consenso, e aqueles que a ele se opõem são facilmente colocados na
posição de inimigos do povo, já que, ninguém melhor que ele sabe perceber as
necessidades desse povo tão sofrido. Isto pode ser traduzido na forma como o PMDB
goiano, na pessoa do seu governador à época, tratou as lideranças locais do antigo
Partido Democrático Social (PDS), especialmente em relação à dívida do Estado,
sempre relacionada aos desmandos “daqueles que se afastando do povo, sem o voto
popular, mamaram no Estado”, e não estavam vinculados ao interesses populares. Por
outro lado, o PMDB procurava aproximar-se do governo federal, sempre disposto a
desarmar os espíritos, como se o PDS não fosse o partido da situação do governo.
Isso foi possível no processo de democratização brasileiro, lento, gradual,
passo-a-passo, que permitiu um controle das reais expectativas políticas e a verificação
dos ânimos das lideranças políticas que iriam ocupar os locais de poder. Nessa
realidade, a situação foi ao linchamento pelo voto popular, criando-se novas metas,
novas perspectivas. Permitiu demonizar o regime, mas localizar essa demonização,
essa estigmatização nas lideranças locais, mantendo o diálogo no nível federal,
desvinculando de certa forma os dois níveis de poder. Isso possibilitou a captação dos
anseios populares, a criação de uma confiança nas lideranças que eram eleitas pelo
voto popular e um gerenciamento pelo representante eleito, entre os setores populares
e o governo federal. Esse procedimento mediava os anseios, os possíveis radicalismos,
esvaziando qualquer manifestação que pudesse ser considerada mais radical. Os
discursos cooptavam os ânimos, possibilitavam o dirigismo, uma manipulação do
regime militar, por meio dos representantes eleitos, criando e reforçando a
legitimidade a qual nos referimos, e a possibilidade das manifestações de um
populismo, como já vimos, pejorativo. Esse populismo antes de 1964 ganhava
acentuado ânimo de patrocínio das camadas populares, o que criou um receio nas
elites nacionais, mas agora se manifestava de forma não-proibitiva, conciliadora, (por
19 Evidentemente que a democracia é pelas divergências políticas, conciliatória, abrandadora, o que permite o tom pragmático de seus pronunciamentos e o contrário seria uma esquerda revolucionária e perigosa para o momento político que se apresentava.
nós vista como conservadora, pois não permitia uma transformação mais profunda na
estrutura das relações sociais).
Se não existem documentos com os quais se possa provar as conexões de
poder que foram criadas, a análise das declarações revelam a proximidade da chamada
oposição peemedebista no estado de Goiás e as chamadas forças do regime. A nossa
análise será retroativa, o que nos facilitará com a análise do discurso, recompor os
fatos da época, revelando o conteúdo da transição que pode ser percebida pela análise
do PMDB goiano, com base em lideranças importantes como Iris Rezende Machado.
Em artigo intitulado de Encontro com Figueiredo emocionou Iris, o
caderno de política do jornal O Popular publicou:
Ao deixar ontem o Palácio do Planalto, onde juntamente com mais nove governadores da oposição, despediu-se do Presidente João Figueiredo que viaja aos Estados Unidos para exames médicos, o governador Iris Rezende Machado revelou que “o presidente demonstrou muita sensibilidade pela atitude tomada pelos governadores da oposição em manifestar sua solidariedade ao chefe da Nação, nesta sua ausência do País para tratamento”. De acordo com o governador goiano, “o encontro se tornou mesmo num acontecimento bastante humanitário num ambiente amistoso, de compreensão, de diálogo e posso dizer que até mesmo de emoções”. Iris Rezende voltou a defender a busca do consenso e do entendimento entre os homens públicos do País, “Já que sobre nossos ombros está grande parcela da responsabilidade de conduzir os destinos da nação e fugir ao debate e ao entendimento é dificultar as coisas, é dividir forças e capacidade de realização”, argumentou ele. Iris Rezende afirmou também que “o consenso deve ser buscado para a solução dos graves problemas nacionais, embora eu não queira me referir ao consenso da forma deturpada como vem sendo colocado; cujo significado tem sido tão explorado pelo País afora” (...). (O Popular, 14 de jul. de 1983, p. 3)
Em uma declaração na qual nega, um sentido pejorativo como era
colocado nos meios de comunicação, a busca do consenso nacional, certamente
deveria ser realizada de uma forma que representasse os interesses populares, e que
fosse consensual. A própria criação de um consenso, do diálogo, já demonstra a
impossibilidade de um rompimento com as forças do regime, o que implica
necessariamente uma submissão dos interesses populares a um consenso, cujo teor não
se interrompia com uma forma de organização social, mas que criava, permitia uma
transição política em seu interior. Quando duas partes acordam sobre algum ponto,
significa que não existe uma preponderância absoluta de uma parte sobre a outra.
Nesse caso, a soberania popular não existe, mas, ainda assim, transmite-se que ela é
buscada e que ocorrerá de qualquer maneira, já que a vocação do homem eleito é a
expressão dos interesses daqueles que o elegeram. A imagem que se cria é que se
conquistou o máximo possível, porém, não na medida da intensidade que é colocada
no discurso.
A ênfase do discurso além da palavra consenso pode também ser percebida
nas palavras humanitário, amistoso, compreensão, que se liga facilmente ao
entendimento do consenso, e emoções. Procurava-se criar uma sintonia nacional, o
sentido real do consenso buscado entre os agentes do regime e a população. A criação
de uma sensibilidade dos militares, na pessoa do Presidente João Batista não seria
alheia aos anseios populares, mas com o intuito de sensibilizar a população para esse
fato: eles são seres humanos como nós, têm problemas como nós, possuem
sentimentos nobres dentre os quais a instalação de um sistema político
verdadeiramente democrático. Esse tom legitima também a necessidade da realização
do golpe de 1964, já que as forças políticas que agiam no país não eram democráticas
e os interesses nacionais deveriam ser resguardados. Segundo um subtítulo da matéria,
denominado desbloqueio, Iris Rezende Machado teria ido a Brasília para tratar do
repasse de verbas para o estado de Goiás, mas a ocasião serviu para a demonstração
das afabilidades entre o presidente e o governador do estado de Goiás, uma
demonstração de como andava a situação da normalização da situação de
antagonismos entre os interesses populares e o regime.
A realidade é que se ressalta na notícia a atitude dos governadores da
oposição de prestar solidariedade ao líder soberano da Nação, o qual havia ficado
muito sensibilizado, e demonstra-se claramente a posição de assentimento, de não-
repudio ao regime, da necessidade de sinalizar, de forma positiva e da melhor maneira
possível, essa situação. Entretanto, não podia ocorrer uma situação de desgaste entre
as oposições e a situação, algo que viesse a melindrar o processo, ou emitisse sinais
que acirrassem ânimos mais sensíveis e que pudesse vir a criar uma situação de
desconfiança de setores da população. Pedia-se que as pessoas que fossem mais
cautelosas, não necessariamente que concordassem com o regime ou que a ele
aderissem totalmente, mas que deveriam temer um retrocesso, seja pelas forças, seja
pelo improvável crescimento das forças de esquerda naquele momento, em relação ao
processo em andamento. Ficava estabelecida a necessidade de se criar uma
cordialidade, de dividir as forças, as responsabilidades, implementando de forma mais
efetiva as transformações. Seria uma grandeza das oposições reconhecer suas
limitações, em permitir que aqueles que foram repudiados pelos anseios populares
agora dessem sua contribuição para o processo de redemocratização, pois de fato sem
eles o processo não ocorreria, daquela forma, naquele momento. Portanto, a soberania
nacional seria manifestada mediante a grandeza de suas lideranças ao perceber suas
limitações, na convivência pacifica com as autoridades do regime. A grandeza do povo
brasileiro era expressa em seus líderes, e, no caso de Goiás, por seu governador eleito,
soberano representante das forças populares. A questão de dividir esforços demonstra,
que a redemocratização não seria possível sem as forças do regime, uma ironia,
encoberta pela força dos discursos e pela necessidade de participação popular nas
responsabilidades das ações que seriam tomadas daquele momento em diante.
Viabilizando-se uma democracia nesse sentido, cria-se uma aceitação da população,
que não pode negar as decisões de seus líderes, já que eleitos legítimos representantes
seus, estavam agindo contra o espírito democrático, contra enfim a democracia20. O
receio de uma esquerdização do processo criou uma necessidade de se crer em uma
proposta política de direita, que se revelou, pelo menos no caso goiano (ao menos), um
apelo ao populismo de Iris Rezende Machado, como uma alternativa a outra opção
política de maior porte. Nesse caso, o populismo permitiu a implementação de
medidas superficiais, de governo, mas que, naquele momento, eram de grande
representatividade política.
A verdadeira democracia não prescinde de todas as forças sociais em ação,
não põe à margem da política, nem mesmo os agentes políticos que prescindiram dela,
20 O momento de transição que governo de Sarney representava, de maneira indireta, a nosso ver, o momento de organizar as forças políticas que mantivessem a legitimidade democrática por meio de um candidato escolhido e trabalhado politicamente pelas elites, mantendo-se uma representatividade com o distanciamento dos anseios populares, como foi o surgimento e crescimento do Partido da Reconstrução Nacional (PRN), partido que lançou a candidatura de Fernando Collor de Mello à Presidência da República. No período que significou uma entressafra política, uma indefinição, o PMDB começou a sua maior glória e decepção, no ano de 1986 com o Plano Cruzado, que se mostrou eleitoreiro, o que gerou uma crise de confiabilidade política neste partido, o rompimento político de vários setores do PMDB, o surgimento do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), como proposta social-democrata. O governo Fernando Henrique Cardoso estabeleceu ações neoliberais, segundo medidas técnicas de contenção de gastos e diminuição do Estado, sugerido pelo FMI, para contar com o crédito internacional.
já que a verdadeira democracia perdoa, segundo os valores mais sagrados do
cristianismo. Pode-se lembrar a declaração de Irapuan Costa Júnior, que dizia que os
radicais do PMDB, da esquerda do partido, não eram cristãos, portanto incapazes de
perdoar, eram irreconciliáveis, não entendendo jamais os valores da democracia. A
verdadeira democracia busca a convivência harmoniosa entre os diferentes tipos de
homens. Como veremos mais à frente o governador recém-empossado em seu discurso
à população remete também a um conteúdo religioso das famílias goianas. Este é o
tom preponderante dos discursos da época que formam um eco, um único e unificador
discurso. Constitui um paradoxo da redemocratização brasileira , já que a democracia,
seu discurso, é na verdade poliforme e plural, que cria um eco que irá reverberar em
um mesmo sentido e direção, reforçando a idéia de que sua força é muito maior do que
se apresenta, de que sua intensidade é sentida para além do que as delimitações de
espaço realmente permitem, e de que o eco é na realidade o som de muitas e diferentes
vozes — não acabaram por fim sendo o sentido das grandes festividades permitidas
nos comícios pelas Diretas Já? — que vão se somando até não mais se reconhecerem
na multidão, até mesmo sem saber qual voz corresponde à sua, sem saber de fato o que
se quer em meio a confusão de sons. Portanto, necessita de uma reorientação e uma
normatização específica que, na realidade, é aquela antiga, anterior a 1964, ou que a
fez e que permanece ainda hoje, que evidencia as relações sociais superficiais de
mudança técnica: relativas à economia e também ao cientificismo tecnológico, em sua
forma mais atualizada, entendida hoje como a globalização e o neoliberalismo. Sem a
adesão, o Brasil naufragaria, portanto nada mais antidemocrático, da perspectiva
esperada pelo brasileiro, porém longe do seu efeito estimado21. Daí a cautela que o
brasileiro sempre tem em períodos de eleição, o temor de um desastre, que passa a
ocorrer em virtude de uma reorientação na política econômica.
As nossas pesquisas permitiram identificar artigos de jornal que ajudam a
corroborar as idéias que já foram desenvolvidas até aqui e montar de maneira
adequada a linha de raciocínio que é desenvolvida até este momento. Até mesmo a
perceber nas negativas, exatamente o contrário, como ocorreu com a negação de Iris
21A introdução do Brasil no clube dos países ricos, ditos de primeiro mundo, devido à suas potencialidades naturais, significando uma melhoria substancial de vida de grande parte da população.
Rezende Machado ao questionamento relativo a um possível apoio que tenha recebido
dos militares para chegar ao governo e, é claro, como oposição. Deve-se chamar a
atenção para o tom moderador equilibrado, sem extremismos que o antigo candidato a
governador, procura transmitir, afirmando a idéia em um discurso que se dirige à
população, mas que possui o duplo sentido de se comunicar com o governo federal, o
que vai possibilitar sua candidatura a governador do Estado de Goiás, aceito tanto pela
população, quanto pelo regime. Esse fato é um facilitador das novas relações políticas
que estavam se desenvolvendo para o retorno ao Estado de direito.
O texto que iremos utilizar foi publicado no Jornal Diário da Manhã do dia
02 de março de 1982 na página 7, do caderno de política. Refere-se a uma entrevista
dada pelo então candidato a governador do estado de Goiás, entrevista esta que ficou
famosa na época por se tratar do primeiro político de Goiás a ter uma entrevista
publicada nas páginas amarelas da revista Veja. Mas antes de entrarmos propriamente
nos trechos que selecionamos da entrevista, citaremos uma matéria sobre a candidatura
de Iris Rezende Machado na ótica do PDS regional, e trechos de outra matéria logo
acima deste, que chama a atenção para o importante fato que significou sua entrevista,
que ajuda a reforçar a legitimidade de sua candidatura popular. As duas reportagens
ajudam a esboçar a idéia por nós trabalhada da queima do PDS local juntamente com
uma articulação em nível nacional, desde que, é claro, o candidato fosse um
moderado, que carregasse em si a isenção quanto a idéias radicais, portanto, alguém de
confiança do governo federal para cumprir o duplo papel — de um lado, representar
uma segurança da transição democrática no nível estadual, um teste, um prenúncio do
sucesso no nível federal, e, de outro ser alguém que com seu discurso oposicionista
atrairia a atenção da população. Gostaríamos de chamar a atenção aqui para o fato de
que tanta exclusividade e espaço na mídia poder referir-se a criação de um possível
candidato, ou candidato a candidato, à Presidência da República, uma abertura de
criação de possibilidades em uma futura candidatura com pretensões nacionais, se o
discurso de exclusivo regionalismo goiano conseguisse decolar nacionalmente. Até
aqui existem as pretensões políticas de um indivíduo, a real existência de um partido
de transição, o PMDB, a redemocratização e a articulação que ocorreram entre estes
elementos. Mesmo com Iris Rezende Machado, sendo lançado nacionalmente como
Ministro da Agricultura, e as safras recordes, não se confirmou a sua candidatura à
Presidente da República, a realidade é que as circunstancias apontam para um nome de
consenso, que de forma local cumpriu o seu papel.
Na primeira matéria, membros do PDS comentam, mas em off: PDS não
comenta declarações.
Sem comentários, mas com expressões preocupadas e até uma ponta de inconformismo. Foi assim que os meios oficiais receberam a edição de número 704 da Revista Veja, desta semana trazendo nas suas páginas, amarelas uma entrevista com o ex-prefeito de Goiânia e candidato a governador pelo PMDB, Iris Rezende Machado. Não houve surpresas quanto à publicação, pois o governo tinha conhecimento antecipado de que isto ocorreria. Poucos admitiram a possibilidade de abordar o tema futuramente. Ainda assim a maioria, que tentou ignorar o fato, não deixou de ver nele um perigo “às pretensões eleitorais do PDS”.
UMA AMEAÇA O clima de mal-estar que a matéria estampada pela Revista Veja provocou no centro Administrativo e Palácio das Esmeraldas foi o responsável pela quebra da ignorância que se tentou emprestar à entrevista de Iris Rezende. Ninguém se surpreendeu com a matéria. Não se imaginava porém, que ela ganhasse destaque, daí a decisão de quase todos em evitar qualquer comentário a respeito. Esse comportamento se justificava no fato de que “qualquer apreciação sobre o assunto acabaria por aumentar o ibope de Iris. E nisso o PDS não vai investir”. Além disso, a publicação foi recebida nos meios oficiais como “uma ameaça real dos objetivos eleitorais do partido do governo”. A razão desse receio também foi explicada: Iris tem conquistado espaços importantes dentro da imprensa, que por sua vez forma a opinião pública. E tudo isso ocorre, segundo se ouviu de muitos inconformados líderes pedessistas, “num momento em que ainda estamos atrelados ao nada das definições eleitorais”. A entrevista foi recebida como um duro golpe contra o imobilismo eleitoral do PDS. Houve mesmo, até quem em “off”, assegurasse aos jornalistas que “a continuar nesse mesmo ritmo, a ampliação dos espaços de Iris na imprensa (recordou a fonte, o debate com Índio e constante presença de oposicionistas na televisão), dentro muito pouco tempo o eleitorado se convencerá de que o PDS não tem, de fato, candidatos ao governo”.
