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UNIVERSIDADEFEDERALDEMINASGERAISProgramadePós-GraduaçãoemDireito
JúliaSilvaVidal
CRIMINALIZAÇÃOOPERATIVA:
TRAVESTISENORMASDEGÊNERO
BeloHorizonte2020
JúliaSilvaVidal
CRIMINALIZAÇÃOOPERATIVA:
TRAVESTISENORMASDEGÊNERO
Dissertação deMestrado apresentada ao Programade Pós-Graduação em Direito da UniversidadeFederal de Minas Gerais (UFMG), como parte dosrequisitosexigidosparaobtençãodetítulodeMestreemDireito.Linha de pesquisa: Direitos humanos e estadodemocráticodedireitoÁrea de estudo: Antropologia do direito,interlegalidadeesensibilidadesjurídicasOrientadora:Profa.Dra.CamilaSilvaNicácioCoorientador:Prof.Dr.MarcoAurélioMáximoPrado
BeloHorizonte2020
Vidal,JúliaSilvaV648cCriminalizaçãooperativa:travestisenormasdegênero/JúliaSilvaVidal.–2020.Orientadora:CamilaSilvaNicácio.Coorientador:MarcoAurélioMáximoPrado.Dissertação(mestrado)–UniversidadeFederaldeMinasGerais,FaculdadedeDireito.1.Direito–Teses2.Crime–Diferençassexuais–Teses3.Travestis–
Teses 4. Etnologia – Teses I.Título
CDU 343.43:342.721
FichacatalográficaelaboradapelabibliotecáriaMeireLucianeLorenaQueirozCRB6/2233.
FACULDADE DE DIREITO
Dlffllo PROGRAJVIA DE PóS_GRADUAçÃO EM DIREITO DA UFMG
. ^?çF_E_SA DE D|SSERTAÇÃO DE MESTRADOAREA DE coNCEryI$Ç4b: ornÊro e lús1çnBELA. JULIA SILVA VIDAL
Aos cinco dias do mês de fevereiro de 2A20, às 13h00m , no Auditório FranciscoCampos da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gêrais, reuniu-se,em sessão pública ,a Banca Examínadora constituída de acordo com o art. 73 doRegulamento do p rograma de pós_Graduação em Direito da Universidade Federal deMinas Gerais, e das Normas Gerais de Pós-Graduação da Universidade Federal deMinas Gerais, integrada pelos seguintes professores: profa. Dr. Camila Silva Nicácio(oríentadora da candidata/UFMG ) Prof Dr. Marco Aurelio Máximo Prado (PUC-SP);'Profa. Dra. Mônica Sette Lopes (UFMG); profa. Dra. Jutiana Cesa rio Alvim Gomes(UERJ); Profa Dra. Juliana Gonzaga Jayme (UN|CAMP e Profa. Dra. paula SandrineMachado (UFRGS), desíg nados pelo Colegiado do Prog rama de Pos-Grad uação emDireíto da Un iversidade Federal de Minas Gerais, para a defesa de Dissertação deltíestrado da Bela. JúLIA SILVA VIDAL, matrícu la no 2018B6gStZ, intitulada"cRtMtNALtZAÇÃo oPERATIVA: TRAVESTIS E NORMAS DE GÊNERO". OStrabalhos foram in iciados pela presidente da mesa e orientadora da candidata, proF. DraCamila Silva Nicácio, que, após breve saudaçã o, concedeu a candidata o prczo máximode 30 (trinta) minutos para fins de exposição sobre o trabalho apresentado. Em seguida,passou a palavra ao prof. Dr Marco Aurelio Máximo prado, para o início da a rguição,nos termos do Regulamento A arguição foi iníciada, desta forma, pelo prof. Dr. MarcoAurélio Máximo Prado, seguindo-se-lhe, pela ordem , os Professores Doutores: MônicaSette Lopes, Jul iana Cesario Alvim Gomes, Juliana Gonzaga Jayme, paula SandrineMachado e Camila Silva N icácio. Cada examínado r arguíu a candidata pelo prazomáximo de 30 (trinta) min utos, assegurando a mesma, igual prazo para responder àsobjeções cabíveis. Cada examinador atribuiu conceito a candidata, ern ca rtão individual,depositando-o em enve lope próprio. Recolhidos os envelopes, procedeu-se a apuração,tendo se verificado o seguinte resultado
Profa. Dr.ÇefittaC o n ceito :...!...ü.?/.. fulva
Nicácio (orientadora da candidata/UFMG)
)
Profa. Dra. Sette Lopes (UFMG)
Av. João Pinheiro, íOODE
í 1ô andar - Centro - Bêlo Horizonte -
CONFERE COM O
.direito. ufmg. brEmZE/__et/ z.o_
3í^D..,rAssinatura com Carimbo
- Brasil -
Gonceito:.
Fone: (3 1) 3409.8635 _ E-mail: [email protected] -
Prof. Dr. Marco Aurélio Máximo prado (pUC-Sp)conceito,.. Í.ü. fi.1.4n........:::::: -. :
FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAçÃo EM DIREITO DA UFMG
Alvim Gomes (UERJ)
Jayme (UNICAMP)
Machado (UFRGS)
â Banca Exam inadora considerou a candidata" Áppp.[Aàe com
nota.J.OC....Nada mais havendo a tratar, a Professora Doutora Camila Silva Nicácio,
Presidente da Mesa e Orientadora da candidata, agradece ndoaP resença de todos,
declarou encerrada a sessáo. De tudo, Para constar, eu, Fe rnanda Bueno de Oliveira,
Servidora Pública Federal lotada no Program a de Pós-Gradu ação em Direito da UFMG,
mandei lavrar a presente ata, que vai assinada pela Banca Exam inadora e com o visto
da candidata'
BANGA EXAMINADORA:
Profa. Dr. Camila Silva Nicácio (orientadora da candidataíUFMG)
. Marco Aurélio Máximo Prado (PUC-SP)
Profa. Dra. Mô (UFMG)
Alvim Gomes
Av. Joáo PinheiÍo, 100 -SOCOhJFERE CCIM A
Assi
EmzÍJ 3!l t"> -
ORIG INAL
Profa.
Fone: (31 ) 3409.8635 -
(UE
-MG - Brasil - 301
i r. .eC,: Íx S$rPÉ:
+/
profa. Dra. f,a$i.}#::::Conceito J,.UtU',
Profa. Dra.Conceito:
Profa. Dra.
Agradecimentos
Omartemalgodefascinantequemecomove.Àminhafrente,oseguirritmado
desuasondasmeensinaqueotempodasurgênciasédesordenado.Eleseimpõe,como
omar.Apesardisso,éomarquemelembraqueumacosturaimportanteseencerra.
Detãoviva,quaseconsigopegá-laemminhasmãos,acariciá-laemseusnósatéperder-
me nas suas curvas. Resta-me, contudo, aceitar o seu arremate insolente. Bastam,
apenas,umalinhaeumaagulhaparasefazerumpontoreto,ou,umrecomeço.Porisso,
eportodooresto,afirmo:nãoseriaumadissertaçãosenãofossemascosturas.
ÀBárbara,Bruna,Cíntia,Cris, Isabella, Jojo,Priscila,Rochelly,Scarlet,Yumie
Wandyagradeçopelospontosfirmes,aslinhasgrossaseaconfiança.Nossascosturas
compartilhadas fizeram-se nessas páginas e me fizeram também. À Anyky Lima,
LorenaPaiva,FláviaMariaeCheilaSilvaagradeçoporteremmerecebidocomouma
devocês.Foraminúmerasconversas,caronas,conselhos,festaseconfidênciasqueme
formaram. Tecituras finas e firmes. É às travestis e mulheres trans o meu maior
agradecimentoeadmiração.
À Camila Nicácio agradeço pela caminhada comum. Quando me tornei sua
orientanda em2014, ainda no 4° período do curso de direito, pouco sabia emuito
esperava.Repletadeindagaçõesinfindáveis,Camila,apontou-meoscaminhose,com
o bom humor que lhe é típico, mostrou-me que nem toda sabedoria precisa ser
profunda.Foi,assim,professora–comtodaagrandezadapalavra.
JuntocomCamila,agradeçoaoMarcoAurélio.Aindanosprimeirosmesesde
curso, quando transitava sem rumo pela Fafich, lembro de vê-lo, altivo, na sala do
NúcleodeDireitosHumanoseCidadaniaLGBT(Nuh).Naquelediasóouseiolharpela
porta.Jamaisimaginariaque,anosdepois,seriarecebidaporeleeportodaequipedo
Nuh.Comagenerosidadequelheécaracterística,Marcomeensinoumuito:deslocou-
medomeu“lugar”dodireitoetensionouminhascertezas.Outras,mantevecomotêm
queser.
NaUFMG,aClínicadeDireitosHumanos(CdH)eoNuhfizeram-separtecrucial
na minha trajetória. Nesses espaços, compartilhei ideias, tecituras e angústias que
resultaramnestadissertação.NoNuh, agradeço imensamenteaBárbaraGonçalves,
IgorMonteiro, Júlia Carneiro eRafaella Vasconcelos. Agradeço às companheiras de
CdH, AmandaDrummond, AndressaMartins, Daniella Lima, LetíciaAleixo e Sophia
Bastos.ÀSophia,agradeço,ainda,osquitutesbaianoseaescutagenerosa.
AindanaUFMG,possodizerqueoTranspassesefezcasaecosturafirme.Aqui,
construí sonhos e teci esperanças. Agradeço a querida equipe, Antônio Lemos, Gab
Lamounier,DouglasGuerraTrevisan,IsadoraCunha,ÍsisAlvim,LohanaMorelli,Manu
MacieleSaraGuerra.
NaFaculdadedeDireito,agradeçoaGabriellaSabatinieReginaJuncal.ÀGabi,
agradeçoapoesiaeClarice.ÀRegina,agradeçoosincontáveisensinamentos.Foicom
ela,eporela,queouseidesbravaroscaminhostortuososdaadvocaciacriminal.No
ProgramadePós-GraduaçãonãopoderiadeixardeagradeceraoSaul,sempresolícito
egentil.Ainda,agradeçoàprofessoraMônicaSetteeaoprofessorMarcoAntôniopelos
comentáriosapuradosquandodabancadequalificação.
ÀCarolAlmeida,agradeçoportersidomeuportoseguroportrêslindosanos.
Agradeço por todos os dias com cor de calmaria – cruciais para a escrita desta
dissertação.AZildaOnofrieElisaMatosagradeçoaamizadecomgostodemexerica.
Agradeçotambémaleituraatenta,oscomentáriosgenerososeoacalentoque,nosdias
maispesados,fizeram-secolo.AoNavarro,agradeçoporfazerpartedemimhá21anos.
ÀOlíviaPaixão,agradeçoporserminhaestrelaguia.Quandonosconhecemos
pelaprimeiravez,nosidosde2014,malpoderiaesperarquetamanhaforçapudesse
preencherosmeusdias.FoiOlíviaquemeapresentouasprimeirasleiturasdegênero
e,assim,virouomeumundodecabeçaparabaixo.
Agradeçoaminhafamília.Começopelasminhasavós,LúciaVidaleZaidaAchão.
Aelas,quevieramantesdemim,devoahistória.Aosmeuspais,AluízioTadeueJussara
Vidal,agradeçoolugarnomundoeoamoraospassarinhos.Àsminhastias,Glauciae
Marta,agradeçoporteremmeensinadoqueaslutasmiúdaserotineirassãoasmais
importantesdeseremtravadas.Aosmeussobrinhos,Daniel,ErnestoeHugo,agradeço
ossorrisoscoloridoseaspartidasdefutebol.
Por fim, agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior(CAPES)pelabolsadeestudosproporcionadaduranteosdoisanosdaescrita.
ResumoEstetrabalhobuscoucompreendercomosematerializaacriminalizaçãodetravestisequalasuarelaçãocomasnormasdegênero.Desvelarosmecanismoseasteciturasquecompõemdimensõesdolegaledoilegalqueproduzemessacriminalizaçãofoicentral.Paratanto,partidaminhaexperiênciaetnográficaenquantoadvogadaeativistajuntoàstravestis,dosregistrosdecadernodecampoedaanálisedeprocessospenaisparaelaborarcenas.Comarestituiçãodocampo,propuspartirdeencontrosecontornaromovimentodearticulaçãoqueproduzacriminalizaçãodetravestis.Considerandoqueprostituição,migração,precariedade, violência institucional,patologização,medidasalternativas ao cárcere, dentre outros, fazem o entrelaçamento das redes queproduzemacriminalizaçãodetravestis,concluíqueocrime,longedeserumaentidadeabstrata, só se efetiva porque se ancora em processos situados em cada lugar,produzidosemcadaato,acionadopormúltiplosatoresesustentadopelasnormasdegênero. Tratando-se de criminalização e gênero, demonstrei os movimentos demontagensedesmontagensparamostrarcomoacoerênciaéconstruídanaspráticasarticulatóriasdeelementosheterogêneosconstituindoumaverdadeemoperaçãonosatos.Porfim,defendiacriminalizaçãooperativacomoumaporteteórico-metodológicoque possibilita percebermos que a organização, a distinção e a distribuição dasinfrações–bemcomooseucaráterdeveridicidade–sãoefeitosdaarticulaçãodeumasériemultifacetadademecanismoseatoresdeextensãoecarátervariados.Palavras-chave:normasdegênero;criminalização;travestis;etnografia.
Abstract
Thispaperaimedtounderstandhowthecriminalizationoftransvestitesmaterializesandwhatisitsrelationtogendernorms.Unveilingthemechanismsandweavingsthatmakeupthelegalandillegaldimensionsthatproducethiscriminalizationiscentraltothiswork.Tothisend,Istartedfrommyethnographicexperienceasalawyerandanactivistwithtransvestites,fieldnotebookrecordsandanalysisofcriminalproceedingsin order to elaborate scenes.With the restitution of the camp, I proposed to startmeetings and to circumvent the articulation movement that produces thecriminalization of transvestites. Considering that prostitution, migration,precariousness, institutional violence, pathologization, alternative measures toimprisonment, among others, intertwine the networks that produce thecriminalization of transvestites, I concluded that crime, far from being an abstractentity, is only effective because it is anchored in processes located in each place,producedineachact,triggeredbymultipleactorsandsupportedbygendernorms.Intermsofcriminalizationandgender,Idemonstratedthemovementsofassemblinganddisassemblingtoshowhowcoherenceisconstructedinthearticulatorypracticesofheterogeneous elements constituting a truth in operation in the acts. Finally, Idefendedoperativecriminalizationasatheoreticalandmethodologicalapproachthatallowsustorealizethattheorganization,distinctionanddistributionofoffenses-aswell as their character of truthfulness - are the result of the articulation of amultifacetedseriesofmechanismsandactorsofextensionandvariedcharacter.Key-words:gendernorms;criminalization;travesties;ethnography.
Listadesiglas
AIDS SíndromedeImunodeficiênciaAdquirida
AI-5 AtoInstitucionalnúmero5
ANTRA AssociaçãoNacionaldeTravestiseTransexuais
CAO-DH CentrodeApoioOperacionalàsPromotoriasdeJustiçadeDefesa
dosDireitosHumanosdoMinistérioPúblicodeMinasGerais
CdH ClínicadeDireitosHumanosdaUFMG
CID ClassificaçãoInternacionaldeDoenças
CNCD ConselhoNacionaldeCombateàDiscriminação
CP CódigoPenal
CRGBTT Centro de Referência de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis,
TransexuaiseTransgêneros
DAJ DivisãodeAssistênciaJudiciária
ECA EstatutodaCriançaedoAdolescente
FAFICH FaculdadedeFilosofiaeCiênciasHumanasdaUFMG
GIR GrupodeIntervençõesRápidas
GGB GrupoGaydaBahia
LEP LeideExecuçãoPenal
LGBT Lésbicas,gays,bissexuais,travestisetransexuais
Nuh NúcleodeDireitosHumanoseCidadaniaLGBT
PAD ProcedimentoAdministrativoDisciplinar
PPJSA PenitenciáriaProfessorJasonSoaresAlbergaria
REDS RegistrodeEventosdaDefesaSocial
SEDH SecretariaEspecialdeDireitosHumanos
SEDS SecretariadeDefesaSocial
SEDESE SecretariadeEstadodeTrabalhoeDesenvolvimentoSocial
UFMG UniversidadeFederaldeMinasGerais
UGM UnidadeGestoradeMonitoração
ListadefigurasFigura1-Ediçãon.9,emfevereirode1979,doJornalLampiãodaEsquina...................52
Figura2-TravestiagredidaporpoliciaisemSãoPaulo.FotodeJucaMartins,1980..54
Figura3-SãoJoaquimdeBicas,2009.................................................................................................65
Figura4-Infográficodemédiadeprocessosportravestis......................................................73
Figura5-Gráficodetipopenalmaisaplicado.................................................................................74
Figura6-Ilustraçãodacriminalizaçãooperativaeasnormasdegênero......................148
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................................................12
1. Estruturadadissertação.......................................................................................18
2. Advertênciasmetodológicas:tentativaseexperimentações......................192.1. Ocampo.....................................................................................................................................192.2. Aescrita.....................................................................................................................................22
CAPÍTULO01:Aspectosteóricos:normasdegêneroecriminologia..........................26
1. Dacriminologia........................................................................................................27
2. Dosusosdegênero:norma...................................................................................34
CAPÍTULO 02: Fragmentos da relação sinuosa entre as travestis e acriminalização:apresentificaçãodocenáriodapesquisa............................................44
1. “A caça às bruxas-bichas”: notas sobrea criminalizaçãode travestis noBrasil(1890-1988)..........................................................................................................46
2. “Prendendooumatando”:acriminalização(re)localizada.........................583.1. “Matando”:oshomicídiosdetravestis.......................................................................593.2. “Prendendo”:acriaçãodealasparatravestisehomossexuais......................633.2.1. Os dados oficiosos do encarceramento de travestis: a penitenciáriaProfessorJasonSoaresAlbergaria...........................................................................................71
CAPÍTULO03:Trêsatosdacriminalizaçãodetravestis.................................................76
1. Primeiroato:avidatravesti.................................................................................771.1. Acriminalizaçãopelaprecariedade.............................................................................791.2. Acriminalizaçãopelaprostituição...............................................................................851.3. Acriminalizaçãopelamigração.....................................................................................92
2. Segundoato:aprisão.............................................................................................972.1. Acriminalizaçãopelahipersexualizaçãoeviolênciainstitucional............1022.2. Acriminalizaçãopelapatologização.........................................................................115
3. Terceiroato:areincidência...............................................................................1233.1. Acriminalizaçãopelasmedidasalternativasaocárcere................................125
CAPÍTULO4:Criminalizaçãooperativa:lei,ilegalismoseaverdadeoperativa.135
1. Aproduçãodematerialidades..........................................................................136
2. Sobrealeieosilegalismos................................................................................141
3. Acriminalizaçãooperativa................................................................................146
CONSIDERAÇÕESFINAIS.............................................................................................................150
REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS..............................................................................................152
APÊNDICEA–Infográficodeinvestigaçãodecontexto.................................................163
12
INTRODUÇÃO
“Porqueessascoisasacontecemcomagente?”(Trechodocadernodecampo,emagostode2018, pergunta de Fernanda, em conversasobreoseuperíodonocárcere.)
Confessoqueessaperguntamedeixouparalisadaporumtempo.Deumacerta
forma, aquilo caiu sobre mim como o peso das verdades reveladas. Naquele dia,
Fernanda1,travesti,presahádoisanos,mecontavasobreoperíodoqueficoudetidae
todasasvicissitudesqueencontrouládentro.Dentreasmaioresqueixas,ochãoduro
eúmidodascelasalembravamtodasasnoitesdopesodoseucorpomontado2;”doía
tudo”3dizia,referindo-seaocontatodolorosodosiliconecomochão.Poralgunsdias
aquelaperguntaressoouemmimedeupistassobrequalcaminhoeudeveriaseguirna
elaboraçãodestetrabalho.
Paraminhasurpresa,oseucasoerafácildeserresolvido;bastavaencaminhar
umcomprovantedeendereçoparaa justiçadeSergipeepedir a revogaçãode sua
prisãopreventiva.Algum tempodepois,Fernanda foi soltae atéhojeme emociona
lembrar a empolgação com queme ligou naquele dia. No seu primeiro dia fora da
prisão,fuivisitá-lacommeiadúziadebiscoitoscaseirosquehaviafeitoparaaocasião.
Conversamos longamente naquela tarde e, entre um biscoito e outro, a fatídica
perguntaveiocomoumpresente,“porqueessascoisasacontecemcomagente?”.
1Todososnomesprópriosutilizadosnotextosãoficcionais.2Todosostermosemitálicocorrespondemaexpressõesêmicas.Porsuavez,“semontar”éumapalavrautilizadaemreferênciaàpráticadeconstruçãodofeminino.Nocasodastravestis,amontagempassatambémpeloimplantedesilicone.3Amaiorpartedosdepoimentosefalasinseridasdeformadiretaforamregistradasemtemporeal,outrastantasforamajustadasalembrançasememóriasetnográficasdocontexto.
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Permita-metomardeempréstimoaperguntadeFernandaparatentarelaborar
outras.Comosedáamaterializaçãodacriminalizaçãodetravestis?Comooperamos
processosdecriminalizaçãodetravestis?Épossívelqueanormadegêneroproduzaa
criminalizaçãodetravestis?
Tenhoqueconfessarquequandopropusoprojetodemestrado,hádoisanos,
não imaginava que omeu campo tomaria essa forma. Àquela época, o interesse de
entendercomoogênero,enquantodimensãonormativa,eraproduzidoeapreendido
noritoprocessualpenaldecrimesenvolvendotravestisjáestavapresente.Contudo,
meinteressavapensarohomicídio,suadimensãomaterialeosdiscursosproduzidos
noâmbitodasaudiênciasedosprocessos.Comesserecorteinicial,pudeacessaralguns
processosepresenciaralgumasaudiênciasdejúriemquetravestisfiguravamnopolo
ativo.Ousodizerquedesseprimeirocontatoemergiramváriasoutrasquestõesque
apontavamparaofatodequeohomicídiofaziapartedeumaredemaiordeexclusão,
desigualdade e seletividade.Obviamente que não precisei fazermuito esforço para
chegaraessaconclusão,masoacessoaessematerialfoiconcomitanteàaberturaeà
consolidaçãodeumaoutrafrentedetrabalho.Foiassimqueentreicomoapoiojurídico
na ONG Transvest4, voltada para o acompanhamento e ensino de travestis e
transexuaisemBeloHorizonte.NoâmbitodasatividadesdaONG,aminhaprincipal
atribuição foi se consolidando em torno da assessoria jurídica das travestis que
estavam presas na famosa “Ala Rosa”5, na Penitenciária Professor Jason Soares
Albergaria (PPJSA). Esse contato me possibilitou conhecer a trajetória de algumas
pessoaspresase,emumsegundomomento,entenderumpoucomaisosprocessosde
criminalizaçãoquesãoproduzidospeloaparatopenalequeatingemcadavezmais
travestisebichas6.
4Paramaisinformaçõessobreoprojeto,ver:http://www.transvest.org/.Acessoemnov/19.5EmMinasGerais,o tratamentodiferenciadoparaapopulaçãodemulheres transexuaise travestis,notadamentecomaimplementaçãode“alas”específicas,foiiniciadoem2009naPenitenciáriaProfessorJasonAlbergariae,trêsanosdepois,em2012,noPresídiodeVespasiano.Apesardopioneirismodoestado,queem2009jáseorganizavanosentidodereconhecimentodasituaçãodevulnerabilidadedastravestisemulheres transexuaispresas,a regulamentaçãoveioem2013,viaResoluçãoConjuntadaSecretaria de Defesa Social (SEDS) e Secretaria de Estado de Trabalho e Desenvolvimento Social(SEDESE),nº1de2013.6Aescolhadasexperiênciasdetravestis,sedeu,unicamente,emrazãodareinvindicaçãodessestermospelasminhasinterlocutoras.Tratam-se,portanto,determosêmicos.Nãomeinteressaaquidefiniroqueseriamexatamentecadaumadessasexperiências,apenaspontuoquesetratamdeexperiênciasquetensionamasnormasdegênero.
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Precisodizer, então,quea incursãonouniversodo cárcere, criminalizaçãoe
experiênciasdastravestisnãoeranecessariamente“nova”paramim.Foiem2016que
entreinoNúcleodeDireitosHumanoseCidadaniaLGBT(Nuh)7ecomeceiapesquisar
sobreSegurançaPúblicaepopulaçãoLGBT.Comopartedas frentesde trabalhodo
Núcleo, iniciamos a pesquisa “Sistemas de Segurança Púbica e a violência contra a
população LGBT”, para atender as denúncias do movimento social de travestis e
transexuaise,assim,investigarasmortesdetravestisetransexuaisqueocorreramno
estadodeMinasGeraisentrejaneirode2014edezembrode2015.Referidapesquisa8
buscavacompreenderainterfaceentreaexperiênciadetravestiseasegurançapública
no que concerne à visibilização das circunstâncias que caracterizam os crimes de
homicídio(tentadoseconsumados)queenvolvemtravestisetransexuais,bemcomoa
análisedeinquéritospoliciaiselaboradosparaaelucidaçãodetaiscrimes.Talpesquisa
deuensejoàelaboraçãodomeutrabalhodeconclusãodecursodagraduação9em2017
einfluenciou,emuito,oscontornosdapropostademestradoem2018.
Assim,aqueleuniversonãomeeraestranho.Oqueeranovo,talvez,eraofato
dequeeu, Júlia, estavaolhandoparaaquelas cenas,dois anosdepois,devidamente
munidacomminhacarteiradaOrdem,queperformavaum“ser”advogada,aomesmo
tempoemquejáestavalargamenteconstituídaenquantoum“ser”pesquisadora.Digo
isso porque não é possível estabelecer com clareza quando foi que virei mais
pesquisadoradoqueadvogada.Essesdoispapéis,obviamente,melevaramaocupar
umlugarsingulardiantedasexperiênciasdastravestiscomosistemapenal.Aomesmo
tempoquemecolocavamemumaposiçãodúbia,talconformaçãomepermitiuacessar
realidades e experiências que não acessaria se não fossem exatamente essas duas
figuras,juntas.
Aminharelaçãocomessaspersonagensnãocomeçouquando“virei”advogada,
mastalveztenhaseconsolidadocomisso.Foiassimquemevi frequentandofestas,
jogando conversa fora e sendo abençoada por todo quanto é tipo de entidades
7ONúcleodeDireitosHumanoseCidadaniaLGBTéumprogramadepesquisaextensãodaUniversidadeFederal de Minas Gerais voltado ao desenvolvimento de ações no campo de gênero, sexualidade,participaçãoepolítica.Criadoem2005,oNúcleoécoordenadopeloprofessorMarcoAurélioMáximoPrado.Paramaisinformações,ver:http://www.fafich.ufmg.br/nuh/.Acessoemout/19.8Orelatóriodapesquisapodeserobtidonolink:http://www.fafich.ufmg.br/nuh/seguranca-publica-e-populacao-lgbt/.Acessoemdez/19.9 VIDAL, Júlia Silva. “Com sedas matei, com ferros morri”: sobre homicídios, inquéritos policiais ecriminalizaçãodetravestis.RiodeJaneiro:Metanoia,2019.
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religiosas. Havia entrado na rede de confiabilidade de algumas travestis de Belo
Horizonte e tal status vinha acompanhado de responsabilidades novas. As nossas
trocas, afetos e retribuições eram de outra ordem e me permitiram não somente
construirumcampo,comotambémmelegitimarjuntoàstravestis.
No ano de 2019, a nossa relação pôde alçar um novo patamar. Em março
daqueleano,comeceiamereferenciarcomastravestisdocampocomoorientadora
jurídicadoprojetoTranspasse10.Oprojeto,voltadoparaoacompanhamentojurídico
epsicossocialdetravestise transexuais,estavacomeçandoaseestruturarecontou
comumaadesãosignificativadeváriastravestisquehaviaconhecidoanteriormente.
Comodesenvolverdoprojeto,pudeparticipardaconsolidaçãodeumametodologiade
trabalhoqueincidissetriplamentesobreoproblemadoencarceramento,voltando-se
nãoapenasparaoatendimentodepessoastransetravestisquecumprempena,mas
tambémparaevitarqueaquelasqueestãoemliberdadesejamcriminalizadasequeas
egressasretornemaosistemaprisional.
Dessaforma,ohomicídiofoiseconsolidandoenquantoafacemaisóbvia,enão
menosimportante,deumsistemaqueoperacommecanismossutisecomplexosna
seleçãoecriminalizaçãodastravestis.Napropostadoprojetoinicial,percebiquehavia
determinadoumlugarespecificoparavoltaromeuolhar,nointuitodefocalizaraquilo
que queria enxergar. O que não sabia era que a adoção de ummodode olhar iria
consequentementedeterminaromeufocoe“enquadrar”arealidade,meconfigurando
enquanto uma pesquisadora exterior, e superior, cujo propósito seria de conferir
consistênciaesentidoaocampo,aoobjetodepesquisaeatéàrealidade.
Comeceiaconstataraimportânciadesepensaremcomoseviveodireito,ou
melhor,comosesobreviveadinâmicas,atos,leis,tribunaiseprocessosquenãofalam
10 O Transpasse é um projeto de extensão da UFMG vinculado à Clínica de Direitos Humanos(CdH/UFMG), à Divisão de Assistência Judiciária (DAJ/UFMG) e ao Núcleo de Direitos Humanos eCidadaniaLGBT(Nuh/UFMG),quevisaofereceracompanhamentopsicossocialeorientaçãojurídicaapessoastransetravestisemBeloHorizonte.Oprojetoresultadatrajetóriadeatuaçãodasentidadesnaárea de direitos da população LGBT,que inclui o desenvolvimento de ações de pesquisaeextensãocentradasnodebateemtornodassexualidades,relaçõesdegênero,cidadaniaedireitoshumanos.Emlinhasgerais,ainiciativaobjetivaampliarrepertóriosdeaçãoereflexãodaspessoastransetravestissobre suas trajetórias contribuindo para o desencarceramento dessa população e também para oaprendizadodeestudanteseprofissionais.Ainda,oprojetovisafacilitarvínculosentreasparticipanteseseuterritório,redesdeapoioeaprópriaequipe,tendocomoobjetivoaimplicaçãodosváriosatoresinstitucionaisacercadasvulnerabilidadesecriminalizaçãovividaspelaspessoastransetravestis.
16
para as travestis, tampouco por elas. De pronto, alguns desafios se impõem nessa
empreitada.Comoabordaressecamposemcairnodiscursodaexceção,doanedotário?
Ainda,comoelaborarumaescritaquenãocaianotomdebestializaçãodasdecisões
jurídicase,aocontrário,proponhaumainvestigaçãoprofundaquenãoapenassirva
paradenunciarasmazelasdeumsistemafalido,massimparailustrarosmecanismos
responsáveispeloencarceramentodastravestis?
Como alguém que veio do campo do direito, o meu ímpeto inicial foi o de
procurarnacriminologiaumaportenecessárioparacompreenderos fenômenosde
criminalização que me deparava. Contudo, percebi que boa parte da literatura
criminológica, estruturada a partir da categoria de gênero, não abarcava as
experiências que encontrava em campo. Ao que me parece a criminologia, ao
incorporar perspectivas de gênero, tem incorrido em equívocos ao pensar esse
conceitocomopapelsocial,aditivooumerodescritorderealidade.Talusoquesetem
feito da categoriade gênero tempromovido,não poucas vezes, essencializaçõesde
experiências e restrição de análises a partir de chaves de leitura tradicionais, que
acionam e constroem representações de “masculinidade” e “feminilidade” para
descrevereprescrevernossosmodosdevivenciaromundo.Ora,quandoassumimos
que gênero é papel social, acabamos por acionar concepções prévias do que é ser
homemesermulher,ouseja,quandogêneroépapel,elejáéefeitodeumaimposição
anterior.
Sejanoacompanhamentoemdelegaciasdepolícia,sejaemaudiênciasouem
estabelecimentos prisionais, o que pude perceber é que a criminalização dessas
experiênciasestárelacionadacomasnormasdegênero11.FoicomJudithButler12que
pudecompreenderoalcancedasnormasdegêneronoquetocaaorganizaçãodonosso
camposensível,postoqueoefeitodeserum“sujeito”epodersercompreendido,visto,
ouvido,representado,dependedasarticulaçõesquesãoestabelecidascomasnormas
degênero.
Nessesentido,apassagememrevistadealgunsepisódioshistóricos,apartirdo
anode1890,paraentrarnoperíododaditaduramilitarbrasileiraatéalgumasdécadas
após a redemocratização do país e, assim, demonstrar as múltiplas configurações,
11BUTLER,Judith.Deshacerelgénero.Barcelona:edicionespaidósibérica,2006.12Idem.
17
procedimentos e atores envolvidos na tecitura feita entre a criminalização e as
travestis.Essacosturacomplexaquesefezpresenteaolongodotempoapontapara
umaorganizaçãodatravestilidadenailegalidade,quepoucotemavercomalei,mas
serelacionacomasnormasdegênero.
Fuipercebendoqueaquestãoqueme rodeavadizia respeitoaomodocomo
construímosnossosobjetosdeinvestigação,“comodefinimosnossasquestões,como
formulamosasperguntasquenosorientamnumaexperiênciadoconhecimentocapaz
dedeslocarocampodojá-ditoeprospectaraspotênciaspelasquaisaordemdascoisas
se configura”13. Encontrei no aporte de Bruno Latour14 e Annemarie Mol15
possibilidades para compreender que o crime pode ser efeito de arranjos ou
associações entre elementos diversos. Com Jacques Rancière16, por sua vez, pude
trabalharosdadosobtidosemcampodemodoademonstrartaiscontingencias.Dessa
forma,volteiminhaatençãoparaanalisarosmodospelosquaisocrimeéproduzidoe
ordenado a partir de arranjos heterogêneos, na tentativa de experimentação que
denominei“criminalizaçãooperativa”.
Aquestãode interesse, assim, foisedelineandoemtornoda investigaçãode
conexões, parciais e contingentes, entre as realidades e objetos que produzem a
criminalização e a sua relação com as normas de gênero. As tecituras entre as
dimensõesdolegaledoilegal,aformacomoaverdadeseopera,eolastramentodos
atosenvolvidosnamaterializaçãodacriminalizaçãodetravestistornaram-secentrais.
Estetrabalhonãoconsisteemumacontribuiçãoparaaretóricadadenúnciadas
mazelasdeumsistemafalidoedeumapopulação“excluída”.Efetivamente,proponho
umdeslocamento,ouumarecolocação,naordemdas coisaspara, então, abriruma
fendanaqualoutraspossibilidadespodemsefazer.
13TELLES,Vera.Acidadenasfronteirasdolegaledoilegal.BeloHorizonte:Finotraço,2010,p.162.14LATOUR,Bruno.Reagregandoosocial:umaintroduçãoàteoriadoator-rede.Salvador:Edufba,2012;LATOUR,Bruno.Seiscartassobreashumanidadescientíficas.SãoPaulo:Editora34,2016.15 MOL, Annemarie. The Body Multiple: ontology in medical practice. Durham and London: DukeUniversityPress, 2002.;MOL,Annemarie. Política ontológica. Algumas ideiase várias perguntas. In:NUNES, JoãoA.; ROQUE,Ricardo. (Org.).Objetos impuros: experiências em estudos sociaise ciência.Porto:EdiçõesMelhoramentos,2008,p.63-75.16RANCIE} RE,Jacques.OsnomesdaHistória.SaoPaulo:EDUC/Pontes,1994.
18
1. Estruturadadissertação
No primeiro capítulo, procuro percorrer algumas questões teóricas relativas
aosestudossobrecriminalização,mormenteaquelesfeitosnocampocriminológico,e
os estudosde gênero. Procuro, com isso, explorar os pressupostos epistemológicos
relativosàsconcepçõesdegêneroestruturantesdocampocriminológicoeapontara
importância analítica de compreendermos gênero como norma no que tange à
criminalizaçãodetravestis.
No segundo capítulo, inicio o trajeto analítico a partir de um apanhado de
fragmentos históricos sobre a criminalização de travestis no Brasil. Ao longo da
passagememrevistadealgunsepisódios,tendodemonstrarcomoasexperiênciasde
lésbicas,gays,bissexuais,travestisetransexuaisentramno“radar”dodireitopormeio
da penalização e repressão. Mais especificamente, no que toca às experiências de
travestis, defendo queo controle exercido pelo aparato punitivo-penal ao longo do
tempofoicrucialparamoldaraconstruçãodessasexperiênciasna ilegalidade,bem
comoparaassociá-lasanoçõesdecrimeecriminalidade.Pretendo,comisso,defender
a importânciadepensaros contornosespecíficoseas formasdeapariçãoqueesse
movimentodecriminalizaçãoediferenciaçãodasilegalidadesassumenosdiasdehoje.
Noterceirocapítulo,proponhoumaincursãonosdados,personagens,trajetos
esensaçõesqueotrabalhodecampomelogrounoqueserefereàcriminalizaçãode
travestis.Apartirdaelaboraçãodecenas,procurodemonstrarumaconcatenaçãode
atosemapearumcertotrajetodematerializaçãodacriminalizaçãodetravestis.Em
cadapontodevirada–precariedade,prostituição,violência,migração,patologização–
proponho ilustrar os arranjos que convergem histórias diversas e encenam a
criminalizaçãodetravestis.
No quarto e último capítulo, exploro os dados obtidos em campo para
demonstrarqueocrime,longedeserumaentidadeabstrata,sóseefetivaporquese
ancoraemprocessossituadosemcadalugar,produzidosemcadaato,acionadopor
múltiplos atores e sustentado pelas normas de gênero. Busco, então, demonstrar a
importânciademapearmosomovimentodasilegalidadesapartirdeatos,conexões,
tecituras que compõem os trânsitos entre o legal e o ilegal e que produzem a
criminalização de travestis. Exponho os contornos iniciais do que seria a
19
“criminalização operativa” e a potência analítica desse método para visibilizarmos
comoasinfraçõessãodistinguidas,distribuídaseutilizadasdeformasespecíficas.
2. Advertênciasmetodológicas:tentativaseexperimentações
Éimportantepontuarqueosdesenhosmetodológicosadotadosnestetrabalho
sãofrutosdapermanentetensãoentrecircunstânciaspráticasdocampoeestratégias
deescrita.Poróbvio,essasduas17dimensõesnãosãoestáticasefacilmenteseparadas
dessaforma.Esseestadodepermanenteconfluênciaimplicapensaroconhecimento
comoumaconversa“situadaacadaníveldesuaarticulação”18,centradonaconstrução
de “umargumentoa favordo conhecimentosituadoe corporificadoe contravárias
formasdepostuladosdeconhecimentonãolocalizáveis”19.Atítulodidático,permita-
mediscorrersobrecadaumdosdoisprimeirospontos.
2.1. Ocampo
Noqueserefereàscircunstânciaspráticasdocampo,éimportantepontuarque
percorri vários lugares ao longo dos dois anos demestrado, desde prisões, fóruns,
delegacias,entreoutros.Talvez,maisdoquenomearoslugares,sejainteressantefalar
deumapostura,quasequeumasensação,queadoteinesseperíodo.Talpostura foi
largamente influenciada pela perspectiva flutuante que, mais do que um método,
consisteem“permanecervagoedisponívelemtodaacircunstância,emnãomobilizar
a atenção sobre um objeto preciso, mas em deixa-la ‘flutuar’ de modo que as
informaçõesopenetremsem filtro, semapriori, ate omomentoemquepontosde
referência,deconvergências,apareçam”20.
Essapostura,emcertosentido,dizdapercepçãodequenãopoderiaestabelecer
umarelaçãodativacomocampo.Emoutraspalavras,nãoexistiamaisocampodeum
17Énecessárioacrescentar,ainda,osolharesteórico-metodológicos,queserãoabordadosnocapítuloseguinte.18 HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio daperspectivaparcial.CadernosPagu(5),1995,p.39.19Ibid.,p.22.20 PETONNET, Colette. Observação flutuante: o exemplo de um cemitério parisiense. Antropolítica.Niterói,n.25,p.99-11,2.Sem.2008,p.100.
20
ladoealgoquefaçaarelaçãodooutro;ocampotornou-seaminhaprópriavivência.O
campo foi se consolidando enquanto a própria realidade, a existência mesma,
permeadapor“sombrasemeios-tons”21quetendemosaafastardapráticadepesquisa.
Mas,paraisso,percebiquedeveriamudaraformadepesquisare,emúltimaanálise,
proceder a uma mudança comigo mesma. E isso, decerto, trouxe uma série de
insegurançasereceios.
Essa constante indeterminação ou flutuação, por tempos, me colocou em
situações em que questionei a possibilidade de encontrar um “fio condutor” para
proporadissertação.Eracomoseeusoubesseoquegostariadedizer,masdesconhecia
as ferramentas ou modos possíveis de dar vida e significados metodológicos
necessários.Apesardosriscos,estaràderivamepossibilitouencontrarverdadeiros
“achados”depesquisaque, apesardeheterogêneose singulares,preencherammeu
diáriodecampoaolongodosanos.
Opontodereferência,talvez,foiabuscapormeaproximardastravestis,ouvir
suashistórias,traçar,apartirdasobservações,oentrelaçamentodesuastrajetórias
comacriminalização.Foiexatamenteessaposturaquepossibilitoutecerasmalhasda
aceitação22juntocomasminhasinterlocutoras.
Fato é que, ao longo do meu tempo de convivência com as travestis, estive
imersa em dinâmicas de distanciamento e proximidade que possibilitaram
compreender,aindaqueparcamente,oefeitocausadopelotransitardeseuscorpos
nas ruas,nosmercados,nosespaçospúblicos.Esseprocesso também foramediado
pelosnossosatravessamentosderaça,gêneroeclasse,eestevepresenteotempotodo
noestabelecimentoderelaçõesenonossotransitarconjuntonosespaços.
Assim, relacionar-me com as travestis dizia muito sobre o meu lugar como
pesquisadora.Oefeitocausadopelomeutrânsitojuntoaelas,sendoumauniversitária
branca de classe média, mobilizava múltiplas classificações por onde passávamos.
Lembro,certavez,quandofomosjuntascomprarositensnecessáriosparaarealização
das oficinas23. Entravamos nós quatro nas lojas. Elas, altas, brancas, esbeltas, com
longoscabelosloirosemorenos,peitosebundasperfeitamentedelineados.Eeu,nos
21CRAPANZANO,Vincent.Acena:lançandosombrasobreoreal.Mana,11(2),p.357-383,2005.22SILVA,Hélio.Travestis:entreoespelhoearua.RiodeJaneiro:Rocco,2007,p.37.23Maisinformaçõessobreissoserãoapontadasnoitem2doCapítulo3.
21
meus1,60mdealtura,branca,cabeloscurtose“poucofeminina”comoelasmesmas
falavam.Nessedia,umfuncionáriodalojanãoparavadenosolhardesdeomomento
quehavíamoschegado.Esseefeitoeraatécorriqueiroesempreeraaproveitadopelas
travestisque,cientesdofascínioquecausavam,faziamcontatosedescolavamclientes
por ali mesmo. Mas, daquela vez, o fascínio talvez tenha dado lugar para o
estranhamento.Essefuncionáriomechamouparaumcantodalojaeperguntou“você
éassistentesocial?”.Fiqueiatônitacomaabordagemecomaperguntae,nademora
pararesponder,ouviumavozao fundodizer“não!Elaéadvogada”.Aaproximação
vinha, não poucas vezes, acompanhada da demarcação do meu lugar enquanto
advogada.Emumadasvezes,quandodasolturadeIsispelasegundavez,recebidela
umabraçocalorosocomosdizeres“minhaamiga,minhairmã,minhaadvogada”.
Aomesmotempoquefuimarcadaemumlugardistantedodelas,pudemever
inserida em dinâmicas de aproximação. Lembro de certa vez, quando recebi uma
mensagemnomeu celular de algumas travestis procurando a Carla. Ela, que havia
recebidonaquelediaobenefíciodoalbergue,estavaperdidanocentrodacidade–seis
anosapósterficadonatranca24.Distraídanocaminhar,ouçoumavozchamandopelo
meunomedooutroladodarua.Coincidentemente,eraCarla.
Muito desconfiada, Carla reclamava de enjoos constantes e perda de apetite.
Mesmoassim,conseguiconvencê-laaalmoçarcomigo, “umpoucodecomida fresca
podetefazerbem”,disse.Depoisdoalmoço,leveielaaoencontrodasamigas,Fernanda
eLarissa,que,naquelaaltura,estavampreocupadascomoseusumiço.Naqueledia,
lembrodeouvir:“Júlia,vocêjáédafamília.Daquiapoucoviratravestiigualagente”.
Dessa forma, mais do que uma experiência de pesquisa, me vi tomada
emocionalmenteeenvolvidanasdinâmicas.Mevi,sobretudo,comprometidaemfazer
frente a uma certa tendência de pensar essas experiências a partir de abordagens
generalizantes,quebeiramà exotificação.Abordagensqueacabamcolocandoessas
experiênciasemumlugarcomum,carentedereflexãoequasedeterministadesuas
potencialidades. Não é por outro motivo que a etnografia foi importante para
“exorcizaraexotização”25.
24Atrancaserefereaocumprimentodepenatotalmentenoregimefechado.25Ibid.,p.44.
22
2.2. Aescrita
Convicta de que as conexões e ligações que conseguimos ver, interpretar e
escrever,dizemmuitoarespeitodenossasposições26,ouseja,deperspectivasparciais,
localizadas,situadase comprometidas27, adotei estratégiasdeescritapautadaspela
etnografia28epelapoética.Assim,adotarumaescritalocalizadaimplicaconceberque
asconexõesfeitasnoatodeescreversãosempremúltiplaseprovisóriasedizemmuito
sobreomeulugarnaproduçãodoconhecimento.EmdiálogocomGeertz29,pensarna
etnografia enquanto uma descrição densa implica nos havermos com a sua
característica interpretativa. E, por sua vez, é a interpretação que proporciona o
posicionamentodopesquisadoremcampo.
Interpretareregistrarovividofoiumapráticaqueadoteiaolongodessetempo
depesquisae reproduzinaspáginasdeste trabalho.Emcampo,oolhareoouvir30
fizeram minha percepção da realidade. A escrita, enquanto parte indissociável do
pensar,materializouminhasexperiênciaseconsolidouométodoetnográfico.Sempre
munidademeudiáriodecampo,assumiqueoregistroésemprelacunar,masqueessa
ferramenta“traduzmelhoroclimaemocionaldacoleta,tolhemenosospersonagens,
nãosubmeteosepisódiosaoplanoprévioepermiteareordenaçãodosdados”31.Dessa
forma, o aporte proporcionado pela etnografia, enquanto uma forma especial de
operar,umaobservaçãofinaemqueoacúmulodedetalhesserearranjanosentidode
múltiplos entendimentos32, que me permitiu uma liberdade no relato, foi central.
