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UNIVERSIDADEFEDERALDEMINASGERAISProgramadePós-GraduaçãoemDireito

JúliaSilvaVidal

CRIMINALIZAÇÃOOPERATIVA:

TRAVESTISENORMASDEGÊNERO

BeloHorizonte2020

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JúliaSilvaVidal

CRIMINALIZAÇÃOOPERATIVA:

TRAVESTISENORMASDEGÊNERO

Dissertação deMestrado apresentada ao Programade Pós-Graduação em Direito da UniversidadeFederal de Minas Gerais (UFMG), como parte dosrequisitosexigidosparaobtençãodetítulodeMestreemDireito.Linha de pesquisa: Direitos humanos e estadodemocráticodedireitoÁrea de estudo: Antropologia do direito,interlegalidadeesensibilidadesjurídicasOrientadora:Profa.Dra.CamilaSilvaNicácioCoorientador:Prof.Dr.MarcoAurélioMáximoPrado

BeloHorizonte2020

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Vidal,JúliaSilvaV648cCriminalizaçãooperativa:travestisenormasdegênero/JúliaSilvaVidal.–2020.Orientadora:CamilaSilvaNicácio.Coorientador:MarcoAurélioMáximoPrado.Dissertação(mestrado)–UniversidadeFederaldeMinasGerais,FaculdadedeDireito.1.Direito–Teses2.Crime–Diferençassexuais–Teses3.Travestis–

Teses 4. Etnologia – Teses I.Título

CDU 343.43:342.721

FichacatalográficaelaboradapelabibliotecáriaMeireLucianeLorenaQueirozCRB6/2233.

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FACULDADE DE DIREITO

Dlffllo PROGRAJVIA DE PóS_GRADUAçÃO EM DIREITO DA UFMG

. ^?çF_E_SA DE D|SSERTAÇÃO DE MESTRADOAREA DE coNCEryI$Ç4b: ornÊro e lús1çnBELA. JULIA SILVA VIDAL

Aos cinco dias do mês de fevereiro de 2A20, às 13h00m , no Auditório FranciscoCampos da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gêrais, reuniu-se,em sessão pública ,a Banca Examínadora constituída de acordo com o art. 73 doRegulamento do p rograma de pós_Graduação em Direito da Universidade Federal deMinas Gerais, e das Normas Gerais de Pós-Graduação da Universidade Federal deMinas Gerais, integrada pelos seguintes professores: profa. Dr. Camila Silva Nicácio(oríentadora da candidata/UFMG ) Prof Dr. Marco Aurelio Máximo Prado (PUC-SP);'Profa. Dra. Mônica Sette Lopes (UFMG); profa. Dra. Jutiana Cesa rio Alvim Gomes(UERJ); Profa Dra. Juliana Gonzaga Jayme (UN|CAMP e Profa. Dra. paula SandrineMachado (UFRGS), desíg nados pelo Colegiado do Prog rama de Pos-Grad uação emDireíto da Un iversidade Federal de Minas Gerais, para a defesa de Dissertação deltíestrado da Bela. JúLIA SILVA VIDAL, matrícu la no 2018B6gStZ, intitulada"cRtMtNALtZAÇÃo oPERATIVA: TRAVESTIS E NORMAS DE GÊNERO". OStrabalhos foram in iciados pela presidente da mesa e orientadora da candidata, proF. DraCamila Silva Nicácio, que, após breve saudaçã o, concedeu a candidata o prczo máximode 30 (trinta) minutos para fins de exposição sobre o trabalho apresentado. Em seguida,passou a palavra ao prof. Dr Marco Aurelio Máximo prado, para o início da a rguição,nos termos do Regulamento A arguição foi iníciada, desta forma, pelo prof. Dr. MarcoAurélio Máximo Prado, seguindo-se-lhe, pela ordem , os Professores Doutores: MônicaSette Lopes, Jul iana Cesario Alvim Gomes, Juliana Gonzaga Jayme, paula SandrineMachado e Camila Silva N icácio. Cada examínado r arguíu a candidata pelo prazomáximo de 30 (trinta) min utos, assegurando a mesma, igual prazo para responder àsobjeções cabíveis. Cada examinador atribuiu conceito a candidata, ern ca rtão individual,depositando-o em enve lope próprio. Recolhidos os envelopes, procedeu-se a apuração,tendo se verificado o seguinte resultado

Profa. Dr.ÇefittaC o n ceito :...!...ü.?/.. fulva

Nicácio (orientadora da candidata/UFMG)

)

Profa. Dra. Sette Lopes (UFMG)

Av. João Pinheiro, íOODE

í 1ô andar - Centro - Bêlo Horizonte -

CONFERE COM O

.direito. ufmg. brEmZE/__et/ z.o_

3í^D..,rAssinatura com Carimbo

- Brasil -

Gonceito:.

Fone: (3 1) 3409.8635 _ E-mail: [email protected] -

Prof. Dr. Marco Aurélio Máximo prado (pUC-Sp)conceito,.. Í.ü. fi.1.4n........:::::: -. :

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FACULDADE DE DIREITO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAçÃo EM DIREITO DA UFMG

Alvim Gomes (UERJ)

Jayme (UNICAMP)

Machado (UFRGS)

â Banca Exam inadora considerou a candidata" Áppp.[Aàe com

nota.J.OC....Nada mais havendo a tratar, a Professora Doutora Camila Silva Nicácio,

Presidente da Mesa e Orientadora da candidata, agradece ndoaP resença de todos,

declarou encerrada a sessáo. De tudo, Para constar, eu, Fe rnanda Bueno de Oliveira,

Servidora Pública Federal lotada no Program a de Pós-Gradu ação em Direito da UFMG,

mandei lavrar a presente ata, que vai assinada pela Banca Exam inadora e com o visto

da candidata'

BANGA EXAMINADORA:

Profa. Dr. Camila Silva Nicácio (orientadora da candidataíUFMG)

. Marco Aurélio Máximo Prado (PUC-SP)

Profa. Dra. Mô (UFMG)

Alvim Gomes

Av. Joáo PinheiÍo, 100 -SOCOhJFERE CCIM A

Assi

EmzÍJ 3!l t"> -

ORIG INAL

Profa.

Fone: (31 ) 3409.8635 -

(UE

-MG - Brasil - 301

i r. .eC,: Íx S$rPÉ:

+/

profa. Dra. f,a$i.}#::::Conceito J,.UtU',

Profa. Dra.Conceito:

Profa. Dra.

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Agradecimentos

Omartemalgodefascinantequemecomove.Àminhafrente,oseguirritmado

desuasondasmeensinaqueotempodasurgênciasédesordenado.Eleseimpõe,como

omar.Apesardisso,éomarquemelembraqueumacosturaimportanteseencerra.

Detãoviva,quaseconsigopegá-laemminhasmãos,acariciá-laemseusnósatéperder-

me nas suas curvas. Resta-me, contudo, aceitar o seu arremate insolente. Bastam,

apenas,umalinhaeumaagulhaparasefazerumpontoreto,ou,umrecomeço.Porisso,

eportodooresto,afirmo:nãoseriaumadissertaçãosenãofossemascosturas.

ÀBárbara,Bruna,Cíntia,Cris, Isabella, Jojo,Priscila,Rochelly,Scarlet,Yumie

Wandyagradeçopelospontosfirmes,aslinhasgrossaseaconfiança.Nossascosturas

compartilhadas fizeram-se nessas páginas e me fizeram também. À Anyky Lima,

LorenaPaiva,FláviaMariaeCheilaSilvaagradeçoporteremmerecebidocomouma

devocês.Foraminúmerasconversas,caronas,conselhos,festaseconfidênciasqueme

formaram. Tecituras finas e firmes. É às travestis e mulheres trans o meu maior

agradecimentoeadmiração.

À Camila Nicácio agradeço pela caminhada comum. Quando me tornei sua

orientanda em2014, ainda no 4° período do curso de direito, pouco sabia emuito

esperava.Repletadeindagaçõesinfindáveis,Camila,apontou-meoscaminhose,com

o bom humor que lhe é típico, mostrou-me que nem toda sabedoria precisa ser

profunda.Foi,assim,professora–comtodaagrandezadapalavra.

JuntocomCamila,agradeçoaoMarcoAurélio.Aindanosprimeirosmesesde

curso, quando transitava sem rumo pela Fafich, lembro de vê-lo, altivo, na sala do

NúcleodeDireitosHumanoseCidadaniaLGBT(Nuh).Naquelediasóouseiolharpela

porta.Jamaisimaginariaque,anosdepois,seriarecebidaporeleeportodaequipedo

Nuh.Comagenerosidadequelheécaracterística,Marcomeensinoumuito:deslocou-

medomeu“lugar”dodireitoetensionouminhascertezas.Outras,mantevecomotêm

queser.

NaUFMG,aClínicadeDireitosHumanos(CdH)eoNuhfizeram-separtecrucial

na minha trajetória. Nesses espaços, compartilhei ideias, tecituras e angústias que

resultaramnestadissertação.NoNuh, agradeço imensamenteaBárbaraGonçalves,

IgorMonteiro, Júlia Carneiro eRafaella Vasconcelos. Agradeço às companheiras de

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CdH, AmandaDrummond, AndressaMartins, Daniella Lima, LetíciaAleixo e Sophia

Bastos.ÀSophia,agradeço,ainda,osquitutesbaianoseaescutagenerosa.

AindanaUFMG,possodizerqueoTranspassesefezcasaecosturafirme.Aqui,

construí sonhos e teci esperanças. Agradeço a querida equipe, Antônio Lemos, Gab

Lamounier,DouglasGuerraTrevisan,IsadoraCunha,ÍsisAlvim,LohanaMorelli,Manu

MacieleSaraGuerra.

NaFaculdadedeDireito,agradeçoaGabriellaSabatinieReginaJuncal.ÀGabi,

agradeçoapoesiaeClarice.ÀRegina,agradeçoosincontáveisensinamentos.Foicom

ela,eporela,queouseidesbravaroscaminhostortuososdaadvocaciacriminal.No

ProgramadePós-GraduaçãonãopoderiadeixardeagradeceraoSaul,sempresolícito

egentil.Ainda,agradeçoàprofessoraMônicaSetteeaoprofessorMarcoAntôniopelos

comentáriosapuradosquandodabancadequalificação.