ANÁLISES Apenas o vice-governador Rui Brasil Cavalcante Júnior e o ex-secretário da Fazenda, deputado Ibsem de Castro, concordaram em analisar a entrevista. Todavia, ambos pediram um mínimo de tempo necessário para que concluíssem por si mesmos sobre que pontos poderiam analisar e seus reflexos dentro do quadro político atual. Para a maioria dos pedessistas, mesmo que hajam contradições nas posturas do candidato oposicionista, a repercussão na área oficial não deve extrapolar os corredores. Por isso mesmo foi muito grande a expectativa palaciana com relação à ressonância do fato junto ao PMDB. Essa posição se explica no desejo situacionista de que a partir de uma provável polêmica que as declarações de Iris venham provocar em seu próprio partido, possa o PDS estimulá-la ou aproveitar a oportunidade para “arquivar” definitivamente este assunto (Diário da Manhã, 02 de mar. de 1982, p.7).
Apenas essa matéria é capaz de fornecer uma rica interpretação da
realidade política daquele momento, mas procuraremos nos ater a algumas idéias
básicas que podem ser extraídas do texto.
O primeiro ponto a ser desenvolvido refere-se ao nível de rejeição a que o
PDS era submetido. Portanto, o tom pelo qual se percebe um jogar a toalha somente
vem a reforçar em muito a força popular que a candidatura de Iris tinha à época. O
segundo é que o off não aparece apenas no quinto parágrafo, o tom de off é iniciado
logo no primeiro parágrafo. Isso pode indicar uma rivalidade política entre o PMDB (e
Iris) e o PDS, mas parece também dissimular uma certa negação daquilo que se
evidenciaria nas urnas, alguns meses depois. O tom dissimulatório tende a reforçar
muito mais a noção de vitória de Iris Rezende Machado do que negá-la. Nesse caso,
negando ou não, seria melhor não haver declaração nenhuma, já que a maneira como a
matéria foi produzida introduz no leitor e reforça muito mais a dificuldade de se
reconhecer a derrota, reforçando, portanto, a convicção de vitória do outro candidato.
Na situação que se encontrava, a negativa-afirmativa tende a reproduzir
uma dissimulação no leitor que tende a ver uma ou outra, ou as duas, que de qualquer
forma conduzem à vitória de um, e à derrota de outro. Nos comícios pelas Diretas Já
há um forte recurso de abrandamento no tom que se dá os louros da vitória. A tentativa
de não comentar, procura dissimular. A negativa-afirmativa da qual o governo havia se
utilizado possuía um forte caráter de reforço da derrota da situação e da vitória da
oposição.
Vamos passar agora à matéria que trata sobretudo de sua candidatura e da
entrevista à Revista Veja, Candidato diz apoio a seu nome desperta interesse:
Comentando ontem o fato de haver sido o primeiro político de Goiás a ter uma entrevista publicada nas páginas amarelas da revista Veja (edição desta semana), o ex-prefeito e candidato oposicionista a governador, Iris Rezende, atribuiu isso “ao posicionamento que o povo goiano vem adotando, ao lado da oposição e contra um estado de coisas que já chega a ser insuportável”. Iris prevê um crescimento sempre continuado na aceitação de sua candidatura pela opinião pública, assegurando que o lançamento de um candidato do PDS, “seja ele qual for, em nada modificará as definições do eleitorado, correndo essa candidatura até mesmo o risco de cair no vazio”. Disse não acreditar venha a ser aprovado o projeto que prevê a reeleição de governadores.
GOIÁS DESPERTA
A uma primeira pergunta sobre a que motivos poderia atribuir o fato de uma revista de circulação nacional interessar-se por suas opiniões, Iris começou por responder com uma ponta de ironia: “como não sou jornalista — comentou —, não me arrisco a avaliar os critérios usados pela revista. Mas como sob o ponto de vista econômico quem está com tudo é o governo, que aplica milhões do povo em publicidade, acredito que o critério terá sido meramente jornalístico. Ou seja, o posicionamento do povo goiano, ao lado de nossa candidatura, a essa altura despertou o interesse jornalístico da revista”. Assim, disse haver chegado à conclusão de que “foi justamente esse posicionamento do eleitorado goiano, colocando-nos em primeiro lugar entre todos os atuais nomes cogitados para a disputa das eleições de governadores, nos dez Estados de maior contingente eleitoral, o responsável pelo fato de a imprensa interessar-se por nossas opiniões” (...).
NÃO ACREDITA Referindo-se ao caso específico de Goiás, quanto à eventualidade de vir a disputar com o atual governador, respondeu que “a nós do PMDB não nos preocupa quem venha a ser o candidato do PDS, porque qualquer que seja ele terá, desde agora, um destino, que é o da derrota; assim, a luta do PDS deve ser, e ele está consciente disso, apenas para que essa derrota seja menos desonrosa” (Transcrição do Diário da Manhã, 02 de mar. de 1982, p. 7).
É patente a tranqüilidade que o candidato do PMDB goiano demonstrava
em relação à real possibilidade de sua candidatura. Já falava como candidato vitorioso.
O estado de coisas a que Iris Rezende Machado se refere na matéria, significa a
rejeição da população a candidatura situacionista. Sua candidatura viria a romper com
este estado de coisas. Na realidade, sua candidatura representou no nível estadual, os
passos com que a transição era realizada no nível federal, mais lenta, mais cuidadosa,
testando em um nível regional, nas candidaturas oposicionistas dos estados, as reais
possibilidades dos candidatos da oposição, o teor oposicionista, e até mesmo a seleção
de um candidato que pudesse vir a se tornar um consenso nacional e que Iris Rezende
Machado seria uma das possibilidades. A sua candidatura e sua posterior eleição, não
rompeu como alegava pretender, com aquele estado de coisas, mas permitiu realizar a
transição de um candidato ao governo de estado, que fosse menos preocupante ou
representasse uma total segurança para a mudança que estava em trânsito naquele
momento.
O fato de o governo militar gastar ou não, mais ou menos em publicidade,
significa inicialmente apenas aquilo que todos os governos sempre fazem — tentar
viabilizar a candidatura de seus pares. Significa que deveria ser tentada inicialmente a
transição, por seus próprios candidatos, e não sendo possível, deveria ser assegurado o
processo com um candidato mediador, moderado, com o discurso tranqüilo no que diz
respeito à direção política, e no caso de Goiás, com forte apelo popular, a que o
discurso político de Iris representava de forma adequada. Podemos perceber nesta
matéria como ele traz em sua fala a adoção popular de sua candidatura. Ele reitera
aquilo que já era conhecido, reforçando em tom paternalístico a sua realidade política,
o que cria o efeito de reverberação ao qual nos referimos anteriormente,
redimensionando suas reais possibilidades e intenções políticas.
Passaremos agora à matéria principal que apresenta a entrevista de Iris
Rezende Machado à revista Veja, que foi publicada no jornal Diário da Manhã, com o
título As surpreendentes revelações de Iris. A primeira caracterização que iremos
realizar é sobre a capacidade aglutinadora à qual o jornal Diário da Manhã se refere. A
matéria chama a atenção sobre a candidatura de Iris Rezende Machado:
O advogado Iris Rezende Machado, 48 anos, ex-prefeito de Goiânia, é o nome de maior popularidade entre todos os candidatos a governador nos dez Estados de maior contingente eleitoral do país, incluídos na pesquisa eleitoral VEJA — Gallup. Para conquistar a preferência de 39% dos goianos, esse remanescente do velho PSD dispensa a retórica radical. É um moderado que reuniu sob sua liderança conservadores, como o ex-governador Irapuan Costa Júnior, e esquerdistas, como o senador Henrique Santillo, ex-terroristas, como Tarzan de Castro, e mesmo seu antigo chefe, o ex-governador cassado Mauro Borges. Nos últimos doze meses na crista dessa frente multifacetada, Iris cruzou o interior da Goiás em todas as direções, sempre exibindo um estilo que ameaça transformá-lo no último dos grandes políticos populista. (Transcrição do Diário da Manhã, 02 de mar. de 1982, p. 7).
Iris era o pivô de uma ampla mobilização política processada naquele
momento no Brasil, no nível regional, no estado de Goiás. Sua candidatura parecia
permitir a igualdade de participação política de uma gama muito ampla de ideologias
muito díspares, realizando uma composição orgânica interna do PMDB, e que lhe deu
uma caracterização de ampla competência política. Como pivô, Iris parece funcionar
como um grande corpo celeste que agrega em torno de seu campo gravitacional
satélites de dimensão muito menor, mas que acabam cooperando com a construção da
figura política ideal para Goiás e que talvez pudesse articular no futuro uma
composição nacional. Como corpo político maior, central, sua grandeza parecia
cooperar para tornar maiores aqueles que o cercavam. Há uma mútua cooperação para
a imagem que pretendia ser passada para o imaginário popular da época. Os corpos
políticos menores alcançariam uma dimensão muito maior estando associados a um
que lhes emprestaria uma grandeza maior e com isto mesmo ganharia um novo
tamanho, um redimensionamento digno de um grande líder popular. Há aí a criação de
uma composição dialética que se encaminha para o conservantismo. Como já vimos o
representante da direita mais radical do PMDB no período das Diretas Já, Irapuan
Costa Júnior, manifestava-se com ampla voz dentro do partido, exigindo atenção de
seus correligionários para aqueles que estariam usando o partido para ações do
governo soviético no Brasil, com a 3a Internacional. A esquerda legal, a que ajudava a
compor o partido, era amordaçada, com pedidos de cautela (Frederico Jayme), e a
esquerda ilegal (PCB e PCdoB) também assumiam declarações de acautelamento.
Com a apresentação dos trechos da entrevista, existe uma análise do jornal
Diário da Manhã, do dia 02 de março de1982 na página 7 do caderno de política, que
contrapõe os pontos da entrevista de Iris, considerados pelo veículo de comunicação
como polêmicos, em virtude de um alto grau de contradições nas suas exposições. Em
alguns momentos, o jornal chega a referir-se a Iris como dúbio e equilibrista em seu
posicionamento. O que pretendemos fazer neste momento é apresentar os trechos da
entrevista, e aqueles que se referirem aos pontos polêmicos levantados pelo jornal
serão apresentados logo abaixo, vindo os nossos comentários em último lugar.
ENTREVISTA Veja (Trecho1):
VEJA — O senhor aposta na abertura política? REZENDE — Ao ver o AI-5 revogado, senti que a ditadura acabara. E continuo achando que ela acabou. Não existe mais no país ambiente para um retrocesso. Mesmo depois das bombas do Rio-Centro do pacote de novembro, não há mais chances de voltar atrás. VEJA — O presidente Figueiredo está cumprido suas promessas? REZENDE — Acredito no empenho pessoal do residente em fazer deste país uma democracia. Ele sofreu pressões internas do sistema para baixar o pacote de novembro. Foi pressionado por quem não consegue conviver com um regime aberto — assessores do Palácio do Planalto, a maioria do PDS e outros setores que não terão a mesma influência numa democracia. Os casuísmos eleitorais revelam, apenas, a fraqueza do presidente em certos momentos. VEJA — E o que o presidente fez de bom? REZENDE — Ninguém pode tirar pelo menos um mérito do presidente: ele foi sensível aos anseios populares quando aderiu à abertura às eleições. Foi capaz de compreender que era necessário comprometer o povo com as decisões de governo. (Transcrição do Diário da Manhã, 02 de mar. de 1982, p. 7)
COMENTÁRIO DM (Trecho 1):
Num momento em que as oposições têm adotado um comportamento de retração ou no mínimo de cautela quanto às intenções democratizantes do regime, o candidato a governador de Goiás
pelo PMDB é claro e taxativo em assegurar que “a ditadura” acabou. Esse posicionamento provavelmente deverá melindrar (ou açular) os setores mais radicais da oposição goiana, que mesmo sem ela já vem seguidamente acusando Iris de omissão ideológica e até de colaboracionismo, ou “pacto informal”, com o governo. (Diário da Manhã, 02 de mar. de 1982, p. 7)
ENTREVISTA Veja (Trecho 2):
VEJA — Como se compromete o povo com a política de governo? REZENDE — Com o voto. Assumirei o governo de Goiás, não tenho dúvidas disso. Vou fazer um apelo ao povo para que economize gasolina como forma de ajudar nosso governo. Espero reduzir em um terço o consumo de gasolina. Acredito que o povo deixa de ir às chácaras no final da semana para ajudar um governo que elegeu, porque está comprometido com ele. VEJA — Não é uma previsão demasiada otimista? REZENDE — Não porque conheço o povo e convivo com ele. Vejo comprometendo-se, por conta própria, com minha campanha. Amanhã, ele vai sentir-se no governo, não terá mais um governador biônico. (Transcrição do Diário da Manhã, 02 de mar. de 1982, p. 7)
COMENTÁRIO DM (Trecho 2).
Causou estupefação nos meios políticos a inusitada ênfase dada por Iris a uma meta de seu governo: “apelar para o povo” para que economize gasolina, deixando “de ir às chácara no final de semanas para ajudar um governo que elegeu”. Desde que se sabe que pela proibição de venda de gasolina aos sábados e domingos e por outras medidas de contenção já existentes o problema energético brasileiro não é de gasolina (que anda até sobrando e exporta para o exterior pela Petrobrás a preços aviltados) e sim de petróleo, a conotação prioritária desse tipo de meta deixou duvidosa impressão sobre seu projeto de governo. (Diário da Manhã, 02 de mar. de 1982, p. 7).
Entrevista Veja (Trecho 3):
VEJA — Que razões levaram o senhor a ser cassado, em 1969, por uma revolução que teve seu apoio em 1964? REZENDE — Como prefeito da capital, eu me insurgi contra o poder central, que puniu Goiás ainda de forma mais severa depois de 1964. Houve a deposição do governador Mauro Borges, a intervenção militar e a cassação dos três senadores – Juscelino Kubitschek, Pedro Ludovico e João Abraão – e da maioria de nossos deputados federais. O novo regime castigou impiedosamente os goianos. A Auditoria Militar de Juiz de Fora chegou a mudar-se para Goiânia por causa do excesso de julgamentos aqui. Por isso somos hoje um Estado de oposição. (Transcrição do Diário da Manhã, 02 de mar. de 1982, p. 7)
Comentário DM (Trecho 3)
Iris não conseguiu responder satisfatoriamente à pergunta de como explicava o paradoxo de ter sido cassado em 1969 por uma revolução a quem dera seu apoio cinco anos antes. Segundo Iris, a punição resultou do fato de ter ele se insurgido contra punições que o governo central aplicara a Goiás depois de 1964. Mas só citou fatos de 64 (intervenção no estado e deposição de Mauro Borges; cassação de Juscelino Kubitschek) e os outros citados (cassação de Pedro Ludovico e João Abraão) ocorreram em 1969 – ao mesmo tempo em que se dava a sua própria punição. Iris
afirma que o novo regime “castigou impiedosamente os goianos”, a um ponto tal em que a Auditoria Militar de Juiz de Fora “chegou a mudar-se para Goiânia”. A contradição evidente repousa no detalhe de que tudo aconteceu numa época em que ele, Iris, apoiava a revolução. (Diário da Manhã, 02 de mar. de 1982, p. 7).
Entrevista Veja (Trecho 4):
VEJA — Porque o senhor apoiou a Revolução de 1964? REZENDE — Naquele 31 de março eu era líder do governo Mauro Borges na Assembléia do Estado. Numa reunião com o governador, no Palácio, decidimos apoiar o movimento contra o presidente João Goulart porque ele estava aliado, em Goiás, aos setores mais reacionários. VEJA — Que aliados eram esses? REZENDE — Os udenistas. Em Goiás, o PTB rompeu uma aliança histórica com o PSD para ligar-se à UDN. Assim, nossa decisão de apoiar o movimento de 1964 foi uma decisão de partido: era o PSD contra a UDN. Se a Revolução demorasse mais uma semana, encontraria toda a UDN na fazenda de Jango em Uruaçu, a 250 quilômetros de Goiânia, assinando um protocolo com ele. O protocolo seria uma coligação PTB-UDN para combater o PSD. (Transcrição do Diário da Manhã, 02 de mar. de 1982, p. 7).
Comentário DM (Trecho 4)
A mais estonteante assertiva do ex-prefeito de Goiânia, no entanto, foi a justificava que ofereceu para o também aparentemente paradoxal apoio que o PSD, partido a que ele e o governador da época, Mauro Borges, deu à Revolução de 64. Segundo Iris, Goulart, deveria ter sido um fenômeno insuperável em matéria de trapalhadas políticas, pois conseguiu a um tempo só cair, na esfera federal, por estar aliado a grupos extremistas de esquerda, e perder o apoio de Goiás por estar em estreita colaboração com a fina flor do reacionarismo anhangüerino concentrado na UDN. Afirma Iris textualmente – uma frase que inevitavelmente lhe será cobrada histórica e politicamente: “... Goulart aliou-se à extrema direita goiana, representada pela UDN e pelo PSP, e ameaçou o regime constitucional”. (Diário da Manhã, 02 de mar. de 1982, p. 7).