Portanto,propuselaborarumplanodereferênciaquedeslocasseasverdadeseosfatos
incontestáveise,assim,desfaze-loscomotais,“namedidaemquefatos,coisas,atores
26HARAWAY,op.cit.27Idem.28 Para Peirano, a etnografia não se constitui um “detalhe metodológico, que antecede a teoria; aindagaçãoetnográficaemsi já temumcaráter teórico,porquesomente (ouprincipalmente)elanospermitequestionarospressupostosentãovigentespelasnovasassociaçõesounovasperguntasquenosproporciona”.Contudo,atítulodidáticoreferencioapráticaetnográficaaquienquantoummétodo.Cf.PEIRANO,Mariza.Etnografianaoemétodo.HorizontesAntropológicos.PortoAlegre,ano20,n.42,2014,p.385.29GEERTZ,Clifford.Ainterpretaçãodasculturas.1ªed.13ªreimp.RiodeJaneiro:LTC.2008.30 CARDOSODE OLIVEIRA, Roberto. Olhar, ouvir e escrever: o trabalho do antropólogo.Revista deAntropologia.SãoPaulo.USP.1996.V.39.Nº1.P.13-37.31SILVA,op.cit.,p.41.32MAGNIANI,JoséGuilhermeCantor.Etnografiacomopráticaeexperiência.HorizontesAntropológicos.PortoAlegre,ano15,n.32,p.129-156,jul./dez.2009.
23
sereordenamemumoutrodiagramaderelações,numoutrotabuleiro,emqueaspeças
sãopostas”33sobumoutrojogodeforças.
Essamontagemdomeucadernode campo foi largamente influenciadapelas
leiturasde JacquesRancière.Confessoque tal empreitada se configuroucomouma
experimentação,umgesto,umatentativademesclarcontribuiçõesdaetnografiacom
cotejosdaperspectivapoéticadofilósofoe,assim,(tentar)elaborarumaescritaque
fossecomprometidapoliticamente.Afinal,assumirolugarpolíticodaescritaimplica
“nãoexporummétodocomoumconjuntodeprocedimentostécnicos,masaorevés,
exigirqueummétodosejaumprincípiodeação,umaexperiênciaemsi,umaposição
subjetiva”34.
Paratanto,encontreinaelaboraçãodecenasumaformadeinserirhistóriase
narrativasemumarededesignificação.Umacenaéumargumento,nãoéumcaso.
Enquanto ferramenta analítica, proponho uma cena de criminalização de gênero,
divididaem trêsatos.Assim, fareiusodadescriçãoexcessiva,dapotencialidadedo
detalhe, da literalidade35, para fornecer ferramentas ou inteligibilidades que
possibilitem reenquadrar a cena. Tal empreitada se dá, sobretudo, a partir da
constatação de que a criminalização de travestis é articulada para invisibilizar a
desigualdade.
Nãoéporoutromotivoque,paraconhecê-la,faz-senecessárionomearodano
para que ele se torne visível. Quandoutilizo a palavra “dano”nãome refiro auma
injúria, ou a uma ofensa. O dano, aqui, se trata de uma assimetria inalcançável e
irreparável,quenuncapoderásereliminado,soboriscoderetirarmosaradicalidade
daalteridadequepermeiaarededeafetosconstruídacomessaspessoas.Explicitaro
dano,porsuavez,significatratá-lopormeiodalinguagem,daescritaedaliteratura.
Nãoéporoutromotivoqueautilizaçãodessemétodopodedespertardúvidas
e questionamentos. Talvez frustre o leitor ávido por palavras difíceis e conceitos
fechados–alertoquenãosetratadisso.Trata-se,talvez,deempreitarumaescritaque
33TELLES,op.cit.,p.163.34 PRADO,MarcoAurélioMáximo;MARQUES,Ângela Cristina Salgueiro.Ométododa igualdade emJacquesRancière:entreapolíticadaexperiênciaeapoéticadoconhecimento.Revistamídiaecotidiano,vol.12,2018,p.10.35 Para Rancière, a literalidade é uma das formas de manifestação mais evidentes da poética doconhecimento. Cf. PRADO, Marco Aurélio Máximo; MARQUES, Ângela Cristina Salgueiro.Diálogos edissidências:MichelFoucaulteJacquesRancière.Curitiba:Appris,2018,p.60.
24
relacionesentidosdiferentes,quebusque“conexõesnãoplanejadasdentrodotexto,
fazendo-o conectar-se horizontalmente a outros, sejam eles científicos, políticos,
literários,conferindotexturaedensidadeaoenunciadoemquestão”36,que,nomeu
caso,compreendeprocessos,cartastrocadascomtravestispresas,documentos,laudos
eanotaçõesdomeucadernodecampo.
Trata-sedeummétodoquerefletesobreasformasdeproduçãodesentidodo
conflito e sobre quem pode ser escutado como argumento ou não argumento. Tal
“mododefazer”ébaseadoemuma[...]operaçãodissensualquedeslocaobjetosediscursosdeseutempoeespaço designados hierarquicamente no cotidiano e nos quadrosinterpretativos convencionais e os reconfigura para o campo dasinvenções de formas diversas de linguagem, de manifestação eargumentação– invençõesque caracterizama comunicação comoumarededetraduçõesecontra-traduções.37
Omeu esforço será de constituir uma voz que não seja explicativa, que não
almejeencontrarexplicaçõessobreomododevidadetravestis;seráodeassumirum
papelnãoexplicativoourepresentativo,pois,casocontrário,correreioriscodereduzir
aalteridadedeformaradical.Poroutrolado,écrucialqueeuassumaserumavoznesse
processoequereconheçaomeuprotagonismonaescrita,poisseráexatamenteomeu
olharparaesseseventosqueoconfigurarãoenquantotal.Assim,odesafioseráode
constituir-meumaentreasvozesesituaracriminalizaçãodastravestisemumoutro
jogodeescala,sobumaperspectivamaisampliada.
Dadoao caráterheterogêneodomaterialque irei trabalhar– comoreferido,
cartastrocadascomastravestispresas,autosdeprocessospenaiserelatosdecampo
–recorrereià“poéticadoconhecimento”deRancièreparalereconstruirascenas,
postoasua“formadeolharelerdocumentos,objetosartísticosehistóricosapartirde
uma posição teórica igualitária, deslocando-os de um certo roteiro de leitura que
conformee,decertomodo,aprisionasuaspossibilidadesde interpretação”38.Nesse
sentido,apoéticavisa
36PRADO;MARQUES;op.cit.,2018,p.17.37Ibid.,p.9.38Ibid.,p.16.
25
[...]definiromododeverdadeaoqualessesaberseconsagra,nãoparalhedarnormas,paravalidarou invalidar suapretensão científica,maspara entrelaçar os discursos da história, da política e da literatura naproduçãodeumanarraçãodeumahistóriacomum,legívelparatodoseensinávelatodos.39
A figura do narrador na poética é o de “colocar a palavra onde há o
silenciamento”40,configurandoumaescritaemque“aimagemeopensamentonãose
distinguem uma vez que é no exagero do excesso de nomes e corpos que essas
referencialidadessãodispostas”41. Assim,buscar-se-áconstruirummovimentoque
torneacriminalizaçãoseletivadetravestisum“efeitodecertascausas,equeamostre
comoproduzindoformasdeconsciênciaeafetosqueamodifiquem”42.Aconstruçãoe
adesconstruçãodacena,osjogoscomsignificaçõesmúltiplaspoderãoevidenciarque,
quando você olha a cena de outro lugar, gênero viraum analisador,mas não é um
analisadorquandoolhamosdamaneiraconvencionalutilizadapelosistemapenal,em
queutilizamosacategoriagênero(quandousamos)paradescreverumadeterminada
condiçãoouposiçãoidentitária.Aexperiência,aofinal,irásematerializarnorelato43,
queseconstituienquantoaprincipalquestãoenãoumcompromissoderepresentação
deumacertahistóriacausaloudeumarealidadeobjetiva.
Éimportantepontuar,aqui,queaetnografiaeapoéticanãosãoincompatíveis;
ouso dizer que guardam mais semelhanças do que aparentam. Talvez, a poética
configure uma nova forma de operacionalizar a prática etnográfica, uma nova
racionalidade não apenas ao “olhar” para o campo, como também para tratá-lo
posteriormentepormeiodaescrita.
39RANCIE} RE,op.cit.,p.16-17.40PRADO;MARQUES,op.cit.,2018,p.30.41Idem.42CRAPANZANO,op.cit.,p.379.43RANCIE} RE,op.cit.
26
CAPÍTULO01:Aspectosteóricos:normasdegêneroecriminologia
Umadasimpressõesquemeacompanharamaolongodomeucampoeraade
que eu precisava ajustar a minha “lente” o tempo todo para conseguir ver
determinadasexperiências.Era comose fossenecessáriodeslocarrotineiramentea
formacomqueeuliaepensavadiantedaimensidãodaquiloquevivia,ouviaesentia
comastravestis.Compreenderaquelesprocessosdecriminalizaçãosetornouatônica
davezeosesforçosforaminúmerosparaconseguirtraduzirumpoucotudoaquilo.
Depronto,omeuprimeiromovimentofoiodemedebruçarsobrealiteratura
criminológicaparatentarnomearearticularasimpressõesquetinha.Contudo,oque
pude perceber é uma lacuna, ou uma certa insuficiência do campo teórico que se
propõe a pensar os processos de criminalização de lidar com as experiências de
travestis.Comopassardotempo,conseguinomearesseincômodoeapontarcaminhos
paraotensionamentodealgunspressupostosdacriminologia.Comeceiaquestionar,
então,nãosomenteaincorporaçãoounãodegêneroenquantocategoriadeanálisenos
processos de criminalização, mas também quais concepções de gênero são ali
utilizadaseasconsequênciasdaíadvindas.
Para ilustrar o percurso deste capítulo seguirei em dois tempos: 1)
apontamentossobreacriminologiae;2)normasdegênero.
27
1. Dacriminologia
Conheci Sarah na salinha apertada do plantão de atendimento jurídico da
Faculdade.Elaestavacomváriospapéisnasmãosetantasdúvidasquelogolembrei
das “mães ensacoladas”. Sedenta por informações e com a fala acelerada era difícil
entenderoquesepassava.Trocavaaspalavrasecadavezquedemonstravanãoter
entendido,maisansiosaficava.FaziasetemesesqueSarahlembravacotidianamente
dodiaemquequebrouocarrodeumclientequenãopagoupeloprograma.Sentia-se
vigiada,acuada,comofuturoincerto.Seriapresa?Teriaquerespondersobreoatona
frentedeumjuiz?
Uma pesquisa rápida no sistema e o alívio veio logo em seguida. Não havia
processoalgum.Logopenseicomoomeroacessoàinformaçãoporalgotãobanalhavia
sidonegadoaeladeformatãosilenciosa...Apósoalívio,aconfissão:“Nãoacredito!
Vocênão imaginacomoeuestava...Todasasnoitesquandosaioparatrabalharsou
parada por polícias, nomínimouma vez por noite, sabe? E sempremeunome era
jogadonosistemaparaconferiralgumacoisa...Morriademedodeirpresa”.
RelatoscomoodeSarahnãosãoexceção,ousodizerqueseconfiguramcomo
regra.Talvezsejamamedidadeumsistemapenalquehámuitotemseconsolidado
enquantoseletivoevigilantededeterminadaspessoas.Digo“determinadas”porqueo
nossosistematemcor,classesocial,faixaetáriaegênero.Bastaumaolhadarápidanos
númerosdoencarceramentonoBrasileas812milpessoas44,deesmagadoramaioria
composta por jovens negros, para reconhecermos que o brando “todos são iguais
perantealei”sófunciona“atéapáginadois”.
Oempenhoparadesvendarasengrenagensdessesistematambémnãoénovo
e ocupa um lugar central nas teorizações de vários campos do conhecimento que
consagraramaCriminologiaenquanto lugarprivilegiadode taisreflexões.Acontece
que,aolongodotempohistórico,ocampocriminológicofoisealterandodetalforma
que “cada definição de criminologia inclui objetivos e métodos determinados,
44 MINISTEá RIO DA JUSTIÇA. Infopen. Disponível em:https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/17/cnj-registra-pelo-menos-812-mil-presos-no-pais-415percent-nao-tem-condenacao.ghtml.Acessoem:dez/2019.
28
ferramentas e palavras determinadas”45, de modo que, hoje, podemos falar de
múltiplascriminologias.
Primeiramente,éimportanteressaltarquenãomeinteressaelencaroucontar
a história do pensamento criminológico. Aqui, vou me ater unicamente a cotejar
algumascontribuiçõesdocampodacriminologiacrítica,feministaequeer,paraaofinal
defenderaimportânciadacriminologiaincorporaranormatividadedegênerocomo
pressupostoepistemológico.
É notório que, nos últimos tempos, a interface entre criminologia,mulher e
gênero tem, cada vez mais, sido tensionada por diversos teóricos e áreas do
conhecimento. As reflexões iniciais feitas no campo criminológico nesse sentido,
largamenteinfluenciadaspelopositivismocientífico,eramorientadaspeloestudodas
causas do crime e do comportamento criminal, denominado como paradigma
etiológico46.Nesseparadigma,aquestãodamulhereocrimesefezpresente,sobretudo
nasteorizaçõessobreapossívelrelaçãoentre“sinaisbiológicosadeterminadostipos
de delitos cometidos por mulheres”47. A questão da sexualidade feminina, àquela
época,ocupavaigualmenteumlugarcentralnessarelação,eaprostituiçãocomeçoua
ganharcontornoscientíficosquepudessemexplicarumaindisposiçãomoral48paraa
mentiraeaextorsão.Assim,“ograveproblemadasmulhereséqueseriamamorais.
Significa dizer: engenhosas, frias, calculistas, sedutoras, malévolas. Características
estasquesenãoimpulsionamasmulheresinstintivamenteaodelito,fazem-nascairna
prostituição”49. Foi assim que tais estudos reafirmaram algumas características
criminosas às mulheres, cuja roupagem científica garantia um controle maior e
legítimoaointerditoadeterminadascondutas50.
45ANITUA,GabrielIgnacio.Históriadospensamentoscriminológicos.RiodeJaneiro:Revan–InstitutoCariocadeCriminologia,2008,p.23.46BARATTA,Alessandro.Oparadigmadogênero:daquestãocriminalàquestãohumana.In:CAMPOS,CarmenHeinde(Org.).CriminologiaeFeminismo.PortoAlegre:EditoraSulina,1999,p.19-80.47Ibid.,p.34.48Apesardetaisteorizaçõesserem“datadas”,recentementemedepareicomumanotíciadejornalqueflertavafortementecomesseentendimento,emqueasmulheresforamdescritasenquantopossuidorasde“umpassadonadarecomendável”cujotestemunhopoderiafacilmenteserdescredibilizado.FOLHADESÃOPAULO.“DefesadeJoãodeDeusdizqueex-pacienteéprostitutaetempassadodeextorsão”,2018.Disponívelem:https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/12/defesa-de-joao-de-deus-diz-que-ex-paciente-e-prostituta-e-tem-passado-de-extorsao.shtml.Acessoemnov/2019.49MENDES,SoraiadaRosa.Criminologiafeminista:novosparadigmas.SãoPaulo:Saraiva,2017,p.43.50Ibid.,p.47.
29
A resistência à noção ontológica de criminalidade presente no paradigma
etiológico,noquetocaàquestãodamulher,começouasedesenvolvernasdécadasde
1960e197051, emque se consolidouapassagemparaum“paradigmacentradona
investigaçãodareaçãooucontrolesocialepenal(violênciainstitucional)”52.Aomesmo
tempo,oconceitodecriminalidadesedeslocavaparaaperspectivadecriminalização
primária,emqueseconstatavaaexistênciade“processosdecriminalizaçãofiltrados
peloprincípiodaseletividadepenal”53.Talmovimentoconsagrouainsurgênciadeuma
criminologia crítica, na qual “o sistema penal receberá uma interpretação
macrossociológica”, dando ensejo ao desenvolvimento feminista da mesma teoria,
marcadapelascategoriasde“patriarcadoegênero”54.
Talmovimentovoltouaatençãoparaamulheresuacondiçãonadinâmicade
criminalização e não somente visavam denunciar uma completa invisibilidade “da
mulher, seja como objeto, seja como sujeito da Criminologia e do próprio sistema
penal”55, como igualmente apontaram para a complexa rede de controle social
“informal” presente nos processos de criminalização, além de contribuir para o
desenvolvimentoda“vitimologia”56.Acriminologiafeminista,então,surgecomalguns
desafios de pautar a discussão da mulher e, em alguma medida, do gênero nos
processosdecriminalização,pois,[...] enquanto a criminologia crítica desafiou os pressupostos dopositivismo na explicação do crime dos homens, negligenciou-se emreconhecercomotaispressupostospermanecerammaisprevalentesnasconcepçõesacadêmicasepopularessobreocrimedasmulheres.57
Foi se consolidando o entendimento de que o sistema penal, enquanto
mecanismo, é permeadopor diversos influxos e regulações que atuam, em sentido
51SMART,Carol.Woman,crimeandcriminology:afeministcritique.London:Routledge&KeganPaul,1976.52 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da(des)ilusão.RiodeJaneiro:Revan,ICC,2012,p.127.53BATISTA,VeraMalaguti.Introduçãocríticaàcriminologiabrasileira.RiodeJaneiro:Revan,2011,p.89.54Idem.55ANDRADE,op.cit.,p.120.56 BARATTA, op. cit., p. 19-80; SOUZA, Luanna Tomaz de. Vitimologia e gênero no processo penalbrasileiro.Cadernosdegêneroetecnologia,n.27e28,ano:10,juladez/2013.57HEIDENSONHN,Frances;SILVESTRI,Marisa.Genderandcrime.In:MAGUIRE,Mike;MORGAN,Rod;REINER,Robert(Orgs).TheOxfordhandbookofcriminology.Oxford:Oxfordpress,2002.
30
amplo, no controle social de forma tal que não é possível reduzi-lo à lei,mas sim
concebê-loenquanto“umprocessoarticuladoedinâmicodecriminalização”58.Nesse
processo,convergem“nãoapenasas instituiçõesdecontrole formal,mastambémo
conjuntodosmecanismosdo controle social informal”59 tais comoa família, escola,
religião,raçaegênero.
A crescente preocupação com os episódios de violência contra a mulher,
igualmente,pautouainvestigaçãofeministasobrearecorrênciadetaisatospraticados
noâmbitodomésticoeapontouparaumadimensãodaviolênciaqueatéentãonãoera
problematizada. Ainda, tornaram-se frequentes as críticas ao caráter androcêntrico
das ciências, à violência institucional contra mulher e ao modelo de investigação
criminológica, introduzindo o gênero como um guia necessário para empreitar tal
investigação60.
Acríticacontundenteà invisibilidadedamulhernessecenário,bemcomoda
presença de suposições e estereótipos, e até entendimentos, relativos à mulher,
contudo, parece assumir outros contornos quando pensamos na experiência de
travestis.Arecorrentedenúnciarelativaàinvisibilidadedasmulheresnareflexãoeno
“mundodocrime”nãosesustentanocasodetravestisetransexuais.Nesseúltimo[...]oquesepodeperceber,portanto,équenãoháumainvisibilidadedapopulação transexual e travesti nos sistemas de Justiça, muito pelocontrário, há uma hipervisibilidade, contornada pela moralidade dasconvençõessociaisedasnormasdegênero.61
Mesmo se considerarmos que a palavra “mulher” não deve ser considerada
como tendo um sentido único, pois cada sujeito e sujeita se constitui de muitas
características–umateiadediferençasquecompõeum“lugar”social62–,namaior
parte da produção criminológica feminista produzida até o presente momento
predominaoentendimentodegêneroenquantopapelsocial,alémdeseateràcrítica
58ANDRADE,op.cit.,p.133.59Idem.60CAMPOS,CarmenHeinde.Criminologiafeminista:teoriafeministaecríticaàscriminologias.RiodeJaneiro:EditoraLumenJuris,2017.61PRADO,MarcoAurélioMáximo;MENDES,BárbaraGonçalves;CARNEIRO, Júlia;VIDAL, JúliaSilva;LAMOUNIER,GabAlmeidaMoreira;FREITAS,RafaelaVasconcelos.Aconstruçãoinstitucionaldogênerocriminoso.RevistaBrasileiradeCiênciasCriminais.Vol.146,ano26,SãoPaulo:EditoraRT,2018,p.532.62CAMPOS,op.cit.,p.17.
31
aopatriarcadodeformavaga,tendoemvistatodasaslimitações63quetalconcepção
impõe.Tem-seque,quandogêneroépapel,elejáéefeitodeumaimposiçãoanterior.
Anoçãodepapel,portanto,pressupõeumsujeitoúnicoformadoanteriormenteque
assumeumlugardestinado.
Assim, como o controle informal e formal foi concebido pela criminologia
feminista no que toca à experiência das mulheres64, no caso das travestis, sua
identificaçãocomocriminosaspareceserelacionarsimplesmenteportaisexperiências
terem se furtado às normas de gênero65. De forma hiperbólica, é como se o
comportamento em si, ou a própria existência das travestis fosse considerado
criminoso.
Adivisão,aindaquedidática,dosespaçospúblicoseprivadosnacompreensão
dosfenômenosdaviolência,igualmente,nãodácontadepensá-losenquantosistema66,
e também apontam para uma insuficiência da teoria em lidar com a concepção de
públicoeprivadoenquantoumefeitododiscurso.Obviamentequenãopretendo,aqui,
questionaravalidadeouapertinênciadetaisentendimentosnoquetocaàquestãoda
mulher.Pretendoapenasproporumanovachavedeinterpretaçõesqueconstituaum
entendimento questionador de tais premissas, vistos que são produto de uma
racionalidade“anterior”.
63Pateman,apontaquea“amaioriadasfeministasquedefendeoabandonodotermo‘patriarcado’ofazporacharqueesseconceitoéinoportunoea-histórico”(1993,p.52),eu,noentanto,reconheçoqueeletemsuavalidadeaodenunciarsituaçõesdeviolênciasemdadotempo/circunstância,masoafastoemvirtudede sua incapacidade em ser operativo o suficiente para suscitar alterações nessa ordemdecoisas,vezqueseuaparatoepistêmicopadecedosmesmosvíciosessencialistasdasordensdegêneroedeheterosexualidadequebuscasuperar.Cf.PATEMAN,Carole.Ocontratosexual.Trad.MartaAvancini.RiodeJaneiro:Pazeterra,1999,p.52.64Importantedestacartambémquemuitasdasteorizaçõesdacriminologiafeministadeixaram“delado”reflexõessobreaexperiênciadepessoaslésbicas.ParaRobson,identificarasrazõesdessainvisibilidadeseriaumprimeiropassoimportante,emquenossaspreocupaçõesdeveriamsevoltarparaaformaquealesbianidadeseconstituicomofatornoprocessocriminal.Assim,aperguntaquedevenosguiar,maisdoqueapreocupaçãocomquemérealmentelésbica,deveser:“whateffect is lesbianism–astrope,stereotype,theoryofthecase,prejudice–articulatedduringthecriminalprocess?”Cf:ROBSON,Ruthan.Convictions:Theorizing lesbiansandcriminal justice. In:STYCHIN,C.;HERMAN,D.;Legal inversions:lesbian,gaymen,andthepoliticsoflaw.Philadelphia:templeuniversitypress,1995,p.190.65PRADOet.al.,op.cit.,2018.66Ahomofobiapodeserconsideradaenquantoumsistemadehumilhação,normativo,emqueatuamdiversos mecanismos para o controle de sexualidades e gêneros desviantes. Tal constituição estádiretamenterelacionadacomaheteronormatividadeesuamanifestaçãonãosedádemaneirafortuitaouisolada,sobretudonasinstituições.Cf:PRADO,MarcoAurélioMáximo;JUNQUEIRA,RogérioDiniz.Homofobia, Hierarquização e Humilhação Social. In: VENTURI, Gustavo; BOKANY, Vilma(Org.).DiversidadeSexualeHomofobianoBrasil.SãoPaulo:EditoraFundaçãoPerseuAbramo,2011,p.51-72.
32
Deve-se reconhecer, contudo, os ganhos inegáveis proporcionados pela
criminologia queer ao propor uma reflexão que tenha lugar no “projeto feminista
dentro da criminologia, a fim de questionar não apenas os pressupostos da
criminologia,mastambémdofeminismosobregêneroesexualidade”67.Dessaforma,
a criminologia queer apontou para a constituição homofóbica científica da
criminologia68 e lançou bases para um questionamento profundo da
heterossexualidadecompulsóriaemqueestáassentada.Assim,Criminologiaqueerdeveterumaabordagemnovaeativanaabordagemdahomofobia,paraasquestõesderaça,classeegêneroeparaaquestãodo parentesco. As posições de gênero e sexualidade dos infratores evítimasdevemserpensadasdenovo.Omodoheteronormativodepensarsobreparentescoefamíliadevesersubstituídoporumanovavisãoquevê as relações, identidades e conceitos humanos como relaçõescontingentes e historicamente específicas de poder e interessespolíticos.69[traduçãominha]
Todavia,épossívelafirmarquehápoucodiálogoentretaiscamposdepesquisa
no Brasil e o que fora denominado “criminologia queer”70 carece de maiores
tensionamentosquequestionemnãoapenasaheteronormatividade,mastambémo
binarismo de gênero. Ainda, me parece que a projeção e desenvolvimento desses
estudosemoutrospaíses71nãodácontadelidarcomaespecificidadedaexperiência
67 Do original: “This reflection should benefit of and take place within the feminist project insidecriminology,inordertoquestionnotonlycriminology’sbutalsofeminism’sassumptionsaboutgenderandsexuality”.SORAINEN,Antu.Queeringcriminology.Paperpresentedat“3rdAnnualConferenceofthe European Society of Criminology “Crime and Control in an Integrating Europe”, University ofHelsinki,2003,p.5.68 CARVALHO, Salo; DUARTE, Evandro Piza. Criminologia do preconceito: racismo e homofobia nasCiênciasCriminais.SãoPaulo:Saraiva,2017,p.211.69Dooriginal: “Queeredcriminologyshould takeafreshandactiveapproach tohomophobia, to thequestionsofrace,classandgenderandtothequestionofkinship.Thegenderedandsexualisedpositionsofoffendersandvictimsshouldbethoughtanew.Theheteronormativewayofthinkingaboutkinshipandfamilyshouldbereplacedbyanewviewwhichseeshumanrelationships,identitiesandconceptsascontingentandhistoricallyspecificrelationsofpowerandpoliticalinterests.Cf.SORAINEN,op.cit.,p.5.70CARVALHO,Salo.Sobreaspossibilidadesdeumacriminologiaqueer.SistemaPenal&violência,PortoAlegre,v.4,n.2,p.151-168,2012.71Devem-se reconheceras importantescontribuições dacriminologiaqueeremoutros países.Umavastaproduçãocriminológica foiproduzidasobreo tema,Cf.BALL,Matthew.Criminologyandqueertheory: dangerous bedfellows? Critical Criminological perspectives. Australia: Palgrave Macmillan,2016;BUIST,CarrieL.;LENNING,Emily.Queercriminology.NewYork:Routledge,2016;PETERSON,Dana;PANFIL,Vanessa.HandbookofLGBTcommunities,crimeandjustice.NewYork:Springer,2014;STONE,Codie;BUIST,CarrieL.Transgendervictimsandoffenders:failuresoftheUnitedStatesCriminalJusticeSystemandtheNecessityofqueercriminology.CriticalCriminology,March2014,Vol.22,issue1, p. 35-47; WOODS, Jordan Blair. Queer Contestations and the Future of a Critical “Queer”
33
datravestilidadenoBrasil,tendoemvistaanecessidadedeseentenderosistemade
produção, “de legitimação e regulação que é indissociável de relações raciais,
econômicas,degêneroesexualidade,históricasecontemporâneas”72.
SeguindoasugestãodeSorainen73,emqueacriminologiadevetantoseabrir
paraoutrasdisciplinas,comoosestudosdegênero,quantoprocurarnovasmaneiras
decombinarteoriaeempirismo,apropostadeumacriminologiaquereflitasobrea
criminalização de travestis deve assumir a normatividade de gênero como um
pressuposto epistemológico necessário para se olhar o “desempenho prático do
sistemapenal,amissãoqueefetivamentelheresponde”74,noquetocaàsituaçãode
travestis.
Obviamentequenãopretendoaquiesgotarourespondertodasasquestõesque
aintersecçãoentreessesdoiscamposdeestudosprovoca,ousodizerqueaindanos
faltam aportes para, sequer, conhecê-las75. E, também, não questiono os ganhos
inegáveisqueambasasteoriasproporcionaramnoquetocaàreflexãocriminológica76
atéentãoconsolidada.
A incorporação da normatividade de gênero na análise dos episódios de
criminalização implica uma radicalização completa na medida em que gênero, da
mesma forma que raça77 não pode ser considerado como um “aditivo”, ou algo
apartado de fenômenos e dinâmicas maiores. Ao contrário, deve-se considerar a
normativadegênerocomoarticuladordetodoocampo,emque:
Criminology. Critical Criminology, March 2014, Vol. 22, issue 1, p.5-19; BALL, Matthew. QueerCriminology,Critique,andthe“ArtofNotBeingGoverned”.CriticalCriminology,March2014,Vol.22,issue1,p.22-34.72PRADOet.al.,op.cit.,2018,p.532.73SORAINEN,op.cit.,p.5.74BATISTA,Nilo.Introduçãocríticaaodireitopenalbrasileiro.12ªed.RiodeJaneiro:Revan,2011,p.32.75Reconheçoeventuaislimitaçõessobreapossibilidadedesenvolvercomrobusteztalquestãoteórica-epistêmicanotempoummestrado.Talvez,nestepresentemomentoseriaoportunoapontarcomoquepartirdanormatividadedegênerocomopressupostoepistêmicodacriminologiaimplicaconstituiracenado“crime”enquantoquestãocentral.Ouseja,represarmoscomoolharoato,definiroatoeporaíemdiante.76Refiro-me,aqui,àcriminologiaortodoxaeàcriminologiacrítica.77Gostariadecompartilharcomvocêsumaquestãoparatentarcomplexificarumpoucooentendimentoda“raça”aquienquantomecanismoarticuladoroperante,enãoestruturante,dosistemapenal.Outrodia estava discutindo comamigos sobrea “recorrente” expulsão de casa no caso das trajetórias detravestis.Umaconhecidafalavasobreofatodemuitassaíremdecasa“com12anos”equestionavasetalmarcadorerapresenteemoutrastrajetórias.Fatoéquenãosomente“muitas”travestissãoexpulsasdecasajovens,masigualmentemuitosnegrosenegrasdeperiferiatêmdestinosemelhante.Adiferença,talvez, esteja no fato de que no caso das travestis tal questão está intimamente ligada com anormatividadedegêneroesexualidade.Nocasodosjovensnegros,nãonecessariamente.
34
O efeito de ser um “sujeito” e poder ser compreendido, visto, ouvido,representado, depende das articulações que são estabelecidas com asnormas. A chave de leitura tradicional, que aciona/constróirepresentações de “masculinidade” e “feminilidade” paradescrever/prescrever nossosmodos de vivenciar omundo, traz comoefeitossançõesnormalizadorassobreasvidasdepessoasdissidentesdegênero e sexualidade como as travestis, as mulheres transexuais, oshomens trans, pessoas não binárias, pessoas intersexo, lesbicas,bissexuais,homossexuaiseadiversidadedeexpressõesdesi,decorpoededesejo.78
Dessa forma,parapensarmaisdetidamentesobreaexperiênciadetravestis,
para além da criminalização e do encarceramento, é necessário pensar em gênero
enquanto norma, e não somente enquanto papel social, tendo em vista que tal
concepçãoanalíticameparecerestritivanaanálisesobrecontrolesobreoscorposde
travestis.
2. Dosusosdegênero:norma
Éimportantepontuarqueháumadiversidadedeusosconceituaispossíveisda
palavra"gênero",sendonecessárioconsiderarquesuautilizaçãonosvárioscontextos
ésemprecomplementarenuncaexcludente.Gêneroé,destarte,umtermopolissêmico,
quepodefornecerelementosparapensarsobreaexperiênciasubjetivadecadaumde
nós,apontarparaaimportânciadese(re)pensarsobreaconstruçãosocialdosexo,
bem como para referir-se à trajetória pessoal, política e histórica demulheres, ou,
ainda,paraapontarobinarismorelacionalentreomasculinoeofeminino.
Além de sentidos múltiplos, "gênero" pode variar também em relação à
utilização que fazemos do termo. Emumusodescritivo, "gênero" é utilizado como
sinônimode“mulher”,denotandoqueomasculinoocupaumlugardecentralidadenas
reflexões teóricas e práticas.Nessa perspectiva, gênero é utilizado como síntese da
realidade ou, ainda, algo descritivo de coisas relativas àmulher. No uso causal do
termo,porsuavez,gêneroéutilizadocomodinâmicaoufenômeno,sendo,sobretudo,
umacategoriadeanálisedarealidade79.Nãomeinteressaaquiexaurirtodososusos
78LAMOUNIER,Gab.Gênerosencarcerados:umaanálisetrans.viadadapolíticadeAlasLGBTnoSistemaPrisionaldeMinasGerais.Dissertação(MestradoemPsicologia)–UniversidadeFederaldeMinasGerais,2018,p.72-73.79SCOTT, JoanWallach.Gênero:umacategoriaútildeanálisehistórica.EducaçãoeRealidade.PortoAlegre,vol.20,n.2,p.71-99,1995.
35
conceituaispossíveisdotermo,quiçátentarrelatarumahistórialinearecoesadeste,
mas sim, demarcar que este é um "terreno que parece fixado, mas cujo sentido é
contestadoeflutuante"80.
Inicialmente estruturado a partir de concepções de “homem e mulher”, os
estudoscontemporâneosnocampodegêneroesexualidadecontribuíramde forma
significativaparaacomplexificaçãodarelaçãoentreosgêneros,sobretudopautados
nacompreensãodequaisosmecanismosatuamdiretamentenossujeitosparaqueeles
"caibam" nosmoldes do feminino emasculino81. Com o início das incursões nesse
campo,gêneroeraentendidocomodescritordeduassupostasidentidadessubjetivas,
forjadas por um caráter social, cuja identidade social era imposta em um corpo
sexuado82.Comainfluênciasignificativadasfeministasdesegundaonda83,porsuavez,
gênero foi pensado a partir de um viés interseccional com raça, classe e etnia84.
Posteriormente,gênerofoirelacionadocomsistemassociais,históricos,econômicose
políticosdefixaçãoelegitimaçãodopoder85,queserelacionam,ainda,comhierarquias
sociais86,queinformamascomplexasrelaçõesentreasdiversasformasdeinteração
humana.
Nesseponto,aselaboraçõesteóricasvoltaram-separaaconstruçãosocialdo
"sexo"eporumafastamentoradicaldepossíveisdeterminantesbiológicos,ouseja,
peloapontamentodequeabiologiatambéméumcampogenerificado.Detalforma
queanoçãode"gênero"apontaparatodoumsistemaderelaçõesquepodeincluiro
sexo,masnãoédeterminadoporeste,muitomenosserelacionacomasexualidade87.
80Ibid.,p.28.81CORRÊA,Sonia.Acategoriamulhernãoservemaisparaalutafeminista.RevistaSur,v.13,n.24,2016.82BEAUVOIR,Simonede.OSegundoSexo,Vol.1:FatoseMitos.4ªedição.SãoPaulo:DifusãoEuropeiadoLivro,1970.83Éimportanteapontarqueadivisãoaquipropostapossuiocunhomeramentedidáticoe,obviamente,forneceapenaselementosdecompreensãodeumadasmúltiplashistóriaspossíveisdoconceito.84 ANZALDUá A, Gloria. La conciencia de la mestiza: rumo a uma nova consciencia. Revista EstudosFeministas,13(3),704-719,2005;BRAH,Avtar.Diferença,diversidadeediferenciaçao.CadernosPagu,v.26,p.329-376,2006;CRENSHAW,Kimberlé.MappingtheMargins:Intersectionality,IdentityPolitics,andViolenceAgainstWomenofColor.StanfordLawReview,43(6),1991.85SCOTT,op.cit.86RUBIN,Gayle.PensandooSexo:NotasparaumateoriaRadicaldasPolíticasdaSexualidade,2012.Disponível em:https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/1582/gaylerubin.pdf?sequence=1. Acessoemnov/2017.87SCOTT,op.cit.
36
Apesar dessamultiplicidade de usos e entendimentos possíveis em torno da
noçãodegênero,fuipercebendoqueprecisavadeumaconcepçãodinâmicadotermo,
que pudesse me ajudar a pensar em sua dimensão produtiva e constitutiva de
realidades.Precisava,emoutraspalavras,deumaportequemeajudasseaentenderos
ritos, passos, etapas, momentos de criminalização das travestis. Foi assim que
encontreinaconcepçãodegênerodeJudithButleroaportenecessáriopara“calibrar”
aquiloqueviaeentendercomodeterminadosprocedimentosproduziamgêneroe,em
setratandodetravestis,produziamocrimeeacriminosa.
Primeiro, me parece importante localizar o lastro foucaultiano nas teorias
elaboradasporJudithButler.Tallastroserelacionacomaproduçãodoteóricosobre
os efeitos das relações de poder, que incidemnão somente na produção de corpos
disciplinados, como tambémna subjetivação, responsávelpelaproduçãodo sujeito,
queengendramsujeiçãoeresistência88.
OsujeitopolíticoparaFoucault,assimcomoparaButler,nãoseconstituifora
do discurso89, sendo um efeito das relações de poder: “tornar-se sujeito significa
ocupar um lugar (ou vários lugares) a partir do qual se pode exercer vontade e
intenção.Tornar-sesujeitoimplicacapacidadedeagirdiantedeconstrangimentosde
poderquefluematravésdeposiçõesdesujeito.”90
Junto com Foucault, Butler dá importância para as relações de poder e os
atravessamentos constituintes nos processos de subjetivação dos sujeitos. Como
apontadoporSalih,existeumempenhonasteorizaçõesdeButler
[...]emquestionarcontinuamente“osujeito”,indagandoatravésdequeprocessosossujeitosvêmaexistir,atravésdequemeiossãoconstituídose como essas construções são bem-sucedidas (ou não). O “sujeito” deButlernãoéumindivíduo,masumaestruturalinguísticaemformação.91
88SOUZA,F.C.V.;MARQUES,A.C.S.Rostoecenadedissenso:aspectoséticos,estéticosecomunicacionaisdeconstituiçãodosujeitopolítico.Questõestransversais–RevistadeEpistemologiasdaComunicação,vol.4,n.7,janeiro-junho/2016,p.23.89FOUCAULT,Michel.Aordemdodiscurso:aulainauguraldoCollègedeFrance,pronunciadaem2dedezembrode1970.SãoPaulo:ediçõesLoyola,23.Ed,2013.90SOUZA;MARQUES,op.cit.,p.2391SALIH,Sara.JudithButlereateoriaqueer.BeloHorizonte:AutênticaEditora,2015,p.10.
37
Aimportânciadadaàlinguísticaserelacionacomasinfluênciasderradianasno
pensamentodeButler,demodoque “seo sujeitoé construídona linguageme sea
linguagem tal comoé teorizadaporDerridaé incompletaeaberta, entãoopróprio
sujeitoseráigualmentecaracterizadoporsuaincompletude”92.
ParaButler,anoçãodesujeitoserelacionacomopapelexercidopelos(1)atos
defala,ouatosdelinguagem,ecomanoçãodeincompletudeoude(2)processualidade
dosujeito.(1)Paraaautora,antesmesmodequeosujeitopossaterqualqueratode
fala,talatojáodetermina,ointerpelaeonomeia,incidindodeformadiretanasua
formação.Emoutraspalavras,osujeitoexistepreviamenteporqueanormaoinstitui
eonomeia.Assim,aapariçãodosujeitopolíticoexigeumacondiçãoanterior,queéa
norma.
OatopolíticoparaButlercomeçapela interpelação,poraquelemomentoem
quealguémdizquemvocêé.Talatopodeserentendidocomoumatodepoder,que
tambémépolítico,equeconfiguraodizerparaooutroquemeleéecomoeledeveser.
Emlinhasgerais,paravocêexistircomosujeitoénecessárioanomeaçãoporoutrem,
de fora. Contudo, essa nomeação não implica considerar que o sujeito está sempre
determinado,postoqueéexatamenteacondiçãodeconstituídoquepossibilitaasua
agência.Defato,“podemosperguntar,eperguntamos‘eusouessenome?’Ealgumas
vezescontinuamosperguntandoaté tomarmosumadecisãosobresesomosounão
essenome,outentamosencontrarumnomemelhorparaavidaquedesejamosviver,
ou nos esforçamos para viver nos interstícios entre os nomes”93. Segundo o
pensamentodeButler,alinguagemexerceumefeitoperformativonocorponoatode
sernomeadocomoesse94.
Afirmarquedeterminados corpossãodeumsexooudeoutro,porexemplo,
longedeserumaafirmaçãopuramentedescritiva,seconstituienquantoumademanda
discursiva,umaproduçãodecorposdeacordocomumacoerênciaheterossexual,
como fêmea e macho. Onde o sexo é tomado como um princípio deidentidade, ele é sempreposicionado num campo de duas identidades
92 BUTLER, Judith. Subjects of desire: Hegelian reflections in twentieth-century France. Nova York:ColumbiaUniversityPress,1999,p.179.93 BUTLER, Judith.Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa deassembleia.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,2018,p.68.94Idem.
38
mutuamente exclusivas e completamente exaustivas; é-se macho oufêmea,nuncaosdoisaomesmotempo,enuncanenhumdosdois.95
Parece-menecessário,então,reposicionaraagênciadentrodeumamatrizde
poder,emque,naesteiradaconcepçãofoucaultiana,odiscursoéconstitutivo,e
o sujeito opera como uma categoria linguística que esta sempre emprocesso de construção no interior das relações de poder. Para ela,nenhum indivíduo torna-se sujeito sem antes ter sido sujeitado oupassadoporumprocessodesubjetivação.TantoemFoucaultcomoemButler,osujeitoencontraassuasprópriaspossibilidadesdesubjetivação,construindo estratégias de resistência ou de subversão aosmandatossociaisqueolimitam.96
A nomeação do ato de fala, nesse sentido, joga com uma imposição e uma
possibilidade de desvio.Tal possibilidade de desvio expõe a incompletude e a (2)
processualidade do sujeito, enquanto um ente que não tem fim e que está em um
contínuo processo de transformação. O que a nomeação significa pra Butler se
relacionadiretamentecomaconcepçãodeinterpelação,quesignifica,emlinhasgerais,
oferecerumnomeemcimadoqualcontinuamostrabalhando.Arepetiçãodosnossos
papéis sociais, da nossa performance – que não é intencional ou fruto de uma
racionalidadeanterioraosujeito–consistenapossibilidademesmadedeslocamento.
Emcertosentidoéarepetiçãoquedenunciaafragilidadedeumsistemanormativo.
ParaButler, a norma temque estar sempre presente, reiterada, reconfirmada,mas
mesmoassimpassíveldedesvios:
Osujeitoreflexivoeresistenteaomesmopoderdoqualeconstituídoeum sujeito que, por si so, não da conta do seu próprio tornar-se,masencontra as possibilidades para ressignificar normas, discursos,experiências e práticas sociais. Em síntese, para Butler, o sujeito eperformativo,ouseja,umaproduçãoritualizada,umareiteraçãoritualdenormas,quenãoodeterminamtotalmente.Essaincompletudepossibilitao processo de ruptura e a inscrição de novos significados e,consequentemente,amudançadepráticasecontextos.97
A repetição é fundamental para a reprodução da ordem, mas também é
fundamentalparaaidentificação,postoqueosujeitoquerepeteanormaestáexposto
95BUTLER,Judith.Inversõessexuais,In:PASSOS,IzabelCFrieche(Org.),2ªed.Poder,normalizaçãoeviolência:incursõesfoucaultianasparaaatualidade.BeloHorizonte:AutênticaEditora,2013,p.98-99.96 FURLIN,N. Sujeito e agência no pensamento de Judith Butler: contribuições para a teoria social.SociedadeeCultura,Goiânia,v.16,n.2,2013,p.396.97Ibid.,p.397.
39
apossibilidadedefalha,reinvençãoeressignificação.Assim,“aproduçãonormativado
sujeito é um processo de iterabilidade – a norma é repetida e, nesse sentido, está
constantemente “rompendo” com os contextos delimitados como as “condições de
produção”98.Emcertosentido,épossívelafirmarqueasuarepetiçãoétamanhaque
criaumdeslocamentodosignificante,emquearepetiçãodeixadeseraquiloqueée
passaaseraquiloqueéressignificada;“énacitaçãocontinuadaqueossignificados,os
sujeitoseomundosetransformamao longodaação”99.Épossível inferirque,para
Butler,anoçãodesubjetividadeestáintrinsicamenteligadaànoçãoderuptura.Não
existiria,portanto,umsujeito100exterioresuperiorcujopropósitoseriadeconferir
consistênciaesentidoàmatéria,objetoerealidade.
Énessesentidoque,noentendimentodeJudithButler101 ,ogêneropodeser
consideradocomoumprincípionormativodeorganizaçãodocamposocial,queatua
na produção de sentidos e inteligibilidade das práticas sociais. A noção de
inteligibilidade esta associada não apenas ao reconhecimento de determinadas
práticas,mastambémaoseuenquadramentoenquantopráticas legítimas:“definea
cena em que podemos aparecer, mas também restringe a possibilidade dessa
aparição”102.
Norma,portanto,serelacionacomoatoagirnarealidade,quecontrolanossa
experiência,aomesmotempoemquegarantenossaexistênciaefundaumarealidade
dentre outras tantas possíveis, em que as características da obrigatoriedade e da
sanção se observam em toda sua extensão. Tal concepção de norma é típica do
pensamento filosófico e político e pouco se assemelha com a concepção que esta
assumenocampojurídico.Gênero,aseuturno,encontra-sediretamenterelacionadoa
98 BUTLER, Judith.Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira,2015,p.237.99FURLIN,op.cit.,p.398.100ImportantepontuarqueanoçãodesujeitoparaJudithButlernãoéterminada,sendoapresentadonopresente trabalho um recorte pequeno e didático sobre o tema. Contudo, vale mencionar as suascontribuiçõesrecentesrelativasànoçãodesujeitopolíticoenquantoauniãodosingulareuniversal,sobretudoelaboradasemseudiálogocomLevinas.ParaButler,énecessárioobservarosujeitoemsuaindividualidade, istoé,nasituaçãodevulnerabilidadeemqueele seencontraeédefinido.Assim,arelaçãocomooutrotambéméimportanteparaoprocessodeformaçãodasubjetividade.Cf.BUTLER,op.cit.,2015.101BUTLER,op.cit,2006.102KORPI,Piia.Thenotionofgenderasanorm in JudithButler’s thought.Progradututkielma94s.Filosofia.Joulukuu2009,p.26-27.
