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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM
JEAN CARLOS DOURADO DE ALCÂNTARA
CURTA-METRAGEM: GÊNERO DISCURSIVO PROPICIADOR DE PRÁTICAS MULTILETRADAS
CUIABÁ-MT/2014
JEAN CARLOS DOURADO DE ALCÂNTARA
CURTA-METRAGEM: GÊNERO DISCURSIVO PROPICIADOR DE PRÁTICAS MULTILETRADAS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso como exigência parcial para a obtenção do título de mestre em Estudos de Linguagem. Linha de pesquisa: Práticas textuais e discursivas: múltiplas abordagens Orientadora: Prof.ª Dr.ª Simone de Jesus Padilha.
CUIABÁ-MT/2014
Ficha catalográfica
Alcântara, Jean Carlos Dourado de. Curta-metragem: gênero discursivo propiciador de práticas Multiletradas / Jean Carlos Dourado de Alcântara – Cuiabá: UFMT, 2014. 138 f. :il. Dissertação (Mestrado) -- Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Linguagem, Programa de pós-graduação em estudo de linguagem, 2014. Orientação: : Prof.ª Dr.ª Simone de Jesus Padilha. 1. Linguística. 2. Curta-metragem. 3. Linguagem - filosofia. 4. Teoria – cinema. 5. Bakhtin, Mikhail
Dedico esta conquista ao pequeno Matheus, que veio ao mundo para me constituir enquanto sujeito pai.
AGRADECIMENTOS
À Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, em especial à Maria Santíssima
de Lima;
Ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem – MeEL, em especial à
Divanize Carbonieri;
À Secretaria Estadual de Educação de MT – SEDUC, em especial à Angelise Cecília
Carmo Verlangieri;
Ao Sindicato dos Trabalhadores em Educação da UFMT – Sintuf-MT, em especial à
Leia Souza de Oliveira;
Aos teóricos e autores consultados para esta pesquisa, em especial ao Mikhail
Bakhtin;
A todos os meus professores, desde a pré-escola até o mestrado, em especial à
professora Simone de Jesus Padilha;
A todos os amigos e colegas que contribuíram com este trabalho, em especial à
Dinaura Batista de Pádua;
A todos os familiares que contribuíram com este trabalho, em especial à Donata
Alves Bonfim (minha mãe).
RESUMO
Diante do crescente aumento dos recursos audiovisuais que têm adentrado o espaço escolar atualmente, esta pesquisa objetiva refletir sobre o uso didático da linguagem audiovisual, mais especificamente a do curta-metragem, por professores de língua portuguesa na construção de suas práticas de ensino. Discutimos, neste trabalho, não apenas o caráter pedagógico dessa ferramenta, mas também o seu potencial de produzir transformação nos alunos, tornando-os sujeitos ativos na construção e negociação de sentidos. Buscamos também, por meio do estudo da linguagem cinematográfica, caminhos que levem à valorização e respeito ao cotidiano, à diversidade e à pluralidade dos estudantes, conforme preceituado pelos PCN. Nossas reflexões têm como base as experiências de professores que se serviram do projeto Curta na Escola, desenvolvido pela Petrobrás, desde 2006, o qual disponibiliza em seu site curtas-metragens brasileiros, acompanhados de sequências didáticas, para uso de profissionais cadastrados. Nos relatos selecionados, buscamos verificar, por meio das práticas de ensino, as concepções de linguagem adotadas pelos professores, bem como sua relação com a linguagem do cinema e seus sistemas representativos. Esta pesquisa está respaldada pela teoria enunciativo-discursiva, de abordagem sócio-histórica, elaborada pelo filósofo russo Mikhail Bakhtin. Além disso, buscamos, à luz da teoria do cinema, compreender o processo de produção de sentidos pela linguagem audiovisual, utilizada nas produções cinematográficas. E, por fim, estabelecemos um diálogo entre as duas teorias, a fim de constatar a natureza dialógica também presente na linguagem cinematográfica. Para isso, aplicamos, nos enunciados fílmicos, bem como na análise dos relatos, categorias bakhtinianas, tais como: dialogia, exotopia, excedente de visão, cronotopia etc. Após análise dos dados, concluímos que os professores ainda carecem de formação para lidar com a linguagem audiovisual numa perspectiva enunciativo-discursiva. Pretendemos, com esta pesquisa, contribuir para que os docentes preencham essa lacuna ao lidar com as representações cinematográficas. Palavras-chave: Dialogismo. Cinema. Curta-metragem. Discurso. Linguagem.
ABSTRACT
In view of the growing amount of audio-visual resources that have entered into the
school currently, this research aims to reflect about the didactic use of audiovisual
language, specifically the short film, by Portuguese teachers in the development of
teaching practices. The intention was to discuss not only the pedagogical nature of
this tool, but also its potential to produce a transformation in students, making them
active subjects in the construction and negotiation of meanings. Through the study of
film language, It also sought paths that lead to the valuing and respect to the daily
situations, to the diversity and plurality of the students, as specified by the NCP. Our
reflections will be based on the experiences of teachers who have used the Short
School project, developed by Petrobras since 2006, which provides on its site
Brazilian short films. Each short is accompanied by didactic sequences, for use by
registered educators. We seek to verify In selected reports, through teaching
practices, conceptions of language adopted by teachers, as well as their relationship
with the language of cinema and its representative systems. This research is
anchored in the enunciation-discursive theory, of social-historical approach,
developed by Russian philosopher Mikhail Bakhtin. In addition, we seek, in the light
of the cinema theory, understand the process of meaning production of audiovisual
language, used in film productions. And, finally, we establish a dialogue between the
two theories, in order to determine the dialogic nature also present in film language.
To achieve this We applied Bakhtinian categories in the analyze the reports, such as:
dialogism, exotopy, surplus of seeing, chronotope etc. After analyzing the data, we
concluded that teachers still need training to tackle with the audiovisual language in a
enunciative-discursive perspective. Through this research, We intend to contribute
for the teachers fill the gap by dealing with cinematic representations.
Keywords: Dialogism. Cinema. Short film. Speech. Language.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 9
CAPÍTULO I 16
GÊNERO CURTA-METRAGEM: ASPECTOS FORMAIS, HISTÓRICOS,
POLÍTICOS E PEDAGÓGICOS 16
1.1 Curta-metragem no Brasil: história e política econômica 17
1.2 Curta com personalidade 20
1.3 Demarcando território 21
1.4 Espaço público e independência: a reconquista 24
1.5 Curta-metragem e o conceito de gênero discursivo 26
1.6 Pertinência didático-pedagógica 31
CAPÍTULO II 38
CINEMA, LINGUAGEM E DISCURSO 38
2.1 Concepção(es) de linguagem: Fundamentos dialógicos do Círculo 39
2.2 Linguagem cinematográfica: diálogos entre cinema e as ideias de Bakhtin44
2.3 Categorias bakhtinianas: contribuições para uma análise dialógica do
discurso cinematográfico 48
2.3.1 Dialogia para uma compreensão ativa responsiva 48
2.3.2 O ético e o estético: a indissolubilidade entre arte e vida 54
2.3.3 Cronotopia: para uma análise contextualizada 57
2.3.4 Arquitetônica: em busca do (in)acabamento 61
2.4 Multiletramento: as linguagens multimodais no mundo contemporâneo 65
2.5 Os signos cinematográficos e seus efeitos de sentido 72
CAPÍTULO III 80
ANÁLISE DOS DADOS 80
3.1 Fundamentos Metodológicos 80
3.2 Procedimentos metodológicos 82
3.3 Análise dos relatos 85
3.4 O Lobisomem e o Coronel 86
3.5 Velha História 92
3.6 Ilha das Flores 97
3.7 Negócio Fechado 105
3.8 Xadrez das Cores 111
CONSIDERAÇÕES FINAIS 118
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 124
ANEXOS 129
9
INTRODUÇÃO
O Cinema, há muito tempo, tem sido notadamente uma profícua ferramenta
pedagógica utilizada pela escola nas aulas de linguagem. Contudo, segundo Duarte
(2002), essas instâncias culturais não se reconheciam enquanto parceiras na
formação social do sujeito. Isso acontecia porque o filme, na maioria das vezes, era
utilizado como pretexto para introduzir algum conteúdo curricular, ou como forma de
preencher o tempo. Tal postura se deveu, em parte, à omissão dos teóricos em
educação em refletir e orientar práticas educativas nas quais o texto fílmico
estivesse presente, gerando um hiato entre cinema e educação.
No entanto, segundo Sousa (2005), a partir dos anos 2000, com Robson
Loureiro, Rosália Duarte e Marcos Napolitano, emerge uma preocupação no meio
acadêmico em impingir um caráter educativo formal aos estudos de cinema e sua
relação com o ensino. A partir daí, com a presença cada vez mais frequente dos
filmes em ambientes escolares, tornou-se evidente a necessidade de assumir o
cinema enquanto objeto de pesquisa obrigatório nos estudos educacionais.
Essas iniciativas investigativas acerca do uso de filmes, inicialmente longas-
metragens, em sala de aula, revelaram o potencial desse recurso para desenvolver
nos estudantes certa medida de competência nos âmbitos socioculturais, linguísticos
e comunicacionais. Todavia, por questões estruturais, curriculares e temporais, o
uso do longa mostrou-se inadequado. Atualmente ele tem sido utilizado de forma
cada vez mais esporádica nas escolas, como em datas comemorativas, semanas
culturais ou eventos científicos promovidos pelas instituições de ensino. Por outro
lado, os filmes de curta-metragem, dada a sua duração e relativa acessibilidade,
resolveriam esse inconveniente. No entanto, os professores ainda não aderiram
plenamente ao gênero curta como elemento pedagógico substituinte dos longas-
metragens em sala de aula.
Diante disso, colocada a necessidade de pensar sobre a incontestável
presença do cinema na escola, considerando também a exiguidade dos estudos que
se dedicam a deslindar essas questões acerca do curta-metragem, coube-nos
propor esta pesquisa, cujo objetivo geral é elaborar uma descrição reflexiva acerca
das concepções e formas como esse gênero discursivo vem sendo utilizado pelos
professores em sala de aula. A ideia é conhecer melhor os reflexos, implicações e
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potencialidades pedagógicas concernentes ao uso dessa ferramenta no âmbito
escolar. Além disso, buscamos também investigar a razão da parca adesão por
parte dos educadores a essa variante curta do cinema e, em que pese à resistência
em utilizá-la de forma mais efetiva, procuramos fundamentar, teórica e
pragmaticamente, a eficácia do seu emprego no ensino de língua materna.
E como objetivos contíguos, tencionamos oportunizar novas perspectivas com
relação à linguagem cinematográfica, dar a conhecer possibilidades outras de leitura
que esse gênero proporciona, tanto nos aspectos cultural e ideológico quanto no
aspecto textual. Ambicionamos também propiciar ao leitor parâmetros de análise e
interpretação do texto fílmico, de como explorar os recursos e estratégias utilizados
pelo discurso cinematográfico e seus modos de significação e produção de sentido;
empenhamo-nos igualmente em demonstrar o efeito potencializador que as
narrativas fílmicas exercem na capacidade dos alunos de interpretar textos verbais,
por meio do confronto com outros gêneros que circulam socialmente, bem como as
possibilidades de uso didático de curtas-metragens nas atividades de leitura e
escrita.
Tais objetivos nortearão a busca de respostas às nossas perguntas de
pesquisas: 1- Qual a concepção de linguagem adotada pelo professor de Língua
Portuguesa na sua prática com curta-metragem? 2- Quais as motivações levam o
professor a valer-se de um texto audiovisual em sala de aula? Por último e não
menos importante: 3- Quais as dificuldades mais recorrentes encontradas nesse
processo?
Ao levantarmos tais questões, partimos dos pressupostos de que os recursos
mencionados no parágrafo anterior, em princípio, fortes aliados metodológicos nas
aulas de Língua portuguesa, vêm sendo utilizados, na maioria das vezes, de forma
infecunda, banalizada e deturpada, sendo relegados ao plano do mero
entretenimento, ou pretexto para o ensino da norma culta da língua, ou ainda como
meio de abordar temas transversais; e que tais fatores podem obstar a aplicação, de
forma efetiva, dos aspectos comunicativos da linguagem não verbal, bem como
mitigar seu potencial discursivo.
E para confirmar, ou não, essas e outras conjecturas, partimos das
experiências concretas vivenciadas em sala de aula por professores de língua
portuguesa que fizeram uso de curtas-metragens, conforme relatos publicados no
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site do projeto Curta na Escola1, desenvolvido pela Petrobrás. O objetivo do projeto
é incentivar o uso de filmes de curta metragem brasileiros como material de apoio
pedagógico em sala de aula. A iniciativa já consolidou, e vem ampliando a cada dia,
uma rede colaborativa de aprendizagem em torno de conteúdos relacionados ao uso
desses recursos em escolas de todo o país. Essa rede é alimentada por meio de
comentários, discussões em fóruns e, principalmente, pelo envio dos relatos por
parte dos professores que fizeram uso dos filmes com seus alunos em suas práticas
de ensino.
PETROBRÁS. Projeto Curta na Escola. Disponível em: www.curtanaescola.org.br/
Idealizado em 2006, o projeto oferece indicações de uso pedagógico para
centenas de curtas, cuja exibição é disponibilizada por meio do site. Profissionais
especializados produzem pareceres sobre como utilizar os curtas em cada
disciplina, bem como orientações de como abordar os temas transversais utilizando
as temáticas apresentadas nos filmes. Aos professores cadastrados é concedido um
espaço no banco de relatos, no qual suas experiências e estratégias relacionadas ao
uso dos curtas-metragens, baseadas nos pareceres dos especialistas ou não,
1 Disponível em: <http://www.curtanaescola.org.br/ >. Acesso em: 15/06/2013.
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podem ser compartilhadas com milhares de outros educadores. E para aqueles que
possuem cadastro, é permitida a criação de sua própria cinemateca para fazer uso
dela no momento mais adequado, além de poderem compartilhar os links dos filmes
assistidos nas redes sociais das quais fazem parte. Os curtas são organizados e
classificados a partir de critérios como faixa etária, séries em que podem ser
trabalhados, bem como as disciplinas e os temas transversais aos quais podem ser
relacionados.
PETROBRÁS. Projeto Curta na Escola. Disponível em: www.curtanaescola.org.br/
Em 2007 o projeto lançou, em DVD, a Coleção Curta na Escola, que já está
no terceiro volume. São três compêndios compostos de seleções de curtas-
metragens, considerados pela equipe de educadores do projeto de alto potencial
didático. Todos os filmes selecionados vêm acompanhados de planos de aulas
elaborados por uma equipe multidisciplinar de professores, que indicam alguns
caminhos possíveis para uso didático dos curtas em diversas disciplinas, dentre elas
Língua Portuguesa. Até o momento, cerca de 4 mil escolas da rede pública de todo
o país já foram beneficiadas com os DVDs da coleção, patrocinada pela Petrobrás e
distribuída de forma gratuita. Para esta pesquisa vamos utilizar o primeiro volume da
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coleção, o qual contém oito curtas-metragens, dos quais seis possuem indicações
metodológicas para utilização em aulas de Língua Portuguesa.
PETROBRÁS. Projeto Curta na Escola. Disponível em: www.curtanaescola.org.br/
É nesse universo que se encontra nosso objeto de pesquisa, o qual será
explanado mais detalhadamente na seção metodológica. Passemos agora à base
teórica que fundamenta esta pesquisa.
Este trabalho está calcado na teoria do pensador russo Mikhail Bakhitn,
principalmente no que diz respeito à concepção de linguagem, dialogia, alteridade e
interação verbal. Outros conceitos desenvolvidos pelo filósofo, tais como exotopia,
excedente de visão, arquitetônica, cronotopia e a relação que ele estabelece entre o
ético e estético, bem como entre o autor e o herói, também serão imprescindíveis
para nosso estudo e fundamentais para entendermos melhor a linguagem
cinematográfica. Tais noções tornam-se especialmente importantes para discutir a
autonomia entre as vozes que se fazem presentes nas produções cinematográficas
de hoje, cada vez mais centralizadas na figura do diretor. A base do pensamento
bakhtiniano reside na estreita relação que ele estabelece entre o mundo ético, ou
seja, o mundo em si, a realidade, e o mundo estético, ou seja, sua representação
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por meio da linguagem. A partir daí, ele estrutura a arquitetônica do seu
pensamento, na qual a relação com o outro ocupa um lugar de centralidade.
Acreditamos sim que seja possível abordar o estudo da linguagem
cinematográfica sob a ótica de Bakhtin, embora este nunca tenha realizado algum
estudo sobre o cinema e seu sistema de significação. No entanto, partindo do
pressuposto de que o cinema tornou-se um meio de informação e expressão
artística, a linguagem passa a compor de forma intrínseca esse processo. E sendo
a linguagem a ponte necessária para qualquer interação, julgamos pertinente pensar
a linguagem do cinema e seu potencial educativo à luz das teorias bakhtinianas
acerca das interações sociais. Robert Stam (1992) obteve sucesso ao aplicar o
pensamento de Bakhtin à teoria do cinema, quando empregou, ao analisar
Macunaíma (1969), o conceito de carnavalização, que tem como mote central a
sátira e a inversão da hierarquia dominante, presente no texto “A Cultura Popular na
Idade Média e no Renascimento” (BAKHTIN, 1987).
Assim também procedendo, tentamos, na medida do possível, erigir nossas
análises dos filmes e das experiências relatadas pelos professores com base nas
categorias do pensamento bakhtiniano mencionadas acima, visando identificar e
esclarecer os processos linguísticos e interacionais presentes na relação entre o
sujeito social professor, o aluno e a linguagem cinematográfica, bem como seus
efeitos de sentido, seja na sala escura do cinema, seja no ambiente formal da
escola. Como constatado por Robert Stam (1992, p.59), “Embora a influência de
Bakhtin tenha-se feito sentir amplamente em estudos culturais, em disciplinas que
vão da crítica literária à linguística, essa influência ainda precisa revelar sua
fecundidade potencial na área dos estudos de cinema (...)”.
E assim como Stam (idem), prosseguimos reverberando esse diálogo
imaginário com Bakhtin a respeito de um tema sobre o qual o pensador russo nunca
tinha mencionado. Atende-se, portanto, sua convicção com relação à capacidade
das obras, ao caírem no grande tempo, de se enriquecerem com novos sentidos,
sendo o “autor um prisioneiro de sua época, de sua atualidade, esperando que os
tempos posteriores o libertem dessa prisão” (BAKHTIN, 2003, p.364).
No que se refere à ordenação metodológica, este trabalho está organizado
em três etapas que, embora distintas, se complementam. A primeira parte dedica-se
à contextualização histórica e caracterização do gênero curta-metragem, bem como
à fundamentação do seu potencial didático em sala de aula. No segundo capítulo,
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mergulhamos nas concepções teóricas sobre linguagem e cinema, bem como sobre
o uso de meios audiovisuais, sobretudo o cinema, no processo de letramento em
língua materna. E por último, buscamos demonstrar, por meio das análises dos
relatos, como interpretar um enunciado audiovisual, de modo a encará-lo como uma
unidade de sentido e não como mera ilustração para explicar o conteúdo do
currículo. Além disso, nessa etapa, ressaltamos as múltiplas possibilidades de
exploração didática que o gênero curta-metragem oferece para trabalhar de forma
dialógica o estudo de linguagem, embora não seja essa a sua natureza. Os
fundamentos e os procedimentos metodológicos da pesquisa e análise dos dados
estão detalhados no capítulo III.
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CAPÍTULO I
GÊNERO CURTA-METRAGEM: ASPECTOS FORMAIS, HISTÓRICOS,
POLÍTICOS E PEDAGÓGICOS
Neste capítulo, buscamos oferecer ao leitor uma noção do conceito de curta-
metragem, suas características definidoras e sua evolução como gênero discursivo.
Pretendemos, também, abordar seus aspectos históricos, bem como a política
econômica que, de certa maneira, deu os contornos que atualmente ele apresenta.
E por último, idealizamos elencar algumas vantagens de usar este gênero nas aulas
de linguagem, sobretudo se comparado com o longa-metragem. Na última seção,
procuramos fundamentar a aplicabilidade, bem como a pertinência pedagógica de
usar o curta-metragem como instrumento de ensino nas aulas de língua portuguesa.
Além disso, pretendemos, tendo como norte balizador os PCN, apresentar
possibilidades de aplicação concretas desse recurso em sala de aula.
Discutimos ainda o papel a ser desempenhado pelo professor na utilização
dessa ferramenta, desde a escolha do material até o desfecho do processo, com
vistas a contribuir para o ainda tímido emprego dos curtas no ensino de língua
materna. E, embora este trabalho não seja sobre curta-metragem, e sim sobre
professores que fazem uso dele em sua prática de ensino, faz-se mister trazer à luz
informações de natureza técnico-histórica sobre esse tipo de filme, que nos ajudarão
a entender melhor a importância desse gênero como um canal por meio do qual
múltiplas vozes puderam e ainda podem ecoar seus pensamentos de modo livre e
democrático.
Nos primórdios da história do cinema, a definição do curta-metragem era
associada a uma limitação técnica. Dessa forma, a produção de curtas não era uma
questão de escolha de seus produtores; ao contrário, tratava-se da única forma
possível de realização cinematográfica naquele momento embrionário das
produções cinematográficas. Mais de cem anos se passaram, as possibilidades e
aparatos tecnológicos se multiplicaram, os avanços estéticos vieram e algumas das
características e critérios que identificavam um curta-metragem naquela época ainda
são válidos até hoje: um curta-metragem é definido pela sua extensão. Todavia,
esse conceito foi adquirindo propriedades controversas. Cada vez mais surgiam
posições díspares e opiniáticas em torno da definição de um curta-metragem.
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Segundo definição da maioria dos dicionários, esse tipo de produção é definido
como Filme Curto, cuja duração é geralmente inferior a 30 minutos.
No entanto, as características de um curta-metragem vão muito além do seu
formato. Outras propriedades relacionadas à sua curta duração conferem-lhe
peculiaridades discursivas importantes, como o reduzido número de personagens e
diálogos, condensação narrativa que, por sua vez, leva à condensação da
linguagem e da ação; tempo da história, na maioria dos casos, linear;
verossimilhança com a realidade, grande carga emotiva e sugestiva, além de
apresentar desfechos geralmente surpreendentes. E, pela sua natureza
cinematográfica, é grande a possibilidade de veicular conteúdos culturais com
valores educativos. Por isso mesmo, torna-se uma fonte inesgotável e valiosa para
trabalhar aspectos da interação humana, como cultura e linguagem.
Mas algumas dúvidas ainda restam com relação ao que vem a ser um curta-
metragem. Ribeiro (2013) problematiza levantando a seguinte indagação: Embora
quase todos os dicionários estipulem o limite máximo de 30, 40 e até 50 minutos,
haveria um limite mínimo para um filme curto? Outra controvérsia lembrada por ela
refere-se ao nome “curta-metragem”, em oposição ao “longa-metragem”. Dessa
relação, pode-se deduzir, pondera a pesquisadora, que ambos estariam inseridos na
categoria “filme cinematográfico”. No entanto, a realidade sugere outra classificação
aos curtas, a de “produção audiovisual”, uma vez que sua difusão e exploração
comercial não estão, a princípio, direcionadas para as telas das salas de cinema,
embora partilhe das características definidoras de um filme cinematográfico. Essa
questão será tratada com mais profundidade na seção que se segue.
1.1 Curta-metragem no Brasil: história e política econômica
Para além de uma investigação sobre a definição do curta-metragem, faz-se
necessário um levantamento histórico do processo de formação e transformação
pelo qual o curta passou desde que se fez presente no Brasil. Qualquer conclusão
sobre o assunto baseada apenas em sua conjuntura atual seria superficial e até
mesmo equivocada. Na abordagem dialógica na qual nos baseamos, entendemos
que qualquer concepção, sobre qualquer assunto, é construída de forma dialogal
com os aspectos sócio-históricos que a constituem. Assim, consideramos
indispensável conhecer a história do gênero curta-metragem desde sua gênese no
18
Brasil, bem como os fatos e circunstâncias sócio-políticas e culturais com os quais
se relacionou.
Desde 1895, com a invenção dos irmãos Lumière, mesmo com imagem
ampliada, o que se via eram filmes no formato curto, o único disponível naquele
período, haja vista as limitações da época. Superada essa fase, com a evolução
técnica e estética, da qual rapidamente se apropriou a indústria cinematográfica, o
curta adquire um caráter de complemento, uma espécie de coadjuvante do longa-
metragem. Perde sua posição de atração principal e assume uma posição
complementar em relação ao longa, formato que prosperava e atingia o gosto da
maioria das pessoas, cada vez mais submetidas à cultura de massa - motivo
suficiente para um maciço investimento da indústria cultural, que logo organizou um
sistema de comércio cinematográfico, de distribuição e, principalmente, de exibição,
que crescia dia a dia, o que resultou na consolidação da cultura do entretenimento
(NETO, 2012).
Diante desse fenômeno, já na década de 1950, o cinema passa a ser
encarado principalmente como divertimento, fator que passa a balizar o mercado
cinematográfico, tornando-se uma febre mundial, seguindo, em todos os cantos, o
modelo norte-americano. O fato é que o curta foi, de forma progressiva e rápida,
perdendo seu espaço, uma vez que o longa caiu no gosto popular - critério
necessário e suficiente, na lógica de mercado, para investir sem reservas no produto
em questão, no caso o longa-metragem. Ao curta restou a função de laboratório
para inovação e experimento de novas linguagens por parte da indústria
cinematográfica, sobretudo pelo seu baixo custo de produção. E o longa é eleito o
formato apropriado para competir no acirrado mercado do entretenimento
(BERNADET, 1995; DUARTE, 2002; NETO, 2012).
Com a chegada de Getúlio Vargas ao poder e a implantação do Estado Novo
no final da década de 1930, o curta-metragem adquire novos e imprescindíveis
papéis, agora, com proteção oficial. Não deixou de ser um complemento, mas desta
feita com status de oficialidade, novos tempos para o curta-metragem. O gênero
deixa de assumir uma posição de coadjuvante e passa a protagonizar um papel
fulcral, não nas salas de cinema, mas na educação. Os curtas-metragens passam a
ser instrumentos de ensino e meio de veiculação da ideologia varguista, baseada no
nacionalismo integrador. Isso só foi possível devido às mudanças realizadas no
processo de produção, distribuição e exibição de filmes, até então regulado apenas
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pelas leis de mercado. A ideia dos getulistas de universalização do ensino e da
informação, principalmente a oficial, valorizou os canais de difusão cultural e impôs
uma nova relação entre cinema e o poder (ALENCAR, 1988; NETO, 2012).
É nesse cenário que surge o intelectual, extremamente nacionalista,
admirador ardoroso dos novos meios de comunicação de massa, Roquette Pinto. É
ele quem vai conduzir um inédito processo de construção de uma legislação para a
indústria cinematográfica, até então regida apenas pelo mercado. A partir disso, ao
filme estrangeiro foi imposta a obrigação de pagar uma taxa, a qual tinha o objetivo
de financiar a produção de filmes curtas nacionais de caráter educacional. Uma
medida governamental fixa uma proporção de filmes educativos nacionais a serem,
obrigatoriamente, exibidos nas salas de cinema em todo o país. E, em 1936, o
governo pedetista de Getúlio Vargas, tendo como mentor intelectual Roquette Pinto,
cria o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), que passa a produzir filmes
curtos de caráter educativo. “Em seis anos, o órgão produziu cerca de 200 curtas
escolares, encaminhados para escolas e institutos culturais, bem como para os
circuitos de exibição pública de todo o país” (apud: Neto, 2012, p. 33).
Até aqui, temos um quadro no qual o curta-metragem figura como agente
didático de brasilidade, totalmente financiado pelo estado, não passando de mero
reprodutor de conhecimento e de propaganda ideológica, situação que impedia a
produção ficcional e autoral, uma vez que a perspectiva artística não interessava ao
financiador. A visão de que a narrativa ficcional e o entretenimento visando ao lucro
cabiam ao longa-metragem perpetuou absoluta até a década de 1960
(ALENCAR,1988; BERNARDET, 1995).
E é nesse período que alguns cineastas mineiros, entre eles Humberto
Mauro, começam a criar um ambiente fértil para o renascimento, ou retomada, da
chamada produção autoral. Ele inaugura um período em que os produtores,
influenciados por movimentos como o francês Nouvelle Vague, e o americano
Cinema Direto2, passam a buscar novos modelos estéticos produzidos pelo então
cinema moderno do pós-guerra. Um novo modelo de curta-metragem se impõe aos
certames brasileiros, graças, em parte também, a festivais internacionais, que
2 Movimentos artísticos dos cinemas francês e americano que se inserem no movimento contestatário
próprio dos anos sessenta. Participavam desse movimento novos cineastas, sem grande apoio financeiro. Os primeiros filmes dessa escola eram caracterizados pela juventude dos seus autores, unidos por uma vontade comum de transgredir as regras normalmente aceitas para o cinema mais comercial.
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passam a influenciar a estética, inclusive, de longas. Inaugura-se, então, como
veremos em seguida, uma nova etapa para o curta-metragem no Brasil (NETO,
2012).
1.2 Curta com personalidade
A partir do final da década de 1950, jovens autores, sedentos de expor suas
habilidades em produzir narrativas ficcionais, sem uma finalidade propriamente
didática, mas como expressão estética, ávidos a mostrar suas visões de mundo por
meio da sétima arte, cansados de produzir um cinema acrítico e de ser sala de
espera para os longas internacionais, partem para uma nova etapa da produção de
curtas no Brasil. Nesse período passam a abordar livremente os reais problemas da
sociedade brasileira, bem como explorar com mais liberdade os aspectos da
linguagem cinematográfica, agora voltada para uma nova estética, a do cinema
novo. Apesar dos primeiros filmes dessa época ainda serem, em parte, financiados
por órgãos fomentadores do governo e ainda apresentarem resquícios do modo
didático de produção, ainda um pouco reticentes diante das avançadas técnicas
trazidas pelas vanguardas da época, já era possível perceber um discurso mais
ousado, independente, diferente dos “envernizados”, produzidos pelo INCE (NETO,
2012).
É nessa época que os curtas brasileiros de ficção, como Couro de Gato, de
Joaquim Pedro (1961), ganham vários prêmios em festivais internacionais,
fenômeno que reforça a convicção da capacidade de produtores brasileiros
realizarem curtas autorais de ficção, de forma independente, afastando-se cada vez
mais do padrão “Complemento Nacional”. E, para coroar o bom momento do curta
nacional, uma tendência já praticada na Europa chega ao Brasil. Tratava-se de um
expediente que juntava alguns curtas transformando-os em um longa, estratégia
que, além de reduzir significativamente o custo da produção, garantia-lhes um
espaço na exibição pública nas principais salas de cinema do país. Foi assim com
Couro de gato, acoplado a Um favelado, de Marcos Farias, por sua vez acoplado
ao Zé da cachorra, de Miguel Borges, também acoplado ao Escola de samba,
alegria de viver, de Carlos Diegues e ao Pedreira de São Diogo, de Leon Hirszman,
21
formando o longa Cinco vezes favela, produzido pelo CPC da UNE3 (ALENCAR,
1988; NETO, 2012).
Com o crescente interesse dos jovens autores pela produção cinematográfica,
surgem os primeiros cursos de cinema no Brasil. A UNB, com Nelson Pereira e
Jean-Claude Bernardet, toma a frente no projeto de fundar um curso de graduação
em cinema, sonho interrompido pelo endurecimento do regime militar. Diante dessa
tentativa frustrada, Pereira realiza nova investida, desta vez bem sucedida, em
Niterói – RJ, fundando o curso de cinema da UFF. Já Bernardet volta a São Paulo e
cria o curso de cinema na ECA – USP. O formato curto, por questões financeiras,
será o modelo de filme escolhido para as produções universitárias. E mais uma vez
o curta-metragem é protagonista num momento importante da história. Em uma
época de crescente endurecimento político, eles serão um importante instrumento
estético de militância e resistência.
Com a criação de vários cursos de cinema pelo país, o Jornal do Brasil,
visando à produção dessa nova geração de cineastas, prestes a se lançarem no
mercado, cria o Festival Brasileiro de Cinema Amador. Na sua primeira edição, em
1965, teve como tema o quarto centenário da cidade do Rio de Janeiro. Os filmes
foram exibidos no cinema Paissandu, ponto de encontro de muitos diretores
famosos e críticos consagrados de cinema. Jovens produtores, os quais ficaram
conhecidos como „geração Paissandu‟, sonhavam com uma carreira de cineasta.
Eles queriam ser vistos e comentados pelos seus ídolos presentes no festival. Todos
desejavam fazer parte do movimento de mudança em processo. Muitos curta-
metragistas tiveram suas carreiras de cineasta alavancadas com o sucesso obtido
pelo festival, que passa a se chamar, a partir de 1971, Festival Nacional de Curta-
metragem. Começa aí uma nova era para o curta no Brasil.
1.3 Demarcando território
Os novos produtores queriam ser reconhecidos e exigiam a intervenção do
estado na política de distribuição e exibição de filmes nacionais; no entanto, não
abriam mão da experimentação de novas linguagens e da crítica frente ao sistema
que ficou conhecido como anos de chumbo. O fato era que o governo possuía
3 Centro Popular de Cultura, organização associada à União Nacional de Estudantes - UNE, criada
em 1961, na cidade do Rio de Janeiro, por um grupo de intelectuais de esquerda, com o objetivo de criar e divulgar uma "arte popular revolucionária".
22
programas de fomento oficiais via Embrafilme, mas jamais financiaria filmes de
caráter crítico, que revelassem as mazelas da sociedade brasileira da época. Na
concepção oficial, o cinema deveria prestar-se unicamente a entreter a população.
Esta era a função primeira do cinema: proporcionar filmes com abordagens lúdicas,
pouco politizadas, desvinculados da vida concreta. Por outro lado, os autores da
época queriam fazer uso expressivo de uma estética não oficial, a estética das ruas,
dos guetos, do lixo, experimentar novas linguagens, não padrão, como forma de
fazer frente ao regime militar (ALENCAR, 1988).
Diante de toda essa dificuldade de ordem financeiro-estrutural e da
imprescindibilidade de testemunhar cinematograficamente aquele período histórico
de forma crítica, surge o associativismo. Era preciso garantir o direito de expressar
visões díspares da propaganda oficial, que também se utilizava do mesmo recurso,
porém muito mais bem paramentada (MOURA, 2003). Esse movimento foi fruto da
luta política por mais espaço e liberdade estética. Nessa toada, é fundada, em 1973,
a Associação Brasileira de Documentaristas, que, apesar do nome, acolhia não só
os produtores de documentários, mas também os curta-metragistas ficcionistas.
Essa iniciativa produziu um efeito muito positivo para os produtores da época, os
quais tiveram seus filmes vistos em vários festivais amadores e profissionais de
curta-metragem. Esse período teve seu auge no início dos anos 80 com a criação da
CORCINA - Cooperativa dos Realizadores Cinematográficos Autônomos (ídem).
Mas era preciso ampliar a esfera de circulação dessas produções, as quais só eram
exibidas em festivais e centros culturais.
A grande luta dos produtores era a regulamentação da exibição dos curtas
ficcionais nas salas de cinema, dominadas exclusivamente pelos grandes produtores
de longas. Depois de muitas reivindicações e debates com produtores e governos, a
ABD conseguiu, finalmente, em 1979, a elaboração e aprovação da chamada Lei do
Curta. Tal dispositivo legal pôs fim a uma inquietude de há muito por parte dos curta-
metragistas ficcionais. A lei regulou a exibição do curta ficcional, experimental e
documentários nas salas do circuito comercial de todo o país. O órgão responsável
por fiscalizar e fazer com que a lei se cumprisse foi o CONCINE – Conselho
Nacional de Cinema4. Esse acordo estendeu a obrigatoriedade, em todo o país, de
4 O CONCINE tinha como objetivo formular políticas para o cinema brasileiro, bem como normatizar e
fiscalizar as atividades cinematográficas no país, como produção, reprodução, comercialização, venda, locação, permuta, exibição, importação e exportação de obras cinematográfica.