ÀCarolAlmeida,agradeçoportersidomeuportoseguroportrêslindosanos.

Agradeço por todos os dias com cor de calmaria – cruciais para a escrita desta

dissertação.AZildaOnofrieElisaMatosagradeçoaamizadecomgostodemexerica.

Agradeçotambémaleituraatenta,oscomentáriosgenerososeoacalentoque,nosdias

maispesados,fizeram-secolo.AoNavarro,agradeçoporfazerpartedemimhá21anos.

ÀOlíviaPaixão,agradeçoporserminhaestrelaguia.Quandonosconhecemos

pelaprimeiravez,nosidosde2014,malpoderiaesperarquetamanhaforçapudesse

preencherosmeusdias.FoiOlíviaquemeapresentouasprimeirasleiturasdegênero

e,assim,virouomeumundodecabeçaparabaixo.

Agradeçoaminhafamília.Começopelasminhasavós,LúciaVidaleZaidaAchão.

Aelas,quevieramantesdemim,devoahistória.Aosmeuspais,AluízioTadeueJussara

Vidal,agradeçoolugarnomundoeoamoraospassarinhos.Àsminhastias,Glauciae

Marta,agradeçoporteremmeensinadoqueaslutasmiúdaserotineirassãoasmais

importantesdeseremtravadas.Aosmeussobrinhos,Daniel,ErnestoeHugo,agradeço

ossorrisoscoloridoseaspartidasdefutebol.

Por fim, agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível

Superior(CAPES)pelabolsadeestudosproporcionadaduranteosdoisanosdaescrita.

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ResumoEstetrabalhobuscoucompreendercomosematerializaacriminalizaçãodetravestisequalasuarelaçãocomasnormasdegênero.Desvelarosmecanismoseasteciturasquecompõemdimensõesdolegaledoilegalqueproduzemessacriminalizaçãofoicentral.Paratanto,partidaminhaexperiênciaetnográficaenquantoadvogadaeativistajuntoàstravestis,dosregistrosdecadernodecampoedaanálisedeprocessospenaisparaelaborarcenas.Comarestituiçãodocampo,propuspartirdeencontrosecontornaromovimentodearticulaçãoqueproduzacriminalizaçãodetravestis.Considerandoqueprostituição,migração,precariedade, violência institucional,patologização,medidasalternativas ao cárcere, dentre outros, fazem o entrelaçamento das redes queproduzemacriminalizaçãodetravestis,concluíqueocrime,longedeserumaentidadeabstrata, só se efetiva porque se ancora em processos situados em cada lugar,produzidosemcadaato,acionadopormúltiplosatoresesustentadopelasnormasdegênero. Tratando-se de criminalização e gênero, demonstrei os movimentos demontagensedesmontagensparamostrarcomoacoerênciaéconstruídanaspráticasarticulatóriasdeelementosheterogêneosconstituindoumaverdadeemoperaçãonosatos.Porfim,defendiacriminalizaçãooperativacomoumaporteteórico-metodológicoque possibilita percebermos que a organização, a distinção e a distribuição dasinfrações–bemcomooseucaráterdeveridicidade–sãoefeitosdaarticulaçãodeumasériemultifacetadademecanismoseatoresdeextensãoecarátervariados.Palavras-chave:normasdegênero;criminalização;travestis;etnografia.

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Abstract

Thispaperaimedtounderstandhowthecriminalizationoftransvestitesmaterializesandwhatisitsrelationtogendernorms.Unveilingthemechanismsandweavingsthatmakeupthelegalandillegaldimensionsthatproducethiscriminalizationiscentraltothiswork.Tothisend,Istartedfrommyethnographicexperienceasalawyerandanactivistwithtransvestites,fieldnotebookrecordsandanalysisofcriminalproceedingsin order to elaborate scenes.With the restitution of the camp, I proposed to startmeetings and to circumvent the articulation movement that produces thecriminalization of transvestites. Considering that prostitution, migration,precariousness, institutional violence, pathologization, alternative measures toimprisonment, among others, intertwine the networks that produce thecriminalization of transvestites, I concluded that crime, far from being an abstractentity, is only effective because it is anchored in processes located in each place,producedineachact,triggeredbymultipleactorsandsupportedbygendernorms.Intermsofcriminalizationandgender,Idemonstratedthemovementsofassemblinganddisassemblingtoshowhowcoherenceisconstructedinthearticulatorypracticesofheterogeneous elements constituting a truth in operation in the acts. Finally, Idefendedoperativecriminalizationasatheoreticalandmethodologicalapproachthatallowsustorealizethattheorganization,distinctionanddistributionofoffenses-aswell as their character of truthfulness - are the result of the articulation of amultifacetedseriesofmechanismsandactorsofextensionandvariedcharacter.Key-words:gendernorms;criminalization;travesties;ethnography.

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Listadesiglas

AIDS SíndromedeImunodeficiênciaAdquirida

AI-5 AtoInstitucionalnúmero5

ANTRA AssociaçãoNacionaldeTravestiseTransexuais

CAO-DH CentrodeApoioOperacionalàsPromotoriasdeJustiçadeDefesa

dosDireitosHumanosdoMinistérioPúblicodeMinasGerais

CdH ClínicadeDireitosHumanosdaUFMG

CID ClassificaçãoInternacionaldeDoenças

CNCD ConselhoNacionaldeCombateàDiscriminação

CP CódigoPenal

CRGBTT Centro de Referência de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis,

TransexuaiseTransgêneros

DAJ DivisãodeAssistênciaJudiciária

ECA EstatutodaCriançaedoAdolescente

FAFICH FaculdadedeFilosofiaeCiênciasHumanasdaUFMG

GIR GrupodeIntervençõesRápidas

GGB GrupoGaydaBahia

LEP LeideExecuçãoPenal

LGBT Lésbicas,gays,bissexuais,travestisetransexuais

Nuh NúcleodeDireitosHumanoseCidadaniaLGBT

PAD ProcedimentoAdministrativoDisciplinar

PPJSA PenitenciáriaProfessorJasonSoaresAlbergaria

REDS RegistrodeEventosdaDefesaSocial

SEDH SecretariaEspecialdeDireitosHumanos

SEDS SecretariadeDefesaSocial

SEDESE SecretariadeEstadodeTrabalhoeDesenvolvimentoSocial

UFMG UniversidadeFederaldeMinasGerais

UGM UnidadeGestoradeMonitoração

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ListadefigurasFigura1-Ediçãon.9,emfevereirode1979,doJornalLampiãodaEsquina...................52

Figura2-TravestiagredidaporpoliciaisemSãoPaulo.FotodeJucaMartins,1980..54

Figura3-SãoJoaquimdeBicas,2009.................................................................................................65

Figura4-Infográficodemédiadeprocessosportravestis......................................................73

Figura5-Gráficodetipopenalmaisaplicado.................................................................................74

Figura6-Ilustraçãodacriminalizaçãooperativaeasnormasdegênero......................148

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO....................................................................................................................................12

1. Estruturadadissertação.......................................................................................18

2. Advertênciasmetodológicas:tentativaseexperimentações......................192.1. Ocampo.....................................................................................................................................192.2. Aescrita.....................................................................................................................................22

CAPÍTULO01:Aspectosteóricos:normasdegêneroecriminologia..........................26

1. Dacriminologia........................................................................................................27

2. Dosusosdegênero:norma...................................................................................34

CAPÍTULO 02: Fragmentos da relação sinuosa entre as travestis e acriminalização:apresentificaçãodocenáriodapesquisa............................................44

1. “A caça às bruxas-bichas”: notas sobrea criminalizaçãode travestis noBrasil(1890-1988)..........................................................................................................46

2. “Prendendooumatando”:acriminalização(re)localizada.........................583.1. “Matando”:oshomicídiosdetravestis.......................................................................593.2. “Prendendo”:acriaçãodealasparatravestisehomossexuais......................633.2.1. Os dados oficiosos do encarceramento de travestis: a penitenciáriaProfessorJasonSoaresAlbergaria...........................................................................................71

CAPÍTULO03:Trêsatosdacriminalizaçãodetravestis.................................................76

1. Primeiroato:avidatravesti.................................................................................771.1. Acriminalizaçãopelaprecariedade.............................................................................791.2. Acriminalizaçãopelaprostituição...............................................................................851.3. Acriminalizaçãopelamigração.....................................................................................92

2. Segundoato:aprisão.............................................................................................972.1. Acriminalizaçãopelahipersexualizaçãoeviolênciainstitucional............1022.2. Acriminalizaçãopelapatologização.........................................................................115

3. Terceiroato:areincidência...............................................................................1233.1. Acriminalizaçãopelasmedidasalternativasaocárcere................................125

CAPÍTULO4:Criminalizaçãooperativa:lei,ilegalismoseaverdadeoperativa.135

1. Aproduçãodematerialidades..........................................................................136

2. Sobrealeieosilegalismos................................................................................141

3. Acriminalizaçãooperativa................................................................................146

CONSIDERAÇÕESFINAIS.............................................................................................................150

REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS..............................................................................................152

APÊNDICEA–Infográficodeinvestigaçãodecontexto.................................................163

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INTRODUÇÃO

“Porqueessascoisasacontecemcomagente?”(Trechodocadernodecampo,emagostode2018, pergunta de Fernanda, em conversasobreoseuperíodonocárcere.)

Confessoqueessaperguntamedeixouparalisadaporumtempo.Deumacerta

forma, aquilo caiu sobre mim como o peso das verdades reveladas. Naquele dia,

Fernanda1,travesti,presahádoisanos,mecontavasobreoperíodoqueficoudetidae

todasasvicissitudesqueencontrouládentro.Dentreasmaioresqueixas,ochãoduro

eúmidodascelasalembravamtodasasnoitesdopesodoseucorpomontado2;”doía

tudo”3dizia,referindo-seaocontatodolorosodosiliconecomochão.Poralgunsdias

aquelaperguntaressoouemmimedeupistassobrequalcaminhoeudeveriaseguirna

elaboraçãodestetrabalho.