40
"umatecnologiasofisticadaque fabricacorpossexuais"103,queatuadiretamentena
regulaçãodaaparência,estreitandoocampodoreconhecível104.
As normas de gênero instauramuma racionalidade específica nosmodos de
agir, ser, pensar e desejar dos sujeitos, sendo, assim, uma categoria que constrói e
constrange as nossas formas de percepção e representação. Gênero, então, não
funciona enquanto “abstração” e pode ser concebido enquanto sucessividade ou
sequênciadeatos105queestãosempreocorrendocomo,igualmente,algo“nãonatural”:Ogêneroéaestilizaçãorepetidadocorpo,umconjuntodeatosrepetidosno interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual secristalizanotempoparaproduziraaparênciadeumasubstância,deumaclassenaturaldeser.106
Asbasesquesustentamedeterminamocamponormativodegêneropodemser
delimitadasemtrêspilares,asaber:obinarismo,noqualsedefendeaconcepçãode
gênero mediante uma dualidade; a complementariedade dos corpos e; a
heterossexualidadecompulsória.Aheterossexualidade,dessaforma,dariasentidoàs
diferençasentreosgêneros:
[...]acomplementariedadenaturalseriaaprovainquestionáveldequeahumanidadeénecessariamenteheterossexual equeosgênerossó têmsentido quando relacionados às capacidades inerentes de cada corpo.Atravésdasperformancesdegênero,a sociedade controlaaspossíveissexualidades desviantes. Será a heterossexualidade que justificará anecessidade de se alimentar/produzir cotidianamente os gênerosbinários,emprocessosderetroalimentação.Osgênerosinteligíveisestãocondicionados à heterossexualidade e esta precisa dacomplementariedadedosgênerosparajustificar-secomonorma.107
Ocamponormativodegêneroseconstituieéconstitutivodesseconjuntode
normassociais,quereiteraocaráterreificador,excludenteeabjetodedeterminadas
condutas e experiências de corporeidade. Nesse cenário, “a norma diz respeito a
todas/asequemnãosemostraraptoasernormalizadotornar-sedignoderepulsae
103PRECIADO,P.Manifestocontrassexual.SãoPaulo:n-1edições,2014,p.29.104BUTLER,op.cit.,2018,p.42.105 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismos e subversão de identidade. Rio de Janeiro:Civilizaçãobrasileira,2003,p.78.106Ibid.,p.59.107BENTO,Berenice.Oqueétransexualidade?SaoPaulo:Brasiliense,2008,p.45-46.
41
reprovação,ocupandoumgrauinferiorounulodehumanidade”108.Comoreferido,as
normasdegênerosãoresponsáveisporregularnossaexperiênciae,aomesmotempo,
garantirnossaexistênciaeinteligibilidade;nãoexistindo,portanto,sujeitosalém,nem
aquém,danorma.
As reiterações contínuas de atos das normas de gênero, que atuam na
construção da subjetividade dos indivíduos, são denominadas performatividade de
gênero. Norma, nessa perspectiva, se relaciona como ato de performar ou agir na
realidade, que controla nossa experiência, ao mesmo tempo que garante nossa
existênciaefundaumarealidadedentreoutrastantaspossíveis.Nessesentido,“agir
deacordocomumamulher/homemépôremfuncionamentoumconjuntodeverdades
que se acredita estarem fundamentadas na natureza”109. Gênero, portanto, é uma
expressão,umefeitodedominaçãoqueinstalaumregime,retiraahistoricidadeea
contingênciadasconcepçõesdemasculinoefeminino.
Oconceitodeperformatividadeimplicaconceberogênerocomoumaaçãoque
seproduzesefaz,sendoumprocessorepetitivodeatosqueenvolvemrelaçõessociais
e que “faz alguma coisa acontecer ou traz algum fenômeno à existência”110. Faz-se
necessário,então,pensarocorpoemnãomaiscomoumdadonatural,mascomouma
“superfíciepoliticamenteregulada”111.Assim,
[...] a atuação não é apenas repetição, também é responsável pelasconfiguraçõesdepoderexistentes,‘aperformancetornaexplicitaasleissociais’ecolocaaconfiguraçãodegêneroemtermosnormativos.Porúltimo,segêneronãoéalgoquesetem,nemtampoucoalgoqueseés,mas simépartedeum ir sendo, temporale socialmente condicional,semorigemesemmetasdechegada,emqueoslimitesnãopodemserdefinidosanteriormente.112
108PRADO;JUNQUEIRA;op.cit.,p.60.109 BENTO,Berenice.A reinvenção do corpo: sexualidadee gêneronaexperiência transexual. Rio deJaneiro:Garamond,2006,p.93.110BUTLER,op.cit.,2018,p.35.111 RODRIGUES, Carla.Escritos de filosofia e gênero. Ebook: Rio de Janeiro, 2017, p. 34. Disponível:www.encurtador.com.br/cvLNQ.Acessoemjul/2019.112 Do original: “Desde este enfoque, la actuación no es sólo repetición, también da cuenta de lasconfiguraciones de poder existentes, ‘la performance hace explicitas las leyes sociales’, pone demanifiestolaconfiguraciondelgéneroemtérminosnormativos.Porúltimo,sielgéneronoesalgoqueumatiene,nitampoucoesalgoqueumaes,sinoqueespartedeumirsiendo,temporalysocialmentecondicionado, sin Orígenes-originales de partidade, pero tampocometas de llegada, los límites delrecorridonopuedenserdefinidosapriori”Cf.PRADO,NataliaM.Sujetoyperformatividad.In:BISET,Emmanuel(etal).Sujeto,unacategoriaemdisputa.Adrogué:EdicionesLaCebra,2015,p.313.
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Dizer que o gênero é performativo, para Butler, é dizer que ele é um
determinado tipo de representação, que é parte da “sua própria ontologia, é uma
maneiraderepensaromodoontológicodegênero,eentãoimportacomoequandoe
comqueconsequênciasessarepresentaçãosedá,porquetudoissomudaogêneroque
alguémé”113.Porisso,osatos,ouoagirnarealidade,constituemumdosmeiospelos
quaisépossívelrecusarourevisaranossaatribuiçãoinicialdegênero.Éporissoque
a“performatividadedescrevetantooprocessodeserobjetodeumaaçãoquantoas
condições e possibilidades para a ação”114. A normatividade de gênero, assim, não
funciona enquanto “abstrações”, e se materializa nos nossos atos, indo desde as
dimensõesmaisrígidasdeumasociedadeatéasmenosrígidas.
Para“percebermos”asnormasdegênero,ocaminhomaisdidáticoserianos
atentarmosparaosseusefeitos,poisasnormaspodemounãoseremexplícitas.Ainda,
quandoelasoperamcomoprincípiodaprática social, elasgeralmentepermanecem
implícitas,difíceisdeleremaisclaraedramaticamentediscerníveisnosefeitosque
produzem115.
Ao que me parece, as normas de gênero “produzida[s] a serviço de outras
formasderegulação”116têmcomoefeitoacriminalizaçãodetravestis.Issoporque,ao
seafastaremdessamatrizdereconhecimentosustentadapelasnormasdegênero,as
travestis ficam, ao mesmo tempo, submetidas “a consequências variadas e
contingenciais ao campo disciplinar, que ira atuar na regulação da conduta
desviante”117.
Parapercebermosessaregulação,énecessáriocolocaremevidênciaaspráticas
eseusmecanismosnadesigualarticulaçãodasnormasdegêneroquedefinemaquem,
ecomo,seráatribuídoapráticadeumaaçãoconsideradacomocrime.Taisquestões
exigem de nós “um giro em nossas categorias, de modo a construir um plano de
referênciaquepermitacolocaremperspectivaefiguraressesprocessos,recolocaros
problemas,”118eporoutrosaperceber.
113BUTLER,op.cit.,2018,p.68.114Ibid.,p.70.115BUTLER,op.cit.,2006.116BUTLER,Judith.Regulaçõesdegênero.CadernosPagu(42),janeiro-julhode2014,p.268.117LAMOUNIER,op.cit.,p.74.118TELLES,op.cit.,p.115.
43
Paratanto,nospróximoscapítulosireidemonstrartaisarticulações,sejapela
passagememrevistadealgunsepisódiosdanossahistóriaqueversamsobrearelação
entreacriminalizaçãoea travestilidade,sejapela incursãoemcampopormeiodas
cenasconstruídaspeloaporteetnográfico.
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CAPÍTULO02:Fragmentosdarelaçãosinuosaentreastravestisea
criminalização:apresentificaçãodocenáriodapesquisa
Acriminalizaçãodasexperiênciasdissidentesdegêneroesexualidadenãoéum
fenômeno recente no Brasil. Basta olharmos atentamente a nossa história para
percebermosquehámuitoosistemapenal119éacionadoe,inclusive,produzido,para
controle do “desvio”. Na realidade, seria possível afirmar que as experiências de
lésbicas,gays,bissexuais,travestisetransexuais–conformesãodenominadashoje–
entramno“radar”dodireitopormeiodapenalizaçãoedarepressão.Noquetocaà
travestilidade,ocontroleexercidopeloaparatopunitivo-penalaolongodotempofoi
crucialparamoldaraconstruçãodessasexperiênciasnailegalidade,bemcomopara
associá-lasanoçõesdecrimeecriminalidade.
A reconstrução de alguns fragmentos históricos é profícua para recuperar o
percurso traçado pelas experiências de travestis ao longo do tempo e, assim,
“interpretarospapéisque lheestãosendoatribuídose localizaros lugaresque lhe
119Aexpressão“sistemapenal”seráutilizadaemvirtudedoseucarátermaisabrangentenoquetocaàsinstituiçõespolicial,judiciáriaepenitenciária.Compreende-se,ainda,queosistemapenalfuncionademaneiraseletiva,“atingindoapenasdeterminadaspessoas,integrantesdedeterminadosgrupossociais,apretextodesuascondutas”.Cf.BATISTA,op.cit.,2011a,p.25.ParaAndrade,osistemapenaldevesercompreendidoemumcontextodeumatotalidadede“instituiçõesqueoperacionalizamocontrolepenal(Parlamento, Polícia, Ministério Público, Justiça, Prisão) a totalidade das Leis, teorias e categoriascognitivas(direitos+ciênciasepolíticascriminais)queprogramamelegitimam,ideologicamente,asuaatuação e seus vínculos com amecânica de controle social global (mídia, escola, universidade), naconstruçãoereproduçãodaculturaedosensocomumpunitivoqueseenraíza,muitofortalecidamente,dentrodecadaumdenós,na formademicrossistemaspenais.”Cf.ANDRADE,VeraReginaPereira.Minimalismos, abolicionismos e eficienticismo: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e aexpansão.RevistaSequência,nº52,p.163-182,jul.2006,p.169.
45
estão sendo reservados”120 hoje. Ainda, a passagem em revista de alguns
acontecimentos, longe de querer apontar para uma linearidade ou causalidade da
história, será feita com o intuito de possibilitar o questionamento do próprio
presente121.
Mais especificamente, partirei do ano de 1890, para entrar no período da
ditadura militar até algumas décadas após a redemocratização do país e, assim,
demonstrarasmúltiplasconfigurações,procedimentoseatoresenvolvidosnatecitura
feitaentreacriminalizaçãoeastravestis.Essacosturacomplexaquesefezpresente
aolongodotempoapontaparaumaorganizaçãodatravestilidadenailegalidadeque,
porsuavez,seconstituicomoefeitodocontroleformalexercidopeloEstado.
Em linhas gerais, serãodois os objetivos neste capítulo: o primeiro, apontar
brevemente que a travestilidade entra no “radar” do direito via criminalização; e o
segundo,defenderqueocontroledasexperiênciasdegêneroviadireitopenalaponta
paraumasofisticaçãodastécnicasderepressão,ou,naspalavrasdeFoucault122,uma
“mutaçãotécnica”namaneiradegerirasilegalidades.Pretendo,então,apontarparaa
urgência de se pensar os contornos específicos e as formas de aparição que esse
movimentodecriminalizaçãoediferenciaçãodas ilegalidadesassumemnosdiasde
hoje.Ointuitodestecapituloé,portanto,apontarcomoaexperiênciadatravestilidade
éconstruídaapartirdediscursosepráticasdecriminalizaçãoeexclusão.
Parailustraropercursoadotadoseguireiemdoistempos:1)brevepanorama
defragmentoshistóricosnoquetocaàrelaçãoentresistemapenaletravestilidadeno
Brasile;2)a(re)localizaçãodacriminalizaçãocomaorganizaçãodomovimentoLGBT
emtornodosepisódiosdeviolênciaecriaçãodasalasparatravestisehomossexuais
nosistemaprisional.Porfim,apresentareiosdadosoficiosos123doencarceramentode
travestisemumapenitenciáriadoestadodeMinasGerais.
120SILVA,op.cit.,p.187.121FOUCAULT,Michel.Nietzsche,agenealogiaeahistória.In:Microfísicadopoder.RiodeJaneiro:Graal,1984.122FOUCAULT,Michel.Vigiarepunir:nascimentodaprisão.Trad.RaquelRamalhete.42ªed.Petrópolis,RJ:Vozes,2014.123Oficioso,aqui,éutilizadoparamarcaraausênciadedadosoficiaissobreoencarceramentoetravestisnoestado.
46
1. “Acaçaàsbruxas-bichas”124:notassobreacriminalizaçãodetravestisnoBrasil(1890-1988)
Art. 379. Usar de nome suposto, trocado oumudado, de titulo, distinctivo, uniforme oucondecoração que não tenha; Usurpar titulo denobreza, ou brazão de armas que não tenha;Disfarçar o sexo, tomando trajos impróprios doseu,etraze-lospublicamenteparaenganar.Pena – de prisão celullar por quinze a sessentadias.125(BRASIL,1890)
O finaldoséculoXIXe iníciodoséculoXXmarcamodestoardeumarelação
complexaesinuosaentreodireitopenaleasexperiênciashomossexuais.Amparada
pelas visões criminológicas da época e largamente influenciadas pelo positivismo
científico,asreflexõesiniciaisfeitasnessecampoorientavam-sepeloestudodascausas
docrimeedocomportamentocriminal126.NoBrasil,taisconcepçõestomaramconta
dasfaculdadesdedireitoederamespaçoparaosurgimentodetesessobrepobreza,
raçaeloucura,alémdeguiaremosesforçosparaocontroledo“desvio”emanutenção
daordemsocial127.
Asproduçõesjurídicasdaépoca,aliadasàsciênciasbiológicaseàantropologia
criminal,foramresponsáveispordeslocarofocodeanálisedoatoparaoautor,sendo
ocriminosoalçadoaostatusdeanormaledegeneradoe,assim,justificáveistodosos
esforços empreendidos pelo Estado na sua contenção. Ana Lúcia Schritzmeyer128
aponta,porexemplo,queacidadedoRiodeJaneironosidosde1890foiconsiderada
124ReferênciaàreportagemdeJoãoSilvérioTrevisannaediçãoden.6dojornalLampiãodaEsquinaem1978. Disponível em: http://www.grupodignidade.org.br/wp-content/uploads/2019/04/10-LAMPIAO-DA-ESQUINA-EDICAO-06-NOVEMBRO-1978.pdf.Acessoemout/19.125BRASIL.CódigoPenalde1890.Disponívelem:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d847.htm.126Talconcepçãoédenominadacomoparadigmaetiológico.Cf.BARATTA,op.cit.,p.19-80.127SCHWARCZ,LiliaMoritz.Oespetáculodasraças:cientistas,instituiçõeseaquestãoracialnoBrasil(1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993;SCHRITZMEYER,AnaLúciaPastore.Sortilégiodesaberes:curandeirosejuízesnostribunaisbrasileiros(1900-1990).SãoPaulo:IBCCRIM,2004;SCHRITZMEYER,AnaLúciaPastore.Oensinodaantropologiajurídicaeapesquisaemdireitoshumanos”.In:NALINI,JoséRenato;CARLINI,AngélicaLucia(coord.).DireitosHumanoseFormaçãoJurídica.RiodeJaneiro:Forense,2010,p.137-153.128SCHRITZMEYER,op.cit.,2004;SCHRITZMEYER,op.cit.,2010,p.137-153.
47
umorganismodoente,sendoaprostituiçãoeasodomia129osseusprincipaismales,“o
que levoumedicos e juristas a considerarem-se aptos a combatê-los com base na
crença de que eram os ‘evoluídos’ de uma nação que precisava correr rumo ao
progressotecnológicoecientífico”130.Emoutraspalavras,produzia-seodelinquente
comosujeitopatologizado131.
Apesardasinúmerastentativas–semsucesso–detipificarahomossexualidade
como algo, por si, passível de punição132, outros dispositivos legais facilitavam o
controleeaprisãodepessoascompráticasdissidentesdegêneroesexualidade.Nesse
contexto,oCódigoPenalbrasileirode1890preconizavaque:“disfarçarosexo”eusar
“trajesimprópriosdoseu”erampráticaspunidascompenadeprisão.JamesGreen133
aponta que, alémdo reproduzido artigo 379, o Código Penal de 1890dispunha de
outrostrêsdispositivosque“deramàpolíciaopoderdeencarcerararbitrariamente
homossexuaisquemostrassemempúblicoumcomportamentoefeminado,usassem
cabelos longos, roupas femininas ou maquiagem, ganhassem a vida com a
prostituição”134.Dentreeles, o artigo266,que tipificava “atentar contraopuderde
pessoadeumoudeoutrosexo,pormeiodeviolênciaouameaças”era,notadamente,
aplicado em casosde homossexualidade envolvendo adultos emenores135, sendoo
artigo 282 aplicado aos casos de “adultos que praticassem atividades sexuais com
outrosadultosemlugarespúblicos”,oqueconfiguravaofensaaosbonscostumes.Além
desses dispositivos, o enquadramento por “vadiagem” previsto no artigo 399 era
igualmenteutilizadopararegular“manifestaçõespúblicasdehomossexualidade”136.
Osvaloresculturaisesociaispresentesnocontextobrasileiroàépoca,pautados
peladiscriminaçãocontrahomossexuais137, sematerializavampormeiodo sistema
penal.Seja“nosdiscursosmédico-legais,queconsideravamahomossexualidadeuma
129GREEN,JamesNaylor.Alémdocarnaval:ahomossexualidademasculinanoBrasildoséculoXX.SãoPaulo:EditoraUNESP,2000.130SCHRITZMEYER,op.cit.,2010,p.141.131FOUCAULT,op.cit.,2014.132GREEN,op.cit.133Idem.134Ibid.,p.58.135Idem.136Idem.137Aquiseráutilizadootermo“homossexuais”emreferênciaàépocareferenciada,postoqueesseeraotermo mais utilizado para “referir-se tanto a orientações sexuais quanto identidades de gênerodissidentes”, Cf. GREEN, James; QUINALINHA, Renan. Ditadura e homossexualidades: repressão,resistênciaeabuscadaverdade.SãoCarlos:EdUFSCAR,2014,p.13.
48
doença;nosdiscursosreligiosos,quecondenavamoatohomossexualcomopecado”138
ou na estigmatização de pessoas com experiências de gênero não “tradicionais”, a
tipificação era apenas uma maneira de “gerir as ilegalidades, de riscar limites de
tolerância,dedarterrenoaalguns,defazerpressãosobreoutros,deexcluirumaparte,
detornarútiloutra”139.
Nessa época, o “travestismo” em público era considerado uma violação ao
CódigoPenal, sendoas restrições legais suspensas temporariamentenoperíododo
carnaval e de seus bailes de máscara140. Esse projeto de controle e repressão não
somente se materializa na tipificação do Código Penal de 1890, como também é
responsável por associar orientações sexuais e identidades de gênero dissidentes,
ambasabarcadaspelacategoria“homossexual”,comanoçãodeperigosocial141.Nos
anos1930nacidadedeSãoPaulo,porexemplo,PeterFry142apontaquehaviaumfluxo
entreapolíciaeosmédicos,e
[...] os delinquentes ‘homossexuais’ de uma certa classe social eramencaminhadosparaoLaboratóriodeAntropologiaCriminaldoInstitutode Identificações deSão Paulo, onde osmédicos levaramadiante suaspesquisassobreascausasbiológicasesociaisdahomossexualidade,comênfasesobreosbiótiposeambientesocialdosindivíduosemquestão.143
Em1937,na“PrimeiraSemanaPaulistadeMedicinaLegal”,foramapresentados
alguns diagnósticos produzidos por médicos da época relativo ao estudo de oito
homossexuaisdetidospelapolíciadeSãoPaulo144,querecomendavamexplicitamente
práticasdecorreçãoepuniçãoemvirtudedocrimesupostamentecometido.Apósessa
semana, a discussão sobre a criminalização da homossexualidade culminou com a
revogaçãodosdispositivosquepuniamexplicitamenteaspráticasde“disfarçarosexo”
eosdemaisdispositivos145.
138BRASIL,ComissãoNacionaldaVerdade.Relatório:eixostemáticos.Brasília:CNV,2014,p.300.139FOUCAULT,op.cit.,2014,p.267.140GREEN,op.cit.141BRASIL,op.cit.,2014.142FRY,Peter;MACRAE,Edward.Oqueéhomossexualidade.SãoPaulo:AbrilCultural,1985.143Ibid.,p.67.144Idem.145GOMES,JulianaCesárioAlvim.Porumconstitucionalismodifuso:cidadãos,movimentossociaiseosignificadodaConstituição.Salvador:JusPODIVM,2016.
49
ComoCódigoPenalde1940,osmecanismosparapunirahomossexualidade
foram se sofisticando cada vez mais, posto que os “velhos referenciais ainda se
compatibilizavam com ideais de controle e contenção social almejados pela ordem
jurídicabrasileira”146.Avadiagem147,porexemplo,foienquadradacomocontravenção
penal–umaespéciedecrimeleve–evisava“exporummodelopadrãodetrabalhador
comcarteiraassinada”148.
Nadécadade1950,aomesmotempoquealgumascapitaisdopaíssetornavam
palco de shows e festas de travestis149, cresciam as reações conservadoras a essas
manifestações.Essarelaçãocomplexaéoqueexplica,emcertamedida,ofatodeque
noBrasil,emespecial,astravestisconstituemumadas“expressõesdanossacultura
sexualprópria,tendo,portanto,umahistóriaparticular”150.Sejapormeiodeportarias
eresoluçõesquevisavamproibirourestringiraocorrênciadessesespetáculos,seja
pelo“monitoramentoqueapolíciafaziadospontosurbanosdemaiorfrequênciade
gays e travestis”151, seja pela detenção direta. Fato é que, não poucas vezes, a
moralidade da época utilizava o aparato estatal para fazer valer a reclamação das
“pessoasdebem”152.
Aquestãodasexualidadefeminina,àquelaépoca,ocupavaigualmenteumlugar
centralnessarelação.Consequentemente,aprostituiçãocomeçouaganharcontornos
científicos que pudessem explicar uma pré-disposição moral para a mentira e a
extorsão.Assim,“ograveproblemadasmulhereséqueseriamamorais.Significadizer:
engenhosas, frias, calculistas, sedutoras,malévolas.Característicasestasque senão
146SCHRITZMEYER,op.cit.,2010,p.142.147Art.59.Entregar-sealguémhabitualmenteàociosidade,sendoválidoparaotrabalho,semterrendaquelheasseguremeiosbastantesdesubsistência,ouproveraprópriasubsistênciamedianteocupaçãoilícita: Pena: prisão simples, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses. Parágrafo único: a aquisiçãosupervenientederenda,queassegureaocondenadomeiosbastantesdesubsistência,extingueapena.Cf.BRASIL.Decreto-leinº3.688,de3deoutubrode1941,LeidasContravençõesPenais.148OCANHA,RafaelFreitas.AsrondaspoliciaisdecombateàhomossexualidadenacidadedeSãoPaulo(1976-1982). In: GREEN, James; QUINALINHA, Renan. Ditadura e homossexualidades: repressão,resistênciaeabuscadaverdade.SãoCarlos:EdUFSCAR,2014,p.155.149TREVISAN,JoãoSilvério.Devassosnoparaíso:ahomossexualidadenobrasil,dacolôniaàatualidade.4ª ed., Rio de Janeiro:Objetiva, 2018;GREEN,op. cit.,2000;MORANDO, Luiz. Por baixo dos panos:repressãoagaysetravestisemBeloHorizonte(1963-1969).In:GREEN,James;QUINALINHA,Renan.Ditaduraehomossexualidades:repressão,resistênciaeabuscadaverdade.SãoCarlos:EdUFSCAR,2014,p.53-82.150 DUQUE, Tiago. Montagens e desmontagens: vergonha, estigma e desejo na construção dastravestilidadenaadolescência.SãoPaulo:Annablume,2011,p.22.151MORANDO,op.cit.,p.55.152Ibid,p.53-82.
50
impulsionamasmulheresinstintivamenteaodelito,fazem-nascairnaprostituição”153.
Foi assim que tais estudos reafirmaram algumas características criminosas às
mulheres,cujaroupagemcientíficagarantiaumcontrolemaiorelegítimoaointerdito
adeterminadascondutas154.
LuizMorando aponta que, já em 1953, se tem notícia do primeiro processo
judicial envolvendo uma155 travesti chamada Cintura Fina, que fora “acusada de
anavalharumbancárionorostoemumconfrontonazonaboemia”156.Paraoautor,
esse caso é um exemplo da vinculação direta do imaginário social da época entre
travestilidade, prostituição e criminalidade – independente das motivações que
levaram às travestis ao envolvimento em situações delituosas157. Simultaneamente
tidas como “bichas” e “putas”, a relação entre as travestis e a prostituição já era
responsávelportorná-lasalvodeintensarepressãoporpartedosagentesincumbidos
de“garantiraordem”158.Asexperiênciasdastravestis, jánaquelemomento,davam
sinaisdenãosetrataremdemerasencenaçõesdegênero,massima
[...] reiteração e materialização de discursos patologizantes ecriminalizantes que fazem comque o senso comumas veja como umaforma extremada de homossexualidade, e assim, como pessoasperturbadas. A partir dessa ótica, seu gênero “desordenado” so podeimplicarumasexualidadeperigosamentemarginal.159
Comogolpemilitarem1964,tem-seumacirramentoda“atençãorepressora
dapolícia,conjugadaàsmudançassociaisemoraisprevistaspelogolpemilitar”160ao
mesmotempoemqueseviaoiníciodaarticulaçãodastravestis“nabuscadeconstruir
umanovafiguraçãosocialcontráriaàcriminalidade”161.Contudo,operíodopós-1964
não somente marcou uma sofisticação das técnicas de tortura e repressão com as
153MENDES,op.cit.,p.43.154Ibid.,p.47.155Apesardepodersoaranacrônico,a referênciaà travestilidadeserá feitanogênero femininoemconsonânciacomasreinvindicaçõesatuaisemtornodessaexperiência.156MORANDO,op.cit.,p.70.157Idem.158 GARCIA, Marcos Roberto Vieira. Dragões: gênero, corpo, trabalho e violência na formação daidentidade entre travestis de baixa renda. Tese (Psicologia Social), Instituto de Psicologia daUniversidadedeSãoPaulo,SãoPaulo,2007,p.144.159PELÚCIO,Larissa.Abjeçãoedesejo:umaetnografiasobreomodelopreventivodeaids.SãoPaulo:Annablume,2009,p.93.160MORANDO,op.cit.,p.70.161Idem.
51
experiênciashomossexuais,comotambémdelimitouaconsolidaçãodeumavisãode
Estado que possuía uma “representação do homossexual como nocivo, perigoso e
contrárioàfamília,àmoralprevalenteeaos‘bonscostumes’”162.
Duranteaditadura,erapossívelperceberumconjuntodepolíticassexuais163
emrelaçãoaocombateàhomossexualidade.Sejapelaleidaimprensa,sejapelaluta
contraavadiagem,a corrupçãodemenoreseapedofilia, fatoeraqueodireitoera
largamente utilizado para punir e prender experiências dissidentes de gênero e
sexualidade.DonKulick164apontaque,duranteoregimemilitar,eraimpraticávelpara
as travestisapareceremnaruaemtrajes femininos,umavezqueaspessoasquese
arriscavameramdetidase[...]muitasvezessubmetidosa longassessõesdehumilhaçãoetortura,comoporexemplo,seremobrigadosasentarsobreumcassetetedentrodeumcamburãodapolíciaenquantooveículorodavaemaltavelocidadeporruastotalmenteesburacadas.165
Em1968,comadecretaçãodoAI-5,ocombatea“exteriorizaçõescontráriasà
moraleaosbonscostumes”davamumtomoficialparaa“censuradepeças,letrasde
músicaseoutrasexpressõesculturaisqueafirmaramahomossexualidade”166.De1977
a 1978, Colaço167 aponta quatro movimentos de acusação de jornalistas por
abordagens contrárias à “moral e os bons costumes”, relacionadas ao tema das
homossexualidades. O caso com maior repercussão à época era o caso do jornal
“Lampião da Esquina” que, em 1978, viu seus editores serem processados por
“atentadoamoraleosbonscostumes”epor“propagaçãohomossexual”,combasena
LeideImprensa(Leinº5.250/67).Ojornal,criadoporartistaseintelectuaisdaépoca,
buscava desmistificar “a experiência homossexual em todos os campos da
162BRASIL,op.cit.,2014,p.301.163QUINALHA,R.H.Contraamoraleosbonscostumes:apolıticasexualdaditadurabrasileira(1964-1988).DoutoradoemRelaçoesInternacionais—SaoPaulo:UniversidadedeSaoPaulo,6jul.2017.164KULICK,Don.Travesti:prostituição,sexo,gêneroeculturanoBrasil.RiodeJaneiro:EditoraFiocruz,2008.165Ibid.,p.158.166GREEN;QUINALINHA,op.cit.,p.13.167COLAÇO,RitadeCassia.DeDenneraChrysóstomo,a repressão invisibilizada. In:GREEN, James;QUINALINHA,Renan.Ditaduraehomossexualidades:repressão,resistênciaeabuscadaverdade.SãoCarlos:EdUFSCAR,2014,p.201-244.
52
sociedade”168deformabem-humoradaedescontraída,alémdepautarodebatesobre
sexualidade,raçaegênero.
Atéentão, a tônicados jornaisdaépocaerademobilizaramoral “eosbons
costumes”paraassociarasexperiênciasdehomossexuaiscomassassinos,pedófilose
estupradores169 e, com isso, mobilizar a opinião pública em torno de “um eterno
suspeito:ohomossexual”170.Assim,oseditoresdenunciavamessapráticanaspáginas
dojornal:
[...] temosaquidois tiposdeacusação:umageneralizada,querevesteopróprio termo “homossexual” em toda notícia veiculada por essaimprensa: como seestivesse implícita a acepção de “culpado” ou,pelomenos“suspeito”.Eoutra,específica,reclamandoaaçãodasautoridades,quenãoestariasendosuficientementerepressiva.171
168Lampiãodaesquina,n.0,marçode1978,Disponívelem:http://www.grupodignidade.org.br/wp-content/uploads/2019/04/01-LAMPIAO-EDICAO-00-ABRIL-1978.pdf.Acessoemset/19.169RODRIGUES, JorgeCaê.Um lampião iluminandoesquinasescurasdaditadura. In:GREEN, James;QUINALINHA,Renan.Ditaduraehomossexualidades:repressão,resistênciaeabuscadaverdade.SãoCarlos:EdUFSCAR,2014,p.83-124.170 Lampião da esquina, n. 06, novembro de 1978, p. 7. Disponível em:http://www.grupodignidade.org.br/wp-content/uploads/2019/04/10-LAMPIAO-DA-ESQUINA-EDICAO-06-NOVEMBRO-1978.pdf.Acessoemset/19.171Idem.
Figura1-Ediçãon.9,emfevereirode1979,doJornalLampiãodaEsquina
53
Aformapelaqualahomossexualidadeeradescritaetratadapelosjornaisnos
dizmuitosobrecomoessasexperiênciaseramvistaspelasociedadeque,apoiadapela
medicinaeratificadapelostribunaisenasinstânciasdejustiça,oraeramtidascomo
“patologia”,oracomo“criminosas”.Assim,oprópriojornalquestiona:“Seriaapolícia
‘maissevera’quandoohomossexualéoacusadoemais‘tolerante’quandosetratada
vítima?”172.
Foi assim que, em menos de quatro meses de existência do Lampião, seus
editores foram processados. O processo, analisado em minúcia por Lopes173, era
baseadonoDecreto-Lei1.077/70enareferidaLeideImprensa,eacusavaojornalde
ser clandestino e ofender amoral pública e os bons costumes, alémde propagar a
homossexualidade.Comoapoiodeartistasepersonalidadesdaépoca,aliadaàpressão
internacional, Rodrigues174 aponta que o jornal obteve êxito na obtenção do
arquivamentodosautos.Emnovembrode1979,ojornal“publicaamanchete‘somos
todos inocentes’, abordando o pedido de arquivamento do processo feito pelo
Ministério Público e acatado pela 4ª Vara Federal do estado do Rio de Janeiro em
formato de absolvição”175. Contudo, apesar do arquivamento, não cessaram as
investidas do Estado para perseguir e, eventualmente, criminalizar os editores,
levandoumdeseuseditores,AntônioChrysóstomo176,aresponderanosdepoispor
umaacusaçãodepedofilia.
Nofinaldadécadade1970einíciodosanos1980,apolíciausavacomopretexto
para a prisão das travestis a famosa acusação de vadiagem e também a de
“importunaçãoofensivaaopudor”177.Otrabalhopolicialnesseperíodoeraancorado
na“filosofiadeaçãopreventivanocombateàcriminalidade”quetinhacomo“objetivo
preestabelecidoaapreensãoealvosigualmentepreestabelecidos”178.Talcenáriolevou
umdelegadodepolíciadacidadedeSãoPauloabaixarumaportariaque“determinava
aprisãoemflagrantedetravestisencontrados[sic]emviapública,esolicitavaque
172Idem.173LOPES,RodrigoCruz.Podechamardebicha,veado,baitola,masocertoéhomossexual:umapropostaanalítica para pesquisas criminológicas a partir do caso Lampião da Esquina. VI Enadir: EncontroNacionaldeAntropologiadoDireito,2019.174RODRIGUES,op.cit.,2014,p.83-124.175LOPES,op.cit.,p.8.176COLAÇO,op.cit.177TREVISAN,op.cit.178OCANHA,op.cit.,p.151.
54
fossem fotografados em seus trajes femininos”179 para proceder à avaliação de sua
periculosidade.Aportaria390/1976,assim,estabeleceuuma“ligaçãoentreaimagem
femininaeanocividadeaoatrelarotipodevestimentaàcriminalidade.Destaforma,
entende-se que o indivíduo processado por vadiagem com uma foto em roupas
femininasseriamaisfacilmentecondenadodoqueooutroemtrajesmasculinos”180.
Assim, foram elaborados “estudos criminológicos de centenas de travestis,
recomendandoacontravençãopenaldevadiagemcomoinstrumentoparacombateà
homossexualidade”181.Estima-seque,“entre14dedezembrode1976e21dejulhode
1977,460travestisforamindicadasparaoestudo”182.
Éimportantepontuartambémque,aindamuitoinfluenciadopelotratamento
patológicodispensadoàhomossexualidade,comainserçãodo“homossexualismo”na
Classificação Internacional de Doenças (CID) em 1977, a transexualidade surge
tambémcomopatologiaeaberração.Osanos1970,comoapontaOcanha183,também
forammarcantesparaastravestispoismarcaramaentradadoscontraceptivosnopaís
179TREVISAN,op.cit.,p.385.180OCANHA,op.cit.,p.157.181BRASIL,op.cit.,2014,p.307.182BRASIL,op.cit.,2014,p.309.183OCANHA,op.cit.
Figura2-TravestiagredidaporpoliciaisemSãoPaulo.FotodeJucaMartins,1980
55
e apossibilidadede construçãodo corpocomhormônioseaplicaçãode silicone.A
possibilidade de construção e desconstruçãode seus corpos deu umnovo fôlego à
práticadetrottoir184emarcouoiníciodessarelaçãoentrerepressãoeresistênciaem
tornodospontosdeprostituiçãotravesti.
Os primeiros anos da década de 1980marcam a chegada185 da epidemia de
HIV/AIDS no Brasil e, com os primeiros registros da doença verificados em
homossexuaismasculinos, não tardou para “que uma íntima associação entre essa
novamoléstiaeahomossexualidadefosseestabelecida”186.Adenominada“pestegay”,
aos olhos da ciência, ressuscitou grande parte dos argumentos que relacionavam a
homossexualidadeàpatologia187,impulsionandocadavezmaisjulgamentosmoraise
religiosos. Somado a isso, a década marca o acirramento da violência contra a
populaçãoLGBT,sendocrescenteonúmerodecasosenvolvendotravestisespancadas
eviolentadasnasruasdasprincipaiscapitaisdopaís188.Quandonãomorriamnasruas
das cidades, grandeparteestava expostaà contaminaçãopelovírusdaHIV/AIDSe
pelasinflamaçõesdecorrentesdeaplicaçãodesilicone189,quandonãoeramalvosde
batidaspoliciais.DonKulickapontaqueastravestis:
[...]saíamànoiteparaasruassemsabersevoltariamnodiaseguinte.Elaspodiamterquasecerteza,noentanto,dequeseriampresaspelapolíciamilitaroupelaDJC(DelegaciadejogoseCostumes).Emqualquerumdoscasos as prisões não estavam em absoluto dentro da legalidade:prostituiçãonãoécrimenocódigopenalbrasileiro,esobreastravestisdetidasnãopesavanenhumaacusação(anãoseremalgumasocasiões,quando elas eram acusadas de crime de ‘vadiagem). Travestis detidaspelapolíciacivileramlevadasaoxadrez,ondepassavamumanoite–eàsvezesduasoutrêsnoites–atéseremliberadas.190
AnykyLima,travestieativistadosdireitoshumanos,apontaquenessaépoca
erapresatodososdias:“sevocêmeperguntarcomoeusobrevivieunãovousaberte
184Palavraemfrancêsqueserefereàpráticadeprostituiçãonasruas.185GOMES,Jane.1980-2001:umacronologiadaepidemiaHIV/AIDSnoBrasilenomundo.RiodeJaneiro:ABIA,2002.186 TRINDADE,Ronaldo.De dores e deamores: transformações da homossexualidadepaulistana naviradadoséculoXX.Tese(DoutoradoemAntropologiaSocial)FaculdadedeFilosofia,LetraseCiênciasHumanasdaUniversidadedeSãoPaulo.SãoPaulo,2004,p.41.187Idem.188TREVISAN,op.cit.189KULICK,op.cit.190Ibid.,p.49.
56
explicar”191.Omotivodaprisãopoderiaserqualquerum,“prendiamsóporprender,
pralavarbanheiro,pradesfilarparaospoliciais”,mas“quemsofriamesmoeramas
travestisnegras,nós,brancas,éramosretiradasdasruasparaservirospoliciaseas
negrasapanhavam”.Jácomocorpomodificadopelousodehormônios,Anykyconta
que os policiais colocavam as travestis enfileiradas na parede, pegavam jornal e
colocavamfogonapontaepassavamnapernadecadauma,tudoissosópraver“quem
usavameiafina”.
Apesardaperseguiçãoedoacirramentodarepressão,astravestisencontravam
formasdeseorganizarem.Em1985,nacidadedeSãoPaulo,BrendaLee,“transformou
acasaqueutilizavaparaatendimentoaosseusclientesnumacasadeapoioàgayse
travestisinfectadosedesamparados”192.AassociaçãoentreatravestilidadeeaAids
era utilizada de forma estratégica pelas travestis e servia como mecanismos de
resistênciaperanteasarbitrariedadesdapolícia.LuizMott193relataocasodeMarinha,
umatravestiquemoravaemSalvadornosanos1980equetinhaumcortede10cmno
braçosesquerdoquesaltavaaosolhos.Mottrelataqueomotivoparaaferidaeramos
diasquetevequepassarnaprisãonasemanaanterior:
NaDelegaciadeJogoseCostumes,depoisde fichado[sic],permaneceuatrásdasgradesportrêsdiasconsecutivos.Desesperado[sic],depoisdemuito argumentar com o delegado que não tinha roubado ninguém,estandosimplesmente‘fazendopista’enãomerecendo,portanto,castigotãoprolongado,comoúltimorecursoMirinhatiraumagiletequetraziaescondida dentro da boca e, incontinenti, abre uma chaga de uns 10centímetros em seu braço esquerdo. Commuito sangue escorrendo, opobrehomossexualé levadoperanteodelegadoque,paraeximir-sedequalquerresponsabilidade,concede-lhealiberdade.194
Sejacomoformadecomoverospoliciaismaissensíveisoudeamedrontaros
mais inseguros, o recurso à automutilação servia como forma de escapar do
aprisionamento195.Em1987,outroepisódioirrompenahistóriaeilustraessarelação
191TodosostrechosemaspasdesseparágrafosãoreconstituiçõesdeconversasquetivecomAnykyLimaaolongodotempodecampo.192TRINDADE,op.cit.,p.45.193MOTT,Luiz;ASSUNÇÃO,A.Giletenacarne:etnografiadasautomutilaçõesdostravestisdaBahia.TemasIMESC,Soc.Dir.Saúde,SãoPaulo,4(1):41-56,1987.194Ibid.,p.2.195Idem.
57
conflituosa entre a polícia e as experiências de travestis. A despeito da
redemocratizaçãodopaís,aperseguiçãoaelas,sejapeloEstado,sejapelasociedade,
ainda era uma constante. É na cidade de São Paulo que emerge a denominada
“OperaçãoTarântula”,cujoobjetivoprincipaleraaperseguiçãoatravestisnacidade
comopolíticadecombateàAids196.Taloperaçãoeclodeemumcontextoemqueas
instituições eram convocadas para dar uma resposta à epidemia – “a operação foi
apenasumadasrespostasinstitucionaiscircunscritanumcircuitodeatoseefeitoscom
ramificaçõesmaisamplaseigualmenteperversas”197.
Naquelecontexto,eranotóriaaassociaçãoimediataàepidemiacomo“câncer
gay”,relacionando-sepráticashomossexuaisaocontágiodadoençaconstantemente.É
exatamenteessecontextoquepossibilitaeimpulsionaaoperação,bemcomodividea
população em geral de um lado e, “do outro[,] as travestis e demais pessoas
assumidamente LGBT”198. Essas “operações de limpeza” eram apoiadas de forma
maciçapela sociedadeque,muitasvezes, elaboravaabaixo-assinadosdemoradores
quesesentiamafetadospelapresençadetravestisnosbairros199.
Dentreasinstituições“convocadas”paradarumarespostaàepidemia,aPolícia
CivildoestadodeSãoPauloseapropriacomcriatividadedoartigo130doCódigoPenal
de1940,quecapitulavacomocrimeapráticade“exporalguém,pormeioderelações
sexuaisouqualqueratolibidinoso,acontágiodemoléstiavenérea”.Ouseja,aquise
tinhaumduplomovimentodecriminalizaçãodasexperiênciasdetravestis:aomesmo
tempoqueeramconsideradasautomaticamenteportadorasdovírusHIV,igualmente
previsíveleraaocorrênciadapráticatípicadoartigo130,demodoaantevere,assim,
materializarostrâmitesformaisnecessáriosparaoenquadramentocomocriminosas
eaprisão.Dessaforma,“nãohaveriasequeranecessidadedecomprovaraexistência
dealgumdelitoporpartedastravestisdetidas,poisjustopelofatodeseremtravestis
é certo que se não ocorreu o delito foi apenas por falta de possibilidade e este,
certamente,ocorrerá”200.
196CAVALCANTI,Céu;BARBOSA,RobertaBrasilino.OstentáculosdaTarântula:abjeçãoenecropolíticaemoperaçõespoliciaisatravestisnoBrasilpós-redemocratização.Psicologia:ciênciaeprofissão,v.38,p.175-191,2018.197Idem.198Ibid.,p.181.199SPAGNOL,AntônioSergio.Odesejomarginal.SãoPaulo:Arte&Ciência,2001,p.51.200CAVALCANTI;BARBOSA,op.cit.,p.180.
58
Odelegadoresponsávelpelaoperaçãodeixouevidentesuaintençãodelimpar
“a cidade com as prisões de prostitutas e travestis”201. Dessa forma, diante do
acirramento da violência policial e do momento propício de abertura política,
eclodiramna cidadedeSão Paulomanifestaçõesdeprostitutase travestis contraa
políticadesegurançapúblicaadotadapeloestadodeSãoPaulo.
Aoquemeinteressa,aOperaçãoTarântulapodeserconsideradaumexemplo
de comoosprocedimentosde criminalizaçãooperamnotadamentepelanorma, em
outra sintonia, definindo toda a dinâmica punitiva penal em consonância com
percepçõesqueorganizavamonossocamposocialequesãoefeitosdasnormasde
gênero. Entre a explícita tipificação de pessoas que “disfarçavam o sexo” até a
regulaçãodeespaçosdesociabilidadehomossexual,passandopeloenquadramentodo
jornal “Lampião da Esquina” por vadiagem e promoção da homossexualidade, pela
limpeza das ruas em virtude da suposta ou real atividade no mercado sexual, a
criminalização de experiências dissidentes no campo de gênero e sexualidade se
reconfigurounoperíododeaberturapolítica.
2. “Prendendooumatando”:acriminalização(re)localizada
-“Oquevocêachadematarhomossexuais?”- “Euachoqueacabardeveacabar, né.Deumaformaoudeoutra,prendendooumatando.Eusoucontrahomossexuais.”202
Mesmocoma redemocratizaçãodopaís e apromulgaçãodaConstituiçãoda
Repúblicade1988,muitodamoralidadevigentenoperíododitatorialdeuotomda
relaçãoqueoaparatorepressordoEstadoestabeleceucomasexperiênciasdissidentes
nocampodegêneroesexualidadee,emespecial,comasexperiênciasdetravestis.O
paradoxo que se instaura entre os avanços obtidos na esfera pública com a
redemocratização e a manutenção de práticas violentas e arbitrárias cultivadas
201BRASIL,op.cit.,2014,p.308.202 MOREIRA, Rita. Documentário: Hunting season. São Paulo, 1988. Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=rjan_Yd0C5g&t=146s.
59
durante o período militar203 se configura de uma forma específica no que toca às
experiênciasdetravestiscomosistemapenal.
Essa dinâmica é caracterizada por dois pontos principais: os episódios de
violência contra essa população e o investimento em torno da visibilização e
mobilizaçãodapautaprisional.Aarticulaçãodessasduaspreocupaçõeséresponsável,
até hoje, por ditar os (raros) esforços do Estado e da academia na elucidação e
investigaçãodessesfenômenos.Aoquemeinteressaabordar,essesdoismovimentos
devemserlidoscomopartesdeprocessosamplosdecriminalizaçãodasexperiências
detravestisqueassumemcontornosaindapoucoconhecidos.