23
exibição de curtas-metragens brasileiros antes dos longas estrangeiros. Começava
aí um novo ciclo para o gênero curta-metragem no Brasil.
Diante do sucesso alcançado pelos curta-metragistas independentes,
produtores da grande indústria cinematográfica começaram a produzir seus próprios
curtas de baixa qualidade, com o único objetivo de fazer com que o público se
voltasse contra o gênero e protestasse contra sua obrigatoriedade nas salas do
circuito oficial de cinemas. Mais uma vez, foi necessária a intervenção do CONCINE,
o qual, por meio de uma resolução, institui o chamado “sistema do curta-metragem”.
Essa medida criava um júri especial composto por membros da ABD, da Embrafilme,
do Sindicato dos Produtores de curta-metragem e por intelectuais pesquisadores de
cinema, os quais passaram a selecionar os filmes considerados aptos a serem
exibidos, garantindo com isso a qualidade das obras a serem assistidas pelo púbico.
Além disso, outra resolução do CONCINE cria um fundo, mantido por um percentual
da renda das sessões de cinema em todo o país, para fomentar a produção do
curta, fato que o levou a presenciar sua melhor fase, sendo chamada, segundo
Caetano (2006 apud NETO, 2012), de “Primavera do Curta”.
Ante as conquistas e transformações pelas quais passou o filme curto no
Brasil, os frutos não tardariam a chegar. Um dos curtas mais aclamados de todos os
tempos, Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado, ganha o Festival de Berlim, em
1989, sendo eleito pela crítica europeia um dos 100 curtas mais importantes do
século XX. Esse sucesso foi resultado da intensa interação entre produtores de
curtas ficcionais e documentaristas que conviveram por muito tempo na ABD,
período em que sofreram influências mútuas dos estilos e linguagens de cada
gênero. Resultado disso, tivemos o curta mencionado, que, dentro de um panorama
metalinguístico, faz uma paródia dos estilos já consagrados, além de criticar a
suposta objetividade e autoridade da linguagem documental até então praticada,
sem deixar de ser também um documentário, embora haja controvérsia. O mesmo
sucesso é obtido por A garota das telas (1988) e Frankestein Punk (1986),
de Cao Hamburger, e A revolta dos carnudos, de Eliana Fonseca (1988) (NETO,
2012). Contudo, o “sistema do curta-metragem”, cujo sucesso era patente, teve seu
fim com a chegada de Fernando Collor ao poder em 1990. Com sua avidez por
privatização, põe fim à Embrafilme, aos CONCINES e conselhos afins. Mais uma
vez, o curta precisa se reinventar, uma nova batalha recomeça.
24
1.4 Espaço público e independência: a reconquista
A era Collor desestruturou um sistema que vinha funcionando de forma
equilibrada. A produção cinematográfica reduziu drasticamente, inclusive dos
longas. Em meio a essa falta de perspectiva para a produção e exibição de filmes
curtos nacionais, as salas de exibição do circuito de cinema voltam a sofrer o
monopólio dos filmes estrangeiros, sobretudo das produções homogêneas norte-
americanas. É nesse cenário desanimador que produtores apaixonados e amantes
do gênero, frutos da “primavera” da década anterior, engendram, em 1990, o
Festival Internacional de Curtas de São Paulo e, anos depois, no Rio de Janeiro,
criam o Curta Cinema. Esses dois espaços foram os responsáveis pela
reorganização e reestruturação do gênero, tornando-se referenciais de apoio, crítica
e divulgação do curta-metragem até os dias de hoje. Produções como Esta não é
sua vida e A matadeira (1991), de Jorge Furtado, revelam que os novos cineastas
mantêm muito da estética da época primaveril dos curtas, mas apresentam uma
nova tendência significativa.
Nota-se, nesse período, um certo arrefecimento da ficção e um ressurgimento
da preocupação com as questões sociais, fato que reivindica uma estética que
explore o aspecto poético da linguagem, sem, contudo, perder a ligação com a
realidade, com a vida. Essa tendência pode ser percebida nos documentários Vala
Comum (1994), de João Godoy e Socorro Nobre (1995), de Walter Salles (RAMOS,
2004). Outro fenômeno importante é o surgimento de subgêneros do curta-
metragem, como o curta-piada5 e o curta-portifólio6, os quais ganham simpatizantes
e depreciadores na mesma proporção. Independentemente da aprovação ou
desaprovação dos cinéfilos de plantão, o fato é revelador, na medida em que
evidencia a potência criativa desse gênero. E essa plasticidade criativa do gênero
curta ocorre em razão de não haver restrição a que estão submetidos os longas
comerciais no seu processo de criação e produção.
Essa nova retomada da produção de filmes curtas no Brasil demonstrou que,
por fim, o gênero tinha alcançado uma estabilidade permanente. Tal afirmação é
5 São curtas que contam, de forma humorada, histórias que teriam tudo pra ser um drama. Uma
forma descontraída de fazer crítica social. Como forma de denúncia, brincam com elementos que revelam as mazelas sociais. 6 São curtas produzidos por diretores que possuem a intenção de atuar com longas. Por isso não têm
compromisso com a estética e linguagem próprias do gênero. Esse tipo de produção está bem próximo dos padrões comerciais de um longa, porém no formato curto.
25
possível por duas razões. A primeira está vinculada ao fato de diretores já
consagrados preferirem criar seus filmes no formato curto, deixando de encará-lo
apenas como trampolim para uma carreira de produtor de longas. Já era possível
construir uma carreira cinematográfica como produtor de curta-metragem. A
segunda razão tem a ver com o incentivo governamental e apoio advindos de
instituições privadas.
Com o impeachment de Collor e ascensão dos tucanos ao poder, cria-se a
chamada renúncia fiscal em favor das artes, e põe-se em prática o plano de retomar
a produção cinematográfica brasileira. Leis de incentivo à cultura são criadas e
milhares de espaços dedicados à arte são espalhados pelo país, tais como os do
Banco do Brasil e do Itaú, para citar os mais importantes. Isso permitiu que outras
regiões, para além do eixo Rio – São Paulo, entrassem para o circuito dos festivais.
No entanto, um fenômeno ainda mais contundente iria selar, de uma vez por todas,
o futuro do curta-metragem.
Em 1995, surge uma novidade que impactaria todos os aspectos da produção
humana, fossem eles científico, cultural ou comercial. Trata-se da Internet. Nunca
uma estrutura de rede representou tão bem o “Tecendo a Manhã”, de João Cabral
de Melo Neto. Enfim, o galo canta e todos podem ouvir, porque há tantos galos
quanto necessários a postos na rede, levando o seu grito a outro e a outros até que
todos possam ouvi-los, e com uma rapidez que João Cabral sequer sonhava. É o
espaço de exibição de filmes curtos mais eficaz e democrático que um produtor
independente puderia desejar. Em 1998, surge o site Portacurtas, que reúne em um
portal milhares de curtas nacionais e os disponibiliza, online, para quem quiser
assistir, em qualquer lugar do planeta. Isso numa época em que a tecnologia
webstreaming7 e a banda larga estavam apenas começando. O site é patrocinado
pela Petrobrás, financiadora das principais produções cinematográficas do país.
O Portacurtas possui atualmente mais de oito mil curtas catalogados, é o
maior banco de dados online de curtas brasileiros. O projeto disponibiliza as fichas
técnicas de todos os filmes, numa cinemateca acessível 24h por dia. Além desse
7 Tecnologia que permite a transmissão instantânea de dados de áudio e vídeo através das redes. Com
ela, o usuário consegue assistir a filmes ou escutar música sem a necessidade de fazer download, o que torna mais rápido o acesso aos conteúdos online.
26
espaço, há outros espaços virtuais, como o Youtube e o Vmeo8, onde o próprio
produtor pode atuar como divulgador e exibidor de seus trabalhos. Por meio da rede,
produtores independentes podem organizar seus próprios festivais, abordando os
temas que desejarem, como é o caso do Festival Internacional de Cinema na
Internet, o Fluxus9.
Tal realidade proporcionada pela internet, na avaliação de Moletta (2009),
levou ao rompimento definitivo da fronteira entre produção cinematográfica e
audiovisual, acabando com a barreira entre película e fita, porque, na web, a
reputação de uma produção não está na bitola do filme ou no formato mini DV ou
HD; o prestígio de um filme está na quantidade de acesso e comentários dos
usuários, através do qual se obtém, em tempo real, a reação do público.
Assim, finalmente, o gênero curta-metragem atingiu sua maturidade, tanto em
independência quanto em público, conquistando de vez liberdade temática, esfera
de circulação e suporte infinitos. A Internet é um espaço onde as hegemonias ainda
encontram resistência. Lugar onde a tendência única perde sua força, um verdadeiro
sítio de exploração, no qual se acomodam e se compatibilizam todas as estéticas,
todas as linguagens e discursos. A internet, espaço não oficial, passou, num
movimento contrário, a influenciar decisivamente os espaços oficiais,
retroalimentando a exibição de filmes nos espaços físicos, impactando a frequência
do público tanto nas salas de cinema quanto nos centros culturais. Os festivais e
premiações, frequentemente, acabam contemplando diretores que começaram sua
carreira cinematográfica na internet.
1.5 Curta-metragem e o conceito de gênero discursivo
Quando pensamos na vasta produção cultural existente no mundo, das mais
variadas natureza, ordem, tipo, categoria, gênero, padrão e outros termos
classificatórios que possam existir, esbarramos com a dificuldade de encontrar
sistemas e teorias classificatórios que deem conta da complexidade dos fenômenos
culturais que atualmente presenciamos. Encontrar uma teoria capaz de abarcar esse
mundo cultural que se nos apresenta, cujas características principais são a
8 Assim como o Youtube, trata-se de um serviço de compartilhamento de vídeos na Internet. Possui
também versões para celulares e tablets. Com ele o usuário pode fazer vídeos e postar diretamente na rede.
27
plasticidade, versatilidade e mutabilidade nos parece uma incumbência quase
impossível. De todas as teorias que se propõem a cumprir tal tarefa hercúlea, a que
nos parece mais adequada aos nossos tempos é a teoria de gênero discursivo
concebida pelo filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin. Isso porque suas proposições
teóricas levam em conta aqueles aspectos pertinentes à produção cultural acima
citados: plasticidade, versatilidade e mutabilidade. Nas palavras dele:
O gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo. O gênero renasce e se renova em cada nova etapa do desenvolvimento da literatura e em cada obra individual de um dado gênero. Nisto consiste a sua vida (BAKHTIN, 2003, p. 91).
Embora Bakhtin nunca tenha abordado questões referentes à produção
cinematográfica, restringindo-se, como os demais teóricos do Círculo que se
incumbiram do estudo do gênero discursivo, à análise de produções literárias nas
formas impressas e orais, consideramos profícua a aplicação de sua teoria sobre
gênero discursivo ao estudo específico do curta-metragem brasileiro. Não seremos
pioneiros em estabelecer essa aproximação entre Bakhtin e o cinema. O
pesquisador de cinema Robert Stam também enveredou por esse caminho:
Embora a influência de Bakhtin tenha-se feito sentir amplamente em estudos culturais, em disciplinas que vão da crítica literária à antropologia e à linguística, essa influência ainda precisa revelar sua fecundidade potencial na área dos estudos de cinema (...) Estarei conduzindo, portanto, um diálogo imaginário com Bakhtin a respeito de um tópico sobre o qual ele nunca se pronunciou: o cinema (STAM, 1992, p.58-59).
No entanto, o que pretendemos, de maneira singular neste capítulo, é aplicar
a teoria de gênero discursivo ao curta-metragem, especificamente. Trata-se de uma
categoria cinematográfica que emprega uma estética própria em seus filmes, cujas
características discursivas guardam especificidades, como conteúdo temático
inclinado para a crítica social, esfera própria de circulação, estrutura composicional
diferenciada, entre outras, que nos autorizam a classificá-lo como um gênero
discursivo dentro da concepção de gênero de Bakhtin. É importante salientar que
não estamos questionando sua classificação enquanto gênero cinematográfico, o
qual tem seus princípios definidores alicerçados na teoria do cinema. Não é nosso
escopo aqui questionar tal classificação.
Para Bakhtin, o fator responsável pela organização e uso adequado, de forma
orientada, plausível, de modo a garantir a inteligibilidade da linguagem, não é o
28
sistema abstrato da língua, a gramática, e sim o gênero. De acordo com o filósofo, é
o gênero que regula as ações de linguagem nas diversas esferas da atividade
humana. Ele é encarregado de guardar e fornecer ao usuário da língua, sempre que
necessário, as tendências, vocações e propensões mais constantes e regulares da
linguagem, acumuladas ao longo das gerações de falantes, o que asseguraria uma
“relativa estabilidade” aos enunciados em determinada esfera comunicacional.
Ao gênero cabe ainda, segundo o autor, a função de organizador das formas
de pensamento apropriadas a determinados tipos de enunciados, além de
mantenedor de meios e recursos expressivos utilizados em determinada cultura, de
modo a garantir a comunicabilidade entre os seus falantes hodiernos e a
continuidade dessas matrizes discursivas junto a comunidades futuras. Poderíamos
afirmar também, dentro de uma perspectiva dialógica, que, pelo gênero, e só por
meio dele, é que conseguimos acessar nossas memórias, inclusive a de futuro. Sim,
só é possível acessar a memória de futuro10 por meio do gênero projeto e outros
afins, já a memória do passado é recuperada recorrendo a nossos conhecidos
arquivos, cartas, biografias, memórias, relatos, e outros tantos.
No entanto, não podemos concluir daí que os gêneros do discurso são
imutáveis e limitados. Com a mesma força que procuram manter essa estabilidade
comunicativa, os gêneros se renovam, se adequam, aglutinam novas tendências,
dialogam com outros gêneros, com o mesmo objetivo de manter a comunicabilidade.
Porque o mesmo risco que correria o falante de viver um pandemônio linguístico
caso não houvesse essa relativa estabilidade na língua, ele correria se não
acompanhasse as mudanças impostas pela dinamicidade das interações sociais em
constantes transformações. É por isso que, às vezes, os gêneros se reorganizam,
desaparecem, surgem novos, alguns predominam mais em determinada região
geográfica do que em outras, às vezes se subdividem em subgêneros, de acordo
com as demandas sociais. Tudo isso revela a amplitude dessa teoria, bem como a
diversidade amalgamar do gênero discursivo. Nas palavras de Bakhtin:
A riqueza e a diversidade dos gêneros discursivos são ilimitadas, porque as possibilidades de atividade humana são também inesgotáveis e porque cada esfera de atividade contém um repertório
10
Para Bakhtin, o sentido concreto do presente é o resultado da fusão entre a memória do passado e a memória do futuro, o devir. Aquela que faz com que o sujeito não se baseie apenas num passado, mas num devir, tornando-o um ser inacabado. As projeções do que se quer realizar constituem a memória de futuro, interferindo na forma de pensar e de se posicionar perante a vida.
29
inteiro de gêneros discursivos que se diferenciam e se ampliam na mesma proporção que cada esfera particular se desenvolve e se torna cada vez mais complexa (BAKHTIN, 2003, p. 279).
E no que se refere ao curta-metragem, podemos dizer que se trata de um
gênero discursivo na concepção bakhtiniana? Um ponto de partida para refletirmos
sobre essa indagação é levantar as seguintes questões: Trata-se de uma atividade
humana? Produz enunciados concretos? Esses enunciados circulam em alguma
esfera específica de atividade humana? São utilizados para cumprir uma função
social? A resposta a todas essas perguntas é sim. Bakhtin afirma que só é possível
acessar determinada realidade via gênero do discurso, “como um filtro através do
qual visualizamos a realidade da vida social” (BARROS, 2012, p. 36). Neste ponto,
podemos afirmar que o curta-metragem é um gênero discursivo. Ele nos
proporciona, por meio de sua estética peculiar e seu forte vínculo com o real,
embora seja um enunciado da esfera artística, um contato com a realidade social,
sob um ponto de vista ímpar, singular e crítico ao mesmo tempo, com que, por outro
meio, não teríamos a mesma experiência.
Se pensarmos que o curta, no seu processo histórico, como vimos na seção
anterior, para além de suas conceituações e caracterizações formais, ganhou uma
conotação discursiva muito forte, na medida em que é pensado como instrumento
meio de crítica social, podemos afirmar que o mesmo cumpre uma função social,
assim como o cinema de entreter, a notícia de informar, a receita de orientar, o
artigo de expressar opinião, etc. Com isso, queremos dizer que o curta-metragem é
um gênero que tem como principal função fazer a crítica social. Não apenas pelo
caráter “marginal” que ocupou na história do cinema, mas também pela sua
capacidade atual de influenciar e ser influenciado. Portanto, se, conforme afirma
Bakhtin, só é possível cumprir uma função social por meio de um gênero, podemos
concluir que o curta-metragem é um gênero por meio do qual o enunciador cumpre
uma função social.
Sobre esse assunto, é pertinente lembrarmos as considerações do
pesquisador Sidney de Paulo (2009), o qual destaca a função social como elemento
determinante do gênero e não seus aspectos formais. Como exemplo, ele cita o
texto literário adaptado para o cinema; ao transformar-se num roteiro, deixa de
pertencer ao campo literário e passa a compor o campo do cinema. Isso acontece
porque, de acordo com Bakhtin, o gênero está relacionado à atividade humana. Com
30
outro exemplo, ele fecha a questão: Uma receita de bolo não constitui gênero receita
de bolo pelo simples fato de ter em sua composição termos do campo semântico
culinário, ou por apresentar estrutura sequenciada, ou por apresentar verbos
predominantemente no imperativo. Receita de bolo apresenta-se como gênero
quando, em um evento social, por exemplo, uma visita, o anfitrião, ao preparar um
bolo, segue um roteiro de como fazê-lo. A mesma estrutura poderia estar no meio de
uma carta e, neste caso, não ser mais uma receita de bolo (Paulo, 2009, p. 69).
Sendo assim, torna-se improdutivo ficar questionando se um texto com uma
estrutura composicional parecida com uma receita presente em uma letra de canção
pertence ao gênero canção ou receita, já que o gênero está relacionado à atividade
humana. Ao ouvir uma canção no momento de lazer, com objetivo de relaxar ou
dançar, enfim, se divertir, isso é letra de canção, é ponto pacífico, pois se presta à
função social de entretenimento. Se um texto, mesmo apresentado uma estrutura
composicional típica de um poema, é utilizado para fazer um bolo de café da manhã,
então será do gênero receita. Pois o elemento determinante de um gênero é a sua
função social, sua relação com as atividades humanas. Nesta toada, um parecer de
um juiz, com a forma de um poema, nunca deixará de ser uma sentença, a menos
que saia da esfera jurídica e adquira outra função, a de produzir prazer literário.
Portanto, a esfera em que o enunciado circula e sua função social são
determinantes para definir o gênero, e não sua estrutura composicional, seu formato.
Todo gênero, de acordo com a teoria, necessita se materializar em algum tipo
de texto. Portanto, afirmar que o curta-metragem constitui um gênero discursivo
equivale dizer que o curta consiste em um texto. Sim, trata-se de um texto fílmico,
que, assim como qualquer outro tipo de texto, possui seus sistemas específicos de
significação, compostos principalmente de imagens e sons, os quais, ao serem
manipulados, por meio de planos, luzes e movimentos de câmera, além de outros,
produzem determinados efeitos de sentido. Assim, podemos afirmar que o objeto de
análise em questão, o gênero curta-metragem, está materializado no texto fílmico,
que se utiliza da linguagem cinematográfica para produzir seus sentidos, assim
como o texto verbal utiliza a escrita.
Quando pensamos no conteúdo temático, será que o curta-metragem nos dá
alguma garantia do assunto que será tratado? Se pensarmos de forma isolada, a
resposta é não, assim como ocorrerá com qualquer outro gênero. No entanto, se
contextualizarmos, a resposta é clara. Entre um longa-metragem exibido sábado à
31
tarde, na sala de cinema do Shopping Pantanal, em Cuiabá, e um curta-metragem
exibido no centro cultural de São Paulo, durante o Festival Internacional de Curta-
Metragem, de qual desses dois enunciados espera-se um conteúdo voltado para a
crítica social? A resposta é óbvia.
Assim, o curta-metragem, enquanto gênero, atende àqueles requisitos formais
relacionados por Bakhtin em sua teoria, quais sejam: estilo de composição,
conteúdo temático, esfera de circulação e suporte de veiculação; embora, como já
frisado anteriormente, sua característica central deve estar relacionada ao uso social
e não à forma. Pois, como sabemos, o gênero é moldado o tempo todo pelo
contexto a sua volta, exposto a mudanças sociais e tecnológicas, em que novas
tendências e meios expressivos surgem numa velocidade assustadora, gerando
múltiplas combinações e possibilidades enunciativas e, consequentemente,
diferentes formas composicionais. Como reforça Stam: “O gênero cinematográfico,
da mesma maneira como antes dele o gênero literário, também é permeável às
tensões históricas e sociais” (STAM, 2003, p.29).
Coerentemente, não cabe aqui tentarmos estabelecer uma delimitação teórica
fechada para o gênero curta-metragem, pois acreditamos que mais importante do
que definir o gênero é refletir sobre as múltiplas possibilidades de relacioná-lo de
forma dialógica a outros gêneros, estabelecendo diálogos com outros discursos,
absorvendo contribuições advindas das mais divergentes áreas, tanto em termos
éticos quanto estéticos, assim como tem sido em todo seu processo histórico, para,
a partir daí, estabelecermos uma ponte com a educação, conforme veremos na
próxima seção.
1.6 Pertinência didático-pedagógica
Quando analisamos uma narrativa por meio de um curta-metragem, podemos
perceber facilmente a riqueza de elementos linguísticos e extralinguísticos, próprios
da interação humana, o que nos faz aproximar do texto fílmico e seus mecanismos.
As imagens que constituem o texto nos remetem automaticamente a um universo
cultural reconhecidamente nosso ou próximo de nós. Essa característica,
principalmente nas produções brasileiras, abre caminho para abordagens de
conteúdos socioculturais, além de revelar aspectos interculturais que nem sempre
são mostrados com tanta expressividade nos livros didáticos. Não queremos aqui
32
defender a exclusividade de um recurso, no caso, o audiovisual. Compreendemos
que todos devem igualmente ser valorizados. No entanto, pretendemos colocar em
xeque a pretensa hegemonia que algumas escolas e professores ainda persistem
em atribuir ao livro didático.
Isso não significa que vamos tecer neste trabalho uma comparação crítica
entre os recursos que temos disponíveis em nossas escolas. Apenas desejamos
despertar uma consciência que contemple e respeite as diversidades culturais de
nossos alunos. E esse respeito às diferenças precisa reverberar também nas formas
e meios de ensinarmos e, ainda, nas escolhas dos instrumentos didáticos. Nesse
aspecto, merece aplausos a iniciativa do projeto Curta na Escola, que nos oferece a
oportunidade de diversificarmos nossas abordagens no ensino de linguagem,
fornecendo-nos direcionamento para trabalharmos textos fílmicos que nos
aproximam do mundo concreto onde os professores e alunos vivem de verdade.
De fato, ao “ler” um curta-metragem, a tarefa de recuperar os elementos
extraverbais fica menos árdua, porque a maioria deles está à mostra no texto,
potencializados por meio dos recursos da linguagem cinematográfica, como
mudanças de planos e efeitos sonoros. Tomemos, como exemplo, o curta 10
Centavos, o qual mostra o drama de um garoto, morador do subúrbio ferroviário de
Salvador, que ganha a vida guardando carros no centro histórico da capital baiana.
Ao contemplarmos esse objeto estético, notamos a existência de um elemento
vincular com a realidade, o que torna o processo de interação mais fluido.
Acreditamos que isso aconteça por se tratar de uma forma de representar a vida,
que, de alguma maneira, nos conecta ao enunciado, sem comprometer seu valor
artístico. Um dos fatores que proporcionam essa conexão é a imagem. Ela nos
permite fazer associações com a nossa realidade e ativar processos cognitivos que
levam à compreensão do enunciado. Por exemplo, na imagem em que o garoto
aparece pegando o trem, é possível, mesmo que não haja esse meio de transporte
na localidade de alguns, perceber realidades análogas entre o mundo representado
e o mundo real do aluno, como a precariedade do transporte público e o sofrimento
de quem o utiliza.
Mas isso vale também para o longa, alguém poderia questionar. Sem dúvida,
alguns filmes de longa-metragem também possuem esse potencial de estabelecer
uma estreita relação com o contexto sociocultural, oferecendo possibilidades de
atividades variadas e dinâmicas, portanto atrativas. Em suma, qualquer produção
33
audiovisual pode vir a ser um excelente instrumento para explorar a linguagem, bem
como os aspectos socioculturais. O problema começa quando consideramos o
tempo de cada aula na escola, geralmente 40 ou 50 minutos. Tendo em vista esse
fator, teremos que trabalhar apenas trechos de um filme longo. Ao utilizar essa
estratégia, compromete-se a compreensão ativa do aluno, pois ele terá pouco
elemento para oferecer uma resposta ao enunciado, além de desperdiçar o potencial
expressivo do recurso. Por mais que escolhamos um trecho que melhor represente a
obra toda, por mais que contextualizemos a obra, dificilmente conseguiremos
envolver os alunos na história e, principalmente, apreender o discurso. Isso porque
nos longas e nos romances, o discurso aparece disperso ao longo da obra.
E qual é problema disso? Ora, considerando o contexto de sala de aula, em
que nem sempre é fácil estabelecer uma relação de continuidade, sobretudo nas
escolas públicas, em que a falta de assiduidade de professores e alunos é notória, o
estudante corre o risco de não identificar os fios discursivos presentes no filme e, por
consequência, não entender a obra. E, com base na concepção bakhtiniana de
dialogia, não podemos compreender um discurso sem sua contraposição com outros
discursos presentes no enunciado. Dificuldade que o professor não vai encontrar se
utilizar um curta-metragem, pois, em apenas uma sessão, o aluno consegue
assimilar e identificar os elementos discursivos produtores de sentido presentes na
obra, permitindo que ele estabeleça as várias relações necessárias para uma
compreensão ativa, refletindo e refratando os temas abordados na interação.
Não menos importante é o cuidado de não submeter o aluno a longos
períodos de exibição de um filme de que ele não goste. Pode ocorrer de o professor
não realizar uma boa escolha e a classe não apreciar o filme, impedindo o
envolvimento da turma na narrativa. Querendo ou não, todos somos, em certa
medida, expectadores críticos, e já passamos, pelo menos uma vez, pela
desagradável situação de termos que assistir até o fim a um filme que não nos
despertou interesse. Com o curta, esse risco é quase nulo, pois seu caráter
compacto apresenta argumentos sintetizados, menor número de elementos
secundários durante a narrativa, o que dificulta o desvio da atenção por parte do
telespectador. Contudo, usar excessivamente e sem critério, seja qual tipo for de
obra cinematográfica, pode levar também à perda de interesse.
A ideia de incorporar o uso de curtas-metragens no ensino de linguagem está
de acordo com as orientações dos PCN, na medida em que apresentam amostras
34
da língua real e comunicação contextualizada, capazes de desenvolver nos
telespectadores uma atitude ativa, transformando-os em agentes sociais. Isso faz
todo sentido, porque, ao assistir a uma produção cinematográfica em aula, é (ou
deveria ser) desencadeado um movimento semelhante àquele que ocorre ao assistir
a um filme em outro espaço, em que o indivíduo, por meio de processos pessoais de
assimilação e interpretação acaba, naturalmente, desenvolvendo competências,
tanto de natureza comunicativa, como de uma forma geral (DUARTE, 2002). De fato,
os PCN lembram que o desenvolvimento de qualquer capacidade humana, seja ela
comunicativa ou não, baseia-se sempre em aspectos volitivos. Ou seja, o aluno
precisa ter vontade, e esse processo deve ser natural, assim como ocorre em outras
esferas em que ele atua.
Assim, ao assistirem ativamente a um curta-metragem, os alunos deverão se
sentir em uma ação concreta, real, como fazendo parte de seu dia a dia e não
apenas como atividade escolar; caso contrário aquele processo desencadeador de
capacidades e habilidades, visto anteriormente, não será disparado. Acreditamos
que o curta-metragem contribui com esse conjunto de processos mentais, detonador
da compreensão ativa e de competências comunicativas dos alunos, preparando-os
para eventuais interações verbais em diferentes esferas. Isso acontece porque
entram em contato com representações de diversas situações contextualizadas com
a sua própria realidade. E, no processo de interpretação e associações, trazem à
tona aspectos práticos, comuns do seu cotidiano.
O curta Xadrez das Cores, de Marco Schiavon, 2004, pode ser um bom
exemplo. A narrativa mostra a tensa relação entre patroa e empregada. Cida é uma
mulher negra, de 40 anos, que vai trabalhar para dona Stella, uma senhora branca
de oitenta anos, extremamente racista. Por ser esta uma situação vivida por
milhares de pessoas no mundo, aqui já se estabelece um link com a realidade. Cida,
apesar de ser tripudiada frequentemente pela patroa, consegue - na arena da
palavra, demonstrando habilidade e competência comunicativas, adequando seu
discurso à situação, mantendo os ritos discursivos protocolares exigidos na relação
patroa – empregada - inverter o “jogo” a seu favor. Esse enunciado, embora seja da
esfera artística, possui um vínculo com a realidade, o que leva o telespectador a se
conectar com a obra. E é isso que faz ativar nele os processos desencadeadores de
competências e habilidades na interação com o filme.
35
Esse diálogo com a realidade concreta, mais presente nos curtas-metragens,
torna-se especialmente útil para entendermos essa natureza social da linguagem, de
que falava Bakhtin, pois evidencia a linguagem como produto das interações sociais
entre sujeitos reais, sem as quais a língua torna-se irreal, abstrata. Compreendendo
melhor: numa produção cinematográfica que mostra uma situação de interação entre
um europeu branco, o dominador, e um africano negro, o dominado, em que a
linguagem utilizada por ambos é homogênea, predominantemente do dominador, a
língua é artificializada. Essa linguagem apresentada nessa relação jamais estaria
presente numa real interação social entre tais sujeitos. Essa representação
monoglota do real perde a força vincular com a realidade concreta, diminuindo
sensivelmente seu potencial desencadeador de habilidades e competências
comunicativas. Além disso, transmite uma ideia distorcida da realidade, por maquiar
a linguagem com intuito de atingir a um gosto padrão. Ocorre também o apagamento
do sujeito; sua identidade cultural é anulada, uma vez que esse se constitui nas
interações verbais, necessariamente dialógicas.
Por outro lado, essa força comunicativa, do falar real, da língua praticada pelo
sujeito falante concreto, está presente sobremaneira nos curtas-metragens, que
apresentam sujeitos reais, inseridos numa sociedade, que se comunicam e
interagem de forma heterogênea, apresentando suas variedades linguísticas e os
acentos próprios dos sujeitos da interação, sem a tentativa de artificializar a
linguagem. Isso quer dizer que, de forma polifônica, o negro falará com as suas
idiossincrasias linguísticas; como podemos perceber na personagem Cida, do Curta
Xadrez das Cores, o jovem com suas gírias imanentes, a mulher com seus usos
expressivos característicos e o homossexual com seus estilos e marcas discursivas,
sem contudo ser estereotipado, como acontece em alguns filmes hollywoodianos
que trazem representações desses sujeitos. Essa heteroglossia linguística presente
nos curtas-metragens de cunho autoral, presentes no projeto Porta Curtas, favorece
o desenvolvimento da competência comunicativa do aluno, isso porque o indivíduo
se identifica por meio de grupos, classes, categorias, gêneros e pela linguagem. Se
ele não se vê numa representação, só lhe restará assumir uma posição passiva,
imaginativa, diante do discurso apresentado.
A esse respeito, podemos citar como exemplo o curta produzido em 2006 por
Gustavo Melo, Pintinho, Picolé e Pipa. Essa narrativa mostra a euforia das crianças
do Morro do Vidigal no dia em que passa o carro do “troca-troca”, o qual permuta
36
garrafa velha, bacia velha e outros utensílios por picolé, pintinho e pipa. Esse filme
retrata a heterogeneidade inerente da favela, e a força expressiva dele está, do
princípio ao fim, na linguagem. Logo no início, a Kombi aparece e o alto-falante
“grita”: “Alô, garotada, o carro do troca-troca está passando, garrafa velha, bacia
velha, panela velha, o moço troca por picolé, pintinho e pipa”. É tão real que parece
ser a própria rotina da favela. E o que provoca esse efeito de realidade é
exatamente a linguagem utilizada, aquela que se usaria naquele contexto. Num
outro momento da narrativa, que também demonstra, por meio da linguagem, o
vínculo com a realidade, ocorre quando uma garrafa cai e se quebra, um dos amigos
de Pedrinho diz: “Esse moleque é o maior vacilão! Espera só eu pegar ele na rua,
vou destruir ele!”, reproduzindo o discurso do traficante que domina as favelas
cariocas, e em quem muitas crianças do morro se espelham.
Para além das habilidades comunicativas, o uso do curta-metragem permite-
nos conhecer os aspectos sociais e culturais de um povo. Os curtas permitem a
análise da cultura do país que o produziu, pois, assim como acontece com qualquer
produto cultural, eles revelam hábitos e costumes de quem os produziu. Assim, um
curta-metragem pode se apresentar como projeção socioeconômica e cultural do
seu país de origem, dos seus anseios, desejos, lutas e perspectivas. Por exemplo,
no festival de Cannes11 de 1960, houve uma participação significativa de curtas-
metragens africanos. Nessa época, havia um forte movimento anticolonial por lá.
Esse desejo de liberdade, de se livrar do colonialismo, foi demonstrado nos filmes
curtos apresentados no festival. A voz da liberdade, reprimida em seu próprio país
pelos verdugos europeus, ecoou e ganhou força, ironicamente, na terra dos
colonizadores (MOURA, 2003).
Isso reflete o que Bakhtin (1992) postulou sobre a ideologia do cotidiano,
aquela que é libertadora, o espaço onde todos os arquétipos da oficialidade ilusória
e alienante são desnudados e virados de ponta-cabeça. Bakhtin (1987) chamou a
isso de carnavalização. Assim, uma produção artística que não tem compromisso
com a estética monológica, limitadora e conformadora, financiada pelo capital, está
livre para mostrar, denunciar e provocar reflexão. Dentro dessa perspectiva, estavam
os filmes longas produzidos no Brasil, na década de 50, no chamado Cinema Novo,
11
Festival de Cannes é um festival de cinema criado em 1946, um dos mais prestigiados e famosos festivais de cinema do mundo. Acontece todos os anos no mês de maio, na cidade francesa de Cannes. O mercado de filmes é, em boa medida, influenciado pelo festival.
37
no qual jovens cineastas, revoltados com o sistema e os critérios de financiamento
de filmes, comandados pelas grandes companhias cinematográficas, resolveram
reivindicar um cinema com mais realidade e menos ilusão, com mais conteúdo e
menos capital (BERNARDET, 1995).
Os filmes dessa época eram constituídos segundo a ideologia do cotidiano.
Utilizavam-se da estética do lixo, aquela que choca, que revela o lado feio, sombrio
e miserável da sociedade. Por isso mesmo, não recebiam ajuda financeira do
capital, sendo produzidos com pouco ou quase nada de recurso financeiro. Esse
modo de fazer cinema contrapunha-se à estética utilizada nas representações
hollywoodianas, que mostravam sempre um mundo ideal, perfeito, todo mundo
consumindo; um mundo de glamour e fantasia, totalmente abstrato, descolado da
realidade e da língua utilizada nas interações sociais reais. É verdade que nem
todos os longas possuem essa natureza seriada de produção, no entanto, uma parte
considerável deles são, principalmente os famosos enlatados americanos.