Paraminhasurpresa,oseucasoerafácildeserresolvido;bastavaencaminhar

umcomprovantedeendereçoparaa justiçadeSergipeepedir a revogaçãode sua

prisãopreventiva.Algum tempodepois,Fernanda foi soltae atéhojeme emociona

lembrar a empolgação com queme ligou naquele dia. No seu primeiro dia fora da

prisão,fuivisitá-lacommeiadúziadebiscoitoscaseirosquehaviafeitoparaaocasião.

Conversamos longamente naquela tarde e, entre um biscoito e outro, a fatídica

perguntaveiocomoumpresente,“porqueessascoisasacontecemcomagente?”.

1Todososnomesprópriosutilizadosnotextosãoficcionais.2Todosostermosemitálicocorrespondemaexpressõesêmicas.Porsuavez,“semontar”éumapalavrautilizadaemreferênciaàpráticadeconstruçãodofeminino.Nocasodastravestis,amontagempassatambémpeloimplantedesilicone.3Amaiorpartedosdepoimentosefalasinseridasdeformadiretaforamregistradasemtemporeal,outrastantasforamajustadasalembrançasememóriasetnográficasdocontexto.

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Permita-metomardeempréstimoaperguntadeFernandaparatentarelaborar

outras.Comosedáamaterializaçãodacriminalizaçãodetravestis?Comooperamos

processosdecriminalizaçãodetravestis?Épossívelqueanormadegêneroproduzaa

criminalizaçãodetravestis?

Tenhoqueconfessarquequandopropusoprojetodemestrado,hádoisanos,

não imaginava que omeu campo tomaria essa forma. Àquela época, o interesse de

entendercomoogênero,enquantodimensãonormativa,eraproduzidoeapreendido

noritoprocessualpenaldecrimesenvolvendotravestisjáestavapresente.Contudo,

meinteressavapensarohomicídio,suadimensãomaterialeosdiscursosproduzidos

noâmbitodasaudiênciasedosprocessos.Comesserecorteinicial,pudeacessaralguns

processosepresenciaralgumasaudiênciasdejúriemquetravestisfiguravamnopolo

ativo.Ousodizerquedesseprimeirocontatoemergiramváriasoutrasquestõesque

apontavamparaofatodequeohomicídiofaziapartedeumaredemaiordeexclusão,

desigualdade e seletividade.Obviamente que não precisei fazermuito esforço para

chegaraessaconclusão,masoacessoaessematerialfoiconcomitanteàaberturaeà

consolidaçãodeumaoutrafrentedetrabalho.Foiassimqueentreicomoapoiojurídico

na ONG Transvest4, voltada para o acompanhamento e ensino de travestis e

transexuaisemBeloHorizonte.NoâmbitodasatividadesdaONG,aminhaprincipal

atribuição foi se consolidando em torno da assessoria jurídica das travestis que

estavam presas na famosa “Ala Rosa”5, na Penitenciária Professor Jason Soares

Albergaria (PPJSA). Esse contato me possibilitou conhecer a trajetória de algumas

pessoaspresase,emumsegundomomento,entenderumpoucomaisosprocessosde

criminalizaçãoquesãoproduzidospeloaparatopenalequeatingemcadavezmais

travestisebichas6.

4Paramaisinformaçõessobreoprojeto,ver:http://www.transvest.org/.Acessoemnov/19.5EmMinasGerais,o tratamentodiferenciadoparaapopulaçãodemulheres transexuaise travestis,notadamentecomaimplementaçãode“alas”específicas,foiiniciadoem2009naPenitenciáriaProfessorJasonAlbergariae,trêsanosdepois,em2012,noPresídiodeVespasiano.Apesardopioneirismodoestado,queem2009jáseorganizavanosentidodereconhecimentodasituaçãodevulnerabilidadedastravestisemulheres transexuaispresas,a regulamentaçãoveioem2013,viaResoluçãoConjuntadaSecretaria de Defesa Social (SEDS) e Secretaria de Estado de Trabalho e Desenvolvimento Social(SEDESE),nº1de2013.6Aescolhadasexperiênciasdetravestis,sedeu,unicamente,emrazãodareinvindicaçãodessestermospelasminhasinterlocutoras.Tratam-se,portanto,determosêmicos.Nãomeinteressaaquidefiniroqueseriamexatamentecadaumadessasexperiências,apenaspontuoquesetratamdeexperiênciasquetensionamasnormasdegênero.

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Precisodizer, então,quea incursãonouniversodo cárcere, criminalizaçãoe

experiênciasdastravestisnãoeranecessariamente“nova”paramim.Foiem2016que

entreinoNúcleodeDireitosHumanoseCidadaniaLGBT(Nuh)7ecomeceiapesquisar

sobreSegurançaPúblicaepopulaçãoLGBT.Comopartedas frentesde trabalhodo

Núcleo, iniciamos a pesquisa “Sistemas de Segurança Púbica e a violência contra a

população LGBT”, para atender as denúncias do movimento social de travestis e

transexuaise,assim,investigarasmortesdetravestisetransexuaisqueocorreramno

estadodeMinasGeraisentrejaneirode2014edezembrode2015.Referidapesquisa8

buscavacompreenderainterfaceentreaexperiênciadetravestiseasegurançapública

no que concerne à visibilização das circunstâncias que caracterizam os crimes de

homicídio(tentadoseconsumados)queenvolvemtravestisetransexuais,bemcomoa

análisedeinquéritospoliciaiselaboradosparaaelucidaçãodetaiscrimes.Talpesquisa

deuensejoàelaboraçãodomeutrabalhodeconclusãodecursodagraduação9em2017

einfluenciou,emuito,oscontornosdapropostademestradoem2018.

Assim,aqueleuniversonãomeeraestranho.Oqueeranovo,talvez,eraofato

dequeeu, Júlia, estavaolhandoparaaquelas cenas,dois anosdepois,devidamente

munidacomminhacarteiradaOrdem,queperformavaum“ser”advogada,aomesmo

tempoemquejáestavalargamenteconstituídaenquantoum“ser”pesquisadora.Digo

isso porque não é possível estabelecer com clareza quando foi que virei mais

pesquisadoradoqueadvogada.Essesdoispapéis,obviamente,melevaramaocupar

umlugarsingulardiantedasexperiênciasdastravestiscomosistemapenal.Aomesmo

tempoquemecolocavamemumaposiçãodúbia,talconformaçãomepermitiuacessar

realidades e experiências que não acessaria se não fossem exatamente essas duas

figuras,juntas.

Aminharelaçãocomessaspersonagensnãocomeçouquando“virei”advogada,

mastalveztenhaseconsolidadocomisso.Foiassimquemevi frequentandofestas,

jogando conversa fora e sendo abençoada por todo quanto é tipo de entidades

7ONúcleodeDireitosHumanoseCidadaniaLGBTéumprogramadepesquisaextensãodaUniversidadeFederal de Minas Gerais voltado ao desenvolvimento de ações no campo de gênero, sexualidade,participaçãoepolítica.Criadoem2005,oNúcleoécoordenadopeloprofessorMarcoAurélioMáximoPrado.Paramaisinformações,ver:http://www.fafich.ufmg.br/nuh/.Acessoemout/19.8Orelatóriodapesquisapodeserobtidonolink:http://www.fafich.ufmg.br/nuh/seguranca-publica-e-populacao-lgbt/.Acessoemdez/19.9 VIDAL, Júlia Silva. “Com sedas matei, com ferros morri”: sobre homicídios, inquéritos policiais ecriminalizaçãodetravestis.RiodeJaneiro:Metanoia,2019.

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religiosas. Havia entrado na rede de confiabilidade de algumas travestis de Belo

Horizonte e tal status vinha acompanhado de responsabilidades novas. As nossas

trocas, afetos e retribuições eram de outra ordem e me permitiram não somente

construirumcampo,comotambémmelegitimarjuntoàstravestis.

No ano de 2019, a nossa relação pôde alçar um novo patamar. Em março

daqueleano,comeceiamereferenciarcomastravestisdocampocomoorientadora

jurídicadoprojetoTranspasse10.Oprojeto,voltadoparaoacompanhamentojurídico

epsicossocialdetravestise transexuais,estavacomeçandoaseestruturarecontou

comumaadesãosignificativadeváriastravestisquehaviaconhecidoanteriormente.

Comodesenvolverdoprojeto,pudeparticipardaconsolidaçãodeumametodologiade

trabalhoqueincidissetriplamentesobreoproblemadoencarceramento,voltando-se

nãoapenasparaoatendimentodepessoastransetravestisquecumprempena,mas

tambémparaevitarqueaquelasqueestãoemliberdadesejamcriminalizadasequeas

egressasretornemaosistemaprisional.

Dessaforma,ohomicídiofoiseconsolidandoenquantoafacemaisóbvia,enão

menosimportante,deumsistemaqueoperacommecanismossutisecomplexosna

seleçãoecriminalizaçãodastravestis.Napropostadoprojetoinicial,percebiquehavia

determinadoumlugarespecificoparavoltaromeuolhar,nointuitodefocalizaraquilo

que queria enxergar. O que não sabia era que a adoção de ummodode olhar iria

consequentementedeterminaromeufocoe“enquadrar”arealidade,meconfigurando

enquanto uma pesquisadora exterior, e superior, cujo propósito seria de conferir

consistênciaesentidoaocampo,aoobjetodepesquisaeatéàrealidade.

Comeceiaconstataraimportânciadesepensaremcomoseviveodireito,ou

melhor,comosesobreviveadinâmicas,atos,leis,tribunaiseprocessosquenãofalam

10 O Transpasse é um projeto de extensão da UFMG vinculado à Clínica de Direitos Humanos(CdH/UFMG), à Divisão de Assistência Judiciária (DAJ/UFMG) e ao Núcleo de Direitos Humanos eCidadaniaLGBT(Nuh/UFMG),quevisaofereceracompanhamentopsicossocialeorientaçãojurídicaapessoastransetravestisemBeloHorizonte.Oprojetoresultadatrajetóriadeatuaçãodasentidadesnaárea de direitos da população LGBT,que inclui o desenvolvimento de ações de pesquisaeextensãocentradasnodebateemtornodassexualidades,relaçõesdegênero,cidadaniaedireitoshumanos.Emlinhasgerais,ainiciativaobjetivaampliarrepertóriosdeaçãoereflexãodaspessoastransetravestissobre suas trajetórias contribuindo para o desencarceramento dessa população e também para oaprendizadodeestudanteseprofissionais.Ainda,oprojetovisafacilitarvínculosentreasparticipanteseseuterritório,redesdeapoioeaprópriaequipe,tendocomoobjetivoaimplicaçãodosváriosatoresinstitucionaisacercadasvulnerabilidadesecriminalizaçãovividaspelaspessoastransetravestis.