3.1. “Matando”:oshomicídiosdetravestis
Aatençãodadaaosepisódiosdeviolência,emcertosentido,nãosomentefoi
possibilitada pela “democratização de processos decisórios e a inclusão de novos
segmentospopulacionaiscomobeneficiáriosdepolíticaspúblicas”204,quepossibilitou
umasistematização205 cadavezmaiordessesepisódios, como tambémserviu como
moteparaaorganizaçãodomovimentosocialdelésbicas,gays,bissexuais,travestise
transexuais (LGBT),quepassama atuarde “modomaispragmático, voltadaparaa
garantia dos direitos civis e contra a discriminação e violências dirigidas aos
homossexuais206.
Mais especificamente na segunda metade dos anos 1990, “uma série de
processos e acontecimentos, heterogêneos e pouco articulados entre si”207, seriam
responsáveis por mudar as “representações sociais sobre a homossexualidade,
tradicionalmentemarcadaspeloestigmaepelodesvio”208.Assim,esseperíodomarca
203ADORNO,Sergio.Crimen,puniciónyprisionesenBrasil:unretratosinretoques.Quórum,AlcaládeHenares,n.16,p.41-49,2006.204FACCHINI,Regina.Entrecompassosedescompassos:umolharparao“campo”eparaa“arena”domovimentoLGBTbrasileiro.Bagoas,n.04,2009,p.135.205ImportantepontuarqueadenúnciaeaatençãoaosepisódiosdeviolênciacontraapopulaçãoLGBTsãopautadaspelomovimentosocialdesdeosanos1970.Cf.COSTA,NicoleGonçalvesda.Dodisquedenúnciaaocallcenter:oslimitesdoDisque100paraarealizaçãodadenúnciacontraapopulaçãoLGBT.DissertaçãodemestradoemPsicologia,UFMG,BeloHorizonte,2016.206FACCHINI,op.cit.,p.138.207CARRARA,Sérgio;RAMOS,Silvia.Aconstituiçãodaproblemáticadaviolênciacontrahomossexuais:aarticulaçãoentreativismoeacademianaelaboraçãodepolíticaspúblicas.PHYSIS:Rev.SaúdeColetiva,RiodeJaneiro,16(2),2006,p.187.208Idem.
60
oiníciodeummovimentode(re)localizaçãodessasexperiênciasnocampododireito
edaspolíticaspúblicas,sobretudo,apartirdaatuaçãodomovimentosocialfeminista
eLGBT209.A“lutacontraaviolênciaeaprevençãoaoHIVeAIDS”210,ainda,eramas
pautas principais das primeiras211 organizações institucionais de pessoas trans e
travestis no país que, inseridas em um processo contínuo de especificação das
“categorias identitárias abarcadas pelo movimento”212, culminaram no primeiro
EncontroNacionaldeTravestiseTransexuaisem1993213.
Impulsionados pela inoperância dos órgãos públicos na construção de
mecanismos capazes de receber e visibilizar tais denúncias, osmovimentos sociais
apostaram na prática de levantamento midiático (notícias de jornais e revistas,
reportagens,dentreoutros)relacionadoàviolênciacontraapopulaçãodeLGBTem
todooterritórionacional.AsprimeirassistematizaçõesforamfeitaspeloGrupoGayda
Bahia(GGB),aindanadécadade1980;noentanto,suapublicizaçãonãosurtiuefeitos
nocampodasegurançapúblicanopaís214.Greenapontaqueentremeadosdosanos
1990 documentou-se o “assassinato de mais de 1.200 homossexuais masculinos e
femininosedetravestisnoBrasil”215.AletalidadeelevadaeodesinteressedoEstado
emnãosomentecontabilizaressasmortescomo,igualmente,emempreitaresforços
naresoluçãodoscrimes,quandosetratamdeLGBTsvítimas,parece-meapontarpara
umaoutraformadeapariçãoeorganizaçãodacriminalização.
No que toca à produção acadêmica, uma pesquisa realizada por Carrara e
Vianna216 trouxe aportes sobre como a criminalização das experiências LGBT se
209FACCHINI,op.cit.210 COACCI, Thiago. Conhecimento precário e conhecimento contra-público: a coprodução dosconhecimentos e dos movimentos sociais de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em CiênciaPolítica), FaculdadedeFilosofia e CiênciasHumanas daUniversidade Federal deMinasGerais, BeloHorizonte,2018,p.121.211Éimportantepontuarqueantesdesseperíodoexistiamalgumasorganizaçõesinformaisemtornodapautatransequepodemsercaracterizadascomoumaformadeativismo.Cf.PRADO,MarcoAurélioMáximo(etal).Movimentosemaranhados: travestis,movimentossociaisepráticasacadêmicas.Rev.EstudosFeministas.vol.27,no.2,Florianópolis,2019;COACCI,op.cit.212CARRARA;RAMOS,op.cit.,p.187.213GREEN,JamesNaylor.“Maisamoremaistesão”:aconstruçãodeummovimentobrasileirodegays,lésbicasetravestis.Cadernospagu(15),2000,p.271-295.214COSTA,op.cit.215GREEN,op.cit.,2000,p.287.216CARRARA,Sérgio;VIANNA,Adriana.AviolêncialetalcontrahomossexuaisnomunicípiodoRiodeJaneiro:característicasgerais.In:CarlosCacerres(Org.),CiudadaniasexualenAmericaLatina:abriendoeldebate.pp.47-64.Lima:UniversidadPeruanaCayetanoHeredia.2004;Idem.“Táláocorpoestendido
61
configurava no cenário pós ditadura. Os autores possibilitaram, pela primeira vez,
apontaralógicadaimpunidadepredominantenoscrimesqueentramnosistemade
justiça criminal e vitimam homossexuais ao investigarem a forma como são
construídos judicialmente os casos de homicídio envolvendo gays e travestis. Com
essesdados,procederamaolevantamentodeinquéritospoliciaiseprocessospenais
relativosàocorrênciade57crimesdessanaturezana cidadedoRiode Janeiro,no
períododejaneirode2000ajulhode2001.Comapesquisa,foipossívelverificarque
a homossexualidade suposta ou real da vítima não funciona sempre no sentido da
impunidadedoacusadoequeareaçãodajustiçaaviolêncialetalcontrahomossexuais
searticulaapartirdainteraçãodasdiferenteshierarquiasdegênero/sexo,declassee
de raça217. Os autores evidenciam que a indiferença policial na apuração de casos
envolvendoassassinatodetravestis,adespeitodeumaprecariedadegeraldosistema,
reside nas representações negativas de travestis, de modo que a morte dessa
populaçãotendeaserconsideradacomoconsequênciainexoráveldeumavidaderisco.
A partir dos anos 2000 é possível apontar para a entrada definitiva das
demandas do movimento LGBT nas políticas públicas, sobretudo a partir de dois
episódios apontados por Facchini218. O primeiro se dá em virtude da criação da
SecretariaEspecialdeDireitosHumanos(SEDH),quepassaaterstatusdeministério
e incorpora o Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD), criado
anteriormente.Osegundoconsistenacriaçãodeumplanodecombateàhomofobiado
governo federal denominado “Brasil Sem Homofobia”, no ano de 2004. Esses
movimentosderamumnovoimpulsoparaarelaçãointrincadaentredireito,gêneroe
sexualidade.
Contudo, foi somente no ano de 2011 que o poder público implementou
mecanismos para a notificação dos crimes contra a população LGBT, por meio do
“Disque100”.Referidoinstrumentorespondenãosomentepeloregistrodedenúncias
deviolaçõese crimesaosquaisapopulaçãoLGBTé submetida, como tambémpela
proteçãodasvítimas.Osdadosobtidosvia“Disque100”,somadosaoutrasfontesde
nochão”...:aviolêncialetalcontratravestisnomunicípiodoRiodeJaneiro.PHYSIS:RevistadeSaúdeColetiva,16(2),p.233-249.2006.217CARRARA;VIANNA,2006,p.245.218FACCHINI,op.cit.
62
dadossecundárias219,foramsistematizadospelaprimeiravezemrelatórioproduzido
pela SEDH no ano de 2012, com dados de violência referentes ao ano anterior220.
Apesar da importância de destacar iniciativas governamentais relativas ao
aprofundamento e investigação das violências contra a população LGBT, até então,
foramapenastrês221osrelatóriosproduzidosporiniciativafederalque,somadosaos
números do último relatório, evidenciam um quadro complexo de deficiência na
notificaçãodessescrimes.
Osdadosdogovernofederalcontrastamcomlevantamentoselaboradospela
RedeTrans222queindicamque,somentenoanode2016,oBrasilfoiresponsávelpela
ocorrência de 143 homicídios que vitimaram fatalmente travestis.No ano anterior,
foram contabilizadas 113 mortes de travestis. Sendo assim, de janeiro de 2015 a
dezembro de 2016, 256 homicídios vitimaram fatalmente travestis.
Internacionalmente,segundodadosdaONGInternacionalTransgenderEurope,entre
janeirode2008eabrilde2016ocorreram845mortesdetravestisetransexuaisno
Brasil.UmaanáliseglobaldessesdadospermitiuàONGinferirqueopaíséresponsável
por40%dasmortesdepessoastransexuaisqueaconteceramnomundodesde2008223.
Abuscaporaperfeiçoamentodosmecanismosdenotificaçãolevou,nofinalde
2015,apartirdeumaintensamovimentaçãoporpartedomovimentosocialLGBT,a
uma mudança no Registro de Eventos da Defesa Social (REDS)224, com vistas a
melhorarlacunasdepreenchimentonoconhecidoboletimdeocorrênciaparamelhor
preveniretrataressescasos.Referidanecessidadedecomplexificaroentendimento
quea segurançapública tinha, atéentão, comrelaçãoaoseventosdeviolência que
219 Cumpre ressaltar que o “Disque 100” responde a, em média, 70% dos dados compilados nosrelatóriosdogoverno,sendo,assim,suafonteprimáriaemaissignificativa.220BRASIL.Relatório sobreviolênciahomofóbicanoBrasil: anode2011.Brasília:SecretariaDireitosHumanosdaPresidênciadaRepública,2012.221BRASIL.Relatório sobreviolênciahomofóbicanoBrasil: anode2012.Brasília:SecretariaDireitosHumanosdaPresidênciadaRepública,2013;BRASIL.RelatóriosobreviolênciahomofóbicanoBrasil:anode2013.Brasília:SecretariaDireitosHumanosdaPresidênciadaRepública,2016.222 “Dossiê 2016”. Disponível em: http://redetransbrasil.org/dossiecirc2016.html. Acesso emnov/2017.223TRANSGENDEREUROPE. IDAHOT2016 -TransMurderMonitoringUpdate.PressReleaseMay122016.Disponívelemhttp://transrespect.org/en/idahot-2016-tmm-update/.Acessoem:jul/2017.224 O Boletim de Ocorrência é um documento produzido por agentes da segurança pública com afinalidadededescrever,narrarereportaraocorrênciadequaisquerdelitosafetosàordempúblicaequedemandamintervenção.Referidodocumentoocupalugarcentralnasistematizaçãodasocorrênciasnoâmbitodasegurançapúblicae,noanode2003,noestadodeMinasGerais,suaproduçãoecirculaçãopassouaserdigital,sobadenominaçãodeRegistrodeEventosdaDefesaSocial(REDS).
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vitimam a população LGBT foi reconhecida, em âmbito nacional, pelo Conselho
Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos (CNCD/LGBT), por
meiodaelaboraçãodaResoluçãonº11,de18dedezembrode2014.Talresolução
muniu de força normativa e institucional a necessidade de aperfeiçoamento dos
boletins de ocorrência no país. Na esteira desse raciocínio e após muitos anos de
intensodebate,foielaborada,noâmbitoestadual,notatécnicapelogovernodoestado
de Minas Gerais no dia 06 de novembro de 2015, em que constam as diretrizes
necessárias para proceder ao devido aperfeiçoamento do REDS. Assim, nomês de
janeirode2016,foramincluídasenquantocamposderegistroobrigatórioaslacunas
de“orientaçãosexual”,“identidadedegênero”e“nomesocial”,bemcomonovasopções
depreenchimentodocampo“causa/motivaçãopresumida”,paramelhormensurare
refletirosepisódiosqueacometemapopulaçãoLGBT.
Contudo,empesquisarealizadapeloNúcleodeDireitosHumanoseCidadania
LGBT,quereuniuregistrosdecasosdehomicídiotentadoeconsumadoentre2016e
2018, emocorrênciasenvolvendo transe travestis, onomesocialnão foi citadona
metadedoscasos,aorientaçãosexualnãofoiinformadaem35%dasvezes,eocampo
“identidadedegênero”foiignoradoem33%dasocorrências225.Taisinconsistências
revelam um complexo despreparo com a questão, o que incide diretamente na
criminalizaçãodessapopulação.
3.2. “Prendendo”:acriaçãodealasparatravestisehomossexuais
Emrelaçãoàpautaprisional,asdenúnciasdeviolaçõessofridaspelastravestis
nocárcerederamatônicadasaçõesaseremempreendidasnocampodasegurança
públicaapartirdosanos2000.Esseperíodofoimarcadopelaadoção,porpartedo
governobrasileiro,de“estratégiasdesensibilizaçãoparaa temáticadasexualidade,
visandodiferentespúblicos”226.Foisomentenoanode2007queapautadasegurança
pública ganha contornos institucionais com a elaboração do “Plano Nacional de
225NUH.RelatóriodoNúcleodeDireitosHumanoseCidadaniaLGBTsobreosregistrosdehomicídiosenvolvendo LGBTs no Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2019. Disponível em:https://drive.google.com/file/d/0B97VB4S4vPTwMWFIOXZxdXdRbDBuakM3cUwwYjNJa2VpdGlF/view?ts=5d66dff8.Acessoemout/2019.226LAMOUNIER,op.cit.,p.95.
64
SegurançaPúblicaparaoenfrentamentodahomofobia”que,apartirde62propostas,
abordava a questão da violência homofóbica,mas, sobretudo, voltava a atenção ao
tratamentopolicialdispensadoàpopulaçãoLGBT.Lamounier227aponta,contudo,que
nenhumadaspropostaschegaramaserrealizadas,ficandoacargodasConferências228
LGBTs,estaduaisenacionais,noanoseguinte,revisitarotema.Asreinvindicaçõese
propostas das conferências no que toca ao temada segurança pública se voltou de
formasignificativaparaaquestãoprisionalecolocouemdebate:[...] os problemas históricos das violações cometidas pelas/nasinstituiçõesprisionais(ouseja,violênciasestatais),queatingemtodosossujeitosqueseenvolvemcomsuarealidade:aspessoasemprivaçãodeliberdade, os agentes penitenciários, a equipe técnica, a gestão e, atémesmoseusfamiliares.229
Dessaforma,apautaprisionalnãosomenteinauguraodebatesobreainterface
entreosprocessosdecriminalizaçãodogêneroesexualidade,comotambéminfluencia
as preocupações que viriam a ser elaboradas nos próximos anos, notadamente
pautadaspelasituaçãodetravestisnocárcere.Destarte,oanode2009marcaumponto
importante na história conturbada da travestilidade com o sistema penal: a
institucionalização230dasalasnoestadodeMinasGerais.Apartirdedenúnciasecartas
recebidasdepresoseseus familiaresrelativasa inúmerasviolaçõesquetravestise
gaysestavamexpostasnaprisão,oCentrodeReferênciadeGays,Lésbicas,Bissexuais,
Travestis, Transexuais e Transgêneros (LGBTTT), órgão ligado à Secretaria de
227Idem.228Asconferências“sãoespaçosamplos,geralmenteconvocadaspelopoderpúblico,comparticipaçãodemovimentossociais,ativistasesociedadecomum,paradiscussãosobreprioridadesdeinvestimento,comarticulaçãocoletivaedesenvolvimentodeestratégiasparaelaboraçãodepolíticaspúblicas.EmcadaprocessodeConferência sãosistematizadaspropostasa serem indicadasparaogovernocomopautasprioritáriasdeatuação,emváriossegmentosdapolíticapública (saúde,educação,segurançapública,seguridadesocial,etc)”.Cf.Ibid.,p.96.229Ibid.,p.98.230A regulamentaçãoveioem2013,viaResoluçãoConjuntadaSecretariadeDefesaSocial (SEDS)eSecretariadeEstadodeTrabalhoeDesenvolvimentoSocial(SEDESE),nº1de2013.
65
DesenvolvimentoSocialdoestadodeMinasGerais,iniciouumprojetoparaacriação
daprimeiraalaespecíficaparaessapopulação.
Retireiessafotodacapadeumdocumentoquecontinhaoprojetoelaborado
pelo CRGBTT em 02 demarço de 2009. Logo acima da imagem, têm-se os dizeres
“ProgramadeReabilitaçãoeRessocializaçãodastravestisegaysnapenitenciáriade
Bicas”.Napágina seguintedodocumento, constaquea criaçãodasalas tinha como
objetivo: “a implementação de um programa de recuperação da autoestima,
asseguramentodasaúdeesegurançaepromoçãodacapacitaçãoprofissionalparao
cidadãogayeacidadãotravestiqueseencontramcerceadosdesualiberdade”231.A
preocupaçãocomautoestimavinda logonaprimeira linhadosobjetivosdoprojeto
parece apontar para aquilo que teria sido omote de criação das alas: o corte dos
cabelos.EmentrevistafeitacomogestordasalasnoestadodeMG,feitaporLamounier,
aquestãodocortedecabeloerauma
231Trechoretiradodosdocumentosoficiaisdecriaçãodoprojeto.
Figura3-SãoJoaquimdeBicas,2009.
66
[...] preocupação domovimento social frente aos abusos que estavamacontecendo e apareceu mesmo um olhar sobre como fazer para queessas pessoas não mais tivessem seus direitos violados. Um exemplo:cortar os cabelos, retirar toda a feminilidade que era construída, issoprincipalmenteparaastravestisetransexuaisfemininas.232
Gostariademedeterumpoucomaissobreaimagemporacreditarqueelanão
somente representa um modo de funcionamento geral das prisões, mas também
representaa formaqueaprisãochegaàs travestisecomotemospensadoarelação
comacriminalizaçãoapartirdocárcere.Doladoesquerdodafoto,épossívelperceber
umamontoadodecorpossemrosto.Ocabeloraspado,ospéscalçadoscomchinelosde
dedoseasmãospremidasporalgemasdãoaimpressãodetratar-sedeumacoisasó.
Aindistinçãodeseuscorposapontaparaoapagamentoabsolutodecaracterísticasque
nosindividualizam,nosdiferemunsdosoutros.Poderiaseroretratodecamposde
concentraçãoemmeadosdosanos1940,ouumaimagemdasExposiçõesUniversais
deParisnofinaldoséculoXIX,masoanoé2009eessefatoédesconcertante.
Voltandoàimagem,depé,seispessoasolhamfixamenteparaesseamontoado
decorpos.AspessoasdeternoegravatasãorepresentantesdoEstadoesãoasúnicas
queaparecemgesticulandonaimagem.Burocratas,tecnocratas,pessoasdagestãoque
ilustram como que o surgimento da ala ocorreu no lastro de uma série de
acontecimentossituadosemummomentohistóricoespecífico,queproporcionaramas
condiçõesnecessáriasparaqueesselugarinstitucionalsetornassepossível.
Após a implementação das alas em2009 no estado deMinas Gerais, outros
estados seguiram a iniciativa e estruturaram espaços com finalidades parecidas.
Paraíba, Bahia, Mato Grosso e Rio Grande do Sul233 também seguiram o mesmo
caminhoe,alémdisso,noanode2014,aSEDHjáhaviaassinadocomoutros16estados
brasileirostermosdecompromissoparaaelaboraçãodeaçõesvoltadasapopulação
232Ibid.,p.148.233SobrepesquisasdagaleriadoPresídioCentraldePortoAlegre,ver:PASSOS,AmiltonGustavodaSilva;SEFFNER,Fernando.Umagaleriaparatravestis,gayseseusmaridos:forçasdiscursivasnageraçãodeumacontecimentoprisional.Sexualidad,SaludySociedad,n.23,ago,2016,p.140-161;FERREIRA,GuilhermeGomes.TravestisePrisões:ExperiênciasocialemecanismosparticularesdeencarceramentonoBrasil.Curitiba:Multideia,2015.
67
carceráriaGBT,culminandonapublicaçãodaResoluçãoConjuntanº1de2014234,que
normatizaoacolhimentoàpopulaçãoLGBTemprivaçãodeliberdade.
Contudo, essamaior visibilidade não veio acompanhada necessariamente da
implementação de mecanismos institucionais capazes de verificar e acompanhar a
situaçãodetravestisnocárcere–sejaparafinsdeelaboraçãodepolíticapública,de
monitoramentodemográficooudeacompanhamentodepossíveisviolaçõessofridas
dentrodocárcere,comoacontececomtodoorestantedapopulaçãocarcerárianopaís,
aindaqueprecariamente.
E esse, talvez, seja um dos motivos principais que expliquem a completa
ausência e precariedade de dados referentes ao encarceramento de travestis e,
consequentemente,sobreosprocedimentosresponsáveispelasuacriminalização.Não
sabemos quem são, quantas são, qual é o tipo penal mais aplicado, como se dá a
execuçãodesuaspenasequiçácomoandaasuasituaçãoprocessual.Seconsiderarmos
queoaumentodapopulaçãocarcerária“deve-semaisaumapolíticaderepressãoede
criminalização”235, o acesso a esses dados pode auxiliar de forma significativa o
movimentode(re)localizaçãodadiscussãosobrecriminalizaçãodetravestis.
Emabrilde2015,porexemplo,umaimagemchocantecirculounosjornais:uma
pessoasentadanochãoemfrenteaumaviaturapolicial,comospésalgemadoseas
mãosamarradasatrásdocorpo;sóseviaumrostodesfigurado,oscabelosraspadose
uma área turvada tampando os seios descobertos. Verônica foi detida pela polícia
acusada de agressão a uma senhora de idade. Contudo, os desdobramentos que se
seguiram daí foram inimagináveis: nas mãos dos agentes de segurança pública do
estadodeSãoPaulo,Verônicaquasemorreu.Ementrevistatempodepoisdofato,ela
relatou“[...]chutes,socos,tentativasdeasfixiacomsacosplásticos,spraydepimenta
diretamenteemseusolhos”236.Paramuitosaimagemeramaisumaquealimentavaos
reacionários de plantão e conclamava o ódio para os ávidos pela punição e
234 Resolução Conjunta nº 1 de 15 de abril de 2014. Disponível em:http://www.lex.com.br/legis_25437433_RESOLUCAO_CONJUNTA_N_1_DE_15_DE_ABRIL_DE_2014.aspx235MONTEIRO,FelipeMattos;CARDOSO,GabrielaRibeiro.Aseletividadedosistemaprisionalbrasileiroeoperfildapopulaçãocarcerária:umdebateoportuno.Civitas,PortoAlegre,v.13,n.1,jan-abr,2013,p.101.236 “Verônica Bolina: ‘estou recomeçando, reconstruindo minha vida”. Disponível em:https://www.brasildefato.com.br/especiais/veronica-bolina-estou-recomecando-reconstruindo-minha-vida/.Acessoemset/2019.
68
consternados pela impunidade no Brasil. Para outros, era a constatação de que a
discussãosobreosistemapenaleasexperiênciasdetravestissemprefoinecessária.
Tais episódios de violência, apesar de pouco conhecidos, inseridos em um
contextodeencarceramentoemmassanopaís,sobretudodepessoasjovensenegras,
apontamque essa lacuna de registro é, nomínimo, alarmante. Segundo os últimos
dadosdoINFOPEN237,apopulaçãoprisionaldoBrasilchegouaopatamarde726.712
pessoaspresas,emquearelaçãoentreonúmerototaldepessoasprivadasdeliberdade
eaquantidadedevagasexistentesnosistemaprisionalchegaa197,4%,apontando
paraumasuperlotaçãodosistema.Emrelaçãoàraça,corouetniadaspessoasprivadas
deliberdadenoBrasil,osdadossãoigualmentealarmantes:64%dosistemaprisional
é composto por pessoas negras. No que toca ao número de crimes pelos quais as
pessoasprivadasdeliberdadeforamcondenadasouaguardamjulgamento,oINFOPEN
apresentaumdadocurioso:“oscrimesderouboefurtorepresentam38%doscrimes
pelos quais os homens privados de liberdade foram condenados ou aguardam
julgamento”,sendoqueoscrimesligadosaotráficorepresentam26%dosregistros.
Tratando-sedasmulheres,ocrimedetráficodedrogasatinge62%,enquantorouboe
furtosomam20%.
Partedaliteraturasobreotematembuscadoentenderas“razõesdegênero”
quesãoarticuladasaoincrementodastaxasdeencarceramentofemininoeapontam,
por exemplo, para os efeitos deletérios da Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006) na
populaçãoemgeral,mas,sobretudo,noestímuloàcriminalizaçãodemulheres,
[...]seosistemapenaléestruturalmenteseletivonogeral,verifica-seaespecial(eperversa)seletividadecomqueseencarcerammulheresmães,negrasepobres,justoaquelasquebuscamnocomércioilícitodedrogas,por necessidades de subsistência de sua família, uma melhorremuneração,quandonãosãocoagidasouameaçadasparalevardrogasapresídios.Paraessasmulheres,querompemduplamentecomseupapelsocial (por praticarem um crime e, além disso, por serem “mulherescriminosas”)oníveldeestigmatizaçãoeisolamentoaqueestãosujeitaséainda pior, afastadas de seus filhos e abandonadas por seuscompanheiros.238
237OINFOPENéumaplataformacriadapeloMinistériodaJustiçacomointuitodereunirumbancodedadossobreosestabelecimentosprisionaisnopaíseoperfildapopulaçãocarcerária.Cf.MONTEIRO;CARDOSO,op.cit.238 BOITEUX, Luciana. Encarceramento feminino e seletividade penal. Rede justiça criminal:discriminaçãodegêneronosistemapenal.Edição09,setembrode2016,p.5.
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Atrelado ao crescimentodo encarceramento no país, umamaior visibilidade
dessasquestõestemfomentadoumacrescentemobilizaçãoemtornodapauta,bem
comoumaincorporaçãogradualdasquestõesdegêneroesexualidade,sobretudono
“combateàviolênciadegêneroemsuasdiversasformas–pelosmovimentosdedefesa
dosdireitoshumanosqueestãohistoricamenteenvolvidoscomadefesadedireitosda
populaçãocarcerária”239.ZambonieLagoapontamqueaacademianãofoiindiferente
a tais processos e incorporou de forma significativa as pesquisas realizadas “sobre
contextos de privação de liberdade que incorporam questões de gênero e
sexualidade”240.
Contudo,noquetocaaosprocessosdecriminalização,quepassampelocárcere,
masnãosomenteporele,osautoresapontamque“emcomparaçãocomasquestões
de raça e classe, os problemas de gênero e sexualidade são relativamente menos
visíveis, mais naturalizados e menos politizados”241. Gostaria de acrescentar que,
ainda, quando trabalhados, tais temas parecem não abranger a experiência de
travestis. Isso porque o crescimento significativo da produção sobre a seletividade
penaledacriminalizaçãodegrupospobresenegrosnãonecessariamentepossibilitou
pensarsobreocontrolepenalcomoefeitodasnormasdegênero.
Grande parte das pesquisas existentes sobre a investigação de processos de
criminalizaçãodetravestisfoipautadapelaanálisedeautosprocessuaise,apesarde
pontuais,lançampistassobreessecenário.BeckereZahra242procederamaanálisesde
julgamentosdoTribunaldeJustiçadoRioGrandedoSuleconcluírampelaexpressiva
vinculaçãodastravestis aáreacriminal, independentementedeatuaremounãoem
fatos tidos como criminosos. Em abordagemsimilar, Becker e Lemes243 analisaram
quatroacórdãosrelativosahomicídios,tentadoseconsumados,envolvendotravestis
239LAGO,Natália;ZAMBONI,Márcio.Políticas sexuaiseafetivasnaprisão:gêneroe sexualidadeemcontextosdeprivaçãodeliberdade.40encontroanualdaANPOCS,SPG13:Estudosemantropologiadodireito,sociologiadapuniçãoeencarceramento.Caxambu(MG),2016,p.3.240Idem.241Ibid.,p.5.242 ZAHRA, VivianManfrimMuhamed;BECKER, Simone. As representaçoes das(os) transexuais nasaldeiasarquivosdoTJRS:oPoderdanomeaçao,eisagrandequestao.Pensata:RevistadosAlunosdoProgramadePos-GraduaçaoemCienciasSociaisdaUNIFESP.V.4,N.1.p.69-92dez.2014.243BECKER,Simone;LEMES,Hisadora.Vidasvivasinviáveis.EtnografiasobreoshomicıdiosdetravestisnosTribunaisdeJustiçadoMatoGrossodoSul.RevistaÁrtemis,Vol.XVIIIno1;jul-dez,2014.pp.184-198.
70
na cidade deDourados (MS) e apontaramque, apesar de as concepções de gênero
adotadas pelos operadores do direito serem pautadas em aspectos negativos e
depreciativos da experiência social da travestilidade, todos os autores dos crimes
forampresos.Serra244,aoanalisar100acórdãoscriminaisdoTribunaldeJustiçade
São Paulo, coletados com a palavra-chave “travesti”, buscou investigar em quais
contextosatravestilidadeeraacionadapelosdesembargadores.Umadasconclusões
do autor vai no sentido da reafirmação das travestis como pessoas desviantes e
criminosas,naquiloqueforadenominadocomo“profeciaautorealizada”.
Klein245 investigou a relação entre a experiência de travestis e as noções de
marginalidadeecrime.Oautorapontaaintrínsecarelaçãoentreojornalismopolicial,
a produção de narrativas criminalizantes e a relação seletiva como sistemapenal.
Barbosa246, por sua vez, a partir de entrevistas com travestis, jovens e adultas, em
privaçãodeliberdadenacidadedeRecife,apontacomoainterferênciadapolíciasefaz
presente nessas trajetórias. Assim, algumas trajetórias são construídas “a partirde
elementos discursivos que as caracterizam socialmente como sujeitas criminosas,
fazendo com que o crime pareça ser inerente”247. Ainda, o autor ponta que a
sexualidade e a maneira de lidar com o corpo são aspectos centrais para essa
construção.
Ferreira248investigouasexperiênciasdemarginalizaçãodetravestiseoduplo
“crime/castigo” para pensar como seus marcadores operam nos processos de
incriminação,criminalizaçãoeseleção.Oautorconcluique“nocasodastravestis,ter
uma vida precária e uma vida passível de criminalização se relaciona com os
244SERRA,VictorSiqueira. “Pessoaafeitaaocrime”: criminalizaçãode travestiseodiscurso judicialcriminal paulista. Dissertação (Mestrado em Direito), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais daUniversidadeEstadualPaulista“JúlioMesquitaFilho”.Franca,2018.245 KLEIN,Caio Cesar. “A travesti chegou e te convida praroubar”: representações sociaise sujeiçãocriminaldetravestisnamídiapolicial.Dissertação(MestradoemCiênciasCriminais)-Pós-GraduaçãoemCiênciasCriminaisdaFaculdadedeDireitodaPontifíciaUniversidadeCatólicadoRioGrandedoSul,PortoAlegre,2016.RAC246BARBOSA,MariaJúliaLeonel.Ébabado,confusãoegritaria:ashistóriasdetravestisrecifensessobumolhardacriminologiacrítica.Dissertação(MestradoemDireito),UniversidadeFederaldeParaíba,JoãoPessoa,2016.247Ibid.,p.156.248FERREIRA,GuilhermeGomes.Donasderua,vidaslixadas:interseccionalidadesemarcadoressociaisnasexperiênciasdetravestiscomocrimeeocastigo.Tese(DoutoradoemServiçoSocial),PontifíciaUniversidadeCatólicadoRioGrandedoSul,PortoAlegre,2018.
71
marcadores sociais experimentados por essa população” que, do ponto de vista da
análisecriminológica,“carregaemsitambémasujeiçãocriminal”249.
Zamboni250 por sua vez, apresentou de forma inédita alguns dados sobre o
encarceramento de travestis no estado de São Paulo, em que, no ano de 2013, “a
secretaria [do Estado] informou haver 431 travestis e 19 transexuais em suas
dependências”.Oautoralerta,contudo,queessesdadossãopoucoconfiáveis,masque
podem dar “parâmetros da dimensão do fenômeno de criminalização e
encarceramentodetravestis”.
3.2.1. Osdadosoficiososdoencarceramentodetravestis:apenitenciáriaProfessorJason
SoaresAlbergaria
Aolongodosúltimostrêsanos,tenhomeaproximadodarealidadeprisionalno
intuitodeacessarmaiselementossobreacriminalizaçãodetravestis,considerandoo
papel importante que o cárcere exerce nessa dinâmica. O cárcere, assim, foi se
constituindoenquantomeupontodepartidaemeupontodechegada,permeandoem
maioroumenorgraumuitastrajetóriasdetravestiscomquemconviviaolongodesse
tempo.Maisespecificamente,essecontatosefezcomaaladaPenitenciariaProfessor
JasonSoaresAlbergaria (PPJSA), localondeencontram-sepresas travestis,bichas e
seusmaridos.
Aminha primeira incursão nesse espaço se deu a partir de umapesquisa251
realizada pelo Nuh, feita em parceria com o Centro de Apoio Operacional às
PromotoriasdeJustiçadeDefesadosDireitosHumanosdoMinistérioPúblicodeMinas
Gerais (CAO-DH), relativaaos “SistemasdeSegurançaPúbicae aviolência contraa
populaçãoLGBT”.Pararealizaçãodapesquisa,foraminstituídasduasfrentesdeação
distintas,o“Observatóriodeviolênciasdegênero:análisedehomicídiosenvolvendo
travestis e transexuais emMG” e a frente sobre o “Encarceramento de travestis e
homossexuaisemMG:interfaceentreosistemadejustiçaeosdispositivosdegênero”.
249Ibid.,p.196.250ZAMBONI,Márcio.Travestisetransexuaisprivadasdeliberdade:a(des)construçãodeumsujeitodedireitos.REA,n.2,Jun.2016.251EssapesquisaéfrutodoConvênionº42de2013firmadoentreasreferidasinstituições.
72
Emrelaçãoaessaúltimafrentedeatuação,tentamoslevantarosprocessosdas
travestispresasnaalaparacompreendermosumpoucomelhorqualeraarealidade
do seu encarceramento. Contudo, essa tarefa se mostrou mais complexa do que
imaginávamos.Oprimeiropassoparaacessarmososdadosfoirequereràdireçãoda
PPJSA,pormeiodoCAO-DH,alistagemdenomedetodasaspessoaspresasnopavilhão
4. Com essa lista emmãos fomos a campo para podermos diferenciar quem ali se
reivindicavaenquanto travesti, homossexualoumarido. Issoporqueatéopresente
momentonãoháqualquermeiodecontroleeidentificaçãodastravestispresasnaala,
sendo que acesso a esses dados é somente possível mediante uma incursão
propriamenteditanaqueleespaço.
Aestratégiaqueutilizamospara conseguiressesdados foi adeelaborarum
questionárioparaseraplicadocomtodaapopulaçãodopavilhão4,que,naqueleano,
abrangiaumamédiade40pessoas.Noquestionário,elegemosapergunta“qualéoseu
nomesocial?”comobalizaparaidentificarmosastravestisepessoastrans.Apesarde
apesquisa comessesdadosnão ter sedesenvolvido, aquele contatomarcouomeu
primeiromomentodeaproximaçãocomarealidadedaala.Naquelemomentotambém
comecei a construir uma tabela com as informações processuais daquelas pessoas,
sobretudoastravestis.
Noanoseguinte,apósessaprimeiraincursão,comeceiatrabalharcomoapoio
jurídiconaONGTransvest,voltadaparaoacompanhamentoeensinodetravestise
transexuaisemBeloHorizonte.NoâmbitodasatividadesdaONG,aminhaprincipal
atribuição foi se consolidando em torno da assessoria jurídica das travestis. Essa
assessoria me permitiu também o acesso aos dados de algumas travestis que se
encontravampresas e, assim, identificar os processos pelos quais elas respondiam.
Esse contato me permitiu, igualmente estreitar os laços com as travestis que, não
poucasvezes,meconsideravamumainterlocutoraimportante.
Maisrecentemente,nomêsdemarçode2019,volteiafrequentaraAla–dessa
vez com uma frequência semanal e em um contexto completamente diferente do
anterior. Neste momento, as travestis encontravam-se em outro pavilhão e o
contingente de pessoas presas tinha aumentado vertiginosamente. De 40 pessoas
presasnaAlanos idosde2016,hojeessenúmerochegaa280, comumamédiade
apenas20a30 travestispresas.Esse contato sedeuemvirtudedoprojetodeque
73
participeicomalgumasoutrastravestisparaofereceroficinasdeartesanatoparaas
travestispresas.Alémdasoficinas,muitastravestismeprocuravamcomdúvidassobre
asituaçãoprocessual,aoqueeutentavaresponderomaisrápidopossível.
Issoposto,aolongodessesanosdecontatosmaisoumenoscontínuoscomas
travestispresas,pudelevantaralgunsdadossobreasituaçãoprocessualdecadauma.
Conseguilevantarinformaçõessobreidade,tipopenalaplicado,médiadeprocessos
porpessoaecidadedeorigemde39travestis.Assim,paratentarinvestigarumpouco
melhorarealidadedoencarceramentoedoscontextosdecriminalizaçãodastravestis,
vourestituir252algunsdosresultadosalcançados.
Todas as 39 travestis eu conheci dentro da prisão, ou seja, apesar de
representaremsomenteumapartedesseafunilamentoseletivo,ainvestigaçãodeseus
contextos pode apresentar pistas e levantar dúvidas sobre os procedimentos de
criminalizaçãodessasexperiências.
Oprimeiropontoquegostariadedestacaréemrelaçãoàmédiadeidade.Do
totalde39travestis,20,5%têmentre18-24anos;23,1%têmentre25-29anos;20,5%
têmentre30e34anose;35,9%,entre35e45anos.
Sobreasituaçãoprocessual,25,6%dastravestisnão
tinham sentença ainda e respondiampelos processos em
sededeprisãoprovisória.Das29travestisjáemcursona
execuçãopenal,amédiadeprocessoserade2,5porpessoa.
Ou seja, é notório que há uma certa trajetória dentro do
sistema prisional por parte das travestis, que acabam
reincidindodeformasignificativa.
Vistodeoutraforma,41,4%dastravestisrespondemporapenasumprocesso,
sendoque27,5%respondempordoisatrêsprocessose31%respondemporquatro
ou mais processos. Isso quer dizer que mais da metade (58,6%) das travestis
respondempordoisoumaisprocessos.Alémdisso,emnenhumdosprocessosonome
socialfoirespeitadoe,emmédia,apenaaplicadagiraemtornodeseisanos.
Emrelaçãoaolocaldenascimento,44%nasceramemBeloHorizonteeregião
metropolitana e 56% no interior do estado. Talvez a predominância de travestis
252ArestituiçãodessesdadospodeservistanoinfográficodecontextodisponívelnoApêndiceAdestadissertação.
Figura4-Infográficodemédiadeprocessosportravestis.
74
oriundasdessaregiãosedêemvirtudedoacordofirmadoentreoMinistérioPúblicoe
oestadodeMinasGeraisemumaAçãoCivilPública,homologada judicialmenteem
08.10.19, que estabeleceu que a PPJSA receberia toda a população LGBT da região
metropolitana.
Noquetocaaotipopenalmaisaplicado,osdadosmeparecemmaiscuriosos.
49,3%dosprocessoseramrelativosaocrimederoubo;17,3%,aocrimede furtoe;
14,7%, ao crime de tráfico. Os demais crimes, como sedução, falsa identidade,
resistênciaehomicídiosomados respondema18,7%do total.Aoquemeparece, a
incidência significativa do crime de roubo se relaciona diretamente com a
prostituição253eopreconceito.
Oscasosemqueastravestisalegamarealizaçãodetrabalhossexuaise,mesmo
assim,sãoprocessadaspor rouboexigemdesvelarmosdinâmicassociais e arranjos
feitosnosterritóriosdeprostituição,“ascondiçõesparticularesdevulnerabilidadede
cada contexto: como o
policiamento é organizado e
executado,comoasverdades
sãoconstruídasaolongodas
investigaçõesedosprocessos
jurídicos, quem são as
pessoas envolvidas e quais
legitimidades são dadas a
cada uma dessas pessoas e
suasnarrativas”254.
Aapresentaçãodesses
dados oficiosos do encarceramento de travestis, longe de pretenderem lançar
conclusões generalistas, visa apontar para a necessidade de refletirmos mais
criticamente sobreos contornosespecíficoseas formasdeapariçãoeproduçãoda
criminalizaçãodetravestis.Porsuavez,apassagememrevistadealgunsepisódiosda
nossahistóriarecentenoquetocaàrelaçãoentreacriminalizaçãoeatravestilidade
253AbordareiesseassuntodeformamaisextensanoCapítulo3.254SERRA,op.cit.,p.86.
Figura5-Gráficodetipopenalmaisaplicado.
75
visammostrarqueasnormasdegênerofuncionamsustentandoalei.Ouseja,nofinal
dascontas,alei,ouotipopenalaplicado,poucoimporta.
Dessa forma, a criminalização de travestis não tem nada de novo, mas sim,
demandamdenóscompreendermosomovimentodecriminalizaçãoediferenciação
dasilegalidadesexistentesnosdiasdehoje.Compreendermoscomoacriminalização
seconstituicomoefeitodaarticulaçãodeumasériemultifacetadademecanismose
atoresdeextensãoecarátervariados.Aoquemeparece,paratal,restamapearmosos
mecanismos específicos e singulares que são acionados para produzirmos essa
criminalização; desvelarmos como as infrações são distinguidas, distribuídas e
utilizadasdeformasespecificaseasuarelaçãocomasnormasdegênero.
76
CAPÍTULO03:Trêsatosdacriminalizaçãodetravestis“Falamquenãoexistejustiçaequeajustiçanãofunciona,mas funciona sim. Se você é travesti epreta a justiça funciona muito bem.” (conversacomAnykyLima,cadernodecampo,2018)
Omodopeloqualacriminalizaçãodetravestissematerializaé,semdúvidas,
complexo, sinuosoe, sobretudo, relacional.Possodizerquenãoexiste somenteum
modo,massimqueessacriminalizaçãoéproduzidaematerializadaapartirdeatos,
conexões,teciturasquecompõemostrânsitosentreolegaleoilegal.
Comointuitodedemonstraradinâmicadacriminalização,suascontrovérsias
econexões,estecapítuloépermeadoporcosturas,trajetoseitineráriosquepercorri
aolongodomeutrabalhodecampo.Écomposto,também,porpersonagens,desejos,
angústias e sensações queme acompanharamnesse percurso.Nessas cenas, temos
umacosturatecidanocruzamentodepercursossociaisenormasdegênero.Organizei
essestrajetosapartirdaescolhadecritériosquetornassemavisualizaçãodidática,
dadoocaráterheterogêneoemúltiplodasinformaçõesqueobtive.Dessaforma,omeu
objetivoaquiédemonstrarumaconcatenaçãodeatosemapearumcertotrajetode
materializaçãonacriminalizaçãodetravestis.Emcadapontodevirada–precariedade,
prostituição,violência,migração,patologização–ilustrarosarranjosqueconvergem
históriasdiversaseencenama criminalizaçãode travestis.Oque seráapresentado
serãolinhasgerais,encontradasemcampo,deumprocessodetalhadoanaliticamente
nocapítuloseguinte.
77
Dividiessepercursoemtrêsmomentos.Noprimeirofalosobreoqueseriaa
criminalização das experiências de travestis antes do cárcere; no segundo, sobre a
criminalizaçãoqueocorredentrodo cárceree,por fim, comoessa criminalizaçãoé
reproduzidaereiteradacomareincidência.
1. Primeiroato:avidatravesti
Certavez,ouviAnykydizerquetravestimilitadesdeoprimeiromomentoque
pisanarua.OuvideIsis,também,quetravestiésinônimodeluta.Enãoesqueçojamais
deouvirRôgritandonacapa255desuacela:“travestiépoder!”.Sertravestiéumpouco
disso tudo. O que fui percebendo, também, é que ser travesti é tensionar
rotineiramente a força da fixação histórica das posições de gênero no corpo256. É
tensionarmesmo semquerer; tensionarmesmo sem saber. E nessemovimento do
avesso,sertravestiéestarsuscetívelacontrole,puniçãoecriminalização.
Falar de criminalização de travestis implica pensarmos no controle exercido
sobreumavida,ousobreumcertotipodevida.Implicapensarmosacriminalizaçãode
experiênciasquetensionamasfronteirasentreosgênerosequecomprovamque,mais
doquealgoquesetem,gêneroéalgoquesefaz.
Com o tempo, fui me convencendo cada vez mais que, para pensarmos em
criminalização de travestis, é necessário falar de família, saúde, escola. Implica
pensarmosempossíveispassagenstraumáticaspelasinstituiçõesenosatermosmais
criticamente sobre os efeitos de raça, classe e gênero nas nossas vivências diárias.
Implicanosdepararmoscomaprecariedade,prostituiçãoevigilânciapolicial.Implica
pensarmosumnãolugar.Implicapensarmosumprojetodesociedadequecriminaliza
eque,sobaégidedasnormasdegênero,utilizadoaparatopunitivoparafazervaler
uma certa coerência de corpos. Implica, enfim, nos havermos com a nossa
responsabilidadenissotudo.
Bianãofalavamuito.Negra,moradoradeperiferia,temumairmãgêmeaque
tambémé travesti.Dizia, rindoda coincidência,que foraalgumacoisana águaque
beberamquandocriançaqueasdeixaramassim.Abandonadapelamãe,viviacoma
255Acapapodeserdescritacomoa“porta”dacela,adivisóriaentreacelaeocorredor.256PRADO,MarcoAurélioMáximo.Ambulare.BeloHorizonte:PPGCOMUFMG,2018.
78
avó paterna e o pai, portador de sofrimento mental que demandava cuidados
incessantes.
Nosidosdos16para17anos,asirmãscomeçaramacometerpequenosfurtos,
“precisávamoscomer,Júlia,elánacasadaminhaavónãodavapraconseguirmuita
coisa não”. A trajetóriadeBia parecia umpouco com a trajetória demuitos jovens
negros no país que, quandonãomortos pelapolícia, são aprisionados.O tempona
escolafoicurto.Sófoiobrigadaafrequentarquandoforaacauteladacomsuairmãno
Sistema Socioeducativo do estado.Naquele período, o excessode regras e o tempo
medidocontrastavamdrasticamentecomumavidainteirafeitanarua.Chegueiaouvir
umpoucoasuahistóriaquando,aindanagraduação,meaproximeidaexperiênciade
adolescentes travestis em cumprimento de medida socioeducativa. Lembro que,
naquelaépoca,asduasestavamlá.
Muitojovenseespertas,encontravamsoluçõesparaquasetudo:“émuitodifícil
chegaremqualquerlugareaspessoasrespeitarem,masagentesevira”.Onossoinfeliz
reencontrosedeuanosdepoisquando,emumadasvisitasnaala,olheifundonosseus
olhoseexclameisempensar“nãoacreditoquevocêtáaqui!”.Biafitouomeurostoe
esboçou um sorriso daqueles que damos quando, apesar da familiaridade, não
conseguimoslembrardealguém.Volteiparaacasanessediacertadequeexisteuma
trajetóriadecriminalizaçãonavidadastravestis.Essatrajetória,nocasodeBia,éa
provavivadequetemoserradomuito.