Assim, encerramos este capítulo, no qual traçamos, de forma breve, um
panorama histórico do gênero curta-metragem no Brasil, situamos essa forma de
expressão cultural dentro da concepção bakhtiniana de gênero discursivo, além de
demonstrar sua viabilidade didática. No capítulo que segue, abordaremos o
arcabouço teórico no qual foram embasadas nossas análises e reflexões.
38
CAPÍTULO II
CINEMA, LINGUAGEM E DISCURSO
Neste capítulo, travamos um debate acerca das possibilidades de diálogo
entre o pensamento do Círculo de Bakhtin e a teoria do cinema, primordialmente no
que se refere à compreensão do fenômeno da linguagem cinematográfica. Para
tanto, como já mencionado no capitulo anterior, contamos, para esta reflexão, com
os estudos realizados pelo pesquisador e professor de Teoria Literária, o inglês
Robert Stam, o primeiro a estabelecer essa interação.
Nossa proposição neste trabalho foi repensar alguns conceitos de Bakhtin e
empregá-los na assimilação da linguagem cinematográfica, levando em conta as
peculiaridades do gênero curta-metragem. Nessa empreitada, revisitamos alguns
conceitos e concepções do pensamento de Bakhtin, como dialogia, heteroglossia,
alteridade, exotopia, cronotopia, arquitetônica, interação verbal, dentre outros, a fim
de oferecer ao leitor uma nova perspectiva de análise dos textos fílmicos, ao fazer
uso de categorias que, até pouco tempo, eram utilizadas apenas em análise de
textos verbais.
Inicialmente, nos empenhamos em trazer à baila a concepção de linguagem
para Bakhtin, pois entendemos que, ao pensar em quaisquer conceitos da sua
teoria, faz-se necessário articulá-los à concepção de linguagem adotada pelo Círculo
e a tudo o que está envolvido nessa noção. Procuramos também estabelecer
paralelos e pontos de contato entre a ideia de interação verbal apresentada por
Bakhtin e a concepção de cinema enquanto linguagem, especialmente quando
tomada pela esfera educacional. E, por fim, envidamos esforços no sentido de
evidenciar a proficuidade das categorias bakhtinianas na análise dialógica do
discurso cinematográfico.
A razão que nos move em direção a esse árduo e complexo, porém
necessário, empreendimento é a premência de realizar uma leitura mais crítica da
linguagem audiovisual, cada vez mais sofisticada e sutil e cada vez mais presente
na vida de nossos alunos, nas mais variadas esferas das quais eles participam, por
meio do cinema, televisão, publicidade, computadores, jogos eletrônicos, celulares,
tablets etc. Por esse motivo, torna-se imperioso compreendermos como o mundo é
representado pela indústria cinematográfica, sobretudo nas produções
39
padronizadas, como acontece com alguns filmes produzidos pela indústria o
entretenimento. Para tanto, consideramos extremamente adequadas as ideias e
categorias bakhtinianas, as quais nos oferecem um novo horizonte para analisar o
cinema, levando em conta, além da dimensão estética, a dimensão ética (social,
cultural, ideológica), presentes nas obras cinematográficas.
2.1 Concepção(es) de linguagem: Fundamentos dialógicos do Círculo
Para começarmos essa reflexão, faz-se mister trazer à baila o modo de
pensar a linguagem presente nas correntes estruturalistas, o qual Bakhtin
denominou de “objetivismo abstrato”, para, de forma dialógica, trazer à luz a
concepção de linguagem construída pelo Círculo. Essa corrente, da qual o mestre
genebrino Ferdinand de Saussure é compositor e regente, nos apresenta a seguinte
dicotomia: Língua e Fala, sendo o primeiro elemento dessa bifurcação considerado a
dimensão social da linguagem, e o segundo é encarado pelo linguista como
expressão individual de cada sujeito falante.
Saussure, ao instituir as categorias analíticas fundamentais para estudo da
língua, como a fonética e a morfologia, baseou-se nos estudos da linguística
comparativa indo-europeia, aquela criada para estudar, de forma mais adequada, as
línguas mortas e as estrangeiras. Saussure não negava o aspecto social da língua,
contudo o modo de fazer ciência da sua época exigia que o objeto de estudo
apresentasse comportamentos idênticos, portanto passíveis de normatização, como
a fonética, a morfologia etc. Mas esse modo de tratar a língua atava a diversidade, a
pluralidade e a mutabilidade, constitutivas da linguagem, em um sistema fechado de
regras.
Dentro dessa perspectiva estruturalista de pensar o fenômeno da linguagem,
as variações sociais da língua, bem como as variantes individuais dos falantes não
podiam ser consideradas nos estudos linguísticos. Para os estruturalistas, esses
fatores eram considerados desordenados, demasiadamente heterogêneos e
aleatórios, fugindo do padrão e do rigor exigidos pela ciência. Isso fez com que a
fala assumisse um papel quase que irrelevante, nos estudos linguísticos do final do
século XIX, a fim de não inviabilizar o projeto estruturalista de instituir uma unidade
da língua como sistema.
40
Esse modelo positivista de conceber a linguagem como um sistema abstrato,
tomando por base suas características formais, passíveis de serem repetidas,
seguindo o modo de fazer científico da época, levou à ideia de que a língua é um
fenômeno estático. Tal concepção admitia que o sentido é pré-fabricado, fechado
dentro de um sistema de normas linguísticas, como se a linguagem fosse uma
espécie de espelho do mundo, refletindo verdades únicas e universais, e que, para a
compreensão do enunciado, os aspectos sociais da língua eram irrelevantes. Tal
postura desconsiderava, portanto, as diversidades e multiplicidades do signo,
deixando a intencionalidade dos falantes em segundo plano (BRAIT, 2011).
Por outro lado, em oposição ao pensamento de Saussure e dos estruturalistas
que se seguiram, Bakhtin enfatizou a heterogeneidade concreta da fala, ou seja, a
dimensão que leva em conta a pluralidade das manifestações linguísticas em
circunstâncias concretas de interação social. Ele acreditava que a realidade
fundamental da linguagem estava centrada na interação entre os falantes, no seu
uso real e não em um ponto de vista ideal, intangível. Ele concebia a linguagem não
como um sistema abstrato, mas como algo vivo, dinâmico e coletivo, parte de um
diálogo cumulativo entre o eu e o outro, entre muitos “eus” e muitos outros (STAM,
1992). Mas Bakhtin não nega a existência da língua enquanto sistema, já que “por
trás de todo texto, encontra-se o sistema da língua” (BAKHTIN, 2003, p. 332). Ao
contrário de desqualificar qualquer estudo sério da estrutura da língua, o filósofo
russo considera-o adequado para estudar as suas unidades (fonemas, morfemas,
orações). Por outro lado, com sua translinguística12, ele demonstra que linguística
estruturalista não é suficiente para explicar o funcionamento, no âmbito social, da
linguagem, que possui como unidade mínima o enunciado, irrepetível, instável e
inclassificável.
Para Bakhtin, a estabilidade da língua constitui-se um mito, pois, para ele, a
mutabilidade do signo é uma das características constitutivas da linguagem. Sobre
isso, ele esclarece:
Assim, o elemento que torna a forma linguística um signo não é sua identidade como sinal, mas sua mobilidade específica; da mesma forma que aquilo que constitui a descodificação da forma linguística não é o reconhecimento do sinal, mas a compreensão das palavras
12 Disciplina proposta por Bakhtin, que visa ao estudo e análise de elementos externos à língua
enquanto sistema. Tal disciplina daria conta dos aspectos dialógicos e polifônicos da linguagem, principalmente da fala, não contemplados pela linguística.
41
no seu sentido particular, isto é, a apreensão da orientação que é conferida à palavra por um contexto e uma situação precisos, uma orientação no sentido da evolução e não do imobilismo (BAKHTIN, 2003, p. 94).
Spinelli (2005) enfatiza que o dinamismo social do signo, historicamente
gerado, vivifica esse mesmo signo. Ela lembra ainda sua dimensão político-
ideológica, por meio da qual é ressignificado o tempo todo na arena da palavra,
onde as classes e grupos sociais, com seus interesses e conflitos permanentes, se
apropriam dele, dando-lhe novos significados. A essa capacidade que possuem os
signos de extrair variáveis tons e valorações sociais, a depender das situações
sócio-históricas, Bakhtin (apud SPINELLI 2005, p.34) denominou de
“multiacentualidade”.
Acertadamente, a partir das reflexões realizadas por Bakhtin e o seu Círculo,
no início do século XX, em obra conjunta denominada Marxismo e Filosofia da
Linguagem, os estudos de linguagem, atualmente, vêm adotando uma postura que
supera a visão estruturalista de língua. Os linguistas hodiernos, sobretudo os
sociolinguístas, têm assumido uma postura que leva em conta os mecanismos
variáveis responsáveis também pela produção de sentidos. Essa nova atitude situa,
par e passo, estrutura linguística e a dimensão histórica, cultural, social e ideológica
da linguagem, copartícipes na significação dos signos. Assim, apresentam-se novas
possibilidades de entender e significar o mundo, baseadas numa concepção
dialógica de linguagem que contempla as pluralidades, desfazendo, de uma vez, o
mito do sentido pré-fixado.
Tais reflexões em torno das concepções de linguagem fazem-nos recordar de
um conceito bakhtiniano, o qual nos parece bastante produtivo para enriquecer este
debate. Trata-se da noção de forças centrípetas e centrífugas, que nos ajuda a
compreender esse jogo dialético mencionado por Bakhtin, que, segundo o filósofo,
caracteriza toda a linguagem. Desta forma, as forças centrípetas atuariam numa
direção favorável à concepção estruturalista de linguagem, atuando na
normatização. De outro lado, as forças centrífugas agiriam de forma corroborativa
com a concepção interacionista, tendendo às diversificações da língua, embora
ambas as forças existam e atuam independentemente da concepção de linguagem.
Para ele, essas forças convivem, dialética, simultânea e ininterruptamente. Nas
palavras do autor:
42
(...) esta estratificação e contradição reais não são apenas a estática da vida da língua, mas também a sua dinâmica: a estratificação e o plurilinguismo ampliam-se e aprofundam-se na medida em que a língua está viva e desenvolvendo-se; ao lado das forças centrípetas caminha o trabalho contínuo das forças centrífugas da língua, ao lado da centralização verbo-ideológica e da união, caminham ininterruptos os processos de descentralização e desunificação (BAKHTIN, 1998, p. 82).
Diante dessa explanação dialógica das concepções de linguagem, conforme
prenunciado na introdução deste capítulo, passemos agora a um fecundo diálogo
entre tais conceitos e o cinema. Acreditamos que essa aproximação nos fornece
subsídios que nos possibilitam identificar qual concepção de linguagem tem balizado
os produtores de filmes. Entendemos que a crítica feita por Bakhtin ao “objetivismo
abstrato”, no âmbito da linguagem verbal, seja perfeitamente aplicável ao sistema
imagético utilizado pelo cinema, cujas possiblidades de interpretação são
potencializadas pela natureza de sua linguagem. O simples fato de mudar o ângulo
de uma imagem por meio do jogo de câmeras já possibilita a produção de novas
interpretações.
Mas, para que essa relação seja concebível, precisamos deixar claro que
encaramos o cinema como linguagem. Esse posicionamento nos permite aplicar ao
cinema a mesma metáfora que Bakhtin (1992) utilizou em Marxismo e Filosofia da
Linguagem para explicar a natureza dialógica da linguagem, a qual se constitui uma
ponte entre um eu e um tu. Essa alegoria revela a igual importância atribuída por
Bakhtin ao locutor e ao interlocutor na construção dos enunciados, dado que, se, por
um lado, essa ponte tem o eu por sustentação, necessariamente precisará de um
segundo pilar de apoio, o tu.
Tendo como base essa linha de raciocínio, o autor de uma obra
cinematográfica e o espectador possuem, ou deveriam possuir, igual relevância no
procedimento comunicacional, pois ambos fazem parte do processo de interação e
contribuem diretamente para a produção de sentidos. Nessa perspectiva, o texto
fílmico é considerado, então, como uma criação solidária de sentido, cuja
propriedade não é exclusiva do autor nem do telespectador. Trata-se, porém, do
resultado de uma interação verbo-visual entre os sujeitos da enunciação, a qual gera
seus sentidos na relação, afastando a ideia de uma mensagem encerrada em si,
com um sentido imanente.
43
No entanto, como bem disse Bakhtin (1998, p.82), paralelas a essa tendência
centrífuga natural da linguagem de descentralização e desunificação, existem as
forças centrípetas ideológicas e centralizadoras na indústria cinematográfica
também; sobretudo nos longas americanos, os quais sofrem a pressão centrípeta da
ideologia dominante, do poder institucional, hegemônico, financiado pelo capital, no
qual predomina a voz masculina, branca, heterossexual e euro-americana, tendendo
à “monoglossia”. Assim, as produções cinematográficas que privilegiam a linguagem
hegemônica demonstram adotar uma concepção monologizante da linguagem.
Nesse modelo de pensar a linguagem, o sentido é unidirecional, partindo
invariavelmente do emissor até encontrar o receptor. Nesse paradigma,
diferentemente da concepção dialógica de linguagem, retira-se do telespectador
qualquer participação na produção de significados, uma vez que o sentido da
mensagem vai depender apenas do diretor da obra cinematográfica. Trata-se de um
modelo hermético, cujo emissor é ativo e o receptor totalmente passivo. Neste caso,
o sentido do filme é algo dado, pronto e acabado, e não produzido dialogicamente.
Na outra ponta, em contrapartida à hegemonia da linguagem utilizada pelos
enlatados, estão os “dialetos”, ou equivalentes, que destoam do padrão euro-
americano, como o curta-metragem, o cinema engajado e o documentário
independente, os quais recebem influências das forças centrífugas radiadas pela
ideologia do cotidiano, privilegiando o periférico e o marginal, em oposição ao central
e ao dominante. Essas produções se utilizam de linguagens cinematográficas que
demonstram respeito às pluralidades das identidades linguísticas dos grupos
representados nas narrativas, tendendo à “heteroglossia” e revelando, portanto, a
partir de nosso prisma teórico, uma filiação à concepção interacionista de linguagem.
Assim, propomos explorar a pertinência das categorias conceituais de Bakhtin
para pensar um cinema que adote uma concepção de linguagem em que se valorize
o outro, o diferente e o multicultural. Nessa proposta, deve-se chamar a atenção
para o uso crítico dos conceitos e categorias de Bakhtin, especialmente sua visão de
linguagem baseada no dialogismo, que permita identificar um cinema que assuma
uma postura democrática e heteroglota, em que as múltiplas vozes tenham seus
espaços garantidos. Nessa direção, recomendamos ao professor fazer uso didático
dos curtas-metragens do projeto Curta na Escola. Voltaremos a falar desse assunto
no capítulo III, porque na próxima seção abordaremos as especificidades da
44
linguagem cinematográfica e como o conhecimento dessa pode contribuir para uma
compreensão ativa do discurso cinematográfico.
2.2 Linguagem cinematográfica: diálogos entre cinema e as ideias de Bakhtin
Logo quando surgiu o cinema, buscou-se provar que se tratava de uma
sétima arte, ou seja, um meio de expressão artística, status já desfrutado por outras
seis formas de arte, até então a literatura, a pintura, a música, a escultura, a dança e
o teatro. Assim, para atingir tal escopo, ele precisava ser dotado de uma linguagem
específica, diferente das demais formas de expressão artística existentes. Mas isso
não se deu do dia para a noite, como queriam alguns. O processo de construção de
uma linguagem cinematográfica aconteceu de forma progressiva. Isso porque, no
início, o que havia era uma simples reprodução do real, o que, para muitos não
constitui arte, não havendo, portando, a necessidade de uma nova linguagem.
Apenas com a descoberta e desenvolvimento de procedimentos de expressões
fílmicas, capazes de produzir uma experiência para além da mera visualização do
real, é que se pôde falar em linguagem cinematográfica.
Nesse ponto, o conceito bakhtiniano de “transfiguração estética” nos ajuda na
compreensão do processo de formulação de uma linguagem artística que fosse
própria da sétima arte. Para Bakhtin (2010), o acabamento estético só se dá no
plano da criação por meio de uma linguagem que sirva de filtro entre o real e o
estético. Nessa perspectiva, não há arte e, consequentemente, não há linguagem
cinematográfica se não houver essa transfiguração, ou transformação estética do
mundo real, caso em que não passará de mera reprodução da realidade. Uma vez
detentora de uma linguagem própria, por meio da qual o cineasta pudesse se
expressar, o cinema pôde se constituir enquanto arte, pois só por meio da linguagem
é possível essa transfiguração estilística.
No texto fílmico, esse processo ocorre por meio da mobilização de recursos
próprios da linguagem cinematográfica, como angulação de tomadas, iluminação,
cenário etc., os quais transformam a matéria-prima do cinema, a imagem do mundo
visível, em elementos significativos para seu público. Sobre isso, Roberto Stam
esclarece:
O cinema é uma linguagem, não apenas em um sentido artístico metafórico mais amplo, mas também como um conjunto de
45
mensagens formuladas com base em um determinado material de expressão, e ainda como uma linguagem artística, um discurso ou prática significante caracterizado por codificações e procedimentos ordenatórios específicos (STAM, 2003, p. 132).
Em outras palavras, o cinema se constituiu como linguagem porque
desenvolveu, ao longo de sua existência, e continua desenvolvendo, códigos
próprios, bem como estilos que caracterizam o discurso cinematográfico. O cinema
passou a possuir uma sintaxe, por meio da qual se relacionam e se organizam os
planos, as cenas e as sequências. Além disso, desenvolveu uma metalinguagem,
com elevado potencial de significação. Assim, temos os diversos tipos de plano (o
geral, de conjunto, americano, close etc.); os movimentos de câmera (travelling,
panorâmica etc.); as angulações (plongée, contre-plongée, etc.) e a montagem, cada
um contendo uma carga semântica peculiar13.
Com isso, interessa-nos acentuar que as produções cinematográficas são
discursos, ou seja, formas de produção de sentidos, os quais recorrem a uma
linguagem para se concretizarem; neste caso, a linguagem cinematográfica. Assim
sendo, em se tratando do texto fílmico, é essencial conhecermos os elementos que
compõem essa linguagem, e como ela se constitui em discurso, dentro de suas
especificidades enquanto texto não verbal; de modo a nos constituirmos
consumidores críticos e conscientes, sendo capazes de, a partir de uma
compreensão ativa, oferecermos respostas, concordando, discordando ou negando,
mas nunca assumindo uma posição de indiferença.
E, enquanto produtor de discurso, o cinema possui seu próprio “tato”,
categoria utilizada por Bakhtin para se referir ao processo regulador da dinâmica
social que se realiza entre os interlocutores da interação verbal. Processo esse que,
no ato comunicacional, modula a voz e a expressão corporal do locutor, levando em
conta as condições do interlocutor, com vistas a estabelecer condições discursivas
favoráveis ao projeto enunciativo do locutor (BRAIT, 2007).
O Cinema tem seu próprio modo de modular e regular a interação com seus
telespectadores. Por exemplo, a angulação, o enquadramento e outros recursos de
sua linguagem podem sugerir essa ou aquela interpretação; podem estabelecer
relações de distanciamento, intimidade, companheirismo e, até mesmo, de
dominação com seus interlocutores.
13
Esses e outros elementos que compõem a linguagem do cinema serão explicados no final deste capítulo, na seção Os signos cinematográficos e seus efeitos de sentido.
46
Disso, podemos concluir que, embora o cinema tenha uma linguagem com
seus códigos e métodos próprios de significação, não se trata de um sistema
fechado, com os sentidos prontos e acabados encerrados em seu sistema. O
discurso cinematográfico, evidentemente, não apresenta apenas uma significação, e
sim modos de significação. Ora, modos indicam maneiras, isso quer dizer que o
significado está por vir, indicando que existe aí um trabalho de interpretação do
enunciado imagético.
De qualquer maneira, a possibilidade de ler e compreender um texto fílmico,
embasado no conhecimento dos recursos próprios da linguagem do cinema,
certamente habilitará o leitor a produzir sentidos mais fluentes. Entender o sentido
das sombras produzidas pela manipulação de luzes e suas texturas, por exemplo,
requer do telespectador uma leitura em nível mais profundo. Isso enfatiza o fato de
que uma leitura ativa de um texto fílmico se efetiva também pela exploração dos
recursos e estratégias da linguagem do texto cinematográfico.
É verdade que a maioria de nós tem competência suficiente para assistirmos
a um filme sem precisarmos estudar a linguagem cinematográfica, visto que a
imagem em movimento parece ser compreensível em si mesma. De fato, a leitura
superficial do texto cinematográfico, passível de ser decodificado, pode ser feita por
qualquer sujeito. Mas porque estamos insistindo aqui na necessidade de conhecer,
minimante, a linguagem cinematográfica e suas estratégias discursivas? A
professora Rosália Duarte explica:
(...) A maior parte de nós aprende a ver filmes pela experiência (...) e conversando com outros espectadores. (...) Mas isso não significa que devamos deixar o conhecimento da gramática cinematográfica para os especialistas. Ao contrário, conhecer os sistemas de significados de que o cinema utiliza para dar sentido às suas narrativas aprimora nossa competência para ver e nos permite usufruir melhor e mais prazerosamente a experiência com filmes (DUARTE, 2002, p. 38).
Além disso, segundo Brait (2006), não há outra forma de apreendermos o
discurso senão pela materialidade da linguagem, por meio da qual ele se manifesta.
Portanto, desenvolver uma competência adequada para a apreensão do discurso
cinematográfico implica na compreensão do funcionamento de sua linguagem. Além
disso, referindo-se ao uso da sétima arte como instrumento pedagógico, Duarte
(2002) recomenda que esse uso seja de modo reflexivo e responsável. Isso implica
obter uma compreensão satisfatória dos elementos que compõem o discurso fílmico,
47
de modo a aprimorar nossas atividades de análise e interpretação do texto
cinematográfico.
Em busca dessa competência, muitos pesquisadores, atualmente, recorrem a
modelos de análises baseados na semiótica estrutural, nos quais o analista não
precisa conhecer o processo sócio-histórico em que está inserido o produto cultural
a ser analisado. Basta que saiba decodificar o signo cinematográfico (imagem, som,
cor, movimentos, ângulos, enquadramento) por meio do processo analítico descritivo
chamado decupagem14. Nessa perspectiva as imagens guardariam em si mesmas o
poder de gerar os significados independentemente de sua origem e da forma em
que são apresentadas.
O problema, ao nosso ver, é que essa ordenação analítico-mimética, presente
nesse modelo sistêmico de análise, produz interpretações limitadas, não acrescenta
muita coisa ao processo de ensino-aprendizagem por meio do cinema, uma vez que
abre mão daquilo que promove o inesperado, o irrepetível, o novo, qual seja, o
sócio-histórico. E mesmo abrindo mão desse elemento, fatores sociais externos
acabam sendo determinantes na interpretação dos dados, ainda que os analistas
dessa corrente não reconheçam, talvez porque o processo fuja de seu controle e do
pseudo rigor cientifico.
Por outro lado, procuramos demonstrar em nossas análises dialógicas do
discurso cinematográfico que a compreensão das formas expressivas próprias da
linguagem cinematográfica está vinculada necessariamente a uma leitura reflexiva e
dinâmica. E esse processo envolve, necessariamente, enunciadores e enunciatários,
os quais, juntos, negociarão o significado do enunciado. As ideias de Bakhtin
introduzem nesse debate os aspectos sociais e culturais da linguagem, propondo
uma abertura dos mecanismos de produção de sentido, superando a ideia de
sistema fechado de códigos linguísticos. Ao contrário, ele aponta um horizonte de
possibilidades significativas para além de uma gramática do filme. É o que o leitor
verá nas próximas seções, nas quais abordamos algumas categorias bakhtinianas,
consideradas de capital relevância para compreendermos a maneira pela qual os
aspectos internos da linguagem cinematográfica se articulam com os fatores
externos e como a dimensão ética se articula com a dimensão estética na produção
de sentido.
14
Processo pelo qual um texto fílmico é dividido quadro a quadro a fim de que se realizem anotações
técnicas para posterior análise.
48
2.3 Categorias bakhtinianas: contribuições para uma análise dialógica do
discurso cinematográfico
Bakhtin nos oferece, para além de um arcabouço teórico, uma postura
filosófica, na qual compreendemos que o discurso e seus efeitos de sentido jamais
serão objetos pacíficos, passíveis de submissão a qualquer tipo de monologismo.
Bakhtin rechaça qualquer sistema de pensamento que se pretenda hegemônico,
detentor de verdades únicas. Interessante notar que essas concepções extrapolam
as teorias e ocupam uma dimensão prática, porque, para ele, a vida é maior que a
teoria. É esse pensamento que permeou este subcapítulo, no qual pormenorizamos
alguns dos principais conceitos do vasto pensamento de Bakhtin, relacionando-os
aos modos de significação do texto cinematográfico, sobretudo do curta-metragem.
O primeiro mergulho será sobre a concepção que permeia toda a obra de
Bakhtin. Trata-se da noção de dialogismo, sem a qual é impossível realizar qualquer
pesquisa sobre o pensamento do filósofo russo. Embora esse conceito apareça
sempre relacionado a outros, achamos por bem estudá-lo separadamente. Outras
categorias, amplamente discutidas nos meios acadêmicos hoje em dia, como
cronotopia, exotopia, excedente de visão e arquitetônica também serão abordadas
neste capítulo. Além disso, trouxemos à tona um assunto bastante explorado por
Bakhtin, qual seja a relação entre o autor e o herói, potencializada na linguagem
cinematográfica. Sem demora, passemos à apreciação desses e outros conceitos,
os quais consideramos fundamentais para compreendermos a dinâmica da
linguagem cinematográfica.
2.3.1 Dialogia para uma compreensão ativa responsiva
A noção de dialogismo é pedra fundamental na rede teórica de Bakhtin. O
filósofo russo e seus companheiros do Círculo utilizam-se da própria interlocução
para estabelecer a ideia de dialogismo. O conceito nasce justamente de uma intensa
interação dialógica com o discurso da linguística saussuriana, por meio da qual
Bakhtin revela a natureza dialógica da linguagem, contrapondo-se ao discurso
estruturalista, o qual enfatiza e valoriza as formas linguísticas fixas e padronizadas.
Ao contrário, Bakhtin nos apresenta um signo variante, elástico e flexível, que leva
49
em conta a situação de uso, os participantes da interação verbal, com suas
valorações e visões de mundo a respeito do objeto e dos sujeitos do discurso.
Portanto, a palavra/discurso não pode ser um acontecimento individual, monológico;
ela está sempre em diálogo com outras palavras/discursos que já vieram e as que
ainda virão (BAKHTIN, 1992).
Portanto, os analistas que buscam fundamentação para suas reflexões nos
princípios elaborados pelo círculo de Bakhtin não podem perder de vista esses
aspectos constitutivos do discurso, ou seja, para além de sua composição linguística
estruturante, baseada nas regras da língua, há também uma parcela importante de
historicidade agindo concomitantemente à forma e ao conteúdo na produção de
sentido. Por essa razão, qualquer estudo que se faça do discurso carece de uma
orientação dialógica, pois o sentido é, muitas vezes, exterior a ele. É nessa acepção
que a significação é histórica, pois a história dá o contorno aos discursos, os quais
aprovam, desaprovam, estabelecem acordos sociais, geram novas polêmicas e
apagam antigas, a depender do momento histórico e dos atores sociais envolvidos
na produção dos enunciados.
Nessa perspectiva, Fiorin salienta que: “A História não é exterior ao sentido,
mas é interior a ele, pois ele é que é histórico, já que se constitui fundamentalmente
no confronto das vozes que se entrechocam na arena da realidade” (FIORIN, 2010,
p. 41). Perceber a relação do texto com a história nesse movimento dialético,
constitutivo do discurso, descrito por Fiorin, é fundamental para a captação dos
sentidos de um texto. Assim, analisar um texto historicamente não significa,
portanto, fazer uma descrição da época em que o enunciado foi produzido, ou um
levantamento biográfico de seu autor, ou relatar fatos acerca de suas condições de
produção, e sim colocá-lo em diálogo com outros discursos que vieram antes dele,
contemporâneos a ele, e com aqueles que ainda virão.
Por conseguinte, conforme demonstrado por Bakhtin, todo discurso é, por
natureza, dialógico. Isso é o mesmo que dizer: todo discurso é constituído a partir de
outro discurso. Desse modo, um enunciado sempre será uma resposta a outro que
veio antes dele, uma tomada de posição com relação ao discurso do outro.
Podemos afirmar, com base nisso, que um discurso só existe em função do outro, e
que ele sempre será heterogêneo, pois sempre haverá nele a presença de pelo
menos duas vozes confrontando-se, completando-se ou conformando-se.
50
Em cada palavra há vozes, vozes que podem ser infinitamente longínquas, anônimas, quase despersonalizadas (a voz dos matizes lexicais, dos estilos, etc.), inapreensíveis, e vozes próximas que soam simultaneamente. ( ...) Dois enunciados, separados um do outro no espaço e no tempo e que nada sabem um do outro, revelam-se em relação dialógica mediante uma confrontação do sentido. (...) Mesmo entre produções verbais profundamente monológicas, observa-se sempre uma relação dialógica (BAKHTIN, 2003, p. 354 - 356).
Tomemos como exemplo o discurso de que se deve valorizar a cultura
cuiabana, o seu modo de falar, suas danças e o seu folclore. Essa afirmação revela
pelo menos duas vozes: uma do cuiabano pátrio, proveniente da terra que, ao
perceber sua cultura e seus costumes sendo, aos poucos, sobrepostos pela cultura
dos imigrantes vindos principalmente do sul e do sudeste do país, busca resgatar e
manter suas tradições. E, por outro lado, a voz do colonizador, o desbravador que
procura impor seus hábitos e métodos como sinônimos de vanguardismo e
modernidade. Ora, numa sociedade em que não houvesse esse processo migratório
com intuito de colonizar/explorar as regiões recônditas, tal enunciado não teria razão
de ser. Nesse sentido é que Fiorin afirma que “o discurso deixa ver o seu direito e o
seu avesso” (FIORIN, 2010, p. 40).
Assim é o funcionamento real do enunciado. Devido a sua natureza dialógica,
só é possível compreendê-lo, independente do espaço social em que foi produzido,
quando se leva em conta que ele foi constituído num processo de oposição ao seu
avesso, ou seja, ao seu outro na cadeia comunicativa. A palavra do outro, portanto,
é requisito para que haja qualquer discurso. Tomemos como exemplo o discurso dos
modernistas que se opunha à visão de mundo dos parnasianos. O preciosismo
rítmico e vocabular destes, bem como sua preferência por temas relacionados a
paisagens, consoantes a sua visão acerca da arte, segundo a qual ela deveria existir
por si só, são contrapostos pelos modernos, para quem a arte deveria ser engajada,
voltada ao cotidiano, ter uma função social. É a percepção dessa oposição que
atribui historicidade a ambos os discursos, e é na apreensão desse movimento
contraditório, inerente aos enunciados, que se constitui o sentido.
Fiorin (2010) nos explica que essa historicidade discursiva apresenta no fio do
discurso vozes enunciativas, que são percebidas pelos interlocutores graças a sua
capacidade de apreender os diferentes discursos que se formam e circulam em
determinada época, numa formação social específica. A partir daí é que darão
sentido aos enunciados, segundo a ideologia de cada um, porque o texto será
51
sempre incompleto, esperando alguém que lhe dê acabamento. Esse é o sentido do
dialogismo.
Essa teoria deve especialmente interessar ao analista do discurso,
principalmente àquele que se propõe a analisar os produtos de uma cultura tomados
como linguagem, seja ala artística ou não, como, por exemplo, um filme,
documentário, propaganda etc. Todo enunciado, segundo Bakhtin, deve ser situado
historicamente. Isso implica assentir que nenhuma análise discursiva, que se
pretenda dialógica, deve deixar de considerar esse caráter diacrônico do enunciado,
ou seja, assumir que toda situação discursiva será sempre situada num tempo e
num espaço. Assim, ao analisar o uso que o professor vem fazendo do curta-
metragem em sala de aula, incumbência do capítulo III, usaremos como critério
metodológico a verificação da subjacência deste modo de conceber a linguagem no
emprego do cinema como recurso didático.
Para tanto, partimos da premissa de que uma análise fílmica significativa não
pode abrir mão de nenhum elemento que concorra para a compreensão ativa do
enunciado. Desta forma, exige-se do professor-analista a responsabilidade de
mantenedor dos fios dialógicos do discurso com o qual está interagindo, juntamente
com seus alunos. Portanto, deve-se incluir no bojo da análise tanto as
representações quanto os mecanismos utilizados nas representações, bem como
seus aspectos contextuais na relação com o tempo e o espaço. Expressando de
outra forma, a análise deve contemplar os recursos narrativos específicos da
linguagem cinematográfica, pois, para Bakhtin (2003), as diferentes vozes do
discurso manifestam-se na superfície do texto, por meio dos diversos procedimentos
composicionais; no caso do texto fílmico, os movimentos de câmera, fotografia,
edição etc., elementos que dialogam de forma direta com os temas representados,
sendo eles que, de fato, produzem os tons sociais desejados pelo diretor nas
representações. Mas também não se pode perder de vista as metáforas sociais
presentes no texto fílmico, os temas transversais, como querem os PCN.
Aprofundando mais essa noção de dialogismo na análise do texto fílmico, nos
emerge a ideia bakhtiniana de autor, a qual diferencia da visão romântica, que
supervaloriza a originalidade e individualidade no processo criativo. Em oposição a
isso, Bakhtin, por meio do dialogismo, assinala a inverossimilhança de a criação de
um produto cultural ser o resultado direto de uma mente única. Para ele, um
enunciado, seja da esfera artística ou não, será sempre fruto de um intrincado
52
diálogo com outros enunciados. Nessa toada, podemos concluir que uma obra
literária sempre manterá relação dialógica com outras obras anteriores e
contemporâneas a ela, da mesma natureza textual, ou não. Assim, um filme do
século XXI, por exemplo, pode estabelecer interdiscursividade com um romance do
século XX. Nas palavras de Bakhtin: “Em cada palavra há vozes, vozes que podem
ser infinitamente longínquas, anônimas, quase despersonalizadas, inapreensíveis, e
vozes próximas que soam simultaneamente” (BAKHTIN, 2003, p. 354).
O filósofo estabelece que, nas criações enunciativas, sobretudo as artísticas,
os sentidos são constituídos a partir de pelo menos duas vozes. Interessa-nos, aqui,
compreender o conceito de vozes em Bakhtin, e como esse entendimento pode
contribuir para uma análise dialógica do discurso cinematográfico. Bakhtin lembra
que, a partir de um mesmo lugar enunciativo, é possível perceber diferentes vozes
de diferentes lugares enunciativos, de diferentes épocas. Em razão disso, Barros
(2012) ressalta a necessidade de o analista aprender a ouvir e distinguir essas
vozes, entendidas como posições discursivas no fio dialógico da comunicação
humana.
Dialogicamente, a autora nos auxilia na tarefa de identificar, de forma
enunciativa, algumas das vozes a serem ouvidas no texto fílmico, embora seu objeto
fosse de natureza literária. A primeira voz a ser ouvida é a do “destinatário suposto”,
muito importante no processo de interpretação, pois o autor de uma obra fílmica
elabora sua arquitetônica discursiva (forma e conteúdo) pensando nesse
destinatário. Não menos importante - talvez o mais importante, considerando o
contexto de sala de aula - está o “destinatário real”, aquele que de fato assiste ao
filme. Amorim (2002, Apud BARROS, 2012) ressalta a relevância da participação
deste na construção de sentidos, pois o processo de interpretação resulta em um
segundo texto, baseado no qual o primeiro, por meio das relações dialógicas, poderá
fazer sentido.