Entrevista Veja (Trecho 5):
VEJA — O apoio à Revolução não configurava um rompimento com a legalidade que o senhor hoje defende? REZENDE — Nós, no PSD, agimos em defesa da Constituição, que estava ameaçada. E foi também em defesa da Constituição que o governo Mauro Borges, numa frente com Leonel Brizola no Sul, defendeu a posse de Goulart em 1961. Depois disso Goulart aliou-se a extrema direita goiana, representada pela UDN e pelo PSP, e ameaçou o regime constitucional. VEJA — E quando o novo regime perdeu seu apoio? REZENDE — Quando entregou o poder a um pequeno grupo fechado e passou a punir cidadãos que não eram corruptos nem subversivos, como Mauro Borges, que só perdeu dinheiro em política. VEJA — Como o senhor se insurgiu contra o governo? REZENDE — Recusei seguidos convites para ingressar na Arena, quase todos formulados pelo coronel Pitanga Maia, então chefe da guarnição militar em Goiânia. Todos os convites vinham de militares. Primeiro, em nome do presidente Castello Branco; depois em nome do presidente Costa e Silva. Minha última chance ocorreu em abril de 1969, sete meses antes da cassação. Recebi na Prefeitura o general Nogueira Paes, então comandante militar da região, que me deu um recado: “Iris, é a última vez que o procuro para você entrar na Arena. Quem não entrar na
Arena não terá água”. Respondi ao general: “Prefiro passar sede mas sem perder a dignidade junto ao povo de minha cidade”. VEJA — A intervenção não encontrou resistência da parte do antigo PSD? REZENDE — Vou revelar um fato histórico inédito. A intervenção militar se consumou a 27 de novembro de 1964, mas seis meses antes houvera a primeira tentativa para depor o governador Mauro Borges via Assembléia do Estado. Pela mesma via, acabara de cair no antigo Estado do Rio o governador Badger da Silveira. Foi então que apareceu em Goiânia o general Luiz Carneiro de Castro e Silva. Eu era o presidente da Assembléia e nos encontramos no quarto dele, no Hotel Bandeirantes. Ali, ele me pediu que a Assembléia derrubasse Mauro Borges. VEJA — Em nome de quem o general pedia essa colaboração? REZENDE — O general exibiu-me, no quarto do hotel, um ofício em que o então presidente Castello Branco pedia minha colaboração para a missão que o general deveria desempenhar em Goiás. O ofício está arquivado na Assembléia. “Estou aqui é para tirar o governador Mauro Borges”, disse-me o general, acrescentando que a operação cabia à Assembléia, como no Estado do Rio. Respondi: “Só que, para tirar o governador, o senhor não vai ter a minha colaboração”. Insistiu o general: “Bem, já sei que não posso mudar a sua opinião, mas quero amanhã pela manhã uma reunião secreta com todos os deputados estaduais”. Despachei-o: “Olha aqui, general. Antes, o senhor vai ter que me destituir porque já percebi suas intenções e o senhor não vai pisar na Assembléia”. VEJA — É correta a versão de que o afastamento do senhor encontrou resistência na guarnição militar de Goiânia? REZENDE — A punição foi divulgada numa sexta-feira à noite. Àquela altura, já sabia que o governo do Estado desejava impor-me uma humilhação. As 7 e meia da noite, logo depois de saber da cassação, fui visitar o coronel José Castro Lima, então chefe da guarnição do Exército. Ele recebeu-me chorando. Pegou-me nos braços e disse: “Você não merecia o que aconteceu”. Respondi que não desejava ser humilhado: “Coronel, eu queria que o senhor evitasse uma patifaria do governador. Queria que o senhor colocasse um policiamento em torno da Prefeitura para evitar humilhações”. VEJA — O senhor voltou à Prefeitura? REZENDE — Depois de falar com o então secretário da Segurança, coronel Pitanga Maia, o coronel Castro Lima reuniu seus oficiais e tomou a decisão de mandar aos ministros militares um pedido de reconsideração de minha cassação. No dia seguinte, um sábado, o comandante da região militar, general Dióscoro Vale, recebeu em Brasília um emissário de guarnição de Goiânia com o apelo. Dióscoro foi para o Rio de Janeiro conversar com os ministros militares, que chamaram o general Jayme Portella e pediram o processo de minha cassação. Ele respondeu que não havia processo, que eu fora cassado porque apoiava a candidatura do general Albuquerque Lima à Presidência da República, contra a do general Médici. Ambos eram candidatos à Presidência, vaga com a doença de Costa e Silva. VEJA — Por que seu apoio ao general Albuquerque Lima? REZENDE — Mas como é que eu, prefeito de Goiânia, iria envolver-me numa escolha presidencial feita por generais? Aquilo era ridículo. Sempre que ia ao Rio, visitava o general Albuquerque Lima, mas como simples amigo. VEJA — O que levou os militares de Goiânia a apoiarem um prefeito da oposição? REZENDE — Creio que consegui administrar bem sem recursos: além disso, atraí os militares para o mutirão urbano que desenvolvi na cidade e que foi a principal obra de minha administração. Pelo menos foi a de maior repercussão na imprensa nacional, lançando meu nome para fora do Estado. Fui convidado a explicar o mutirão urbano até nos Estados Unidos. Durante o mutirão, eu reunia soldado e povo. Coloquei coronel atrás de pedreiro na fila do mutirão para comer. VEJA — Não é demagogia colocar coronel atrás de trabalhador nessas filas? REZENDE — Não. Confundem minha capacidade de comunicação com demagogia. Se eu pegava na foice durante um mutirão, era porque sabia fazer isso. Sou um homem da roça. (Transcrição do Diário da Manhã, 02 de mar. de 1982, p. 7).
Comentário DM (Trecho 5)
Outra indagação ferina ficou igualmente sem justificativa razoável: como Iris explicava o fato de militares o apoiarem, sendo ele um prefeito da oposição. A afirmativa de que conseguira sensibilizar os militares por “administrar bem sem recursos”, além de atraí-los para os mutirões que promovia mostra-se muito frágil. E põe em evidencia, de maneira incomoda, um detalhe já praticamente esquecido da biografia do ex-prefeito em seu período pós-revolucionário: o excelente transito que ele sempre desfrutou nos meios militares, no Governo Costa e Silva, sua amizade e vinculação com a chamada ala nacionalista das Forças Armadas (que tinha em Albuquerque Lima o seu candidato à presidência, o general de quem Iris se confessa “simples amigo”) e o fato hoje sabido e notório de que a cabeça do ex-prefeito rolou como muitas outras no choque castrense entre a ala Costa e Silva, a vanguarda albuquerquista e o novo governo Médici. Iris era nome endossado para governador (em 1970, eleições diretas) por um segmento militar, que o considerava “confiável”. (Diário da Manhã, 02 de mar. de 1982, p. 7)
Entrevista Veja (Trecho 5):
VEJA — O povo quer a reforma agrária? REZENDE — Quer uma terra para trabalhar. Em Goiás, não é preciso a reforma agrária porque o Estado dispõe de terras devolutas suficientes. Mas em Pernambuco e Alagoas pode faltar terra. Então, sou a favor da reforma. O usucapião especial criado pelo governo resolve apenas parcialmente o problema dos sem terra, ao assegurá-la apenas para posseiros com pelo menos cinco anos de posse pacífica e produtiva. Em Goiás, não resolve nada. A distribuição das terras devolutas pode resolver. (Transcrição do Diário da Manhã, 02 de mar. de 1982, p. 7).
Comentário DM (Trecho 6)
Abordado sobre reforma agrária, Iris conseguiu, num posicionamento dúbio e equilibrista, colocar-se tanto a favor como contra ela. Esse posicionamento por certo irá custar-lhe dividendos negativos nos segmentos conservadores que o apoiam (que são contra a medida e até hoje sequer perdoam ao ex-prefeito ter-se declarado, certa feita, ser de “centro-esquerda”) e também nas correntes radicais que estão com ele – os radicais do PMDB goiano querem reforma agrária também para Goiás, providencias que Iris só admite para o Nordeste. (Diário da Manhã, 02 de mar. de 1982, p. 7)
Entrevista Veja (Trecho 7):
VEJA — Hoje, como o senhor se sente, no PMDB, em companhia de políticos que vão do ex-governador Irapuan Costa Júnior, tido como um admirador de Adolf Hitler, aos esquerdistas dos mais variados matizes? REZENDE — Não queremos uma democracia apenas para os que foram perseguidos pelo arbítrio. Por isso todas as forças devem unir-se numa frente. Aí, a preocupação maior pode ser a de demonstrar a capacidade de resistência da oposição aos casuísmos do Palácio do Planalto. (Transcrição do Diário da Manhã, 02 de mar. de 1982, p. 7)
Comentário DM (Trecho 7)
Outro ponto branco e constrangedor da entrevista de Iris foi sua infrutífera e mal sucedida tentativa de justificar sua convivência, dentro do PMDB (que lá aportou, inclusive, por suas próprias mãos), do ex-governador Irapuan Costa Júnior, um confesso e impenitente direitista. (Diário da Manhã, 02 de mar. de 1982, p. 7).
Não temos a intenção neste trabalho em questão, em virtude da sua
delimitação temática e do nível de pesquisa proposto (uma dissertação de mestrado),
aprofundarmos nos debates da época e na composição orgânica das forças no
momento, sejam internas ou externas ao PMDB, no que diz respeito a uma análise de
conjuntura política. Quando nos utilizamos de uma análise de conjuntura, ou que dela
se aproxime, será sempre para evidenciar, por contraste, uma possível ou evidente
diferença entre os discursos e fatos que não seguem na mesma direção do discurso,
que possam esclarecer melhor quanto ao conteúdo ideológico do que se diz. O próprio
discurso muitas vezes já denuncia por si mesmo a posição que está sendo tomada.
Passemos agora a uma abordagem dos temas levantados até o momento.
O primeiro ponto abordado tanto por Iris Rezende Machado em sua
entrevista, quanto contraposta pelo Diário da Manhã, ajuda para um clareamento das
relações entre Iris e sua concepção de democracia ou ditadura naquele momento em
questão. Em relação a essa concepção, é evidente que Iris considera apenas a
radicalização do regime (golpe dentro do golpe), uma ditadura. Os momentos
anteriores seriam somente uma contenção do crescimento das esquerdas. Não está nas
linhas da entrevista, mas é o que se depreende do que foi dito, já que era o motivo
legítimo pelo qual o regime afirmava ter interferido no poder. Já se percebe a
concepção de democracia com a qual ele partilha, o de uma contenção de
determinadas facções da oposição no Brasil, justamente aquelas compostas pelos que,
segundo o jornal, deveriam estar melindrados com a declaração do candidato a
governador. Quanto às dúvidas que as oposições tinham em relação ao processo de
democratização e seus aprofundamentos, essas apontam o que as oposições chamadas
pelo Diário da Manhã como setores mais radicais da oposição goiana, que acusavam
Iris Rezende Machado de realizar um pacto informal com o governo, estavam sendo
submetidas. Podemos entender que estivessem melindradas justamente porque foram
as mais prejudicadas (perseguidas) pelo regime. Quanto às expectativas que certos
setores tiveram com relação ao aprofundamento democrático, os passos foram dados já
naquele momento, (mas não apenas naquele momento, também antes), de maneira
cautelosa, em doses homeopáticas, para não perder o controle do processo, para
realizar a transição e para que não ocorresse uma ruptura na redemocratização. Como
já demonstramos anteriormente, no período das diretas, a participação das oposições
foi mediada, contida, constituindo-se o movimento nacional pelas Diretas Já como
momento mediador das reais possibilidades de participação política e, também, o da
construção das reais possibilidades democráticas brasileiras (o que anteriormente
chegamos a chamar de caldo político e cultural) do processo de redemocratização.
O ponto de número dois levantado pelo jornal Diário da Manhã está aqui
citado, pelo fato de tratar-se de uma mera manifestação do candidato, de sua força
popular, manifestando também o seu populismo de ar rural, a que o artigo da revista
Veja chama de ar de matuto distraído, quando cita um exemplo de expressões que Iris
Rezende utilizava, tais como eu lhe dou jacás de razão. Essas expressões ajudam a
compor um personagem político de extrema meiguice, grande inocência, próximo do
povo ao qual diz pretender levar ao governo. Em outro trecho da entrevista Iris
Rezende trata das razões de sua popularidade:
Qual é o principal problema hoje de meu Estado? É o êxodo rural. Eu, que converso com o homem do mato, que sou homem da roça, sei que ele quer continuar na roça mas, para isso precisa ter condições. Ele não quer continuar ajudando a enterrar a mulher do vizinho que morreu por parto malfeito. Quer ver o filho na escola. Quer médico e dentista. Eu conheço isso. (Transcrição do Diário da Manhã, 02 de mar. de 1982, p.7).
O ar bonachão do candidato oposicionista (segundo a concepção que se
pode depreender do que até aqui foi demonstrado) cria uma intimidade entre esse e a
população do Estado, elemento fundamental para ampliar o nível emocional em
detrimento da razão. Nesse caso, um instrumento político muito forte, pois como
vimos no jornal, eram abertas várias questões referentes à legitimidade da candidatura
de Iris Rezende Machado como fiel representante da oposição, o que ajuda também a
mediar críticas, seja da situação local, seja de aliados que estavam situados mais à
esquerda no partido. Estes não teriam como se opor legitimamente contra a
representatividade de tal candidatura, por causa de sua ligação popular. O personagem
político une-se à pessoa de Iris Rezende Machado de forma indissociável, aquele que
vai às rádios, à televisão, que se faz presente nos comícios (mais importante ainda
neste sentido pois assim a população pode ver como de fato ele é), criando um forte
apelo popular. As reais possibilidades da democracia brasileira são
transubstancializadas e cristalizadas como possibilidades criadas no imaginário da
população para a pessoa do grande líder que se faz aparecer. Lutar contra essa
candidatura é lutar contra a democracia. Assim, se a situação foi contra Iris, e a
esquerda estiver no mesmo caminho será chamada de equivocada em relação aos seus
propósitos, o que resguardava ainda mais as suas possibilidades.
Os pontos três, quatro e cinco dizem respeito ao posicionamento de Iris
Rezende em relação ao regime militar. Não os interessam como narração histórica da
situação política pré e pós 1964, mas somente como delineador da proximidade de Iris
Rezende ao regime. Se os fatos são na totalidade, apenas em parte ou se não possuem
veracidade alguma, não nos interessam. Como manifestação de discurso demonstra
que Iris Rezende Machado estava próximo ao menos de um setor mais moderado das
forças armadas, como quer transparecer, quando se refere ao coronel José Castro
Lima, que o tinha recebido chorando quando o regime o afastara da prefeitura de
Goiânia. A questão de que conseguia administrar bem os recursos públicos contrastava
com as acusações de que o candidato fazia contra o governo militar, o de que este
gastava muito com publicidade. Evidentemente, um interesse menor dos militares, seja
do ponto de vista da motivação do golpe, seja porque em período subseqüente o
chamado milagre econômico permitiu uma larga utilização de recursos. Some-se a
isso, que no início da entrevista, Iris Rezende referiu-se ao presidente João Batista
Figueiredo, sempre de forma a demonstrar a sua boa vontade com o processo de
transição, como se o processo de transição fosse possível mediante uma única pessoa
bem intencionada. Quando se refere aos casuísmos, às pressões internas para baixar o
pacote de novembro, Iris Rezende poupa o chefe de governo de maiores críticas, como
sendo apenas momentos de fraqueza. Aliás o general Figueiredo apresentava a
imagem de homem forte, passava a imagem de exímio cavaleiro, transmitida pela
televisão e com pronunciamentos em tom, sempre que necessário, firme. O presidente
também foi sensível ao perceber os anseios populares “quando aderiu à abertura e as
eleições”. Lembramos que o processo de distensão democrática já havia sido
preparado e assinalado pelo antecessor do general Figueiredo, o ex-presidente Geisel.
Havia um processo em curso, pelo qual o presidente Figueiredo sozinho não foi o
responsável. Novamente aqui o processo é personificado em alguém e mediante
alguém, que se compadece da população oprimida pelo regime, de que o próprio
Figueiredo era representante, porém, de sua ala mais progressista, como se tivesse
mais força dos que aquela que acirrou o regime com o AI-5. As circunstâncias
consolidaram a força de um e outro setor quando foi necessário. A palavra “aderiu”
procura com cuidado substituir outra, realizou, que como demonstramos mais acima
foi com o intuito de na realidade torná-lo o responsável pela distensão, transição,
reabertura, redemocratização.