Pudeconversar comBiamaisduasou trêsvezes.Nonossoúltimoencontro,
pergunteiseachavaqueofatodetersidopresaserelacionavacomasuaexperiência
detravestieela,prontamente,disse:“não,eufuipresaporqueminhafamílianãovale
opratoquecome”.Sobreafamília,mecontouqueaavónãoaceitavaqueasnetasse
“vestissemdemulher”ediziasempreemtonsdeameaça“naminhacasavocêstêm
queficardireito,casocontrário,aportaéserventiadacasa”.Ficardireitosignificava
nãopoderdarpinta257,nãopintarasunhas,nempassarbatom; tampoucoamarrar
panos na cabeça para fingirem longas madeixas. Não somente tinham que ficar
“direito”comotambémviviamcomotemordodiaquefariam18anos,pois,segundo
257Expressãoêmicaquesignificadeixarapareceraspectosdefeminilidade.
79
conta,eraadatalimitequeaavóestabeleceuparasaírememcasa.Pergunteioporquê
dos18anoseeladisse“porquenóssomosassim,Júlia”.
ParaBia,elahaviasidopresaporqueaavóaexpulsoudecasa.ParaBia,também,
a avó a expulsou de casa porque “se vestia” demulher. Penseimuito sobre o que
significavao“somosassim”deBiaeatéhojenãoseiaocerto.Prefiropensarquese
aproximeumpoucodaquiloqueAnyky,RôeÍsisfalavam.FatoéqueBiafoipresaum
dia depois de fazer 18 anos. A sentença? 12 anos e 15 dias – a serem cumpridos,
inicialmente,noregimefechado.
Acriminalizaçãodavidatravestipodesefazervalerdemúltiplasarticulações.
Me interessa aqui, apontar, a criminalização como efeito da 1) precariedade; da 2)
prostituiçãoe;da3)migração.
1.1. Acriminalizaçãopelaprecariedade
Tomei coragem e abri a carta lentamente. Tomar coragem é coisa de gente
grande,pensei.Opapelestavadelicadamenteflorido,haviarosasdesenhadasemcada
cantoemeunomeestavano topoemvermelho– comoseumdesenho fosse.Li as
palavrasdeIsiscommuitaatenção,elacomeçoumeagradecendoportodaaajudae,
sobretudo,poracreditarnela.Pareinessahoraefiqueipensandosobrequantasvezes
na minha vida eu agradeci alguém por acreditar em mim – talvez nenhuma. Em
desesperos contínuos, ainda dentro de umúnico segundo incomeçável, as palavras
escreveram: “Sei que respondi as perguntas com clareza, tentei ser o mais objetiva
possível e em tudoqueeudisse fui sincera.Percebi tambéma friezadapromotora, e
estranheio fatodelanãome fazerpergunta, como se ela já estivesseconvicta emme
condenareassimfoifeito”258.
Conheci Isis aqui fora, lembro como se fosse ontem o dia em que ela
desapareceu.Amobilizaçãoparaencontrá-laeratamanhaqueatéeuouseisairnarua
aqueledia,procurandoalgumacoisaqueaindanãoentendiamuitobem.Naúltimavez
quehavíamosnosvisto,Isiscompartilhavacomigoalgumasfotosdeumensaioemque
258Todasasexpressõesreproduzidasemitálicoeaspasforamretiradasliteralmentededocumentos,cartaseautosdosprocessospenaisemqueaspersonagensfiguram.
80
elasevestiudenoiva, “olhacomoeuestoubonitanessas fotos”,dizia.Ovestidode
noivaguardavanoinstantedoflashseudestinosemcomeço.
Certavez,suamãe,Dulce,meprocuroucomumasacolacheiadepapéis.Coma
audáciadeummetroemeio,cabeloscurtosepassoslentos;pareciadelongecarregar
o peso do mundo naquelas sacolas. Como ouvi certa vez, “mãe ensacolada é mãe
engolidaemocionalmente”.Ouviatentaoseudepoimentosobreo filhoe,dasacola,
tiravavárioscertificadosecomprovantesdetodaordem,“elesemprefoiummenino
muitobom,omelhordaclasse.ChegouatéapassaremumvestibularparaPedagogia”,
disse.Paraela,eraaindaomeninoJoãoVitore,mastigandosemalegriaacalmado
ressentimento,faziaquestãodechamá-lopelonomecomposto.J-o-ã-oV-i-t-o-r!Ouvia
comatençãoDonaDulceque,entreumafalaeoutra,acendiaumcigarroefumavacomo
senãofossetãopequena.
NodiaemqueIsissumiu,DonaDulcecontaqueobrigouofilhodomeioalevá-
laatéela.Commuitocusto,foiparadebaixodapontenaregiãocentraldacidade.Isis,
quandoviuamãenaquele lugar, logo começoua chorar“mãe, essenãoé lugarpra
senhora.Porquevocêveioatéaqui?”.DonaDulceprontamentepegouafilhapelamão
eolevouatéemcasa,colocou-odebaixodaáguafriaeperguntavaincessantemente:
“vocêtemcasa,comidaquente,porquefazessascoisascomigo?”.Elacontaquedepois
dessediaseesforçouparacompreendermelhoressacoisa“delesevestirdemulher”.
NaquelediaeuchegueimaiscedodoqueousualnoFórum,echegarmaiscedo
me dava uma segurança inquieta. Talvez pudesse observar as pessoas que
frequentavam aquele lugar, tentar entender como se comportam e, assim, talvez
pudesse me sair melhor. Parada no corredor olhando atentamente ao redor fui
questionada:“vocêéadvogada?”.Demoreiumpoucopararesponderedeprontoouvi
“se não é não pode ficar em pé nesse corredor”. Corredor. Onde corre a dor. Não
entendiamuitobemapressa,osaltoeofatodenãopoderficarparadanocorredore,
morna,mesenteinascadeiraslaranjasqueestavamaliperto.Oalaranjadoerainsosso,
cordestoante,emnomedenadaeracormaldita.
Alguns instantesdepois,umacolegameencontrouaprofundadanascadeiras
laranjas.Ela começouamecontaraestratégiadaaudiência e,naqueleuniversode
palavrasdesconhecidas,ouviaatentamentecadafrase.Entreumaestratégiaeoutra,
conteiaelaqueIsiseraamelhoralunadocursoquefrequentava,quesemprefoimuito
81
bemarticuladaeque tinhaumahabilidadedepersuasão impressionante.Confessei
também,umpoucotímida,quechegueiaprocurá-lanasruasquandodeseusumiço.
Fiquei surpresa com o pedido e minha ansiedade subiu rapidamente. “Eu,
testemunha?Masoqueeuvoufalar?”,disseemespanto.Teriaquedeporpara Isis.
Confessoquetreineiumasquatrovezesatéahoraqueouvimeunomesendochamado
nocorredorlotado.Entreinasala,friaereceosa.Naminhafrenteumapequenacâmera,
logoatrásestavaIsis,rodeadapordoispoliciaismilitaresarmados,quemeolhavam
com um olhar de dúvida e apreensão. Isis vestia aquelas roupas vermelhas que
parecemseesforçarpara tiraravidadaspessoasqueasusam,diriaquevestuário
melhornãoháparaacerimôniadedegradação259queseseguiriadali.Ajuíza,queouvia
omeurelatoatenta,perguntou“vocêtemconhecimentodoenvolvimentodeJoãoVitor
comtráficodedrogas?”.Meseguravaparanãoolharparatrás,esperoqueelasesinta
segura–pensava.ComtantosdiscursossobreIsis,seucuidadoestavaemnãosemexer.
Todaaquelacenapareciaserguiadaporumacertalógicafabril,comoseaspessoasali
estivessem repetindoomesmoprocedimento diversas vezes seguidas – semmuita
reflexão,aoqueparecia.
Fazia seis anos que Isis entrava e saía da prisão. A primeira vez que teve
problemacomaJustiça,nosidosde2010,Isispôderesponderemliberdadepelofato
deestarportandoumadeterminadaquantidadededroga.Daquelaveztevesorte.O
pior mesmo veio em 2013, quando sentiu na pele que a justiça criminal, como
preconizavaamúsica260,erarealmenteimplacável.Eraomêsdeabril,Isisestavacom
suaamigaRôfazendopontonobairroSantaAmélia–regiãoconhecidapelaquantidade
significativademotéis–quandoforamprocuradasporMarcosparafazeremprograma.
Marcos,contudo,haviasedirigidoaolocalcomointuitodeconsumirdrogase,junto
comoprograma,levouasduasparaummotelondepassaramamadrugada.Aconfusão
estavaanunciada.Umdesentendimentoquantoaovalordoprograma,compedrasde
259 O trabalho empreitado em um julgamento penal pode ser considerado como uma “das maisexpressivascerimôniasdegradantes”,emqueseprocedeamudançada“chave”deinteligibilidadedeumapessoanormalparacriminosa.Cf.THISEAN,GracielaFernandes.Oprocessopenaleacerimôniadegradante. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais), Faculdade de Direito da PontifíciaUniversidadeCatólicadoRioGrandedoSul,PortoAlegre,2006,p.113.Talexpressão,porsuavez,foipor elaborada pelo sociológico Harold Garfinkel, em 1956. Cf. GARFINKEL, Harold. Conditions ofsuccessfuldegradationceremonies.LXI,Chicago:TheAmericanjournalofSociology,1956.260 Referência à música “O homem na estrada” do grupo de rap Racionais MCs. Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=02-h9t0VpVI.Acessoemjan/2019.
82
crackconsumidasenãopagasforamsuficientesparaMarcosacionaraPolíciaealegar
quehaviasidoextorquido.Comosenãobastasse,osecadordecabeloealgunscremes
dadospelamãedeMarcoscomointuitodesanaradívidadofilhoforaminterpretados
como a “res furtiva”, prova cabal da ameaça empreitada. Para Isis e Rô restava
“apresentar versão convincente, que justificasse a posse dos bens apreendidos”. Mal
sabiamqueversãoconvincentenãohá.Nosautos,asrelaçõesconcretasexistentesem
tornodoatoeraminalcançáveis.Eosdiscursospresentesexpressavamumaordenação
específicaeseletivaqueproduziaarealidade.
Alguns agravantes aqui e acolá, o concurso de pessoas comprovado pelo
“vínculopsicológico”entreasduasearepetiçãodanarrativavencedoraculminaram
nãosomentenacomprovaçãodaextorsãosofridaporMarcosesuamãe,comotambém
emnoveanose11mesesdeprisãoparaIsis.Aosolhosdajustiçaimplacável,prisão
para João Vitor. Isis ali nãomerecia nem o título de apelido. Anos depois, Isisme
confessouqueaquelaforaavezqueficoumaistempopresa;tudo“porcausadeum
programa que o cara contratou e nãome pagou. Aí deu confusão e eu fui presa e
condenada”.
AcondiçãoprecáriadeIsiséincontestável.Éverdadequeatodosnóstambém
oé,oquedifere,talvez,sejaomodocomoédistribuída261.AprecariedadedeIsistem
muitoavercom“vidasquesãopassíveisdelutoouquesãodignasapenasdeumluto
marginal e episódico”262.Nocasode Isis, a falta deproteçãoeapoio sempre foram
marcantesemsuatrajetória.
Daquelaveznãotinhaenvolvimentocomcliente.Depoisdeficarquatroanosna
tranca263,Isisteveseuregimeprogredidoepôdesairasruasnovamente.Aconteceque
asortenãoestavadoseulado,naverdade,meperguntosealgumavezjáesteve...Era
abril novamente. Mês maldito. Agora na Santos Drummond – outro local de
prostituição na cidade. Na delegacia, o policial narrou que “recebeu uma ‘denúncia
anônima’apontandooenvolvimentodeum‘travesti’navendadedrogas”.Aquantidade
dedrogaerabaixa,1,05gramasdecrack.Isissaiudaaudiênciadecustódiacomuma
261 BUTLER, Judith. Ethics and politics of non-violence. Abril, 2018. Disponível em:http://www.cccb.org/en/multimedia/videos/ethics-and-politics-of-non-violence/228942. Acesso emnov/19.262BUTLER,Judith.Vidaprecária:ospoderesdolutoedaviolência.BeloHorizonte:AutênticaEditora,2018,p.131.263Atrancaserefereaocumprimentodepenatotalmentenoregimefechado.
83
tornozeleira eletrônica. Sua sentença estava dada. Um dia depois, repito, u-m dia
depois,nomesmolocal,umpolicialrecebeuumadenúnciaanônimadeque“umtravesti
comshortrosaetornozeleira”estariapraticando“tráficodedrogas”.EraIsis,quehavia
acabadodesairdoFórum.Comela,nenhumadroga.Masnoarbustoqueestavaaoseu
ladoquandodabatidapolicial,2,10gramasdecrack.Paraojuiz“ocontextodeprisão
guardamuitasemelhançacomadetrêsdiasatrás”, logo,restavaa Isisvoltarparaa
prisão.
A droga e Isis sempre tiveram uma relação conturbada. Certa vez, Isis me
confessouqueaconheceuaos17equenocomeçoosencontrossedavammaisanoite,
emboates, na sauna que frequentava e na prostituição.Não tardou e os encontros
começaramaaconteceremqualquerhoraelugar.Eracomosefosseumciclosemfim,
abebidaeadroga,diziaIsis,nuncamaisaabandonaram,lembrodedizer“seeuusar
drogaaíeubeboeseeubeber,euquerodroga.Bebermelhoraaondadadroga,corta
umpoucoaviagem,cadaumtemumaviagem”.
Oencontromaisimportantesedeuaos21anos,quandoIsisconheceuocrack.
Como crack, veioa rua. “Eunãoqueria levardrogapra casa,nãoqueria levaresse
problemapraminhamãeetambémnãoqueriaficarnasituaçãoderuanomeubairro
pranãoconstrangerminhamãe,sabe?”disse.FoiporissoqueIsisfoipracapital,elá
passouamaiorpartedotemponasruas,unsoitoanosemeio,conta.Entreumapausa
eoutranaconversa,Isiscompleta,“masassim,issosomaotempoderuaeotempoque
euficavanacadeia.Quandoeusaíadacadeiaeuficavanaminhacasa,maseupassava
poucos dias em casa e voltava pra rua. Eu achei que eu ia voltar pra casa
definitivamente quando encontraram aquela droga no arbusto e me acusaram de
tráfico.Imagina,eu,traficante?”.
Eununcahaviarecebidocartasantes.Aquelafoiaprimeira.Lembroquesegurei
comasduasmãosemireiomeuolharnelaporumtempo–aindasemcoragemde
abrir.Oenvelopeerabranco,simples,masestavaenfeitadocomarabescosfeitosde
canetacolorida.Noaltoestavameunome,enfeitadodevermelho,comumaletratão
bonita que parecia ter saído de um convite de casamento. Por ummomento fiquei
pensandonotrânsitodaquelacartaatéchegarnasminhasmãos.Comoépossívelalgo
tãobonitosairdosmurosdeumaprisão?Imagineiocontrastedabelezadascoresdo
arabescocomosmurosfeiosesujosdeumlugarquesequestraasalmasdaspessoas–
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não de todas, pelo visto. Em desesperos últimos, as palavras selaram: “Eu tinha
ganhadoalbergueeestavatentandoficarsóemcasa.Eujuro.Nãoseicomoexatamente,
maseunãoconsegui.Naépocaqueeufuipresatinhaummêsqueeuestavanaruade
novo.Eradezembroeeusaídecasa, trabalhei,ganheidinheiroeaí,poracaso,passei
numaruaquetinhaumasamigasusandodrogaeporalifiquei.Minhamãeacaboume
encontrandoemelevoupracasa.Foiquandoeutiveoverdose.Nãofiqueiquasenadaem
casaejáfuipraruadenovo.Nãoconseguiavoltarpracasasabe?Achoqueminharecaída
agora foi muito forte. Eu tive tanta vontade de sair dessa vida de rua que acabei
piorando...Eutômepreparandopravoltar,achoquehojeemdiaminhamãemeaceita
melhor.Maseupreciseibatalharcomaminhamãe,viu?Comodizemmesmo,travestié
símbolodeluta,né?”.
Aquelediadevoterficadouns40minutosnotelefoneconversandocomDona
Dulce.Estimoquepassoude30minutos,issoécerto.Lembroqueolheinorelógioeo
horáriodealmoçojáestavaquasenofim.Eeuali,entretida.DonaDulce,comavoz
roucadecigarro,compartilhouasangústiasedúvidasdeumamãequenãoentendeo
queaconteceucomofilho,JoãoVitor,paraqueeleseenvolvessecomdrogaseomundo
docrime, “vocêdámoledemais.O seupaimorreudoentede tanto respiraraquela
fumaça da SLU264. Seu pai nunca matou, nunca fumou, nunca bebeu. Onde você
arrumouissonavida?”.
Na cabeça de Dona Dulce, homossexuais como o filho “só procuram coisa
errada”,afinal,foidepoisdevirarhomossexualqueascoisasficarampiores.Elaconta
que,naidadedeJoãoVitorcomeçaratrabalhar,pediuaomaridoqueconversassecom
ochefedaSLUparaconseguirumempregoparaofilho.Comsucesso,avagaestava
garantida,masascoisasnãosaíramcomoimaginado.“Aíoqueelefez?Ficouamigodo
filho de um colega de trabalho domeumarido. Foi onde tudo começou. JoãoVitor
dormianacasadelequasetodososdias.Ocolegadetrabalhodomeumaridoeragente
boa,tinhaumaesposalegaltambém.Mastinhaumfilhoqueerahomossexual”.
Depoisdissonãocansavadedizeraele“essacoisadeserhomossexualédifícil,
écomplicadodemais.Vocêentrouemummundoquevocêpensaquesãoflores,mas
nãoé...Seumcasalnormaljáencontraumasériededificuldades,imaginavocê?”.Sem
264SuperintendênciadeLimpezaUrbana.
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titubear, completou “desde que o mundo é mundo o normal é homem e mulher.
Imaginasevocêtáemumempregoedescobrequevocêéhomossexual?Acabou,fica
tudomaisdifícil”.
Nessahora,resignada,lembreiumpoucodaminhamãeecomoelasempreme
falavacoisasparecidas.Sejaporcuidadoexcessivooupormedodemãe,fatoéque“ser
homossexual”édifícileassançõessociaispodemvircomtudo.Antesmesmodepoder
concluirmeuraciocínio,DonaDulcecompletou“epretotemoportunidade?Pretotem
oportunidadedeser lixeiro igualmeuesposo foi”.Envergonhada,dissequeela tem
razãoe,queera solidáriaa tudoaquilo,mesmo tendouma trajetóriadeprivilégios
enquantobrancadeclassemédia.
AperguntadeDonaDulce talvezmostre suabusca incessantepela causado
“desvio”dafilha,contudo,respostapraessaperguntanãohá.Aresposta,talvez,para
ela, se relacione com a homossexualidade e, por isso, se relaciona com o gênero
também.Aoquemeparece,naverdade,arespostaparaDonaDulcetemavercomessa
certacriminalizaçãocomoefeitoecausadaprecariedade.Dizmaisdedeterminadas
vidasque,detãoalijadas,padecemsemlugar.
1.2. Acriminalizaçãopelaprostituição
Nadelegacia,umdosrapazescontaque,juntocomseusamigos,“resolveramdar
uma“zoada”comasgarotasdeprogramaqueestavamnaAv.AfonsoPena”.Conta,ainda,
semsaberao certoo tamanhodaspalavrasque “pensaram inicialmenteque seriam
mulheres”,masque“aoperceberqueseriamhomens”orientouosamigos“aconferiros
bolsos, pois travestis costumam furtarpertences”.Eraquinta-feiraeoCruzeiro tinha
acabadodeganharumapartidaimportanteparaocampeonatomineiro.
O laudomédico preconizava: o quadro não era estável. Fraturas graves nos
ossos da face, traumatismo craniano e um coágulo no cérebro. De novo era o
diagnósticoquetornavaseucorpopúblico.Quandoconverseicomela,medissequea
pedradaquerecebeunosolhosfezcomqueumpoucodearentrassenoseucérebro.
Nuncatinhavistonadaparecidocomaquilo,ingenuidademinhatalvez.Aindaquenão
tivessemorridodefato,talveztivessemorridonametadedaquelafrase.
86
Jadeestavanacidadefaziapoucomaisdequatromeses.E,naquelaquinta-feira,
andandoporaquelacidadetodafeitacontraela,saiudohotelondeestavamorando
para trabalharna rua.Quinta-feiraédiadeagonia,deve serporquedia ímpar tem
dessascoisas:semprefaltamaisum.Digotrabalharnaruaporque,naverdade,étênue
alinhaquedefineomorareotrabalhardeJade.Elaalugavaumquartoabafadoemum
sobeedesce265localizadonaregiãocentraldacidade,R$180porsemana.Atendiauma
médiade15clientespordiae,semprequepodia,faziapistanaruaparacomplementar
arenda.
Deviaserumasduashorasdamanhã.Noaltodaavenida,avistouumatravesti
correndo em sua direção, fugindo de três rapazes. Sem pensar duas vezes, Jade
começouacorrerevirouaprimeiraruaqueviu.Logoali,foiperseguidapordoisdos
rapazes,quegritavam“chutaela,chutaessafilhadaputa”.Caiunochãoesentiuoduro
desocosechutes.
Eles sentiram olhares anônimos e pararam, precisaram perceber que não
estavamsozinhosnarua.Maspararnãodiminuíaador.Ajustificativaveiologodepois,
“esse travesti veio aqui falou que ia pegar no pau da gente, rouboumeu celular e
estávamospegandodevolta”.Masviolênciajustificadaéironia,étruculênciamedida.
Ironiaécoisaque,querendofazer,fingefazerdeoutrojeito.
Jadeselevantaemfrangalhose,emdireçãoàavenida,encontraumaamiga.O
rapaz,aoperceberqueasjustificativasnãoiriammobilizaraspessoasafazeremalgo
emsuadefesa,vaiatéacaçambaqueestavalogoaoladoepegaaprimeirapedraque
vêpelafrente.Comapedranamão,miraemJadeeacertaoseurosto,emumaclara
tentativa de feri-la fatalmente – demonstrando a banalidade do ato e a completa
ausênciade“pudor”emempreitartamanhaviolência.Não,abanalidadedavidaouda
nãovida.Sinaisdeumaexistênciamiúdaeemudecida.
Jade caidesacordadano chãocoma forçadapancadae suaamiga começaa
pedirajuda“Matouela,matou!Polícia!”.Aspessoasqueestavamno localcomeçam
igualmente a gritar pedindosocorro.O rapaz, nessa hora, coloca amãono bolso e
percebequeseucelularnuncasaiudali.
265Referênciaaoshotéisdeprostituiçãocomintensofluxodepessoassubindoedescendoasescadas.
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UmaviaturadaPolíciaMilitarpassanolocaleparaosdoisrapazesresponsáveis
pelaagressãodeJade.Umdospoliciaispassapeloseucorpo.“Táláocorpoestendido
nochão!”266.Écadáver?“Vidanua”267?Masmorreu,será?Já!Jadejámorreu877vezes.
Aspessoaspresentesnahoragritam“eleagrediuela!Bateunela”.Opolicialresponde,
“vouveroquefaço”.
Fuipegadesurpresacomaimensidãodosseusolhos,brilhantesevivazes.O
seurostojáestavadesinchando.Entreoshematomasnaregiãodosolhoseacicatriz
vermelhanatesta,ocontornodorostocomeçavaatomarforma.Comadiminuiçãodo
inchaço osdoisolhos verdes começaram a contrastar com asmarcasde sangue ao
redor.Eracomoseasírisverdesficassemimersasemumaimensidãovermelha,que
guardavaumasutilezaúnicaaomesmotempoquegritavamviolência.Eraapalavra
mudaemumcorpoquegritava268.
Noprimeirodiaqueavi, Jade choravamuito.Lembrodeentrarno corredor
lotadodoHospitalemeperderentreosgemidosdedoreosangue.Deprontoimaginei
queaquelaeraasalaondeelaestava,naportatrêspoliciaismilitaresdevigia,comose
alguém,emumhospital,apresentassealgumperigo.NãoentendimuitobemoqueJade
dizia;entreosgritosdedor,percebiqueelaestavaalgemadanacama,premidapelos
pulsosepresanoseuprópriodestinosemcomeço.Oseurostoestavacompletamente
desfigurado, os olhos não existiammais e no lugar estava dois bolsões de sangue.
VisiteiJadeemsetedosdezdiasqueficouinternada.Emcadavisita,saíadelácadavez
menor.
As algemas, como esperado, causavam um grande desconforto em Jade.
Algumasvezeseladisse “osagentesestãometorturando” comum tomenfáticode
quem temquedizeroóbvio.Olhavapara Jadeenão conseguiaparardepensarna
pergunta: como se constrói uma travesti criminosa? Essa pergunta perplexa me
acompanhavaemtodasasvisitas.Ali,seconstruíacomasalgemas,ocorpotatuado,a
polícianaporta.Semesseselementos,oqueseriadacena?
266 Referência à música de João Bosco, “De frente pro crime”.https://www.youtube.com/watch?v=vov8kDn0KkY.Acessoemjan/2019.267AGAMBEN,Giorgio.HomoSacer:opodersoberanoeavidanua.BeloHorizonte:EditoraUFMG,2002.268BUTLER,Judith.Avidapsíquicadopoder:teoriasdasujeição.BeloHorizonte:AutênticaEditor,2017,p.223.
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Licomespantooboletimdeocorrência.Jadefoiassimrelatada“otravestiloiro
continuoucorrendoqueotravestiloirotropeçouecaiunochão”.Nadelegacia,umdos
rapazesalegaatitudesuspeita–“tropeçou,caídoaochãoetendoumpequenoferimento
nacabeça;queessetravestiestavausandosaltoaltoeaocorrercaiu”.
Tudo isso por um fatídico celular.Mas serámesmo?O PM responsável pelo
flagrantedisseque ficousabendoque Jade,oumelhordizendo,Afonso, “juntamente
comoutrotravestiteriamsubtraídooscelularesdasvítimas;queotravestiAfonsopor
suavezreclamouquefoiagredidofisicamentepelosdemaisenvolvidos;queoinvestigado
Afonsoseencontrainternado,emobservaçãomédica,sobescoltadaPM,porém,segundo
informaçõesdoboletimmédico,aslesõesforamsuperficiais”.
“Lesõessuperficiais”.Noinquérito,nempistasdelaudosmédicos.Achismopuro.
Aprendinaquelahoraquetravestireclama,nãosente.Nodespachoratificador,Jade
“teria sofrido uma queda, se ferindo, razão pela qual foi encaminhado pela PMMG a
atendimentomédico,ondepermaneceatéentão”.Comoémesmo?Dizemque“umavida
temqueserinteligívelcomoumavida,temdeseconformaracertasconcepçõesdoque
éavida,afimdesetornareconhecível”269.ParaJade,ali,apalavrareconhecimentoera
derimadifícil.
“Travestis costumam furtar pertences”. Sentença maldita. Para o delegado,
prisãoemflagrantedelito“peloscrimesprevistosnoart.155,§4,incisoIV”,quaissejam,
furtoqualificadopeloconcursodepessoas.Todosostrêsrapazesresponsáveissaíram
delásoltos,supostas“vítimas”dofurto.Jade,porsuavez,tevesuaprisãoratificada
pelodelegado.Jadenãotemlugarnamesa,éoresto,oabjeto.
Recebiumaligaçãoinesperada.Dooutroladodalinha,Paulo,ofegante,medizia
que dois policiais foram até o hotel onde Jade morava-trabalhava na busca pela
“travestimorena”quesupostamenteestavacomelanomomentodocrime.Ospoliciais
ameaçaramagerenteedonadohotelarealizarumaapreensãoemtodososquartos,
casonãoencontrassemonomedaoutratravesti.Estãomexendocomfogo,penseiem
silêncio.
Escrevodadelegacia.Entreincontáveisidasevindas,meacomodoresignadana
saladeespera.Aomeulado,duaspessoasconversam.Orapaz,quedeveteruns30
269BUTLER,op.cit.,2015,p.125.
89
anos,relatacomindignaçãoquefoifurtadoe,comosenãobastasseo“disparate”,o
responsávelpelo furto teriase justificado, “omeu filhovaiparaapraiaeprecisava
comprarumprotetorsolar”.Asenhoraigualmentedesaprovaeorapazcompleta,“pelo
menostrouxeeledesacordado”.Justiceirosdeplantão.Incomodada,resolvoromper
com o obstáculo de papel “apenas permitida a entrada de pessoal autorizado” e
enfrentaroadesivo“17”270pregadonaporta.Suboasescadasemesentonascadeiras
localizadasemfrenteàsaladodelegado,afundadaeimersanotemponecessáriopara
encontraremoinquéritodesaparecidodeJade.Aqui,asparedessãotodasbrancas,o
chãoé cinzaeo caos reinanas salasapertadasdodelegadoedoescrivão.Ora sou
doutora e ora menina. Quando sou menina, os investigadores param e perguntam
incessantemente“estáprecisandodealgumacoisa?”.Quandosoudoutora,nãofaltam
justificativasparaademoraemencontraroquepreciso.
Tentandomostrarfamiliaridade,oescrivãodiz“Ah!Aquelecaso.Euconheciela.
Ébonita!Fiqueisabendoqueficoucegadeumolho”.Nessahora,doisinvestigadores
entramnasalacuriosos.Umseantecipa“Ah!ÉdaquelecaraqueapanhounaAfonso
Pena”,aoutradiz,“masquecaraéesse?”.Respirofundoeinterfiro“Naverdadeéuma
mulher,eseunomesocialé Jade”.Sempaciênciaa inspetoraretruca“cadahorame
falamumacoisa,éhomemoumulher?Ah!Éotravesti”.Ficoemsilêncio.Resignadae
semoinquéritoemmãos,vouemboraeavisoquevoltareidepois.
**
OcasodeLarissasempre foiumdosquemaismeassustavam.Ela ficousete
mesespresapreventivamenteemumapenitenciáriadacapital,supostamentecoma
imputaçãodocrimedeextorsão.Omotivo?Umclienteserecusouapagaroprograma.
O valor? R$300. Dentro do cárcere, Larissa conheceu seu atual marido, José. Nas
oportunidadesqueconversamos,eramnotóriosoempenhoeadedicaçãodelacomo
rapaz.Segundomerelatou,tudoissosedavaemvirtudedeumcertosensodegratidão,
postoqueforaelequeaprotegeudurantetodootempodecárcere.Masoamor,até
paraela,tinhalimites“seeleforpresodenovonãotemoqueeupossofazer,entendeu.
270Naépocadesterelato,estávamosemperíodoeleitoral.
90
Játereifeitoaminhaparte.Porqueelemeajudoumuitoládentro,nãodeixouninguém
encostarodedoemmimnemnada.Precisofazerissoporele”.
No inquérito policial de Larissa, a associação entre prostituição e crime era
notória,"opolicialAlextambémdestacouquejáregistroumaisdedezBOssobrefatos
idênticos, elucidando que diversos "travestis" abordamas vítimas na via pública e as
assaltam no hotel destinado a programas com transexuais, sendo certo que diversas
vítimas sequer registram os boletins objetivando ocultar a prática de programas
sexuais".Aimpressãoqueficaéqueastravestisjáentramperdendo.Quandochegoua
horadojulgamento,Larissaforasurpreendentementeabsolvidaporfaltadeprovas.
Emumasegunda-feira,no finaldatarde,estavanasaladeumadonadecasa
conhecidanacapital,esperandoalgumastravestischegaremparaconversarmosum
pouco sobre o projeto que iríamos começar nomês seguinte. Larissa,muito gentil,
estavamefazendocompanhiaenquantoesperavae,entreumaconversaeoutra,ousei
perguntar a ela sobre o ocorrido. Muito direta, Larissa me disse que existe uma
desvalorizaçãodoprogramadastravestis,equetaldesvalorizaçãoserelacionacomo
própriolocalqueessaexperiênciaocupasocialmente.Muitofranca,meexplicouque
“omeuprogramaéR$40, eo cliente sabequeéR$40.Masmuitosnãovalorizam...
QueremdarR$20,darR$10.Etácomodinheiroaliprapagar,tácomodinheiroalipra
valorizaroprograma.Masnãoquer.Sóporqueachaqueétravestiequenãomerece.
LánazonasevocêfalarqueoprogramaéR$50,R$100reaiselesnãoentram”.Para
ela,essasituaçãopermanentededesvalorizaçãodoprogramacausaumainsatisfação
generalizada.Segundoconta,éexatamenteissoquefazcomqueastravestis“fiquem
revoltadas”.
“R$40éumpreçohumilhante”,completou.Comosenãobastasseovalorbaixo,
algunsclienteschegamacompararoprogramacomastravestiscomoprogramacom
outrasmulheresnazona,“temmulheresquefazemprogramaporR$10,R$20nazona
aquinocentro...Muitosfalam,travestiquercobrarR$40?”.Somadoatudoisso,Larissa
contaquequandoospoliciaischegam“ésóparamassacrarasbichas”.Completaque
nãoédeseespantarqueastravestistêmquepegarodinheiroàforçaparavalorizaro
programamesmo.
Aoquemeinteressa,éjustamentenocontextodaprostituiçãoqueasmulheres,
travestis e transexuais, além de expostas aos mais diversos tipos de violências,
91
inserem-senaquiloqueTelles271,remetendoFoucault272,denominacomo“gestãodos
ilegalismos”. Aqui, é possível apontar as fronteiras instáveis e fluidas entre as
atividades que envolvemosmercados ilícitos, ilegais, informais e que caracterizam
grandepartedashistóriasnasquaisastravestisseviamenvolvidas.
Nãoforampoucasasvezesqueastravestismedisseramqueestavampresas
pormotivode“programacomcliente”ou“desentendimentocomcliente”.Comoparte
da prática de prostituição,os programas e pagamentos são acertados verbalmente,
entreaquelaqueofereceosserviçoseaquelequedesejaobtê-lo.Aprecariedadedetal
acordoéconsiderável, tendoemvistatantoa fragilidadedoacordoverbalquantoa
truculênciaeaviolênciadapolícianaabordagem,eonãoreconhecimentojurídicoda
prática. A dívida por prostituição, até o momento atual, não pode ser cobrada
judicialmente,poisrepresentariaumatentadoamoraleaosbonscostumes.Assim,a
frequentequebradoacordoporpartedosclientesquesenegamapagaracentuaainda
maisacondiçãodeprecariedadedastravestis.
Nãoquerotirararesponsabilidadedastravestisemmuitasdestascenas,como
ouvicertavezdeAnyky,“aminhacomunidadenãoésanta,não,euseidisso”.Aoque
parece,nãosetratadeencontrarasupostaverdadedofato,ouaaçãoexatadecada
uma.Oquemepareceimportantepontuaréuminvestimentonacriminalizaçãoena
constituição da travesti “criminosa”, feita de múltiplas formas, sendo a prática de
prostituição uma delas. É essa prática que se insere na dinâmica como fator de
criminalização.
Acriminalizaçãosedá,contudo,exatamentepelopoucovalordadoàpalavraou
àversãodastravestissobredeterminadofato,emqueoclientequasesempresaicomo
“vítima”dasituação–sejaelaqualfor.Eéexatamentesobreessadisputadenarrativa
que li em um depoimento de um outro inquérito policial, tempos depois: "estava
dirigindo umUBER e o passageiro da frente começou a passar amão pelo corpo do
depoente e o depoente ficou assustado com aquela situação, "tentando levar na
profissional"; tevemedodereagirporquesabequehojeemdianãosepodexingaras
pessoasdegay,ficoucommedodeserincriminadosereagisse;nãofeznenhumprograma
271TELLES,Vera.Nasdobrasdolegaledoilegal: ilegalismose jogosdepodernastramasdacidade.Dilemas:RevistadeEstudosdeConflitoeControleSocial.vol.2,n.5-6,jul-dez,2010.p.97-126.272FOUCAULT,op.cit.,2014.
92
comoacusadoecomparsas;nadelegaciaoacusadoecomparsasafirmaramquefizeram
programacomodepoente eatédisseramonomedamarcada cuecaqueodepoente
estavausando,acrescentandoqueelesviraonomedamarcadacuecaporqueeleestá
estampadonapeçaíntima,comletrasgrandes;oacusadoecomparsasestavamvestidos
comroupademulherfoiconstatadoqueeleseramtravestis".
Questões relativas a gênero e sexualidade se inseremnessa seleção causal e
configuram a concepção da travesti inexoravelmente criminosa, com baixa
credibilidadeemoral.Aqui,asnormasdegêneroincidemdiretamentenavalidaçãoou
nãodedeterminadotestemunhoouvisãodofato,aomesmotempoemqueaprática
deprostituiçãoétidacomofatordecriminalização.
1.3. Acriminalizaçãopelamigração
Jadetemnoveirmãos.NasceunoestadodeAlagoase,apesardetersidoexpulsa
decasaaos13anos,temumaboarelaçãocomafamília.Dosnoveirmãos,quatrosão
mulheresecincohomens,“comigosãocincomulheresecincohomens”completouem
tomdebrincadeira.Do interiordeAlagoas foiparaa capital,Maceió, e lá ficoupor
algunsanos.LogodepoispartiuparaSãoPaulo,ondeconheceuoseucompanheiro,
Pedroquetrabalhavacomprostituiçãoemumarepúblicanacapitalpaulista.Elaconta,
entusiasmada,quechegouapedirqueeleparassecomosclientes,afinalagoraeleteria
“umhomememcasa,masquepelomenospareceumamulher”.
Apráticadeprostituiçãotemmuitoavercomotrânsito273dastravestisdeum
lugarparaoutroque,porsuavez,ensejaconsequênciasdistintasnoquetocaasua
criminalização. Muitas travestis que conheci não eram nascidas na capital, mas
buscavamacidadegrandepormotivosvariáveis,sejapelapossibilidadedeobtenção
derendanaprostituição274,pelodesejodeexpressarsuasexualidadeedegênerode
formamaislivreou,também,pelafuga“àsameaçassofridasemumdeterminadolocal,
273AspectosdamigraçãodetravestisfoiamplamentediscutidoemKULICK,op.cit.;BENEDETTI,MarcosRenato.TodaFeita:ocorpoeogenerodastravestis.DissertaçãodeMestradoemAntropologiaSocial.PortoAlegre,UniversidadeFederaldoRioGrandedoSul,2000.274SegundopesquisarealizadapeloNuhcom139travestisetransexuaisqueexercemotrabalhosexualemBeloHorizonteeregiãometropolitana,66%dasentrevistadasalegamqueotrabalhofoiomotivoque as levaram a mudar de cidade. Disponível em:http://www.nuhufmg.com.br/gde_ufmg/index.php/projeto-trans.Acessoemdez/19.
93
por parte dos clientes, policiais ou outras travestis”275. Contudo, para o direito, o
sentido de residência émuito próprio. Pressupõe a existência de pessoas que não
transitam,quenãoflutuam,quesefixamdeformapermanentenoslugares.
Em2015,Jadechegouafurtarduasbermudasemumshoppingnoseuestado
natal.Fazia15diasqueseuprocessonãochegavaeacicatriznatestaalembravatodos
osdiasdoseudestinosemcomeço.Parecequeomovimentoéumpoucoesse...Junto
comacriminalizaçãovemofluxomigratório.Vidanova,estadonovoecidadenova.
Abandona-setudo,semolharparatrás,masaspalavrasdifíceisqueperformamum
mundoinalcançávelnãodemoramachegar.Nonovoestado,senãoforporcliente,é
presaporteridoembora.
O estabelecimento prisional fica em uma rua com passeio de um lado só.
Transitarporláapéétarefadifícil.Deumlado,opasseioestreitodivideoasfaltodos
murosenormesdaprisão.Dooutro,umtrilhodeproteçãoenquadraohorizonteda
zonaoestedacidade.Jadenãoestavapresapelaquinta-feira,mastalvezestivessepela
burocracia.
Choviamuito,semguarda-chuvamerestavaandarapassosrápidos.Naporta,
umadesivo“17”ocupavaumlugarcentralnavertiginosaportademetal.Pareciaum
prelúdio,umanúnciomiméticodasvozesinaudíveisnaquelelugar.Muitaspessoasse
amontoavamemfila,ávidaspornotícias;outrasapenasqueriamentregarositensde
higieneparapodercomeçarodiadetrabalho.Lembreidaquelafrase,comoémesmo?
“Filhopresoépenitênciademãeensacolada”.
Nãodemoroumuitoefomosencaminhadasparaoparlatório.Seusolhosverdes
estavammolhados,masagoranãoerador.Oseuolharnaquelediapareciadesespero,
aperto e exasperação. Sua voz falhava e, insistindo, perguntou quanto tempomais
ficariaali.Perguntasemresposta.FaziadiasquemedirigiareligiosamenteaoFórum
para conseguir as mesmas notícias: seu processo ainda não tinha chegado. E a
previsão?“Nãoconsigodizer,doutora,precisamossistematizarmaisoumenos100mil
malotes digitais aqui na Vara... A quantidade é tamanha que nem o sistema daqui
aguenta”.
275GARCIA,op.cit.,p.8.
94
Nasegundavezque fuiatéaprisão,nãopudever Jade.Era feriadoeoclima
estava estranhamente calmo, sem filas e mães ensacoladas. O primeiro turno das
eleiçõeshaviapassadoeoadesivo“17”nãoestavamaisali.Àminhadireita,umrádio
nointeriordasaladosagentestocavaChicoBuarque.Enquantoentregavaminhabolsa
edocumentos,aprecieiumpoucodamúsicaimprovável.Estavaláparaentregaralguns
itensdehigienepessoalpara Jade,que contavaapenas comaajudadeoutrasduas
travestisqueestavampresascomela,comodisseentreossorrisos“tônacelacomduas
travestiseonamoradodeumadelas.MasnãocontaproPedro!”.
Meorientaramasubirumaencosta íngremeeviraràdireita, logoaliveriaa
garagemondedeveriaentregarasacolacomositens.Talvezpelafaltadepessoal,ou
porpreguiça,oagentemepediuparaentregaralgumascorrespondênciasemumlocal
próximo.Enquantosubia,procuravaincessantementealgumsinaldoadesivoperdido.
No local, três agentes jogavam conversa fora. Chegando lá, entreguei a sacola e
preenchiumpapelcomosdadosdeJade.Apósainspeção,descobriqueosbiscoitos
nãopoderiamentrar.Sabe-seláoporquê...
Umadasagentespedeparaqueescrevaonome“dopreso”nasacola.Conflito.
Qualnomedevousar?Tentofazerascontasmatemáticas,probabilidadesepossíveis
efeitosqueamerainserçãodonome“Jade”poderiacausarnaqueleespaço.Premida
pelotempo,escrevoprimeiro,emletrasmenoreseentreparêntese:“AfonsoSouza”.
Mas,logoacima,emletrasgrandeserobustasescrevocomoseuoseunomenãofosse
pequeno:“Jade”.Aagentenãopercebee,quandotemasacolaemmãos,diz“Não,não.
Nãoépravocêescreveroseunome”.Aoportunidadequeesperava,“masessenãoéo
meu nome”, completei. Um tempo em silêncio. As três agentes se entreolham.
Quebrandootempo,umadiz“ah!Masagentenãotrabalhacomissoaqui”.Retruquei
“vocêquerdizerquenãousaonomesocial?”,constrangidadiz“é... issoconfundeos
agentesládentro”.Calo-me,ecomcaradepoucosamigos,nãodigonada.Mevirosem
olharparatrásemedeparocomoadesivodesaparecido,“17”agorafiguravanabase
da mesa onde os familiares alocam os pertencentes para inspeção. Saí com uma
sensaçãoamargadevitória,erasutil,masaqueleespaço falava,produzia,constituía
muitacoisasemdizernada.Desciaencostaresignada.Agoranasalaapertadatocava
AdrianaCalcanhotto.
**
95
Um dos casos que mais me marcaram nesse percurso foi, sem sombra de
dúvidas,odeFernanda.Nascidanointeriordadivisadosdoismenoresestadosdopaís,
teveumainfânciatranquila,mesmocomohábitode“colocarunspanosnacabeçapara
fingirqueeramulher”.Aos12anostevesuaprimeirarelaçãohomossexualcomum
homemmaisvelho,momentoqueFernandaatribuiumavirada significativana sua
vida.Foi apenasaos18anosque sentiunecessidadede sairde casa, apesardaboa
relaçãoquenutriacomafamília.Odesejodesairdecasa,segundomecontou,veioda
vontadedemontarocorpoeconheceromundo.Foiassimquedepoisdeirpracapital
deSergipe,FernandafoiparaoRio,EspíritoSantoedepoisEuropa.
Conheci Fernanda no meio da multidão de rostos da Cela 1. Com olhos de
espanto, suas bochechas perfeitamente redondas esbarravam nos corpos pouco
vestidos de 11 presos que disputavam com vigor um espaço na capa. Fernanda,
ofegante,medissequenãosabiaomotivopeloqualestavapresa.Relatou,comosea
miséria fosse pouca, que chegou a pagarR$7.000 para um advogado, irmãode um
agentepenitenciário,quefugiusemdeixarvestígios.
Erajulhode2016quandoFernandaestavanobardoBarataquandopoliciais
chegaram. No registro de ocorrência, Fernanda estava detida por “negar saldar
despesa”. Umapesquisa rápida no sistema e pronto. Ummandadode prisão aberto
contraFernandanoestadodeSergipe,datadode2002,queimediatamentefoidetida
emsededeprisãopreventiva.
Em Aracaju, Fernanda foi denunciada pela prática do crime de roubo
qualificado,emconcursodeagentes.Os“agentes”,nocaso,eramduastravestisque
estavam com ela na Orla do Atalaia, quando “anunciaram o assalto, adentrando no
veículodavítimae,depossedeumobjetopontiagudo(prendedordecabelos,tipobicode
pato),renderam-na,colocando-anobancodetrásdocarro”.AvítimaeraAlex,quehavia
convidadoastrêsparaumprograma,masnãoteriapagoumprogramaanteriorcom
FernandanovalordeR$20.Agraveviolência,porsuavez,foiconfiguradapelapresilha
de“bicodepato”.Depoisdesseepisódio,Fernandacontaquesaiudoestadoeatédo
país.Fluenteemitalianoegrandeentusiastadoshomensfranceses,morouporanos
96
na Europa onde fez fortuna,mas também teve seus problemas276 com a justiça. O
motivodaprisãoeraquaseomesmo:prostituição.Sóqueláeracomtodasasletrase
foiosuficienteparamandá-ladevoltanovoodabeleza277comdestinoaoBrasil.
14anossepassaramentreadatadofatoeaprisãodeFernanda.Nessesanos,
saiudopaísemudoudeestadoduasvezes.Comoseusumiço,veioacitaçãoporedital
e o prazo de prescrição parou de contar. Fernanda nunca soube de nada disso e,
naqueledia,tivequeexplicarcomcriatividadeosentidodafrase“odesconhecimento
daleiéinescusável”278.