Seguindo esse percurso, a autora menciona ainda o lugar do objeto discursivo
como sendo mais uma voz presente num texto fílmico a ser ouvida pelo professor-
analista. Perceber essa voz pode ser determinante para uma compreensão ativa e,
consequentemente, para a assunção de uma postura responsiva ante a obra
analisada. Isso porque o mesmo objeto já foi abordado por outros autores, em outras
obras, sob vários pontos de vistas, impregnado de apreciações ideológicas,
circulado em outras esferas enunciativas, sob diferentes intencionalidades. Como
53
reflete Barros (2012, p.32): “O objeto discursivo é um palco de encontro de opiniões,
visões de mundo, correntes e teorias. E isso confere ao objeto discursivo um
potencial dialógico infinito de possibilidades de sentidos”.
Por fim, ela faz referência à instância do autor-criador como sendo outra voz
que requer especial atenção do analista do discurso. Especial porque nem sempre é
fácil perceber a presença deste no discurso, embora saibamos que ele se faz
presente com seu olhar, seu ponto de vista, falando de determinado espaço
enunciativo. É assim como bem ressalta Amorim (2002, apud BARROS, 2012, p.
31): “Se diante de um discurso, pensa-se que todo o dito está presente no
enunciado, resulta-se em nada para analisar”. Portanto, para tornar perceptível a voz
dessa instância enunciativa nomeada por Bakhtin de autor-criador, no caso de um
texto fílmico, o analista terá que contrapor discursos, atentar às formas utilizadas na
representação do assunto, ou seja, os enquadramentos, a obliquidade de sua
câmara, o jogo de luz, a seleção do figurino, a aplicação das cores, bem como a
escolha e abordagem do objeto discursivo.
A noção bakhtiniana de dialogia nos revela seu caráter multimodal, pois nos
dá conta de sua aplicabilidade a qualquer tipo de texto. Considerando nosso objeto,
o texto cinematográfico, o dialogismo aponta não apenas para o diálogo entre as
personagens do filme, mas também para o diálogo com outros filmes anteriores,
bem como entre as vozes sociais que se fazem ouvir no interior da narrativa, entre
as trilhas sonoras e entre as imagens. Além disso, há o diálogo que interfere na
produção final do enunciado, o qual acontece entre produtores, diretores e atores.
Há, por fim, o diálogo com o público, que também conforma a obra, uma vez que
suas possíveis reações valorativas são consideradas no processo de produção,
levando-o a assumir um papel de coautoria na obra. Enfim, um enunciado qualquer,
como um filme, um livro, uma peça, sempre será recepcionado, julgado, avaliado e
apreciado segundo os valores do outro, baseados nos costumes de uma época e de
um lugar, e todos esses elementos conformadores concorrem dialogicamente para
atribuir sentidos ao enunciado.
54
2.3.2 O ético e o estético: a indissolubilidade entre arte e vida
Bakhtin, mantendo sua coerência teórica, na qual sempre priorizou a vida
concreta como centro irradiador do discurso, independente de sua natureza, também
se ancora nos eventos da vida vivida como ponto de partida para se pensar a arte.
Tal afirmação se fundamenta no texto assinado por Voloshinov, sob o título Discurso
na vida e discurso na arte, de 1926, para quem a arte mantém uma relação
indissociável com a vida. De acordo com essa ideia, ao contemplarmos um objeto
estético, um livro, uma pintura, um filme, estamos diante de um todo acabado, no
qual se fundem elementos éticos, relacionados com o processo de maturação e
criação desse objeto, da ordem da vida, do concreto, e elementos estéticos,
relacionados à linguagem utilizada, ao tratamento dado ao conteúdo, à forma e ao
material usados na elaboração do discurso artístico. Nisso constitui a
indissolubilidade entre a vida e a arte. Nas palavras do filósofo:
A obra e o mundo nela representado penetram no mundo real enriquecendo-o, e o mundo real penetra na obra e no mundo representado, tanto no processo da sua criação como no processo subsequente da vida, numa constante renovação da obra e numa percepção criativa dos leitores (BAKHTIN, 1998, p.358).
Toda atividade estética possui como princípio ativador um olhar valorativo que
o autor atribui a determinado aspecto do mundo vivido. Para Tezza (2003), a
palavra, no caso da literatura, ou a imagem, no caso do cinema, já entram na arte
carregadas de intenções, opiniões, acentos sociais, com todas as marcas
ideológicas do autor, ou seja, é a vida concreta que dará ou não o contorno do
objeto artístico. De fato, todo objeto estético, enquanto enunciado, possui uma
historicidade, é socio-historicamente situado; ele foi instaurado dentro de um
contexto por um enunciador, que, detentor de um ponto de vista, de forma não
aleatória, escolheu seu objeto discursivo sabendo quem era seu destinatário
imediato, a respeito de quem possuía uma imagem e, estrategicamente, selecionou
o material, para então poder dar forma ao seu discurso, seja ele artístico ou não.
Portanto, o ato estético nasce de uma necessidade ética do ser humano. Isso
porque o sujeito bakhtiniano, que é ético, além de conhecer o mundo,
necessariamente, precisa se posicionar diante dele, porque possui uma natureza
axiológica. E mais do que isso, necessita responder ao mundo de acordo com a
compreensão e visão que só ele possui acerca deste. Nisso consiste a noção de
55
ética para Bakhtin. Não se trata apenas de seguir códigos e regras criados pela
sociedade, mas articular isso com a unicidade dos eventos concretos, que nem
sempre são contemplados por um código fixo. Trata-se da premência do sujeito de
assumir uma postura diante do mundo, sem álibi, como diz Sobral (2009), deixar sua
assinatura no mundo. E é a partir desse posicionamento ético, sob um
direcionamento axiológico assumido pelo autor-criador, que se instaura o processo
criativo do objeto estético.
E essa perspectiva axiológica pela qual o objeto estético é concebido o
impede de ser mera reflexão/reprodução da realidade vivida. Como bem lembra
Aumont (2001, p.116 apud GARCIA, 2011, p.12), referindo-se ao texto fílmico, “no
cinema, o mundo que se vê nas telas não é tal qual o mundo da vida, pois se assim
fosse, seria mera fotografia viva”. Os objetos mostrados no cinema só adquirem
status de arte quando são apresentados em qualidade de signo ideológico. E essa
transmutação só é possível por meio da linguagem atravessada ideologicamente e
axiologicamente. Como enfatiza Stam (1992, p.24), “[...] o significante artístico não é
um mero acessório técnico para transmitir a realidade, mas uma parte da realidade
que é importante em si”.
Para exemplificar, recorremos ao filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos
Santos, 1963. Na célebre cena da morte da cachorra Baleia, a câmera é posicionada
ao nível do animal, propiciando ao expectador, num plano conjunto15, uma
perspectiva do ponto de vista da personagem. Após levar o tiro, ela se deita e vê a
casa se distanciando, efeito produzido pela técnica, conhecida como zoom out16. Na
mesma perspectiva, são mostrados preás em meio a gramas reluzentes, produzindo
um brilho que se alternava com uma imagem opaca, granulada. O brilho era
produzido por um fenômeno conhecido no meio fotográfico de luz estourada17, e o
efeito granulado pode ser obtido usando um filme de alta sensibilidade à luz.
Todo esse cuidado na montagem dos planos que compõem essa cena revela
uma postura axiológica que evidencia respeito aos animais. Na medida em que o
autor promove a humanização de Baleia, na hora de sua morte, indica também
15
Enquadramento de um cenário, no qual um ou mais personagens podem ser vistos e identificados facilmente. É utilizado para contextualizar o local onde ocorrerá todo o resto da cena, assim como para mostrar quais personagens participam desta cena. 16
Movimento aparente de afastamento em relação ao que é filmado, provocado por uma manipulação das lentes da câmara, sem que a câmara em si execute qualquer deslocamento ou rotação. 17
Fenômeno que ocorre em filmagens ou fotografias quando a íris da câmera é ajustada para entrar mais luz do que necessário, neste caso causando o estouro da luz.
56
traços de um discurso da esfera religiosa, cuja crença no paraíso o autor-criador
compartilha. A cena da morte da cachorra Baleia foi vista por milhares de pessoas
que não assistiram ao filme, justamente porque não se trata da simples reprodução
do que seria a morte de um animal, mas da visão transmutada artisticamente de um
evento da vida, no caso, a morte. Essa condensação artística da vida concreta
elabora uma outra realidade, uma realidade estética diferente da realidade ético-
cognitiva; mas, de acordo com a concepção bakhtiniana de arte, esta realidade não
pode ser indiferente àquela (BAKHTIN, 2003).
Pensar nessa relação entre ética e estética nos remete a dois conceitos
fulcrais para compreendermos o engendramento dessas duas dimensões que
envolvem o enunciado artístico. Trata-se das noções de excedente de visão e
alteridade. O objeto estético sempre vai ser resultado do jogo de perspectivas ou
pontos de vista entre o autor-criador e o seu outro, com relação ao herói, ou
tema/conteúdo do objeto discursivo. Segundo Bakhtin, o princípio básico dessa
relação é marcado por um estar-do-lado-de-fora, ou exotopia, sem a qual é
impossível qualquer ato criador.
Essa posição exotópica do sujeito criador, ou fora de si, é o lugar de onde se
consegue enxergar o mundo, seus acontecimentos e as posições discursivas não
acessíveis de sua posição social no mundo. O autor-criador, para compor o conjunto
de vozes sociais presentes em sua obra, precisa realizar esse movimento em que
ele se desprende de seu campo social de visão, se dirigindo ao campo social de
visão do outro e, de posse do olhar do outro - o excedente de visão, que do seu
lugar não teria -, retorna à posição de origem, dando acabamento estético à obra e,
num processo contínuo e infinito, atualizando sua visão de mundo acerca do objeto
estético e da vida (TEZZA, 2003).
Nesse movimento, o autor é transformado alteritariamente pelo outro na
relação, o qual passa a ser parceiro do processo criativo, pois empresta seu olhar
para o artista compor um todo acabado do objeto que, sozinho, da sua posição, não
poderia. Importante ressaltar que, sem esse movimento exotópico, ele conseguiria
apenas refletir/reproduzir, monologicamente, a realidade, pois não teria o substrato
de visão do outro; e não tendo, não haveria transformação, comprometendo assim o
processo constitutivo de criação que, necessariamente, deve conter a relação eu-
outro. Portando, Bakhtin nos mostra que só é possível refratar a realidade por meios
exotópicos.
57
Mas se o processo alteritário é uma via de mão dupla, como se dá o acesso,
por parte do outro, o destinatário, ao excedente de visão proporcionado pelo olhar
do autor? Isso acontece no momento em que o interlocutor consome o produto
cultural do qual ele mesmo participou na construção. Pensando em um filme, Duarte
(2002) afirma ser o cinema uma forma de alteridade, como sendo o outro que reflete
a nós mesmos na tela. De fato, se o espectador participa da relação que se
estabelece no ato criativo (autor – herói (tema do objeto estético) – destinatário), da
qual resulta o produto final (o filme), parte dele está refletida na tela. E lá está
também o excedente de visão proporcionado pelo autor, o qual ele, o espectador, da
sua posição no mundo, não possui; atualizando assim também sua visão de mundo
acerca do objeto discursivo representado na tela do cinema.
Cabe aqui enfatizar a responsabilidade do autor-criador e o seu compromisso
em fornecer ao seu público, ao seu outro, portanto, o excedente de visão que só o
autor dispõe, necessário para que os seus outros possam também se constituir
nessa relação alteritária, iniciada lá atrás, com o autor pessoa, ao contemplar um
acontecimento da vida. O agir ético na vida impedirá que o sujeito-outro na relação
negue ou escamoteie seu excedente de visão quando, por exemplo, no caso do
cinema, expõe representações estereotipadas, visões de mundo romantizadas ou
distorcidas, discursos univocais, contribuindo para a constituição de indivíduos
alienados.
2.3.3 Cronotopia: para uma análise contextualizada
O conceito de cronotopia está no alicerce sobre o qual Bakhtin engendrou sua
teoria de gênero do discurso. Em suas reflexões, ele identificou um entrelaçamento
indissolúvel entre o espaço e o tempo, determinante na articulação do discurso, bem
como nas relações de sentido que os sujeitos possam potencialmente vir a construir.
Segundo ele, assim como o espaço indica a presença do tempo, o tempo se
materializa no espaço, apresentando-se como categorias totalmente aliadas e
indissociáveis, em que um não se manifesta sem o outro. Bakhtin, portanto, atribui
ao cronotopo a responsabilidade de trazer para a superfície do enunciado os
elementos que participam da sua constituição, como o espaço, o tempo, os sujeitos,
o contexto imediato, as visões de mundo etc., graças à sua capacidade de
condensar em um espaço definido os índices temporais (BAKHTIN, 1998).
58
Bakhtin, por meio de sua pesquisa sobre o gênero romance, chegou à
conclusão de que é possível conhecer, a partir da análise cronotópica da narrativa, o
mundo no qual ela foi concebida. Essa viabilidade se constrói por meio da
percepção dos elementos cronotópicos presentes na história, que, por intermédio de
mecanismos da enunciação, remetem a outros elementos que vão além do
enunciado, determinando a constituição da narrativa e fornecendo indicações
precisas acerca do lugar e do tempo históricos nos quais a obra foi produzida, tais
como a visão de mundo da época, a cultura do povo, os comportamentos sociais, a
realidade local etc. Nas palavras do filósofo:
No romance, o mundo todo e a vida toda são apresentados em um corte da totalidade da época. Os acontecimentos representados no romance devem abranger, de certo modo, toda a vida de uma época (BAKHTIN, 2003, p.246).
Dessa forma, o cronotopo atua de forma peremptória na definição do gênero
de um enunciado, a que, ao ser concebido, o autor-criador, ainda que
provisoriamente, confere acabamento, conduzido por um movimento coercitivo da
conjuntura espaço-temporal na qual o enunciado é elaborado. Ou seja, o contexto
histórico (tempo-espaço) é um fator determinante no processo de composição do
enunciado, outorgando-lhe o contorno na sua materialidade linguística, definindo seu
conteúdo temático, estilo composicional, esfera de circulação e suporte; em outros
termos, definindo seu gênero. Assim, o cronotopo constitui-se o principal agente
responsável pela organização estruturante do enunciado, munindo-o, inclusive, de
entoação expressiva, somando-se aos fatores que lhe conferem unicidade ante o
momento social e histórico de sua produção e recepção.
Embora Bakhtin tenha desenvolvido o conceito de cronotopia tendo como
base o estudo do romance, as conclusões a que chegou sinalizam para a
possibilidade de deslocamento dessa categoria para outras instâncias discursivas.
Assim, procederemos, a partir de agora, a demonstrar a proficuidade da sua
aplicação às narrativas cinematográficas. Assim como no romance, entender as
relações cronotópicas presentes no texto fílmico torna-se imensamente importante
para a compreensão ativa do enunciado. E não pode ser de outra forma porque,
como bem acentua Xavier (2003, p.24, apud CAMARGO, 2009, p.70), “o espaço-
tempo construído pelas imagens e sons obedecerá a leis que regulam as
modalidades narrativas que podem ser encontradas no cinema” (XAVIER, 2003,
59
p.24). Assim, se o diretor de um curta-metragem deseja, por exemplo, mostrar a
tensa relação entre o tráfico e moradores de uma comunidade, o cronotopo mais
adequado escolhido para esse fim provavelmente será o morro, como acontece no
curta Mina de Fé (2004), de Luciana Bezerra, no qual ela narra a difícil história de
Silvana, cujo amor de sua vida é o chefe do tráfico.
Mas a escolha do morro não se dá pelo morro em si, enquanto formação
geológica, e sim pela sua dimensão cronotópica, que implica uma imbricação
espaço-temporal que necessariamente revela elementos representativos de um
espaço social definido, que se constituiu num período histórico determinado. Desta
forma o sentido atribuído a morro não é fixado baseado na sua forma físico-
estrutural, mas numa conjuntura sócio-espaço-temporal. Assim, quando me refiro a
morro em um contexto interiorano, trata-se de um cronotopo que remete o
espectador a uma ideia de natureza, paz, tranquilidade; enfim, uma relação espaço-
temporal diferente do cronotopo morro no contexto urbano carioca, por exemplo, o
qual submete o interlocutor a um ambiente de violência, insegurança, medo,
desordem, conflito etc. Nessa perspectiva, temos que:
O movimento visível do tempo histórico é indissociável da ordenação natural de uma localidade (Lokalität) e do conjunto dos objetos criados pelo homem, consubstancialmente vinculados a essa ordenação natural (BAKHTIN, 2000, p.251 apud PAULINO, 2013, p. 212).
Ainda tratando dessa relação entre conteúdo ideológico e a constituição dos
cronotopos no cinema, nos vem à mente a expressão o lado humano não
acompanha o tecnológico, refrão de uma música composta pelo poeta mato-
grossense, Antônio Sodré. Tal enunciado evoca dois cronotopos que, como diz a
música, soam antagônicos. O lado humano, ou seja, as questões de humanidades
geralmente são tratadas pelo cinema em espaços cronotópicos que revelam ou que
suscitam os atributos humanos; neste caso poderíamos pensar em uma casa,
hospital, fazenda, escola, igreja, enfim, espaços sociais que trazem consigo esse
aspecto humano. Como exemplo, poderíamos citar o filme O presente18, no qual o
diretor deseja transmitir lições voltadas às questões de humanidade. Para isso,
utiliza no filme os cronotopos casa, hospital, fazenda, igreja e cemitério.
18 Filme de 2006, do diretor Michael O. Saibel. Conta a história de Jason, que para receber a herança do avô bilionário precisa cumprir 12 tarefas, ao fim das quais é bem sucedido. Cada uma dessas tarefas tem o objetivo de promover alguma mudança nele.
60
Por outro lado, desejando o diretor transmitir um discurso que enfatize
avanços tecnológicos, a velocidade do mundo digital, conceitos ligados à
modernidade, mesmo que seja para fazer uma crítica, como no filme Feitiço do
Tempo19, ele usará cronotopos que revelem as marcas dos feitos tecnológicos
entalhados no espaço social, como aeroportos, ambientes de jogos eletrônicos,
shopping-centers, estúdios de televisão, escritórios de grandes corporações
multinacionais, bancos etc. No caso do filme mencionado, um dos cronotopos
utilizados foi o estúdio de TV e, não por acaso, o protagonista Phil é o homem do
tempo numa importante rede de televisão americana, representação social
invariavelmente vinculada à agitação e ao estresse do dia a dia de uma redação de
TV. Nos dois enunciados mencionados, tempo e espaço são apreendidos como
elementos intrinsecamente relacionados e significativos para a qualidade e a
compreensão dos filmes, por meio dos quais ideias, conceitos e visões de mundo de
um determinado tempo e espaço vêm à tona.
Bakhtin, magistralmente e até de forma poética, exprime esse efetivo vínculo
entre o espaço e o tempo, corroborando para a compreensão dessa inexorável
relação. Nas suas palavras:
O tempo se revela acima de tudo na natureza: no movimento do sol e das estrelas, no canto do galo, nos indícios sensíveis e visuais das estações do ano [...]. Por outro lado, teremos os sinais visíveis, mais complexos, do tempo histórico propriamente dito, as marcas visíveis da atividade criadora do homem, as marcas impressas por sua mão e por seu espírito: cidades, ruas, casas, obras de arte e de técnica, estrutura social, etc. (BAKHTIN, 2000, p. 243).
De fato, o espaço é o lugar onde o tempo é percebido, onde indubitavelmente
ele existe, o tempo necessita do espaço concreto para poder passar. Essa
necessária relação é bastante explorada pela linguagem cinematográfica a fim de
obter ou não a sensação do percurso temporal. Em uma história na qual se deseja
produzir um efeito de sentido que resulte numa sensação de temporalidade estática,
imobilidade e inércia de suas personagens, o diretor provavelmente apresentará, no
decorrer da narrativa, espaços com poucas ou quase nenhuma ação humana.
Assim, ainda que se passem vários anos, um vilarejo continuará com o mesmo
19
Filme de 1993, do diretor Harold Ramis. Narra a história de Phil (Bill Murray), um arrogante meteorologista de televisão incumbido de fazer uma reportagem na cidade de Punxsutawney, na Pensilvânia, sobre as comemorações do Dia de Groundhog. Trata-se de uma festividade em que se acredita que o Groundhog, uma espécie de marmota, pode prever o fim do inverno no dia 2 de fevereiro. No dia seguinte, Phil acorda no hotel e percebe que o dia anterior se repete em detalhes.
61
número de habitantes, de ruas e de praças, as casas com as mesmas cores e a
mesma mobília.
Em outra ponta, tencionando o autor marcar a passagem do tempo, ele
salientará as ações humanas realizadas em um espaço determinado, como a
construção de uma escola, de uma estação de trem, de uma indústria qualquer, ou
seja, “as marcas visíveis da atividade criadora do homem, as marcas impressas por
sua mão e por seu espírito” (idem). Neste caso, a sensação de que o tempo “andou”
fica óbvia. É como se o tempo se materializasse no espaço (BAKHTIN, 1998). Além
disso, cabe destacar os sinais visíveis mais complexos, do tempo histórico,
mencionados por Bakhtin: todo legado histórico da humanidade, entre os quais se
encontram as artes, as técnicas, as estruturas sociais, os feitos científicos, os
saberes e pensamentos, cada um destes marcando seu próprio tempo, em seu
próprio espaço.
2.3.4 Arquitetônica: em busca do (in)acabamento
O conceito de arquitetônica também nos ajuda a compreender a imbricada
relação existente entre as dimensões ética e estética presentes nos enunciados
fílmicos, conceitos impossíveis de serem pensados de forma isolada. Dito de outra
forma, tal categoria nos mostra como os elementos extralinguísticos (da vida
concreta) penetram o enunciado por dentro, no processo de acabamento (BAKHTIN,
2003). Por elementos extralinguísticos entendemos todos os componentes que
integram determinado horizonte social, no interior do qual os enunciados são
produzidos. Horizonte que pode ser imediato ou mais amplo. Um enunciado
concreto sempre será proferido num dado contexto cultural ou numa situação mais
restrita; apenas nessas circunstâncias é que ele fará sentido, poderá ser verdadeiro
ou falso, belo ou disforme, sincero ou malicioso (BAKHTIN, 1998). Bakhtin se ocupa,
portanto, em demonstrar como o sujeito, em suas atividades estéticas, se revela
eticamente. Isso implica na assunção da responsabilidade pelo ato enunciativo, pois
ao enunciar, o sujeito se mostra, porque o faz a partir de um lugar único, que só ele
pode ocupar no momento da enunciação.
E como se efetiva essa relação dialógica entre o plano do conteúdo, no qual
se inserem os atos éticos e sociais, e o plano formal, responsável pela maneira de
organizar e compor os discursos? Para o filósofo russo, todo objeto estético, seja da
62
esfera artística ou não, pressupõe a existência de um conteúdo e sua forma, além
disso, de um material, com o qual o autor trabalhará; no caso do discurso
cinematográfico, a imagem e o som. A obra estética (totalidade arquitetônica), o
produto com acabamento, embora inacabado, resulta da articulação desses três
elementos, sem os quais ele não existiria. Ao dar corpo ao conteúdo, por meio do
material, o sujeito criador o faz com base nas relações axiológicas que mantém com
o teor do enunciado e com seu interlocutor. Ao produto decorrente dessa imbricação
ético-estética, Bakhtin denominou de forma arquitetônica. Dito de outra forma,
arquitetônica é o processo pelo qual o autor estrutura de forma valorativa o
conteúdo, conferindo-lhe, em um certo material, uma composição específica.
Isso implica uma relação de interdependência entre a forma composicional e
a arquitetônica, na qual a segunda determina a primeira e esta não se realiza sem
aquela (BAKHTIN, 2010[1920-24]). Como exemplo, podemos citar os filmes
americanos que retratam o ataque da Al-Qaeda às Torres Gêmeas do complexo
empresarial do Word Trade Center, na cidade de Nova York, em setembro de 2001.
Tal acontecimento do mundo concreto contém um caráter altamente trágico, cuja
perspectiva político-histórica possui uma importância crucial para os Estados Unidos
e para o Mundo, um evento que se tornou um divisor de águas para a humanidade.
Portanto, a forma composicional de narrar artisticamente esse fato provavelmente
será consoante à sua arquitetônica, constituída pelo caráter trágico, politico, étnico,
religioso, sob o qual está imerso o acontecimento. De fato, tal conteúdo não poderia
ser representado por outras formas composicionais senão o drama e o
documentário. Dos 10 filmes pesquisados sobre o tema, setenta por cento deles
pertencem ao gênero Drama e os outros trinta são documentários, formas
composicionais mais adequadas para realizar a arquitetônica desse evento,
conforme quadro abaixo20.
FILME ANO DIRETOR ORIGEM GENERO
11 de Setembro 2002 Sean Penn + 10 EUA + 6 Drama
As Torres Gêmeas 2006 Oliver Stone EUA Drama / Histórico
Reine sobre mim 2007 Mike Binder EUA Drama
Zona Verde 2010 Paul Greengrass EUA Drama
20 Disponível em: http://educacao.uol.com.br/album/2013/09/11/veja-11-filmes-e-documentarios-que-
relembram-os-atentados-de-11-de-setembro-de-2001.htm, acesso em 15/03/2014.
63
Voo 93 2006 Paul Greengrass EUA Drama / Histórico
102 Minutos que
Mudaram o Mundo
2008 Nicole
ittenmeyerSeth
EUA Documentário
People – Histórias
de Nova York
2005 Tony Sahoub EUA Drama / romance
Inside 9/11 2005 National
Geographic
EUA Documentário
Guerra ao terror 2010 Kathryn Bigelow EUA Guerra / Drama
Fahrenheit 11 de
Setembro
2004 Michael Moore EUA Documentário
Quadro 1: Levantamento dos gêneros utilizados nos filmes sobre o “11 de setembro”
Segundo Bakhtin (1992), quando o sujeito enuncia, ele assume a
responsabilidade diante da vida concreta, do conteúdo do seu ato de fala, por isso
um agir ético. Para ele, o sujeito é integralmente responsável e responsivo.
Responsável por assumir todos os atos de sua vida, “sem álibi na existência”, e
responsivo porque sua fala não é um ato isolado, mas responde a outros discursos
com os quais dialoga. E ao refletir sobre seu ato responsável, sua decisão de falar
sobre o fato concreto, ele confere valores ao seu ato e lhe dá acabamento, por isso
um agir estético. O filósofo russo valoriza esse diálogo entre o agir concreto do
falante – ética - e o refletir sobre essa ação e lhe dar acabamento – estética;
estabelecendo assim uma relação indissociável e complementar entre realidade e
cultura, conteúdo e processo, entre a repetibilidade do conteúdo e a irrepetibilidade
do como enunciar.
Portanto, a produção de um filme será sempre o resultado da relação
dialógica entre o particular - aquilo que está presente apenas no ato enunciativo do
cineasta - e o geral – aquilo que cada ato tem em comum com todos os atos
relacionados a um determinado fato, ou seja, o conteúdo. Para Bakhtin, não há uma
primazia de um sobre o outro, mas uma equipolência entre o ético e o estético na
produção de atos enunciativos que compõem a cadeia comunicacional; o que,
segundo ele, leva à integralização arquitetônica de todas as dimensões do ser
humano. Donde concluímos que considerar um texto segundo a arquitetônica
bakhtiniana, seja qual for a sua natureza material, significa olhar não só para a
organização das palavras, mas para a organização dos discursos.
No caso do texto fílmico, analisá-lo arquitetonicamente implica considerar o
momento histórico em que ele está inserido, o pensamento corrente e as questões
que afetam a humanidade na ocasião de sua produção que justificam o discurso
64
materializado no seu enunciado. Porque, mesmo sendo evento único e irrepetível,
ele se constitui dentro de um contexto, sendo, portanto, profundamente influenciado
por essas questões, tanto no seu aspecto formal, quanto no seu conteúdo.
Consoante a isso, Faraco (2009b) enfatiza a importância de o professor valorizar em
sua prática pedagógica a concepção de texto que leve em conta, necessariamente,
a forma arquitetônica bakhtiniana. Segundo ele, o analista do discurso que se coloca
numa perspectiva dialógica deve apropriar-se desse conceito, considerando sempre
as duas dimensões constitutivas do discurso: a interna e a externa. Só assim
conseguirá (re)estabelecer as relações dialógicas e valorativas produtoras de
sentidos, mantendo aberta a possibilidade de resposta.
Ao propor a exibição de um curta-metragem, por exemplo, com o objetivo de
ensinar a linguagem ou linguagens utilizadas no filme, não é possível fazê-lo apenas
considerando sua forma composicional predominante. É preciso levar em conta sua
forma arquitetônica, pois esta também o constitui enquanto enunciado. É importante
olhar para o filme como um todo acabado, sem retirá-lo de sua situação de
produção, circulação e recepção; conhecer seus produtores, compará-lo com outros
filmes que tratam do mesmo tema, produzidos em outro tempo-espaço,
estabelecendo as relações existentes entre eles, fazendo com que o aluno perceba
que não se trata de um enunciado que se basta a si mesmo, isolado, autônomo, mas
que pertence a uma categoria discursiva, que traz consigo concepções artísticas de
estilo, época e gênero, as quais concorrerão no processo de significação.
Para além dessa abordagem externa, o professor deverá também, em
conjunto com a turma, considerar a dimensão interna do texto fílmico, ou seja, sua
forma composicional, estilo, etc. Isso permite a familiarização do aluno com a
linguagem cinematográfica utilizada para produzir o gênero em questão. Dessa
forma, o aluno terá uma visão da totalidade demandada na elaboração de um
enunciado audiovisual: veículo, público alvo, suporte, posicionamento ideológico
diante de um fato, articulação com a política pedagógica da escola etc. Tais
cuidados contribuirão para que se torne sujeito de seu próprio discurso. O filme,
portanto, entra na escola como fonte de informação social, propiciando uma reflexão
sobre os aspectos socioculturais e a possibilidade de explorar uma nova linguagem.
Assim, tal abordagem arquitetônica propicia o desenvolvimento de uma
compreensão responsiva no aluno, levando-o a assumir cada vez mais
posicionamentos críticos e valorativos diante das questões que forem apresentadas.
65
2.4 Multiletramento: as linguagens multimodais no mundo contemporâneo
Neste subcapítulo, promovemos algumas reflexões sobre os textos
multimodais e como eles têm sido tratados pelos teóricos que pensam o letramento.
Investigamos e propomos estratégias utilizadas pelos educadores no letramento de
textos que circulam socialmente, os quais se utilizam de múltiplas formas de
representação. Coerentemente, inserimos o Círculo de Bakhtin nessa discussão,
destacando suas valiosas contribuições para essa temática. E no final,
apresentamos ao leitor uma breve abordagem dialógica dos principais signos
cinematográficos e como estes são mobilizados para produzir os efeitos de sentido
pretendidos pelo cineasta. Esperamos que essa ferramenta possa ser uma
importante, mas não a única, fonte de pesquisa para professores que pretendam
fazer uso dessa poderosa linguagem em suas aulas.
Quando pensamos em texto, a primeira coisa que nos vem à mente é o texto
na sua forma estrita, ou seja, um conjunto de palavras e frases encadeadas,
passíveis de interpretação. No entanto, adotamos aqui o conceito de texto elaborado
por Bakhtin em 1960, no seu ensaio O problema do texto na linguística, na filologia e
em outras ciências humanas: “Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer
conjunto coerente de signos, a ciência das artes (a musicologia, a teoria e a história
das artes plásticas) opera com textos (obras de arte)” (BAKHTIN, 2003, p.329). Ele
parte do pressuposto que todas as interações sociais se dão por meio de textos
multimodais. Isso equivale a dizer que, ao interagirem, os sujeitos fazem uso de uma
variedade de modos comunicacionais, inclusive o audiovisual, para expressar suas
ideias e emoções.
Tal diálogo entre as várias modalidades de linguagem faz-se necessário para
compreendermos o pressuposto freiriano de que “a leitura do mundo precede
sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura
daquele” (FREIRE, 1989, p. 20). Ambos os pensadores referiam-se ao aspecto
cultural presente em qualquer texto, inclusive no cinematográfico. Para eles, os
textos são potencializados pela leitura de cunho cultural baseada na vivência do
sujeito leitor, conferindo-lhes diferentes horizontes interpretativos e expressivos,
ampliando visões de mundo, proporcionando hipóteses e inferências, bem como
66
despertando o senso crítico na prática de interpretação textual, em qualquer sistema
modal.
Diante disso, instaurou-se a consciência de que ler vai muito além da
decodificação das palavras. E, apesar de já haver o reconhecimento da existência
de múltiplas formas de representação, elas eram encaradas distintamente, ou seja,
não havia integração ou complementaridade entre elas. Só a partir dos anos 80,
teóricos da linguagem passam a conferir, cada vez mais, relevância ao estudo das
imagens enquanto signos integrados, semeando a ideia de letramento visual no
âmbito educacional (KRESS & VAN LEEUWEN, 2001).
Por conseguinte, o conceito de texto multimodal passa a conquistar espaços
cada vez mais importantes nos estudos de linguagem, passando a ser encarado
como mais uma forma de representação, além da linguagem verbal, capaz de
comunicar as ideias dos sujeitos falantes (idem). Portanto, os modos de constituir os
enunciados não estão isolados uns dos outros, todos estão igualmente integrados
pelas situações concretas de comunicação, não há primazia de um sobre o outro,
conforme nos esclarece Bakhtin:
A comunicação verbal entrelaça-se inextricavelmente aos outros tipos de comunicação e cresce com eles sobre o terreno comum da situação de produção. Não se pode, evidentemente, isolar a comunicação verbal dessa comunicação global em perpétua evolução. Graças a esse vínculo concreto com a situação, a comunicação verbal é sempre acompanhada por atos sociais de caráter não verbal (gestos do trabalho, atos simbólicos de um ritual, cerimônias, etc.) (BAKHTIN, 1992, p. 124).
Tal assertiva nos faz perceber que qualquer iniciativa de proporcionar
letramento visual não pode e não deve basear-se numa visão reducionista de
oposição entre visual e verbal, mas, ao contrário, carece de uma abordagem
integradora entre ambos os modos de retratar a realidade, vez que esse tipo de
representação se faz presente, de forma cada vez mais relevante, em quase todas
as esferas de interação das quais os alunos participam, tais como a jornalística,
artística, publicitária ou recreativa, por meio das reportagens, notícias, charges,
anúncios, filmes, teatro, etc. Portanto, se compartilharmos os pressupostos
bakhtinianos, rechaçaremos qualquer ideia que vá em direção a substituir o modo
visual pelo modo verbal ou sobrepor aquele em relação a este; ao invés disso,
ressaltamos a importância de outros tipos de comunicação na representação das
ideias. Assim sendo, não podemos adiar mais esse compromisso de entender o
67
texto audioverbovisual mais profundamente e proporcionarmos aos alunos
habilidades e competências para lidar com ele.
Diante dessa nova “paisagem semiótica”, abordada mais profundamente por
Kress e Van Leeuwen, a introdução de novas linguagens como recurso pedagógico
para aprendizagem de leitura, escrita e interpretação de texto vai ao encontro das
concepções bakhtinianas e freirianas concernentes às interações verbo-visuais.