É interessante percebermos nessa mesma passagem o trecho em que Iris
Rezende Machado refere-se à sensibilidade de “comprometer o povo com as decisões
de governo”. Exatamente, esse ponto vai traduzir de forma cuidadosa a necessidade de
tornar a população responsável pelos atos de governo, segundo uma transição
mediada, nos termos que significam não somente uma transição política, mas sim uma
transferência das responsabilidades pelos equívocos dos governos militares para a
esfera civil, dos quais temos em mente claramente o endividamento externo. A
declaração de Iris Rezende Machado demonstra um certo vazio pois não define os
compromissos de governo que, com o retorno da democracia, o povo deveria
participar, mas um dos aspectos que sobrou para os governos civis foi a
impopularidade advinda do corte dos gastos públicos nos aspectos sociais para o
pagamento da dívida. Iris Rezende não aponta medidas com as quais a população
deveria ser comprometida, o que nos leva a pensar que seriam justamente medidas
impopulares, mas aponta a motivação da democracia, porque “amanhã, ele (o povo)
vai sentir-se no governo, não terá um governador biônico”, (Veja, apud Diário da
Manhã, 02 de mar. de 1982). O efeito reverberação ao qual nos referimos
anteriormente fica claro aqui na satisfação popular de sentir-se no governo porque
votou, é o efeito, é o sentimento, e a adrenalina que são importantes neste momento e
justamente esse ímpeto que deve ser sugerido, mas também com cautela,
comedimento, moderação. Esse ímpeto faz sugerir que o retorno a democracia, à
satisfação inicial, ainda que comedida, pressupõe que a legitimidade do voto popular
conduziria à aceitação de medidas impopulares, como parece transparecer no caso da
proposta de Iris Rezende para a diminuição do consumo de combustíveis pela
população.
O ponto sexto refere-se à reforma agrária, e é explosivo quanto ao
conteúdo, pois se trata de um problema estrutural, referente à forma como o poder
econômico e político instalou-se na sociedade brasileira, revela no seu cuidado algo
interessante em relação a como deveria ser realizada a reforma agrária no Brasil.
Quando se refere à disponibilidade de terras em Goiás, as terras devolutas
(improdutivas), Iris Rezende remete ao modelo que deveria ser realizado no Brasil,
que evidentemente foge do que era (e em muitos casos ainda é) pretendido pelas
esquerdas. Se o tom do discurso evita uma esquerdização do tema não é o que parece
quando Iris se refere aos mutirões realizados no seu governo, os quais reuniam
soldado e povo colocavam coronel atrás de pedreiro no momento das refeições.
Chama a atenção aqui, o que chamamos anteriormente de medidas de mudanças
superficiais, que não mudam as estruturas das relações sociais, somente retocam ou
criam um efeito de reverberação.
O sétimo ponto levantado pela revista Veja é talvez o mais importante da
entrevista, mas o jornal Diário da Manhã considerou como infrutífera, a tentativa de
Iris Rezende para justificar a presença no PMDB goiano, de personalidades políticas
tão antagônicas, e que portanto funcionavam como limitadores das possibilidades
democráticas. A resposta de Iris Rezende Machado vem ao encontro daquilo que
muitas vezes se convencionou chamar de teoria de transição, transição negociada,
justamente por meio de um político populista. Diz que a democracia brasileira não é
apenas para aqueles perseguidos pelo arbítrio, mas a formação de uma ampla frente. É
aí que se percebe a fraqueza em se construir um regime democrático que corresponda
à parte da população, representado pelas esquerdas. Se a declaração ao jornal
descredencia hoje as teorias que vão nesse sentido, e, se essa democracia é ilegítima (a
resposta de Iris Rezende Machado aponta nessa direção), como ela foi legitimada? A
base social brasileira de uma composição heterogênea no que diz respeito à sua
democracia (reforçando-se isto com a pouca experiência democrática), permeada pela
cautela que era exigida da sociedade, permitiu que este tipo de legitimidade fosse
construída, comprometendo-se o povo com as decisões de governo. Nesse momento,
vai delineando-se a formação da legitimidade da democracia brasileira, que pelo voto
conduz os candidatos ao poder, mas que na prática afasta a população das decisões,
que muitas vezes não caminham em direção ao que se chama satisfação da vontade
popular, mas que foi a saída que possibilitou a viabilização da democratização no
Brasil. Este elemento por si só já faria pressupor a proximidade de Iris Rezende com o
governo federal, porque poupa os responsáveis pelas perseguições políticas e
ideológicas.
Ainda com relação à proximidade ou à afinidade de Iris Rezende com o
Presidente Figueiredo, há uma entrevista do dia 24 de novembro de 1984 do jornal O
Popular, a qual, além de comentar sobre a possível eleição do sucessor do Presidente,
tece elogios:
“o presidente Figueiredo deixará o Palácio do Planalto carregado nos braços do povo, porque ele realmente está mostrando ao País que a seriedade sempre norteou seus passos e suas ações”. Entrevistado no programa Bom Dia Brasil, da Rede Globo, Iris Rezende garantiu que não há possibilidade de Paulo Maluf ganhar as eleições no colégio eleitoral (...). “O mundo político nacional demonstrou uma alta capacidade política ao se sensibilizar com a vontade do povo. Também prenunciei que o presidente Figueiredo seria o grande magistrado da sua sucessão: ele tem sido e será”, enfatizou Iris Rezende, observando: “Se naquela época ao não propiciar a eleição direta causou até certa expectativa no seio da Nação, hoje posso afirmar que o presidente Figueiredo deixará o Palácio do Planalto nos braços do povo, carregado pelo povo, porque ele realmente está mostrando ao País que a seriedade sempre norteou seus passos e suas ações” (O Popular, 24 de nov. de 1984).
Paulo Maluf era o candidato oficial do regime e Iris Rezende Machado, na
mesma entrevista, logo após comentar sobre as possibilidades de vitória do candidato
da situação, faz a seguinte colocação:
“Os acontecimentos estão aí há dias a mostrar isso para o país e eu, há algum tempo, prenunciava a sensibilidade dos homens públicos deste país para com os anseios da Nação” (...).(O Popular, 24 de nov. de 1984).
Em primeiro lugar, o candidato oficial não possuía chance alguma, porque
segundo Iris Rezende, a rejeição à situação era muito forte e evidente. Em segundo
lugar essa rejeição baseava-se na figura, na imagem que os militares representavam no
imaginário popular, a qual não permitia euforia que Iris Rezende demonstrava em
relação ao então Presidente da República. A rejeição era de uma situação que havia
vigorado no Brasil até então, há mais de vinte anos. Há aí uma contradição entre
aquilo que seria a expectativa em relação às possibilidades do candidato da situação e
a relação entre a população brasileira, e o povo, como se refere Iris Rezende Machado,
e a imagem de Figueiredo. Não afirmamos que em algum grau, em alguma medida, ou
em certos setores da população, o então Presidente da República, não tivesse maior
aceitabilidade, mas apenas o tom eufórico que Iris Rezende concebe a relação entre a
população como um todo e a figura do Chefe de Estado.
Em terceiro lugar, em dois momentos da entrevista, Iris Rezende Machado
refere-se à sensibilidade dos políticos brasileiros, ou como os relata homens públicos,
mundo político com relação aos anseios populares. Fica evidenciado novamente, um
movimento de cima para baixo, que caracteriza as transições para a democracia como
a brasileira, o que ainda acrescenta uma certa dose de paternalismo da classe política
brasileira. Se são sensíveis é porque são humanos, e estão por isso conectados com os
anseios da população brasileira. Os anseios populares denunciam a insatisfação da
população, ou a perda de legitimidade do regime, e apontam uma mudança ou
necessidade de mudança. Mas ela ocorre não obstante, com a sensibilidade do mundo
político brasileiro, o que cria uma dependência em relação a esse mundo.
Em quarto lugar, cabe aqui fazermos a seguinte pergunta: o que significa a
expressão mundo político? Uma totalidade, um universo que contém todas as
tendências políticas e ideológicas. Faremos outra pergunta que nos ajudará no
encaminhamento do nosso raciocínio: quem é esse mundo político? Quando se fala em
mundo político, parece referir-se a algo homogêneo, indistinto, mas na realidade as
oposições não somente eram desde sempre sensíveis ou favoráveis à mudança política
no Brasil o que fica evidenciado na rejeição ao candidato da situação à Presidência da
República, tanto que lutaram pelas mudanças. A fala de Iris Rezende Machado
encobre uma outra parte do mundo político brasileiro, a da situação, e que já sabia da
crise de hegemonia que a falta de credibilidade (legitimidade) popular do regime havia
conduzido. Portanto, essa parte do mundo político, a situação, percebia a perda de
legitimidade do governo militar. Esta foi a sensibilidade a qual a fala de Iris Rezende
se refere, mas ao mesmo tempo é encoberta com o discurso sempre em algum nível,
populista, pois se refere à necessidade que as massas têm de suas lideranças políticas.
Evidentemente trata-se de uma via de mão dupla, pois a legitimidade nunca é
unilateral, mas o discurso tende a minimizar, dissimular, persuadir a relação de
predominância dos governantes sobre os governados. Esse elemento serve para reiterar
um tipo de autoridade que cria um distanciamento entre a população e a classe política
no que diz respeito à legitimidade estar intrinsecamente relacionada com a via de mão
dupla. Percebe-se no discurso uma aproximação na dependência da população em
relação aos seus líderes políticos, mas essa aproximação é de subordinação, o que
acaba por facilitar uma legitimação de conteúdo de governo, de visão democrática de
mão única. Isto tende a reiterar a limitação que o tipo de transição como a brasileira
impõe, e remete à delimitação do campo político e democrático, ou a uma não-
percepção pela população de que ela de fato é quem legitima ou não os governos, e
uma não-percepção portanto, da sua real força política fora de um regime democrático,
mas também dentro dele.
Em quinto lugar, por fim, refere-se ao enaltecimento que Iris Rezende
Machado faz da pessoa do Presidente João Batista de Oliveira Figueiredo, que é até o
título da matéria Iris volta a enaltecer postura de Figueiredo (O Popular, 1984), Iris
Rezende Machado sente uma necessidade, que parece ser compulsiva, de elogiar o
então Presidente da República, mas esta aparente compulsão talvez se deva à
percepção da complicada realidade política que significou o período transição política.
Para conquistar a confiança da população usa um recurso lingüístico que o aproxima
das massas, mas ele deve sempre se lembrar de que é necessário equilíbrio, de que a
situação política brasileira não se trata de um rompimento com o passado ditatorial,
mas uma transição negociada. Portanto, ao dirigir-se seja à população eleitora, seja ao
governo, ele está como que a se lembrar e a se escusar dizendo que respeita a
autoridade do regime, e a forma como ele consegue fazer isso é aliar um discurso
populista moderado com a lembrança de que existem pessoas que estão no governo a
quem deve se dirigir para tranqüilizar em relação ao conteúdo real de suas propostas
populistas. O populismo de Iris Rezende Machado não rompe com o governo, mas
compactua com ele. Mas qual a prova de compactuar? No enaltecimento. Não se
compactua no papel, mas às claras. Justamente usando um tom que chamava a atenção
para o compromisso de redemocratização do então Presidente João Batista de Oliveira
Figueiredo é que Iris Rezende Machado vai demonstrar sua concordância, sua
compreensão, e essas são de uma outra forma, maneiras de demonstrar publicamente
que concorda com o que é realizado. É aí que está a compactuação. Não são
necessárias outras provas, e como Figueiredo aparece sempre como um moderado, um
militar da ala mais aberta e progressista, o então governador de Goiás não teme dirigir
reiterados elogios. E elogios justificados, pois esse militar estaria realizando a
transição para a democracia e uma crescente necessidade de se criar um governo
legítimo. Como já vimos anteriormente e também na reportagem, os anseios populares
apontavam um crescente desgaste dos governos militares que evidentemente se tornou
um dos fatores de peso para o retorno do Estado de Direito.
O Presidente João Batista de Oliveira Figueiredo era além de tudo o
grande magistrado da sucessão que estava acontecendo, o que aponta uma isenção do
então Presidente da República, um distanciamento do processo. Pudemos ver desde o
início da exposição do nosso trabalho de pesquisa os cuidados com que um processo
de redemocratização, inclui uma série de cuidados para que não aconteçam desvios,
presentes na possibilidade da não-moderação de parte da oposição, chamada de
radical, tomando-se os cuidados necessários para com o tipo de oposição que seria
permitida, tanto faz ganhar a situação quanto a oposição. A partir desse momento,
dessa preparação, todos os possíveis movimentos de exacerbação de ânimos de parte
das oposições já estariam circundados, e a oposição obteria uma vitória da transição
proposta pelo regime militar, e uma democracia mais à direita. Na realidade essa foi a
isenção de Figueiredo e do regime22.
Para concluirmos este tópico vamos recorrer a parte de uma entrevista que
o então candidato ao governo do estado de Goiás concedeu ao jornalista Arnolfo
Carvalho do jornal Correio Brasiliense, do dia 14 de março de 1982, e também, aos
comentários que o jornalista faz de Iris Rezende Machado na mesma época. A nossa
intenção é contrapor o que ele afirma nessa entrevista com as duas últimas entrevistas
que utilizamos antes. A opinião do jornalista nos ajudará a situar de forma mais
adequada a fala do candidato Iris Rezende Machado, além do que nos utilizaremos da
mesma entrevista para comentar o conteúdo político de participação popular que os
mutirões oferecem: Transcrevemos primeiramente a fala do jornalista:
Atacado hoje pelo Partido dos Trabalhadores (PT) como “adesista que não merece confiança”, além de já ser classificado de “populista e demagogo” pelo Partido Democrático Social (PDS), o candidato do PMDB ao Governo
22O simples fato de o Poder Executivo realizar um tipo de patrulhamento, vigilância, que seria atributo do Poder Judiciário, já aponta por si só a forte concentração de poder, ou seja, uma não - isenção. O simples fato de Iris atribuir ao Chefe do Executivo Nacional um poder típico de um Estado de Direito alheio, é sinal do tipo de isenção: uma isenção não-isenta, portanto, mais que um paradoxo uma ambigüidade “equilibrista” do discurso de Iris Rezende Machado.
de Goiás, Iris Rezende Machado, parece não estar preocupado nem com possíveis “casuísmos” nas regras eleitorais, nem com a força do partido do Governo em seu Estado: na realidade, as pesquisas de opinião pública o apontam até agora como a mais sólida candidatura peemedebista em todo o País. Em entrevista exclusiva ao Correio Brasiliense, concedida em Goiânia, no Hotel Umuarama, logo após ter participado de uma das inúmeras concentrações que promove com estudantes Iris Rezende negou que tenha uma espécie de “aval” dos militares, mas deixou claro uma posição política de “democrata”, sem tendência a extremismos e com confiança “na democracia que se aproxima”. Atacou o atual governador Ary Valadão como “inconseqüente”, dizendo que 1983 vai encontrar “um estado endividado”, e admitiu continuar buscando empréstimos externos para Goiás.
Entrevista
Sem esconder um linguajar realmente populista — a palavra “povo” é o que mais aparece em suas respostas — mas demonstrando não aceitar “ser empurrado pelas ondas”(que seriam formadas pelas correntes de opinião pública, ao que parece), Iris Rezende concedeu a seguinte entrevista que vai publicada nesta página. (Correio Braziliense, 14 de mar. de 1982).
Vamos passar agora a trechos da entrevista intitulada: Iris condena
extremismos mas sua candidatura ao Governo de Goiás é luta contra o poder, diz:
P — Comenta se hoje, em Brasília principalmente, que o candidato Iris Rezende Machado não apenas teve, mas ainda tem o apoio de setores das Forças Armadas, que inclusive teriam dado uma espécie de aval. Há fundamento neste tipo de comentário? R — Não tem fundamento, uma vez que quando eu precisava de apoio fui cassado. Que apoio é este, então? Tivesse eu apoio no meio militar, não teria sido cassado. Eu tinha relacionamento com militares, como tenho com operários, como tenho com padres, com engenheiros, advogados. Pelo fato de estar o País sofrendo as conseqüências de um Regime militarista, isso não quer dizer que não haja militares bons, não haja militares idealistas. O general Albuquerque Lima, por exemplo, era meu amigo pessoal e era uma reserva nacional. Todos os militares com os quais eu tive — e se porventura ainda tenho convivência, são pessoas de bem. Quero dizer que não condeno a instituição em si, o Exército, mas condeno aqueles que usaram do Exército para tomar o poder e sacrificar o povo. Mas hoje eu sou candidato porque o povo, pela luta travada durante tantos anos, está conquistando uma democracia — e eu sou candidato dessa democracia que se aproxima, fruto da conquista de um povo. P — Então o senhor não tem mesmo nenhum esquema com o chamado “sistema”? R — Não, não. Eu sou homem da Oposição. Digo que estou na luta para pegar o poder a fim de transformá-lo em mais uma estaca, em uma alavanca de conquista do povo. (Correio Braziliense, 14 de mar. de 1982).
O discurso de Iris Rezende é moderado, em tom franco e aberto, e
evidentemente, nada mais claro e óbvio dentro deste discurso do que se relacionar ou
construir relacionamentos nos mais diversos setores da sociedade brasileira. O
discurso de tão óbvio tende a contradizer quem não concorda com ele, exatamente
porque a moderação conduz ao diálogo. Mas vamos ainda assim tentar uma
contraposição. Primeiramente, Iris Rezende Machado resguarda a instituição Exército
pois foram os generais que governaram, resguarda, a nosso ver, as forças armadas.