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para as travestis, tampouco por elas. De pronto, alguns desafios se impõem nessa

empreitada.Comoabordaressecamposemcairnodiscursodaexceção,doanedotário?

Ainda,comoelaborarumaescritaquenãocaianotomdebestializaçãodasdecisões

jurídicase,aocontrário,proponhaumainvestigaçãoprofundaquenãoapenassirva

paradenunciarasmazelasdeumsistemafalido,massimparailustrarosmecanismos

responsáveispeloencarceramentodastravestis?

Como alguém que veio do campo do direito, o meu ímpeto inicial foi o de

procurarnacriminologiaumaportenecessárioparacompreenderos fenômenosde

criminalização que me deparava. Contudo, percebi que boa parte da literatura

criminológica, estruturada a partir da categoria de gênero, não abarcava as

experiências que encontrava em campo. Ao que me parece a criminologia, ao

incorporar perspectivas de gênero, tem incorrido em equívocos ao pensar esse

conceitocomopapelsocial,aditivooumerodescritorderealidade.Talusoquesetem

feito da categoriade gênero tempromovido,não poucas vezes, essencializaçõesde

experiências e restrição de análises a partir de chaves de leitura tradicionais, que

acionam e constroem representações de “masculinidade” e “feminilidade” para

descrevereprescrevernossosmodosdevivenciaromundo.Ora,quandoassumimos

que gênero é papel social, acabamos por acionar concepções prévias do que é ser

homemesermulher,ouseja,quandogêneroépapel,elejáéefeitodeumaimposição

anterior.

Sejanoacompanhamentoemdelegaciasdepolícia,sejaemaudiênciasouem

estabelecimentos prisionais, o que pude perceber é que a criminalização dessas

experiênciasestárelacionadacomasnormasdegênero11.FoicomJudithButler12que

pudecompreenderoalcancedasnormasdegêneronoquetocaaorganizaçãodonosso

camposensível,postoqueoefeitodeserum“sujeito”epodersercompreendido,visto,

ouvido,representado,dependedasarticulaçõesquesãoestabelecidascomasnormas

degênero.

Nessesentido,apassagememrevistadealgunsepisódioshistóricos,apartirdo

anode1890,paraentrarnoperíododaditaduramilitarbrasileiraatéalgumasdécadas

após a redemocratização do país e, assim, demonstrar as múltiplas configurações,

11BUTLER,Judith.Deshacerelgénero.Barcelona:edicionespaidósibérica,2006.12Idem.

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procedimentos e atores envolvidos na tecitura feita entre a criminalização e as

travestis.Essacosturacomplexaquesefezpresenteaolongodotempoapontapara

umaorganizaçãodatravestilidadenailegalidade,quepoucotemavercomalei,mas

serelacionacomasnormasdegênero.

Fuipercebendoqueaquestãoqueme rodeavadizia respeitoaomodocomo

construímosnossosobjetosdeinvestigação,“comodefinimosnossasquestões,como

formulamosasperguntasquenosorientamnumaexperiênciadoconhecimentocapaz

dedeslocarocampodojá-ditoeprospectaraspotênciaspelasquaisaordemdascoisas

se configura”13. Encontrei no aporte de Bruno Latour14 e Annemarie Mol15

possibilidades para compreender que o crime pode ser efeito de arranjos ou

associações entre elementos diversos. Com Jacques Rancière16, por sua vez, pude

trabalharosdadosobtidosemcampodemodoademonstrartaiscontingencias.Dessa

forma,volteiminhaatençãoparaanalisarosmodospelosquaisocrimeéproduzidoe

ordenado a partir de arranjos heterogêneos, na tentativa de experimentação que

denominei“criminalizaçãooperativa”.

Aquestãode interesse, assim, foisedelineandoemtornoda investigaçãode

conexões, parciais e contingentes, entre as realidades e objetos que produzem a

criminalização e a sua relação com as normas de gênero. As tecituras entre as

dimensõesdolegaledoilegal,aformacomoaverdadeseopera,eolastramentodos

atosenvolvidosnamaterializaçãodacriminalizaçãodetravestistornaram-secentrais.

Estetrabalhonãoconsisteemumacontribuiçãoparaaretóricadadenúnciadas

mazelasdeumsistemafalidoedeumapopulação“excluída”.Efetivamente,proponho

umdeslocamento,ouumarecolocação,naordemdas coisaspara, então, abriruma

fendanaqualoutraspossibilidadespodemsefazer.

13TELLES,Vera.Acidadenasfronteirasdolegaledoilegal.BeloHorizonte:Finotraço,2010,p.162.14LATOUR,Bruno.Reagregandoosocial:umaintroduçãoàteoriadoator-rede.Salvador:Edufba,2012;LATOUR,Bruno.Seiscartassobreashumanidadescientíficas.SãoPaulo:Editora34,2016.15 MOL, Annemarie. The Body Multiple: ontology in medical practice. Durham and London: DukeUniversityPress, 2002.;MOL,Annemarie. Política ontológica. Algumas ideiase várias perguntas. In:NUNES, JoãoA.; ROQUE,Ricardo. (Org.).Objetos impuros: experiências em estudos sociaise ciência.Porto:EdiçõesMelhoramentos,2008,p.63-75.16RANCIE} RE,Jacques.OsnomesdaHistória.SaoPaulo:EDUC/Pontes,1994.

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1. Estruturadadissertação

No primeiro capítulo, procuro percorrer algumas questões teóricas relativas

aosestudossobrecriminalização,mormenteaquelesfeitosnocampocriminológico,e

os estudosde gênero. Procuro, com isso, explorar os pressupostos epistemológicos

relativosàsconcepçõesdegêneroestruturantesdocampocriminológicoeapontara

importância analítica de compreendermos gênero como norma no que tange à

criminalizaçãodetravestis.

No segundo capítulo, inicio o trajeto analítico a partir de um apanhado de

fragmentos históricos sobre a criminalização de travestis no Brasil. Ao longo da

passagememrevistadealgunsepisódios,tendodemonstrarcomoasexperiênciasde

lésbicas,gays,bissexuais,travestisetransexuaisentramno“radar”dodireitopormeio

da penalização e repressão. Mais especificamente, no que toca às experiências de

travestis, defendo queo controle exercido pelo aparato punitivo-penal ao longo do

tempofoicrucialparamoldaraconstruçãodessasexperiênciasna ilegalidade,bem

comoparaassociá-lasanoçõesdecrimeecriminalidade.Pretendo,comisso,defender

a importânciadepensaros contornosespecíficoseas formasdeapariçãoqueesse

movimentodecriminalizaçãoediferenciaçãodasilegalidadesassumenosdiasdehoje.

Noterceirocapítulo,proponhoumaincursãonosdados,personagens,trajetos

esensaçõesqueotrabalhodecampomelogrounoqueserefereàcriminalizaçãode

travestis.Apartirdaelaboraçãodecenas,procurodemonstrarumaconcatenaçãode

atosemapearumcertotrajetodematerializaçãodacriminalizaçãodetravestis.Em

cadapontodevirada–precariedade,prostituição,violência,migração,patologização–

proponho ilustrar os arranjos que convergem histórias diversas e encenam a

criminalizaçãodetravestis.

No quarto e último capítulo, exploro os dados obtidos em campo para

demonstrarqueocrime,longedeserumaentidadeabstrata,sóseefetivaporquese

ancoraemprocessossituadosemcadalugar,produzidosemcadaato,acionadopor

múltiplos atores e sustentado pelas normas de gênero. Busco, então, demonstrar a

importânciademapearmosomovimentodasilegalidadesapartirdeatos,conexões,

tecituras que compõem os trânsitos entre o legal e o ilegal e que produzem a

criminalização de travestis. Exponho os contornos iniciais do que seria a

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“criminalização operativa” e a potência analítica desse método para visibilizarmos

comoasinfraçõessãodistinguidas,distribuídaseutilizadasdeformasespecíficas.

2. Advertênciasmetodológicas:tentativaseexperimentações

Éimportantepontuarqueosdesenhosmetodológicosadotadosnestetrabalho

sãofrutosdapermanentetensãoentrecircunstânciaspráticasdocampoeestratégias

deescrita.Poróbvio,essasduas17dimensõesnãosãoestáticasefacilmenteseparadas

dessaforma.Esseestadodepermanenteconfluênciaimplicapensaroconhecimento

comoumaconversa“situadaacadaníveldesuaarticulação”18,centradonaconstrução

de “umargumentoa favordo conhecimentosituadoe corporificadoe contravárias

formasdepostuladosdeconhecimentonãolocalizáveis”19.Atítulodidático,permita-

mediscorrersobrecadaumdosdoisprimeirospontos.

2.1. Ocampo

Noqueserefereàscircunstânciaspráticasdocampo,éimportantepontuarque

percorri vários lugares ao longo dos dois anos demestrado, desde prisões, fóruns,

delegacias,entreoutros.Talvez,maisdoquenomearoslugares,sejainteressantefalar

deumapostura,quasequeumasensação,queadoteinesseperíodo.Talpostura foi

largamente influenciada pela perspectiva flutuante que, mais do que um método,

consisteem“permanecervagoedisponívelemtodaacircunstância,emnãomobilizar

a atenção sobre um objeto preciso, mas em deixa-la ‘flutuar’ de modo que as

informaçõesopenetremsem filtro, semapriori, ate omomentoemquepontosde

referência,deconvergências,apareçam”20.

Essapostura,emcertosentido,dizdapercepçãodequenãopoderiaestabelecer

umarelaçãodativacomocampo.Emoutraspalavras,nãoexistiamaisocampodeum

17Énecessárioacrescentar,ainda,osolharesteórico-metodológicos,queserãoabordadosnocapítuloseguinte.18 HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio daperspectivaparcial.CadernosPagu(5),1995,p.39.19Ibid.,p.22.20 PETONNET, Colette. Observação flutuante: o exemplo de um cemitério parisiense. Antropolítica.Niterói,n.25,p.99-11,2.Sem.2008,p.100.