Acreditamos que o uso da linguagem cinematográfica no ensino de língua materna
pode se mostrar bastante produtivo nessa tarefa de capacitar os alunos a lidarem
com o modo audiovisual de representar, inserindo-os de vez nessa nova conjuntura
semiótica. Assim, explorar de forma significativa e responsável o filme no contexto
de sala de aula mostra-se essencial na prática pedagógica. Os professores têm a
difícil, mas não impossível, missão de fazer com que os alunos encarem um filme
não apenas como uma forma de entretenimento e lazer, mas também como um
meio de informação, formação social, cultural e até mesmo intelectual. Para tanto,
precisam desenvolver um trabalho de leitura sob a ótica do multiletramento.
Esse conceito, cunhado em 1996, por um grupo de intelectuais conhecido por
The New London Group, traz consigo a ideia de que os modos de representação da
realidade há muito tempo deixaram de se basear em apenas um sistema semiótico,
o verbal. A multiplicidade de semioses utilizadas hoje em dia na comunicação, bem
como dos canais pelos quais as mensagens são transmitidas, além das diversidades
linguísticas e culturais dos falantes, nos coloca diante de um mosaico de formas
representacionais que se integram e complementam, que se completam na
produção de sentidos, atendendo a especificidades situacionais e a múltiplos
propósitos comunicacionais.
Diante dessa abordagem multimodal da linguagem, faz-se mister uma
concepção de letramento que dê conta dessa dinamicidade da linguagem, que
habilite o aprendiz a lidar com uma linguagem em constante mudança, a qual variará
de acordo com o contexto social e cultural no qual está inserida, e que sobrepuje
aquela ideia de alfabetização tradicional, cujas práticas são enfocadas num sistema
de regras imutáveis, cada vez mais distante da realidade dos alunos (ROJO, 2005).
Sabedores desse cenário no qual se insere a comunicação, os responsáveis
por municiar os educadores com paradigmas de ensino introduziram nos PCN, a
partir de 2008, a preocupação com essa dimensão dialógica da linguagem. Isso
significa levar em conta a relação intensa entre língua e as experiências reais de
68
uso, num constante movimento que entrecorta os diversos sistemas semióticos
presentes nas interações humanas. Preconizou-se, assim, o multiletramento, a partir
do qual as estratégias de letramento passaram a considerar outras práticas
discursivas, mediadas também pela linguagem não verbal; entre elas, o cinema, as
artes visuais, o rádio, a televisão e a charge. No caso do cinema, em particular, as
orientações curriculares assumem uma postura de reflexão quanto ao discurso
cinematográfico, principalmente no âmbito cultural, em que as identidades sociais
podem receber forte influência das produções artísticas no seu processo de
(re)constituição.
E, ao introduzir o texto fílmico no currículo, a escola assume como uma de
suas funções sociais pensar o cinema para além do entretenimento, como um
elemento cultural de modo reflexivo e crítico. E isso implica reconhecer seu poder
informacional e pedagógico, embora sua função primeira não seja essa. De fato, a
sétima arte possui meios bastante eficazes de incutir conhecimentos e orientar
comportamentos e processos de construção de subjetividades. Como bem diz
Duarte:
Parece ser desse modo que determinadas experiências culturais, associadas a uma certa maneira de ver filmes, acabam interagindo na produção de saberes, identidades, crenças e visões de mundo de um grande contingente de atores sociais. Esse é o maior interesse que o cinema tem para o campo educacional - sua natureza eminentemente pedagógica (DUARTE, 2002, p. 19).
Além disso, as produções cinematográficas, enquanto produto cultural,
revelam quem somos, como pensamos e como agimos. Portanto, fazer uma leitura
crítica de um texto fílmico significa, em última análise, realizar uma leitura crítica da
realidade de um povo. Só isso já justifica a inclusão do cinema enquanto cultura no
currículo escolar, pois proporciona discussões sobre identidade étnica, política,
moral e religiosa, elementos fundantes de uma nação, proporcionando reflexões
sobre os valores das culturas representadas, questionando, reforçando ou
promovendo novos olhares com relação aos princípios apresentados nos filmes.
A linguagem cinematográfica possui um potencial de letramento capaz de
proporcionar a compreensão de certas ideias, valores e conceitos que seriam
difíceis de assimilar de outra forma, reforçando o caráter pedagógico do cinema. De
fato, os recursos da imagem, a fala direta e os detalhes evidenciados pelo jogo de
câmera facilitam o diálogo e a compreensão do telespectador, especialmente os
69
jovens. A sala de aula torna-se, com isso, um espaço semiótico (STAM, 2003), onde
acontece a integração entre os diversos meios de representação, dentre eles o
verbo-audiovisual, em que diferentes códigos estão inscritos ou implícitos; suprindo,
com isso, a escassez de uma abordagem multimodal nas aulas de linguagem, pois
os filmes, como recurso didático, produzem significados que vão além daqueles
gerados no âmbito do linguístico, na medida em que mobilizam modos de
representação que exigem articulação de outros sentidos do leitor.
Cabe à escola, portanto, proporcionar esse tipo de letramento a fim de que o
leitor de textos fílmicos possa adquirir a competência comunicativa para assimilá-los,
assim como já propicia habilidades para a leitura e a escrita tradicionais. Operar
esse tipo de letramento implica considerar as peculiaridades do texto
cinematográfico quanto a seus recursos expressivos, ampliando as possibilidades de
compreensão, interpretação e apreensão do texto por parte do sujeito leitor. Isso
significa estar atento aos elementos expressivos operados pela câmera, os quais
funcionarão como agentes discursivos. Logo, concluímos que os processos de
leitura das imagens em movimento são independentes, pois as imagens geram seus
significados em si mesmas, ou seja, elas não carecem, necessariamente, de uma
estrutura verbal para produzir sentidos.
Isso significa que toda mensagem imagética carrega em si uma carga
significativa sob algum ponto de vista cultural e/ou ideológico, não necessitando de
uma descrição verbal de seus elementos visuais, pois esses são suficientes para
produzirem sentidos em seu processo de leitura. Dessa forma, o uso do close-up, da
câmera detalhe, do plano médio ou plano geral, por exemplo, submete o leitor a
pontos de vistas em relação ao objeto, a que provavelmente não teria acesso em
uma interação estritamente verbal, oportunizando ao telespectador reflexões
valorativas significativas acerca do objeto estético.
Assim, ao proceder a uma análise de um texto fílmico recorrendo à linguagem
cinematográfica e aos recursos utilizados por ela, a capacidade de compreensão
crítica do mundo tende a ficar mais aguçada, pois a cada experiência fílmica, novos
olhares se lançam em direção ao objeto estético, à medida que o olhar vai se
familiarizando com as semioses do cinema. Tais aspectos devem figurar em
qualquer processo de letramento que se pretende crítico, pois oferecem a
possibilidade de ler o mundo de uma forma mais dialógica e oportunizam ao sujeito
leitor o posicionamento crítico diante do objeto estético em estudo.
70
De fato, o uso de filmes como recurso educativo tem se mostrado eficaz na
instauração do diálogo entre os conteúdos curriculares e os conhecimentos mais
gerais, de natureza sociocultural. Portanto, conceder espaço para o cinema no
conteúdo escolar, além de possibilitar a integração entre o currículo e as questões
socioculturais mais amplas, prepara o olhar e o coração do aluno para ler o texto
cinematográfico, leva-o a perceber que uma história contada por meio de imagens
possui suas idiossincrasias, as quais precisam ser levadas a sério. Possibilita ao
estudante perceber a dimensão do poder e da importância desta forma de
comunicação no mundo de hoje, o qual se utiliza dela para veicular suas mensagens
e valores, até mesmo de forma subliminar.
Além disso, incluir o cinema no sistema educacional proporciona a
compensação de uma insuficiência existente nos leitores de textos audiovisuais.
Porque, diferentemente do texto verbal, sobre o qual o aluno recebeu, durante toda
sua vida escolar, informações e orientações acerca de sua estrutura, regras, sintaxe,
etc., não houve sequer uma iniciação à linguagem cinematográfica. A eles não foi
ensinado o que significam planos, enquadramentos, movimentos de câmera, efeitos
de luz, fotografia, etc., embora, de forma intuitiva, sempre assistiram a filmes. E a
partir do momento em que o aluno começar a ter conhecimento sobre como
funcionam os mecanismos utilizados pelo cinema, perceberá que ele possui um
vocabulário próprio, que é tão válido e útil quanto o vocabulário da linguagem verbal
para uma compreensão mais qualificada da realidade representada.
Uma vez assumida essa postura, no que se refere ao letramento
cinematográfico, as escolas passariam a trabalhar não apenas o conteúdo dos
filmes como bagagem adicional ao repertório cultural dos estudantes, o que por si só
já constituiria um ganho importante, mas também as técnicas utilizadas pelo cinema,
como música, efeitos sonoros, direção, figurino, cenografia, planos, ângulos,
sequência, movimentos de câmera; poderiam abordar também as escolas
cinematográficas e suas diversidades, talvez um pouco da história da sétima arte,
além dos gêneros cinematográficos. Ou seja, tomariam os enunciados
cinematográficos objetos a serem ensinados e aprendidos.
Mas para que isso seja possível, como acontece em qualquer projeto
educacional que se pretenda eficaz, em que pese os professores não precisarem ser
especialistas em linguagem cinematográfica, o passo inicial precisa ser a formação
dos docentes. Além dos programas oficiais de capacitação, é possível aproveitar o
71
conhecimento acumulado de professores que já fazem uso de filmes em sala de
aula, os quais poderiam formar grupos em sua própria escola com o objetivo de
compartilhar suas experiências, ações que já tenham desenvolvido, leituras
realizadas sobre o tema e cursos dos quais tenham participado. Tais iniciativas
certamente vêm a facilitar o acesso dos professores a produções cinematográficas
que contribuam para a formação crítico-reflexiva do educador e ampliar seu
repertório fílmico, além de desenvolver sua competência leitora.
Além disso, não podemos perder de vista que, na definição de projetos
pedagógicos que incluam a utilização de filmes em sala de aula, o uso de tais
recursos precisa estar de acordo com o projeto político-pedagógico da escola. Deve-
se ter em mente que o uso de um filme ocorre a fim de atingir a um objetivo
educacional. Há também a necessidade de estabelecer uma relação com o
conteúdo que está sendo estudado, de acordo com o currículo definido pela escola.
Ademais, o processo de letramento cinematográfico exige cuidados que
precisam ser tomados antes, durante e depois da exibição de cada filme, como a
faixa etária indicada e a elaboração de um roteiro que irá orientar as ações
pedagógicas referentes ao filme. Os professores poderão também elaborar projetos
multidisciplinares, uma vez que o texto cinematográfico possui elementos
multimidiáticos, como texto, cenografia, figurinos, efeitos sonoros e visuais,
permitindo que professores de várias disciplinas desenvolvam trabalhos de forma
conjunta (NAPOLITANO, 2003).
Enfim, como acontece na literatura, em que as competências e as habilidades
vão sendo desenvolvidas aos poucos, o letramento cinematográfico também precisa
ser estimulado de forma gradativa. Assim como Machado de Assis não é indicado
para principiantes em literatura, também não é aconselhável realizar a iniciação dos
alunos com filmes de Eisenstein ou Scorsese, diretores conhecidos por utilizar um
nível de linguagem que exige bastante do espectador. É necessário que se faça uma
introdução adequada à idade, à expectativa e ao nível cultural da turma, de modo
que ela vá, paulatinamente, tendo acesso a obras mais complexas. De uma maneira
ou de outra, o que se espera é que os alunos saiam enriquecidos pelas experiências
obtidas com a sétima arte, com motivação e condições de debater, argumentar e
expressar suas ideias e impressões sobre a obra, seja em forma de comentários em
redes sociais, trabalhos escolares ou artigos de opinião.
72
2.5 Os signos cinematográficos e seus efeitos de sentido
O cinema é uma forma de contar histórias, dentre outras. Portanto, ele é um
meio de comunicação. Um sujeito que se propõe a narrar uma história, seja ela
verídica ou fictícia, em forma de comédia, drama ou qualquer outro gênero, precisa
fazer-se entender com seu interlocutor, assim como é requerido do autor de um livro
competência comunicacional de modo que seus leitores consigam apreender suas
ideias. Este faz por meio de palavras, orações, estruturas de parágrafos, ou seja, as
ferramentas que ele possui enquanto escritor para expressar seus pensamentos e
produzir suas histórias. Já a produção fílmica é uma arte audiovisual, ou seja, o
autor que deseja se comunicar por meio dela precisa saber como transmitir efeitos
de sentido, emoções, ideias e conceitos utilizando imagem e som. E é aí que entra
os códigos da linguagem cinematográfica.
Ainda utilizando o paralelo com a comunicação escrita, que possui recursos
morfológicos, sintáticos e de figuras de linguagem, os quais produzem efeitos
exclamativos, apelativos, retóricos etc., na comunicação audiovisual temos recursos,
como planos, ângulos, enquadramentos, som, movimentos de câmera e a
montagem, cuja tarefa é produzir os sentidos desejados nessa forma comunicativa.
Mas o que significa cada um desses elementos que compõem essa linguagem e
qual a sua finalidade no processo comunicativo? Esta seção tem a finalidade de
familiarizar o leitor com a linguagem utilizada pelo cinema, bem como demonstrar
sua mobilização na produção dos significados.
Comecemos pelo enquadramento: esse recurso é essencial, porém pouco
valorizado por quem não possui um conhecimento mínimo da linguagem
cinematográfica. Para definir o que é enquadramento, faz-se necessário a
compreensão do que sejam planos e ângulos. Os planos de enquadramento podem
ser entendidos como sendo a distância entre a câmera e aquilo que está sendo
filmado. Dessa forma, a depender da distância, o enunciador altera o sentido daquilo
que está sendo mostrado na imagem.
Existem vários planos predefinidos na linguagem do cinema: o plano geral é
utilizado para revelar o cenário onde se passa a história; o plano médio exibe uma
personagem com um pequeno espaço acima da cabeça e abaixo dos pés; o plano
americano mostra a personagem da altura do joelho para cima; há também o
primeiro plano, que exibe o ator da altura do peito para cima, e por último o plano
73
detalhe, utilizado para enfocar ou salientar algum objeto, parte do corpo ou
expressão que o autor deseja destacar (MARTIN, 2003).
Ainda falando em enquadramento, além dos planos de filmagem, há também
os ângulos de filmagem, o que é determinado basicamente pela altura em que se
encontra a câmera no momento da cinematografia. Existem três tipos básicos de
ângulo: o normal, no qual a câmera está na altura dos olhos das personagens; o
plongée, ou câmera alta, quando a câmera está posicionada acima do nível dos
olhos da personagem e voltada para baixo; a contre-plongée, em que a câmera fica
abaixo do nível dos olhos da personagem, voltada para cima. Importante frisar que
este ou aquele plano ou ângulo é escolhido de forma consciente e articulada a fim
de obter o melhor resultado na transmissão de uma ideia. Assim, caso um diretor
queira explicitar a fúria de uma personagem, a fim de transmitir uma ideia,
provavelmente não alcançará êxito se utilizar um plano geral; certamente, o seu
interlocutor não sentirá o efeito desejado. Por outro lado, se fizer uso do primeiro
plano, obterá o resultado esperado (idem).
Com relação ao ângulo, essa intenção será alcançada mais eficazmente se o
diretor explorar o ângulo contre-plongée, o qual imprime na personagem um aspecto
de poder, autoridade e comando, efeito que não será alcançado se utilizado o
ângulo normal. Por outro lado, na hipótese do autor pretender expor a fragilidade,
medo, humilhação ou vulnerabilidade da vítima de uma agressão, sua finalidade
será melhor atingida utilizando o primeiro plano ou plano médio e o ângulo plongée,
conforme demonstrado nas figuras abaixo.
UM Dia de Fúria (SCHUMACHER, 1993) Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=g4q1Fhq6Ong.
74
Nos exemplos acima, retirados do Filme Um dia de fúria (1993), de Joel
Schumacher, podemos notar na primeira figura o uso do primeiro plano e ângulo de
filmagem contre-plongée. Tal enquadramento possibilita ao telespectador sentir a
raiva do personagem, além de destacar sua posição de imponência com relação aos
seus interlocutores. Na figura 02, o plano médio e o ângulo plongée utilizados na
filmagem da cena ressaltam o medo e suscetibilidade das personagens vítimas do
homem furioso. Desta forma, salientamos a extrema importância do enquadramento
na linguagem fílmica para a constituição do discurso cinematográfico (XAVIER,
2008).
Outro recurso não menos importante que compõe a linguagem
cinematográfica é o movimento de câmera. Os mais comuns são o panorâmico, no
qual a câmera é fixada em um lugar, fazendo um movimento horizontal em torno de
si mesma a fim de mostrar o cenário; com esse mesmo objetivo, o title também
mantém a câmera fixa, mas realizando um movimento na vertical; e o terceiro
movimento básico, muito utilizado em filmes de ação, é o travelling, em que a
câmera não está fixada em um ponto específico, ela se movimenta junto com o
objeto ou com a personagem (MARTIN, 2003). Além do movimento de câmera, a
edição ou montagem é um elemento presente em todos os filmes, é o resultado da
união das tomadas produzidas em vários planos, que depois de vários cortes e
emendas formam uma sequência lógica. Ela é responsável por dar sentido às
sucessões de cenas que, organizadas, adquirem um significado (MOLETTA, 2009).
Por conseguinte, os enquadramentos e os movimentos realizados pela
câmera determinam o que veremos e como veremos o objeto estético. Ao realizar
um close up, ou um movimento de zoom in, no qual a câmera aproxima a
personagem, o diretor deseja avizinhar aquela personagem de seu interlocutor, de
modo que este preste atenção naquela, sugerindo certo grau de empatia e
envolvimento entre eles. Por outro lado, num plano geral ou movimento de zoom out,
no qual a câmera afasta o objeto, o diretor pode estar sugerindo uma relação
objetiva, de distanciamento entre o seu interlocutor e a personagem, ou aquilo que
ela representa. Da mesma forma, ao posicionar a câmara em ângulo reto, que
coincida com a linha dos olhos da personagem, o autor pode estar suscitando uma
relação de equivalência (MARTIN, 2003). Tais mecanismos devem ser observados
pelo professor ao proceder a uma análise de qualquer produção cinematográfica,
75
pois são elementos fundamentais da linguagem audiovisual, reveladores de
intencionalidades, lembra Napolitano (2003).
Associado à imagem, o áudio vem ganhando cada vez mais importância na
linguagem cinematográfica. É impossível falar de certos filmes sem mencionar sua
trilha sonora; como é caso da música tema criada por Bernard Hermann
especialmente para a cena das facadas no chuveiro em Psicose, de Alfred
Hitchcock; ou Cavalgada das Valquírias, de Wagner, em Apocalipse Now. Hoje em
dia, assistir a um filme sem som faz uma diferença impressionante, o efeito de
sentido produzido na interação é outro. Esse recurso é tão responsável quanto os
demais descritos até agora para a produção de sentido nos enunciados
audiovisuais. A linguagem cinematográfica dispõe de três tipos de áudio: os efeitos
sonoros, a música e o diálogo.
O primeiro refere-se a todo tipo de som que realmente existe na cena. É o
caso de um personagem que, caminhando pela floresta, produz o barulho do pisar
nas folhas secas, ou o ruído da porta se abrindo, ou seja, todo ruído natural que
deveria estar na cena é considerado efeito sonoro. Já a música é aquele som que
não é do ambiente, pode ficar como pano de fundo e tem como objetivo ajudar na
compreensão do telespectador e produzir sensações e emoções que o diretor julgar
relevantes para transmitir sua mensagem. E por fim os diálogos, que são os sons da
conversa ou das falas das personagens (MARTIN, 2003). É interessante destacar
que, mesmo no cinema mudo, o papel do áudio (efeitos sonoros e musicais) é
extremamente importante para captar o sentido e as emoções dos personagens; é
mudo porque não há o som dos diálogos, mas com a música inserida na edição é
possível transferir ao telespectador toda a emoção que o diretor deseja transmitir
com a cena.
O uso adequado desses recursos confere aos enunciados audiovisuais uma
dimensão profissional, com ricas possibilidades discursivas. E, graças a esses
avanços, os filmes, hoje em dia, transmitem aos telespectadores um efeito de
realidade muito forte. Assim, um filme, ao ser assistido, mesmo sabendo que se trata
de ficção, produz uma sensação efetiva, verdadeira. E ao ver um filme no cinema,
na sala escura, esse efeito de realidade se potencializa, pois o telespectador está
totalmente envolvido naquele ambiente do cinema. E para que esse processo
aconteça, estabelece-se, de forma tácita, um pacto de realidade entre o
telespectador e o filme. E isso precisa ser levado em conta pelo professor porque faz
76
parte da linguagem cinematográfica. Dessa forma, o aluno/telespectador, atento a
esses mecanismos linguísticos do cinema, se constituirá bastante capaz para
realizar uma leitura mais crítica e satisfatória do enunciado concreto (XAVIER,
2003).
Portanto, os recursos de filmagem, ou seja, a forma, estão atrelados ao
conteúdo ideológico do filme, e o professor deve estar atento a isso porque interfere
no produto final. Em filmes que não se exige muito do expectador, os recursos são
parcos e modestos, os enquadramentos utilizados não vão além dos tradicionais já
comentados nesta seção, o diretor evita utilizar recursos que exijam uma
familiaridade maior com a linguagem cinematográfica. Isso acontece com o cinema
comercial, em que os produtores optam por poucos movimentos de câmera, bem
como os planos básicos: o médio e o close up, no máximo o plano conjunto. Já no
cinema autoral, menos compromissado com o mercado e mais crítico, os
movimentos de câmera são mais livres, exigindo um pouco mais do seu público, o
que inclui a fotografia, a textura, as cores, a intensidade da luz etc.
Quanto à escolha do cenário, estúdio ou locações externas, a colocação dos
objetos nas cenas, não se trata meramente de escolhas estéticas, tem a ver com o
conteúdo ideológico. Por exemplo, o neorrealismo italiano, cuja característica
principal era o uso de elementos da realidade em produções ficcionais, a fim de
representar a realidade social e econômica do final da segunda guerra mundial, se
recusava a fazer filmes em estúdios porque, como parte dessa busca de expor a
realidade e fazer a crítica social, considerava importante realizar suas filmagens nas
ruas, com a luz natural (idem). Um bom exemplo disso é o filme Ladrões de bicicleta
(1948), de Vittorio de Sica, o qual foi filmado, na sua maioria, nas ruas de Roma, na
Itália. O diretor pretendia mostrar o homem do povo, sua escolha tinha relação com
seu princípio ideológico. A sua preferência por atores amadores levou seu público a
crer que se tratava realmente de pessoas comuns, vivendo uma vida real e sofrida.
Sua intenção era expor o aspecto cruel da Roma não romantizada pelos livros,
conforme demonstrado nas figuras abaixo.
77
Vidas Secas (SANTOS, 1963) Disponível em: https://www.youtube.com/results?search_query=vidas+secas.
E em Vidas Secas (1963), Nelson Pereira, com o objetivo de denunciar o
sofrimento do sertanejo, provocar um sentimento, expor um ponto de vista, explorou
acentuadamente o recurso de contraste da luz natural, principalmente no interior das
casas. Com a abertura demasiada do diafragma, ele provocava a entrada excessiva
da luz, o que na linguagem do cinema é chamado de estouro. Com isso, conseguia
transmitir de forma realística a força opressora do sol na região do semiárido, a fim
de incomodar o seu interlocutor e fazê-lo sentir minimamente o que significa
conviver com o sol o dia inteiro na face. Ele utilizou um recurso expressivo da
linguagem cinematográfica para atingir seu objetivo, conforme pode ser observado
nas figuras abaixo. Já num filme que atendesse à exigência do mercado,
provavelmente teria uma fotografia mais arranjada, menos agressiva, mais fácil de
visualizar.
Vidas Secas (SANTOS, 1963)
Disponível em: https://www.youtube.com/results?search_query=vidas+secas.
78
Dessa forma, o professor que pretende fazer uso de filmes em sala de aula
não pode perder de vista que uma produção cinematográfica, seja ficção ou
documentário, é sempre um produto sociocultural, resultado de um conjunto de
escolhas, recortes, perspectivas, e que é fruto de um trabalho coletivo, no qual um
leque de profissionais com interesses comerciais, ideológicos e estéticos atuam
decisivamente. Portanto, essas inclinações e propensões pertinentes ao texto fílmico
precisam ser levadas em conta, analisadas e compreendidas pelo educador.
Então, o espírito maior do trabalho com filmes em sala de aula vai além da
decodificação da linguagem, é preciso entender os movimentos dessas escolhas,
problematizar suas prováveis motivações. Nessa perspectiva, como nos sugere
Bakhtin (1998), não podemos ver os filmes, mesmo os de ficção, descolados da
realidade. Embora o cineasta tenha a licença poética para criar, não podemos
desconsiderar o fato de que ele está inserido numa sociedade, numa cultura e num
contexto histórico, dialogando com interesses pessoais, coletivos, políticos e
econômicos.
Portanto, a liberdade de criação artística não implica necessariamente
desconexão com a realidade na qual os produtores estão inseridos. Quaisquer que
sejam as produções, serão sempre frutos de ideologias, valores e visões de mundo,
como é o caso dos enlatados americanos, os quais são produtos de uma indústria
atrelada à forte ideologia hegemônica capitalista. Portanto o professor não deve ficar
preso à intencionalidade do autor, é preciso que o analista aprenda a olhar para
dentro do filme, na dinâmica da narrativa interna, nas suas contradições e valores,
para além daquilo que se fala sobre o filme e para além daquilo que o diretor
tencionava para o filme. Pois o enunciado é dinâmico, histórico, ele não é preso ao
sujeito que o emitiu. Trata-se do:
Diálogo inconcluso, infinito e inacabável, no qual nenhum sentido morre. Não há uma palavra que seja primeira ou a última, e não há limites para o contexto dialógico (este se perde num passado ilimitado e num futuro ilimitado) (...). Em cada um dos pontos do diálogo que se desenrola, existe uma multiplicidade inumerável, ilimitada de sentidos esquecidos, porém, num determinado ponto, no desenrolar do diálogo, ao sabor de sua evolução, eles serão rememorados e renascerão numa forma renovada (num contexto novo). Não há nada morto de maneira absoluta. Todo sentido festejará um dia seu renascimento (BAKHTIN, 2003, p. 413-414).
79
A partir do momento em que o enunciado é proferido, passa a ser de
responsabilidade da história, passa a compor o grande diálogo, numa dinâmica
própria e independente dos seus interlocutores.
80
CAPÍTULO III
ANÁLISE DOS DADOS
Este capítulo busca responder, mais detalhadamente, as perguntas desta
pesquisa. A mais importante para este trabalho trata da concepção de linguagem
adotada pelo professor de Língua Portuguesa na sua prática com curta-metragem. A
segunda refere-se às dificuldades encontradas pelos docentes ao lidarem com essa
ferramenta. E a última, não menos importante, traz à tona as motivações que levam
o professor a valer-se de um texto audiovisual em sala de aula.
3.1 Fundamentos Metodológicos
Para procedermos com nossas análises, tanto dos relatos, quanto dos textos
fílmicos, quando isto se fez necessário ao longo do trabalho, utilizamos o
procedimento teórico-analítico do Círculo de Bakhtin, conhecido por método
sociológico, a partir do qual, Brait (2006) desenvolveu a Análise Dialógica do
Discurso. Assim, calçado nos fundamentos sociológicos, apresentaremos o método
utilizado em nossas análises.
Ao nos depararmos com a tarefa de analisar um enunciado de natureza
verbo-visual, da esfera artística, surge o desafio de decidir qual o melhor método a
ser aplicado, já que as metodologias de análise de texto, disponibilizadas pela
linguística, atendem a critérios específicos de determinada semiose. No caso do
texto fílmico, essa preocupação se majora, pois se nos impõe a necessidade de
estabelecer uma interação discursiva, mediante sons, imagens, cores e palavras, os
quais também se constituem socialmente enquanto signos ideológicos.
E essa dimensão histórico-social, presente em todo enunciado, qual seja sua
natureza semiótica, deve nortear todo o processo de análise. Assim, adotamos, nas
análises dos textos cinematográficos, o Método Sociológico proposto por
Bakhtin/Volochínov (1992, p. 119), porque entendemos ser o procedimento mais
adequado para analisar enunciados na perspectiva de gêneros discursivos.
Esse modelo sugere três passos que o analista deve observar em seu
trabalho de investigação. No primeiro, o pesquisador deve refletir sobre o conteúdo
temático, sempre conectado à situação de produção; em seguida, definir, ou
81
reconhecer o gênero quanto a sua estrutura composicional; e, por fim, analisar o
estilo, que no caso do texto fílmico, é representado pela maneira com que a
linguagem cinematográfica e seus códigos são empregados pelo diretor na
estruturação do enunciado. Esse arranjo da linguagem realizado pelo autor é
tomado como pistas pelo analista a fim de alcançar o conteúdo temático do texto.
Brait (2006), ao refletir sobre essa maneira adotada pelos teóricos russos de
estudar os enunciados concretos, apresenta a Análise Dialógica do Discurso (ADD).
Essa teoria, baseada no método sociológico do Círculo de Bakhtin, propõe a
indissolubilidade entre linguagem, história e sujeitos, oferecendo elementos teórico-
metodológicos que possibilitam ao analista uma abordagem sociocultural em suas
análises. Isso porque tal teoria concebe o discurso como pertencente a uma rede
dialógica de relações, da qual os sujeitos da enunciação fazem parte, e na qual são
impingidas suas marcas valorativas (idem). Assim, a ADD vai se ocupar daquilo que
extrapola os limites da superfície textual, ou seja, as relações dialógicas do
enunciado, fronteiras não ultrapassadas por outros métodos de análise discursiva.
Dessa forma, compreendemos que os enunciados verbo-visuais, sobretudo o
gênero curta-metragem, exigem esse percurso teórico-metodológico proposto pelo
Círculo e desdobrado pelos estudiosos do discurso de perspectiva enunciativo-
discursiva. Pois favorece a compreensão, a interpretação e, por conseguinte, a
responsividade aos enunciados midiáticos, os quais permeiam as práticas sociais,
das quais os leitores participam por meio da linguagem. Assim, em que pese este
trabalho não ter como objetivo principal analisar o curta-metragem, e sim o uso
pedagógico que se faz dele, procuramos aplicar os conceitos teórico-metodológicos
da ADD na análise do gênero, quando se fez necessário.
Tal método, burilado por Brait, teve sua arquitetônica construída pelo Círculo
de Bakhtin (1992; 2003) tendo como horizonte inspirador os gêneros do discurso.
Dessa forma, adotando como base a concepção dialógica presente na teoria de
gênero discursivo, entendemos ser este o método mais adequado para fazer análise
discursiva. No caso do nosso objeto de estudo, é perfeitamente aplicável tal método,
porque, como visto no primeiro capítulo, os curtas-metragens são enunciados típicos
que apresentam certos traços de regularidade em sua forma composicional, como a
duração, estrutura narrativa, bem como conteúdos temáticos voltados para a crítica
social. Mas essa regularidade, segundo Rojo (2005), é fruto não apenas de formas
fixas da linguagem, e sim, principalmente, da periodicidade e similaridades nas
82
relações sociais dentro de uma esfera comunicacional específica. Dito de outra
forma, tais características, relativamente estáveis, foram sendo adquiridas,
historicamente, a partir das atividades do ser humano em determinado contexto
social de interação ininterrupta.
Tal postura dialógica frente ao nosso objeto de pesquisa inspira, portanto,
uma metodologia sociológica para analisar os textos verbo-visuais. Assim sendo, em
consonância aos preceitos de Bakhtin/Volochinov (1992) e Brait (2006), buscamos
investigar e analisar o gênero curta-metragem a partir de sua dimensão histórica,
entendendo que se trata de tipos históricos de enunciados, portanto de natureza
social, discursiva e dialógica. Dessa forma, ao proceder nossas análises, levamos
em conta a esfera social pela qual os curtas circulam, suas condições de produção,
recepção e interação; a posição discursiva assumida pelo autor no momento da
enunciação, bem como sua valoração com relação ao objeto discursivo e seus
interlocutores.
E, completando o método sociológico, empregado na análise dialógica do
discurso, além desses aspectos relevantes na construção social do gênero, levamos
também em consideração o conteúdo temático, os estilos composicionais, bem
como sua arquitetônica ético-estética, dentre outros fatores enunciativo-discursivos
característicos do gênero curta-metragem, como sua multimodalidade discursiva e
os mecanismos utilizados na construção dos sentidos, próprios da linguagem
audiovisual.
3.2 Procedimentos metodológicos
O primeiro passo para o desenvolvimento desta pesquisa foi a delimitação do
corpus, a fim de selecionarmos os relatos para análise. O recorte inicial se deu com
a escolha do primeiro DVD, de uma sequência de três, da coleção Curta na Escola.
Nesse compêndio há oito curtas-metragens, dos quais seis possuem indicações
metodológicas para utilização em aulas de Língua Portuguesa, dados utilizados
como critério de triagem. O próximo parâmetro de escolha, e um dos mais
importantes, refere-se à origem dos relatos. Inicialmente, pretendíamos analisar,
para cada filme, um relato elaborado por professores que atuassem em escolas
públicas do Estado de Mato Grosso, tanto da zona urbana quanto da zona rural.
83
No entanto, constatamos que há apenas três relatos que atendem a esse
critério, embora 12 escolas de Mato Grosso tivessem recebido o material
gratuitamente, dentre elas, a Escola Liceu Cuiabano Maria de Arruda Müller, situada
na capital, e a Escola Licínio Monteiro da Silva, em Várzea Grande. Tínhamos a
intenção de entrevistar os professores que tivessem feito uso do recurso. Foi com
essa finalidade que procuramos as coordenações pedagógicas das duas escolas,
mas não obtivemos sucesso, pois os coordenadores e professores declararam
desconhecer tal material. Diante dessa impossibilidade, adotamos um novo critério,
baseado, primeiramente, na quantidade de relatos produzidos para cada curta-
metragem do DVD escolhido da coleção. Decidimos, então, selecionar os cinco
filmes com o maior número de relatos para compor nosso corpus.
A seleção do relato analisado de cada produção seguiu dois critérios. Primeiro
ele precisava ser oriundo da região representada pelo curta, depois, dentre os que
atenderam a esse requisito, o escolhido foi definido pelo número de acessos que ele
obteve pelos professores internautas que, de alguma maneira, foram beneficiados
pela experiência relatada. Esse último critério foi baseado no seguinte pressuposto:
diante de duas sequências didáticas, nas quais podemos buscar referências
metodológicas, sendo que a primeira apresenta dez acessos, ao passo que a
segunda apresenta mil, naturalmente a segunda se torna um objeto de análise mais
estimulante, passível de se tornar uma investigação mais profícua do que se
adotarmos como matéria de pesquisa o primeiro relato.
Além disso, quanto maior o número de acessos, maior a representatividade
daquela amostra, pois utilizar o material publicado no site significa, em última
instância, uma adesão à concepção de linguagem adotada pelo autor do relato.
Finalmente, adotaremos também como critério de seleção a origem dos relatos.
Daremos preferências aos àqueles provenientes de escola pública e nível de ensino,
prioritariamente, médio. Estabelecemos então o corpus de nossa pesquisa. Os
curtas-metragens selecionados estão relacionados na tabela abaixo, que traz na
segunda coluna o título da obra, bem como seu diretor e o ano; na terceira coluna
está a quantidade de relatos de cada filme; e em seguida vem a região que o filme
vai representar.
84
Nº OBRA / DIR / ANO Nº REL
RE- GIÃO
1 O Lobisomem e o Coronel / Elvis K. Figueiredo / 2002
27
Nordeste
2 Velha História / Cláudia Jouvin / 2004 33 Centro-oeste
3 Ilha das Flores / Jorge Furtado / 1989 197
Sul
4 Negócio Fechado / Rodrigo Costa / 2001 14
Norte
5 Xadrez das Cores / Marco Schiavon / 2004 147 Sudeste
Quadro 2: Relação dos Curtas utilizados nos relatos por região.