Considera o Exército, uma boa instituição, uma instituição positiva, que, no caso,
defende os interesses nacionais. Mas como foi ocupada naquele momento não por
militares idealistas, bons, de bem, ficaram fatalmente a mercê de seus opostos. Mas
justamente a hierarquia militar, do exército em especial aqui, submeteu esses mesmos
indivíduos à ordem militar da instituição. Evidentemente, ocorreram ações de
insubmissão, ações revolucionárias sobretudo de alguns praças graduados e oficiais
subalternos (o capitão Lamarca é um exemplo mais fácil de ser requisitado à
lembrança), mas o ar moderado de Iris Rezende Machado não se refere a militares
como esses insubmissos, revoltosos, sim a bons oficiais mais graduados (o general
Albuquerque Lima), que, por questão do ofício, que exercem na instituição Exército,
cumpriram ordens superiores. Iris Rezende Machado conseguiu durante o período
militar manter relações com oficiais desse nível de hierarquia. Uma pergunta aqui se
faz necessária: quantas pessoas hoje, mas especialmente naquele momento,
conseguiriam manter relações cotidianas de amizade com um oficial general? A
resposta elementar é que pouquíssimas pessoas o conseguiriam, exatamente por se
tratar de relações de poder. No caso, um tipo especial de relacionamento, comum em
esferas específicas da sociedade. Para que Iris Rezende Machado pudesse como ex-
prefeito, continuar mantendo relações específicas com elementos graduados da
hierarquia militar é porque o seu trânsito, ainda que tido e havido apenas mediante
alguns elementos escolhidos a dedo os bons, é um sinal de que era no mínimo
consentido, tolerado. Esse relacionamento certamente permitia uma troca de idéias,
uma comunicação através de setores específicos das forças armadas e da sociedade
civil. Alguns setores políticos da sociedade brasileira não sofreram o mesmo tipo de
perseguição, de cassação do regime. Como vimos anteriormente, esse acesso a trânsito
por setores institucionais permitiu o retorno ao governo, a partir do final da década de
1970 e início dos anos 1980, de uma oposição moderada e quase nada litigiosa. Fica
aqui mais claro que para indivíduos que se constituem em sua vida como políticos
deverão lutar para obter novamente acesso à vida política formal, o que significa poder
exercer o poder, lutar por ele e conquistá-lo, com acesso à vida pública formal23.
Realizadas essas caracterizações, passaremos agora para a análise dos
discursos das questões econômicas, de distribuição de renda, que alguns discursos nos
permitem realizar, e as relações entre participação política nesse sentido significam a
proposta dos mutirões. A análise dos discursos nos permitirá perceber o conteúdo
significativo de participação popular preconizada para Goiás nesse período,
especificamente 1982-1985 pelo PMDB, por meio de sua liderança de maior
expressão.
Vamos primeiro a algumas falas de diferentes momentos e que tratam da
questão social e econômica e que remetem a expectativas populares, primeiramente no
jornal O Popular, do dia 22 de maio de 1985:
Iris Rezende falou também de seu apoio às atividades produtivas e da fixação de prioridades na definição de projetos governamentais, segundo o critério de maior disseminação dos benefícios econômicos e sociais, para garantir uma distribuição mais justa dos frutos do trabalho coletivo. “Creio que sem desatar o nó da miséria de grandes contingentes populacionais, terminaremos por cometer a iniqüidade de aniquilar o nosso parque industrial, o maior da América do Sul, por sua condenação e índices crescentes de ociosidade, por falta de mercado interno capaz de consumir nossos produtos”, observou o Governador. Ainda como proposta de administração participativa, Iris Rezende discorreu longamente sobre os mutirões realizados com a participação efetiva do povo, lembrando que obras e mais obras foram construídas em todas as áreas do Governo pelo sistema de mutirão. “É importante salientar — disse ele — que o trabalho é prestado voluntariamente por um povo que paga impostos, que trabalha diuturnamente cumprindo suas obrigações, mas que, atendendo ao apelo do Governador, comparece às frentes de trabalho no sábado, no domingo e nos feriados”(...). Concluindo sua conferência, o governador Iris Rezende ressaltou novamente a participação do povo na administração estadual. “Em Goiás, Governo e povo estão de mãos dadas realizando uma a tarefa de reconstruir o Estado, provando que é possível vencer a crise com trabalho. Baseado no exemplo goiano, vejo que o Brasil haverá de superar a crise. Trabalhando e participando, os brasileiros encontrarão forças para agregar riquezas sempre maiores ao País e, distribuindo essa riqueza poderemos construir uma Pátria livre de homens libertos e iguais”. (O Popular, 22 de maio de 1985, p. 3).
O título desta matéria é Iris afirma que democracia sem povo é uma farsa,
e justamente esse título, com a associação à forma de administração participativa, com
os mutirões, à situação econômica de crise social, com a fala sobre a má distribuição
23 Aqui inclusive existe o respeito à hierarquia formal da democracia, à sua ordem.
de renda que queremos tratar agora. O fato de em um parágrafo acima referir-se ao
parque industrial, à ociosidade, e, no parágrafo imediatamente subseqüente, tratar de
seu estilo de governo popular por meio dos mutirões, com o povo que trabalha
diuturnamente, atende democraticamente aos apelos realizados pelo governo na pessoa
de Iris Rezende Machado. Utilizando-se de palavras que atingem o imaginário da
população, como o autovalor popular, seu esforço, a atenção aos problemas sócio-
culturais, ao sentimento nativista, alude à união deste governo com a sua população.
Mas além disso utilizando-se do discurso, da proposta dos mutirões logo após o
parágrafo em que fala da crise produtiva, de um mercado interno ineficaz, a sua forma
de corrigir as distorções havidas é com os mutirões. É o líder de um partido, e se
coloca também como líder de toda uma população, com uma proposta alternativa, que
conclama essa mesma população para a sua grande reconstrução. Dessa forma, estão
atrelados à população, as suas aspirações e aos valores sócio-culturais, o partido que,
tempos atrás, era de oposição e o seu líder legítimo, o qual eleito democraticamente,
atende às reais necessidades populares com seus projetos alternativos. O tipo de
legitimidade democrática e o modelo do projeto atendem, constróem em um momento
o entendimento do que se preconizava por democracia. Se entendermos aqui o
conceito de ação social de Weber (1994), todos têm uma mesma média de expectativa
de ações, não querendo dizer, portanto, que todos busquem o mesmo objetivo e
resultado.
Vamos passar agora para outros trechos de discurso que remetem ao
mesmo contexto, ao mesmo imaginário, porém em uma época diferente. No ano de
1983, no dia 16 de março de 1983, do jornal O Popular, transcreveu na íntegra o
discurso de posse de Iris Rezende Machado como governador de Goiás, do qual nos
utilizaremos apenas de alguns trechos. Vamos aos trechos selecionados do discurso:
Caminhamos um pouco no caminho da liberalização, mesmo em meio a uma crise econômica e social de tal magnitude que a todos nós impõe reflexões sobre o destino da Pátria comum. A história exige de nós que, nesta hora quase trágica da nacionalidade, sejamos capazes de colocar os interesses da Pátria acima dos nossos desejos e ambições pessoais. Para salvar o Brasil, devemos ter a grandeza de aceitar o diálogo, o debate franco e leal de idéias e propostas, como caminho único para reencontrar a senda do progresso, redefinir modelos econômicos, políticos e sociais (...). Acima de tudo, mais importante até que o diálogo interpartidário, coloca-se a questão de desobstruir os canais de participação popular (...). É no povo, é no estoicismo das mães do interior que choram a morte de seus filhos,
famintos e sem assistência; é na dedicação do homem do campo, que trabalha a terra, faz germinar a semente e cultiva a planta, mesmo sabendo que a paga será irrisória; é no labor honesto do operário de salários achatados, mas sempre disposto a mais um esforço para tentar ao menos garantir o arroz-com-água-e-sal a seus filhos; que poderemos encontrar o caminho. Essa busca de sabedoria do povo: eis a alma do governo goiano que se inicia. O mutirão permanente a que convoco nesta hora todos os goianos representa o apelo à solidariedade, à responsabilidade e à participação. A solidariedade do mutirão rural, quando os braços fortes do sertanejo se aliam para superar as dificuldades do vizinho; a responsabilidade do cidadão pela construção da cidade; a participação de todos — dentro de seus limites e possibilidades — na tarefa de reerguer nosso Estado e repor os negócios públicos no caminho do bem-comum. Esse é o sentido do mutirão, que animará o Governo de Goiás até o último dia de meu mandato (...). Mas o governo do PMDB conseguirá provar que é possível fazer, com as migalhas que restam aos Estados, dentro do sistema tributário concentrador que ainda vigora, um Governo sério, honesto e profícuo. Provaremos que a correta aplicação dos centavos que ficam ao Estado, nesta federação distorcida que temos, permitirá melhorar a condição de vida dos humildes, dos sem terra, sem teto e sem emprego (...). Convoco o povo goiano à jornada comum (...). Sou governador do povo, de todo o povo. Mas sou igualmente governador do PMDB. Porque foi o partido que me elegeu, pelo esforço inesgotável de todos os seus membros, eu lhe devo gratidão. Mas por essa mesma razão, é ao meu partido que eu dirijo a mais vigorosa convocação: vamos trabalhar juntos, com os olhos voltados para o futuro, sem ódios, vinditas e rancores, coração aberto ao povo, para que possamos provar que o eleitor acertou, ao despejar em nós o vendaval de votos que pretende abrir as portas ao progresso social (...). Ao povo, a renovação da promessa. Goiás vai mudar, realizando a esperança de tempos melhores, porque o povo goiano quis assim. (O Popular, 16 de mar. de 1983, p. 3; o grifo é nosso).
Com o último parágrafo, o candidato eleito Iris Rezende Machado conclui
seu discurso, dedicando ao povo a expectativa de uma promessa criada e reiterada por
vários momentos e de várias formas, buscando, no imaginário, criar a confiança no
trato dos valores da população, como que a devolver a sua auto-estima: o povo goiano
é assim, bom e agora teria um governo com o qual poderia contar. Os trechos
selecionados do discurso são riquíssimos, e, poderiam ser utilizados para outras
análises, mas nos interessa aqui, para fechar as idéias iniciais propostas no início do
capítulo, apenas corroborar essas mesmas idéias.
Vamos retornar a entrevista concedida a Arnolfo de Carvalho do jornal
Correio Brasiliense e ver mais uma consideração sobre os mutirões:
P — A palavra “mutirão” ganhou fama nacionalmente, à época de sua administração municipal em Goiânia. Tantos anos depois, como é que o tal mutirão vai se enquadrar novamente no seu projeto administrativo?
R — O mutirão em Goiânia não era simplesmente reunir pessoas para limpar lotes baldios ou consertar ruas; era muito mais, era um instrumento para se criar uma filosofia de participação popular na vida administrativa da cidade. Até 1966 o mutirão era conhecido apenas na zona rural. Hoje, o mutirão é promovido até para educar — como se vê na literatura do Ministério da Educação, nas associações de classe, nos sindicatos, todos conclamando o povo para a realização de mutirões para a solução de problemas internos; mutirão hoje se fala até no seio da família, quando se quer dizer participação conjunta. Em Goiás, a nossa administração se caracterizará por grandes mutirões pelo Estado afora; não simplesmente para consertar pontes, estradas, construir casas para os favelados... urbanizar áreas urbanos. O mutirão será o instrumento principal de aproximação entre governo e o povo, a fim de que este povo venha realmente a participar — inclusive na elaboração das prioridades administrativas. Hoje, se elabora no gabinete de um homem o plano rodoviário de um grande estado como é Goiás, sem que ninguém — nem o trabalhador, nem o pequeno proprietário rural, nem as cidades —, tenham a oportunidade de falar a respeito da prioridade desta ou daquela estrada (Correio Braziliense, 14 de mar. de 1982).
As falas contidas nas entrevistas, os pronunciamentos, permitem-nos
perceber que mesmo com o esforço em demonstrar que o mutirão é um elemento de
participação popular efetiva e eficaz, a participação se dá por meio sempre de
conclamações24, parte sempre de cima para baixo. A impressão que se pode ter com os
trechos selecionados é a de que a população participa quando convocada, e que é
necessário alguém para fazer a leitura de suas necessidades, e o povo, sem ser
conclamado não tem como mostrar-se, manifestar-se. A participação popular vê-se
assim atrelada, subordinada aos interesses e às disposições do governo estadual. Os
mutirões como proposta de governo participativo aparecem por outro lado como um
meio de veicular, extravasar, canalizar os interesses sociais das camadas da população
de menor renda. Assim, além dos discursos trabalharem de maneira específica as
expectativas, a proposta de participação popular por intermédio de mutirão serve para
captar essas mesmas expectativas. Existe portanto uma visão de participação popular
dosada, que não permite uma maior emancipação política. Os discursos servem como
moeda motivadora, emocional, dos interesses específicos da população e os mutirões
oferecem a mão-de-obra necessária para a realização de obras a custos baixos. Forma-
se uma cadeia de ação e reação que viabiliza uma determinada proposta política, que
pretende vincular a população ao governo por meio dos discursos.
24 Conclamada aqui tem o tom de um convite mas com um sutil imperativo.
Para conclusão deste capítulo, iremos utilizar alguns textos jornalísticos
sobre o posicionamento de Santillo em relação a Iris Rezende Machado. O título da
matéria é Santillo discorda de Iris sobre indiretas, publicada no jornal O Popular:
O senador Henrique Santillo discorda do governador Iris Rezende no que diz respeito à participação do PMDB no processo de eleição indireta para a Presidência da República, entendendo que se agisse assim o partido estaria cometendo um crime contra a sociedade brasileira. “O PMDB não pode se acomodar apenas na hipótese do consenso e, sobretudo, começar a admitir a sua participação na eleição indireta. Se o fizer, estará cometendo um crime contra a sociedade e contra o povo brasileiro, principalmente contra os que votaram no partido, confiantes em que ele saberá cumprir o seu programa e sua plataforma maior de luta, que é o restabelecimento imediato da eleição direta para a Presidência da República”, disse Santillo (...) (O Popular, 10 de dez. de 1983).
Ainda nesse sentido, em outra entrevista ao mesmo jornal, com o título
Santillo defende ampla mobilização, faz a seguinte afirmação:
Henrique Santillo condenou também aqueles que afirmam ser as eleições pelo processo indireto, também democráticas. “Eu digo que sim, só que afirmada no Brasil e por homens do Governo, trata-se de um deslavado cinismo. No Brasil, nem indireta a eleição é. Ela é biônica, onde um apontado por meia dúzia de generais é que vai governar. E isso basta. O povo já gritou que basta”, enfatizou ele. (O Popular, 23 de dez. de 1983)
A primeira matéria demonstra que Iris Rezende Machado já estava
contente com a possibilidade de um governo eleito de forma indireta (diferente do
momento das Diretas Já), o que demonstra uma satisfação com a situação em questão.
E a segunda matéria parece apontar indiretamente o posicionamento de Iris Rezende
Machado em relação à aceitação de um governo eleito de forma indireta, o que o
aproxima de maneira ainda mais clara do governo federal e de um político para a
transição, ao qual nos referíamos anteriormente, para o tipo de democracia brasileira.
Existe algo aqui ainda para que nós gostaríamos de chamar a atenção. Após ter
retornado ao poder, ao exercício político formal da democracia, Iris Rezende Machado
não demonstrou maiores ambições democráticas e a sua proposta política de
participação, assim como todos as suas disputas para democratização, referem-se
sempre aos componentes do governo local da situação, evitando uma realidade de
conflito com os militares e mantendo o discurso democrático e de dissenso no nível
regional em relação aos integrantes do PDS goiano, o qual sempre constitui uma
minoria que governa em detrimento da vocação legítima da população. Sendo assim,
deixaremos essas e outras considerações finais para o último capítulo.
CAPÍTULO III
Impasses do processo de transição e consolidação democráticas em Goiás
O desenvolvimento da democracia brasileira foi marcado por um processo
de composição entre os vários setores da sociedade. O tipo específico das democracias
européias conduziu a um processo diferenciado do brasileiro, em que as idéias
nascentes de liberdade, igualdade e fraternidade assinalaram o nascimento de um novo
mundo, onde a modernização técnica que revolucionou o mundo ocidental incorporou
idéias desenvolvidas na Europa Ocidental (Mannheim, 1974). A incorporação do
novo, ainda que compondo com forças sociais existentes introduziram, com muito
maior facilidade as novas concepções de mundo. Essa nova cultura teve como berço a
Europa, portanto, foi possibilitado pelas novas forças sociais emergentes naquele
momento histórico (séculos XVII, XVIII, XVX) de redefinição das concepções de
mundo, de sociedade e de organização econômica e política.
As tentativas que foram realizadas com o objetivo de implantar novas
democracias buscavam essa orientação mista, híbrida entre os vários setores da
sociedade. Desde o comício pelas Diretas Já, os elementos ideológicos que nortearam
o processo procuravam uma articulação que detivesse um maior avanço das esquerdas
no Brasil. Nesse sentido Weffort (1992) já indicava os elementos das novas
democracias. Segundo ele, as novas democracias foram se desenvolvendo, a partir dos
anos 70, no sul da Europa, na América Latina, nos anos 80 e mais recentemente na
Europa Oriental (1989) e URSS (1991) (Weffort, 1992). As novas democracias
incorporaram elementos de um processo de transição, com elementos importantes do
passado autoritário e ainda por cima a construção dessas novas democracias foi
realizada em uma época de crise social e econômica com desigualdade social extrema.