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ladoealgoquefaçaarelaçãodooutro;ocampotornou-seaminhaprópriavivência.O

campo foi se consolidando enquanto a própria realidade, a existência mesma,

permeadapor“sombrasemeios-tons”21quetendemosaafastardapráticadepesquisa.

Mas,paraisso,percebiquedeveriamudaraformadepesquisare,emúltimaanálise,

proceder a uma mudança comigo mesma. E isso, decerto, trouxe uma série de

insegurançasereceios.

Essa constante indeterminação ou flutuação, por tempos, me colocou em

situações em que questionei a possibilidade de encontrar um “fio condutor” para

proporadissertação.Eracomoseeusoubesseoquegostariadedizer,masdesconhecia

as ferramentas ou modos possíveis de dar vida e significados metodológicos

necessários.Apesardosriscos,estaràderivamepossibilitouencontrarverdadeiros

“achados”depesquisaque, apesardeheterogêneose singulares,preencherammeu

diáriodecampoaolongodosanos.

Opontodereferência,talvez,foiabuscapormeaproximardastravestis,ouvir

suashistórias,traçar,apartirdasobservações,oentrelaçamentodesuastrajetórias

comacriminalização.Foiexatamenteessaposturaquepossibilitoutecerasmalhasda

aceitação22juntocomasminhasinterlocutoras.

Fato é que, ao longo do meu tempo de convivência com as travestis, estive

imersa em dinâmicas de distanciamento e proximidade que possibilitaram

compreender,aindaqueparcamente,oefeitocausadopelotransitardeseuscorpos

nas ruas,nosmercados,nosespaçospúblicos.Esseprocesso também foramediado

pelosnossosatravessamentosderaça,gêneroeclasse,eestevepresenteotempotodo

noestabelecimentoderelaçõesenonossotransitarconjuntonosespaços.

Assim, relacionar-me com as travestis dizia muito sobre o meu lugar como

pesquisadora.Oefeitocausadopelomeutrânsitojuntoaelas,sendoumauniversitária

branca de classe média, mobilizava múltiplas classificações por onde passávamos.

Lembro,certavez,quandofomosjuntascomprarositensnecessáriosparaarealização

das oficinas23. Entravamos nós quatro nas lojas. Elas, altas, brancas, esbeltas, com

longoscabelosloirosemorenos,peitosebundasperfeitamentedelineados.Eeu,nos

21CRAPANZANO,Vincent.Acena:lançandosombrasobreoreal.Mana,11(2),p.357-383,2005.22SILVA,Hélio.Travestis:entreoespelhoearua.RiodeJaneiro:Rocco,2007,p.37.23Maisinformaçõessobreissoserãoapontadasnoitem2doCapítulo3.

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meus1,60mdealtura,branca,cabeloscurtose“poucofeminina”comoelasmesmas

falavam.Nessedia,umfuncionáriodalojanãoparavadenosolhardesdeomomento

quehavíamoschegado.Esseefeitoeraatécorriqueiroesempreeraaproveitadopelas

travestisque,cientesdofascínioquecausavam,faziamcontatosedescolavamclientes

por ali mesmo. Mas, daquela vez, o fascínio talvez tenha dado lugar para o

estranhamento.Essefuncionáriomechamouparaumcantodalojaeperguntou“você

éassistentesocial?”.Fiqueiatônitacomaabordagemecomaperguntae,nademora

pararesponder,ouviumavozao fundodizer“não!Elaéadvogada”.Aaproximação

vinha, não poucas vezes, acompanhada da demarcação do meu lugar enquanto

advogada.Emumadasvezes,quandodasolturadeIsispelasegundavez,recebidela

umabraçocalorosocomosdizeres“minhaamiga,minhairmã,minhaadvogada”.

Aomesmotempoquefuimarcadaemumlugardistantedodelas,pudemever

inserida em dinâmicas de aproximação. Lembro de certa vez, quando recebi uma

mensagemnomeu celular de algumas travestis procurando a Carla. Ela, que havia

recebidonaquelediaobenefíciodoalbergue,estavaperdidanocentrodacidade–seis

anosapósterficadonatranca24.Distraídanocaminhar,ouçoumavozchamandopelo

meunomedooutroladodarua.Coincidentemente,eraCarla.

Muito desconfiada, Carla reclamava de enjoos constantes e perda de apetite.

Mesmoassim,conseguiconvencê-laaalmoçarcomigo, “umpoucodecomida fresca

podetefazerbem”,disse.Depoisdoalmoço,leveielaaoencontrodasamigas,Fernanda

eLarissa,que,naquelaaltura,estavampreocupadascomoseusumiço.Naqueledia,

lembrodeouvir:“Júlia,vocêjáédafamília.Daquiapoucoviratravestiigualagente”.

Dessa forma, mais do que uma experiência de pesquisa, me vi tomada

emocionalmenteeenvolvidanasdinâmicas.Mevi,sobretudo,comprometidaemfazer

frente a uma certa tendência de pensar essas experiências a partir de abordagens

generalizantes,quebeiramà exotificação.Abordagensqueacabamcolocandoessas

experiênciasemumlugarcomum,carentedereflexãoequasedeterministadesuas

potencialidades. Não é por outro motivo que a etnografia foi importante para

“exorcizaraexotização”25.

24Atrancaserefereaocumprimentodepenatotalmentenoregimefechado.25Ibid.,p.44.

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2.2. Aescrita

Convicta de que as conexões e ligações que conseguimos ver, interpretar e

escrever,dizemmuitoarespeitodenossasposições26,ouseja,deperspectivasparciais,

localizadas,situadase comprometidas27, adotei estratégiasdeescritapautadaspela

etnografia28epelapoética.Assim,adotarumaescritalocalizadaimplicaconceberque

asconexõesfeitasnoatodeescreversãosempremúltiplaseprovisóriasedizemmuito

sobreomeulugarnaproduçãodoconhecimento.EmdiálogocomGeertz29,pensarna

etnografia enquanto uma descrição densa implica nos havermos com a sua

característica interpretativa. E, por sua vez, é a interpretação que proporciona o

posicionamentodopesquisadoremcampo.

Interpretareregistrarovividofoiumapráticaqueadoteiaolongodessetempo

depesquisae reproduzinaspáginasdeste trabalho.Emcampo,oolhareoouvir30

fizeram minha percepção da realidade. A escrita, enquanto parte indissociável do

pensar,materializouminhasexperiênciaseconsolidouométodoetnográfico.Sempre

munidademeudiáriodecampo,assumiqueoregistroésemprelacunar,masqueessa

ferramenta“traduzmelhoroclimaemocionaldacoleta,tolhemenosospersonagens,

nãosubmeteosepisódiosaoplanoprévioepermiteareordenaçãodosdados”31.Dessa

forma, o aporte proporcionado pela etnografia, enquanto uma forma especial de

operar,umaobservaçãofinaemqueoacúmulodedetalhesserearranjanosentidode

múltiplos entendimentos32, que me permitiu uma liberdade no relato, foi central.

Portanto,propuselaborarumplanodereferênciaquedeslocasseasverdadeseosfatos

incontestáveise,assim,desfaze-loscomotais,“namedidaemquefatos,coisas,atores

26HARAWAY,op.cit.27Idem.28 Para Peirano, a etnografia não se constitui um “detalhe metodológico, que antecede a teoria; aindagaçãoetnográficaemsi já temumcaráter teórico,porquesomente (ouprincipalmente)elanospermitequestionarospressupostosentãovigentespelasnovasassociaçõesounovasperguntasquenosproporciona”.Contudo,atítulodidáticoreferencioapráticaetnográficaaquienquantoummétodo.Cf.PEIRANO,Mariza.Etnografianaoemétodo.HorizontesAntropológicos.PortoAlegre,ano20,n.42,2014,p.385.29GEERTZ,Clifford.Ainterpretaçãodasculturas.1ªed.13ªreimp.RiodeJaneiro:LTC.2008.30 CARDOSODE OLIVEIRA, Roberto. Olhar, ouvir e escrever: o trabalho do antropólogo.Revista deAntropologia.SãoPaulo.USP.1996.V.39.Nº1.P.13-37.31SILVA,op.cit.,p.41.32MAGNIANI,JoséGuilhermeCantor.Etnografiacomopráticaeexperiência.HorizontesAntropológicos.PortoAlegre,ano15,n.32,p.129-156,jul./dez.2009.

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sereordenamemumoutrodiagramaderelações,numoutrotabuleiro,emqueaspeças

sãopostas”33sobumoutrojogodeforças.

Essamontagemdomeucadernode campo foi largamente influenciadapelas

leiturasde JacquesRancière.Confessoque tal empreitada se configuroucomouma

experimentação,umgesto,umatentativademesclarcontribuiçõesdaetnografiacom

cotejosdaperspectivapoéticadofilósofoe,assim,(tentar)elaborarumaescritaque

fossecomprometidapoliticamente.Afinal,assumirolugarpolíticodaescritaimplica

“nãoexporummétodocomoumconjuntodeprocedimentostécnicos,masaorevés,

exigirqueummétodosejaumprincípiodeação,umaexperiênciaemsi,umaposição

subjetiva”34.

Paratanto,encontreinaelaboraçãodecenasumaformadeinserirhistóriase

narrativasemumarededesignificação.Umacenaéumargumento,nãoéumcaso.

Enquanto ferramenta analítica, proponho uma cena de criminalização de gênero,

divididaem trêsatos.Assim, fareiusodadescriçãoexcessiva,dapotencialidadedo

detalhe, da literalidade35, para fornecer ferramentas ou inteligibilidades que

possibilitem reenquadrar a cena. Tal empreitada se dá, sobretudo, a partir da

constatação de que a criminalização de travestis é articulada para invisibilizar a

desigualdade.

Nãoéporoutromotivoque,paraconhecê-la,faz-senecessárionomearodano

para que ele se torne visível. Quandoutilizo a palavra “dano”nãome refiro auma

injúria, ou a uma ofensa. O dano, aqui, se trata de uma assimetria inalcançável e

irreparável,quenuncapoderásereliminado,soboriscoderetirarmosaradicalidade

daalteridadequepermeiaarededeafetosconstruídacomessaspessoas.Explicitaro

dano,porsuavez,significatratá-lopormeiodalinguagem,daescritaedaliteratura.