E, finalmente, o corpus da pesquisa, os relatos selecionados, bem como os
filmes a eles relacionados, estão listados na tabela abaixo, que traz as seguintes
informações: na primeira coluna estão os títulos dos relatos fornecidos pelos
professores/autores, seguido dos seus nomes completos e, na sequência, a escola e
a região que representam, bem como a localidade onde lecionam; na penúltima
coluna encontram-se os curtas-metragens utilizados e, por último, o número de
acessos de cada relato, bem como seu valor percentual, considerando que o
número total de acessos, incluindo os cinco relatos selecionados para análise, é de
1.687. Importante frisar que todas as escolas são da rede pública e, com exceção da
região centro-oeste, que é municipal e da zona rural, todas as outras são estaduais
e estão localizadas na zona urbana.
Título do relato
Professor autor
Escola / região / origem
Curta-metragem utilizado
Número de Acessos
Confronto de poderes
Cleide Brasil Rodrigues
Escola Senador Petrônio Portela / Nordeste / Recife - PE
O Lobisomem e o Coronel
372
O homem e o peixinho
Inez Rosa Herrmann
EM Boa Esperança / C. Oeste / S. J. Q. Marcos - MT
Velha História 187
Uma verdade desconhecida
Antônio Evaldo Jesus Velho
E E E M Melvin Jones / Sul / Caxias do Sul - RS /
Ilha das Flores 603
Minha Língua é minha Pátria
Kelba Assumpção Lima
EEEFM Palmira Gabriel / Norte /Belém - PA /
Negócio Fechado
58
Quem vale mais
Marileia Soares dos Santos
C.E. Almirante Tamandaré / Sudeste / Niterói - RJ /
Xadrez das Cores
467
Quadro 3: Dados dos relatos e de seus autores
85
Todos os relatos21 encontram-se em um formulário específico, que traz o título
do relato fornecido pelo professor, o filme utilizado, a data da experiência, o nome do
professor, a localidade e a rede da qual faz parte a sua escola, o nível de ensino, a
faixa-etária e o número de alunos da turma, assim como os temas transversais
abordados na aula. Em seguida, no mesmo formulário, o professor apresenta os
objetivos do uso do curta-metragem escolhido e, logo abaixo, vem a seção na qual o
docente relata uma espécie de sequência didática utilizada por ele antes, durante e
após a exibição do filme, isto é, os procedimentos e estratégias pedagógicas
utilizados para atingir os objetivos relacionados na seção anterior. É aí que ele relata
com detalhes as atividades desenvolvidas em cada etapa da exibição fílmica, como
ele as sistematizou, de modo a ganhar a adesão dos alunos. Por fim, na última
seção, o professor relata o resultado de sua experiência, falando sobre os aspectos
considerados fortes e os que poderiam melhorar, bem como a reação dos alunos.
PETROBRÁS. Projeto Curta na Escola. Disponível em: www.curtanaescola.org.br/
3.3 Análise dos relatos
Superada a fase de catalogação dos dados, procedemos à análise
propriamente. Utilizamos o seguinte procedimento: primeiro trouxemos algumas
21
Disponibilizaremos os cinco relatos integralmente na seção de anexos.
86
informações que julgamos relevantes sobre o curta-metragem, tais como condições
de produção, o enredo, prêmios recebidos, temáticas abordadas, o número de
visualizações no site, etc.; em seguida, apresentamos um pequeno resumo analítico
dos objetivos relatados pelo professor/autor, que, de certo modo, já nos responde,
em parte, uma de nossas questões de pesquisa, qual seja as motivações mais
recorrentes que levam o professor de Língua Portuguesa a se valer de recursos
audiovisuais em sala. No entanto, essa questão é respondida de forma mais
abrangente no final da análise, quando das considerações finais.
Em seguida, partimos para análise da segunda seção do relato, na qual se
encontram as abordagens, as estratégias, os argumentos e as atividades aplicadas
pelo professor ao fazer uso do curta-metragem. Nesta fase, utilizando-se dos
conceitos bakhtinianos inventariados no capítulo II desta dissertação, tais como
dialogismo, vozes e interdiscursividade, buscamos identificar a concepção de
linguagem e de cinema presente nos relatos, bem como mapear as estratégias
utilizadas pelos professores/autores, a fim de revelar posturas mais dialógicas ou
menos dialógicas; mais enunciativas, ou menos enunciativas; mais polifônicas, ou
menos polifônicas, refletidas nas atividades propostas de leitura e escrita. E, no final,
após a análise de todos os cinco relatos, procuramos fornecer respostas integradas
às nossas perguntas de pesquisa.
3.4 O Lobisomem e o Coronel
Esse curta, dirigido e roteirizado por Ítalo Cajueiro (2002), é o resultado da
adaptação de uma história, com autoria desconhecida, contada originalmente em
forma de Literatura de Cordel, tradicional em algumas regiões do Nordeste. O filme
começa com um violeiro cego que, em forma de repente, relata a história de um
poderoso, temido e orgulhoso coronel chamado Benedito, que possuía uma rica
fazenda naquela região. Entre os seus funcionários, havia um peão muito pobre
conhecido por João, apaixonado por Maria, filha do patrão. Em noite de lua cheia, o
pobre homem, acostumado a passar fome, transformava-se em lobisomem. E,
decidido a ir à desforra, devorou Belezura, a vaca preferida do coronel. Sem
encontrar culpado, o fazendeiro, enfezado, resolveu castigar João, dando-lhe uma
surra com chicote. Quatro luas depois, os homens de Benedito, armados com facas
e espingardas esperavam o lobo temido. O grito de Maria anunciava sua presença
87
na casa grande da fazenda, que de pronto fora cercada pelos capangas do
fazendeiro, os quais, um a um, iam sendo dissipados. Mas João Vaqueiro havia
poupado sua amada Maria, com quem se casou e teve um filho, o qual nasceu cego
e com rabo de cachorro, denunciando sua verdadeira identidade. O neto de
Benedito, na verdade, o narrador dessa história, vive pela cidade, dedilhando seu
violão, cantando sempre o mesmo caso.
Gostaríamos de enfatizar, antes de iniciarmos a análise do relato selecionado,
a força expressiva do cordel. Talvez o leitor tenha percebido que, de forma dialógica
e intuitiva, eivados pela musicalidade presente no curta, utilizamos no parágrafo
anterior períodos curtos e regulares, que lembram um pouco os versos metrificados,
especialmente as sextilhas, do Cordel; além de algumas rimas, ora consoantes, ora
toantes, embora, no caso da Literatura de Cordel, seja tradição o uso de rimas
consoantes. Tais escolhas acabaram por proporcionar ao interlocutor uma certa
cadência na leitura.
Sem a presunção de impor qualquer caráter artístico a este trabalho,
queremos, apenas, ressaltar o potencial dialógico e alteritário do gênero; aspectos,
inclusive, explorados pela professora/autora do relato a ser analisado. Bakhtin
(2010) nos lembra, por meio de sua reflexão em torno da arquitetônica do enunciado
artístico, que tão importante quanto o que se diz é como se diz, pois ambos os
aspectos serão igualmente determinantes na construção do sentido. Consoante a
isso, as Matrizes de Referência para o ENEM (BRASIL, 2009), com relação às
linguagens, códigos e suas tecnologias, no que se refere à competência de área
número cinco, habilidades 16 e 17, estabelecidas pelo Ministério da Educação,
buscam identificar no aluno sua competência em “relacionar informações sobre
concepções artísticas e procedimentos de construção do texto artístico, bem como a
presença de valores sociais e humanos no patrimônio artístico nacional”.
Essa preocupação pode ser contemplada durante a análise do relato em
questão, cuja autora é a professora Cleide Brasil Rodrigues. Ela leciona Língua
Portuguesa na Escola Estadual Senador Petrônio Portela, na cidade de Recife-PE. A
turma com a qual ela empregou o curta O Lobisomem e o Coronel, em 2010, era
constituída por 35 alunos da Educação de Jovens e Adultos, com faixa etária acima
dos 18 anos. O seu relato intitula-se Confronto de Poderes, a respeito do qual
procederemos à análise a seguir.
88
Logo de início, ainda no título, a professora/autora nos fornece indícios de sua
intenção comunicativa em revelar possíveis resquícios de um conflito entre o
sertanejo e o coronelismo; realidade comum em algumas regiões do nordeste,
principalmente durante o período conhecido como República Velha (1889-1930),
quando as relações sociais eram dominadas pelos coronéis, sujeitos sociais
detentores do poder político e econômico. Ela tenciona, por meio da alegoria22 O
Coronel e o Lobisomem, denunciar que ainda persiste, em algumas regiões do país,
esse modelo patriarcal e autoritário nas relações sociais. Esse paradigma relacional
de mando e desmando parece ter se cristalizado em parte de nossa cultura,
sobretudo pelo interior do Brasil, como pode ser constatado nos objetivos
apresentados pela docente:
Conhecer a realidade do povo nordestino e o poder da oligarquia (latifundiário). Retratar a forma de tratamento entre rico x pobre, a vivência no mundo rural, fazer denúncias, mostrar os costumes dentro de uma alegria e singeleza de um povo com uma cultura rica e variada, fazendo o link com o contexto em que vivem: uma comunidade carente e com múltiplos problemas sobre ocupação e poder de seu próprio espaço enquanto cidadão, sem porém deixar de lado as suas raízes culturais.
Tais objetivos levaram a professora a elaborar uma proposta de leitura do
texto fílmico que levasse seus alunos a recuperar situações do seu cotidiano, como
questões de ocupação e poder de seu próprio espaço enquanto cidadãos, para
depois (re)engendrá-las esteticamente. Para tanto, a autora, antes mesmo da
exibição do filme, promovem um debate sobre os conflitos presentes na relação
patrão e empregado, expondo o assunto por meio de alguns gêneros escritos,
colocando em evidência a xilografia presente nos livretos de literatura de cordel e as
marcas características de cada gênero, conforme sequência didática relatada por
ela:
PC- Preparação do espaço pelos alunos para veiculação do filme. Breve relato sobre o enredo do filme, com questionamentos sobre confronto de poderes - padrão x empregado. Exposição sobre diversos tipos de impressão, ressaltando a xilogravura nos livretos de literatura de cordel.
22
Adotamos aqui o conceito de alegoria cunhado por Moisés Massaud (1974, p. 15), o qual a toma como um discurso que carrega uma segunda conotação – um processo mental que dá concretude em nossa imaginação a conceitos abstratos.
89
Essa estratégia de problematizar o assunto do filme antes de exibi-lo, por
meio de leituras de outros gêneros - da esfera jornalística, por exemplo - leva o
aluno a situar-se em relação ao contexto social da mensagem enunciada no texto
fílmico. Além disso, tais leituras constituem importante fonte de dados para subsidiar
reflexões acerca dos sentidos construídos sócio-historicamente em torno do objeto
em questão.
Tal tática adotada pela professora atende ao preceito assinalado pelos PCN, o
qual ressalta que o desenvolvimento de qualquer capacidade humana, seja ela
comunicativa ou não, baseia-se sempre em aspectos volitivos. Isso significa que o
aluno precisa ter vontade, e esse processo deve ser estimulado ou de forma natural,
assim como ocorre em outras esferas em que ele atua. Dizendo de outro modo, o
aluno não aprende a escrever para se interessar pelos assuntos da comunidade,
mas precisa, primordialmente, se interessar pelas questões que os cercam para
apropriar-se de mecanismos de linguagem adequados, sejam eles verbais ou não
verbais, para se expressar acerca dos temas nos quais está inserido.
Ao lançar mão desse expediente metodológico, o qual explora as condições
históricas de produção do enunciado, a professora Rodrigues amplia em seus
alunos a capacidade de interpretação, pois estabelece uma rede dialógica discursiva
através da qual eles amplificam suas percepções de mundo, tornando-se capazes
de compreender criticamente sua própria história de vida, marcada pelos conflitos
com os senhores de terra e patrões com resquícios de práticas coronelistas. Como
pode ser conferido neste trecho do relato da professora:
Exibição do filme, orientando-os para observarem os diversos momentos da história. Realizar pesquisa no ambiente escolar e comunidade local sobre a literatura de cordel. Coletar imagens que reporte ao enredo do filme para elaboração de painel. Exposição do painel no ambiente escolar com reescritura do texto em literatura de cordel.
Abre-se, então, a partir desse engendramento discursivo, a oportunidade para
discutir questões histórico-culturais e socioeconômicas, como o momento pelo qual
passa o país, a condição do trabalhador rural, as relações de trabalho no campo,
etc. Com efeito, é o interesse pela vida que produzirá motivação para escrever; o
fato de saber escrever não motiva o cidadão a se interessar pela vida. Nenhum autor
produz uma reflexão acerca da vida porque domina o código da escrita, mas busca
90
conhecimento linguístico para elaborar reflexões sobre a vida, pois a escrita constitui
um meio para tal. Inverter essa ordem natural conduz o aluno ao fracasso escolar.
Essa aproximação entre o texto e a vida do aluno o leva à não-indiferença
para com o outro e para consigo (PONZIO, 2008), pois o impele a agir do seu lugar,
que é único, mesmo que o faça por meio do discurso interior (BAKHTIN, 2010). Isso
acontece porque o aluno é levado a situar-se no mundo, uma vez que o processo
cognitivo é interpelado pelos aspectos volitivo-afetivo, levando em conta suas
particularidades e suas memórias. Esse viés enunciativo-discursivo presente no
curta, que envolve emotivamente o espectador na narrativa, o torna não indiferente
diante de uma história que ele percebe não estar apenas nas telas. E a não-
indiferença perante as questões abordadas no texto fílmico, também presentes na
vida do leitor, em sua comunidade, ocorrerá na mesma proporção em que o
interesse por elas for estimulado pelo professor.
Outro aspecto explorado pela autora do relato tem a ver com a
multimodalidade da linguagem presente no enunciado o Lobisomem e o Coronel.
Segundo Kress e van Leeuwen (2006), o texto que apresenta mais de uma semiose
(verbal, visual, sonoro etc.) exige de seu leitor a necessidade de articular todos os
modos semióticos nele apresentados. É impossível interpretá-lo se focalizar
exclusivamente na linguagem verbal, posto que esta é apenas um dos vários modos
representativos utilizados em textos fílmicos. Toda imagem é passível de
interpretação e, consequentemente, de implicações discursivas. Essa perspectiva
analítica deve ser bem direcionada pelo professor, o qual possui a responsabilidade
de conduzir o raciocínio e as conclusões dos alunos acerca da leitura do texto
fílmico. Atenta a isso, a professora/autora encaminhou as atividades chamando a
atenção dos alunos para o modo como as imagens são apresentadas:
PC- ... ressaltando a xilogravura pela expressividade de seus traços na realidade de expressão. Exibição do filme, orientando-os para observarem os diversos ambientes e momentos da história e como os personagens são apresentados como uma folha de papel. Coletar imagens que reporte ao enredo do filme para elaboração de painel. Observar As sequências das imagens feito folhas de papel, as expressões em forma humana real com a mistura de desenhos.
Quando ela ressalta a forma como as personagens são mostradas em forma
de papel, evidencia o diálogo que o texto em questão estabelece com a forma
discursiva do Cordel, buscando uma interação entre o leitor desse tipo de literatura
91
com a sétima arte. Ao enfatizar a intertextualidade entre os dois gêneros, a
professora sugere aos alunos uma incursão mais profunda no texto, propondo uma
participação mais direta, levando-os à confrontação com outros textos para, a partir
daí, estabelecer uma relação entre as ideias apresentadas, fazendo-os perceber as
singularidades das estruturas e finalidades enunciativas de cada gênero. Conforme
destaque abaixo:
(...) Exposição sobre diversos tipos de impressão. E como os personagens são apresentados como uma folha de papel. ressaltando a xilogravura pela expressividade de seus traços na realidade de expressão.
Bakhtin (1992) alerta para o fato de que a escolha dos signos
(independentemente do sistema semiótico do qual emergem) é sempre ideológica,
pois trazem consigo marcas políticas e sociais do enunciador, fato que situa a
linguagem entre os mecanismos de poder presentes nas interações entre grupos
sociais. Consoante a isso, a professora Rodrigues chama a atenção dos seus alunos
para mostrar como as imagens são manipuladas discursivamente no filme. Ela
conduz o olhar de seus alunos para a antítese presente no filme, cuja função é
ressaltar a inferioridade de João Vaqueiro ante a opulência ostentada por Benedito.
Numa tomada única, o diretor mostra a riqueza e o poder do patrão por meio da
luxuosa mansão, um ambiente agradável e animais de linhagem nobre e, na
sequência, numa casa em ruínas e inóspita aparecem o empregado e uma cadela
com sinas de inanição, conforme figuras abaixo:
O Lobisomem e o Coronel (FIGUEIREDO, 2002) Disponível em: http://portacurtas.org.br/filme/?name=o_lobisomem_e_o_coronel.
O efeito produzido pelo contraste entre as duas imagens, além de
transparecer a supremacia do patrão, resgata outras imagens no leitor, como a
92
precariedade em que vivem alguns trabalhadores, residindo em favelas sem a
menor infraestrutura, convivendo, lado-a-lado, com a suntuosidade de prédios
luxuosos habitados pelos patrões. A professora Rodrigues leva os alunos a perceber
como esses extremos entre ricos e pobres são explorados no texto fílmico, o qual,
por meio de conexões culturais e ideológicas, aciona suas memórias discursivas,
resgatando, de forma interdiscursiva, acontecimentos extrínsecos ao texto, os quais
concorrem para a produção de sentido. Diante disso, resta-nos ressaltar que a
linguagem cinematográfica deve ser devidamente explorada, para que as
possibilidades interpretativas possam aparecer e o potencial do texto fílmico
enquanto recurso pedagógico tenha sentido.
3.5 Velha História
O curta-metragem Velha História, inspirado no conto homônimo de Mário
Quintana, foi produzido em 2004, por Claudia Jouvin, utilizando-se de uma técnica
muito empregada pelos cineastas conhecida como Stop Motion23. A narrativa
mostra, de forma lúdica, a relação de amizade entre um pescador e um peixinho, os
quais andavam sempre juntos e felizes, nos mais diversos lugares. Certo dia, o
homem, convencido da sua atitude inadequada, se sentindo egoísta por privar o
animal de seu convívio familiar, resolve devolvê-lo ao rio. No entanto, ao se
reintegrar ao seu habitat natural, o peixe morre afogado no redemoinho formado na
ocasião em que o pescador o solta na água. O filme ressalta, por meio das imagens,
as características atitudinais humanas ou de um animal de estimação, atribuídas ao
peixe, conforme figuras abaixo:
Velha História (JOUVIN, 2004)
Disponível em: http://portacurtas.org.br/filme/?name=velha_historia
23
Stop Motion (que poderia ser traduzido como “movimento parado”) é uma técnica que utiliza a disposição sequencial de fotografias diferentes de um mesmo objeto inanimado para simular o seu movimento. Essas fotografias são chamadas de quadros e normalmente são tiradas de um mesmo ponto, com o objeto sofrendo uma leve mudança de lugar, é isso que dá a ideia de movimento. Fonte: http://www.tecmundo.com.br/player-de-video/2247-o-que-e-stop-motion-.htm#ixzz2ybThqRyL. Acesso em: 11/02/2014.
93
O relato selecionado para análise, intitulado A linguagem (verbal e não-
verbal): instrumento de cidadania, foi elaborado por Nilia Santana Costa Brito,
professora de Língua Portuguesa na Escola Estadual Tancredo de Almeida Neves,
situada no município de São Félix do Araguaia-MT. Ela fez uso pedagógico do curta-
metragem Velha História em uma turma do ensino médio, com faixa etária entre 14 e
18 anos, em outubro de 2010. A princípio, tendo como base a escolha do título do
relato, bem como os objetivos apresentados pela autora, podemos afirmar que a
mesma adota uma concepção dialógica de linguagem, uma vez que conduz seus
alunos num processo de interpretação que leva em conta a interação entre
linguagens, textos, gêneros, suportes e os sujeitos da comunicação. Atitude
necessária para que se estabeleça o sentido do texto, conforme descrito em seus
objetivos:
Possibilitar que os alunos adquiram conhecimentos e habilidades, para que desenvolvam hábitos de leitura e escrita/interpretação através do uso das linguagens verbal e não verbal buscando desenvolver sua expressividade, construírem sentidos e informações a partir da interação que estabelece com o mundo. Analisar, comparar e distinguir diferentes linguagens; Utilizar-se das tecnologias da comunicação e informação.
Na sequência didática, Nilia Santana apresenta um roteiro coerente de leitura
e reescrita, além de atividades que contribuem para atingir seus objetivos. A
proposta de assistir, inicialmente, ao vídeo sem áudio fez com que os alunos
percebessem que o sentido não está apenas nas palavras, evidenciando, assim, a
importância do extraverbal para a compreensão do todo. Ao solicitar que cada um
produzisse uma narrativa a partir dessa primeira leitura e expusesse o seu texto na
classe, ela ressalta o contexto situacional como sendo um dos elementos
constitutivos do texto, bem como aponta para a multiplicidade de leituras possíveis a
partir do mesmo enunciado, levando seus alunos a refletir acerca dos motivos por
que diferentes situações produzem diferentes sentidos de uma mesma expressão.
Enfim, ela demonstra, de forma contundente, como a situação de produção integra-
se ao enunciado como elemento indispensável à sua constituição semântica
(BAKHTIN, 2003), conforme relato da professora:
Este trabalho é uma das ações do projeto da área de Linguagem que busca apresentar ao educando a importância das múltiplas linguagens (verbal e não verbal) 1º Passo: Exibimos o curta Velha História sem o áudio para os alunos assistirem somente observando
94
a sequência de imagens Após assistirem o vídeo, os alunos produziram um texto escrito de acordo com a leitura de imagem realizada por eles durante o filme 2º Passo O grupo assistiu ao filme novamente com áudio e para análise entre a leitura feita por eles e o conto.
Outra estratégia utilizada pela professora a fim de promover a interação entre
os leitores e o texto foi o debate oral acerca dos temas abordados no filme. Tal
iniciativa evidencia sua intenção em proporcionar aos alunos experiências que vão
além dos roteiros restringentes fornecidos pelos livros didáticos. E, com vistas à
ampliação da habilidade comunicativa dos alunos, bem como de sua bagagem
cultural e, consequentemente, da sua capacidade de estabelecer conexões com o
mundo que os cerca, a professora promovem a leitura de outros textos com a
mesma temática, produzidos em gêneros diversos, recepcionados por meio de
diferentes suportes e linguagens, de acordo com seu relato:
4° Passo Utilizamos um outro texto: A águia que (quase) virou galinha de Rubem Alves apresentado no formato POWER POINT estabelecendo uma relação de intertextualidade com o conto de Mário Quintana. Utilizamos como recursos de interpretação, a leitura, debate e análise oral dos textos.
Essa forma de arranjar as atividades de leitura utilizada por Nilia, levando em
conta as relações interdiscursivas inerentes aos textos, favorece o trabalho de
interpretação dos alunos na produção de sentidos possíveis aos enunciados. As
marcas deixadas pelo autor tornam-se cada vez mais perceptíveis e recuperáveis na
medida em que se acentuam as interações entre os discursos postos em cena. E
nesse percurso, a professora não ignorou a existência de outros gêneros e canais
discursivos, proporcionando aos seus alunos variadas possibilidades de letramento,
habilitando-os a recepcionar enunciados artísticos nos mais diversos suportes
disponíveis nos dias de hoje (cinema, internet, mídias digitais) e que, até há pouco
tempo, só podiam ser experienciados na esfera literária.
E uma das formas de promover esse letramento é considerar as várias
maneiras de recepcionar um enunciado, estabelecendo relação entre eles, seja na
sua forma essencialmente escrita, em quadrinhos, cinematográfica ou via internet. E
ao estabelecer conexões entre as mais distintas linguagens, gêneros e suportes,
com suas peculiaridades e estruturas próprias, diferentes habilidades no processo
de recepção/leitura serão desenvolvidas e ampliadas pelo leitor. Pois, ao se
relacionar com tal multiplicidade textual, suas capacidades perceptivas serão
95
ativadas e aguçadas. Isso é fundamental num mundo em que cada vez mais se faz
uso das novas tecnologias, baseadas em imagens, sons, cores, formas e
movimentos, dos quais eclodem conceitos, ideias, pontos de vistas e ideologias. E
essa preocupação pode ser percebida em Nilia, conforme aponta em seu relato:
(...) percebemos a interatividade dos alunos, bem como o interesse demonstrado. Os alunos mostraram-se bastantes criativos (...) Conforme relatos de alguns, após assistirem o video, puderam perceber que essa prática possibilitou que compreendessem as múltiplas leituras de mundo que é possível através de uma mesma situação.
De fato, a autora demonstra esse cuidado em suas atividades. De forma
comparativa, ela vai problematizando e estabelecendo as relações intertextuais,
levando o aluno a refletir acerca da função social do texto literário, bem como seu
correspondente cinematográfico. Tais textos passam a adquirir um status de fonte
de informação social, proporcionando uma reflexão dos seus valores culturais e
sociais para além dos aspectos puramente linguísticos. Tal abordagem de ensino de
linguagem promove a compreensão responsiva no aluno, tornando-o apto a assumir
posições valorativas, portanto críticas, conforme resultado relatado pela professora:
PN - O uso da intertextualidade realizado entre o filme e o texto de Rubem Alves (apresentado em power point) intitulado A águia que (quase) virou galinha, proporcionou a abertura de outras leituras, a visão dos alunos para compreenderem os diálogos existentes entres textos e autores, bem como serviu de subsídio para que os alunos produzissem sua própria história seguindo a linha de pensamento dos autores, em relação a como o meio em que se vive influencia em nossas práticas cotidianas.
Dessa forma, a autora cumpre as etapas de leitura propostas na sua
sequência didática, na qual, primeiramente delineia os materiais com os quais pode
contar, explora cada um deles, perfazendo seu conteúdo temático, analisando e
discutindo com os alunos pormenores que tenham relação com sua realidade. Ou
seja, a relatora traça um caminho metodológico de modo a favorecer seus
estudantes a produzir inferências, a tirar suas próprias conclusões, a assumir um
ponto de vista, enfim, a se tornarem donos das suas palavras. A professora torna
isso viável porque seus alunos são conduzidos, por meio de atividades efetivas de
leitura de textos de diferentes gêneros, os quais se utilizam de diversas linguagens e
que circulam em variadas esferas sociais, e não textos artificiais produzidos
especialmente para aulas de língua materna.
96
Nesse sentido, a autora do relato articula sua aula de forma arquitetônica, do
ponto de vista bakhtiniano, porque os textos são trabalhados de forma dialógica,
mantendo a conexão com a realidade, formando uma cadeia discursiva de modo a
estabelecer as relações de sentidos tanto no plano ético quanto no estético,
conforme relato:
PN - ... Objetivo: Possibilitar que os alunos adquiram sólidos conhecimentos e habilidades, para que desenvolvam hábitos de leitura e escrita/interpretação e técnicas de trabalho através do uso das linguagens verbal e não verbal buscando desenvolver sua expressividade, construírem sentidos e informações a partir da interação que estabelece com o mundo. 1º Passo: Exibimos o curta Velha Historia sem o áudio ... 2º Passo O grupo assistiu ao filme novamente com áudio ,,, tiveram contato com o texto escrito (obra Velha História) Neste passo, oportunizamos o debate e reflexões sobre as importâncias das diversas possibilidades de leitura do aluno. 3º Passo ... produzirem uma análise em que fazem uma relação entre os dois textos ... instigando a escrita de análise comparativa.
Para tanto, levar em conta as condições de produção e recepção dos sujeitos
envolvidos no trabalho de construir sentidos é fundamental para que o texto fílmico
não se torne apenas ilustração para o texto escrito, ou tema para conteúdos
transversais. Consoante com isso, a professora transcende os textos oficiais do livro
didático, bem como a linguagem valorizada pela escola, favorecendo a
compreensão dos textos verbo-audiovisuais, tão comuns nas práticas sociais de
nossos alunos.
PN - 4° Passo Utilizamos outro texto: A águia que (quase) virou galinha de Rubem Alves apresentado no formato POWER POINT estabelecendo uma relação de intertextualidade com o conto de Mário Quintana.
Na última etapa, a professora, fiel a seus objetivos, solicita uma produção
escrita, na qual os alunos utilizaram uma ferramenta que possibilita a criação de
histórias em quadrinhos mesmo por pessoas que não são experientes no uso de
computadores. Trata-se do HagáQuê, software com recursos bastantes e suficientes
para não limitar a imaginação do usuário.
Tal iniciativa proporcionou aos alunos momentos de prazer e descobertas, ao
mesmo tempo em que despertava neles o gosto pela leitura. Apesar dessa prática
social ser muito comum entre os jovens pertencentes às faixas etárias do ensino
médio e fundamental, os quadrinhos ainda não são incluídos como conteúdo
97
programático nas grades curriculares das escolas brasileiras, em que pese seu
potencial de abordar o ensino de linguagem de forma lúdica e a grande aceitação
por porte dos jovens (BANDEIRA, 2009).
PN - 5º Passo solicitamos uma produção escrita com um olhar intertextual para os textos trabalhados e o curta Velha História e que o mesmo seja desenvolvido utilizando-se do software Hagáquê, um editor de histórias em quadrinhos com fins pedagógicos.
Com isso, a professora completa o ciclo que, dentro da perspectiva
arquitetônica de Bakhtin, é imprescindível, pois é quando o interlocutor participa
efetivamente da produção sociocultural das práticas letradas, ocasião em que
oferece uma resposta ativa aos enunciados dos autores trabalhados. É quando o
aluno passa de locutário a locutor e entra de vez na cadeia da comunicação infinita,
deixando sua voz nos fios discursivos que compõem o grande diálogo, que é
inconcluso e infinito, dentro do qual nenhum sentido morre, pois que reside na
história, na grande temporalidade (BAKHTIN, 2003), como finaliza a
professora/autora.
... Essa versão final foi apresentada à comunidade escolar em evento cultural na escola através de histórias em quadrinhos montadas pelos alunos com uso do software Hagáquê, que fora confeccionado um livro por turma. O resultado será postado no blogger oficial da escola (tancredonevescola.blogspot.com).
3.6 Ilha das Flores
Filme de 13 minutos, produzido por Jorge Furtado em 1989, Ilha das Flores
começa exibindo o enunciado “Deus não existe”, o que acabou gerando uma
polêmica, responsável, muitas vezes, pelo distanciamento do conteúdo crítico
encaminhado pelo diretor, reduzindo assim o seu valor questionador. O
documentário inicia com a imagem do Sr. Suzuki, um agricultor Japonês que cultiva
tomates no Rio Grande do Sul para “serem trocados por dinheiro” em um
supermercado. O narrador, numa espécie de cadeia terminológica, vai apresentando
definições científicas aos objetos à medida que eles vão surgindo no enredo, num
contínuo discursivo alucinante. Anete, dona de casa, compra tomates colhidos pelo
Japonês a fim de preparar a refeição para sua família. Ao preparar o molho de
98
tomate para comer com carne de porco, percebe que um dos tomates não está
adequado para o uso, segundo seu julgamento, e joga-o no lixo.
Esse tomate vai parar numa localidade chamada Ilhas das Flores, lugar onde
é depositado o lixo de Porto Alegre e onde se criam porcos. De alguma maneira, os
donos dos porcos têm acesso ao lixo orgânico trazido pelo caminhão antes do
restante da população. Esse lixo, incluindo o tomate rejeitado pela dona Anete, é
utilizado como alimento dos animais. Nessa ilha, segundo o documentário, há muitas
pessoas que vivem na extrema pobreza e dependem do lixo que foi considerado
inadequado aos porcos para se alimentar.
Nesse ponto, o narrador lembra ao telespectador que o ser humano
diferencia-se do porco por ter um telencéfalo altamente desenvolvido e por possuir
um polegar e que, assim como a galinha, o ser humano é uma criatura bípede, mas
que se diferencia daquela por vários aspectos intelectuais e físicos. Com o objetivo
de causar um impacto reflexivo no espectador, o diretor do filme insinua, por meio da
montagem/edição, uma relação comparativa entre aquelas pessoas, a galinha e os
porcos, que buscam seus alimentos entre os lixos, sugerindo a ideia de que aqueles
seres humanos encontram-se numa posição abaixo dos porcos, os quais têm
prioridade na escolha dos alimentos, em detrimento dos seres humanos, conforme
figuras abaixo.
Ilha das Flores (FURTADO, 1989) Disponível em: http://portacurtas.org.br/filme/?name=ilha_das_flores
Em que pese este filme estar catalogado como gênero documentário no site
Portacurtas, sua classificação é um tanto polêmica, sendo que, até o dia de hoje,
não se há um consenso com relação à sua categorização. No site da Casa de
Cinema de Porto Alegre24, cooperativa de cineastas e documentaristas, responsável
pela produção da película, o filme consta como ficção, embora a produtora tenha
sido contratada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS para
24
http://www.casacinepoa.com.br/
99
produzir um documentário sobre a temática do lixo no bairro Arquipélagos25, em
Porto Alegre. No início do filme, há uma legenda anunciando não se tratar de um
filme de ficção; por outro lado, em momento algum se intitula como documentário.
Nos créditos finais, há pistas enunciativas que indicam se tratar de uma obra
ficcional, quando apresenta legendas com os dizeres “dona Anete na verdade é Ciça
Reckziegel, sua cliente na verdade é Irene Schmidt, a maior parte das locações foi
rodada na Ilha dos Marinheiros”.
Ao revelar o uso de locações, o diretor está deixando clara a existência de
situações encenadas, portanto ficção. No entanto, após apresentar esses dizeres,
ele encerra uma legenda, em letras garrafais: o “RESTO É TUDO VERDADE”. Mas
verdade não é o mesmo que real. A gravação foi feita, as pessoas e os porcos
estavam lá, as imagens comprovam tudo, é verdade, mas não necessariamente real.
Essa reflexão é importante porque aponta para a necessidade do professor conduzir
o olhar do aluno para perceber a particularidades da linguagem utilizadas num filme,
porque em casos como este são elas que revelarão ao telespectador o projeto
discursivo do enunciador.
Este filme talvez seja inclassificável, pois, conforme abordado no capítulo I,
este curta foi concebido dentro do movimento chamado cinema experimental, em
que os cineastas, entre os quais estava Jorge Furtado, buscavam uma nova forma
de fazer cinema, diferente das práticas e estilos ditos comerciais, ou industriais. Ele
introduziu uma maneira de produzir cinema na qual mescla a linguagem documental
com a linguagem ficcional, intercalando conteúdo informacional e ficção. E, com uma
narrativa dinâmica e atraente, subverte a rigidez com que, em busca do estatuto de
verdade, eram produzidos os documentários até então.
Em Ilha das Flores, Furtado ironiza essa forma padronizada de produzir
curtas comerciais, sobretudo os documentários, fazendo uma brincadeira com o
discurso científico, apresentando os elementos e acontecimentos cotidianos, banais,
por meio de um discurso estruturado nos modelos científicos. Sua ironia ácida chega
ao ponto de fornecer uma definição científica para o “segundo”: Desde 1958 o
segundo foi definido como sendo o equivalente a nove bilhões, cento e noventa e
dois milhões, seiscentos e trinta um mil e setecentos e setenta ciclos de radiação de
um átomo de Césio; ou para prova de história: Uma prova de História é um teste da
25
Região formada por várias ilhas banhadas pelo rios Guaíba, Gravataí, Sinos, Caí e Jacuí.
100
capacidade do telencéfalo de um ser humano de recordar dados referentes ao
estudo da História.