Era portanto fator comum a todas as novas democracias, situações sociais e
econômicos que diminuíram a legitimidade ou a crença da população nos governos
com regime autoritário.
Weffort (1992) tem em mente a necessidade do jogo político para o
desenvolvimento de uma cultura democrática. Considera as novas democracias não
somente como ainda não-consolidadas, mas também e até mesmo como não-
democráticas; são democracias em construção (Weffort, 1992). Analisa as novas
democracias sobre três prismas importantes: como instituições: regimes mistos, em
que as lideranças políticas permitiram compor de forma competente elementos de
continuísmo e conversão, e o fator democracia política e desigualdades sociais.
Partamos para o primeiro elemento, as instituições da democracia enquanto regimes
mistos.
Weffort (1992) mostra que grande parte dos regimes políticos são
constituídos por regimes mistos. Segundo ele as novas democracias teriam um relativo
sucesso se nelas conseguissem equilibrar elementos tradicionais da cultura da
sociedade com elementos culturais novos da democracia. Ele menciona diferentes
tipos de instituições tais como o Exército, os bancos estatais e outras empresas
públicas, além de tipos distintos de instituições ligadas à intervenção econômica do
Estado que reafirmariam a preeminência dos Executivos sobre os Parlamentos. Ainda
como exemplos de misturas, Weffort cita os sindicatos no Brasil e sua subordinação ao
Estado durante o período da democracia populista (1945-1964) e também durante o
período da nova democracia, posterior a 1984, com constrangimentos institucionais,
que foram fruto de uma estrutura construída após 1945.
Analisar a autonomia da sociedade civil em relação ao Estado é um fator
relevante. Weffort (1992) afirma que “diferentes tendências do pensamento político
consideram que não há democracia onde não há autonomia da sociedade civil”. Porém,
ressalva que situações de completa autonomia da sociedade civil são raras. Portanto,
em determinadas situações as pessoas diretamente envolvidas no processo podem
considerar as situações mistas em que se encontram, como pouco democráticas. No
contexto das novas democracias, a tentativa de se construir uma nova situação política
com um certo grau de elementos democratizantes, já constitui um avanço, em relação
à situação de regimes totalitários, no qual as novas democracias se encontravam
anteriormente. A composição entre elementos novos e antigos gera, não raramente,
atritos, em virtude das discordâncias mas quando devidamente gerenciados, podem
permitir uma situação de diálogo e de resolução que deverá contribuir, com as disputas
políticas, para a construção de uma determinada cultura democrática e, por
conseguinte de um regime político democrático.
Não interessa aqui nenhum dos exemplos de instituições mistas citadas por
Weffort, apesar de suas colocações servirem para introduzir a instituição por
excelência dos jogos políticos da democracia, que são os partidos políticos. A análise
de um partido, o PMDB e alguns políticos a ele pertencentes, demonstra a constituição
mista por excelência da democracia brasileira e em um caso específico a situação
sócio-econômica goiana por nós pesquisada. Desde o primeiro momento deste
trabalho, na escolha do período conhecido por Diretas Já e que chamamos de rito de
passagem para a democracia brasileira nos permitem construir uma configuração da
nova democracia brasileira, nos esquemas teóricos por nós adotados. A escolha do
período das Diretas Já, também forneceu elementos facilitadores para a nossa análise,
que é o acontecimento de um fato de caráter nacional e que ocorre em um território
goiano, na capital do estado de Goiás e em um locus específico que é a Praça Cívica
em Goiânia. De um lado, permitiu um elemento facilitador para a construção da nossa
análise, e de outro, permitiu incorporar com base nos pronunciamentos feitos naquele
momento, e também do dia anterior, na Praça do Bandeirante, os elementos: partidos
políticos não-legalizados, a escolha de lideranças políticas que poderiam ou deveriam
realizar os pronunciamentos e o mais importante deles, a população, a quem esses
pronunciamentos, em média, eram dirigidos. A contribuição para a nossa análise foi a
possibilidade de reviver analiticamente aquele momento específico da história
nacional, e pela análise do discurso, percebemos a situação política conjuntural, mas
que fazia nascer para o futuro um determinado tipo de democracia, segundo a
concepção de Weffort (1992).
A análise do contexto em que se deu o comício da Praça Cívica e
momentos anteriores, permitiram também construir um nexo com o período anterior
ao do movimento pelas Diretas Já, que envolvem os anos de 1981/1982 quando se
construía ainda a candidatura de Iris Rezende Machado como elemento político de
consenso (em Weffort o tópico, lideranças políticas: continuísmo e conversão), o que é
um exemplo local de políticos nacionais. Procurar introduzir outros indivíduos ou
partidos em nossa análise do discurso aparentemente foge à nossa proposta inicial,
mas iremos explicar aqui o nosso procedimento. Como já foi indicado por nós, o
elemento Diretas Já na Praça Cívica permitiu um fator delimitador do nosso objeto de
pesquisa e uma articulação com situações da construção de um consenso por meio do
discurso político moderado. As falas daquele momento possibilitaram perceber a
complexidade interna do PMDB, entre elementos de diversas orientações políticas,
não somente da composição orgânica entre esquerda e direita, mas também em níveis
distintos de manifestações políticas da direita peemedebista (Irapuan Costa Júnior, Iris
Rezende Machado e Henrique Santillo). A articulação política, que se verificava
internamente no PMDB e deste em relação aos demais partidos de oposição servem de
contraponto para mostrar o elemento hegemônico do processo de democratização
brasileira, em que se construiu uma opção pela ação política à direita nas orientações
ideológicas.
Uma conclusão a que podemos chegar no nível do estado de Goiás entre os
três componentes do PMDB citados, segundo um modelo político híbrido ou segundo
conceito de Weffort, misto, é que Iris Rezende Machado com seu discurso moderado
conseguiu captar as intenções de voto da população. Por outro lado, surgiu como
proposta política que não comprometesse a transição que estava sendo realizada,
segundo a orientação que foi sendo percebida nos pronunciamentos que antecederam o
dia das Diretas Já, mas também no dia em que o comício ocorreu. Em uma
determinada sociedade x, os elementos que dela participam são, segundo seu convívio
cultural, preparados para o momento da fase adulta do processo de sociabilização
oferecido por esta sociedade, e que preparam os seus membros para o rito de
passagem, o que percebemos nos entrevistados que antecederam o momento crucial,
que foi proposta na emenda Dante de Oliveira. Segundo vimos, os oradores no dia do
comício em sua quase totalidade evitaram discursos revanchistas em relação aos
militares. Este discurso local, ou que ocorreu em Goiás mediante lideranças políticas
nacionais, foi sendo construído anos antes com a proposta da candidatura de Iris
Rezende Machado cuja grande vitória popular consistiu certamente também em saber
captar os anseios populares pela média, assim como se articular com o poder dos
militares instituído naquele momento, o qual também se verificou nos vários
pronunciamentos ocorridos na Praça Cívica.
O menor sucesso de Henrique Santillo pode ser também atribuído ao fato
de anos antes ter realizado uma opção política mais à esquerda, já que anos antes fez
parte do quadro do PT regional, mas também por ter apostado mais no sucesso da
emenda Dante de Oliveira, que como sabemos não obteve sua aprovação o que
significava o receio de se construir naquele momento (1984) a totalidade das
instituições políticas, que conduziriam ao jogo político que alcançasse até o nível do
cargo de Presidente da República. A composição mista que foi realizada exigiu maior
cautela e uma não-aproximação de uma representatividade política, ou seja,
implementar de imediato demandas sociais da população que conduzissem para fora
das propostas mistas possíveis naquele momento (efeito reverberação) e a construção
de uma democracia, com um hibridismo político que conduzisse a um regime
delegativo, segundo O’Donnel (1991). Neste rito de passagem ocorreu a construção de
um regime democrático que não correspondia imediatamente aos anseios populares.
Já a presença de Irapuan Costa Júnior parece cumprir muito mais um
elemento de vigilância ideológica no interior do partido do PMDB, segundo a
entrevista por nós selecionada, já que, originalmente se ligaria muito mais a elementos
do PDS goiano. Mas a sua passagem para o PMDB é o que a teoria de Weffort chama
de conversão de elementos não-democráticos a propostas democráticas, o que permite
a tessitura de uma composição mista, a nova democracia brasileira em seu nível
regional. Percebe-se que a conversão de alguns elementos à oposição, no caso o
PMDB, é a expressão de uma articulação do mesmo tipo tanto no nível regional,
quanto no nível nacional, que é abordado por Weffort (1992) mediante um de seus
elementos, o então Presidente José Sarney, antes componente da antiga Aliança
Renovadora Nacional (ARENA). A conversão desses elementos às propostas
democráticas, segundo Weffort (1992), possibilita as chances de consolidação
democrática, já que, se não há uma maior adesão desses sujeitos políticos à
democracia, dificulta-se a sua consolidação por causa de uma maior resistência às
reformas institucionais a serem realizadas.
Nesse caso Weffort (1992) chama a atenção para Maquiavel, para o
elemento de competência política que contribui para o sucesso desse tipo de processo
de redemocratização, que é a vìrtu e além dela a fortuna. No caso da competência
(vìrtu) os sujeitos politicamente competentes percebem a real situação em que se
encontram inseridos (conjuntura política mas que segundo um passado histórico, aqui
por nós tratado como falta de cultura política democrática, percebem as verdadeiras
possibilidades futuras) e que lhes é oferecida (fortuna) e procuram dominar essa
oportunidade que se apresenta a eles.
Queremos chamar a atenção aqui de forma especial, para a presença da
oposição que o PMDB passou a representar naquele momento político e histórico que
estava sendo constituído e evidentemente com as suas lideranças políticas mais fortes
ou hegemônicas. Segundo Weffort (1992) o continuísmo é importante para o sucesso
das novas democracias. De um lado, a continuidade ou continuísmo político nas novas
democracias:
Na transição brasileira por exemplo o continuísmo foi não apenas uma imposição de grupos militares que deixaram o poder mas também uma escolha política de muitas forças democráticas que o assumiam. Foi um compromisso entre moderados ou ambos os lados e, neste sentido, uma expressão da realidade do poder dominante no país. Rejeitado apenas por pequenos grupos de esquerda, este compromisso desvenda a real natureza da “Nova República” no Brasil como o resultado de uma “transição conservadora”. Uma transição conservadora que combinou “conversão”, no sentido definido por Hankiss, e o “continuísmo” no sentido latino-americano mais tradicional para estabelecer a maioria dos líderes nos quais hoje se sustenta a “nova República” brasileira. Não creio que o Brasil seja o único caso no gênero dentre os “regimes mistos” da América Latina. (Weffort, 1992, p. 20,21).
O fato de lideranças políticas democráticas terem abraçado a proposta
conservadora de redemocratização brasileira deve-se ao menos em dois pontos que
podemos aventar: 1°) a estrutura econômica política e social a qual já nos referimos
anteriormente, conduziu a um pragmatismo político diante da situação que se
apresentava naquele momento; 2º) esse pragmatismo está ligado à possibilidade da
viabilização política de projetos pessoais das diversas lideranças da direita política,
que de outra forma, não conseguiriam viabilizar-se em uma democracia com ampla
participação popular, esses projetos já estariam coptados, segundo a proposta de
democracia delegativa.
Podemos referir-nos a projetos políticos pessoais pois segundo Weber
(1994) são os indivíduos que emprestam sentido às suas ações segundo uma média
geral de expectativas esperadas, portanto, possíveis. Para agir politicamente, para dar
sentido a uma ação ou relação política, os indivíduos o fazem segundo projetos
subjetivamente dados, mas atribuídos conforme uma realidade dada (aqui os
elementos vìrtu e fortuna).
A pesquisa de campo realizada no Central de Documentação (CEDOC)
das Organizações Jaime Câmara já permitiu a confirmação empírica das formulações
de Weffort (1992), em relação à ausência dos partidos políticos de esquerda, no
processo de redemocratização, por esperarem ou desejarem uma maior implementação
de fatores democráticos e não uma transição conservadora. Os indivíduos só puderam
portanto, viabilizar sua participação política segundo projetos moderados, ao passo
que os que assim não o fizeram ficaram à margem do processo oficial, ainda que
estivessem presentes fisicamente nas diversas manifestações populares. A análise das
manifestações ocorridas na Praça Cívica permitiu verificar a legitimação popular,
segundo a média dos discursos ali pronunciados. Mas podemos verificar também,
fazendo ao contrário do que Weffort nos permitiu ver, um sentido inverso realizado
por lideranças como a do ex-Presidente José Sarney. Esse sentido inverso diz respeito
á conversão da direita do PMDB aos interesses do regime militar, até mesmo porque
uma conciliação aponta a convergência e uma convergência realmente só é possível
quando ambos os lados se entendem segundo uma média de expectativas construídas
socialmente.
Vamos agora passar ao terceiro elemento selecionado por Weffort em
relação à sua importância para o sucesso das novas democracias, de forma muito
específica as latino-americanas (mas não apenas) e diretamente a brasileira, que é a
difícil tensão entre democracia política e desigualdades sociais. O autor traz a
discussão da igualdade ontológica dos indivíduos, que já abordamos em Mannheim
(1974) para o contexto das sociedades latino-americanas e especificamente, para o
caso brasileiro: a discussão de níveis de democratização (não o preto no branco, mas a
verificação das tonalidades das várias novas democracias), e o contexto social das
novas democracias e o aspecto competitivo ou dos jogos da democracia.
Weffort inicia a discussão por Joseph Schumpeter (Weffort, 1992) que cita
os aprofundamentos realizados por Dahl e Bobbio e as suas contribuições para o autor
em questão, que trabalha com a concepção, que contraria a concepção clássica de que
a democracia não é necessariamente concebida a serviço do bem comum, e que, na
realidade, a democracia é um método para as elites obterem pacificamente o poder. A
concepção de democracia aceita por muitos cientistas sociais segundo Weffort (1992)
sugere uma definição de democracia mínima, que se limita ao esquema do respeito às
regras do jogo. Discussões teóricas á parte (Weffort refere-se a uma contradição
desses autores ao tratar do assunto), existe a noção também comum entre os
sociólogos de que ao respeito mínimo dos jogos políticos deve corresponder a
satisfação mínima de requisitos sociais básicos. Afirma o autor:
Se nos lembrarmos dos clássicos da teoria democrática, nos lembraremos também de que uma teoria do desenvolvimento da democracia não pode negligenciar a teoria do desenvolvimento da sociedade. A premissa nacional que se pode desvendar debaixo da definição “mínima” de democracia, sugere um ponto importante sobre as relações entre condições políticas e sociais. Nenhuma teoria política clássica nos autoriza a ser tão formalista a ponto de sermos levados a acreditar que a definição mínima seria operativa em qualquer contexto social, de modo inteiramente independente de certas condições sociais básicas. Assim como a realidade política dos cidadãos nos Estados –Nação modernos requer um mínimo de condições institucionais, requer também um mínimo de condições sociais. E este mínimo se refere ao fenômeno da individualização, á formação social dos indivíduos, na sociedade moderna. (Weffort, Lua Nova, 1992, p. 25-26).
Portanto, a igualdade ontológica dos indivíduos, a formação do moderno
conceito de indivíduo, de individualidade, que como já havíamos abordado no
primeiro capítulo, com a análise de Mannheim (1974), implicam um histórico social e
cultural problemático para sociedades semelhantes à brasileira, justamente pela falta
do conteúdo de estruturação social específica que um determinado desenvolvimento
histórico possibilita. Continua problemático para a consolidação da democracia e aqui
não nos referimos à consolidação das instituições democráticas com o retorno das
eleições para Presidente no ano de 1989, e sim para a consolidação de uma cultura
política democrática. Em seus termos:
A segunda questão: sob tais condições, a consolidação da democracia é possível? Minha resposta é não. De acordo com muitos preceitos de consolidação, o Brasil que é hoje uma democracia, não é uma democracia consolidada (...) Há, porém, algo mais a considerar do que apenas o nível institucional e, como já observei antes, no nível social a situação atual é muito pior. (Weffort, 1992, p. 30)
Há portanto, segundo ele, uma forte tradição teórica que reporta a certas
condições mínimas para o desenvolvimento de um sistema político democrático não
desconectado das condições sócio-econômicas. Portanto, quando se constrói um
sistema democrático do tipo delegativo (em O’Donnel, 1991), afasta-se do conteúdo
social da democracia, das demandas sociais existentes em determinada sociedade e
favorece-se apenas o jogo democrático. Verifica-se após as eleições um afastamento
da classe política das propostas realizadas durante o período das campanhas eleitorais
(aqui um outro sentido do conceito reverberação). O’Donnel não desconsidera os
avanços em meio às crises econômicas e sociais, apenas verifica a dificuldade de se
estabelecer de maneira definitiva uma forma de governo que pela tradição herdada da
Europa, pela tradição teórica acima referida, não constrói um nível de possibilidade de
concorrência igualitária entre os diferentes indivíduos da sociedade. A mais favorável
das hipóteses seria a consolidação de uma democracia empobrecida, sem os
referenciais sociais que a teoria comentada por Weffort (1992) menciona.