Nãoéporoutromotivoqueautilizaçãodessemétodopodedespertardúvidas

e questionamentos. Talvez frustre o leitor ávido por palavras difíceis e conceitos

fechados–alertoquenãosetratadisso.Trata-se,talvez,deempreitarumaescritaque

33TELLES,op.cit.,p.163.34 PRADO,MarcoAurélioMáximo;MARQUES,Ângela Cristina Salgueiro.Ométododa igualdade emJacquesRancière:entreapolíticadaexperiênciaeapoéticadoconhecimento.Revistamídiaecotidiano,vol.12,2018,p.10.35 Para Rancière, a literalidade é uma das formas de manifestação mais evidentes da poética doconhecimento. Cf. PRADO, Marco Aurélio Máximo; MARQUES, Ângela Cristina Salgueiro.Diálogos edissidências:MichelFoucaulteJacquesRancière.Curitiba:Appris,2018,p.60.

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relacionesentidosdiferentes,quebusque“conexõesnãoplanejadasdentrodotexto,

fazendo-o conectar-se horizontalmente a outros, sejam eles científicos, políticos,

literários,conferindotexturaedensidadeaoenunciadoemquestão”36,que,nomeu

caso,compreendeprocessos,cartastrocadascomtravestispresas,documentos,laudos

eanotaçõesdomeucadernodecampo.

Trata-sedeummétodoquerefletesobreasformasdeproduçãodesentidodo

conflito e sobre quem pode ser escutado como argumento ou não argumento. Tal

“mododefazer”ébaseadoemuma[...]operaçãodissensualquedeslocaobjetosediscursosdeseutempoeespaço designados hierarquicamente no cotidiano e nos quadrosinterpretativos convencionais e os reconfigura para o campo dasinvenções de formas diversas de linguagem, de manifestação eargumentação– invençõesque caracterizama comunicação comoumarededetraduçõesecontra-traduções.37

Omeu esforço será de constituir uma voz que não seja explicativa, que não

almejeencontrarexplicaçõessobreomododevidadetravestis;seráodeassumirum

papelnãoexplicativoourepresentativo,pois,casocontrário,correreioriscodereduzir

aalteridadedeformaradical.Poroutrolado,écrucialqueeuassumaserumavoznesse

processoequereconheçaomeuprotagonismonaescrita,poisseráexatamenteomeu

olharparaesseseventosqueoconfigurarãoenquantotal.Assim,odesafioseráode

constituir-meumaentreasvozesesituaracriminalizaçãodastravestisemumoutro

jogodeescala,sobumaperspectivamaisampliada.

Dadoao caráterheterogêneodomaterialque irei trabalhar– comoreferido,

cartastrocadascomastravestispresas,autosdeprocessospenaiserelatosdecampo

–recorrereià“poéticadoconhecimento”deRancièreparalereconstruirascenas,

postoasua“formadeolharelerdocumentos,objetosartísticosehistóricosapartirde

uma posição teórica igualitária, deslocando-os de um certo roteiro de leitura que

conformee,decertomodo,aprisionasuaspossibilidadesde interpretação”38.Nesse

sentido,apoéticavisa

36PRADO;MARQUES;op.cit.,2018,p.17.37Ibid.,p.9.38Ibid.,p.16.

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[...]definiromododeverdadeaoqualessesaberseconsagra,nãoparalhedarnormas,paravalidarou invalidar suapretensão científica,maspara entrelaçar os discursos da história, da política e da literatura naproduçãodeumanarraçãodeumahistóriacomum,legívelparatodoseensinávelatodos.39

A figura do narrador na poética é o de “colocar a palavra onde há o

silenciamento”40,configurandoumaescritaemque“aimagemeopensamentonãose

distinguem uma vez que é no exagero do excesso de nomes e corpos que essas

referencialidadessãodispostas”41. Assim,buscar-se-áconstruirummovimentoque

torneacriminalizaçãoseletivadetravestisum“efeitodecertascausas,equeamostre

comoproduzindoformasdeconsciênciaeafetosqueamodifiquem”42.Aconstruçãoe

adesconstruçãodacena,osjogoscomsignificaçõesmúltiplaspoderãoevidenciarque,

quando você olha a cena de outro lugar, gênero viraum analisador,mas não é um

analisadorquandoolhamosdamaneiraconvencionalutilizadapelosistemapenal,em

queutilizamosacategoriagênero(quandousamos)paradescreverumadeterminada

condiçãoouposiçãoidentitária.Aexperiência,aofinal,irásematerializarnorelato43,

queseconstituienquantoaprincipalquestãoenãoumcompromissoderepresentação

deumacertahistóriacausaloudeumarealidadeobjetiva.

Éimportantepontuar,aqui,queaetnografiaeapoéticanãosãoincompatíveis;

ouso dizer que guardam mais semelhanças do que aparentam. Talvez, a poética

configure uma nova forma de operacionalizar a prática etnográfica, uma nova

racionalidade não apenas ao “olhar” para o campo, como também para tratá-lo

posteriormentepormeiodaescrita.

39RANCIE} RE,op.cit.,p.16-17.40PRADO;MARQUES,op.cit.,2018,p.30.41Idem.42CRAPANZANO,op.cit.,p.379.43RANCIE} RE,op.cit.

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CAPÍTULO01:Aspectosteóricos:normasdegêneroecriminologia

Umadasimpressõesquemeacompanharamaolongodomeucampoeraade

que eu precisava ajustar a minha “lente” o tempo todo para conseguir ver

determinadasexperiências.Era comose fossenecessáriodeslocarrotineiramentea

formacomqueeuliaepensavadiantedaimensidãodaquiloquevivia,ouviaesentia

comastravestis.Compreenderaquelesprocessosdecriminalizaçãosetornouatônica

davezeosesforçosforaminúmerosparaconseguirtraduzirumpoucotudoaquilo.

Depronto,omeuprimeiromovimentofoiodemedebruçarsobrealiteratura

criminológicaparatentarnomearearticularasimpressõesquetinha.Contudo,oque

pude perceber é uma lacuna, ou uma certa insuficiência do campo teórico que se

propõe a pensar os processos de criminalização de lidar com as experiências de

travestis.Comopassardotempo,conseguinomearesseincômodoeapontarcaminhos

paraotensionamentodealgunspressupostosdacriminologia.Comeceiaquestionar,

então,nãosomenteaincorporaçãoounãodegêneroenquantocategoriadeanálisenos

processos de criminalização, mas também quais concepções de gênero são ali

utilizadaseasconsequênciasdaíadvindas.

Para ilustrar o percurso deste capítulo seguirei em dois tempos: 1)

apontamentossobreacriminologiae;2)normasdegênero.

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1. Dacriminologia

Conheci Sarah na salinha apertada do plantão de atendimento jurídico da

Faculdade.Elaestavacomváriospapéisnasmãosetantasdúvidasquelogolembrei

das “mães ensacoladas”. Sedenta por informações e com a fala acelerada era difícil

entenderoquesepassava.Trocavaaspalavrasecadavezquedemonstravanãoter

entendido,maisansiosaficava.FaziasetemesesqueSarahlembravacotidianamente

dodiaemquequebrouocarrodeumclientequenãopagoupeloprograma.Sentia-se

vigiada,acuada,comofuturoincerto.Seriapresa?Teriaquerespondersobreoatona

frentedeumjuiz?

Uma pesquisa rápida no sistema e o alívio veio logo em seguida. Não havia

processoalgum.Logopenseicomoomeroacessoàinformaçãoporalgotãobanalhavia

sidonegadoaeladeformatãosilenciosa...Apósoalívio,aconfissão:“Nãoacredito!

Vocênão imaginacomoeuestava...Todasasnoitesquandosaioparatrabalharsou

parada por polícias, nomínimouma vez por noite, sabe? E sempremeunome era

jogadonosistemaparaconferiralgumacoisa...Morriademedodeirpresa”.

RelatoscomoodeSarahnãosãoexceção,ousodizerqueseconfiguramcomo

regra.Talvezsejamamedidadeumsistemapenalquehámuitotemseconsolidado

enquantoseletivoevigilantededeterminadaspessoas.Digo“determinadas”porqueo

nossosistematemcor,classesocial,faixaetáriaegênero.Bastaumaolhadarápidanos

númerosdoencarceramentonoBrasileas812milpessoas44,deesmagadoramaioria

composta por jovens negros, para reconhecermos que o brando “todos são iguais

perantealei”sófunciona“atéapáginadois”.

Oempenhoparadesvendarasengrenagensdessesistematambémnãoénovo

e ocupa um lugar central nas teorizações de vários campos do conhecimento que

consagraramaCriminologiaenquanto lugarprivilegiadode taisreflexões.Acontece

que,aolongodotempohistórico,ocampocriminológicofoisealterandodetalforma

que “cada definição de criminologia inclui objetivos e métodos determinados,

44 MINISTEá RIO DA JUSTIÇA. Infopen. Disponível em:https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/17/cnj-registra-pelo-menos-812-mil-presos-no-pais-415percent-nao-tem-condenacao.ghtml.Acessoem:dez/2019.

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ferramentas e palavras determinadas”45, de modo que, hoje, podemos falar de

múltiplascriminologias.

Primeiramente,éimportanteressaltarquenãomeinteressaelencaroucontar

a história do pensamento criminológico. Aqui, vou me ater unicamente a cotejar

algumascontribuiçõesdocampodacriminologiacrítica,feministaequeer,paraaofinal

defenderaimportânciadacriminologiaincorporaranormatividadedegênerocomo

pressupostoepistemológico.

É notório que, nos últimos tempos, a interface entre criminologia,mulher e

gênero tem, cada vez mais, sido tensionada por diversos teóricos e áreas do

conhecimento. As reflexões iniciais feitas no campo criminológico nesse sentido,

largamenteinfluenciadaspelopositivismocientífico,eramorientadaspeloestudodas

causas do crime e do comportamento criminal, denominado como paradigma

etiológico46.Nesseparadigma,aquestãodamulhereocrimesefezpresente,sobretudo

nasteorizaçõessobreapossívelrelaçãoentre“sinaisbiológicosadeterminadostipos

de delitos cometidos por mulheres”47. A questão da sexualidade feminina, àquela

época,ocupavaigualmenteumlugarcentralnessarelação,eaprostituiçãocomeçoua

ganharcontornoscientíficosquepudessemexplicarumaindisposiçãomoral48paraa

mentiraeaextorsão.Assim,“ograveproblemadasmulhereséqueseriamamorais.