*****
Precariedade, prostituição e migração são categorias que constroem a
experiência de travestilidade ao mesmo tempo em que participam ativamente na
dinâmica articulatória da criminalização. No caso da precariedade, a rua, as
dificuldades de inserção no mercado de trabalho formal, a raça, as drogas e a
travestilidade configuram uma trajetória. Inseridas nas dinâmicas nebulosas da
prostituição,secadoresdecabeloecremesparapentearsearticulamparaconfigurar
provadaextorsão–vindodetravestis,nãoháversãoconvincenteparaapossedetais
bens.Dessavez,éodocumento“apontandooenvolvimentodeum‘travesti’navendade
drogas”, os shorts rosa, a tornozeleira eletrônica e a rua conhecida pela prática de
prostituiçãoquesearticulamnaproduçãodacriminalização.Naaudiência,asroupas
vermelhas,asmãospremidaspelasalgemaseoapagamentodetraçosdefeminilidade
somam-seàausênciadonomesocial.
A prostituição também articula a cena de criminalização. A fragilidade dos
acordoscomosclientes,asdinâmicasdomachismoealegitimidadedadaànarrativa
276Importantepontuarquenãopretendoreduziracomplexidadedofenômenodemigraçãoparaastravestis.ComobemapontaFláviaTeixeira,“aquantidadedeálbunsepequenossouvenirestrazidoscomorecordaçãosãotestemunhosdeumavidaqueemnadaremeteàexploraçãoouaocárcere”,sendonecessárioanalisaraquestãocomacomplexidadedevida.Cf.TEIXEIRA,FláviadoBonsucesso.L’Italiadei Divieti: entre o sonho de ser europeia e o babado da prostituição. Cadernos pagu (31), julho-dezembrode2008,p.286.277Expressãoutilizadaemreferênciaaodocumentárioetnográficoqueilustraosprocessosmigratóriosde travestis no exterior, cujomovimento de deportação é denominadopelasmesmascomo“voodabeleza”.Disponívelem:https://www.youtube.com/watch?v=WDldyRFFDvo.Acessoemjan/19.278Art.21,caput,1ªpartedoCódigoPenal.
97
de cada um dos envolvidos configuram um cenário que tem na criminalização das
travestisumdesfechocerto.Éocontextoeanarrativadaprostituiçãoquedãoforça
parauma“presilhabicodepato”configurargraveviolência.Aviolência,ocorpocaído
nochão,osaltoaltoeocelularnobolsosãoapagadosecedemlugarparaasentença
“travestiscostumamfurtarpertences”.Nadelegacia,nenhumsinaldoinquéritosobreo
casodo“caraqueapanhounaAfonsoPena”.Mas,éaprostituiçãoquearticulaacenae
mudaorumodasinvestigações,direcionaosesforçospoliciaisnabuscapela“travesti
morena”eratificaaprisão.Nohospital,porsuavez,sãoasalgemas,ocorpotatuadoe
ospoliciaisnaportaqueproduzematravesticriminosa.
Junto com a criminalização vem o fluxomigratório, em que, se não for por
prostituição,acriminalizaçãoéproduzidaporteridoembora.Amigraçãoestámuito
centrada nas vigilâncias de gênero. As obrigações legais no estado de origem não
interferemnadecisãodemudançaexatamenteporquenãosãointeligíveis,palpáveise
compreensíveis. Não se configuram enquanto impedimento, apesar de sê-lo. O que
entraemcenaaquiéademoradeandamentonoprocessoemvirtudedamudança,que
nãopoucasvezes implicapedidosdeprisãoquecorremdemaneiracompletamente
desconhecidaparaastravestis.Nessescasos,bastaumabatidapolicial.
Todosesseselementos,assim,fazempartedearticulaçõesqueconstroemuma
trajetóriadecriminalizaçãodoscorposdastravestis.
2. Segundoato:aprisão
“Sabe o inferno? Então, o inferno é issodaí.” (Conversa com Fernanda sobre aprisão,cadernodecampo,2019)
Lembrodeuma ligaçãoquerecebinomeiodeumatardedequarta-feira.Do
outro lado da linha, a recém-chegada diretora de atendimento da PPJSA já se
desculpavaantesmesmodecomeçarafalar.Dissequeestavasesentindoconstrangida
comaligação,afinal,nuncahavíamosnosconhecidopessoalmente.Contudo,asituação
pediaurgência–explicou.Peloseurelato,haviachegadohápoucomaisdetrêsdiasno
98
cargodedireção,quando, aovisitaroPavilhão1279, deparou-se comumasituação
alarmante:“em10anosdeexperiêncianosistemaprisionalnuncavicoisaparecida”.
Contou,poralto,40pessoasqueestavamcommúltiplasferidaspelocorpo,amaioria
deorigemdesconhecida,sintomasclarosdesífilis,segundooseuprópriodiagnóstico.
Atéentãocontinuavasementendermuitobemomotivodaligação,mas,atenta,
aouvidizerque,peloqueviu,deveriafazeranosqueodiretoranteriornãodescialá,
“encontreipelomenosseistravestisqueestavamsemmedicaçãoparaHIV,Júlia,sem
contar as outras tantas com feridas no corpo e um rapaz com o braço quebrado”.
Contouque,logoapóssedepararcomessasituação,foisequeixarcomocorpotécnico
da penitenciária – psicólogos, assistentes sociais e enfermeira – que, com desdém,
expressaram ojeriza no trato com as pessoas presas na Ala LGBT. “Vocês estão
trabalhando aqui há anos e nunca desceramnaquele pavilhão?”, perguntoumesmo
sabendoa resposta.Ao finaldorelato, adiretorapediuencarecidamente seeunão
conseguia“comosmeus contatos”algummédicopara ir atéapenitenciária fazero
atendimentodastravestis.Afinal,misérianuncaépoucaquandofalamosdeprisão.
Poróbvio,eueraapenasumapesquisadoraejamaisconseguiriaresolveraquela
situação. Contudo, confesso que fiquei estranhamente comovida como pedido, que
tinhaumtomdedesesperoeexasperação.Aquelepedido,apesardeinusitadamente
direcionadoamim,eraumametáforaperfeitaparaoestadodefaltaquesefezpresente
emtodoomeutempodecamponacadeia.Esseestadodefaltadizdeumsentimento,
umesquecimentoou,comodizÂngelaDavis280,deumapresençaausênciadaprisão.É
umpoucosobreomedoquesurgeaonosdepararmoscomoqueacontecedentroda
cadeiaaomesmotempoqueaconsideramosumfatoinevitáveldavida.Diz,talvez,da
nossaincapacidadegramaticaldepensarmosalternativasàprisãoedarelutânciaem
enfrentararealidadequealiseesconde.Talvez,sejasobrefaltaeesquecimento.
Essapresençaausênciapodeparecerumtantoquantointensa–edefatofoi.
Essaintensidade,nãopoucasvezes,meconsumiuemeadoeceu.Talveztenhafaltado
umacertapreparaçãoparaoqueviria,mas,aomesmotempo,hojequestionosetal
279DesdeomeutempoemcampojápresencieitrêsmudançasdepavilhãodaAlaLGBT.Aprimeiravezquefui,aAlaficavanoPavilhão4,notadamentemenore,àépoca,correspondiaa35pessoaspresas.TempodepoisamudançafoiparaoPavilhão2.Aúltimamudançaocorreuemagostode2019,emqueaAla foi transferida para o Pavilhão 1 em virtude do espaço e da localização estratégica dentro dapenitenciária.280DAVIS,Ângela.Estarãoasprisõesobsoletas?RiodeJaneiro:Difel,2018,p.16.
99
preparaçãosequerexiste.Comonosprepararparaoinesperado?Oumelhordizendo,
comonosprepararparaafaltaeoesquecimento?Pois,ládentro,afaltaéumestado
constante:faltaágua,faltaluz,faltacomida,faltaremédio,faltamédico,faltacama,falta
espaço.Direito,comdmaiúsculo,nãopassanempeloportãodeentrada.
Oanoera2016e,nosúltimosperíodosdocursodedireito,visiteiopavilhãono
âmbitodeumapesquisadoNuhsobresegurançapúblicaepopulaçãoLGBT.281Apesar
de a visita ter um fim específico, fui bombardeada por inúmeras perguntas sobre
execuçãopenalporpartedaspessoaspresas.Oexcessoveioacompanhadotambémda
sensação de desamparo, afinal, esse tema, dentre tantos outros de extrema
importância,nãoéabordadonocursodeDireito.Daqueledia,lembrodocheiroeda
certezadequenãoseriamaisamesma.
DesdeentãopossodizerquefrequentoaAlaemantenhoumcertocontatocom
as travestis que lá estiveram ou que ainda estão presas. Essa frequência, ou
participação,paraaminhasorte,sedeudeformasmuitodistintasaolongodessestrês
anos. Apesar de não ter conseguido abandonar completamente o meu status de
“alguém do direito”, consegui estabelecer relações distintas e acessar realidades
diferentesnotratocomastravestis.
Noanode2018,volteiàAlacomoapoio jurídicodaONGTransvest.Naquele
momento, jádevidamentemunidadaminhacarteiradaordem,eraesperadoque já
soubesse responder as perguntas quemuitasme faziam. Ledo engano.Me restava,
apenas,anotarasdúvidasemecomprometerarespondê-lasquandodapróximavisita.
Nesseperíodo,osvoluntáriosjurídicosdaONGsomavam17pessoas,contudo,nunca
conheci nenhum deles. Lembro da angústia interminável em buscá-los para tirar
dúvidaseeventuaispedidosdeatuaçãoconjuntae recebera resposta “esse temaé
muitoimportante,jáescrevisobreisso”.Ali,meespanteicomessecertofascínioquea
experiênciadatravestilidadeexercenosditos“operadoresdodireito”.Fascínioesse
que,ancoradonoexóticoenovitimismoexacerbado,poucomobilizaosprofissionais
emuitorendeemmesasdebarouemeventosacadêmicos.
281 Mais informações sobre a pesquisa e os seus resultados podem ser obtidos no link:http://www.fafich.ufmg.br/nuh/seguranca-publica-e-populacao-lgbt/.Acessoemdez/19.
100
Contudo, esse contato solitário foi central para me aproximar da prisão. Lá
dentro, me permiti ser afetada282 e me envolvi de tal maneira que excedeu
significativamenteoâmbitodeatuaçãodaONG.Apesardesemprerecusaresselugar
de“advogada”ereforçarodepesquisadora,percebiquepoucoeraentendido.Nãopor
dificuldadesdecompreensão,massimporurgênciasqueaquelelugarimpunha.
Foisomentenofinalde2018,jáforadaONG,queconsolideiumcertolugarde
confiabilidade naquele espaço. Era novembro quando recebi uma carta de Lara
pedindoajudasobreumaaudiênciaqueteriaqueenfrentardentrodaprisão.Naquele
momentoestavaredigindoumhabeascorpus283coletivoparaimpetraremfavordas
travestisquandopediaumacolegaparaatuarnocasocomigo.Possodizerqueesse
encontro foi crucial para compreender um pouco melhor as dinâmicas de
criminalizaçãoqueoperamnaqueleespaço.
Emagostode2019,meenvolvideumaformadiferentecomaala.Fuiconvidada
para compor uma equipe que iria concorrer a um edital daOpen Society voltado a
trabalhadorassexuais.Comorequisitodoedital,eueraaúnicaintegrantedaequipe
quenãoexerciao trabalhosexual.Comasminhascolegasdegrupo, todastravestis,
conseguimos oferecer oficinas de artesanato para algumas travestis presas na ala.
Durante três meses, toda semana encontrava a equipe às 7h da manhã em uma
pastelariaemfrenteàrodoviáriadacidade.Olocal,escolhidopeloacessofacilitadoàs
rodoviasquelevavamàprisão,erafrequentadopelastravestisqueatendiamnohotel
alipróximo.Sempre,nessehorário,viaváriastravestistomandocaféesepreparando
paraodiadetrabalho.
Foisomentenessecontextoquepudeocuparolugardaescutacomastravestis
ebichas daala.O lugardaescuta, semdúvidas, foi aquelequemaismeexigiuuma
gramáticadiferentedo lugarcomumecorriqueirododireito.Foiassimquepercebi
queaescutapodeserumatocrucialna lutacontraacriminalizaçãodetravestis.A
escuta284podereposicionarodiscurso,fornecernovasnarrativasereiteraranorma
282 FAVRET-SAADA, Jeanne. 1990. “Être Affecté”. Gradhiva: Revue d’Histoire et d’Archives del’Anthropologie,8,1990,p.3-9.283Estapeçafoi feitaem2019como intuitodepedir, emcaráter limitar,aexpediçãodealvarásdesolturadastravestispresasnaPPJSA.Aaçãofoipautadanaimpossibilidadedeestimarmosonúmero“oficialdetravestispresas,ocompletodescasocomonomeeogêneroqueelasdefatoseidentificam,somada a crescente criminalização de suas experiências”. Para mais informações, ver:https://bhaz.com.br/2019/01/29/liberdade-travestis-cumprem-pena-presidios/.Acessoemnov/19.284PRADO,op.cit.,2018.
101
de umamaneira diversa. Assim, uma escuta qualificada pode ser uma ferramenta
importantenocombateàcriminalizaçãodessasexperiências.
Toda essa multiplicidade de lugares espaçados em uma temporalidade
significativa,nãopoucasvezes,mecolocavaemsituaçõesdedúvidaconstantequanto
aoconteúdoquepoderiarelatareusarnoâmbitodadissertação.Percebi,contudo,que
todosesseslugaresmedefiniamemecolocavamemumcontextoúniconalidacomo
campo. Por óbvio, não faltaram explicações para as travestis sobre o meu papel
múltiplodeadvogada, estudante,oficineira, amigae, também,pesquisadora.Muitas
vezes após tentar explicar essa situação, elasachavamgraça e perguntavam se iria
escreverumlivrosobreahistóriadecadauma.
Essesmomentos,nãonecessariamentemarcadospelatemporalidade,massim
pela formaqueeuocupavaaprisão, foramcentraisparamepermitirvermúltiplas
formas de criminalização que envolviam as travestis e incidiam diretamente no
cárcere. Desde a violência truculenta dos agentes penitenciários até as dinâmicas
nebulosasdas travestis e seusmaridos, passando pelos ritos institucionalizadosde
avaliaçãodecomportamento,aprisãofoiseconstituindo,cadavezmais,nãosomente
enquanto esse lugar da falta e do esquecimento, mas, sobretudo, como o lugar da
criminalização.
Há muitos mitos sobre a situação de encarceramento das travestis. Um diz
respeitoàviolênciaenfrentadapelas travestisdentrodocárcereeooutrosobreas
necessidades de saúde. Sãomitos permeados por um reforço à criminalização e à
patologizaçãodessasexperiênciasque,nãopoucasvezes,sãoutilizadosparalegitimar
discursos e práticas adotados pelos atores envolvidos na dinâmica prisional. Me
interessaapontaremquemedidaessesmitossãoefeitosdasnormasdegêneroequais
consequências a sua reiteração produz, pois, nesse estado permanente de falta, a
criminalizaçãoassumeoutrasfaceseacionaoutrosmecanismosparaseconcretizar.
Escolhinomeardoisdessesmecanismose,apartirderelatosdecampo,demonstrar
comoocorre sua operação, quais sejam: 1) criminalização pela hipersexualização e
violência institucional e; 2) criminalização pela patologização, ou em nome de um
cuidadocomasaúde.
102
2.1. Acriminalizaçãopelahipersexualizaçãoeviolênciainstitucional
Asaladaassistentesocialerapequena.Váriosmóveiscinzasdisputavamespaço
comumamesa,umcomputador,umacadeiraeumodorinquisitório.Namesa,odizer
“todososdireitoshumanosdevemserrespeitados”.Emcimadeumdosmóveis,no
canto direito da sala, um objeto chamava atenção. Era uma placa grande que se
equilibravaentreosobjetosqueocupavamumespaçoapertadoemcimadoarmário.
Meaproximeicomcautelaepercebique,naverdade,aplacasemjeitoeraumprêmio
que,escritoemletrasgarrafais,preconizava“MissPrisional2018”.Chegueimaisperto
aindae,naspontasdospés,percebiquelogoembaixo,emletrasmenoresetímidas,
estavaescrito“MissTrans”.
Laratemcabelospretoselisos.Semprevistosos,ocabelolongoparecedisputar
comosseus1,80mdealtura.Certavez,entreumaconversaououtra,meconfessouque
jáameaçaramcortarseuscabelosinúmerasvezes.Seriaumapena,pensei.Naqueledia
tambémmeconfessouqueéosétimoNatalquepassalongedecasa.Olheibemfundo
paraosseusolhoscastanhosefiqueiemsilêncio.
Acordeiagitadahoje.Ésempreassim:diasantesdaminhaidaàpenitenciária
meucorpopareceseprepararparaumabatalha.Podeserumpoucodosoleopânico
deficarhorasnaquelepátioquentedoPavilhão4.Hojevaiserasegundaouterceira
vezquevouporocasiãode“festa”.Confessoqueessahistóriatodamecausaarrepios...
Festanaprisão?Semprevoltoreflexivasobreorealimpactodessasiniciativasemum
local já hámuito falido.Mas esses pensamentos disputam espaço com a felicidade
aparentequeastravestisdemonstramcomanossachegada.
Dasúltimasvezesquefui,erasim:mealocavaemumcanto,emcadeirasemesas
deplástico.Nopátioextenso,dividiaespaçocomumas70pessoaspresasqueficavam
circulandoporentreas“bases”ondevoluntáriosfazemunha,secamcabeloeoutras
coisasparaastravestis.Éengraçadocomoaminhabaseéquetemamaiorfila.Dezenas
depessoasseagrupamdeformaorganizadaparapodersentarnacadeiraeconversar
comigo.Nessasfestas,chegoaconversarcom30pessoasmaisoumenos.Aconteceque
ocuparumcertolugarde“direito”mecolocavaemumcontextoespecíficonalidacom
opessoal.Decertaforma,eueraainterlocutoraqueelasmaisalmejavam,sobretudo
pelacompletaausênciadeesclarecimentosemrelaçãoàsituaçãoqueaslevouatéali.
103
Ao longo do tempo fui percebendo que ser do “apoio jurídico” restringia a minha
possibilidadedediálogocomastravestisaquestõesprocessuais,deprazoou“quando
équevousairdaquidoutora?”.Apesardasminhastentativasdeescaparumpouco
dessarelação,grandepartedastrocasquepudefazernaqueleespaçotangenciavam
esselugartortoqueocupava.
MasnãocomLara.Jáconheciasuahistóriaantesmesmodeiniciarasvisitasna
penitenciária.Contamque,quandoestavaacauteladaemumpresídionointeriordo
estado,foivítimademaustratoseagressõesfísicasporpartedoGrupodeIntervenções
Rápidas(GIR).Elajáestavasofrendocomproblemasdesaúde,semrecebertratamento
adequadoecontínuo,haviapassadoporumacirurgianotestículo.Mesmoestandoem
pós-operatórioe,claramente,impossibilitadadefazermovimentosbruscos,osagentes
a fizeram correr pelo pátio e chutaram seu testículo, que veio a ser removido
posteriormente.Larameconfessoucertavezque,naqueledia,oshomensencapuzados
“riramdemimporque souhomossexual eperguntaramseeu tinha testículoseme
chutaramnosaco”.
Nemaviolênciadoschutes,omaucheiro,aferidaabertaearecomendaçãode
repousopelomédico foramsuficientespara convencer a juíza. À Lara foi negadoo
pedidodeprisãodomiciliar, afinal “acondiçãonaqual se encontraoacusadonãoé
incompatívelcomosistemaprisional”.Odesesperoeratamanhoqueatéoseuadvogado
na peça processual disse que “em 10 anos de advocacia criminal nunca presenciou
tamanha desumanidade”. Desumano. Mal sabia Lara que aquele adjetivo iria
acompanhá-laporumbomtempo.
Coma institucionalizaçãodaAla em2013,demoroupoucoparaoespaço se
tornar popular na população carcerária, que frequentemente é orientada por seus
advogados a pedir transferência para lá, com promessas de “privilégios”. Lá não é
obrigatóriousaraquelasroupasvermelhas,ocabelopodeficarconformeavontade,
váriositenssãopermitidose,o“melhor”,ascelasnãosãotãocheias.Paraentrarno
espaço basta assinar um “termode homossexualidade” que performa, aos olhosdo
Estado,umaexperiênciaquedeveserprotegidadaviolência.
Aprimeiravezque conheciLara, eladividiaaCela6 commais trêspessoas.
Olhouparamimedissequepreferiao riscode serexpostaa todaaquelaviolência
novamentedoquepermanecernaquelelugar.Nascidaecriadanointeriordoestado,
104
órfã de pai, sua mãe dispende muito tempo cuidando da irmãmais nova e nunca
conseguiu ajudá-la. Estar longe da família, segundo Lara, era o que causava mais
sofrimentoetornavaosdiasinsuportáveis.Estarlongedafamíliaqueeradesumano.
Nos últimos dois anos, a população carcerária do Pavilhão 4 triplicou.
Superlotação,subjugaçãoeviolência.Ali,todassãobichas,gayzinhas,travestis,bofese
homens do seguro285 que se misturam e conformaram um aglomerado de pessoas
inclassificáveis.Aconteceque,deunstemposparacá,astravestiscomeçaramaocupar
abasedahierarquiaeperderamespaçoemumlugarqueoriginalmentefoipensado
“para”elas.
Lembro de uma das vezes em que Lara me contou que a situação ficou
alarmante.Emdeterminadomomento,astravestisrepresentavam12das85pessoas
queestavampresasnaAla.Oanoera2016eelaorganizouumareuniãocomtodasas
travestisebichasafeminadasnopátiodapenitenciária. Juntas,demandaramparao
diretorumtrabalhoexterno286.Atéaquelemomento,motivosnãofaltavamparanegar
essapossibilidadederemiçãoparaelas.Asjustificativaseramdetodasorte,desdeo
impedimento do trânsito nas imediações para não chamarem muita atenção, até
pressuposiçãodequenãodariamcontadotrabalho,porseremfrágeisouatémesmo
emvirtudedosilicone.Astravestiseramsempreasúltimasdafila.Emdecorrência,tal
populaçãonãoangarianenhumtipoderemiçãodepena,pelocontrário;issoeutilizado
comomaisumaformadeaspenalizarem.
13réus.Larafoicondenadaa12anos,5mesese10diasdereclusãoportráfico
dedrogaseassociaçãoparaotráfico.Naépocadaprisão,Laraestavacom22anos.A
decisãodajuízaesbanja187páginase,porincrívelquepareça,poucoseexplicasobre
ascircunstânciaseparticipaçãodeLara.
Dos 12 anos de prisão, Lara já cumpriu sete. Dos sete, apenas ummês em
liberdade. O motivo? Aparentemente, Lara tem se envolvido em muitos atos
considerados “graves” dentro do estabelecimento prisional e, com isso, tem
incessantemente o seu regime regredido. A cada falta grave atribuída a Lara,
interrompe-se por um ano a contagem para progressão de regime. Pensando com
285Oseguroéo localonde ficam localizadaspartedapopulaçãocarceráriamaisestigmatizadasporteremcometidoscrimessexuais.286Faxina,ounajardinagem.
105
ViannaeLowenkron287,adinâmicadaprisãocompõemaisumcenárioondeaspráticas
generificadasatravessameproduzemanossavidasocial;adiferença,talvez,residano
fatodequeépelasprisõesqueessaspráticassetornamviáveisecompreensíveis.E
todoessetrabalhosedesenvolveapartirdaproduçãodecategoriasjurídicasoficiais,
permeadaspormodosderegulaçãoquenocasodadinâmicaprisional,ganhaonome
de“AudiênciadoConselhoDisciplinar”288.
Na iminência de aplicação da sua terceira falta grave, Larame pediu ajuda.
Estava desesperada pois teria uma Audiência do Conselho Disciplinar em algumas
semanas e, caso fosse condenada, teria que esperarmais um ano para sair. Acabei
respondendoaopedidodaLarae,apesardasminhaslimitações,concordeiemajudá-
la.
FoiaíqueLarameconfessouquetinhatidomuitoproblemascomumagente
penitenciário.Tudohavia começado, segundoconta,háalgunsanos,quandoestava
trabalhandonalavanderia.Nessedia,oagenteteriapassadoamãoemsuabundae
proferido palavras assediadoras. Esse fato teria culminado em uma espécie de
perseguição,queteriadadoazoaumasériedeepisódiosdamesmanatureza–abuso
deautoridadeeassédiosexual.
Tempos depois, Lara conta que presenciou esse mesmo agente exigir de
Fernanda que levantasse a blusa e lhemostrasse os seios, pois só dessa forma ela
conseguiriaopãoquelhehaviapedido–aoqueestaobedeceu.Porissoficouindignada
quandoviuessemesmoagentedestruindoseusartesanatosdeformaarbitrária.Lara
estavanopátioedeláimploravaaoagentequeparasse,aoquefoirespondida“calaa
boca,traveco”.Sobressaltada,teriaditoque“possosertraveco,masopiorévocêque
pedepraveropeitodetraveco”,emclaraalusãoaoepisódioocorridocomaamiga.
287 VIANNA, Adriana; LOWENKRON, Laura. O duplo fazer do gênero e do Estado: interconexões,materialidadeselinguagens.CadernosPagu(51),2017.288No curso da execuçãopenal, a audiência do conselho disciplinar é realizada no estabelecimentoprisionalondeapessoacumprepena.Afinalidadedaaudiênciaéaapuraçãodeeventualfaltacometidaaolongodaexecuçãodapena.Emlinhasgerais,realiza-sealavraturadaocorrênciacomaconduçãodopreso ao chefe de plantão ou supervisor, o qual comunicará o fato ao diretor (ou gerente) doestabelecimentopenal.Emseguida,esteinstauraoPADmedianteatoadministrativo(normalmenteumaportaria) que contenha a descrição fática pormenorizada e encaminha o documento ao ConselhoDisciplinar. O colegiado procede à apuração da conduta, investigando a veracidade dos fatos epropiciandoaproduçãodeprovasdetodosostiposemaudiência.Apósessemomentoumcorpode3juradosemiteparecernãovinculantequantoàexistênciada falta, àautoria,à classificaçãoem leve,médiaougravee,enfim,sugereassançõesaseremaplicadas.
106
Tal fatoteriaculminadocomoagentedizendoque“nãodánadapramim”e
determinandooencaminhamentodeLaraparaopátio,composteriorrecolhimento
delaemceladesegurança(isolado),ondeteriapermanecidopordoisdias.Noisolado,
teriasidoprivadadealimentaçãoeatacadacomgásdepimenta.
Para a minha surpresa, os documentos elaborados pelo estabelecimento
prisional para julgar o comportamento de Lara diziam apenas que, “ao realizar o
procedimento de revista geral minuciosa no pavilhão 04, na cela 01, em que está
recolhidoopreso supracitado,nomomentoemqueestávamos retirandoo excessode
pertencesematériasnãopermitidasqueestavamdentrodacela,opresogritoudopátio,
difamando-meecaluniando-me,atravésdosseguintesdizeres‘osóR.émachãoaquina
cadeiaenaruaébemdiferente[...]éhomofóbicoaqui,masnaruaéumamaricona’”.
Restavaapenasaaudiência internado conselhodisciplinarpara corroborarounão
comaversão“oficial”dosfatose,assim,imputaraLaraocometimentodefaltagrave.
Aaudiênciaestavamarcadaparaas9hdamanhã.Chegueicomantecedênciae
mesmoassimtivequeaguardar1h30deatraso.Aqueledianãoeradiade festa.No
primeiroportãomepedemocelular.Nosegundo,umagentepegaminhaidentificação.
Àminhaesquerda,umasalaamplaabrigaoparlatório,obodyscan,assalasderevista
íntimaeosarmáriosdos funcionários.Umpoucomaisà frente,sou interpeladapor
umaagentequealertaque,seeucontinuassecomabolsa,teriaqueserrevistada.Não
meimportomuitocomoalertaepeçoparaconversarsozinhacomLara.Naqueledia
elaestavamuitomal,febrealta,muitatosseedoresnocorpo.Confessou-melogoque
oagenteteriaidoatéasuacelaontemeditoque“estavadoidoparaaaudiênciachegar
porquevoufodercomvocê”.Laradissequenaúltimasemanatentaramdissuadi-la
paradispensaraminhaajudacomoadvogada,alegandoque“oresultadoseriamelhor
semaminhapresença”.Convicta,Laranãohesitou.Dissequelogoapósdessefatoa
minhacartachegoue,comisso,tevemaiscertezaquenãoestavasó.Medespeçode
Laramomentaneamente,olhofirmenosseusolhosetentopassarsegurança.Vaidar
certo.Temquedar.
Umagentemeacompanhaatéolocalondeaaudiênciairiaacontecer.Aindano
pátio,umagradeenormeaprisionaohorizonteeenquadrameucampodevisão.Do
outrolado,umcorredorextenso,acéuaberto,écruzadopordoisoutroscorredores.
107
Daquioespaçonãoparecetãohorripilante,hávegetaçãoealgunsgatosecachorros
abandonadosdãovidaaolugar.Quantaironia...Osanimaisvivemsoltosafinal.
Apesardosalertas,nãotivequepassarpormaisnenhumarevista.Aausência
deregrasdavalugaràexceção;invençãopura,casoacaso.Subiummorroextensobem
àdireitadopátio,emcéuaberto,eosolqueimavaforte.Nocaminhodavapraseouvir
umavoz firmevindadopavilhão femininoqueecoava:“ôdona,vaideixaroprédio
morrerdesede?”289.
Meudestinofinaleraumgalpãoamploqueficavanofinaldasubida.Oespaço
era claramente improvisado. Parecia uma quadra de esportes que há muito não é
utilizada.No fundo,umaimensidãodecadeirasemóveisvelhosocupamespaço.No
outroextremo,cincomesasdiferentesposicionadasladoalado,emumareprodução
claradeumasaladeaudiência.Naextremadireita,umagenteprisional,trêsjurados,o
diretoreaescrivã.Nocentrodaquelacena,Larasentadaemumacadeiradeplástico
branca,devidamentevestidadevermelhoealgemadanasmãosepés.Ospéscalçados
comumchinelohavaianasnovoecolorido,presentedeFernanda.Sentei-menocanto
esquerdoeaguardeiatentaodesenrolardaaudiência.
Odiretordopresídioabreostrabalhoslendoasdocumentaçõespresentesno
procedimento administrativo aberto contra Lara: oitiva, declaração do agente e
comunicado interno.Nofinaldaleitura,perguntaàLaraseelaconfirmaoocorrido.
Nessahora,Lara tomaapalavraemostramuitobemoque tempassado ládentro.
Algumas perguntas são feitas e Lara se sai cada vez melhor. Tudo estava sendo
registradoporumamulhermunidadeumcadernopautadoeumacanetaBic.
Chegando a minha vez, li as quatro páginas de defesa como se minha vida
dependessedaquilo.Apesardofoco,pudeperceberomovimentododiretor,quepegou
umafolhareciclada,embranco,erasgouemtrêspedaços.Cadapedaçofoientregueas
pessoasqueiriamvotarpelovereditodeLara.
Minutosdepois,emsilêncio,odiretorrecolheospapéise,comoresultadoem
mãos,nãoexpressanada.Oplacar?2x1pelacondenaçãodeLara.Ela,emdesesperos
contínuos,seresignaemdizeremaltoebomsom:“eupossoestarpresa,maseunão
souburra”.
289Nestediafaltavaáguaemtodaapenitenciária.
108
Devoltaàsaladaassistentesocial,naspontasdopévoltoomeuolharpara
aquele objeto. Na base da placa sem jeito do prêmio que preconizava “Miss Trans
2018”,encontroumpedaçodefitacrepeescritoemlápis:“LucasAlves”.Eraonomede
Lara.Naquelediafuiemborapequena.
Apósseisanosesetemeses,Larasaiudaprisão.Lembrodeencontrá-laamenos
decincodiasemliberdadeeoseurelatodosconflitosconstantescomosfamiliares.
Eladisseque,por terpassadomuito temponaprisão, totalmentevigiadae comos
passoscontrolados,haviadesenvolvido,aquifora,umaintolerânciacontraoexcesso
de regramento.Dentro da prisão, Larame relatou aquilo que Foucault já apontava
sobreaprisãoenquantouma“regulamentaçãofelizdoespaço:oolhardovigiapodee
devetudover.Umaregulamentaçãodotempo,cujautilizaçãoéfixadaacadahora.Uma
regulamentaçãodosgestos,dasatitudes,dosmínimosmovimentosdocorpo”290.Pelo
menosagora,avigilânciavinhadesuamãe.
Fatoéquenãoforampoucasasvezesemqueastravestismecontavamsobrea
violênciadosagentespenitenciáriosesobrecomoessaviolênciaassumiaafacedeuma
faltadisciplinar291passíveldesanção.Fuipercebendo,assim,queoproblemamaiorda
criminalização é quando ela é produzida por atos, que também são discursos
institucionais292,quedesencadeiamumasériedeatosinjustosque,emúltimaanálise,
prolongamotempodeencarceramentodastravestis.
**
Duranteasminhasúltimasvisitasnaala,Yaraseapresentavadeformatímida.
Aprimeiravezqueavi,lembrodefitaroseucorpocobertocomtatuagensdelinhas
finas; todas, segundo ela, feitas lá dentro pelo seu companheiro de cela. Feitas,
meticulosamente,comatintapretaquesaidacapademarmita,quandooalumínioé
expostoaofogo.Depoucaestatura,pelemuitobrancaepoucoscabelospretos,Yara
conversavacomigocomavozbaixaeamãosempretentandotamparaboca–comose
estivessedesconfortáveleprecisasseesconderalgumacoisa.
290FOUCAULT,M.Gerirosilegalismos.In:PolDroit,Roger(org.).Foucaultentrevistas.SaoPaulo:Graal,2006,p.44.291Previstasnosart.635a643doRegulamentoeNormasdeProcedimentosdoSistemaPrisionaldeMinasGerais(ReNP).292PRADO,op.cit.,2018.
109
Emumamadrugadadesetembrode2015,Yara,comosseus20para21anos,
forapresapelaprimeiraveznoestadodoRioGrandedoNorte.Quandoelaresolveu
compartilharcomigoasuacapivara293,definiuasituaçãocomo“confusãocomcliente”.
Diriaqueexpressãomelhornãohá.Nosautosdoprocessoavítimaalegoutersidoalvo
deumgrupodetravestis,que“começaramaabordarele;queofereciamprogramaeque
vieramparacimadele”.Apósessemomento,alegaqueessemesmogrupopegouoseu
celular, ocasião em que “saiu correndo com a carteira e pediu ajuda a seu pai”.Os
policiaisaparentementenãopouparamesforçosnabuscapelastravestis,sendo“quea
polícia colocou uma dessas travestis na viatura e que encontraram vários grupos de
travestismasnãoeramosassaltantes;quecontinuaramadiligênciaeelereconheceu3
travestisqueparticiparamdos fatos [...];quesempreviano localalgunstravestismas
nessediaéqueviutantas;quenãoconhecianenhumadasacusadas;quejánaviaturaas
acusadasdisseramqueeledepoentetinhafeitoumprogramaenãotinhapago;quenão
foiissoqueocorreuenãoquisfazerqualquerprograma”.ParamásortedeYara,elafazia
partedesse“grupodetravestis”.Forapresaesentenciadanosartigos157,§2º,incisos
Ie IIdoCódigoPenal,enoartigo244-BdoEstatutodaCriançaedoAdolescente,a
seremcumpridosinicialmentenoregimesemiaberto.
Comopartedoscritériosdesseregime,Yaradeveriadormirnoestabelecimento
prisional,podendosairdelánapartedamanhãcomretornomarcadoparaofinalde
tarde.Contudo,mecontouqueessapenitenciáriadoRioGrandedoNorteera“sóde
homem”enão tinhaprojeto,ou seja, eraobrigadaa ficarno seguro, epor issonão
conseguiadormirdireito.Contou,assim,quecertanoitequandoretornava,sedeparou
com “aquele tanto de homem” na fila pra entrar. Logo lembrou das noites não
dormidas, do incômodo atroz e simplesmente não retornoumais. Fora dada como
fugitiva,mudoudeestadoe, trêsanosdepois,emMinasGerais,quandosaíadeum
motel,seviu,novamente,emumaconfusãocomcliente.Aconfusãotinhasidopequena,
mas,comachegadadaPolícia,todosqueestavamporalitiveramquedaronomepara
aelaboraçãodoBoletimdeOcorrência.Pronto!Apósconferirnosistema,Yara foia
únicaquesaiudeláalgemada.
293Termoêmicoquesignificaocrime,ouotipopenal,peloqualapessoaestavapresa.
110
YaraficoupresanopresídiodaGameleira,responsávelporreceberospresos
provisóriosnoestado.Ládentro, foi expostaa todo tipodeviolênciaporpartedos
agentespenitenciários.Amaioremaisescabrosadessasforaodiaquealgunsagentes
alevaramemumterrenobaldioeaobrigaramafazersexooralcomeles.Filmaram,
debocharamechamaram-nadeatrizpornô.Logodepoisdesseepisódio,nãotardou
parachegaràAlaLGBT.Sónãopoderiacontarque,chegandoporali,seriaobrigadaa
retirar a prótese dentária e os cabelos. No primeiro dia em que a conheci, ela se
resignouaperguntarunicamentecomofaziaparaconseguirtudoissodevolta.
Algumtempodepois,volteiàAlaetivemaisumdaquelesmomentoscomYara.
Ela chegou pra mim naquele dia com o rosto inchado, o supercílio cortado e a
respiraçãoofegante.Esperouosagentesseafastarem,mepegoupelamãoemelevou
atéumcantodasalaondeestávamosfazendoasoficinasdeartesanato.Contou,assim,
queduranteoprocedimentodechamada,demoroualgunsinstantespararespondero
seunomee,parasuasurpresa,asconsequênciasdessademoraforamterríveis.Conta
que,porserecusaradescerdacama,umdosagentesentrounasuacelaapegando
peloscabelosedisse“temquesairdaíseuveadosafado”.
Nessa hora, Yara, confessou-me que xingou de volta os agentes. Diante da
resistência, os agentes a pegaram pelo pescoço e a levaram até a entrada da
penitenciária. Em uma sala feita pra isso, Yara ficou premida na bailarina294 até o
diretorapareceredizer“trazesseveadoaquiqueeuvouensinarelearespeitaros
meusagentes”.
Lá dentro foi espancada. Colocaram seu corpo virado para a parede e a
chutaramcompoucaforça–osuficienteparanãodeixarmarcas.Recebeuumtapana
partedetrásdacabeça,que,pelaproximidadedaparede,fezcomquebatesseorosto
comforça.Odiretor,aopegá-lapelagoladablusavermelha,disse“próximavezque
vocêmerespondereudeixovocêdesmaiadaoumorta”.OpreçodosilênciodeYarafoi
baixo:uma lataderefrigerante,um iogurteeumacoxinha. Issoeavozecoandoao
fundo“palavradepresonãovalenada”.
Nodiaemqueaencontrei,fiqueiestarrecidacomorelato,sobretudoquando
medissequeaqueleepisódiohavialherendidoumafaltagravequeseriainvestigada
294Referênciaàbarrademetal,afixadanaentradadapenitenciária,emquesealgemamaspessoaspresas.
111
em uma Audiência do Conselho Disciplinar. Tentei acalmá-la dizendo que,
independentedoresultadodaaudiência,cabiaaojuízodaexecuçãoreconhecerounão
afalta.Ledoengano.Mecomprometiadarumalidanosdocumentosproduzidospela
unidadeemrelaçãoaofatoefiqueiestarrecidacomanarrativacriada.
Ocomunicado interno,escritoemprimeirapessoapeloagentepenitenciário,
diziaquenadata“DEIORDEMparaqueospresossevestissemecomparecessemàporta
dacelaparaserfeitaconferênciadefísicaenessemomentoopresosupracitadorecusou
a cumprir a ordem, se apresentando a porta da cela apenas de cueca e se recusou a
responderdeformacorreta,falandoseunomeeINFOPENdeformaanãoentenderoque
ele estava falando [...] chamei o preso novamente e lhe perguntei porque estava
reclamando da conferência e omesmome respondeu ‘não sou obrigado a responder
chamada nenhumanão, bebe’. Diante dissoORDENEI que o presome entregasse seu
uniforme e procedesse à revista geral, pois ele seria encaminhado à presença da
CoordenaçãodeSegurança,poisseriacomunicadoporterdesrespeitadoàordemquelhe
foidada.Opresosaiunormalmentedacela,porémquandoeuoestavaconduzindodo
pavilhãoparaaCoordenaçãodeSegurança,opresodificultouàcondução,serecusando
a ser conduzido de forma correta e por quatro vezes dei ordem para que o preso
permanecessedentrodoordenadoeomesmoserecusou,entãofoinecessárioconduziro
presoàforça,eotrouxeàportariatrês”.
Oqueseseguiudepoisdessa“conduçãoàforça”sófoimencionadonoboletim
deocorrência,feitopelodiretordapenitenciária,que,“aoperceberoocorridoodiretor
de segurança que presenciou a indisciplina do preso determinou que o detento fosse
conduzidoparaasalapeloagenteequandoopresoadentrouasaladodireitoele se
mostroumuitonervosoeagitado, proferindoxingamentos,nestemomento foidadaa
ordemparaqueopresosevirassedefrenteparaaparede,opresoacatouaordemporém
porvontadeprópriaaosevirardefrenteparaaparedeopresobateuacabeçacontraa
paredefazendoumcortenosupercíliodireito.Diantedisso,foinecessárioconteropreso
paraqueeleparassedeseautoflagelar”.
Autoflagelo.Na audiência de justificativa, para homologação ou não da falta,
Yara movimentava a cabeça de um lado para o outro durante toda a leitura do
comunicado.Ajuíza,assim,perguntou“oquefoiqueaconteceunessedia,então?”.Yara
disse que tinha sido tratada de formamuito agressiva nahorada chamada e, após
112
demonstrardescontentamento,oagenteateriarespondido“seeuquiserquevocêfaça
oprocedimento100vezes,vocêvaiprecisarfazer100vezes,seuveadosafado”.Em
juízo,Yaraconfessouque,defato,haviaperdidoanoçãoexingadooagentediantede
tantocomportamentohostil.Completouorelatoemjuízoedisseque“odiretorme
pegoupelagoladacamisa,mejogoudentrodasalaebateuminhacabeçanaparede.
Logodepoisdisso,aoverosangue,mepegoupelagolae,nocaminhoparaaenfermaria
dissequeerapraelafalarquetinhacaídodacama”.
Resignada,completoudizendoque“aúnicaprovaqueeutenhoépelasimagens
de segurança”. Após esse relato, a juíza volta-se para a Promotoria e a Defensoria
Públicaeindaga“perguntas?”.Eassimseencerraaaudiência.Nasentença,nenhuma
mençãoàtruculênciaeàviolênciadosagentes.Senãofosseoseurelatonaqueledia
atípicoeagravaçãodaaudiência,aquelefatonuncairiaexistir.Yarateveafaltarelativa
à fuga homologada em juízo. Agora, teria que ficar mais um ano presa sem a
possibilidadedeessetempocontarparaconseguirprogredirderegime.
E é um pouco por isso que faço coro a outros pesquisadores295 que têm se
debruçadosobreasituaçãodepessoastransetravestispresasaoafirmarqueomaior
responsávelpelaviolênciaqueaconteceládentrosãoosprópriosagentesdoestado.
Essaviolênciapodeassumirafacedeumacriminalizaçãoedeumabanalizaçãodavida,
aquiloquefazdacadeiaolugarque“ofilhochoraeamãenãoouve”.
Essepontoserelacionacomanecessidadedeabandonarmosodiscursodeque
astravestissãoasquemaissofremviolênciadentrodaprisão296.Defato,nãosetrata
dequalificarmosdessa forma,postoquetodosestãoexpostosàviolênciadaprisão,
mas sim procurarmos compreender os diferentes modos, contextos e atores
envolvidosnessasviolências,bemcomoasconsequênciasadvindasdisso.
Aquemeinteressa,oreforçodoargumentodatravesticomoamaiorvítimade
violênciaserelacionadiretamentecomacrençadequeoseumaioralgozseriamos
outrospresosdeseuconvívio.Essaconcepção,predominantenanarrativadoEstadoe
do Judiciário, mobiliza muito as ações empreendidas dentro da Ala e serve como
verdadeiracortinadefumaçaparacompreendermosquegrandepartedaviolênciae
295SANDER,Vanessa;CAVALCANTI,Céu.Contágios, fronteiraseencontros:articulandoanalíticasdacisgeneridadeporentretramasetnográficaseminvestigaçõessobreprisão.CadernosPagu(55),2019;FERREIRA,op.cit.,2018;LAMOUNIER,op.cit.296LAMOUNIER,op.cit.
113
criminalização a que estão expostas vem dos próprios atores prisionais – agentes,
diretores,técnicos.
Essaimpossibilidadedenomearmoscorretamenteassituaçõesdeviolênciaque
estão expostas é sustentada pelas normas degênero e o racismoque não somente
reiteraaconcepçãodoshomenspresoscomopotenciaisestupradores,comotambém
hipersexualiza as travestis. Essa hipersexualização das travestis, por sua vez, pode
assumirváriasfacetas.
Lembrodecertavez,porexemplo,que,porocasiãodeumaoficinaagendada,a
diretoradapenitenciariameligou.Commuitotato,fezquestãodedizer“agestãode
segurançaanterioreramais liberalcomisso,masonossodiretordesegurançanão
querdeterminadasroupasquepodemchamaratençãodoshomensdaqui.Entãoeu
queria te pedir para dar um toque nas meninas para evitarem roupas decotadas,
transparências emuito justas que possam chamar atenção”. Asmeninas a quemse
referiaeramasminhascolegasdeoficinas,queofertavamasatividadesdeartesanato
dentrodaAlajuntocomigo.Ora,emnenhummomentoelamepediuparamaneirarno
meudecoteouvestimenta.
Carla, certavez,me relatouospercalçosqueestavaenfrentandono trabalho
externo na penitenciária. Embora a poucaoferta e a precariedade desses trabalhos
façampartedocontextogeraldaprisão,essasquestõessãomobilizadasdemaneira
distintanocasodastravestis.Nãopoucasvezes,oargumentoutilizadoparapreteri-las
nessasvagasgiraemtornodotemorqueameracirculaçãodeseuscorpospodecausar
noespaçoprisional.Essetemor,paraLamounier297,dizmuitosobreumaexpressãode
corpo pautada pela desobediência às regras do gênero, que, quando presas,
desestabilizamosistemabináriodeorganizaçãodasprisões.