Essa parte de nossa conclusão permite com Weffort (1992) contextualizar
alguns pontos importantes contidos no primeiro capítulo deste trabalho — “A Cultura
Democrática em Mannheim”. Essa contextualização consistiu segundo os
pronunciamentos analisados, em perceber as expectativas populares, para as quais os
discursos eram dirigidos e também, sem nenhuma pretensão de discussão teórica sobre
teorias de democratização, escolher esquemas teóricos e conceitos que, objetivamente,
permitissem construir uma articulação do eixo local com o contexto nacional ao qual a
teoria se reporta e, se podemos nos utilizar desse termo, casar a teoria elaborada para
o nível nacional com a situação de transição desenvolvida em Goiás. Com isso
pudemos introduzir as oposições de esquerda na situação do PMDB e a articulação
com sujeitos políticos e de forma mais específica, com Iris Rezende Machado, que
representava a força política hegemônica em Goiás. De forma muito especial
respondemos também ao tópico do primeiro capítulo, Democracia liberal e a questão
social. Também demonstramos como se deu a convivência entre Antigos e novos
atores (outro tópico do capítulo I ), de maneira conservadora. Além do mais o temor
popular seja de uma esquerdização, seja de um retrocesso (também por meio de
discursos moderados) que buscavam uma média de expectativas da população,
permitiu perceber como se construiu uma democracia delegativa, em que há o
afastamento das propostas iniciais de campanha (ou de valor democrático, que o efeito
de reverberação permitiu perceber) pelo pragmatismo da realidade social existente no
país (Weffort, 1992). Há, portanto, a aceitação de uma democracia que não
possibilitava o atendimento das reivindicações em relação à melhoria das condições de
vida, que era uma bandeira de radicalização especialmente das esquerdas. Criou-se um
temor de retrocesso na democracia brasileira que foi fator importante no rito de
passagem (campanha pelas Diretas Já) e que construiu uma cultura de imposição de
regras que já deixariam claro os limites da redemocratização e que a não-aprovação da
emenda Dante de Oliveira reforçou naquele momento. Foi construída uma democracia
com o aumento da pluralidade política, porém, com o controle estrutural da situação
pelo regime, que não permitiu uma maior modernização das relações políticas em
direção a uma cultura democrática mais aprofundada. De uma certa forma criou-se
uma conexão entre o presente (o mundo urbano) e o passado (o mundo
preponderantemente da cultura rural brasileira e que permitiu a construção de uma
cultura política autoritária — continuísmo). No contexto social, especificamente
goiano, contou-se com elementos da democracia e com elementos do imaginário do
homem do campo goiano, a união entre o passado e o presente, uma criação híbrida da
cultura goiana no momento da transição e que possibilitou um grande sucesso de
campanha e a eleição de um personagem político moderado, o que facilitou ainda mais
a reverberação das nossas proposições políticas democráticas. As pressões da
sociedade em relação às melhorias de condição de vida permitiram a aceitação de
propostas possíveis (no nível local por meio dos mutirões), o que permitiu a contenção
dessas demandas, que significa a satisfação de parte superficial delas, sem porém uma
mudança mais profunda, estrutural.
As categorias de análise que propusemos realizar tiveram uma origem bem
clara também em Almond e Verba (1992). Realizamos uma contextualização teórica
com Weffort (1992) dos elementos da pesquisa empírica. A cultura cívica , conceito
oferecido por Almond e Verba, propõe um modelo de redemocratização que poderia
ser realizado no Brasil, não dizemos que tenha sido copiado pelo regime, mas nossa
pesquisa ofereceu elementos que permitiu pensar assim, quando por exemplo Iris
Rezende Machado refere-se à democracia brasileira como aquela não-revanchista, ou
até mesmo mais democrática, aquela que é composta pelos que foram expulsos,
cassados e aqueles que expulsaram, cassaram e que Weffort (1992) teoricamente
forneceu subsídios para a análise que realizamos, além do que Almond e Verba (1992)
são a matriz teórica para se pensar em regimes mistos, hibridismo político, com base
no conceito de cultura cívica.
Existem elementos simbólicos ou não que se revelaram em nossa pesquisa
e que foram decisivos na redemocratização brasileira. O aspecto econômico foi muito
importante, como a necessidade de cautela, de moderação, ofereceu a possibilidade de
perceber o elemento medo, que revela os temores em relação à possibilidade de um
não-avanço ou até mesmo um retrocesso do processo de redemocratização,
constituindo um elemento que aponta mais claramente uma transição conservadora.
Um elemento político que, evidentemente, foi importantíssimo para o período e que
construiu a possibilidade de uma democracia delegativa e, justamente, o elemento de
participação política, que implica em poder de decisão, e que o movimento pelas
Diretas Já representava, isto é a tentativa de reimplantar institucionalmente o voto
direto para Presidente da República já naquele momento (1984). Em um trecho de
reportagem não foi utilizado por nós até o momento, mas que faz parte da matéria Iris
veta discursos de comunistas no comício (O Popular, 11 de abril de 1984). A matéria
refere-se ao placar dos políticos favoráveis ou não à aprovação da emenda Dante de
Oliveira, o qual ficava afixado na Praça do Bandeirante, no centro de Goiânia, para
que todos que passassem por lá vissem quais dos políticos eleitos eram ou não
representantes dos interesses populares (aqui o interesse seria a aprovação da emenda).
É interessante destacar que o placar veiculava diretamente os nomes dos políticos e
seus posicionamentos, para que a população pudesse ver quem votaria favoravelmente
ou não. Um trecho da matéria informava:
O placar das Diretas indica os nomes dos deputados federais e senadores que estão contra, a favor ou indecisos em relação à aprovação da emenda Dante de Oliveira, que restabelece as diretas na sucessão de Figueiredo. Entre os parlamentares goianos, segundo o placar, existem 14 favoráveis, 2 indecisos e 3 contra. A nível nacional, 320 parlamentares a favor, 196 indecisos e 32 contra o pleito direto. (O Popular, 11 de abr. de 1984, p. 3)
Apesar da maioria que o placar das registrava, ainda assim a emenda
Dante de Oliveira não foi aprovada, o que se deve ao fato de que a Constituição exigia
que, para ser aprovada, a emenda deveria contar com dois terços mais um dos votos
dos parlamentares. Esse dispositivo constitucional permite o controle decisório, das
elites políticas da situação governista, do jogo político democrático, o que nós já
vimos anteriormente quando citávamos Weffort (1992) e este se reportava á
Schumpeter o qual se afastava teoricamente dos clássicos que concebiam a democracia
como o governo do bem comum, e já preconizava a democracia como a forma de
governo que permitia a alternância do poder político (jogo democrático) entre as elites
de maneira pacífica. Esta concepção de democracia percebe os elementos de decisão
autoritários, o que permitem o controle do poder político pelas elites, o que é
claramente um afastamento dos ideais liberais clássicos do conceito de igualdade,
liberdade e fraternidade, após a instituição da forma de participação política burguesa.
E isso é ainda mais forte em locais em que a cultura política hegemônica não
assimilou essas idéias, quando muito de forma meramente, ideológica, que se
manifestam em propostas de campanha, como efeito de reverberação com a intenção
de captar votos. Nesse momento, estabelece-se o modelo delegativo de manifestação
democrática.
A constituição de uma democracia delegativa no Brasil aconteceu neste
momento de forma bem simples. A democracia implica o respeito às leis positivadas
(instituídas). O dispositivo constitucional definia para o caso uma maioria de dois
terços mais um, era um legado do período autoritário que não havia sido ultrapassado
ainda, mas estava em transição, e que permitiu (a transição) que a constituição e o
controle sobre o jogo político, se desse ainda sob o controle do regime militar. Como
já vimos nas pesquisas realizadas e em Weffort (1992), a oposição permitida realizou
um acordo com o governo para o tipo de transição que se daria (tradicional, segundo
Weffort 1992). Nesse momento, que transcorreu desde os preparativos para a eleição
direta para governadores dos estados, até o período das Diretas Já foi sendo
constituído um discurso político moderado que aceito pela média da população (ao
menos), foi delimitando, demarcando as nossas possibilidades políticas. Também
nesse momento, o elemento simbólico que a repressão política do regime representava
— o medo — entra em ação e ajuda a articular a situação política, por causa do receio
da não-democratização. Portanto, regimes mistos da forma, como vimos na
constituição da democracia brasileira, permitem uma construção delegativa da
democracia, pela articulação do discurso político, receios da população, e o respeito ou
não às leis implica a possibilidade ou impossibilidade de uma existência democrática.
Dessa forma a transição permite que fatores hegemônicos que haviam se constituído
anteriormente, transitem também para a nova forma de governo. Constrói-se uma
cultura política democrática com um conteúdo delimitado por causa do medo ou receio
de que aquilo que se faça ou se reivindica (demandas sociais populares) seja de fato
contrário á democracia, e isto pode conduzir, talvez, à idéia de que a democracia não é
suficiente para a resolução dos problemas da parte da população mais empobrecida.
Isto acontecendo faz retornar para a população o conteúdo autoritário, quando na
verdade o que se tem é a rejeição à forma delegativa, que é tida e havida como a única
forma de manifestação democrática, e isto sempre é um risco para essas democracias.
Um aspecto que queremos deixar esclarecido é a relação ou o eixo entre o
período que antecedeu as Diretas Já, e que preparou os pronunciamentos na Praça
Cívica. A reabertura política, ou distensão para a democracia (redemocratização) foi
lenta e gradual. Dessa forma, houve as eleições para governadores de estado como um
momento de preparação para a definitiva instauração das instituições da democracia
(que ocorreu em 1989 com a eleição do Presidente Fernando Collor de Melo), um
momento de teste para a democracia brasileira. Os discursos moderados do então
candidato a governador Iris Rezende Machado constróem um nexo causal das
possibilidades democráticas brasileiras, presentes também nos pronunciamentos
políticos daqueles que subiram no palanque naquele dia para discursar em Goiânia.
Isto permite uma verificação nacional com os elementos locais (campanha para
governadores de estados, senador e deputados federais), presentes e oradores naquele
momento. Se houve o exemplo do elemento regional em Goiás na pessoa do então
governador Iris Rezende Machado, houve uma conexão com o nacional pelo tom
moderado de todos os oradores (menos o deputado federal, cacique Mário Juruna), em
solo goiano. Isto configura aquilo que foi trabalhado até agora, e serve para
demonstrar como o medo/ receio que oferecem o tom moderado dos discursos, serviu
para delimitar as possibilidades de reformas sociais que tocassem no aspecto
econômico de forma mais definida, já que aí se tratava de modificar a estrutura social
do país, e a não-aprovação da emenda Dante de Oliveira foi um fator que possibilitou
demonstrar os limites das mudanças.
No nível do estado de Goiás os mutirões promovidos pelo governador Iris
Rezende Machado aparecem como um articulador entre os anseios da população por
melhores condições sociais e a necessidade de participação popular. Enquanto a
população se envolvia (era envolvida) na proposta dos mutirões de um lado satisfazia
parte de suas necessidades sociais, de infra-estrutura, de moradia e de outro sentia-se
nessa ação, participante do governo, quando o governador do estado se fazia presente.
Nesse caso, a ação e a reação a que nos referíamos anteriormente ganham o sentido de
cumprir as promessas de campanha, mas também permitem articular um modelo de
participação popular por convocação, como vimos. A população participa, mas,
segundo limites, não é ela de fato o agente principal, pois age segundo um modelo
definido de participação popular que foi preconizado no PMDB goiano o que limita a
liberdade da sociedade civil junto ao Estado. Ela se molda a esse modelo, não é ela
que molda o que seria o sentido mais representativo da democracia, com um sentido
novo, o que permite enquadrar essa situação na proposta de democracia delegativa.
Um outro aspecto é o tom convocatório para a participação da população, que não
cobra as promessas, mas é chamada ao cumprimento do dever. Os anseios populares
são dirigidos à população que age ela mesma, mas com a proposta firmada em
campanha política. A convocação define, portanto diante da população, o nível de
participação, que com a sua presença, faz parecer que é a participação por excelência.
Em relação à figura política de Iris Rezende Machado, seu tipo de
manifestação política populista, queremos fazer uma consideração final utilizando-nos
das formulações de Weffort (1992) apresentadas no capítulo I. O primeiro ponto
refere-se ao populismo como uma manifestação política que se desenvolve em
períodos de crise política e social. Segundo textos de que já nos utilizamos sobre a
impopularidade do Regime Militar (crise de legitimidade e a criação de uma
legitimidade nova, com os regimes mistos) e de crise econômica e social, percebe-se
que Iris Rezende Machado se move politicamente com seu discurso com um tom que
agrada, que satisfaz expectativas tanto populares quanto do Regime Militar, na
perspectiva de final de um período histórico ao qual correspondeu o período militar.
Com isto, articulou as demandas sociais que vinham crescendo neste período com a
criação de um modelo político delegativo.
A segunda característica que a análise sobre o populismo, oferecida por
Weffort (1992), diz respeito à manifestação pessoal do tipo de política populista
específica a cada político. A nossa pesquisa demonstrou que Iris Rezende Machado
utiliza-se de elementos simbólicos do imaginário popular do homem goiano,
juntamente com propostas de redemocratização do Estado, o que é uma manifestação
específica de um tipo de populismo. No primeiro capítulo, tratamos como uma das
nossas propostas de análise, o desenvolvimento de um tipo específico de manifestação
psicológica (que vai construir o tipo especifico de político), que seria no caso goiano, e
também genérica do populismo, de uma personalidade paternalista, clientelística
oferece solução para os problemas em questão. Com esse tipo de personalidade
política, Iris Rezende Machado soube captar de forma competente, com seu carisma,
os interesses populares, e manipular elementos simbólicos do imaginário popular do
homem goiano, seja do homem do campo, seja do homem urbano.
Isso nos conduz de imediato aos elementos quarto e quinto que a análise
de Weffort oferece — ao oportunismo essencial e as manifestações de suas propostas
políticas ambíguas. Com relação ao elemento oportunismo, Iris Rezende Machado
soube situar-se em seu discurso, como já demonstramos, de forma moderada, o que
pode ser percebido claramente em dois outros políticos regionais, que estavam na
época, no PMDB goiano. O primeiro, Irapuan Costa Júnior, ajudava com sua figura de
homem de direita, a apresentar Iris Rezende Machado como uma alternativa viável em
relação ao Regime Militar, já que ideologicamente estava muito próximo a figuras do
Regime, menos moderados (aqui o contexto ideológico que justifica esta posição seria
perigo soviético). O segundo, Henrique Santillo, com seu discurso mais à esquerda,
contribuiu para situar Iris Rezende Machado como um político que saberia esperar o
momento adequado para uma total restauração das instituições democráticas (aqui, em
relação às Diretas Já). A composição orgânica do PMDB, com alguns exemplo por
nós utilizados, permitia a articulação orgânica de Iris Rezende Machado como
personagem político hegemônico, assim como a articulação que ele conseguiu realizar
juntamente com os militares. Como os pronunciamentos demonstravam, ressaltavam o
valor da instituição militar e a figura do então Presidente João Batista de Oliveira
Figueiredo.
E certamente um elemento do populismo que compôs a figura política de
Iris Rezende Machado foi sem dúvida nenhuma o elemento ambigüidade e de forma
especial a entrevista que este concedeu à revista Veja, o que nos ajuda a situar dois
pontos importantes. O primeiro seria o que nós chamamos em nosso trabalho de efeito
de reverberação, no que diz respeito especialmente à operacionalização do discurso de
elementos simbólicos que remetam a aspectos afetivos, valorativos e cognitivos da
população (Almond e Verba, 1992) e esses elementos remetem ao segundo ponto
importante para a viabilização da candidatura de Iris Rezende Machado a de
apresentar-se como a única e melhor saída possível em Goiás em relação tanto aos
setores das esquerdas do PMDB (partidos no interior do partido), como ao PDS que
estava desgastado, e opções ainda as do partido, como o antigo governador do estado
Mauro Borges, e Henrique Santillo, que confirmou posteriormente sua condição de
segunda melhor opção do PMDB, ao suceder a Iris Rezende Machado e Onofre
Quinan (vice-governador).
A ambigüidade de Iris Rezende Machado está relacionada ao terceiro
elemento da análise de Weffort (1992) que é a dificuldade em definir, de forma clara, a
orientação política e ideológica dos personagens populistas. (na entrevista a revista
Veja, que o jornal Diário da Manhã editou na íntegra, terceiro elemento do populismo
capítulo I, é bom relembrarmos aqui o posicionamento que o jornal chamou de a
esquerda para a reforma agrária, porém que naquele momento tratou de maneira mais
conservadora).