Significa dizer: engenhosas, frias, calculistas, sedutoras, malévolas. Características

estasquesenãoimpulsionamasmulheresinstintivamenteaodelito,fazem-nascairna

prostituição”49. Foi assim que tais estudos reafirmaram algumas características

criminosas às mulheres, cuja roupagem científica garantia um controle maior e

legítimoaointerditoadeterminadascondutas50.

45ANITUA,GabrielIgnacio.Históriadospensamentoscriminológicos.RiodeJaneiro:Revan–InstitutoCariocadeCriminologia,2008,p.23.46BARATTA,Alessandro.Oparadigmadogênero:daquestãocriminalàquestãohumana.In:CAMPOS,CarmenHeinde(Org.).CriminologiaeFeminismo.PortoAlegre:EditoraSulina,1999,p.19-80.47Ibid.,p.34.48Apesardetaisteorizaçõesserem“datadas”,recentementemedepareicomumanotíciadejornalqueflertavafortementecomesseentendimento,emqueasmulheresforamdescritasenquantopossuidorasde“umpassadonadarecomendável”cujotestemunhopoderiafacilmenteserdescredibilizado.FOLHADESÃOPAULO.“DefesadeJoãodeDeusdizqueex-pacienteéprostitutaetempassadodeextorsão”,2018.Disponívelem:https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/12/defesa-de-joao-de-deus-diz-que-ex-paciente-e-prostituta-e-tem-passado-de-extorsao.shtml.Acessoemnov/2019.49MENDES,SoraiadaRosa.Criminologiafeminista:novosparadigmas.SãoPaulo:Saraiva,2017,p.43.50Ibid.,p.47.

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A resistência à noção ontológica de criminalidade presente no paradigma

etiológico,noquetocaàquestãodamulher,começouasedesenvolvernasdécadasde

1960e197051, emque se consolidouapassagemparaum“paradigmacentradona

investigaçãodareaçãooucontrolesocialepenal(violênciainstitucional)”52.Aomesmo

tempo,oconceitodecriminalidadesedeslocavaparaaperspectivadecriminalização

primária,emqueseconstatavaaexistênciade“processosdecriminalizaçãofiltrados

peloprincípiodaseletividadepenal”53.Talmovimentoconsagrouainsurgênciadeuma

criminologia crítica, na qual “o sistema penal receberá uma interpretação

macrossociológica”, dando ensejo ao desenvolvimento feminista da mesma teoria,

marcadapelascategoriasde“patriarcadoegênero”54.

Talmovimentovoltouaatençãoparaamulheresuacondiçãonadinâmicade

criminalização e não somente visavam denunciar uma completa invisibilidade “da

mulher, seja como objeto, seja como sujeito da Criminologia e do próprio sistema

penal”55, como igualmente apontaram para a complexa rede de controle social

“informal” presente nos processos de criminalização, além de contribuir para o

desenvolvimentoda“vitimologia”56.Acriminologiafeminista,então,surgecomalguns

desafios de pautar a discussão da mulher e, em alguma medida, do gênero nos

processosdecriminalização,pois,[...] enquanto a criminologia crítica desafiou os pressupostos dopositivismo na explicação do crime dos homens, negligenciou-se emreconhecercomotaispressupostospermanecerammaisprevalentesnasconcepçõesacadêmicasepopularessobreocrimedasmulheres.57

Foi se consolidando o entendimento de que o sistema penal, enquanto

mecanismo, é permeadopor diversos influxos e regulações que atuam, em sentido

51SMART,Carol.Woman,crimeandcriminology:afeministcritique.London:Routledge&KeganPaul,1976.52 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da(des)ilusão.RiodeJaneiro:Revan,ICC,2012,p.127.53BATISTA,VeraMalaguti.Introduçãocríticaàcriminologiabrasileira.RiodeJaneiro:Revan,2011,p.89.54Idem.55ANDRADE,op.cit.,p.120.56 BARATTA, op. cit., p. 19-80; SOUZA, Luanna Tomaz de. Vitimologia e gênero no processo penalbrasileiro.Cadernosdegêneroetecnologia,n.27e28,ano:10,juladez/2013.57HEIDENSONHN,Frances;SILVESTRI,Marisa.Genderandcrime.In:MAGUIRE,Mike;MORGAN,Rod;REINER,Robert(Orgs).TheOxfordhandbookofcriminology.Oxford:Oxfordpress,2002.

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amplo, no controle social de forma tal que não é possível reduzi-lo à lei,mas sim

concebê-loenquanto“umprocessoarticuladoedinâmicodecriminalização”58.Nesse

processo,convergem“nãoapenasas instituiçõesdecontrole formal,mastambémo

conjuntodosmecanismosdo controle social informal”59 tais comoa família, escola,

religião,raçaegênero.

A crescente preocupação com os episódios de violência contra a mulher,

igualmente,pautouainvestigaçãofeministasobrearecorrênciadetaisatospraticados

noâmbitodomésticoeapontouparaumadimensãodaviolênciaqueatéentãonãoera

problematizada. Ainda, tornaram-se frequentes as críticas ao caráter androcêntrico

das ciências, à violência institucional contra mulher e ao modelo de investigação

criminológica, introduzindo o gênero como um guia necessário para empreitar tal

investigação60.

Acríticacontundenteà invisibilidadedamulhernessecenário,bemcomoda

presença de suposições e estereótipos, e até entendimentos, relativos à mulher,

contudo, parece assumir outros contornos quando pensamos na experiência de

travestis.Arecorrentedenúnciarelativaàinvisibilidadedasmulheresnareflexãoeno

“mundodocrime”nãosesustentanocasodetravestisetransexuais.Nesseúltimo[...]oquesepodeperceber,portanto,équenãoháumainvisibilidadedapopulação transexual e travesti nos sistemas de Justiça, muito pelocontrário, há uma hipervisibilidade, contornada pela moralidade dasconvençõessociaisedasnormasdegênero.61

Mesmo se considerarmos que a palavra “mulher” não deve ser considerada

como tendo um sentido único, pois cada sujeito e sujeita se constitui de muitas

características–umateiadediferençasquecompõeum“lugar”social62–,namaior

parte da produção criminológica feminista produzida até o presente momento

predominaoentendimentodegêneroenquantopapelsocial,alémdeseateràcrítica

58ANDRADE,op.cit.,p.133.59Idem.60CAMPOS,CarmenHeinde.Criminologiafeminista:teoriafeministaecríticaàscriminologias.RiodeJaneiro:EditoraLumenJuris,2017.61PRADO,MarcoAurélioMáximo;MENDES,BárbaraGonçalves;CARNEIRO, Júlia;VIDAL, JúliaSilva;LAMOUNIER,GabAlmeidaMoreira;FREITAS,RafaelaVasconcelos.Aconstruçãoinstitucionaldogênerocriminoso.RevistaBrasileiradeCiênciasCriminais.Vol.146,ano26,SãoPaulo:EditoraRT,2018,p.532.62CAMPOS,op.cit.,p.17.

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aopatriarcadodeformavaga,tendoemvistatodasaslimitações63quetalconcepção

impõe.Tem-seque,quandogêneroépapel,elejáéefeitodeumaimposiçãoanterior.

Anoçãodepapel,portanto,pressupõeumsujeitoúnicoformadoanteriormenteque

assumeumlugardestinado.

Assim, como o controle informal e formal foi concebido pela criminologia

feminista no que toca à experiência das mulheres64, no caso das travestis, sua

identificaçãocomocriminosaspareceserelacionarsimplesmenteportaisexperiências

terem se furtado às normas de gênero65. De forma hiperbólica, é como se o

comportamento em si, ou a própria existência das travestis fosse considerado

criminoso.

Adivisão,aindaquedidática,dosespaçospúblicoseprivadosnacompreensão

dosfenômenosdaviolência,igualmente,nãodácontadepensá-losenquantosistema66,

e também apontam para uma insuficiência da teoria em lidar com a concepção de

públicoeprivadoenquantoumefeitododiscurso.Obviamentequenãopretendo,aqui,

questionaravalidadeouapertinênciadetaisentendimentosnoquetocaàquestãoda

mulher.Pretendoapenasproporumanovachavedeinterpretaçõesqueconstituaum

entendimento questionador de tais premissas, vistos que são produto de uma

racionalidade“anterior”.

63Pateman,apontaquea“amaioriadasfeministasquedefendeoabandonodotermo‘patriarcado’ofazporacharqueesseconceitoéinoportunoea-histórico”(1993,p.52),eu,noentanto,reconheçoqueeletemsuavalidadeaodenunciarsituaçõesdeviolênciasemdadotempo/circunstância,masoafastoemvirtudede sua incapacidade em ser operativo o suficiente para suscitar alterações nessa ordemdecoisas,vezqueseuaparatoepistêmicopadecedosmesmosvíciosessencialistasdasordensdegêneroedeheterosexualidadequebuscasuperar.Cf.PATEMAN,Carole.Ocontratosexual.Trad.MartaAvancini.RiodeJaneiro:Pazeterra,1999,p.52.64Importantedestacartambémquemuitasdasteorizaçõesdacriminologiafeministadeixaram“delado”reflexõessobreaexperiênciadepessoaslésbicas.ParaRobson,identificarasrazõesdessainvisibilidadeseriaumprimeiropassoimportante,emquenossaspreocupaçõesdeveriamsevoltarparaaformaquealesbianidadeseconstituicomofatornoprocessocriminal.Assim,aperguntaquedevenosguiar,maisdoqueapreocupaçãocomquemérealmentelésbica,deveser:“whateffect is lesbianism–astrope,stereotype,theoryofthecase,prejudice–articulatedduringthecriminalprocess?”Cf:ROBSON,Ruthan.Convictions:Theorizing lesbiansandcriminal justice. In:STYCHIN,C.;HERMAN,D.;Legal inversions:lesbian,gaymen,andthepoliticsoflaw.Philadelphia:templeuniversitypress,1995,p.190.65PRADOet.al.,op.cit.,2018.66Ahomofobiapodeserconsideradaenquantoumsistemadehumilhação,normativo,emqueatuamdiversos mecanismos para o controle de sexualidades e gêneros desviantes. Tal constituição estádiretamenterelacionadacomaheteronormatividadeesuamanifestaçãonãosedádemaneirafortuitaouisolada,sobretudonasinstituições.Cf:PRADO,MarcoAurélioMáximo;JUNQUEIRA,RogérioDiniz.Homofobia, Hierarquização e Humilhação Social. In: VENTURI, Gustavo; BOKANY, Vilma(Org.).DiversidadeSexualeHomofobianoBrasil.SãoPaulo:EditoraFundaçãoPerseuAbramo,2011,p.51-72.