Feitas tais considerações preliminares, vamos ao relato selecionado para
análise, intitulado Uma Verdade Desconhecida, produzido por Antônio Evaldo Jesus
Velho, professor da Escola Estadual Melvin Jones, situada na zona urbana de Porto
Alegre. Ele fez uso do curta com uma turma do ensino médio constituída por 35
alunos e faixa etária entre 14 e 18 anos. Primeiramente, o autor do relato assume
uma postura de credulidade com relação ao enunciado, ou seja, ele encara a
produção de Jorge Furtado como sendo um documentário. Esse posicionamento
revela uma atitude precipitosa, a qual poderia ser repensada caso o professor
tivesse consciência do caráter transgressor da obra, na qual o autor rompe com a
linguagem tradicional dos documentários. Na verdade, trata-se de uma produção
metalinguística, na qual ele utiliza a linguagem documental para produzir um filme
ficcional que ironiza os documentários produzidos segundo os padrões da época.
Olhar para o texto sem considerar tais aspectos extralinguísticos mitiga seu
potencial enunciativo. Bakhtin (2003) nos assegura que conhecer as condições de
produção do enunciado mostra-se relevante para a compreensão ativa e importante
para o leitor oferecer uma resposta. Segundo o autor, existe uma relação entre as
condições de produção do enunciado, a linguagem utilizada e os sujeitos da
enunciação por meio da qual o discurso se processa. Assim, levar em conta o lugar
social ocupado pelo autor na ocasião da elaboração do enunciado pode ser
determinante na compreensão da mensagem. Normalmente, esse background
enunciativo seria desnecessário para um leitor comum, o que não o afastaria da
categoria de leitor crítico, porém, para um leitor que se pretende analista, caso em
que figura o professor Antônio, faz toda a diferença ter consciência do movimento
conhecido como Cinema Experimental ou de Vanguarda, do qual Jorge Furtado foi
um dos precursores.
E um dos princípios que norteavam essa concepção de cinema enfatizava a
necessidade de abordar temas sociais, preferencialmente aqueles que expunham as
mazelas do país, mas sem abrir mão das ferramentas artísticas, como a linguagem
metafórica, que atribuíam caráter autoral às produções, como é o caso de Ilha das
Flores. Essa nova maneira dialógica de produzir curtas no Brasil passou a exigir um
pouco mais do telespectador, o qual teve que acionar uma espécie de filtro crítico do
que é ficção e do que é realidade.
101
Essa atitude de produzir documentário com caráter ficcional e ficção com
aspectos documentais não era comum à época, causou incômodo a muitos
telespectadores. A maioria não compreendeu o elemento hiperbólico, mobilizado
pelo autor, que sugeria uma comparação de cunho reflexivo entre seres humanos e
animais que buscam seus alimentos no lixo, como é o caso dos porcos e das
galinhas. Isso gerou um sentimento de revolta entre os habitantes de Ilhas das
Flores e Ilha dos Marinheiros, os quais passaram a ser vistos como aqueles que
dividiam comida com os porcos. Várias equipes de reportagem foram ouvir os
moradores das ilhas, os quais trouxeram a público sua insatisfação com relação aos
efeitos danosos sofridos pelos ilhéus, segundo os quais, foram vítimas de
preconceito e discriminação. Alguns relatam que não conseguiam arranjar emprego
porque eram associados a porcos, outros declaram que se entregaram ao
isolamento por receio de sofrerem alguma espécie de hostilização26.
Embora o professor/autor sinalize com o título de seu relato a compreensão
de se tratar de um documentário, ele utiliza o curta Ilha das Flores para ensinar
figuras de linguagem, ferramentas utilizadas predominantemente em produções da
esfera artística, sobretudo a literatura. Essa aparente incoerência só reforça o
caráter insurgente presente no texto de Jorge Furtado, no qual o professor, em que
pese sua convicção de estar lidando com um curta documental, identifica elementos
da linguagem metafórica empregados em enunciados artísticos. Por outro lado, isso
revela a competência do professor Antônio em perceber o potencial dialógico da
linguagem não verbal, no caso, o texto cinematográfico, para ensinar figuras de
linguagem, conceitos elaborados originalmente para produzir efeitos de sentido em
textos literários. Conforme objetivos apresentados por ele:
Observar a riqueza no uso das figuras de linguagem no nosso dia a dia; Observar que a nossa língua é rica em qualquer área que atue; Interpretação de textos poéticos e publicitários; Observar a transitividade e a mudança da linguagem por área pesquisada; Produzir um vídeo em CD, através de fotos e relatos sobre o próprio Bairro, interagindo com o que assistiu em "Ilha das Flores".
A fim de atingir tais objetivos, o autor desenvolveu uma estratégia que fez
com que seus alunos buscassem informações acerca do tema meio ambiente em
26
Disponível em: http://www.eusoufamecos.net/editorialj/ilha-das-flores-depois-que-a-sessao-acabou
http://www.eusoufamecos.net/editorialj/%E2%80%9Cde-fato-os-porcos-comiam-primeiro%E2%80%9D-diz-jorge-furtado. Acesso em 20 de março de 2013.
102
diferentes gêneros da esfera artística, tais como poemas, músicas e fotografias que
retratassem a natureza, a partir dos quais deveriam detectar algumas figuras de
linguagem, como antítese, comparações, paradoxos, metonímia, hipérbole, dentre
outras, para, em seguida, após a conceituação de cada uma delas, identificá-las no
curta Ilha das Flores. O professor propõe também que os alunos estabeleçam
relações entre os conceitos das figuras de linguagem identificadas nos textos
pesquisados com a linguagem utilizada no ambiente em que vivem.
Formou-se 04 grupos e, cada um ficou 02 ou 03 figuras de linguagem para representar, através delas, o que viram no filme e, relacioná-las com o tema "Meio Ambiente" e, com a própria articulação da fala no meio em que vive. Através de colagens, cartazes (com poemas, músicas e figuras) mostrou-se o presente e o futuro do nosso planeta. As figuras de linguagem utilizadas foram: Antítese, metonímia, hipérbole, metalinguística, eufemismo, metáfora, comparação pleonasmo e personificação.
Ele utiliza fotos trazidas pelos alunos, que mostram pessoas muito pobres
habitando casebres ao lado de milionários em prédios luxuosos, para ilustrar o
conceito de antítese. E para demonstrar a ideia de hipérbole, denuncia o exagero de
lixo produzido nos grandes centros. São Paulo, por exemplo, produz, em média,
impensáveis sete mil toneladas de lixo por ano. Além disso, para exemplificar a ideia
de eufemismo, os alunos levaram fotos de construções utilizando materiais
recicláveis, plantações de árvores pelas cidades e até fachadas e outdoors
maquiando eufemisticamente os efeitos da poluição produzida pelas metrópoles,
conforme relatado por ele:
PA - O eufemismo se destacou, no trabalho deles, através de desenhos e montagens com material reciclável mostrando que dentro das cidades os prédios, outdoors e algumas árvores disfarçam a sujeira das cidades. A hipérbole também se destacou com o exagero de lixo produzido pelo homem e jogado na natureza. Fotos de miseráveis junto a prédios austeros e imponentes representam perfeitamente o paradoxo (antítese) da sociedade moderna.
Essa estratégia impávida, empregada pelo professor Antônio, de extrapolar
para a esfera do cotidiano a aplicação de conceitos comumente literários, além de
sinalizar sua disposição empreendedora, e por que não dizer transformadora, revela
uma concepção de linguagem que a toma como algo vivo, dinâmico e coletivo. Além
disso, descarta a ideia de exclusividade e puritanismo literários, assim como fizeram
os modernistas, para os quais tudo podia virar arte, desde que o objeto estético
103
fosse redimensionado metaforicamente. Dessa forma, mesmo uma bacia sanitária,
deslocada do seu uso comum e ressignificada alegoricamente pelo artista, pode
adquirir o estatuto de arte. O professor Antônio instaura, portanto, o diálogo entre
arte e vida, propondo uma espécie de desmetaforização, dilatando os conceitos
artísticos para compreender a vida (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1926).
O trabalho com diferentes gêneros permitiu ao professor imprimir uma
abordagem interdiscursiva em suas atividades, possibilitando a participação direta
dos alunos, os quais puderam confrontar os diversos discursos e estabelecer os elos
entre as ideias apresentadas no filme e nos textos pesquisados, tanto os da esfera
artística como os das esferas jornalística e publicitária. Além disso, o professor
Antônio promoveu, por meio da produção de um DVD no qual os alunos mostraram
o ambiente em que vivem, uma conexão com a realidade vivida por eles.
O aspecto lúdico foi a produção do próprio DVD sobre o Bairro deles e assim ficaram orgulhosos e ao mesmo tempo chocados pois viram que deveriam e poderiam ajudar mais a modificar o meio em que vivem através da palavra ou seja, através da Língua Portuguesa.
Essa diversidade de gêneros mobilizados pelo professor confere um poder
dialogal muito producente com outros textos que circulam nas esferas das quais
seus alunos participam, pois cada realidade apresentada nos textos trabalhados
proporciona novos olhares sobre o tema, subsidiando o aluno com o substrato ético,
sem o qual a dimensão estética não existe (SOBRAL, 2009). Essa abordagem
dialógica assumida pelo professor permite que o aluno se conceba enquanto autor
criador, uma vez que ele se apropria da palavra, que não é mais só da literatura,
tornando-se dono do discurso, que não é mais só dos textos lidos, içando-o da
condição de mero reprodutor para uma posição de agente refratário do discurso
(BAKHTIN, 1992).
No entanto, em que pese o professor/autor ter explorado o aspecto
interdiscursivo do filme, ele renuncia sua prerrogativa de fazer uso, de forma mais
contundente, do texto fílmico em si, para além de exemplificações de figuras de
linguagem e fonte de temas transversais. Dessa forma, o filme perde um pouco sua
força enquanto texto autônomo, uma unidade discursiva produzida por um autor,
objetivando um interlocutor, sujeitos sócio-historicamente situados. Segundo Bakhtin
(2003), o discurso só pode existir de fato na forma de enunciações concretas dos
falantes; dito de outra forma, não há outra forma de apreender o discurso, a
104
intencionalidade27 ou ideologia senão pela materialidade textual/enunciado. É
preciso olhar para ele, seja qual for a modalidade pela qual se manifesta.
Considerar a dimensão textual do enunciado fílmico, além de externar a
intencionalidade do enunciador, permite maior familiaridade com o funcionamento da
linguagem cinematográfica, uma vez que tais elementos estão ligados por uma
relação de dependência. Por exemplo, no caso do texto fílmico, a intencionalidade
discursiva pode ser revelada pela escolha das imagens, ao serem arranjadas, pelo
jogo de luz, bem como o uso que o diretor faz das cores, dos ângulos, dos planos e
dos cortes. Só o fato de exibir, ou não, esta ou aquela imagem denuncia um
propósito, implica um posicionamento. Tais escolhas “léxico-sintáticas” são
ideológicas, pois foram concretizadas a partir da concepção de mundo do autor,
apontando para o quê e como valorizar, ou não, de modo a direcionar o olhar do
telespectador e atingir a sua intenção discursiva.
Nessa linha de pensamento, perceber que, no curta Ilha das Flores, o diretor,
utilizando-se de um recurso da linguagem cinematográfica, coloca, numa mesma
tomada, o caminhão de lixo e a placa “Ilha da Flores”, é essencial para o analista
compreender o efeito de sentido paradoxal produzido no telespectador. Tal resultado
é possível porque o diretor coloca, num mesmo plano, duas imagens que
representam duas ideias opostas. Ao justapor os quadros, o diretor provoca a
associação de sensações completamente adversas, convivendo lado a lado,
conforme figuras abaixo.
Ilha das Flores (FURTADO, 1989) Disponível em: http://portacurtas.org.br/filme/?name=ilha_das_flores
E para reforçar o efeito já criado pela imagem, o texto verbal, narrado em off,
completa: Há poucas flores na Ilha das Flores. Há, no entanto, muito lixo, e 27
Estamos entendendo intencionalidade não como intenção comunicativa, projeto discursivo. Trata-se de marcas discursivas que revelam pontos de vistas e ideologias do autor, mesmo que este não as tenha manifestado explicitamente.
105
acrescenta: de flores são extraídos perfumes, ... o lixo é levado para determinados
lugares, bem longe, onde possa, livremente, sujar, cheirar mal e atrair doenças. Na
expressão Há poucas flores na Ilha das Flores, o autor poderia substituir o nome da
localidade por um elemento anafórico que o referenciasse, uma vez que ele já havia
citado a referida Ilha havia menos de 30 segundos, no entanto não o faz com o
objetivo de acentuar o efeito de sentido desejado: uma experiência paradoxal gerada
pelo jogo de imagens e sua relação com o texto verbal.
Nesse sentido é que professor Antônio poderia ter explorado um pouco mais
os recursos da linguagem audiovisual para marcar textualmente as figuras de
linguagens estudadas. Para cada uma delas, metonímia, antítese, comparação,
hipérbole, dentre outras, há um mecanismo da linguagem cinematográfica a ser
mobilizado capaz de produzir o efeito de sentido desejado, seja o close up, a
justaposição de imagens, o plano, o ângulo, a iluminação, a trilha sonora ou
qualquer outro artifício, produto da criatividade humana. E, ao apreendermos tais
estratégias e procedimentos utilizados pelo autor-criador no acabamento dado ao
objeto estético, a fim de produzir os efeitos pretendidos, captamos também o seu
discurso. Mas para isso é preciso olhar atentamente para o texto filmico, pois é lá
que estão as evidências discursivas, corporificadas nas imagens, sons, luzes, efeitos
especiais, etc.
3.7 Negócio Fechado
Curta dirigido por Rodrigo Costa, produzido em 2001, conta a história de dois
compadres, fazendeiros no interior de Minas Gerais, que se encontram para realizar
um negócio de compra e venda de gado. Juquita formou um lote misto de 50 rezes,
no qual havia vacas leiteiras, novilhas e garrotes. Seu compadre, Jorge, interessado
na compra do gado, fez uma visita ao amigo, que já o esperava com café e
rosquinhas, como era de costume entre eles. A partir daí, começa um longo embate
entre os negociantes. O comprador enxerga diversos defeitos nos animais, já o
vendedor, por outro lado, ressalta as qualidades deles. O ponto de discórdia está no
preço, o dono dos bois pede R$ 20 mil, depois diminui para 19, mas seu vizinho quer
pagar apenas 18. Esse regateio se arrasta por toda a tarde, sem um desfecho
favorável para nenhum dos lados. Há um terceiro interessado na compra do gado,
Marcelo, fazendeiro jovem e moderno, preterido por Juquinha por não regatear. O
106
filme é uma adaptação do conto Como a gente negoceia, do mineiro Olavo Romano,
e foi vencedor de vários prêmios, dentre eles, o de Melhor Roteiro no Festival de
Curitiba em 2002.
O relato selecionado para análise, intitulado Minha língua é minha pátria, foi
enviado por Kelba Assumpção Lima, professora de Língua Portuguesa na Escola
Palmira Gabriel, situada na zona urbana de Belém do Pará. Ela fez uso do curta
Negócio Fechado em 2012, numa turma composta por 58 alunos do ensino médio,
com faixa etária entre 14 e 18 anos. Inicialmente, podemos notar, ao analisar os
objetivos relacionados por Kelba, que sua concepção de linguagem está fundada no
dialogismo social. Todos os alvos mirados em seu escopo situam a língua/linguagem
como uma atividade de natureza social e dialógica, tendo como base as interações
sociais, e não apenas o código da língua:
Diferenciar linguagem oral de linguagem escrita. - Desmistificar a questão do uso da língua. - Valorizar as diferenças culturais e linguísticas. - Refletir sobre as variações da língua. - Usar a linguagem com autonomia e sem preconceitos - Perceber diferenças na fala de pessoas de outras regiões. - Rever e aprofundar os conhecimentos sobre a variação linguística.
Mesmo quando estabelece uma finalidade que visa à reflexão do código, o faz
colocando em relação com a linguagem em uso: Refletir a questão da convenção da
escrita em relação à linguagem falada. A fim de atingir tais objetivos, a professora
propõe, conforme a sequência didática, uma atividade denominada por ela de
sensibilização, em que os alunos deveriam:
(...) apresentar palavras e expressões usadas por diferentes grupos sociais e regionais, e, utilizando esses diferentes falares, os mesmos teriam de encontrar argumentos de modo a persuadir um colega a comprar um computador sem CPU e um bilhete de loteria já vencido e não premiado.
Essa atividade de se colocar no lugar do outro, pela língua do outro, coopera
para a compreensão da natureza social da linguagem, ajuda a perceber que os
sentidos das palavras são dados socialmente, negociados com seus falantes, de
acordo com o contexto mais imediato ou mais amplo (BAKHTIN, 1992). Dessa
forma, um representante comercial de um grande frigorífico e um grande criador de
gados jamais participariam de uma negociação nos termos utilizados pelas
personagens, conforme transcrição abaixo:
107
- Ocê veio aqui para comprar as novilha que eu falei? - É foi... mas não tem pressa não. Primeiro vamo ter dois dedos de prosa, depois a gente fala de negócio. Soube do Adamasceno?
(...) - Bom. Então vamo ao que interessa... E esse preço? Como é ? - Ué? Aquele mesmo uai! Gadão de primeira né meu filho... - Ocê pediu quanto mesmo? Foi dezessete mil não foi? - Que dezessete mil homem, cê ficou bobo! - Quanto é que foi então uai? - Eu pedi foi vinte mil... E dezessete mil tá é aí na sua cabeça. - É... Danado de salgado. Assim num sai negócio não!!
Por outro lado, tal diálogo seria perfeitamente possível entre dois compadres
do interior de Minas Gerais que estivessem realizando um negócio de compra e
venda de gado. Pois o contexto em que estariam inseridos, bem como os acentos
valorativos evidenciados pela entoação expressiva dos falantes tornariam os
enunciados adequados e compreensíveis naquela situação comunicativa.
A professora Kelba prossegue, na sequência didática, solicitando aos alunos
que pesquisem sobre o Estado brasileiro em que a história se passa, bem como as
características de seus personagens, o uso que fazem da língua, sua classe social,
idade, aspectos culturais da região, as variações linguísticas regionais e dialetais,
além do cenário. Ao proceder assim, ela chama a atenção dos alunos para as
escolhas realizadas pelo autor a fim de atingir seu propósito discursivo. E faz isso
direcionando o olhar dos alunos para o texto fílmico:
Assistir ao filme, observando os seguintes aspectos: Estado brasileiro onde a história se passa. Análise da fala dos personagens. Fazer anotações a partir da leitura do filme: Frases que caracterizem a língua formal; Frases que apresentam variações dialetais. Reconhecimento das variedades linguísticas. O cenário. Perfil dos personagens nome, idade escolaridade, classe social. Linguagem utilizada. Justificar com exemplos.
A autora do relato conduz os alunos, por meio da análise de elementos
enunciativo-discursivos, de maneira a apreender os discursos que emergem a partir
desse olhar para dentro do texto fílmico. Pesquisar as características culturais do
Estado onde a história se passa, por exemplo, pode levar o estudante a perceber a
motivação pela qual o autor optou por utilizar o interior de Minas como pano de
fundo para narrar seu causo e, por conseguinte, verificar sua intencionalidade
discursiva. Ora, o interior de Minas retrata a tranquilidade da vida campestre. O
autor traz à tona o discurso bucólico e saudosista, que valoriza a vida no campo, a
tradição, o modo de ser sertanejo. Essa ideia é apresentada na seção introdutória do
108
filme, quando são exibidas fotos em preto e branco, esmaecidas e puídas, de
casarões antigos em meio a plantações e criações.
Esse recurso tem como objetivo ativar a memória afetiva do telespectador, a
fim de resgatar um período, não muito distante, em que a maioria das famílias
habitavam pequenos vilarejos, conheciam-se quase todos pelo nome e sabiam a
genealogia de grande parte dos moradores, embora a história se passe no ano de
199728. Nesse período já havia fazendas equipadas com aparelhos eletrônicos,
telefone e até celulares, no entanto, o autor valoriza os elementos típicos do campo.
Ele começa com um plano médio, em que aparece um dos compadres se dirigindo à
casa do outro, utilizando como meio de transporte o cavalo; no plano seguinte, um
close no fogão à lenha, onde dona Celinha, esposa do compadre Juquita, prepara o
café da tarde; em seguida, em plano americano, mostra a dona de casa coando a
bebida no tradicional coador de pano.
Na mesma sequência, a imagem seguinte, em plano geral, mostra parte da
fazenda onde é possível identificar carros de boi transportando capim, além de
gados pastando em volta da casa. A sequência termina com Juquita numa rede na
varanda, manipulando um fumo de corda. Essa sucessão de imagens do cotidiano,
intercaladas em planos relâmpagos e curtos, tendo como fundo musical uma batida
de viola, constitui-se um recurso cinematográfico utilizado pelo diretor para salientar
a rotina da vida na fazenda, conforme figuras abaixo. Todas essas escolhas - o
cenário, os objetos, a linguagem usada, a forma como são apresentados - são
realizadas com base numa visão de mundo que revela a intencionalidade do autor. E
a professora Kelba atrai o olhar dos alunos para esses elementos textuais quando
pede para que eles exemplifiquem com passagens do filme suas impressões e
inferências acerca do discurso presente na obra.
Negócio Fechado (COSTA, 2001) Disponível em: http://portacurtas.org.br/filme/?name=negocio_fechado3350
28
É possível deduzir o tempo da história por meio do selo que aparece no para-brisa do carro da personagem Marcelo. Esse adesivo, fornecido pelo Detran de cada Estado, com o ano corrente impresso, serve para informar que o licenciamento do veículo naquele ano está pago.
109
E, ao propor que os alunos pesquisem sobre o espaço, o cenário e a cultura
local onde foram gravadas as cenas, a professora pretende que os estudantes
percebam as implicações cronotópicas e seus efeitos enunciativos presentes no
texto. Ao realizar a pesquisa, os alunos certamente notaram que toda a trama da
narrativa acontece, quase que exclusivamente, no espaço da fazenda (cozinha,
varanda, curral, porteira etc.), no interior de Minas Gerais. Trata-se de cronotopos
que adquiriram, historicamente, na sua relação com o tempo e com o homem, uma
carga semântica e, a depender da forma como são manipulados esteticamente,
produzem efeitos de sentidos que trazem a ideia de quietude, constância e
invariabilidade. Por outro lado, a estrada, espaço representado brevemente no filme,
constitui o cronotopo do encontro, da velocidade e da mudança, exatamente de
onde emerge o conflito entre o tradicional e o novo, representados pelo embate
entre Marcelo e Juquita e tudo o que eles representam.
Marcelo, então, apresenta-se como elemento desestabilizador da vida pacata
da cidade, rapaz novo, com visual e costumes urbanos, traz consigo o ritmo
alucinante dos grandes centros. Por meio de uma antítese imagética, o cavalo e a
camionete na estrada de chão, o autor evidencia esse choque cultural, esse
confronto entre o moderno e o tradicional, representados pelos meios de transporte
utilizados pelas personagens Jorge e Marcelo, respectivamente. O jovem,
interessado na compra das novilhas, convida o fazendeiro, que fora até a estrada
sondar o seu compadre, a entrar no carro a fim de olhar o gado. Juquita, por sua
vez, recusa o convite e diz que vai andando mesmo, e sai caminhando na frente do
carro, ao passo que Marcelo, habituado com a velocidade, se irrita profundamente a
ponto de buzinar para que o fazendeiro saísse da sua frente.
Essa imagem, na verdade, constitui-se uma crítica sarcástica e debochada à
agitação exacerbada da cidade, que acaba gerando o estresse e ansiedade comuns
nas pessoas de hábitos urbanos. O autor dá voz aos camponeses e, com aquele
gesto da personagem Juquita, diz: aqui no campo as coisas são diferentes,
respeitem o nosso modo de viver, nosso ritmo, nossos costumes e tradições. Por
outro lado, Marcelo, habituado à velocidade com que as coisas acontecem na
cidade, familiarizado com o modelo citadino de se fazer negócio, ao analisar o lote
de novilhas, sem barganhar, saca imediatamente o talão de cheques e compra as
rezes do senhor Juquita. Este, por sua vez, decepcionado pela ausência da
pechinha, volta atrás e desfaz o negócio.
110
Assim, embora o autor tenha concedido espaço ao discurso urbano, da
modernidade e tecnologia, a voz predominante no curta é a do campo, tanto que o
filme termina exatamente como começou, o compadre Jorge chegando à fazenda e
Juquita dizendo: Celinha! Tá chegando visita. Manda a Maria trazê um cafezinho.
Isso indica um movimento circular e rotineiro, reforçando a sensação de que o tempo
não passa naquele lugar e que não se pretende mudanças. Essa percepção só pôde
ser alcançada pelos alunos porque a autora/relatora os conduziu para uma leitura
além do texto, mas que necessariamente passa por ele, dando-lhes condições de
interpretar o enunciado, estabelecendo conexão com outros textos, ideias, culturas,
enfim, com o mundo.
Além disso, sutilmente, a professora, por meio de questionamentos, aguça a
percepção dos alunos a fim de que eles percebam esse contradiscurso presente no
texto, o avesso do bucólico: o discurso urbano, que tem como princípio valorativo a
velocidade, elemento primordial nos universos virtuais, onde os negócios são
fechados sem ao menos conhecermos as pessoas com quem estamos negociando,
sem o olho-no-olho e o aperto de mão, gestos finalizadores de uma transação
comercial, nos moldes interioranos.
Qual seria o final desta história no contexto econômico e social atual? Quanto a atitude do fazendeiro: estava correto em não vender o gado, ainda que por um preço maior, apenas por se sentir desrespeitado em sua maneira de fazer negócio?
Nesse mesmo movimento, a questão (Qual seria o final desta história no
contexto econômico e social atual?), levantada pela professora, leva o aluno a
compreender a influência determinante das condições de produção na elaboração
do enunciado. Com essa proposta, ela induz os alunos a refletir, num movimento
inverso: como seria essa narrativa caso o autor quisesse enfatizar o discurso da
modernidade em detrimento ao discurso bucólico? Destarte, Kelba impele seus
alunos a um movimento exotópico que os permitirá, alteritariamente, vislumbrar outro
lado, permitindo, nesses entreolhares, construir o seu próprio olhar, constituir-se, de
modo a tornar-se dono de seu discurso.
111
3.8 Xadrez das Cores
Filme de Marcos Schiavon, vencedor de vários prêmios29, já participou de
inúmeros festivais e já teve mais de 84 mil visualizações no site. Foi produzido no
Rio de Janeiro, em 2004, e relata a difícil convivência entre duas mulheres, patroa e
empregada, branca e negra, respectivamente. História recorrente no cotidiano
brasileiro, que retrata a difícil relação entre a classe patronal e empregados
domésticos em grande parte do país. Dona Stella (interpretada por Mirian Pyres), é
viúva, idosa, sem filhos, doente e solitária, totalmente dependente. Cida
(interpretada por Zezeh Barbosa) é a empregada, uma jovem senhora negra, pobre,
também sem filhos, trabalhadeira, honesta, independente, moradora de uma
comunidade muito pobre do Rio de Janeiro, que perdeu seu filho quando este tinha
10 anos, morto a tiros por traficantes. Dona Stella contratou Cida como sua
empregada e cuidadora. E, apesar da eficiência e da honestidade de Cida, a patroa
a distratava com palavras ofensivas, discriminatórias e preconceituosas.
O prazer de dona Stella era humilhar sua funcionária, apenas porque era
negra. Tudo que Cida fazia, e fazia muito bem, não era suficiente para agradar a
patroa, cada vez mais intolerante e pirrônica. Mesmo nos momentos de diversão, ela
gostava de jogar xadrez, era perversa e racista. E foi justamente seu único
divertimento o instrumento de libertação de Cida e dela própria, o xadrez. Dona
Stella gostava do jogo, mas não tinha companhia. Ela sempre ficava diante do
tabuleiro manuseando as peças, sem ter com quem jogar. Cida, observando a
atitude de sua patroa, procurava ajudá-la, mas não sabia como, pois não conhecia
os regulamentos. Então ela pediu à sua patroa para lhe ensinar. Dona Stella, mesmo
aborrecida, o fez, até porque seria a única forma de ela se divertir um pouco.
Assim, a empregada aprendeu as regras e tornou-se parceira de dona Stella
sempre que queria passar o tempo. No entanto, a patroa usava o jogo para
discriminar sua empregada. No início das partidas, ela sempre escolhia, de forma
impositiva, as peças brancas, e para Cida sobravam as peças pretas. Como dona
29
Finalista no Grande Prêmio TAM do Cinema Brasileiro - 2005; Melhor Curta - Júri Popular no Festival de Cinema Brasileiro de Miami - 2005; Melhor Filme - Júri Popular no Festival de Cinema de Goiás – 2005; Melhor Curta Metragem Nacional pelo Júri Popular no Festival de Cinema e Vídeo de Curitiba – 2005; Prêmio Especial no Festival de Cinema e Vídeo de Curitiba - 2005; Melhor Curta Metragem Nacional pelo Júri Popular no Festival de Goiânia - 2005; Melhor Atriz no Jornada de Cinema da Bahia – 2005; Melhor Curta Metragem Nacional pelo Júri Popular no Mostra Cine Rota 22 - 2005
112
Stella tinha mais habilidade, sempre ganhava, e toda vez que “comia” uma peça
preta, jogava-a no lixo, ressaltando o seu desprezo pelos negros. Certo dia, Cida
comprou um jogo de xadrez. Em casa, enquanto manipulava as peças, observou as
crianças brincando na comunidade onde ela morava. Então resolveu fazer do xadrez
uma saída para que aquelas crianças não vivessem a situação de violência pela
qual passou o seu filho.
Cida convida as crianças para conhecer o xadrez. Elas, uma a uma, se
aproximam e começam a jogar. Cansada de tanto ser humilhada, desiste de
trabalhar na casa da patroa racista. O sobrinho de dona Stella contrata outra
empregada. Uma mulher branca, loura. Mas a nova empregada não cuidava da
idosa como fazia a empregada negra. Assim, ela foi dispensada. O sobrinho volta a
procurar por Cida, que reluta, mas termina voltando para o emprego. Só que com
outra visão da vida, consciente de sua importância no “tabuleiro da vida” e do seu
potencial transformador. Assim, ela passou a se impor. E, a partir de então,
começou a jogar com as peças brancas, e a patroa, num sinal de mudança de
atitude, aceitou jogar com as pedras pretas. As duas acabam se tornando amigas.
O relato selecionado para este curta-metragem foi produzido pela professora
Marileia Soares dos Santos, que leciona no Centro Educacional Almirante
Tamandaré, em uma escola estadual, situada na zona urbana da cidade de Niterói-
RJ. A relatora fez uso do filme com uma turma de 33 alunos, do ensino fundamental
II, e faixa etária entre 10 a 14 anos. Os temas abordados por ela na aula, a partir da
visualização do filme, foram: cidadania, comunicação, cultura, discriminação,
diversidade, ética e preconceito racial. O seu relato teve 467 acessos, mais de 27 %
do total de 1687, um dos relatos mais bem conceituados, com 4 estrelas. Tais dados
revelam que, além de ser uma sequência didática bem feita, o trabalho é de
qualidade, e que existe um número considerável de pessoas que compartilham com
sua visão de mundo no que se refere ao assunto em questão.
Inicialmente, identificamos três eixos gerais no objetivo declarado pela
professora Marileia, ao fazer uso do curta-metragem em sua aula. O primeiro está
relacionado a questões práticas do currículo e do calendário escolar:
O intuito maior de passar este filme foi a proximidade com o "Dia da Consciência Negra". Que por lei é obrigatório em todas as escolas estaduais fazer apresentações teatrais ou quaisquer outras atividades. Fazendo com que toda a comunidade escolar participe e
113
se conscientize de que a discriminação racial não pode permanecer no ""seio"" da sociedade.
A segunda tendência expressa em seus objetivos é de natureza ética-moral,
quase panfletária, em favor da igualdade racial:
Fazendo com que toda a comunidade escolar participe e se conscientize de que a discriminação racial não pode permanecer no ""seio"" da sociedade.
E a terceira, e que nos interessa para esta análise, diz respeito à linguagem e
ao uso que se faz dela:
Desenvolver a capacidade de dialogar, respeitando o seu opositor. Trabalhar a oralidade, através da exposição de ideias de maneira clara e concisa. Oportunizar o aluno a expor possíveis casos de discriminação que tenha sofrido ou presenciado. Estimular o aluno à observação cuidadosa dos diálogos, identificando os possíveis casos de transgressão da norma culta.
Por meio da análise dos objetivos e das estratégias utilizadas nas atividades
subsequentes desenvolvidas pela professora, percebe-se que a mesma abandona
completamente o objeto, do qual se fez valer apenas para principiar um debate
sobre preconceito e discriminação racial, porém abrindo mão da materialidade
discursiva da qual dispunha: o texto fílmico. O curta tornou-se apenas um pretexto,
por meio do qual uma exigência da grade curricular da escola fosse cumprida. Desta
forma, o curta-metragem não foi concebido como um texto, na sua dimensão
linguístico-enunciativa; o que seria possível por meio da exploração dos recursos
discursivos presentes na linguagem cinematográfica utilizada no filme.
Explorar dialogicamente a materialidade do texto fílmico significa perceber
como os elementos linguísticos se articulam na produção dos efeitos de sentidos
desejados pelo diretor e captados pelo telespectador. Por exemplo, como o figurino
e a maquiagem, dois importantes sistemas de significação usados no cinema, das
personagens do curta Xadrez das cores contribui para a construção da imagem
valorativa que o telespectador concebeu delas, bem como a impressão que o autor
deseja atribuir a elas; o que as roupas revelam de suas personalidades, da
sociedade em que estão inseridas, e quais visões de mundo pode apresentar
alguém que se veste ou se maquia como as heroínas do filme. Essa abordagem
114
enunciativa-discursiva pode oferecer ao aluno subsídios necessários para que ele
possa assumir uma posição de interlocutor ativo-responsivo (BAKHTIN, 2003).
E para que isso aconteça de maneira eficiente, reconhecemos a premência
de uma formação adequada do professor, visando o aprimoramento da sua
capacidade de leitura das linguagens utilizadas pelo cinema. Assim, o que vamos
ponderar aqui cumpre o intuito de evidenciar, não uma fragilidade da professora,
mas a necessidade de habilitar os professores a trabalhar com textos fílmicos na
escola, um dos objetivos desse trabalho, salientar a imprescindibilidade da inclusão
dessa demanda nos cursos de formação continuada.
Por outro lado, ainda baseado nos objetivos explicitados pela autora do relato,
o terceiro eixo mencionado acima, o que diz respeito à linguagem, a docente
manifesta preocupação com a aquisição de habilidades e competências discursivas
do aluno, sugerindo que essas fossem desenvolvidas por meio de processos
interacionistas, como diálogos, exposição de situações vividas, respeito aos
interlocutores. Isso sinaliza para uma concepção de linguagem que valoriza sua
natureza dialógica, embora o último objetivo relacionado por ela e algumas
expressões de seu repertório léxico indicarem um resquício da concepção
estruturalista de linguagem: Estimular o aluno à observação cuidadosa dos diálogos,
identificando, de maneira clara e concisa, os possíveis casos de transgressão da
norma culta.
Em que pese o seu cuidado em promover a competência discursiva em seus
alunos por meio de recursos interacionistas, a professora/autora não especificou, em
seus objetivos, por meio de que gêneros e para quais esferas da atividade humana,
das quais seus alunos participam, ou poderiam vir a participar, ela estava buscando
desenvolver as habilidades e competências discursivas. Segundo Bakhtin (2003),
qualquer ato de comunicação se dá por meio de gêneros do discurso, e a escolha do
gênero é determinada, dentre outros, pela intencionalidade do falante e pela esfera
por onde o seu discurso irá circular.