Realizada essa análise, vamos passar às últimas considerações, em que
apresentaremos também um último material de pesquisa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A nossa pesquisa permitiu entrar em contato com pronunciamentos de
governo ou de proposta de governo, que tratam do aspecto da modernização do estado
de Goiás. Ela diz respeito à racionalização da máquina estatal, racionalização no
sentido weberiano da palavra, que, aplicada à situação, significa a melhor utilização da
arrecadação dos impostos, o combate à corrupção. Existem declarações, que
juntamente com o aspecto da racionalidade, estão também permeadas de um
chamamento populista. Vamos à primeira das declarações publicada no jornal o
Estado de São Paulo do dia 14 de dezembro de 1982 e de título: Iris promete abrir
governo e combater corrupção em Goiás:
O PMDB quer governar com o povo, combatendo a corrupção, a mordomia e a malversação do dinheiro público. (O Estado de São Paulo, 14 de dez. de 1982)
Segue ainda a matéria do jornal a exposição de diretrizes de governo do
PMDB:
Esta é a premissa básica das proposições preliminares para a administração do peemidebista Iris Rezende, governador eleito de Goiás. Sua versão inicial, ainda aberta ao debate e ao diálogo, suscita problemas, indica caminhos, aponta soluções e aguarda sugestões para as diretrizes definitivas do programa governamental. São três os pontos centrais da sua administração: “Transformar o governo estadual num instrumento de luta democrática, uma vez que a democracia é o nosso compromisso maior; introduzir modificações institucionais, viabilizando a participação popular, porque é somente através do estreitamento dos vínculos entre o povo e o governo que iremos garantir a melhora das condições de vida e a capacidade de iniciativa da população goiana; moralizar a administração em razão do nível insuportável de corrupção existente em todos os setores do governo estadual”. Os três pontos básicos também servirão de instrumento para que a ação de governo tome o único rumo aceitável: o do desenvolvimento sócio-econômico efetivamente harmônico e justo, voltado para a geração de empregos e a redução das desigualdades sociais. Esses pontos de ação se interpenetram, se reforçam e se completam, tornando possível o rompimento com o enfoque tecnocrático que, com seu misto de medo e desprezo do povo, se tem revelado inoperante (...). A moralização administrativa, segundo documento do PMDB, se dará por meio da ação fiscalizadora das atitudes e dos procedimentos nos setores governamentais, visando pôr fim à sistemática dos tráficos de influências, das propinas e das mordomias (...). (O Estado de São Paulo, 14 de dez. de 1982).
No discurso que pronunciou no dia da posse de seu secretariado, Iris
Rezende Machado procurou enfatizar o aspecto humano de seu governo:
“Não assumimos o poder com o espiríto de perseguição, mas ai daqueles que não vestirem a camisa do trabalho, da honradez e da dignidade no trato da coisa pública neste Estado”, advertiu Iris, enfatizando que “este grupo de homens que assumem comigo a responsabilidade de administrar Goiás vai, realmente, representar o sustentáculo legítimo desta grande caminhada que vamos empreender, através de um mutirão permanente de trabalho por este Estado afora, no sentido de valorizar cada vez mais a pessoa humana”. (O Popular, 17 de mar. de 1983,p. 3)
Utilizando as prerrogativas que a legitimidade de candidato eleito
proporciona, Iris Rezende Machado afirma que não haverá perseguições, mas adverte
os funcionários públicos quanto ao trabalho e à meta para “valorizar a pessoa
humana”. Este discurso procura mostrar a postura moralizante de seu governo. Muito
do que se disse nesta época está relacionada à antítese PMDB/PDS, representada por
Iris Rezende Machado e o então governador situacionista, Ary Valadão. Como não
pretendemos nos estender neste assunto, vamos a um trecho de entrevista publicada no
jornal O Popular:
O que o senhor tem a dizer sobre o decreto assinado pelo governador Ary —É Valadão, estabelecendo a estabilidade para o funcionalismo público?a primeira vez que sou abordado sobre isso e digo que pelo menos esse decreto deu tranquilidade aos funcionários de votar no PMDB, pois até então eles eram ameaçados. Agora, se o decreto estiver realmente revestido de legalidade, ele será respeitado. Se não for legal, ele será revogado por outro decreto. O que eu quero é conhecer o porquê do decreto. Eu já disse que não vou entrar ali para perseguir. Se é para tapar ilegalidade, irregularidades, ele vai ser revogado. (O Popular 24 de nov. de 1982, p. 5)
Esse último trecho permite deixar mais clara a situação das relações
políticas no estado de Goiás, e perceber as críticas que Iris Rezende Machado dirige ao
PDS local, mas não ao regime militar. As críticas aos desmandos, corrupções (e não é
o caso aqui de verificarmos se ocorreram ou não) escondem uma rivalidade local, em
que uma parte da elite política de ideologia da direita ficou no poder e outra, também
de direita, foi impedida de exercer o poder. Gostaríamos de relembrar os aspectos
abordados em nosso trabalho para a aceitação das indiretas por Iris Rezende Machado,
quando este já governava. Portanto, já estava satisfeita a demanda de setores políticos
que antes estavam impedidos de governar ou compunham uma oposição que estava
impedida de disputar o governo). O combate à corrupção que se dizia ocorrer no
governo local do PDS constituiu parte das promessas de campanha de Iris Rezende
Machado.
Alegava-se que a estabilidade do funcionalismo público poderia onerar a
máquina do Estado para o próximo governo. Iris Rezende Machado rebateu esse
argumento, dizendo que a estabilidade facilitaria para os funcionários votassem em sua
candidatura, mas nem isto foi suficiente para o questionamento legal da medida, o que
se tratava de fato de um questionamento moral da ação do governo Valadão, portanto,
não interessava tanto a questão estabilidade/voto.
Estas últimas considerações acima nos ajudam a situar a situação política
no estado de Goiás, apresentando um material de pesquisa complementar que facilite a
interpretação de colocações por nós feitas: a relação PMDB e PDS e relembrando, que
o PMDB local e Iris Rezende Machado nunca contrariava o Regime Militar. Além de
construir uma legitimidade no Estado, esse fator esconde uma situação de rivalidade,
de disputa no poder local, aliado ao discurso populista e racionalizador do Estado.
Para concluirmos este capítulo e portanto nossa dissertação, gostaríamos
ainda de lidar com um aspecto que poderá esclarecer uma das interfaces do problema
de pesquisa levantado por nós no corpo do trabalho: os limites e possibilidades da
democracia no tocante à questão regional, que dizem respeito à possível construção de
uma futura candidatura de Iris Rezende Machado à Presidência da República e um
possível apoio dos militares se o seu discurso fosse aceito.
Em matéria publicada no jornal O Popular do dia 14 de fevereiro de 1986
com título Por que Iris deixou o Governo, Iris Rezende Machado justifica sua opção:
“Um político não pode bitolar sua ação. Ele deve estar preparado para eventuais convocações e modificações de seu projeto político. De uma hora para outra recebi uma convocação do Presidente da República e, pelas circunstâncias atuais de implantação de um novo sistema político, é me dado o direito de renunciar a uma eleição para ajudar o presidente José Sarney”. A afirmação foi feita ontem pelo governador Iris Rezende, durante entrevista coletiva à imprensa, minutos antes de passar o cargo para o vice-governador Onofre Quinan, ao responder uma pergunta sobre os motivos que o levaram a deixar o Governo de Goiás — e a possibilidade de se eleger senador — para ocupar o Ministério da Agricultura. Iris descartou a possibilidade de usar o ministério para se candidatar, em 1990, à Presidência da República. “Ele afirmou que seria desleal com a população de Goiás e com o próprio presidente Sarney se levasse este projeto adiante”. E acrescentou: “Ao deixar o Governo e assumir o Ministério, não vou em busca de promoção pessoal ou para fazer do novo cargo um trampolim para disputar a Presidência da República. Quando me dispus a assumir este ministério, o fiz levado por uma vontade de modificar, de executar um trabalho que justifique a presença de Goiás no ministério da Nova República”.
MILITARES Ao comentar o fato dele ser um dos futuros ministros mais bem vistos pelos militares, o Governador licenciado disse que isto ocorre “devido ao meu comportamento administrativo”. Para ele, os militares respeitam o trabalho e as suas obras que realizou em Goiás, como os mutirões. Sobre as análises de que o ministério do presidente Sarney é conservador, Iris Rezende não quis fazer comentário, pois na sua visão somente o comportamento futuro da nova equipe é que dirá a sua posição ideológica (...). (14 de fev. de 1986, p. 3).
Iris Rezende afirmou que um político não pode “bitolar sua ação”, e que
portanto deve estar pronto para “modificações de seu projeto político”, quando nega
utilizar o cargo de Ministro da Agricultura para um projeto político mais amplo pois
seria desleal, e afirma: (...) “se levasse este projeto adiante”. Quer dizer, o projeto
existia, ele é que não pretenderia levá-lo adiante. Ainda segundo o discurso de ação
política (aqui devemos nos lembrar de nossas citações de Weber quanto a serem os
indivíduos que emprestam sentido às suas ações), segundo seu projeto político pessoal.
A retomada da democracia possibilitou a políticos que estavam à margem do poder
construírem agora, seus projetos políticos pessoais. Negando não ter um projeto de
chegar à Presidência da República, confirmou a sua existência. Em relação à não-
utilização do ministério para projetos pessoais; a matéria do jornal — Iris Rezende um
mutirão para o Brasil —de autoria do jornalista Helton Lenine Oliveira, trata
justamente do lançamento da candidatura:
O ministro Iris Rezende alimenta a esperança de ser o candidato da unidade do PMDB a presidente da República e não é ingênuo de acreditar que alcançará a unanimidade dentro do partido. Com o apoio dos moderados lançou-se candidato, dispõe-se a disputar a indicação com o deputado Ulysses Guimarães, presidente nacional do PMDB, observa que como ministro do presidente José Sarney adquiriu notoriedade nacional e imagina que com a divulgação maciça de sua candidatura arrebanhará votos em todo Brasil e que, em Goiás, do governador Santillo ao dirigente municipal do partido todos os peemedebistas se empenharão em dar-lhe a vitória. Aos 52 anos de idade, o ex-prefeito e ex-governador acredita que, por não ser um nome tradicional na política brasileira poderá representar “a alternativa que o povo busca”. Aos brasileiros, Iris Rezende levará uma mensagem de renovação, de modificação dos costumes políticos, de integração do poder ao povo “para uma arrancada que possa abrir o caminho pelo qual o Brasil alcance a posição desejável e consolidada de grande potência”. Segundo o Ministro, “o País terá que se situar em um verdadeiro mutirão, do operário ao empresário, da criança ao idoso”. Por que o sr. Resolveu candidatar-se à presidência da República? O interior brasileiro sempre reclamou por falta de espaço nas áreas responsáveis pelas decisões nacionais. Ao longo dos anos, temos observado que o poder decisório sempre esteve nas mãos dos Estados economicamente mais fortes. Quando vislumbrei a possibilidade de Goiás ocupar uma posição de maior destaque no cenário nacional, mudei o meu projeto político. Assumi o Ministério da Agricultura justamente para não permitir que a oportunidade passasse e Goiás não se fizesse presente. Agora, mais uma oportunidade surgiu. Quase uma centena de parlamentares, senadores e deputados, entendeu e passou a pressionar-me para aceitar a disputa na próxima convenção do PMDB, onde se escolherá o nome do candidato a presidente da República. Ora, deixar passar uma oportunidade como essa seria praticar uma omissão que, no futuro, seria considerada imperdoável pelos nossos coestaduanos. Nós precisamos ser mais agressivos e fazer com que esse leque de oportunidades se aumente, se amplie, oferecendo meios para que as decisões de interesse do País sejam tomadas por todas as regiões, os segmentos, e com isso alcançar a descentralização de poder que nós tanto reclamamos. (...) É possível derrotar o deputado Ulysses Guimarães na convenção? Estou convicto que sairei vitorioso na convenção de maio. Inúmeros fatores contribuirão para isso. Primeiro, é o sentimento do povo goiano, do Centro-Oeste, dos pequenos Estados do Norte e do Nordeste, que sonham com o deslocamento do centro das decisões para essas áreas mais carentes. E, agora, surge essa oportunidade com a nossa candidatura. Essa garra e a
capacidade de luta do homem do interior do Brasil poderão produzir muito na convenção nacional do PMDB, como aconteceu na do último dia 12 de março, por ocasião da renovação do Diretório Nacional. Todos se lembram de que saímos para uma luta em busca de 20%, o mínimo para que nos dessem o direito de preservar o espaço no Diretório Nacional. Fomos para praticamente 40%, quando dezenas de companheiros já se achavam comprometidos com as respectivas autorizações para que seus nomes constassem da chapa encabeçada pelo deputado Ulysses Guimarães.(...) O fato de o sr. Integrar agora o Governo José Sarney poderá prejudicá-lo nesta campanha sucessória presidencial, caso vença a convenção do PMDB? (...) Foi na condição de ministro que meu nome começou a ocupar espaço no cenário nacional. (...) (...) De forma que não adianta ninguém querer tapar o sol com a peneira, iludir o povo. Os meios de comunicação fizeram com que o povo alcançasse um estágio de esclarecimento muito grande. Eu notei que, de uma semana para cá, após a decisão de ir à disputa na convenção, as atenções do povo já estão se voltando para o nosso nome, sensivelmente. Eu acredito que, dentro de poucos meses, essa indagação será respondida por um posicionamento maciço de grande parte da sociedade. (...) Vencendo a convenção do partido, o sr. Acha que a esquerda, principalmente líderes como Miguel Arraes e Waldir Pires, irá subir no palanque do PMDB para apoiá-lo? Eu alimento a esperança de ser o candidato da união, da unidade do PMDB, mas não seria ingênuo em acreditar que alcançarei a unanimidade dentro do partido. É claro que alguns daqueles que vetaram meu nome amanhã não estarão conosco mas, quem sabe, o posicionamento popular poderá mudar a concepção desses companheiros em relação à nossa candidatura. Ninguém pode desconhecer a força hoje do mundo rural, pois 40% da população brasileira esta direta ou indiretamente vinculada à agricultura. A maioria esmagadora da área rural estará comprometida com nossa candidatura. Existe hoje uma ansiedade profunda do povo em busca de inovações no sistema político-administrativo, de alternativas que possam criar condições diferentes daquelas criadas por forças já consideradas ultrapassadas pelo tempo. Acredito que, por não ser um nome tradicionalmente conhecido na esfera nacional, por ter surgido apenas há três anos como figura participativa da política e consequentemente da administração federal, meu nome poderá representar a alternativa que o povo busca. O centro-Oeste tem pequena expressão eleitoral. Como romper barreiras para conquistar outros redutos eleitorais expressivos, como São Paulo e Minas Gerais, regiões como Nordeste e Sul do País? Primeiramente, ninguém chegará à presidência da República sem o apoio de todas as regiões do País, do Nordeste, Norte, Sul, Centro-Oeste, como não chegará sem passar por Minas, São Paulo e Rio de Janeiro. Por que? Porque a densidade eleitoral dos grandes centros é bem maior em relação às demais regiões e tem um número considerável de candidatos. Os votos dos grandes centros, pelo elevado número de candidatos, estarão pulverizados. A densidade dos centros menores passa a ser importante no resultado final das eleições. (...) Qual o discurso que o sr. Vai usar na campanha? Quais os rumos que o Brasil precisa tomar? Eu levarei ao País a mesma mensagem que apresentei aos goianos em 1982, ou seja, uma mensagem de renovação, de modificação dos costumes políticos, integração do poder ao povo, buscando todos os segmentos sociais, econômicos e políticos para uma arrancada que possa abrir o caminho pelo qual o Brasil alcance a posição desejável e consolidada de grande potência. O País terá que se situar em um verdadeiro mutirão, do operário ao empresário, da criança ao idoso, enfim, que todos se sintam
responsáveis pelos destinos nacionais. Sem a integração de todos, nunca o presidente da República vai conseguir resolver os problemas que afligem a população. Seria o governo do mutirão nacional, o governo da integração, das reformas (...). (O Popular, 26 de mar. de 1989, p. 6).
A volta à legalidade democrática permitiu, concretamente, o retorno dos
políticos que estavam exilados do poder retornassem ao mercado do voto popular. A
análise do papel histórico que Iris Rezende Machado exerceu, no processo de transição
e consolidação democrática em nível regional, é apenas um exemplo de político local,
que participou de uma composição orgânica do poder da Nova República em nível
nacional. Na penúltima matéria aparece como o ministério do Presidente Sarney ser
conservador, aqui outro exemplo de instituições mista e que aparece aqui em Goiás na
pessoa de Iris Rezende Machado como político moderado. Iris Rezende Machado
jogava com a possibilidade do acolhimento de seu discurso de apelo localista, no nível
nacional, e assim contabilizar o voto do homem do interior.
O retorno ao mercado do voto é uma marca da democracia delegativa. A
composição do novo governo, da Nova República alimentou expectativas (efeito
reverberação), e possibilitou o retorno de políticos que não tinham participação
política oficial ou, se tinham, não contavam com maiores expectativas. Talvez, após
eleitos, eles se afastarem de suas propostas e, a idéia de pacto que Weffort desenvolve,
em texto já citado nessa dissertação, oferece subsidio teórico, para afirmar ser o que
ocorreu entre o regime e a oposição viável e que nossas pesquisas oferecem material
para sua corroboração. Com isto, concluímos o nosso trabalho.
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