Assim, múltiplos discursos e práticas são acionados para evitar essa
desestabilizaçãocausadapelomerocirculardeseuscorposnoespaçoprisional.Ora
porchamarematençãodemais,oraporseremfrágeisepoucoaptasaotrabalho,ora
portemordecomplicaçõesemvirtudedosilicone,astravestissãosistematicamente
colocadascomoúltimasnafilaparaseconseguirumtrabalhoexterno.
297Ibid.,p.77.
114
Presadesde2013,Carla jáeraconhecidadetodosporaliesabiamuitobem
comotransitarporaqueleespaçoeencontrarbrechasdenegociaçõespossíveis.Foi
assimque,logoapósterprogredidoparaoregimesemiaberto,conseguiuumtrabalho
externocapinandooterrenoemvoltadapenitenciária.Otrabalhoerafeitocommais
trêscolegasdepavilhãoquefaziampartedoseuconvívioporanos.Contudo,naquele
dia,merelatouumincômodograndecomosagentesquefaziamavigiadotrabalho.
Disseque,porser travesti,osagentestemiamqueela fosseviolentadasexualmente
pelos colegas de trabalho, “você acha que aquelesmeninos vão fazer alguma coisa
comigo? Não vão. Eles mesmo falaram. Conheço todos há anos. Mas eles já estão
achandoruimdosagentesficarememcimaotempotodo”.
Maisumavez,ahipersexualizaçãoseconfiguravaenquantoriscoiminentede
violênciaquetensionavaofrágilequilíbriodacadeia.Essaposiçãoduplaocupadapela
travestilidade,oraobjetodetutela,oraobjetodeviolação,éumaconstantenavidadas
travestispresasedizmuito sobreamanutençãodopodernaqueleespaçoepouco
sobreagarantiadesegurança.
Por outro lado, essa familiaridade que Carla reivindicava com os colegas de
trabalhodiziamuitomaisdaexistênciadelaço,sociabilidadeaafetodoquequalquer
outra coisa. Contudo, para conseguirmos ver dessa forma, me parece necessário
deslocarmosoolhareosesforçosinstitucionais.Implica,sobretudo,pensarmosmeios
eficazesdeapuraçãodedenúnciasdeabusoscometidospelosprópriosagentes.
DiferentedocasodeLara,osagentesresponsáveispeloepisódioenvolvendo
Yara faziampartedo“GrupodeIntervençãoRápida”,oGIR.Oquetornaorelatode
Yaramaisfrágil,talvez,sejaofatodequeosagentesresponsáveispelosprocedimentos
daAlaentramláencapuzados,semafaceexpostaedesprovidosdequalquervestígio
que possa identificá-los. O grupo fora criadopara agir em intervenções táticas nos
pavilhõesde“altapericulosidade”comvistasaconterrebeliões.Contudo,nodiaadia
aleatóriodacadeia,ogrupoéescaladoparalidarcomosprocedimentosrotineirosdo
pavilhãoLGBT.
Lembroqueemumadasvisitaspudepresenciarumpoucocomoogrupoopera.
“Umpouco”,poisacompanheiaaçãodoladodeforadopavilhão,jáquenãopodemos,
nunca,ficarládentroquandoogrupoentra.Estacionaramnaportacincoaseispessoas
encapuzadas,trajandoroupamilitarverdeescuro,botas,capacete,armasdeborracha
115
namão,escudoeumcachorronacoleira.Antesdeentrar,bateramocadeadonoportão
quatrovezes–sempre,quatrovezes.Osomdasbatidasecooudentrodopavilhãoque
rapidamentefoitomadoporumsilênciosepulcral.
Tempos depois da entrada do grupo, duas travestis, Sara e Vanessa, são
arrastadasparaforadopavilhão.Sara,tãopequena,pareciadesapareceraosecurvar
totalmenteprabaixo,comosbraçosserradosatrás.Osolhos,quandocruzavamcom
osnossos,estavamtotalmentevermelhos–depoismecontouqueerareaçãodogásde
pimentaquehaviasidojogadonasuacela.Vanessa,porsuavez,nãoserendeufácil.A
visaindoaosgritos,olhandoparanósedizendo“távendooquefazemcomagente
aqui?”.Foracarregadaatéescapardenossohorizonte,mas,insolente,fezopercurso
da formamais lentapossível.Gritavae se jogavano chão.Recusava, assim, terque
abaixaracabeça,comoseaquilodependessesuavida.
NaquelediacomeceiaentenderumpoucoadinâmicadaviolêncianaAla–me
localizarentreaquiloquepresenciava,oqueouvia,eoqueeramobilizadopelosatores
institucionais.Esseinterstíciomepermitiuperceberalgunsmodosdefuncionamento,
embatedenarrativaseoimpactodissonareiteraçãodacriminalizaçãodastravestis.
2.2. Acriminalizaçãopelapatologização
Fernandanãotemumahistóriapequena.Nordestina,nasceuemumacasacom
quatroirmãos.Teveumainfânciatranquila,apesardasreprimendasdopaiaovê-la,
aindacriança,comatoalhadebanhoamarradanacabeçaperformandolongoscabelos.
Saiudecasacom18anosparamorarnacapitaldoseuestadoe,11mesesdepois,partiu
paraoRiodeJaneirojuntocomoutrasamigas.
Quandofez34anos,foipresaemBeloHorizonte,acusadadetercometidoroubo
majoradocomafatídicapresilhabicodepatocontraumclientenoanode2002emseu
estadonatal.Sófuiconhecê-lapessoalmentenacadeia,quandojáestavahámaisou
menosumanoemeiopresa,semsaberabsolutamentenadasobreoquealevaraaté
ali.Digo“pessoalmente”porquejáhaviaouvidofalardelaemoutroscontextos,devido
à sua fama enquanto alguém que “arrumamuita confusão lá dentro”. Na verdade,
Fernandasentiaaangústiadafaltadeinformaçõesnapele.Umanoeseismesesassim,
semnotícias–esperandopassarumtempoquenuncapassa.
116
Depoisdeconseguiroseualvará,mantivemosumarelaçãopróxima; talveza
prisãotenhanosunidodeumaformacuriosa.Emumaquarta-feiraqualquer,Fernanda
me ligaepergunta sepossopassarna casadela,mas “sónão reparanãoqueeu tô
clareando”.Naquele dia, ela havia recebido uma intimação para comparecer a uma
audiência do Juizado Especial Criminal da cidade de Vespasiano – local onde está
localizadooestabelecimentoprisionalquecumpriupartedapena.
Fernandacontaqueficoutempos“foradesi”naprisão.Muitosfalaramqueela
tiravaaroupaemmomentosinadequados,brigavacomtodomundoetinhacarade
poucosamigos.Umdia,aindapresa,quandoestavapiordoqueocostume,pediupara
iràenfermaria.Deprontoteveoseupedidonegadoe,apósinsistir,ouviudeumcerto
agente“vocêtemquemorrerveado”.
Acontecequeosdesdobramentosdessefatoforaminesperados.Fernandateria
que comparecer em juízo para responder pelo delito de ameaça cuja vítima era
exatamenteesseagentepenitenciário.NoBoletimdeOcorrência,ohistórico,escrito
emtrêslinhas,diziaque“oenvolvido1ameaçouoenvolvido2comosseguintesdizeres
‘depoisvocêvaiaparecermortoenãosabeporque’depoisdeameaçaroenvolvido2,o
envolvido1retiroutodaaroupa,ficoutotalmentepelado,eproferiupalavrasdebaixo
calãocontraoenvolvido2”.
Nadenúncia,adatade31deoutubrode2017marcaodiaemque“naUnidade
Prisional,odenunciadoameaçou,porpalavras,causarmalinjustoegraveàvítima[...],
agentepenitenciário”.Deprontonãoestava acreditandonas circunstâncias trágicas
daquela cena. Emqual contextopossívelum agente penitenciário,munidode força
institucionalesimbólica,sesentelegitimadoparaimputaraalguémsobsuacustódia
odelitodeameaça?Detentordomonopóliodaviolênciaemumaterrasemleisesentiu
injustiçado.
MeesforceiparatentarexplicaraFernandaasituação,noqueconsistiaofatoe
sobrequalepisódioelateriaqueresponderemjuízo.Indignada,encontrouresposta
paraasuaprópriaindagaçãoperplexa,“masporqueelesfazemissocomagente?São
mausmesmoné”.Fernandadissequelembravapoucodaqueledia,lembravapoucoda
maioriadosdias,naverdade,poispassavaboapartedotemposoboefeitoderemédios.
Segundocontou,emmenosdeumasemanaqueestavapresafoiencaminhada
paraumCentrodeReferênciadeAssistênciaSocial(CRAS)próximodapenitenciária.
117
Lá,foirecebidaporummédico,umaúnicavez,que,compoucasperguntas,receitou
um certo remédio sem pestanejar. Tratava-se do denominado Levozine, um
antipsicóticoindicadoparacasosmuitoespecíficosdepessoasquetêmodiagnóstico
dadoençaeque,poróbvio,apresentainúmerosefeitoscolaterais.
DeacordocomasespecificaçõestécnicasdoLevozine,estemedicamento“está
indicadonos casos emquehajanecessidadedeumaaçãoneuroléptica e sedativa em
pacientespsicóticosenaterapiaadjuvanteparaoalíviododelírio,agitação,inquietação,
confusão, associados com a dor em pacientes terminais”. De acordo com Fernanda,
“gritar”e“tirouaroupa”sãocomportamentosquelhesãoabsolutamenteestranhos,
dosquaisnãoconsegueselembrarouexplicarasrazões.
Pouco a pouco os episódios envolvendo as confusões vivenciadas no seu
períododocárcereforamganhandooutrasinterpretações.Lembraquenãoeraaúnica
do pavilhão a fazer uso prolongado e forçado de medicamentos psiquiátricos no
períododerecolhimento,masdurantetodootempoqueestevepresa,talveztenhasido
aúnicaaapresentarsintomasdeconfusãomental,alucinaçãoauditiva,excessodesono
e tontura. Fato é que Fernanda não possuía o diagnóstico de quadro psicótico que
ensejasseousodestamedicação,oquetrouxe,quandodeseuusoindiscriminado,uma
sériedeperturbaçõescomportamentaisementais.Aomesmotempo,parardetomar
oremédiotambémnãoeraumapossibilidade,poisquemserecusassepoderiareceber
umaadvertênciadosagentes.Atutelasobreoseucorpo,agora,erafeitademaneira
compulsóriaetinhaumquêdecontençãoquímica.Apatologizaçãotinha,finalmente,
encontradomeioseficazesdefazervalernaqueleespaço.
Peloprocesso,Fernandajáhaviacomparecidonaaudiênciapreliminar,masnão
lembravadessefato.Adatacorrespondiaaotempoqueestavapresa,masapesarda
suaassinaturanodocumento,juroudepéjuntoquenuncaviuacaradojuiz.
Agorajáestavaemliberdadeenãoiriasozinhaparaaaudiência.OFórumda
cidadedeVespasianoficaemumaruaresidencialesuaarquitetura familiar lembra
umacasadointeriordeMinas.Fizemosotrajetodecarro,ouvindomúsicaefingindo
que a vida não tinha um pouco de trágico. Chegando lá, uma grande árvore de
jabuticabaocupapartedalateraldoFórum.AssimqueFernandafitaaárvore,lembra
deumdiaquechegouairnaquelelocal,disse“foiaquimesmo,lembroporcausada
árvoredejabuticaba;osagentescomiamjabuticabaotempotodoecuspiamnochão”.
118
Completou, dizendo que ficou aguardandomuito tempo dentro do carro de
transporte penitenciário, até quando um dos agentes a entregou em mãos um
documentoepediuqueassinasse.Premidapelasalgemas,pelotempoepelassementes
dejabuticaba,Fernandaassinaodocumentosempensarduasvezes.Temposdepois,
descobrimosquetaldocumentosetratavadasuaoitivanaaudiênciapreliminareque
oagentequedirigiaocarroeraoagentequeaacusavadeameaça.Atéhojeasentença
deFernandanãosaiu.Foradacadeiae longedosmedicamentos, temlevadoavida
assim,comoquemserecuperadeumalongaviagem.
A relação entre uma suposta preocupação com a saúde, a patologização e a
prisãoapresentaumoutroefeitoquandonosatentamosparaaassociaçãorotineira
das travestis com infecções sexualmente transmissíveis. Todas, ali, são vistas como
portadoras em potencial da doença e, quando não recebiam um tratamento
discriminatório por parte da gestão, não recebiam tratamento algum quando
apresentavamosprimeirossintomas.
O que pude perceber é que existe uma certa condescendência por parte da
gestão prisional no que toca à possibilidade de contágio lá dentro. Por certo, essa
possibilidade não é restrita à Ala e deve ser considerada uma realidade de toda a
prisão. Afinalde contas, não são só as travestis e os homossexuais que fazemsexo
quando privados de liberdade. Mas, essa condescendência tem como efeito o
estabelecimentodedinâmicasmuitoespecíficasnopavilhão.
Carla, certa vez, comentou comigo que quando foi ao ambulatório, omédico
disse que estava tendo um surto grande de HIV no pavilhão. Perguntei pra ela do
porquêdosurto,seelaatribuiissoaalgumacausaespecífica,quandomerespondeu“o
povotátransandosemcamisinha...outrodiaeutomeiumsusto,chegouumabichade
19anospramimedisse‘Carla,eusousoropositiva’”.Emtomdelamento,completou
“a bicha tem 20 anos, Júlia, e pegou isso dentro da cadeia”. Carla continuou
conversandocomigosobreoassuntoedisse“tádifícildetomarocoquetelládentro...
temgentequetomadiasimedianão”.
Quandopergunteisobreacamisinhaeafrequênciaquearecebemdentrodo
pavilhão, Carla disse que éumamédiade quatro por semana,mas quemuitos não
usam.Carlameexplicouquemesmosedercamisinha,muitasvezesaspessoasnão
119
usamporquefalamqueserelacionamsócomoparceiroque,nessescasos, “jáestá
morto”.
Estarmortodentrodaprisãosignificaqueapessoajátemamenina,ouseja,que
setratadeumapessoaquejápossuiovírus.Carlamerelatoualgunsdiálogosquejá
tevecomoscolegasdeceladopavilhão,emqueelesafirmamque“nóisjámatouquem
tinhaquematarmesmo”.ParaCarlaopiordessassituaçõeséquandoapessoapassa
malporquesobrecarregou298ooutro.Nessescasos,explicouquecabeaorestantedo
pavilhãobombar299a cadeiaatéalguémresolver tirá-losde lá e encaminharparao
atendimentomédico.
Adespeitodetodaessacomplexidadederelaçõesefaltas,amaiorpreocupação
dagestãogiravaemtornodotrânsitodeumúnicoalicatedeunhaemtodoopavilhão.
Porrazõesdesegurança,sóerapermitidoumalicatedeunhanopavilhãointeiro.Esse
alicateteriaquedarcontadefazeraunhadas30-35travestisquecompunhamaala.E
foraessealicatequemobilizouacriaçãodeumsalãodebelezasnopavilhão.
Lembroque,emumasegunda-feiracinzadedezembro,apesardeconvictada
impossibilidadedeconciliarasvisitascomaescritadadissertação,volteinopavilhão
maisumavez.Dessavezomotivoeramaisoumenosválido:foraconvidada,pelajuíza
dacomarca,paraparticiparda“cerimôniadeaberturadoSalãodaPPJSA”.Oconvite
detãoinusitadomedeixousemsaberaocertooqueesperar.
Segunda-feiraédiadeentregadekitparaaAlae,porisso,apenitenciáriaestava
movimentada.Na saladeesperaparaoprocedimentode revista, estavaRuth,uma
donadecasa300conhecidadaregiãodaPampulha,queestavaaliparaentregarositens
paraomaridopreso.Comenteicomelaqueiríamosparaacerimôniadeaberturado
salãoeela,muitointeressada,perguntousepoderiaparticipartambém.Dissequenão
poderiagarantir,masquecontariaosdetalhespraeladepois.Nessahora,umaagente,
altaecomasunhaspintadasdevermelhosangue,começouaconversarconosco.Olhou
pramimedissequeeupareciamuitoumasobrinhasua,masaúnicadiferençaeraque
eu era um pouco mais baixa. Disse para ela que gostaria, inclusive, de ter alguns
centímetrosamaisdealtura.Elalogomedesestimulouaisso,dissequeéterrívelser
298Sobrecarregarnessecontextosignificaaumentaracargaviraldoparceirodeformasignificativapelapráticasexualsempreservativo.299Bombarsignificafazerbarulho,baternacapadacelaparachamaraatençãodosagentes.300Donasdecasasãotravestisquepossuemcasasondemmoramoutrastravestis.
120
tãoalta,poisnãopodeusarsalto,senão“ficaparecendooutracoisa”,direcionandoo
olharparaRuthqueestavalogoaomeulado.
Apósocomentáriosórdidoseguimosparaacerimônia.Nofinaldeumasubida
íngreme, o pavilhão rosa claro chama a atenção. Lá dentro, quatro fileiras de seis
cadeiras brancas, de plástico, formam a plateia. Bem em frente, umamesa grande,
forradacomumtecidoxadrezvermelhocomseisbíbliasutilizadasparademarcaro
local.Circunscrevendoasextremidadesdasala,bemencostadasnaparede,11cadeiras
brancasestavamdispostasumabemaoladodaoutra.
Apóstodasasautoridadesseacomodarem,chegamastravestisvestidascomo
vermelho sangue do uniforme. Todas entram cadenciadas, bonitas, com as unhas
pintadaseoslábiosdecorrosachoque,easmãoscerradasparatrásdocorpo.Oolhar,
comosempre,baixo,fitandoochão;“conheçotodaspelonome”,logopenso.
Apedagogainiciaacerimôniae,comomicrofoneemmãos,anuncia“estamos
aquireunidosparaainauguraçãodesseespaçoquevaialémdabeleza;maisdoque
tudoaqui,celebramosumespaçodesaúdeedeprevençãodedoenças”.Apósessafala
pontual,odiretorgeraldapenitenciáriaagradeceprimeiroesobretudo,a“deuspor
essedia”.Disse,deformasucintaqueaqueleespaçorepresentavaumaoportunidade
dereinserçãosocial.Aoladodele,umadvogadodaOrdemdosAdvogadosdoBrasil,
figura jáconhecidadosmeusdiasemcampo,sobretudopeloseuhábitopeculiarde
falardastravestisempalestraseeventosqueparticipa.Talfatonãopoucasvezesme
foirelatadocomcertodesconforto...Comrazão.
O advogado, devidamente vestido comseu terno e sua gravata cor de caqui,
carreganalapeladireitaumterçoazulbebê,fixadonoternocomaimagemdejesus.
Todo aquele espaço, a vestimenta, os personagens e as falas, todos denotavam a
presençaproblemáticaerelacionaldareligião,oumelhor,daigrejanaprisão.Erauma
metáforaperfeita,umafiguradelinguagemdemonstrativadeumagamaderelações
queseperfazianaquelelugar.Eraamaterializaçãodainstituiçãomaispresentenodia
adiadaprisão:aigreja.
Ajuízadacomarcafoiapróximaasepronunciar,muitoséria,disse“namesade
juiznãocheganadade flor;chegasóoquedáerradonasociedade”.Muito incisiva,
apontaaresponsabilidadequepossuinaexecuçãodepenade4.000pessoasdaquela
comarcaeoseucompromissona“devoluçãodepessoasàsociedade”.Devolução,como
121
aquilo que fazemos com mercadoria, pensei. Pontua que, desde julho de 2019, os
“holofotesestãovoltadosparaa Jason”,devidoaotermo firmado judicialmenteque
prevêatransferênciadetodosospresosLGBTdaregiãometropolitanaparalá.Diz,
assim,quenãoimportamuitoseacreditaounãoemressocialização,massimquevai
fazer de tudo para colocar esses4.000 presos trabalhando. Continuou dizendo que
paramuitosabelezaétidacomoalgofútil,demenorimportância,masquealiabeleza
significavaautoestima.Disse,complacente,queentendiaoqueastravestispassavam,
postoquesempreestudouem“escolademadame”eque,“apesardapernacabeludae
docabeloondulado”,saiudeláfortalecida.Ela,quenão“tinhacaradepatricinhaem
uma escola de patricinha”, afirmou categoricamente que também fora vítima de
discriminaçãoequeéexatamenteissoqueatornaraumapessoaseguraparalutarcom
outraspessoaspeloqueécerto.Finalizoudizendoquealiéumespaçoquevaialémde
beleza,masserelacionacomhigiene,saúdee,sobretudo,prevençãodedoenças.
As falasqueseseguiramdali,semexceção,agradeceramadeusereiteraram
queaqueleespaçovaiparaalémdabeleza.Adefensorapúblicaserestringiuadizer
que, nos muitos anos de profissão acumulada, tinha a convicção que o
desconhecimentodo“impériodalei”eraagrandecausadoaprisionamentoemmassa.
Relatou,emtonsdeabsurdos,quepercebeuissonodiaqueatendeuumpresoque“não
sabiaqueoquetinhafeitoeratipificadocomocrime;precisoqueapessoaconheçaque
o que ele fez é crime”. Para resolver esse problema, sugeriu aulasde direito penal
obrigatóriasnasescolas.
Nãomeentendammal.Adevidaesterilizaçãodofatídicoalicateé,semdúvidas,
umamedidaimportante.Contudo,questionoatéquepontoapompaeagrandiosidade
do evento não se relaciona mais com os recém adquiridos “holofotes” para a
penitenciária do que uma preocupação real com a saúde das travestis. Oumelhor
dizendo,atéquepontofalardesaúdeparatravestiséfalardeinfecçõessexualmente
transmissíveis.Éfalarparaalguémquenãosabedesi.
Aqueleespaço,aquelasdinâmicas,meparecemorganizadasemfunçãodeuma
certarepetiçãoclassificatóriaepatologizantequeé,notadamente,difícildedesmontar
–aindamaisemambientestotais.Afinaldecontas,“tudoestáorganizadoemfunção
122
dareiteraçãoclassificatória.Aspercepções,asperguntas,osolhares”301e,também,as
açõesepolíticascriadasnopavilhão.Fuipercebendo,assim,quefalávamosotempo
todo de um conhecimento sobre a verdade de um corpo, sobre a verdade de uma
experiência.Conhecimentoessereiteradoeproduzidoatodomomentonaprisão,que
produzpatologizaçãoecriminalização.
*****
Violência institucional, hipersexualização e patologização são elementos que
sãoarticuladosnacenadecriminalizaçãoqueocorredentrodaprisão.Taiselementos,
por suavez,dizemmuitodedinâmicasprópriasdo contextoprisionalque,quando
coordenadaspelasnormasdegênero,produzemacriminalizaçãodetravestis.
Osilicone,oimpedimentodotrabalhoexternoeaimpossibilidadederemição
depenaestãodiretamente imbricadosemumapermanênciamaiordastravestisno
regime fechado. Ao mesmo tempo, estando no regime fechado, submetem-se à
exposição reiterada da coordenação de elementos, como a violência institucional, a
hipersexualizaçãoeapatologização,quesearticulamnaproduçãodacriminalizaçãoe
serelacionamcomasvigilânciasdegênero.
Nessascenas,aviolênciainstitucionalprecisaserapagadaparacederlugarà
faltadisciplinareàindisciplina.Ahipersexualizaçãoarticulaacenaemquesetorna
necessáriomostraropeitoparaobterumpedaçodepão.Paraprocederaoapagamento
dessa violência institucional, valem-se de artesanatos quebrados e de gritos no
pavilhãoparasubsidiaraaberturadeumprocedimentoadministrativodeapuraçãode
faltagrave,sobaalegaçãodeindisciplina.Longedeapurar,asaudiênciasdoconselho
disciplinarmaterializamuma sentença contraa qual não há escapatória, posto que
levadaacabopelosprópriosagentesinstitucionaisperpetradoresdeviolência.
A fatídica frase “tem que sair daí seu veado safado“, proferida em um
procedimento de conferência, produz indignação, mas precisa ser apagada para a
indisciplinasematerializar.Aviolênciainstitucionalétraduzidaemautoflagelo,posto
queumsupostomovimentode“bateracabeçacontraaparededeformareiterada”é
301PRADO,op.cit.,2018,p.65.
123
apontado como responsável pelos cortes no rosto de uma travesti. Em juízo, a
materializaçãodaviolênciainstitucionalpodesedaremumdepoimento,porexemplo.
Mas, ao mesmo tempo, sua desmaterialização é levada a cabo pela ausência de
perguntas e encaminhamentos por parte da juíza: agem como se nada tivesse
acontecidoe,comisso,produzemumaversãodosfatosquetemcomoconsequênciaa
criminalizaçãodastravestis.Comafaltahomologada,maistempoemregimefechado.
A criminalização ainda está diretamente relacionada com patologização das
experiênciasdetravestis.Osefeitoscolateraisdacontençãoquímicalevadaacabopelo
uso indiscriminado de medicamentos antipsicóticos são apagados. No Boletim de
Ocorrênciarestadizerque,apósaameaça,“oenvolvido1retiroutodaaroupa,ficou
totalmente pelado, e proferiu palavras de baixo calão contra o envolvido 2”. Aqui, a
patologizaçãoproduzaindisciplinaparacriminalizar.Emnomedeumapreocupação
àsaúde,pautam-seasaçõesnopavilhãoreiterandoofantasmadaAIDSnocorpoda
travesti.Longedeconsistiremumapreocupaçãorealcomasaúde,éessefantasmaque
afastaostécnicosdalidadiáriacomastravestiserestringe,assim,aspossibilidadesde
construirumcuidadoqueestejaemrealconsonânciacomasdinâmicasprisionaisede
gênerodaqueleespaço.
3. Terceiroato:areincidência
Deveriaserumaquarta-feiraquandorecebialigaçãodeMarta,umatravestique
trabalhavanasecretariadeumaONGdacapital.Aconheciadeoutrasocasiõese,do
outroladodalinha,perguntavasepoderiareceberduastravestisqueacabaramdesair
dacadeia.Porsorte,estavaporpertoedeprontoacerteioencontro.
UmadelaseraaJoana,deestaturabaixa,pelemuitobrancaeumcurtocabelo
vermelho.Aoutra,Isadora,combraçosdefinidoseoscabelosloiros.Asduaspareciam
ter percorrido longas distâncias, chegaram com roupas puídas e chinelos nos pés.
Nenhumpertenceemmãos.Deprontoasacomodeiporali,ofereciáguaetenteideixá-
lasconfortáveis.Nãoconheciao tamanhodahistóriadecadauma,apenasque fazia
menosde12horasquehaviamsaídodacadeia.Oquepensavam?Sentiamfome?Sono?
Desejo?
124
Inundadadeperguntas,nãopergunteinada.Oupergunteimuitopouco.Comoli
certa vez, perguntar demais pode ser sinal de um furor classificatório também. A
primeiraaconversarcomigofoiIsadora.Mãedeumameninadenovemeses,casada,
moravaemumacidadedointeriordoestado,300kmdacapital.Aquelaforaasegunda
vezquefoipresa,masaprimeiraquetevequesertransferidaparaaAla.Antes,havia
cumpridopenanacadeiapúblicadasuacidadenatal.Omotivodaúltimaprisãoforao
furtode“1(um)hidrante;1(um)cremedepentear;1(uma)ampoladehidratação;1(um)
cremedental”.Ficoupresadefevereiroajunho.
Joanatinhaumahistóriaparecida.Outalvezoqueasaproximavasejaofatode
seremestrangeirasnaquelas terras.Pelosdepoimentosprestadosnadelegacia, José
estavaemseucarroquandofora“surpreendidoporumindivíduo,travesti,decabelos
vermelhos, trajandoblusadecorazuleshorts curtos,que lhepediudinheiroe tentou
realizarumprogramacomele”.Indignado,Josécontaquetrancouasportasdocarro,
masquandopercebeuhaviaperdidoR$100.Apósessemomento,teriaidoatéapolícia,
queprontamente localizouJoanaedeuvozdeprisão.Aversãode Joanapareceser
outra,disseque “realizouumprograma sexual comumsenhor, coroa,no interiordo
carrodele,sendoque,aofinal,esteserecusouempagar,retirandoodeclarantedocarro
e jogando-o no chão”. Joana também era do interior e havia chegado na Ala por
transferênciaapósunsproblemasquetevenapenitenciáriadesuacidade.
Semdinheiroparapagarapassagemdeônibusdevoltaparaacidadedeorigem,
oplanodasduasapartirdali eradormirna ruaaté conseguir juntardinheiropara
voltar para casa. A urgência da rua provavelmente iria impor outras demandas e
prioridades – na rua, estariam mais expostas ao encarceramento. A passagem de
Isadora para casa custavaR$35 e a de JoanaR$45 e o valor não era cobertopelos
centrosdeapoiodomunicípio.Parecequeessascoisasnãosãoporacaso,oualgumas
vezessão,mas,naquelediaconseguimoscomprarapassagemdasduas.
Naquele dia, sobretudo, entendi um pouco melhor o sentido da palavra
prevençãoeaurgênciadeexpandirmosnossovocabulárioquandosetratadecombate
ao encarceramento. Entendi também como desconhecemos os percalços e as
dificuldadesqueastravestisenfrentamforadocárcere.
ÉAnykyquenoslembraqueastravestis“saemdaprisãoenãotêmnada;não
têm uma casa para apoiar; daí, vão pra rua, fazem uma coisa errada e voltam de
125
novo”302.Foradocárcere,precariedade,prostituiçãoemigraçãoaindapodemsefazer
presentes.Contudo,essecenáriotomaproporçõessingularesquandoastravestistêm
queenfrentarpenasrestritivasdedireito,comoaprestaçãodeserviçoàcomunidade,
ouquandodeumaprisãodomiciliarprecisasesubmeteràmonitoraçãoeletrônica.Em
todasessasmedidas,aimpressãoqueficaéquesepressupõeumavidaquenãoexiste.
3.1. Acriminalizaçãopelasmedidasalternativasaocárcere
Aquela seria a primeira vez que faria uma audiência sozinha. Ansiosa, havia
dormidopouconodiaanterior.OcaminhoparaoFórumélongoetriste.Acidadefica
a50kmdeBeloHorizonteeabrigaasegundamaiorpopulaçãocarceráriadoestado.
Dentre as unidades prisionais abarcadas, está penitenciária responsável pelo
aprisionamentodealgumastravestis,bichase seusmaridos.Cartórios,delegaciase
escritóriosdeadvocaciadisputamespaçocomvendinhasecomércioslocais.Quasenão
háárvoresnasruaseoclimadacidadeésempreabafadoequente.Carrosrobustose
pintadoscomascoresdoSistemaPrisionaldoEstadoocupamosespaçosedãoatônica
aumlugarjálargamentemarcadopelaprisão.
A audiência estava marcada para às 14h. Cheguei um tempo antes e pude
observar um pouco o lugar. No geral, as instalações do Fórum são feias e pouco
acolhedoras – como têm que ser. As paredes cinzas e o chão de cerâmica branco,
etéreos,me remetiam a hospitais. Na sala de espera o teto é feito de ummaterial
transparenteque,ao invésdeamenizaroclimado lugar,criaumefeitoestufa,pois
impedequeosraiossolarespossamsair.Ládentro,atemperaturaéaindamaisquente.
Estava afundada nas cadeiras quando uma secretária chamameu nome. Ela
dissequeaminhaaudiênciaaindanãotinhacomeçado,masajuízaestavaprecisando
falar comigo. Entrei na sala e pude sentir o contraste dos lugares na pele – a
temperaturaeramuitobaixapeloarcondicionadoligado.Ládentroencontreiajuíza,
sentadaemfrenteaocomputadoreumapessoavestidadevermelhoemfrenteaela.
Estranheiacena:nadadopromotornemdadefensorapública.Apenasasduas,ali.Era
praserumaaudiência,pensei.
302Trechodecadernodecampo.
126
A juízavemaomeuencontroediz“Júlia,oqueeu façocomessecaso,ein?”.
Assusto com a interpelação e olho com calma para a pessoa de vermelho. Cabelos
pretoselongos,umafranjaperfeitamenteajustadaàesquerdadoseurostoescondia
partedeseusolhos.Asmãos,grandesebonitas,estavamentrelaçadasepremidaspela
algemaapertada.Lembrodetermeperdidoumpoucoolhandoparaassuasmãos.Nas
unhas,umesmalterosachoquepareciadisputarespaço,seimpunhaesinalizavaum
certo fiodevida.Fui longee comecei apensaremcomoépotentenão se renderà
prisão.Eissoastravestisfazemmuitobem.Semaquiam,secuidam,semprecomas
unhasdevidamentefeitas.Éimportantenãoseperderládentro,pensei.
Olheifirmenosseusolhosepergunteioseunome.“MeunomeéCaio”,disse.
Retruquei“vocêtemalgumoutronomequequerserchamada?”.Deprontodisseque
não,quenão tinha “dessas coisas”; continuei “mecontaoqueaconteceucomvocê,
Caio”.Caiodissecalmamenteque,antesdeserpreso,nãoera“daquelejeito”,masque
ficou“assim”dentrodaprisão.
Na gramática legal, digamos assim, o benefício da prisão domiciliar com
monitoraçãoeletrônicadeveseguiralgunsparâmetroscondicionaisàmanutençãodo
benefício.Omais simplesdelesdiz respeitoànecessidadedepossuirumendereço
residencialfixoenãopoderausentar-sedecasaemdeterminadosdiasehorários.Em
umprimeiromomento,ocumprimentodetalcondiçãopodenãoparecerproblemático.
Afinal,ésónãosairdecasa,certo?
Nãonecessariamente... Caio contaquequando teveobenefíciodadomiciliar
concedida,colocouoendereçodecasacomoreferência.“Acontecequemeuspaisnão
sabiamqueeuestavaassim...quandomeviramchegaremcasalogomeexpulsaram.
Falaramquenãoiriammeaceitar”,completou.Ajuízaintervémediz“ÉissoJúlia.Eu
coloqueiatornozeleiranele,maselerompeu...Eusóprecisodeumendereçofixopra
liberá-lo,eeletámedizendoaquiquenãotem”.
VolteiaatençãoaCaio.Fizalgumasperguntastentandoacessarumacertarede
deconfiabilidadequepoderianãoserinteligívelparaajuíza.Gasteimeuvocabulário
nabuscaporumconhecido,umadonadecasa,algumgrupodebichasetravestisque
pudesserecebê-lo.Nãoadiantou...Caiosemontounaprisão,criouumasociabilidade
própriaque,atéaquelemomento,pareciacircunscreveroespaçodocárcere.Caiofoi
expulso de casa pela forma que performava gênero. Acontece que no seu caso, a
127
produção de gênero ali estava diretamente relacionada com a manutenção de seu
encarceramento.
**
Diferente de Caio, Roberta conviveu bem com a tornozeleira por um certo
período de tempo.Na verdade, conviveu bempor exatosdoismeses. Pode parecer
pouco, mas concluir esse tempo com a tornozeleira é algo difícil de conseguir. A
precariedadedoequipamentoétamanhaque,aoinvésdepossibilitarumarealchance
de inclusão em sociedade, configura-se uma verdadeira armadilha. Um truque,
mecanismoeficienteparafazercomqueaspessoasvoltemparaacadeia.
Confesso que, quando conheci Roberta, não fazia ideia do funcionamento da
monitoraçãoeletrônica.Depronto,elameencaminhouumvídeoquediziaaofundo“é
issoaqui,Júlia,aluzroxanãoparadepiscareeunãoseimaisoquefazer”.Demoreium
poucoparaentenderademandadeRoberta.Aoouvi-la,sópensavanadificuldadeque
oaparelhoapresentava.Pediaelaquecalmamentemeexplicassetudoquesabiasobre
o equipamento e, do lado de cá, me comprometi a investigar. Disse, na hora, que
provavelmenteelasaberiamaisdoqueeusobreoqueeranecessáriofazer.
Basicamente,elatemtrânsitolivredasegundaàsexta-feira,de6hdamanhãaté
20hdanoite.Nosfinsdesemana,nãopodesairdecasa.Atornozeleiraéquasecomo
umGPSquesefixaemumendereçofornecidonomomentodacolocação,possuiquatro
luzesqueapitamemcircunstânciasespecíficas–ounão.Cadaluztemumafunçãoese
relaciona comdeterminada tarefa. Desde o apontamento para a falta de bateria do
equipamento, até comunicados de urgência e perda de sinal. Além de fornecer um
endereço,énecessárioregistrartrêsnúmerosdecelularesquesãoutilizadoscasovocê
fiquesemsinalpormaisdeumahora.
Além de Roberta, outras travestis reclamaram comigo sobre a
incompatibilidadedohoráriodoequipamentocomotrabalhosexual.LembrodeTati,
umatravestide1,80m,peitoslargos,cinturafinaelongoscabelospretos.Primária,foi
presaporumdesentendimentocomclientee,dentrodacadeia, ficoupoucotempo.
Lembrodequandomecontouquepediaàmãeparabaterohormônionofeijãoque
trazianavisita,eraoúnicojeitoqueelaencontrouparamanteras“curvas”quetanto
seorgulhava.Tatifoiumadasúnicastravestisqueconheciqueconseguiuficarosseis
128
mesescomatornozeleira,semmaioresproblemas.Lembroqueelapassouporvárias
dificuldades,sobretudopelosdesentendimentosquetinhacomasoutrastravestiscom
quemmorava.
PossodizerqueTati,apesardospercalçoscomoequipamento,conseguiuficar
tantotempocomoequipamentodevidoacondiçõesmuitosingularesdesuatrajetória.
Ocorpobombado,apelebrancaeamoradiajuntoaumadonadecasapossibilitavam
atenderosclientespormeiodesites.Essetipodeprostituiçãoémuitoespecíficode
determinadaclassesocial,porassimdizer.Paraatenderdessaforma,énecessárioque
astravestistenhamumapartamentopróprioeumcertodinheiroemcaixa,postoque
oanúnciogiraemtornodeR$150porsemana,semcontarovalordasfotos,quepode
chegar até a R$500. A hora de Tati chegava a custar R$300 e foi exatamente a
possibilidade de atender clientes dentro de casa, ou seja, dentro do perímetro da
tornozeleira,quegarantiuumaaderênciasemmaioresobstáculosàmonitoração.
Contudo,trajetóriascomoaTatisãopoucas.Roberta,porexemplo,nãotinha
bombado ainda,ocorponãoeratãomarcadopelousodehormônioesuatransição
haviacomeçadohápoucotempo.Nãohaviafrequentadoaescolaetambémnãofazia
pista.Sempremuitomagra,comapelenegraelongoscabelospretos,Robertateveuma
trajetória de precariedade que teve o cárcere como o destino esperado. Quando a
conheci,jáhaviasidopresaoutrasduasvezescomapenas20anos.
Quandosaiudacadeiadessavez,colocouoendereçodamãecomoreferência.
EraumbarracãonaregiãodeNeves,quedividiacomoutrasquatropessoas:amãe,o
irmão, a avó e a cunhada. Me explicou que aquela já era a segunda vez que a
tornozeleiraapitava.Daprimeiravez,emmenosdedoisdiascomoequipamento,disse
teridoaosalãodebelezanofinaldasuaruaforadohoráriopermitido,“ninguémme
explicouoqueeupodiafazer”,completou.
Daquelavez,otrâmitefoimaisoumenosesse:assimqueoaparelhoficaroxo,é
necessárioligarparaumúniconúmerodetelefone.Robertadisse,contudo,quechegou
aficartrêshorasligandosemparareotelefonesempredavaocupado.Omotivo?Cada
númerodetelefoneabrangeummontantede3.000pessoasnacapitalqueestãocom
oequipamento,“euchegueiemcasaeligueisabe,estavatodasuadaecansadadarua
masfiqueiumtempãoligandolá;foisónaquintaousextavezeuconseguifalar”.Se
vocênãoentraemcontato comaUnidadeGestoradeMonitoração (UGM), isso fica
129
registradonoseusistemaeemmenosde24helesligamumavezparacadaumdostrês
númerosde telefone disponibilizados. Caso apessoa não atenda, um comunicado é
encaminhadoparaodelegadodepolíciaprocederàrecaptura.
Robertamepediu,assim,queaacompanhassenaUGM.Dizia“comvocêláeles
vãoterpaciênciaparameexplicaroqueeuprecisofazerporqueninguémmeexplica
nada”.Marcamosdenosencontrarnocentroedeláseguiríamosapé.Eramarçoea
chuvanãodavatrégua.
Naqueledia,Roberta reclamavadedoresnascostas–perguntei seelahavia
dormidomale,rindo,merespondeu“équeeutenhoumabalaalojadaaquinascostas”.
Afastouamangadablusaememostrouolugar.Nãoconseguidisfarçarmeuespantoe,
tentandodescontrair,Robertamecontouqueoseucunhadobatiasemprenasuairmã
equeissoadeixavamuitobrava.Certodia,quandosuairmãestavagrávida,Roberta
saiu em defesa dos socos e chutes que o cunhado dispensava na irmã. Após esse
episódio,oseucunhadoteriaficadocomraivae,nasemanaseguinte,chegouatéacasa
ondeestavaedisparouseistiroscontraela,“eufiqueidoismesesemcoma,Júlia,dos
seistiroselessóconseguiramtirarquatrobalas.Umaestáalojadanaminhacolunae
seeutirarficoparaplégica,aoutratáaquinasminhascostas”.ParaRoberta,nãoerao
siliconequefaziaochãodurodaceladoer,massim,abalanassuascostas.
Deprontoimagineiquealiseriaolugar.Emumaruaíngreme,váriaspessoas
estavam em fila de um lado e do outro. Amontoadas e organizadas, tentavam se
protegerdachuvaforte.Olugarpossuiumaentradaúnicaeasaltasgradesbrancas
protegiam as pessoas com uniformes de agentes penitenciários que por lá se
encontravam.Comachuvaforte,entreirápidonoestabelecimentoe,aoolharpratrás,
vi queRoberta tinha ficado lá fora. Segundosdepois, um agente penitenciário com
pranchetanamãocomeçaafazeraleituradeumasériedenomesemaltoebomsom
– como se fosse uma chamada de escola. Quando ouviam o nome, as pessoas
amontoadas levantavamamãoeviamoportão seabrir.Entravamno lugarem fila
indiana.Braçoscruzadosparatráseolharcaído,fitandoochão.
Vi Roberta do outro lado da rua, se agrupando com o restante das pessoas.
Deveriaserumas15h40eohoráriomarcadoera16h.Entendi,ali,quepertencíamosa
lugaresemundosdiferentes.Amim,branca,performandoumseradvogada,restava
meprotegerdachuva.ARoberta,restavaorelentoeomolhado.
130
Nessahora,fuipegaporumconflitomentalinterminável.Poucofamiliarizada
comolocal,minhaparcaexperiêncianaadvocaciaeadesconfiançaemtornodesses
ambientestotaismeinibiramdepedirqueachamassempelonomesocialnahorada
chamada.Seráqueissoeraumapreocupaçãominhaoudela?Afinaldecontas,oque
eraumnomepertodachuva,daspessoasedatornozeleira...
Tenteimefamiliarizarcomoespaçoefingirdesconhecimento.Nesseslugares,
nãopoucasvezes,oshomenssesentemautorizadosameoferecerexplicaçõessobre
tudo.Tenteiextrairomáximodedetalhesdaqueleespaço.Aomeuladodireito,uma
mesaeumapessoaquenãosaiadotelefone.Quatroagentespenitenciáriosfazema
supostaguardado local e,no ladodireito,umcorredor inacabável.Perguntei aum
agentecomofuncionavaotrâmitedatornozeleirae,deformaríspida,oouvidizerque
sóexistemdoismotivosparaoequipamentomudardecor:umquandoapessoaevade
olocal,outro,quandoperdeosinal–nocasodesteúltimopodesertambémquandoa
UGMprecisacontatá-lo.
Robertaficounachuvapor25minutos.Quandofinalmentetomeiadecisãode
solicitaroseunomesocial,ouvi“FernandoLopes”emaltoebomsom.Meresigneie
abaixeiacabeçajunto.Robertafoiencaminhadaparaofinaldocorredorextensoeeu
fuiorientadaasubiroutrasescadas–entendialiquenãopoderíamosficarnomesmo
espaçosozinhas.
Noandardecima,entramosemumasalacomumascincopessoas, todasem
frenteacomputadoreseusandoaquelasroupasverdemusgoinsossas.Sentamo-nos
na mesa de um agente, que logo olhou pra mim e disse “em que posso ajudar?”,
cordialmente.RespondiqueeraadvogadaeamigadeRobertaequeestavaalipara
entenderosmotivosdatornozeleiradartantoproblemaemtãopoucotempo.Nessa
hora,oagente,mudouaexpressão,pegouopapelqueRobertacarregavanamãoe,em
silêncio,fitouateladocomputadorporumcertoperíododetempo.
Osilênciofoirompido.CompoucaspalavrassevirouaRobertae,comomapa
namão, disse “essa parte aqui é sua casa ainda?”; ao que ela respondeu “sim, é o
quintal”.Compoucaspalavrasoagentedisse“é, vou terqueaumentar suaáreade
extensão;desse jeitosevocê fornoquintalnasuacasavaiconstarcomoevasãode
área”.Aquelaconversaeratudomenosbanal.
131
OagenteinsistiaemformalizaraocorrênciadeRoberta“essaésóasegunda,
doutora, elaainda temmaisuma; sóprecisa ficarquieta agora”. Insistiqueelanão
poderiaserpunidaporumerrodelese,comalgunsargumentos jurídicos,oagente
concordouemnãoanotaraquelaocorrência.
Nãoimaginariaqueteriaquevoltarnaquelelugartãopoucotempodepois.Era
umdomingo,21h.Lembrocomexatidãododiaedahoramaispelasensaçãoqueofinal
dasemanacarregadoqueporteranotadoemalgumlugar.Omeucelulartocoueo
númeroquechamavaeradesconhecido.Dooutroladodalinha,umapessoacomvoz
de choro perguntou “Dra. Júlia?”. Gelei nesse momento. Respondi que sim e logo
perguntei quem falava, “aqui é a Simone, mãe do Fernando, levaram meu filho
doutora”.“Fernando?”volteiapergunta.“Sim,aRoberta”.
Nãopodiaacreditar.Tentandoaparentar calma,pediparameexplicaroque
haviaocorridoeorelatofoimaisoumenosesse.Amãedissequepassouodiainteiro
comRoberta,queeraaniversáriodotioequeelasficaramjuntasotempotodo.Contou
quequatropoliciais,“semroupasdepoliciais",bateramnaportadacasadelae,sem
pedir licença, foram entrando perguntando onde estava o filho dela. A despeito do
sustocomasituação,omaiorincômododamãedeRobertapareciatersidoacompleta
violaçãodesuacasa,desuaintimidadeedoseufilho.“Elesentraramcomosefossem
donos da minha casa, doutora. Chegaram chamaram meu filho de bandido e se
recusaramadarqualquerinformaçãosobreondelevariamele.Meajudadoutora,estou
desesperada”.
OuviatentamenteoseurelatoemecomprometiaencontrarRoberta.Assimque
desliguei o telefone, entrei empânico.Não fazia ideia do queprecisava fazer, onde
deveriair,quemdeveriaacionar.Meculpeiumpoucopelaingenuidade.