Evoluindo com a análise, agora examinando as estratégias e atividades
empregadas pela docente, chegamos à interdiscursividade, um dos conceitos que
integram a noção de dialogismo. Percebemos que a professora fez uso de um texto
do gênero letra de canção, da esfera musical, estabelecendo, de forma
interdiscursiva uma relação de conformidade entre os textos:
115
Um aluno comprometeu-se em baixar da Internet músicas com teor do preconceito. Uma vez de posse do CD (com músicas de Gabriel O Pensador), o mesmo foi apresentado em sala...
Entendemos que essa abordagem intertextual adotada pela professora
contribuiu para o desenvolvimento e uma compreensão ativa-responsiva em seus
alunos. Ao ouvirem a música, outros temas e assuntos surgiram como uma resposta
ao enunciado do filme, e mais do que uma simples resposta, um posicionamento
crítico e valorativo frente às questões polêmicas em torno do preconceito e do
racismo, segundo ela:
(...) gerando mais uma discussão: "Por que o negro, quando se destaca na sociedade opta por casar com uma mulher branca (de preferência loura)? "Por que tal comportamento não se verifica com a mulher que ascende socialmente?" A experiência gerou outros desdobramentos, inclusive estimulando a pesquisa.
No entanto, consideramos que o tema poderia ser abordado sob outros
prismas, contrário inclusive, utilizando, além da letra de canção, outros gêneros,
como artigos de opinião, reportagens, notícias de jornal, poesias, propaganda,
piadas, etc. Com tal encaminhamento, a professora promoveria mais
espontaneamente uma compreensão ativa-responsiva, obtendo resultados mais
satisfatórios na interpretação textual. Bakhtin (2003) nos lembra que um enunciado,
seja da esfera artística ou não, será sempre fruto de um intricado diálogo com outros
enunciados. Desta forma, podemos concluir que um filme sempre manterá relação
dialógica com outras produções anteriores e contemporâneas a ele, da mesma
natureza textual ou não. Porque “em cada palavra há vozes, às vezes infinitamente
distantes, anônimas, quase impessoais, quase imperceptíveis, e vozes próximas,
que soam concomitantemente” (BAKHTIN, 2003, p. 330).
Por outro lado, explorando a relação indissolúvel entre vida e arte, a
professora, por meio de uma peça teatral, recupera algumas das situações do
cotidiano de sua comunidade.
Surgiu a ideia de se montar uma peça abordando o tema do preconceito racial. Assim foi feito. Pensaram sobre como agir, considerando uma situação de discriminação. Durante a peça, percebia-se a indignação de alguns através da expressão fisionômica e/ou através de interjeições.
Essa iniciativa resultou em uma atividade estética-discursiva, por intermédio
da qual os alunos recriaram, a partir da realidade concreta, um novo enunciado
116
acerca do racismo e o preconceito racial. De fato, todo discurso é resultado de uma
espécie de transfiguração do mundo vivido (SOBRAL, 2009). Para tanto, a
professora os conduziu por um processo exotópico, a partir do qual se apropriaram
do olhar daquele que pratica o racismo e de quem sofre esse tipo de preconceito. E
esse novo objeto discursivo criado, resultante dessa elaboração estética, trouxe
consigo as marcas ideológicas de seus autores e suas visões de mundo, porque foi
construído por meio de uma linguagem que por sua vez é composta de signos
ideológicos (BAKHTIN, 1992).
Outro ponto positivo a ser ressaltado na prática da professora Marileia com o
curta-metragem Xadrez das Cores foi o envolvimento dos alunos que, mesmo
divididos em grupos, não permaneceram isolados, houve de fato uma interação
entre eles. A preparação feita pela professora, uma aula antes, com a leitura da
sinopse do filme, bem como as discussões realizadas após a exibição do filme,
contribuíram para a ampliação do debate acerca do tema proposto. Além disso, ela
se mostrou conhecedora da realidade e das necessidades dos alunos, trazendo para
a aula temas de interesse da comunidade onde eles residem. E, ao permitir que os
alunos se expressassem a partir de suas próprias vivências, demonstrou ter
consciência da importância da participação dos alunos no processo de ensino-
aprendizagem, situando-os numa posição de protagonistas na construção do
conhecimento, por valorizar suas vivências prévias de leitura e de mundo
(KLEIMAN, 2009).
Para encerrar, sentimos falta de uma abordagem enunciativa em seu trabalho
com o texto fílmico, na medida em que não situou o enunciado na corrente
discursiva em que ele está inscrito: produção, circulação e recepção, ou seja, seu
contexto de produção. Para Bakhtin (1992), a enunciação sempre será o produto da
interação entre pelo menos dois sujeitos, que são pessoas que vivem, ou viveram
em um tempo, numa localidade, com seus costumes, ideologias, valores, posição
social (vozes), os quais determinam a forma, o conteúdo, bem como as entoações
discursivas do enunciado. Dentro de uma concepção interacionista de linguagem,
não é possível conceber o enunciado divorciado do sujeito que o produz e do seu
interlocutor.
Tal abordagem é importante porque leva os alunos a refletirem sobre a função
social do texto, o que o autor pensa sobre esse assunto, a quem pode interessar,
em quem o autor pensava ao elaborar o enunciado, que sentidos queria construir.
117
Conhecer esses aspectos enunciativos permite ao aluno tomar seu turno no discurso
e oferecer uma resposta ao locutor, que, por sua vez, almeja uma compreensão
responsiva dos seus outros. Porque todo mundo que produz um enunciado espera
uma resposta daquele para quem se dirigiu. Pois, “o locutor termina seu enunciado
para passar a palavra ao outro ou para dar lugar à compreensão responsiva ativa do
outro” (BAKHTIN 2003, p.294).
118
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao chegar neste ponto do trabalho, esperamos sintetizar, de forma inteligível
e objetiva, o que abordamos ao longo da dissertação, bem como apresentar nosso
ponto de vista e algumas contribuições acerca do tema tratado nesta pesquisa.
Inicialmente, apresentamos a definição e os aspectos caracterizadores do curta-
metragem, com ênfase na sua autenticidade, brevidade temporal e condensação
narrativa, atributos que o colocam em vantagem frente ao longa, quando se trata do
uso pedagógico desses. Seguidamente, apresentamos os fatores históricos,
políticos e econômicos que marcaram a trajetória do gênero, desde seu nascimento
até sua consolidação. Compreender esses caminhos, às vezes subversivos, pelos
quais trilhou o curta-metragem no Brasil, foi de fundamental importância para que
pudéssemos constituir uma percepção valorativa a respeito do nosso objeto de
pesquisa, para, em seguida, defender sua viabilidade como recurso pedagógico.
No capítulo seguinte, buscamos evidenciar a profícua relação existente entre
o pensamento de Mikhail Bakhtin e o cinema, enquanto linguagem, uma vez que
entendemos suas produções, dentre elas o curta-metragem, como gêneros
discursivos, por meio dos quais o homem se manifesta em alguma esfera de
atividade da qual participa. Procuramos responder também, na medida do possível,
algumas questões fundamentais que afetam o ensino de linguagem, na sua relação
com as multimodalidades, em especial o modo audiovisual de representar. Para
tanto, recuperamos a concepção de linguagem como interação social, delineada
pelo círculo de Bakhtin, além dos conceitos de gênero discursivo, dialogia,
arquitetônica, cronotopia, exotopia, vozes, ético e estético. Tais categorias nos
serviram de base para pensar a linguagem cinematográfica, bem como para
fundamentar nossas reflexões e análises acerca dos relatos feitos por professores
que fizeram uso de curtas-metragens, do projeto Curta na Escola, em suas aulas de
língua portuguesa.
Durante todo o percurso deste trabalho, defendi entusiasticamente a
aplicação dos conceitos de Bakhtin à reflexão acerca da linguagem do cinema e seu
uso em sala de aula, porque acreditamos que suas ideias podem contribuir
decisivamente para superar as concepções tradicionais que encaram o cinema de
forma monoglota e unidirecional, na qual o telespectador não passa de um receptor
119
de informações enviadas pelos produtores dos filmes. E Bakhtin antecipou em 80
anos essa chaga social que aflige a humanidade atualmente, qual seja a
monologização promovida pela mídia. Nesse mesmo capítulo, apresentamos a
concepção dialógica de linguagem, postulada pelo teórico russo, baseada na qual
acreditamos ser possível que os leitores/espectadores possam se colocar como
sujeitos que interpretam ativamente, que negociam dialogicamente os sentidos dos
enunciados audiovisuais.
Nosso trabalho mostrou, também, que a obra do pensador russo é igualmente
adequada para pensar o multiletramento, na medida em que nos apresenta a
necessidade de articulação entre os sentidos e os modos com os quais são
produzidos os enunciados. Consequentemente, essa constatação levou os
professores a rever suas práticas de ensino de leitura e de escrita, o que fez com
que formas alternativas, polifônicas e heterogêneas de discurso passassem a ser
consideradas no âmbito escolar. Consoante essa realidade, os PCN de Língua
Portuguesa, no início dos anos 1990, apontam práticas pedagógicas baseadas na
concepção interacionista de linguagem como paradigma de ensino, abrindo caminho
para que as escolas, enfim, adotem uma política capaz de garantir ao aluno o papel
de sujeito ativo no processo de produção de sentidos, no qual ele possa negociar
um sentido alternativo ao discurso hegemônico da maioria dos livros didáticos, cujas
interpretações eram predefinidas pelos seus autores.
Após o inventário teórico que nos habilitou a realizar análise crítica de objetos
culturais, bem como o uso pedagógico que se faz deles, caso do texto fílmico,
partimos para análise do corpus selecionado. Direcionamos nosso olhar para os
elementos discursivos presentes nos relatos dos professores a fim de buscar
respostas às nossas perguntas de pesquisa. Com relação à primeira, que diz
respeito à concepção de linguagem adotada pelos professores ao fazerem uso dos
curtas-metragens, percebemos, no geral, por meio dos objetivos e estratégias
apresentados, uma forte inclinação de cunho interacionista. No entanto, a execução
dos planos de aula, na prática, ainda revela, em alguns casos, um certo
monologismo, principalmente quando se trata dos gêneros e da multiplicidade de
sistemas representativos disponíveis atualmente aos professores. Isso pôde ser
constatado na escolha dos textos a serem trabalhados após a exibição dos filmes,
limitando-se, na maioria das vezes, em textos verbais e gêneros do cânone escolar.
120
A resposta as duas perguntas de pesquisa seguintes talvez explique essa
aparente incoerência. Buscamos responder, por meio da análise dos relatos, quais
as dificuldades encontradas por eles ao lidarem com os modos midiáticos de
representar, além de identificar as motivações dos professores para fazer uso de
textos audiovisuais em sala de aula. No que se refere às dificuldades, destaca-se a
falta de perícia para lidar com a linguagem audiovisual, tanto em níveis técnicos e
organizacionais; a não articulação com o currículo e o desconhecimento dos códigos
utilizados nos textos fílmicos completam o rol de obstáculos, que prejudicam o uso
adequado de filmes em sala de aula, levando a uma situação de aparente
incoerência, descrita no parágrafo anterior.
No que tange às motivações que levam os docentes a fazer uso do cinema
nas suas aulas de linguagem, as experiências narradas revelaram professores em
busca de novos mecanismos que proporcionassem a eles o uso pedagógico de
elementos socioculturais, dos quais seus alunos fossem consumidores em situações
reais, levando-os, consequentemente, a se sentirem incluídos no processo de
ensino-aprendizado. A escolha, quase óbvia, foi o produto cultural mais consumido
pelos jovens da atualidade: os filmes. Em que pese o pouco conhecimento do
sistema representativo audiovisual utilizado pelo cinema, é de longe a linguagem
com maior alcance e maior poder de persuasão entre os jovens.
Durante a análise dos relatos, além de prover respostas às nossas perguntas
de pesquisa, pudemos efetuar outras constatações com relação ao uso pedagógico
do nosso objeto de pesquisa, dentre elas sua efetiva exequibilidade em todos os
níveis de ensino, bem como seu potencial em desenvolver nos alunos habilidades e
competências comunicativas. Destacamos sua riqueza de conteúdo, cujo cunho
sociocultural proporciona atividades que exigem compreensão, destreza e
interatividade muito próximas das que são vividas pelos estudantes em seu dia a
dia. Isso favorece a formação de sujeitos sociais que sejam capazes de se adaptar
e, consequentemente, se comunicar na atual sociedade, a qual recebe uma
overdose diária de enunciados imagéticos; alguns com carga reflexiva bastante
qualificada, como é caso dos curtas-metragens disponíveis no projeto Curta na
Escola, produções com potencial de elevar o cinema de mera indústria cultural ao
status de arte.
Refletimos também acerca do papel do educador na utilização de um produto
cultural, cujo uso per se não garante o aprendizado. Trata-se de um objeto que não
121
possui natureza didática, exigindo do professor habilidade nesse processo, que vai
desde a elaboração dos objetivos, passa pela escolha do material adequado e, por
fim, culmina na aplicação de estratégias que atinjam seu escopo. A análise dos
relatos evidenciou que, para atingir o sucesso nessa empreita, o professor precisa
ter em mente que os curtas somente se constituirão enquanto recursos didáticos
quando empregados de forma significativa, relacionando-os ao conteúdo curricular,
qualquer uso que se faça deles descolados dessa perspectiva não passará de
diversão aos alunos. Assim, reforçamos que, ao se servir de um enunciado
audiovisual como apoio didático, esse deve ser encarado como tal, ou seja, como
um meio de aprendizagem, o qual exigirá do professor organização, método e
avaliação, conforme nos lembra Napolitano (2003, p.16).
Portanto, entendo que aquilo que justifica a presença o texto cinematográfico
nas aulas de Língua Portuguesa é a sua finalidade pedagógica, pois, embora seu
propósito primeiro seja o entretenimento, seu papel no ambiente escolar deve
priorizar a construção do conhecimento. E esse princípio passa pela capacitação
reflexiva dos docentes. Isso significa que os centros de formação de professores
precisam reformular suas estratégias, normalmente centradas na formação tecnicista
e conteudística, buscando uma rota que conduza o professor a refletir sobre suas
práticas pedagógicas, e não apenas repetir fórmulas repassadas pelos cursos de
formação continuada.
Durante o percurso dessa pesquisa, constatei, enquanto professor, que não
basta apenas possuir conhecimento teórico sobre a linguagem cinematográfica, é
preciso adquirir uma consciência reflexiva acerca de nossa prática social com o
cinema, sem a qual todo conhecimento teórico acerca desse objeto será inútil. E isso
se faz necessário não apenas em sala de aula, mas em todas as esferas em que a
linguagem audiovisual se fizer presente. Eis a chave desse nó: a articulação do
conhecimento adquirido, teórico, mas também empiricamente, com as práticas
sociais das quais somos sujeitos, inclusive a profissional. E isso só será possível
ante uma atitude reflexiva de nós, docentes.
Não acredito na capacidade desses cursos de formação oferecidos pelos
Cefapros em despertar essa consciência reflexiva com relação ao uso do cinema em
sala de aula. Afirmo isso com base nas motivações que levam os profissionais de
educação a buscarem tais capacitações, quais sejam o acúmulo de pontos para
garantir emprego, melhores turmas ou certas regalias oferecidas pela direção da
122
escola. Ou seja, a formação virou moeda de troca para os docentes conseguirem
alguma vantagem, a qualificação, de fato, vem, não raro, e quando vem, em
segundo plano. Assim sugiro que os cursos direcionados a professores sobre o uso
de cinema em sala de aula não apresentem esse caráter mercadológico, eles não
precisam possuir essa condição de treinamento obrigatório, valendo pontos,
centrados em repetição tecnicista e fórmulas de como usar o filme em sala de aula.
Poderia ser uma ação em forma de oficina baseada num modelo reflexivo,
assim, só participariam da oficina aqueles professores que estivessem dispostos a
conjugar formação teórica e práticas sociais, das quais eles e seus alunos fizessem
parte. Penso que esse tipo de iniciativa surtiria um efeito mais abrangente e mais
significativo na qualificação reflexiva de educadores para utilização das produções
cinematográficas nas suas práticas pedagógicas. Tais professores, muito
provavelmente, estariam aptos a extrair da linguagem cinematográfica todo seu
potencial educativo, tornando-se leitores capazes de realizar uma leitura crítica dos
filmes e, consequentemente, da realidade social. Tal cenário levaria o cinema a um
patamar bem além de mero suporte de ilustração de conteúdo.
Com relação à recepção dos alunos a esse tipo de recurso, os relatos
revelaram que eles aderiram sem reservas às atividades propostas pelos
professores, embora, no meu entendimento, o nível de exploração da linguagem
audiovisual presente nos filmes tenha ficado muito aquém. Assim, cabe ao docente
promover ainda mais o uso didático adequado dessa ferramenta, impulsionando seu
emprego em sala de aula, fazendo dela um meio recorrente de mostrar a realidade e
suas contradições, sempre confrontando-a com outros gêneros discursivos, a fim de
proporcionar ao aluno uma experiência nova enquanto leitor, sem subestimar sua
capacidade de interpretação.
Almejo que este trabalho suscite outras ideias de aplicação pedagógica do
curta-metragem, fonte inesgotável de material sociocultural, e que seu
inquestionável poder interacionista possa ser utilizado cada vez mais como meio de
refletir e refratar a realidade de forma direta e expressiva.
Assim, encerro este trabalho com a convicção de que os curtas-metragens do
projeto são grandes aliados do professor de língua portuguesa na formação de
leitores de textos que se utilizam de múltiplas linguagens. Enfatizo que existem
outras estéticas cinematográficas além daquelas utilizadas por Hollywood, e que o
gosto do público, além de ser motivador para a indústria cinematográfica, pode ser
123
motivado por professores engajados em mostrar a seus alunos outras possibilidades
do texto fílmico, além daqueles com os quais estão familiarizados.
Espero que nossas reflexões possam colaborar com aqueles que desejam
fazer uso dessa rica linguagem, em que todo movimento de câmera atende a uma
intenção, que nenhum corte ou close up são aleatórios e que cada plano atende a
uma função discursivo-enunciativa, aguardando o devir para lhe completar o sentido,
sendo apenas uma questão do tempo grande.
124
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129
ANEXOS
Dados dos Relatos (como aparecem no site)
I. Confronto de poderes
Titulo do Relato: Confronto de poderes
Filme Utilizado: O Lobisomem e o Coronel
Professor-Autor: cleide brasil rodrigues
Escola: Escola Senador Petronio Portela - PE
Data do Relato: 09/11/2007
Objetivos
Conhecer a realidade do povo nordestino e o poder da oligarquia (latifundiário).
Vivenciar a cultura popular com seus versos e rimas no cotidiano do povo
nordestino. Apropriar-se da forma de reescrever textos na forma de literatura de
cordel. Conhecer os diversos tipos de impressão (livros, jornais, revistas,
panfleto,etc.), ressaltando a xilogravura pela expressividade de seus traços na
realidade de expressão.
Sequência de atividades
Preparação do espaço pelos alunos para veiculação do filme. Breve relato dobre o
enredo do filme, com questionamentos sobre confronto de poderes - padrão x
empregado. Exposição sobre diversos tipos de impressão, ressaltando a xilogravura
nos livretos de literatura de cordel. Exibição do filme, orientando-os para observarem
os diversos ambientes e momentos da história e como os personagens são
apresentados como uma folha de papel. Realizar pesquisa no ambiente escolar e
comunidade local sobre a literatura de cordel. Coletar imagens que reporte ao
enredo do filme para elaboração de painel. Exposição do painel no ambiente escolar
com reescritura do texto em literatura de cordel.
130
Resultado
Ficaram todos encantados com o enredo da história, as sequência das imagens feito
folhas de papel, as expressões em forma humana real com a mistura de desenhos,
mas que retrataram a forma de tratamento entre rico x pobre, a vivência no mundo
rural, sonhos de uma jovem, lendas e fantasias na canto do violeiro em noite
enluarada, onde faz denúncias, mostra os costumes dentro de uma alegria e
singeleza de um povo com uma cultura rica e variada. Este curta faz um resgate da
oralidade do povo nordestino, valorizando a cultura do Nordeste. Ao realizar
pesquisa sobre a literatura de cordel todos comentaram que sentiram-se como
personagens de cada história em seus contexto da realidade em que vivem numa
comunidade carente e com múltiplos problemas sobre ocupação e poder de seu
próprio espaço enquanto cidadão, sem porém deixar de lado as suas raízes
culturais. Na confecção do painel muitas questões foram discutidas, tais como,
proceder a coleta de imagens que retratassem o enredo da história numa visão de
personagens reais e imaginários - figuras em forma humana e de papel, desenhos,
caricaturas, xilografia, etc. Ao expor o painel no ambiente escolar todos ficaram
fascinados pela forma de produção e confecção em que os alunos demonstraram ter
adquirido conhecimentos e informações sobre a cultura popular do Nordeste.
II. A linguagem (verbal e não-verbal): instrumento de cidadania
Titulo do Relato: A linguagem (verbal e não-verbal): instrumento de cidadania
Filme Utilizado: Velha História
Professor-Autor: Nilia Santana Costa Brito
Escola: Escola Estadual Tancredo de Almeida Neves - MT
Data do Relato: 19/10/2010
Objetivos
Possibilitar que os alunos adquiram sólidos conhecimentos e habilidades, para que
desenvolvam hábitos de leitura e escrita/interpretação e técnicas de trabalho através
do uso das linguagens verbal e não verbal buscando desenvolver sua
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expressividade, construírem sentidos e informações a partir da interação que
estabelece com o mundo. Analisar, comparar e distinguir diferentes linguagens;
Utilizar-se das tecnologias da comunicação e informação.
Sequência de Atividades
Este trabalho é uma das ações do projeto da area de Linguagem que busca
apresentar ao educando a importancia das multiplas linguagens (verbal e não
verbal) 1º Passo: Exibimos o curta Velha Historia sem o áudio para os alunos
assistirem somente observando a seqüência de imagens Após assistirem o video, os
alunos produziram um texto escrito de acordo com a leitura de imagem realizada por
eles durante o filme 2º Passo O grupo assistiu ao filme novamente com audio e para
análise entre a leitura feita por eles e o conto. Nesse momento tiveram contato com
o texto escrito (obra Velha História) Neste passo, oportunizamos o debate e
reflexões sobre as importâncias das diversas possibilidades de leitura do aluno. 3º
Passo De posse das produções dos alunos ao assistirem a seqüência de imagens e
do Conto "Velha História" de Mário Quintana, estes foram incentivados a produzirem
uma análise em que fazem uma relação entre os dois textos (diferenças e
semelhanças entre a idéia do autor e a possibilidade de leitura oferecida pela
seqüência de imagens do curta assistida sem o recurso do áudio. Neste momento
estaremos instigando a escrita de análise comparativa. 4° Passo Utilizamos um
outro texto: A águia que (quase) (outro suporte ) virou galinha de Rubem Alves
apresentado no formato POWER POINT estabelecendo uma relação de
intertextualidade com o conto de Mário Quintana. Utilizamos como recursos de
interpretação, a leitura, debate e análise oral dos textos, instigando a importância da
permanência de cada ser vivo em seu habitat, o respeito e amor mútuo por cada
espécie. 5º Passo Como último passo, solicitamos aos alunos uma produção escrita
com um olhar intertextual para os textos trabalhados e o curta Velha História e que o
mesmo seja desenvolvido utilizando-se do software HagáQuê, um editor de histórias
em quadrinhos com fins pedagógicos.
Resultado
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De posse do plano de trabalho, começamos a colocar em prática nas turmas de 1º
ano e percebemos a interatividade dos alunos, bem como o interesse demonstrado,
já que se tratava de uma aula diferenciada e com uso de instrumentos lúdicos. Os
alunos mostraram-se bastantes criativos ao realizar a leitura da sequencia de
imagens do curta Velha História, o qual de inicio fora apresentado sem o audio, o
que possibilitou a criação imaginária de uma nova história por cada um, segundo
sua leitura e percepção das imagens apresentadas no curta. Conforme relatos de
alguns, após assistirem o video, dessa vez com audio, puderam perceber que essa
prática possibilitou que(essa atividade serviu para que eles) compreendessem as
múltiplas leituras de mundo que é possível através de uma mesma situação. O uso
da intertextualidade realizado entre o filme e o texto de Rubem Alves (apresentado
em power point) intitulado A aguia que (quase) virou galinha, proporcionou a
abertura de outras leituras, a visão dos alunos para compreenderem os diálogos
existentes entres textos e autores, bem como serviu de subsídio para que os alunos
produzissem sua própria história (apropriar-se do dicurso dono de seu próprio
discurso) seguindo a linha de pensamento dos autores, em relação a como o meio
em que se vive influencia em nossa práticas cotidianas. Essa versão final foi
apresentado a comunidade escolar em evento cultural na escola através de histórias
em quadrinhos montadas pelos alunos com uso do software Hagá Quê, que fora
confeccionado um livro por turma. O resultado será postado no blogger oficial da
escola (tancredonevescola.blogspot.com) Professores de linguagem que atuaram:
Laura Neide de Sousa Ferreira Pinheiro, Nilia Santana Costa Brito.
III. Uma verdade desconhecida
Titulo do Relato: Uma verdade desconhecida
Filme Utilizado: Ilha das Flores
Professor-Autor: Antônio Evaldo Jesus Velho
Escola: Escola Estadual Melvin Jones - RS
Data do Relato: 29/10/2007
Objetivos
1º- Observar a riqueza no uso das figuras de linguagem no nosso dia a dia. 2º-
Observar que a nossa língua é rica em qualquer área que atue. 3º- Interpretação de
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textos poéticos e publicitários. 4º- Observar a transitividade e a mudança da
linguagem por área pesquisada. 5º- Produzir um vídeo em CD, através de fotos e
relatos sobre o próprio Bairro, interagindo com o que assistiu em "Ilha das Flores".
Sequencia das atividades
Formou-se 04 grupos e, cada um ficou 02 ou 03 figuras de linguagem para
representar, através delas, o que viram no filme e, relacioná-las com o tema " Meio
Ambiente" e, com a própria articulação da fala no meio em que vive. Montaram 04
espaços e em cada mostrou-se através de vídeo, o meio ambiente do bairro deles, o
lixo, a poluição do mangue. Através de colagens, cartazes ( com poemas, músicas e
figuras ) mostrou-se o presente e o futuro do nosso planeta. As figuras de linguagem
utilizadas foram: Antítese, metonímia, hipérbole, metalinguística, eufemismo,
metáfora, comparação pleonasmo e personificação.
Resultado
O resultado foi positivo e produtivo pois os alunos montaram standers na sala de
aula e as outras turmas foram convidadas a assistir as apresentações. Eles puderam
entender o uso das funções da linguagem no dia a dia e, com isso ajudá-los na
interpretação de textos poéticos e publicitários. O aspecto lúdico foi a produção do
próprio DVD sobre o Bairro deles e, assim ficaram orgulhosos e ao mesmo tempo
chocados pois viram que deveriam e poderiam ajudar mais a modificar o meio em
que vivem através da palavra ou seja, através da Língua Portuguesa. A figura de
linguagem "Personificação" foi a que mais se destacou tanto no filme como na
representação feita, por eles, através de bonecos. O eufemismo se destacou, no
trabalho deles, através de desenhos e montagens com material reciclavel mostrando
que dentro das cidades os prédios, outdoors e algumas árvores disfarçam a sujeira
das cidades. A hipérbole também se destacou com o exagero de lixo produzido pelo
homem e jogado na natureza. Fotos de miseráveis junto a prédios austeros e
imponentes representam perfeitamente o paradoxo (antítese) da sociedade
moderna.
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IV. Minha Língua é minha pátria
Titulo do Relato: Minha Língua é minha pátria
Filme Utilizado: Negócio Fechado
Professor-Autor: Kelba Assumpção Lima
Escola: EE – Centro Educacional Teodoro Sampaio - PA
Data do Relato: 14/09/2012
Objetivos
Diferenciar linguagem oral de linguagem escrita. - Desmistificar a questão do uso da
língua. - Valorizar as diferenças culturais e linguísticas. - Refletir sobre as variações
da língua. - Usar a linguagem com autonomia e sem preconceitos - Perceber
diferenças na fala de pessoas de outras regiões. - Rever e aprofundar os
conhecimentos sobre a variação linguística - Refletir a questão da convenção da
escrita em relação à linguagem falada.
Sequência das atividades
1º MOMENTO: 1.Sensibilização. Apresentar palavras e expressões pertencentes ao
grupo semântico de alguns grupos sociais e regiões. Solicitar que, usando diferentes
falares, encontrem argumentos para persuadir um colega a comprar: Um
computador sem CPU, um bilhete de loteria já vencido e não premiado. 2.Questões
para reflexão sobre variações linguísticas, preconceito linguístico... 2º MOMENTO:
1.Leitura e análise do texto Declaração Mineira de Amor aos Amigos 2.Leitura do
filme " Negócio Fechado". Falar um pouco sobre o filme; Estimular para que os
alunos imaginem o que pode ter acontecido no final da história. As diferentes
hipóteses serão anotadas na lousa. Estabelecer como foco da discussão futura a
forma de falar dos personagens. Assistir ao filme, observando os seguintes
aspectos: O gênero textual explorado pelo autor. Estado brasileiro onde a história se
passa. Análise da fala dos personagens. (É parecida com a nossa?O que há de
diferente? Escrevemos como falamos? Por quê? Fazer as seguintes anotações a
partir da leitura do filme: Frases que caracterizem a língua formal; Frases que
apresentam variações dialetais. 3.Discussão do filme. Eixo central da
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discussão:reconhecimento das variedades linguísticas, respeitando a diversidade.
Aspectos a serem discutidos: 1. O conteúdo do filme (as impressões e opiniões). 2.
O cenário. 3. Perfil dos personagens nome,idade aproximada,grau de escolaridade,
classe social. 4.Linguagem utilizada. 5 Elementos que mais chamaram atenção nas
cenas. Justificar com exemplos. 6.Qual seria o final desta história no contexto
econômico e social atual? Redigir um parágrafo argumentativo a partir do
questionamento abaixo: "Quanto a atitude do fazendeiro: estava correto em não
vender o gado, ainda que por um preço maior, apenas por se sentir desrespeitado
em sua maneira de fazer negócio? " 3º MOMENTO: 1.Apresentação do conteúdo
Variações Linguísticas 4º MOMENTO Avaliação diagnóstica e processual;auto-
avaliação.
Resultado
O filme Negócio Fechado foi utilizado como recurso introdutor do tema a ser
explorado - Variações linguísticas - , a fim de despertar os alunos para o assunto em
questão. Foram incluídas múltiplas linguagens; o estudo de textos e a aula
expositiva que transcorreram após apresentação do vídeo, serviram para referendar
os pontos importantes apresentados no filme, aprofundar o assunto e introduzir
ideias que tenham passado despercebidas. O trabalho foi extremamente gratificante;
o filme é leve e divertido; com apresentação de tipos interessantes que retratam uma
cultura única do interior, trazendo para a sala de aula uma atmosfera diferenciada
das aulas comuns, promovendo os resultados alcançados que superaram as
expectativas. A associação do uso do filme aos conteúdos teóricos e leitura de
textos sobre o tema contribuiu para motivar e fixar o aprendizado, reforçar a
capacidade de argumentação, facilitar a compreensão do tema, abrir espaço para
debates e discussões. Alguns fatores responsáveis pelo sucesso do trabalho foram:
o planejamento detalhado da atividade, direcionando a classe para questionamentos
pertinentes; o uso da linguagem cinematográfica cheia de símbolos e significados a
serem desvendados pelo espectador, misturando envolvimento, enredo, movimento,
desafio e suspense, provocando, desse modo, ampla capacidade de comunicação,
promoção da curiosidade, reflexão e do imenso potencial de aproveitamento no
processo educativo. Percebeu-se um maior interesse por parte do aluno, na
apreensão dos conteúdos específicos; a sua participação durante os debates foi
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constante, servindo como fontes de experiências emocionais e cognitivas, que
permitiram ampliar a visão de mundo e aperfeiçoar as competências, habilidades e
atitudes. Enfim, pudemos constatar que o trabalho com filmes constitui uma
ferramenta valiosíssima para o processo educacional. Foi muito bom!
V. Quem vale mais
Titulo do Relato: Quem vale mais
Filme Utilizado: Xadrez das Cores
Professor-Autor: Marileia Soares dos Santos
Escola: CE – Almirante Tamandaré – RJ
Data do Relato: 30/10/2008
Objetivos
O intuito maior de passar este filme foi a proximidade com o "Dia da Consciência
Negra". Que por lei é obrigatório em todas as escolas estaduais fazer apresentações
teatrais ou quaisquer outras atividades. Fazendo com que toda a comunidade
escolar participe e se conscientize de que a discriminação racial não pode
permanecer no ""seio"" da sociedade. O intuito maior de passar este filme foi a
proximidade com o "Dia da Consciência Negra". Que por lei é obrigatório em todas
as escolas estaduais fazer apresentações teatrais ou quaisquer outras atividades.
Fazendo com que toda a comunidade escolar participe e se conscientize de que a
discriminação racial não pode permanecer no ""seio"" da sociedade. Desenvolver a
capacidade de dialogar, respeitando o seu opositor. Trabalhar a oralidade, através
da exposição de ideias de maneira clara e concisa. Oportunizar o aluno a expor
possíveis casos de discriminação que tenha sofrido ou presenciado. Estimular o
aluno à observação cuidadosa dos diálogos, identificando os possíveis casos de
transgressão da norma culta.
Sequência das Atividades
Leitura da sinopse do filme, na aula anterior. Apresentação do filme com posterior
debate. Depois os alunos produziram resenha, onde tiveram, mais uma vez, a
oportunidade de analisar e questionar valores. Pesquisa de músicas, cujas letras
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revelam certo teor de preconceito. Pesquisa e análise de músicas, cujas letras,
abordam as questões do preconceito racial e social. Organização de esquetes sobre
o tema para apresentação na "Semana da Consciência Negra.
Resultado Foi uma experiência gratificante, pois os alunos conseguiram expor, sem receios,
situações vivenciadas. Neste momento a discussão tomou outro rumo, quando uns
defendiam e outros atacavam a questão do aborto. c) Houve também o grupo dos
acomodados. Aqueles que consideram que os fatos funcionam assim mesmo e não
tem mais nada a fazer. Também aqui gerou-se outro debate muitíssimo importante,
pois o grupo dos que pensam que a vida é uma constante luta e que não devemos
desanimar nunca, tentava influenciar os colegas no sentido de que os mesmos não
deveriam desanimar nem aceitar, passivamente, a imposição da sociedade. Alunos
mais tímidos sentiram-se estimulados a dar seus depoimentos, demonstrando
confiança no grupo. Surgiu a ideia de se montar uma peça abordando o tema do
preconceito racial. Assim foi feito. Pensaram sobre como agir, considerando uma
situação de discriminação. Durante a peça, percebia-se a indignação de alguns
através da expressão fisionômica e/ou através de interjeições. Importante ressaltar
três posições diferenciadas: a) um grupo reagiu com sentimento de raiva, sugerindo,
inclusive, a agressão física da personagem que discriminava a empregada. b) Outro
grupo reagiu de maneira totalmente contrária, defendendo o perdão, pois
considerava que a personagem da senhora já tivera sido punida, quando foi
obrigada a fazer um aborto. Um aluno comprometeu-se em baixar da Internet
músicas com teor do preconceito. Uma vez de posse do CD (com músicas de
Gabriel O Pensador), o mesmo foi apresentado em sala, gerando mais uma
discussão: "Por que o negro, quando se destaca na sociedade opta por casar com
uma mulher branca (de preferência loura)? "Por que tal comportamento não se
verifica com a mulher que ascende socialmente?" A experiência gerou outros
desdobramentos, inclusive estimulando a pesquisa, a observação atenta do
emprego da língua de acordo com o padrão culto e de detalhes que podem justificar
o comportamento das personagens.