Nodiaseguinteacordeimais cedodoqueousual esegui atéa rua íngreme.
Dessaveznãochoviaeaspessoasagrupadasnopasseiopareciammenosurgentes.
Perguntei pelo mesmo agente que na outra semana havia me recebido. Devo ter
esperado uns 30minutos até que decidi simplesmente ir até lá. Pronto, ávida por
informações,ouvi“oseuclientedeuproblemadenovo,doutora?”.Ríspida,respondi
queonomedelaéRobertaequeeuprecisavadeinformaçõessobreoseuparadeiro.
Merecuseiadizeremvozaltaseunomederegistroe,apenas,estendiamãocomum
pedaçodepapelcomosdadosnecessários.
132
Após segundos no sistema, ele me diz que ela tinha violado o perímetro
novamente.Ohorário?20h35.Eomotivodaprisão?Tentaramcontatá-lapelonúmero
fornecido e ela não atendeu. Só depois descobri que o celular de sua mãe havia
quebradonomesmodia.Comopodemandarmosrecapturaralguémporumtelefone
quenãoatende?
Desolada, o agente tenta me passar algum conforto, “o que as pessoas não
entendem,doutora,équeatornozeleiraéaprópriacela”.Saídeláarrasadaelogoliguei
parasuamãe,expliqueiasituaçãoedissequeteríamosqueaguardaraaudiência.A
mãe perguntou “você vai acompanhar meu filho, doutora? Não sei o que fazer”.
Respondiquesim.
Dois meses depois a audiência estava marcada. Uma das únicas coisas que
lembrodessediaédoamarelodosolhosdeRoberta.Elaestavajuntocomoutrastrês
travestisnacelaqueficaemumaespéciedeporãodoFórumdacidade,emisolamento
completo.Naluzdosolseusolhosreluziamumamarelopreocupantee,comasroupas
vermelhas, estava mais magra do que o normal. Na audiência, tentei encontrar
justificativasparaoinjustificável:35minutosqueculminaramnoretornoaocárcere.
Ouvi, da Promotoria, que “35 minutos pode ser o tempo necessário para comprar
drogas.Maseuacreditoquenãofoi,massevoltaraaconteceraminhamanifestação
seráoutra”.
VaifazerumanoagoraqueRobertasaiudacadeiasematornozeleira.Aúltima
vezqueavi,tinhasidoexpulsadecasaeestavavendendobalasnosinalparaconseguir
algumarenda.Dessavez,veioatéomeuencontroabaladaporumepisódioquehavia
ocorridocomelarecentemente.Nuncaavitãotriste.Mecontouque,andandonarua,
passounaportadeumaescola,quandoalguémjogouumbaldedeáguaemcimadela.
Contouqueficoutãoindignadacomtamanhahumilhaçãoquefezquestãoderegistrar
umboletimdeocorrênciasobreofato.AlémdeRoberta,atrajetóriadeJadeparecia
reduziraspossibilidadesdereconstruirsuavidaforadocárcere.
HojefoiaaudiênciadaJade.Marcamosdeencontraràs13hnaportadoFórum
e,nohoráriomarcado,láestavaelaaguardandonaporta.Medeuumabraçoapertado
e,fitandoseusolhosverdes,dissequeestavafelizemfinalmentevê-laforadacadeia.
No dia 28 de outubro de 2019, Jade ainda estava presa. Naquela data, havia sido
anunciadoopróximopresidentedoBrasil.Jadedisseque,naqueledia,acadeiadormiu
133
diferente.Assimque foraanunciadaavitória,osagentespenitenciários foramatéo
corredorondeestavapresa juntocommaisduasbichas. Jogaramspraydepimenta,
bateramo cassetetenasgradesem tomde festa, “foram lá zoar comanossa cara”,
completou.
Aquelaaudiênciaseriaaprimeiraaserfeitanoâmbitodaexecuçãodesuapena.
Quandoéassim,uma listacomosnomesdaspessoasécoladanaparede lateraldo
corredor.Éofamoso“pregão”.Semoseunomederegistrolá,meresigneiapedirpara
aassessorado juizqueretificasseapauta.Semmaioresproblemas,onomede Jade
finalmenteestavalá.
Entramosemumasalafriae,namesaaofundo,estavaapenasopromotoreo
escrivão. Sem o juiz, ouvi “estou adiantando aqui, vamos ir resolvendo” disse o
promotor.Apontuaçãodetãoinesperadamedeixousemação,esemaçãomeresignei
aconcordarcomacabeça.Fatoéqueaaudiênciasedeuporencerradasemapresença
dojuiz.
AsentençadeJade:prestaçãodeserviçosàcomunidadeporseismeses.Fomos
orientadasaseguiratéofinaldocorredorparajáagendarocomeçodocumprimento
damedida.Chegandolá,aassistentesocialolhadetidamenteparaJadedecimaabaixo.
Depossadesuacaneta,começaasperguntaspassapelonome,endereço,telefone.Jade,
quenãotinhaamaioriadessascoisas,dáoquetem.
Logodepoisaassistentesocialfala“vamosvercomovamosfazercomvocê...só
temosinstituiçõesreligiosascadastradasporaqui;vamosterquetecolocaremuma
dessas”.Jade,resignada,acenapositivamentecomacabeça.Saímosdeláenuncamais
avi.Sepudesseapostar,diriaqueelanuncadeuascarasporlá.
*****
Atornozeleiraeletrônicaeaprestaçãodeserviçosàcomunidadesãoelementos
quesearticulamadinâmicadecriminalizaçãoforadaprisão.Poróbvio,prostituição,
migração,precariedadenãoseausentam,masmeinteressaapontarcomoasmedidas
alternativas ao cárcere participam ativamente na articulaçãoda criminalização. Em
ambasascenas,aproduçãodegêneroestárelacionadadiretamentecomamanutenção
doencarceramento.
134
Asdinâmicasdatornozeleiraeletrônica,asunhaspintadasderosa,oscabelos
pretos e longos e a imposição de um endereço fixo articulam-se e produzem a
criminalizaçãonovamente.Umaligaçãonãoatendidaeumacasalocalizadaemuma
região periférica, habitada por pessoas negras, pode articular a criminalização e a
recaptura.Aomesmotempo,umaadvertênciaporsupostaevasãodaáreadeextensão,
quando articulada com a presença de uma advogada, visibiliza os erros do
equipamentoea falibilidadedessesistemanoquetocaàexecuçãodepena,sejaela
definitivaouprovisória.Atornozeleira,também,alteraasdinâmicasdecriminalização
aosercoordenadacomprostituição,raçaeclasse.
A tornozeleira, em vista disso, é um elemento que articula a cena de
criminalização,postoquepressupõeumavidaquenãoécompatível,muitasvezes,com
a experiência da travestilidade, em que a estabilidade de um endereço fixo, por
exemplo,passaaolargodaquiloquecompõetaistrajetórias.
Tratando-se da prestação de serviços à comunidade, a predominância de
instituiçõesreligiosasédemarcadaaoserarticuladapeloefeitodocorpotravestiem
um fórumde justiça.Emumacenaemque sentenças sãodadassemapresençade
juízes, tal demarcação é um prelúdio de incompatibilidades que produz o não
prosseguimentodapena.
135
CAPÍTULO4:Criminalizaçãooperativa:lei,ilegalismoseaverdadeoperativa
Entreaatribuiçãodeumacondutatipificadaaalguémeabuscapela“verdade
real”303dosfatos,percebiqueocrimeéalgoqueécriado,poisseancoraemprocessos
situadosemcadalugar,produzidosemcadaato,acionadopormúltiplosatorese,no
caso das travestis, sustentado pelas normas de gênero. Os dados encontrados em
campo me levaram inevitavelmente a compreender como essa materialidade é
produzida.Ascenas,porsuavez,constituíraminstrumentoseficazesnaempreitadade
tornarevidenteaquiloqueseforjananãoevidência304.
Emcadaatoaquidemonstrado,adinâmicadacriminalizaçãoépermeadapor
conexõesqueaproduzemdemaneirasdistintas.Emumaimensidãoderealidadese
trajetórias, o fazer da criminalização não se dá de maneira aleatória. Assim,
prostituição, migração, precariedade, violência institucional, patologização,
tornozeleiraeletrônicaeprestaçãodeserviçosàcomunidadenãosãoapenascenários,
masconstituem-secomomeiopeloqualocrimeseperforma.Éaconcepçãonormativa
de gênero que não somente encontra no corpo travesti seu local predileto de
303 A verdade real é um dos princípios norteadores da prática processual penal. É uma regra quedetermina que o juiz deve pautar a instrução criminal na busca pela verdade real dos fatos,circunstânciaseatoresenvolvidosnatramacriminal.304 PRADO,Marco AurélioMáximo. Por um levante do gesto: política e subjetivação. CATONNI,M.;VIANA,I.(Orgs.)Conferências:políticasdaperformatividade.BeloHorizonte:Conhecimentolivrariaedistribuidora,2019,p.43–58.
136
materialização,comotambémsustentaacoordenaçãodesseselementosheterogêneos
naproduçãodesuacriminalização.
Paradarcontadessadimensãorelacional,encontreinanoçãodeilegalismouma
categoriaanalíticaquemepermitiutrabalharcomocamporeciprocamenteconstruído
eporosodasdobrasdolegaledoilegal.Auniãodessesaportesteóricospossibilitoua
proposituradeumaexperimentaçãoquedenomineicomo“criminalizaçãooperativa”,
que consiste em compreender a criminalização como efeito de um processo de
manipulaçãoordenadadeelementosheterogêneos–taisquaisprostituição,migração,
patologização,violênciainstitucional,precariedadeemedidasalternativasaocárcere
–pelapráticadamaterialidadedanormadegênero.
De forma a explicitar o percurso adotado, seguirei em três tempos: 1)
apontamentossobreaproduçãodematerialidades;2)incursãonopapeldaleiedos
ilegalismosnaproduçãodacriminalizaçãoe;3)contornosiniciaisdacriminalização
operativa.
1. Apontamentossobreaproduçãodematerialidades
A importância de Dona Haraway305 no desenvolvimento das primeiras
preocupações sobre o lugar do corpo e da materialidade nas concepções pós-
estruturalistas foi central,não somenteparaa formulaçãodeumacrítica feminista,
massobretudoparaapromoçãodeumaviradaontológica-material importante.Tal
virada,porsuavez,consistiunasuperaçãodaconcepçãodualebináriaentreomaterial
eodiscursivo.Agora,emumaperspectivanãodicotômica,foipossívelperceberqueo
materialédiscursivoe,assim,elaboraroutrasformasdeacessaramaterialidade.Tais
centrosseconjugam,articulamepromovemcondiçõesdepossibilidade,verdadeiras
“multiplicidadesheterogêneas,simultaneamentenecessáriasenãopassíveisdeserem
espremidasemfendasisomórficasoulistascumulativas”306.
305HARAWAY,Donna.Manifestociborgue.In:HARAWAY,Donna;KUNZRU,Hari.(Orgs.)Antropologiadociborgue:asvertigensdopós-humano.2ed.BeloHorizonte:autêntica,2000;HARAWAY,op.cit.,1995.306HARAWAY,op.cit.,1995,p.26.
137
Pensaramaterialidadeemumaperspectivaquenãosejadicotômicafoioque
Haraway fez ao propor a figura do ciborgue, enquanto “uma matéria de ficção e
tambémdeexperiênciavivida”307,umargumento“emfavordoprazerdaconfusãode
fronteiras,bemcomoemfavordaresponsabilidadeemsuaconstrução”308,emque“a
natureza e a cultura são reestruturadas: uma não pode mais ser o objeto de
apropriaçãooudeincorporaçãopelaoutra”309.Aambiguidadenessafigura,enquanto
propostaepistemológicaepolítica310,nosajudaapensá-laenquanto“umaficçãoque
mapeianossarealidadesocialecorporal”311.
FoilendoHarawayqueencontreiumaporteteóricoimportanteparacomeçara
compreender os dados que havia encontrado em campo. A teórica apontou-me os
caminhos para compreender como amaterialidade se perfaz e, assim, perceber os
modospelosquaisoscorpos–eacriminalização–sãoconstruídosedesconstruídos.
Compreendi,então,aimportânciadepensarnovaspossibilidadesdeanálise,emque
asfronteirasdoscorpos[...] se materializam na interação social. Fronteiras são desenhadasatravésdepráticasdemapeamento;"objetos"nãopre-existemenquantotais. Objetos são projetos de fronteira. Mas fronteiras oscilam desdedentro; fronteiras são muito enganosas. O que as fronteiras contêmprovisoriamente permanece gerativo, produtor de significados e decorpos. Assentar (atentar para) fronteiras e uma prática muitoarriscada.312
ParaHaraway,oinvestimentonopensamentodefronteiravemnãosomentena
necessidade de fazer frente ao equívoco de teorias universais e totalizantes que
“deixamdeapreender–provavelmentesempre,mascertamenteagora–amaiorparte
da realidade”313, como também da importância de abraçar a “habilidosa tarefa de
reconstruir as fronteiras da vida cotidiana, em conexão parcial com os outros, em
comunicaçãocomtodasasnossaspartes”314.Assim,suascontribuiçõesemtornodos
307HARAWAY,op.cit.,2000,p.26.308Ibid.,p.27.309Ibid.,p.29.310 Assim, “o ciborgue não está sujeito a biopolítica de Foucault; o ciborgue simula a política, umacaracterísticaqueofereceumcampomuitomaispotentedeatividades”,Cf.Ibid.,p.46.311Ibid.,p.27.312HARAWAY,op.cit.,1995,p.40-41.313HARAWAY,op.cit.,2000,p.71.314Idem.
138
saberes localizados315 implicam concebermos o objeto do conhecimento como “um
atoreagente,nãocomoumatela,ouumterreno,ouumrecurso,e,finalmente,nunca
comoumescravodosenhorqueencerraadialéticaapenasnasuaagênciaeemsua
autoridade de conhecimento ‘objetivo’”316. Dessa forma, o modo pelo qual nos
posicionamoseolhamosparaarealidadeestátotalmenterelacionadocomofazerda
pesquisa,postoqueonossolugarnacenatambémconstituiumelementoquedeveser
considerado. Por sua vez, conceber uma corporificação enquanto “prótese
significante”317implicanoshavermoscomoseucarátercontingente,umcorpoquenão
éseparadodaprótese.Nãosetrata,assim,depensarocontexto,masapontarqueo
contextodeixadeserapossibilidadedacenaepassaaserumelementodacena.
O acesso a esses contextos foi possibilitado pela prática etnográfica e pela
elaboraçãode cenas, emquebusquei compreender comosedáa criminalizaçãode
travestistalqualelaacontecenocotidiano,semrecorreraexplicaçõesgeneralizantes
ehomogêneas sobreessaarticulação.EmdiálogocomAnnemarieMol318,demarcar
esselugarapontavaquearealidadenuncaéanterioràspráticasqueaconstituem.
Ascríticasdaautoraemtornodosestudosderepresentaçãomostraram-meque
nóscriamosconstantementearealidade,aoinvésdemeramenteinterpretá-la.Dessa
forma, “se a realidade e feita, se e localizada histórica, cultural e materialmente,
tambémemúltipla”319.Longedeexistirdiferentesversõesdarealidadeoudiferentes
produções discursivas da realidade, Mol defende a existência de diferentes
realidades.Logo,foipossívelcompreenderquediferentespossibilidadesdecrimes,ou
nãocrimes,tambémpodemserproduzidos,enãotantoobservados320.
Um dos trabalhos mais importantes de Mol321 foi a investigação322 da
aterosclerose múltipla, mais especificamente em como os pacientes vão fazendo a
315HARAWAY,op.cit.,1995.316Ibid.,p.36.317Ibid.,p.29.318MOL,op.cit.,2008.319Ibid.,p.65.320Ibid.,p.70.321 MOL, Annemarie. The Body Multiple: ontology in medical practice. Durham and London: DukeUniversityPress,2002.322AconcepçãodeMolnãopodeserseparadeseumétodo,postoquelevartudoissoemconsideração,poróbvio,implicarepensarfortementeocampometodológico,ouomodoquetemosfeitopesquisa.Apraxiografiaéumaformadepensarocampo,emqueaspráticasemqueoselementosmateriaisnãosósãocenários,comocompõemsuaprópriaperformação.Nãosãosóefeito,compõemaspráticas.Éumaproduçãoemumfazerpresente.Assim,“minhaestratégiaetnográficagiraemtornodaartedenunca
139
doençanocorpoecomoessadoençavaisendofeitapelamedicina.Ointeressepelas
práticas médicas e diagnósticas se deu pela indagação inicial de que, a partir de
determinadosprocedimentosadotadosnoshospitaisquepesquisou,algosurgecomo
umadoença.Nesse sentido, o diagnóstico – ou a sentença –, é um engajamento de
práticas e de realidades, que não existe “paraalémdas interaçõesdas quais fazem
parte,sendo,assim,conjuntosdeefeitosrelacionais.Interaçõeseefeitos,portanto,são
sempremaisoumenosprecáriosoutransitórios”323.
Arealidadesobreumcrime,portanto,estásempresendoperformadaapartir
de práticas e de determinadas materialidades que compõem essas práticas. Se
engatamosdeterminadoselementosheterogêneos,épossívelqueperformemcoisas
diferentes, emquearticulaçõesespecíficasproduzemdeterminadas realidadese, se
fossediferente, produziria outras.Dessa forma, não há umsujeito324 criminalizável
anterioràspráticas:suaproduçãosedáemato.
AperspectivadeMol325meajudouacompreenderqueacriminalizaçãopode
serconsideradaumengajamentodepráticasederealidadesproduzidas,umaquestão
demanipulação326.Nocasodastravestis,háumaproduçãomedianteprocedimentos
quevãoacontecendodeformacriminalizarogênero.Àluzdoquepudeencontrarem
campo, esse engajamento se efetiva ao acionarmos prostituição, migração,
precariedade,violênciainstitucional,patologização,tornozeleiraeletrônica,prestação
de serviços comunitários que, articulados com outros elementos, produzem a
criminalização.
esquecerdosmicroscópios.Oudepersistentementeprestaratençãoemsuarelevânciae sempreosincluiremhistóriassobrefisicalidades.Écomessaestratégiaqueadoençaétransformadaemalgosobreoqueetnógrafospodemfalar.Porquedesdequeaspraticalidadesdefazeradoençasãopartedahistória,éumahistóriasobrepráticas.Umapraxiografia”.Cf.Ibid.,p.31-32,traduçãominha.323 ROHDEN, Fabíola. Considerações teórico-metodológicas sobre objetos instáveis e ausênciaspresentes: analisando processos dematerialização do desejo feminino. In: SEGATA, Jean; RIFIOTIS,Theophilos(Orgs.).Políticasetnográficasnocampodaciênciaedastecnologiasdavida.PortoAlegre:UFRGS,2018,p.138.324UmadiferençapossíveldeserapontadaentreButlereMoléque,paraaúltima,interessapensarascoisasnessefazereascoisasquesedãoematoefetivamente.ParaButler,opoderestáimbricadonanossaformadefazer.Ainda,osujeito,paraButler,passapelanoçãonodiscurso,aomesmotempoemque,paraMol,sãoaspráticasqueproduzemrealidade.325MOL,op.cit.;MOL,op.cit.,2008,p.63-75.326 Importante pontuar que essa manipulação não pode ser lida como um voluntarismo, ou umhumanismoquepressupõeumsujeitoplanificado.ApesardenãoserabordadoporMol,defendoqueháhierarquiasequadrosdepossibilidadenessefazer.Cf.MOL,op.cit.,2002.
140
Acriminalizaçãoé,assim,umarealidadevividaecontraditóriaporsimesma
porquedependesempredaspráticas.Issoimplicanoshavermoscomumaimensidão
derealidadescompletamentecontraditóriasqueseengajamelevamadizeroqueé
crimeequemdeverásercriminalizado,postoqueapráticadanormadegêneroéum
exercícioconstantedecoordenaçãodepráticasematerialidadesheterogêneas.
Essacoordenação,contudo,nãoéaleatória.AmadeM’Charek327apontaquea
materializaçãoenvolveummovimentodedesmaterialização,lastreadosemumcerto
regime histórico denominado como temporalidade328. A temporalidade é, por
conseguinte,importante329paracompreenderacoordenaçãodosobjetosepráticasna
realidade. Dessa forma, não importa apenas a performance do objeto, mas sim as
camadas de temporalidade que os compõem. Isso implica atentar-se aos “retornos,
recorrências,citaçõesdealgoquevematona,emcertassituaçõesenãoemoutras,em
estritacorrelaçãocomseusefeitospolíticos”330.
Comoexemplo,AmadeM’Charekdefendequearaça,longedeseralgonatural,
possuiumahistória, importandomaiscomoéperformadaemcadasituaçãoecomo
produzadiferença.Araçanãoéumacoisaquedesaparece,massuaapariçãosedáem
situaçõesmuitoespecíficas,postoqueoseuapagamentoserepete,porexemplo,nos
esforçosdeneutralidadelevadosacaboporpretensõescientíficas.O“objetodobrável”
éumapresençaausência,postoquechamaatençãoparaomovimentodeapagamento
ou apariçãoperformado em situaçõesdeterminadas.Dessa forma, “a raça pode ser
performada a partir do engajamento de corpos e cores, ou até mesmo quando
articulada com roupas, movimentos corporais, posições no espaço, local ou
preconceitos”331.
327 M’CHAREK, Amade. Beyond fact or fiction: on the materiality of race in practice. Culturalanthropology, vol. 28, issue 3, p. 420-442, 2013; M’CHAREK, Amade. Fragile differences, relationaleffects:storiesaboutthematerialityofraceandsex.Europeanjournalofwoman`sstudies,n.17,2015.328M’CHAREK,Amade.Race,timeandFoldedobjects:theHeLaerror.Theory,culture&society.2014,vol.31(6),29-56.329 Nas palavras da autora, “granting objects history and attending to temporality is crucial forunderstandingthepoliticstheyarticulate”,Cf.Ibid.,p.29.330ROHDEN,op.cit.,p.139.331 Assim,“racewasenactedasa relationbetweendifferentbodiesand their color, in this case therelations that mattered were between bodies on the one hand, and clothing, bodily movement,positioninginspaceandlocation,aswellaspublicprejudices,ontheother.”Cf.M’CHAREK,op.cit.,2013,p.431.
141
Tratando-sedecriminalizaçãodetravestisdentrodaprisão,comoexemplo,a
violência institucional eoassédioem trocadeumpãoprecisamserapagadospara
performarafaltadisciplinar.Paratanto,valem-sedeartesanatosquebradosedegritos
nopavilhãovindosdeumatravestiparasubsidiaraalegaçãodeindisciplinae,assim,
promoveraaberturadeumprocedimentoadministrativodeapuraçãodefaltagrave.
Longedeapurar,talprocedimentomaterializaumasentençaepromoveocaráterde
veridicidade a tal prática, não restando escapatória a não ser criminalizar tais
experiências.
Paracompreendermosessesarranjos,torna-senecessáriomapearmososfluxos
eostrânsitosemdiferentescontextosdeperformação,oqueelaslevamconsigoeo
queelasreconectamcomoutrascoisasemoutroslugares,paracompreendermosoque
organiza e engata as práticas heterogêneas e produzem a criminalização. Implica
“prestarumaatençãorenovadaaonúmeroderealidadesheterogêneasqueentramna
fabricação de certo estado de coisas”332. Em outras palavras, torna-se necessário
promovermosumadesmaterializaçãoparatornamosamaterialidadevisívelnonosso
regime de inteligibilidade. Tratando-se de criminalização e gênero, desvelar os
movimentosdemontagensedesmontagensnosmostracomoacoerênciaéconstruída
naspráticasarticulatóriasdeelementosheterogêneosconstituindoumaverdadeem
operaçãonosatos.
2. Sobrealeieosilegalismos
Paradarcontadessadimensãorelacional,encontreinanoçãodeilegalismouma
categoriaanalíticaimportante.Comessacategoriafoipossíveltrabalharcomocampo
reciprocamente construído e poroso das dobras do legal e do ilegal e escapar da
planificaçãodasanálisesqueadimensãoda lei ede crime impõe.Tem-seque lei e
direito definem um espaço conceitual crucial a partir do qual grande parte dos
problemas são definidos, bem como seus diagnósticos e resoluções. Contudo, a
criminalizaçãodetravestisimpõecircunscrevermosumaoutraordemdeproblemase
mobilizarmosoutrasreferênciasecategorias;maisdoquepensarmosemcomoalei
332LATOUR,op.cit.,2012,p.136.
142
seleciona a ilegalidade de forma diferencial, me parece importante pensarmos em
comoaleiproduzailegalidade.
Existeum“elementoabsolutamentepositivo”333nalei,postoqueproduz,não
sendomeramentesancionatória.Nessesentido,aleinãoéumapeçadiscursiva,mas
simumapeçamaterial.Porsuavez,paraFoucault,aleiéuma“ficçãoteórica”334que,
maisdoqueselecionara ilegalidadede formadiferencial,produzos ilegalismos,ou
seja,o“ilegalismonãoéumacidente”335.Bastaatentarmos,comocitadoanteriormente,
paraasmúltiplasconfigurações,procedimentoseatoresenvolvidosnacriminalização
detravestisdesdeosanos1890atéosdiasdehoje.Porexemplo,quandoapontamos
paraavedaçãodo“travestismo”empúblicopeloCódigoPenalde1890,quecessava
temporariamente no período do carnaval e de seus bailes demáscara. Ou quando
atentamosparaoperíododaditaduraeosusosquesefaziamdaLeideImpressapara
subsidiar a perseguição a veículos jornalísticos que tratavam do tema das
homossexualidades.
Osilegalismos,assim,nãodizemrespeitoanenhumtipodetransgressão336,mas
a“umconjuntodeatividadesdediferenciação,categorização,hierarquizaçãopostas
emação”337pelasnormasdegêneroque fixam e isolamas suas formas, aomesmo
tempoemquearmamocamposocialetendemaorganizara“transgressãodasleisem
umatáticageraldesujeições”338.Emvistadisso,“leis,codificaçõeseregrasformaistêm
efeitos de poder, circunscrevem campos de força e é em relação a elas”339 que
precisamossituaredescreveratransitividadeentreoscampos.
Os ilegalismos,enquantomaneirasde“burlaraprópria lei”340,serelacionam
comosucessodaleiem“gerirasilegalidades,deriscarlimitesdetolerância,dedar
terrenoaalguns,de fazerpressãosobreoutros,deexcluirumaparte,detornarútil
outra,deneutralizarestes,detirarproveitodaqueles”341.
333FOUCAULT,op.cit.,2006,p.50.334Idem.335Idem.336Nãomerefiroaquiàoposiçãojurídicaqueocorreentrelegalidadeepráticailegal.337TELLES,op.cit.,2010.338FOUCAULT,op.cit.,2006.339 TELLES, Vera;HIRATA,Daniel Veloso. Ilegalismose jogos de poderemSãoPaulo.Tempo Social,RevistadeSociologiadaUSP,V.22,n.2.p.41.340FOUCAULT,op.cit.,2006,p.51.341FOUCAULT,op.cit.,2014,p.267.
143
Entreaatribuiçãodeumacondutatipificadaaalguém,ouabuscapela“verdade
real”,ocrimeéalgoquesefaz,poisseancoraemprocessossituadosemcadalugar,
produzidos em cada ato, acionado por múltiplos atores e, no caso das travestis,
sustentadopelasnormasdegênero.Nãosetrataaquideumafronteiraparaalémdo
Estadoedesuasleis,naverdade“legaleilegal,formaleinformal,lícitoeilícitoaíestão
imbricados nas práticas, nas tramas sociais, nas disputas ou alianças entre atores
diversos, tudo isso condensado”342 encenado e produzido pelas normas de gênero.
Conceber a lei enquanto responsável por produzir um conjunto de práticas de
diferenciação,hierarquizaçãoetipificaçãofixadaspelasnormasdegêneronoslevaa
concluirpelaimpossibilidadedeexistirumaaplicaçãoboa,oujusta,daleipenal.
Legalidade e ilegalidade não fazem um par. Não estabelecem entre si uma
relação de oposição, mas auxiliam “mutuamente na construção daquilo que é
percebidocomoDireito”343.Sãorelacionais,complementares,porososesópodemser
compreendidos na relação que os constituem. E é essa relação não binária que
possibilita fugirmos de uma linearidade simples, abrindo espaço para vermos uma
vastaconjugaçãodeatoreseatosenvolvidosnatramadacriminalização.
VeraTellesexemplificaessaquestãoaotrazerà tonaoschamados“autosde
resistência”344, em que se procede a uma prática “recorrente e sistemática de
execuçõessumárias”345semqueissosejaconsideradoumcrime.Nosremeteaindaao
exemplodeDoralice,umamoradoradaperiferiadeSãoPauloque,entreosintervalos
deseutrabalhocomodiarista,nãohesitaemmontarumabarracaparavenderCDs
piratasemumbairropróximodecasaouemacionaruma“espantosaredequeopera
omercadodereceitasmédicasfraudadasparaconseguiroremédiodequedependea
vidadomarido”346.Nosparcosganhos,sabequepartedeveserreservadaparapagar
a“proteção”dosfiscais,ouentão,dapolícia.Napremênciadelidarcomasurgências
342TELLES,op.cit.,2010,p.93.343FILHO,JoséCarlosAbissamra.SobreilegalidadesdoSistemaJurídicoCriminal.Dissertação(MestradoemDireito)naUniversidadeCatólicadeSãoPaulo,2017,p.13.344 Os autos de resistência dizem respeito à alegação de legítima defesa vinda de um policial apósexecutar um possível suspeito de crime. A produção dessa alegação gera uma série de atos nainvestigaçãodocasoquedesencadeiamnaabsolvição,ounaausênciade investigaçãodo fatoedascircunstânciasemtornodessesupostocrime.São,assim,“assassinatosemnomedalei”.Cf.TELLES,op.cit.,2010,p.155.345Idem.346Ibid.,p.174.
144
davida,Doralicenãoseconsiderainseridano“mundodocrime”,apenasseviracomo
pode nesse trânsito de fronteiras borradas do legal e do ilegal. Existem, contudo,
modalidadesdeoperaçãonagestãodiferencialdeilegalismosquesediferenciampelos
dispositivosdepoderacionados“conformeograudeincriminaçãodessasatividades:
osagenciamentospolíticosqueoscilamentreatransgressãoconsentida,osmercados
deproteçãoeaspráticasdeextorsão,alémdarepressãoedaexposiçãoàmortepelo
usodaviolênciaextralegalporpartedasforçasdaordem”347.
Essaeconomiageraldosilegalismosdegênero,ouessa“gestãodiferencial”,nas
palavrasdeFoucault348,mepareceapontarparaummovimentodeilegalismosquefaz
partedonossotecidosocialequecaracterizaadinâmicaexistenteentreaquiloque
seria do domínio do legal e do ilegal. Esse domínio é, suponho, por si, poroso,
escorregadio,postoquenãosetratadeuma“oposiçãoentreoformaleinformal,legal
e ilegal.Naverdade,énasdobrasquesecircunscrevemjogosdepoder,relaçõesde
forçaecamposdedisputa”349.Assim,
[...] a vida, ela mesma, seria uma dobra aberta, permanentementeinacabada e cuja flexão ao fora e ao dentro remeteria a um tipo demovimento que implica e multiplica, conecta e separa, dividindo-seinfinitesimalmente em outras dobras menores e maiores, masconservandosempreumacoesãoqueeprópriadesuaarticulação.350
Pensarnadobrasignificadizerque“nãohalimitesrígidosentreilegalidadee
legalidade; legalidade e ilegalidade não se opõem necessariamente; ao contrário,
muitas vezes, relacionam-se numa articulação útil, funcional”351. É na dobra que
ocorrem os agenciamentos e as modulações entre o legal e o ilegal, bem como a
passagemdeumparaooutro.Énadobraqueseprocessamos jogosdepodereas
relaçõesdeforça352dalei,dosilegalismosedasnormasdegênero.
Nesse sentido, “será preciso deslocar o parâmetro e decifrar o jogo dessas
relações,conexões,articulaçõesquesefazemnessaindistinçãodolegaledoilegal,do
lícito e do ilícito, e fazer aparecer, como forças atuantes e estruturantes, os vários
347TELLES;HIRATA,op.cit.,p.42.348FOUCAULT,op.cit.,2014.349TELLES,op.cit.,2010,p.197.350DELUCCA,Daniel.Asdobradurasdacidade.Novosestudos–CEBRAP.2011,n.90,pp.179-187.351FILHO,op.cit.,p.15.352TELLES,op.cit.,2010.
145
atoresecoletivosenvolvidos”353desdeoEstadoesuaspráticasinstitucionaisatéas
institucionalizadas. As normas de gênero organizam os ilegalismos, estruturam e
deslocamoscamposdeforçaeosjogosdepoder,“fazemerefazemademarcaçãoentre
aleieoextralegal354,demodoque
nãoháumajustiçapenaldestinadaapunirtodasaspráticasilegaiseque,paraisso,utilizasseapolíciacomoauxiliar,eaprisãocomoinstrumentopunitivo,podendodeixarnorastrodesuaaçãooresíduoinassimilávelda“delinquência”.Deve-severnessajustiçauminstrumentoparaocontrolediferencialdasilegalidades.355
ParaFoucault,apassagemdeumladoparaoutrosedánafiguradodelinquente.
Ailegalidadeeadelinquência356,assim,adquiremumpapelimportantenasociedade;
longedesereliminadas,devemsergeridas.Paraodelinquente,nãoimportatantoo
queelefez,masoqueeleé.Nocasodastravestis,natramadetolerâncias,repressão,
violência,abusodeautoridadequecaracterizamagestãodosilegalismoscomoforma
decontroledessasexperiências,aciona-seacriminalização.
O crime, longe de ser uma entidade abstrata, se constitui enquanto um
significantevazio357,quesóseefetivaporqueseancoraemprocessossituadosemcada
lugar, produzidos em cada ato, acionado por múltiplos atores e sustentado pelas
normasdegênero.Remete,dessaforma,àumamatrizdereferênciadeidentificação
desujeitos,práticasesentidosproduzidosemtornodatravestilidade.Acriminalização
nesse sentido é um exercício constante e cotidiano de coordenação de práticas
heterogêneas. Os elementos na cena de criminalização não são só cenários:
prostituição,migração, precariedade, violência institucional, patologização e até as
medidas alternativas ao cárcere compõem a própria performação do crime. Como
exemplo, é possível nos atentarmos para como a prostituição articula a cena de
353Ibid.,p.162.354TELLES;HIRATA,op.cit.,p.42.355FOUCAULT,op.cit.,2014,p.277.356Adelinquênciaé,paraFoucault,umaformadeilegalidadecolonizada,controlada.Umailegalidadevisível,marcada,irredutívelaumcertonívelesecretamenteútil–rebeldeedócilaomesmotempo.Umaoperaçãocertamentepolítica,quedissociaasilegalidadesedelasisolaadelinquência,objetivando-aportrásdasinfrações.Cf.FOUCAULT,op.cit.,2014,p.230.357ParaLaclau,osignificantevazioseriaestratégicoparaapontarumamultiplicidadedesignificadosemummesmodiscurso,detal formaqueosentidoinicialécompletamenteperdido.Éoexcessodesentidosincorporadosquepodeensejarumaadesãoparaumconjuntovastoevariadodeindivíduos.Cf.LACLAU,Ernesto.Arazãopopulista.SãoPaulo,TrêsEstrelas,2013.
146
criminalização, em que a fragilidade dos acordos com os clientes, as dinâmicas do
machismoealegitimidadedadaànarrativadecadaumdosenvolvidosconfiguramum
cenárioquetemnacriminalizaçãodastravestisumdesfechocerto.
Portanto,amaterialidadenãoésóumefeito,mascompõeaspráticas,éuma
produçãoemumfazerpresenteemqueocrimeéperformadodemodosdistintosde
acordocomastécnicasutilizadasparadescrevê-loeenquadrá-lo.
3. Acriminalizaçãooperativa
Para colocar em perspectiva esses processos e recolocar os problemas, é
importantepontuarque,mesmoquehajaporosidadenasfronteirasdolegal-ilegal,a
passagem de um para o outro não é simples. Tratando-se de processos de
criminalização,alémdamultiplicidadedediscursoseatosqueproduzemdeterminado
fato,hátrânsitosemdiferentescontextosdeperformação,quereconectamcomoutras
coisasemoutroslugares;háoesforçodeestabilizaçãocomaimputaçãodocrimea
alguém,defazerapassagemdeumladoparaooutro.Oquefixa,ouoquedobraas
posições,contudo,éoquepodemoschamardeverdadeoperativa358.
Bruno Latour remete a esse termo ao discorrer sobre proliferação das
ferramentasdigitaiseoseuefeitoemborrar“as fronteirasentreoqueéentendido
enquanto conhecimento cientificoounão”paradefender que, “analisandocasopor
caso,seriapossívelobterumadescriçãocadavezmaisfacilmenterevisável,decadeias
de argumentos que definemos cosmogramas”359. A verdade operativa seria, assim,
“aquilo que é efetivado como verdadeiro dado o seu caráter manipulativo e
engendrável”360.
Dizer que um fato é construído, ou que uma verdade é construída, implica
conceber que “explicamos a sólida realidade objetiva mobilizando entidades cuja
reunião poderia falhar”361. Latour aponta que isso pouco se relaciona com uma
358LATOUR,op.cit.,2016,p.135.359MARACCI,JoãoGabriel.Reflexõessobreverdadeepolítica:ummapeamentodecontrovérsiasparaoKit Gay. Dissertação (Mestrado em Psicologia), Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social eInstitucionaldoInstitutodePsicologiadaUniversidadeFederaldoRioGrandedoSul(UFRGS),PortoAlegre,2019,p.29.360Ibid.,p.30.361LATOUR,op.cit.,2016,p.168.
147
flexibilidade interpretativaoupontosdevistavariadossobreumamesmacoisa.Ao
contrário,“éaprópriacoisaquepermitiuserdesdobradacomomúltiplae,portanto,
ser apreendida através de diferentes pontos de vista, antes de ser possivelmente
unificadaemalgumaetapaposterior,dependendodashabilidadesdo coletivopara
unifica-los”362.
Essa estabilização363 é abordada por Latour em sua noção de controvérsias
sociotécnicascomo“rastros”parasepensarasconexõessociais364.Orastreamentoda
redeemquedeterminadofatoseconecta,então,fariacomque“emvezdeenunciados
flutuantes,osenunciadosestariamenganchados,rastreados,ancoradose,sobretudo,
seriamdebatidos”365.Arede,emsuma,éumconceito,uma“ferramentaquenosajuda
adescreveralgo,nãoalgoqueestejasendodescrito”366.
Para compreendermosa formacomquea criminalizaçãooperaénecessário
contornar omovimento das ilegalidades,mapeá-lo, rastreá-lo, para percebermos o
investimentodasnormasdegêneronaproduçãoenaarticulaçãodacriminalização.
Serianecessário,enfim,“registrarenãofiltrar,descreverenãodisciplinar”367.E,não
por outro motivo, são as cenas “que nos permitem flagrar o traçado das práticas,
mediações e mediadores” e os personagens aqueles que nos oferecem os fios que
precisamosseguirpara“aprenderasconexõesquetecemosmundossociaise,apartir
daí,chegarnãoaconclusõesfechadas,masaperguntasenovasquestõesqueabram
perspectivas sintonizadas com os possíveis inscritos na realidade dos fatos e
circunstâncias”368.
Paraessaempreitada,proponhopensarmosemtermosdeumacriminalização
operativa.Talconceitoanalítico-metodológicoexpandeonossocampodointeligívele
possibilita demonstrarmos como os ilegalismos são distinguidos, distribuídos e
utilizadosdeformasespecíficas,sendoacriminalizaçãoefeitodaarticulaçãodeuma
série multifacetada de mecanismos e atores de extensão e caráter variados. Tal
conceito,ouexperimento,nospermiteseguircosturas,mapearatos,quevêmsendo
362Idem,2012,p.171.363UmadasdiferençasquepodemosapontarentreLatoureMolresideaí.Molseinteressanomomentodedesestabilização,enquantoLatourfocanasestabilizações.364Idem.365Ibid.,p.168.366LATOUR,op.cit.,2012,p.192.367LATOUR,op.cit.,2016,p.88.368TELLES,op.cit.,2010,p.100.
148
materializados na criminalização de determinadas experiências. É um experimento
que propõe uma outra saídana imbricada armadilhade buscarmos a afirmaçãoou
negaçãodocaráterverdadeirooufactualdocrime.
Énecessáriocompreender,contudo,arelaçãoentresesubmetereseadequarànormadegênero,oumelhordizendo,qualpapeléatribuídoànormanoengajamento
de práticas heterógenas. Ou seja, o que a norma precisa apagar para produzir a
criminalização.Comodemonstradoanteriormente,afatídicafrase“temquesairdaíseu
veado safado“ é um ato que produz indignação, mas precisa ser apagado para a
indisciplinasematerializar.Esseapagamentoéreiteradoemjuízo,emqueaausência
deperguntaseencaminhamentossobreoscortesnorostoproduzemumaversãodos
fatosquetemcomoconsequênciaacriminalizaçãodastravestis.
A criminalização, dessa forma, pode ser compreendida enquanto efeito da
coordenação de elementos heterogêneos levada a cabo pelas normas de gênero,
estando diretamente implicadas emuma certa produção de gênero. Tal referencial
implica compreendera criminalização comoefeitodeumprocessodemanipulação
ordenada de elementos heterogêneos – tais quais prostituição, migração,
patologização,violênciainstitucional,precariedadeemedidasalternativasaocárcere
–pelapráticadamaterialidadedanormadegênero.
É a criminalização operativa que nos permite perceber “novas mediações e
conexõespelasquaisessesdeslocamentosdasfronteirasdo legaledo ilegalvêmse
Figura6-Ilustraçãodacriminalizaçãooperativaeasnormasdegênero
149
processando”369e,então,“compreenderomodocomoosvínculoseconexõesoperam,
já que, sempre situados, se fazem na conjugação de atores, circunstâncias, fatos e
artefatos”370.
Porfim,seexisteumasuperposiçãodemundosdiversos,seexisteumaconfusão
das“fronteirasdo legaledo ilegal,do formaledo informal,do lícitoedo ilícito,há
tambémfricção,tensão,algocomoumpontodefugaquepode,noacasodascoisasda
vida,abalaroudesfazer”371esseequilíbrio.Asexperiênciasdecriminalizaçãotravestis
sãoestratégicas,poisnospermitemvisualizarmosascosturasqueconstroemocrime
emsuasrelaçõescomogênero.
Nocasodastravestis,parece-mequeéaíqueentramaprostituição,amigração,
aprecariedade,bemcomoaviolênciainstitucional,apatologização.Énoacionamento
desseselementosqueadobrase fazou,emoutraspalavras,énessespontosqueo
entrelaçamentoderedesoperaeproduzacriminalizaçãoemsuarelaçãocomogênero.
Assim,“vistospeloângulodaspráticascotidianas,todosessesfeitossemisturamese
entrelaçamnosagenciamentospráticos”372comasurgênciasdavidasobamoldura
dasnormasdegênero.
369Ibid.,p.164.370Ibid.,p.111.371Ibid.,p.166.372Ibid.,p.168.
150
CONSIDERAÇÕESFINAIS
Iniciei este trabalhocoma indagaçãoacercada relaçãoda criminalizaçãode
travestis com as normas de gênero. A partir de uma incursão teórica no campo
criminológico, foi possível perceber que boa parte da literatura sobre o tema,
estruturada a partir da categoria de gênero, não abarcava as experiências que
encontravaemcampo.Issosedeveaousoquesetemfeitodacategoriagêneronesse
campoteórico,considerando-oenquantopapelsocial.
Talprerrogativamepareceinsuficienteparacompreenderacriminalizaçãode
travestis, à medida em que considerarmos gênero como papel social implica
acionarmos chaves de representação de “feminilidade” e “masculinidade” que se
constituemefeitosdeumaimposiçãoanterior.Encararaproposiçãodegênerocomo
verbo, ou seja, enquanto ato, implica escapar da noção de papel social e nos
reposicionarmosquantoaomodoqueformulamosnossasperguntaseorganizamoso
nosso campo de investigação e inteligibilidade. Torna-se necessário colocar em
evidênciaaspráticaseseusmecanismosnadesigualarticulaçãodasnormasdegênero
quedefinemaquem,ecomo,seráatribuídaapráticadeumaaçãoconsideradacomo
crime.
Poressavia,foipossívelapontarapresençadacriminalizaçãodetravestisem
episódios da nossa história, que não somente moldaram a construção dessas
experiências na ilegalidade, como também as associaram a noções de crime e
criminalidade. Essa tecitura feita entre a criminalização e as travestis ao longo do
temponospermiteperceberqueessacriminalizaçãopoucotemavercomalei,esim
relaciona-secommaneirasespecíficasdegerirasilegalidadeseasnormasdegênero.
Paratanto,foinecessárioproporoutrasformasdepensaroscontornosespecíficose
asformasdeapariçãodacriminalizaçãoemsuarelaçãocomasnormasdegênero.
Tratando-sedecriminalizaçãoegênero,foiimportantedesvelarosmovimentos
de montagens e desmontagens para mostrar como a coerência é construída nas
práticas articulatórias de elementos heterogêneos constituindo uma verdade em
operaçãonosatos.Éaíqueacriminalizaçãoassumeoseuprotagonismo.Assim,nos
havermos comuma imensidão de realidades completamente contraditórias implica
nos atentarmos tanto para aquilo que engaja e produz o crime quanto para quem
151
deverá ser criminalizado, posto que a prática da norma de gênero é um exercício
constantedecoordenaçãodepráticasematerialidadesheterogêneas.
No caso das travestis, à luz do campo, esse engajamento se efetiva ao
acionarmos prostituição, migração, precariedade, violência institucional,
patologização, tornozeleira eletrônica e prestação de serviços à comunidade que,
articulados com outros elementos, produzem a criminalização. A criminalização é,
portanto,umarealidadevividaecontraditóriaporsimesma,porquedependesempre
daspráticas.
O esforço teórico e metodológico em torno da “criminalização operativa”
consiste em apontar a importância de procedermos a uma complexificação do
entendimentosobreocrime.Concluoqueacriminalizaçãosedáporumprocessode
manipulação ordenada de elementos heterogêneos coordenada pela prática da
materialidadedasnormasdegênero.Acriminalizaçãoassume,assim,umanovaface
nacoordenaçãodepráticasheterogêneassustentadaspelaconvençãonormativado
gênero,quetemnocorpotravestiseulocalprediletodematerializar-se.
Daíqueseriapossívelafirmarqueocorpotravesti,antesmesmodequalquer
atocriminoso,éopalcoporexcelênciaparaquesedêacoordenaçãodepráticastão
heterogêneas, mas que, quando articuladas pelas convenções sociais, produzem o
corpocriminosoantesdopróprioatoditoilegal.
152
REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS
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