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Deve-se reconhecer, contudo, os ganhos inegáveis proporcionados pela

criminologia queer ao propor uma reflexão que tenha lugar no “projeto feminista

dentro da criminologia, a fim de questionar não apenas os pressupostos da

criminologia,mastambémdofeminismosobregêneroesexualidade”67.Dessaforma,

a criminologia queer apontou para a constituição homofóbica científica da

criminologia68 e lançou bases para um questionamento profundo da

heterossexualidadecompulsóriaemqueestáassentada.Assim,Criminologiaqueerdeveterumaabordagemnovaeativanaabordagemdahomofobia,paraasquestõesderaça,classeegêneroeparaaquestãodo parentesco. As posições de gênero e sexualidade dos infratores evítimasdevemserpensadasdenovo.Omodoheteronormativodepensarsobreparentescoefamíliadevesersubstituídoporumanovavisãoquevê as relações, identidades e conceitos humanos como relaçõescontingentes e historicamente específicas de poder e interessespolíticos.69[traduçãominha]

Todavia,épossívelafirmarquehápoucodiálogoentretaiscamposdepesquisa

no Brasil e o que fora denominado “criminologia queer”70 carece de maiores

tensionamentosquequestionemnãoapenasaheteronormatividade,mastambémo

binarismo de gênero. Ainda, me parece que a projeção e desenvolvimento desses

estudosemoutrospaíses71nãodácontadelidarcomaespecificidadedaexperiência

67 Do original: “This reflection should benefit of and take place within the feminist project insidecriminology,inordertoquestionnotonlycriminology’sbutalsofeminism’sassumptionsaboutgenderandsexuality”.SORAINEN,Antu.Queeringcriminology.Paperpresentedat“3rdAnnualConferenceofthe European Society of Criminology “Crime and Control in an Integrating Europe”, University ofHelsinki,2003,p.5.68 CARVALHO, Salo; DUARTE, Evandro Piza. Criminologia do preconceito: racismo e homofobia nasCiênciasCriminais.SãoPaulo:Saraiva,2017,p.211.69Dooriginal: “Queeredcriminologyshould takeafreshandactiveapproach tohomophobia, to thequestionsofrace,classandgenderandtothequestionofkinship.Thegenderedandsexualisedpositionsofoffendersandvictimsshouldbethoughtanew.Theheteronormativewayofthinkingaboutkinshipandfamilyshouldbereplacedbyanewviewwhichseeshumanrelationships,identitiesandconceptsascontingentandhistoricallyspecificrelationsofpowerandpoliticalinterests.Cf.SORAINEN,op.cit.,p.5.70CARVALHO,Salo.Sobreaspossibilidadesdeumacriminologiaqueer.SistemaPenal&violência,PortoAlegre,v.4,n.2,p.151-168,2012.71Devem-se reconheceras importantescontribuições dacriminologiaqueeremoutros países.Umavastaproduçãocriminológica foiproduzidasobreo tema,Cf.BALL,Matthew.Criminologyandqueertheory: dangerous bedfellows? Critical Criminological perspectives. Australia: Palgrave Macmillan,2016;BUIST,CarrieL.;LENNING,Emily.Queercriminology.NewYork:Routledge,2016;PETERSON,Dana;PANFIL,Vanessa.HandbookofLGBTcommunities,crimeandjustice.NewYork:Springer,2014;STONE,Codie;BUIST,CarrieL.Transgendervictimsandoffenders:failuresoftheUnitedStatesCriminalJusticeSystemandtheNecessityofqueercriminology.CriticalCriminology,March2014,Vol.22,issue1, p. 35-47; WOODS, Jordan Blair. Queer Contestations and the Future of a Critical “Queer”

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datravestilidadenoBrasil,tendoemvistaanecessidadedeseentenderosistemade

produção, “de legitimação e regulação que é indissociável de relações raciais,

econômicas,degêneroesexualidade,históricasecontemporâneas”72.

SeguindoasugestãodeSorainen73,emqueacriminologiadevetantoseabrir

paraoutrasdisciplinas,comoosestudosdegênero,quantoprocurarnovasmaneiras

decombinarteoriaeempirismo,apropostadeumacriminologiaquereflitasobrea

criminalização de travestis deve assumir a normatividade de gênero como um

pressuposto epistemológico necessário para se olhar o “desempenho prático do

sistemapenal,amissãoqueefetivamentelheresponde”74,noquetocaàsituaçãode

travestis.

Obviamentequenãopretendoaquiesgotarourespondertodasasquestõesque

aintersecçãoentreessesdoiscamposdeestudosprovoca,ousodizerqueaindanos

faltam aportes para, sequer, conhecê-las75. E, também, não questiono os ganhos

inegáveisqueambasasteoriasproporcionaramnoquetocaàreflexãocriminológica76

atéentãoconsolidada.

A incorporação da normatividade de gênero na análise dos episódios de

criminalização implica uma radicalização completa na medida em que gênero, da

mesma forma que raça77 não pode ser considerado como um “aditivo”, ou algo

apartado de fenômenos e dinâmicas maiores. Ao contrário, deve-se considerar a

normativadegênerocomoarticuladordetodoocampo,emque:

Criminology. Critical Criminology, March 2014, Vol. 22, issue 1, p.5-19; BALL, Matthew. QueerCriminology,Critique,andthe“ArtofNotBeingGoverned”.CriticalCriminology,March2014,Vol.22,issue1,p.22-34.72PRADOet.al.,op.cit.,2018,p.532.73SORAINEN,op.cit.,p.5.74BATISTA,Nilo.Introduçãocríticaaodireitopenalbrasileiro.12ªed.RiodeJaneiro:Revan,2011,p.32.75Reconheçoeventuaislimitaçõessobreapossibilidadedesenvolvercomrobusteztalquestãoteórica-epistêmicanotempoummestrado.Talvez,nestepresentemomentoseriaoportunoapontarcomoquepartirdanormatividadedegênerocomopressupostoepistêmicodacriminologiaimplicaconstituiracenado“crime”enquantoquestãocentral.Ouseja,represarmoscomoolharoato,definiroatoeporaíemdiante.76Refiro-me,aqui,àcriminologiaortodoxaeàcriminologiacrítica.77Gostariadecompartilharcomvocêsumaquestãoparatentarcomplexificarumpoucooentendimentoda“raça”aquienquantomecanismoarticuladoroperante,enãoestruturante,dosistemapenal.Outrodia estava discutindo comamigos sobrea “recorrente” expulsão de casa no caso das trajetórias detravestis.Umaconhecidafalavasobreofatodemuitassaíremdecasa“com12anos”equestionavasetalmarcadorerapresenteemoutrastrajetórias.Fatoéquenãosomente“muitas”travestissãoexpulsasdecasajovens,masigualmentemuitosnegrosenegrasdeperiferiatêmdestinosemelhante.Adiferença,talvez, esteja no fato de que no caso das travestis tal questão está intimamente ligada com anormatividadedegêneroesexualidade.Nocasodosjovensnegros,nãonecessariamente.

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O efeito de ser um “sujeito” e poder ser compreendido, visto, ouvido,representado, depende das articulações que são estabelecidas com asnormas. A chave de leitura tradicional, que aciona/constróirepresentações de “masculinidade” e “feminilidade” paradescrever/prescrever nossosmodos de vivenciar omundo, traz comoefeitossançõesnormalizadorassobreasvidasdepessoasdissidentesdegênero e sexualidade como as travestis, as mulheres transexuais, oshomens trans, pessoas não binárias, pessoas intersexo, lesbicas,bissexuais,homossexuaiseadiversidadedeexpressõesdesi,decorpoededesejo.78

Dessa forma,parapensarmaisdetidamentesobreaexperiênciadetravestis,

para além da criminalização e do encarceramento, é necessário pensar em gênero

enquanto norma, e não somente enquanto papel social, tendo em vista que tal

concepçãoanalíticameparecerestritivanaanálisesobrecontrolesobreoscorposde

travestis.

2. Dosusosdegênero:norma

Éimportantepontuarqueháumadiversidadedeusosconceituaispossíveisda

palavra"gênero",sendonecessárioconsiderarquesuautilizaçãonosvárioscontextos

ésemprecomplementarenuncaexcludente.Gêneroé,destarte,umtermopolissêmico,

quepodefornecerelementosparapensarsobreaexperiênciasubjetivadecadaumde

nós,apontarparaaimportânciadese(re)pensarsobreaconstruçãosocialdosexo,

bem como para referir-se à trajetória pessoal, política e histórica demulheres, ou,

ainda,paraapontarobinarismorelacionalentreomasculinoeofeminino.

Além de sentidos múltiplos, "gênero" pode variar também em relação à

utilização que fazemos do termo. Emumusodescritivo, "gênero" é utilizado como

sinônimode“mulher”,denotandoqueomasculinoocupaumlugardecentralidadenas

reflexões teóricas e práticas.Nessa perspectiva, gênero é utilizado como síntese da

realidade ou, ainda, algo descritivo de coisas relativas àmulher. No uso causal do

termo,porsuavez,gêneroéutilizadocomodinâmicaoufenômeno,sendo,sobretudo,

umacategoriadeanálisedarealidade79.Nãomeinteressaaquiexaurirtodososusos

78LAMOUNIER,Gab.Gênerosencarcerados:umaanálisetrans.viadadapolíticadeAlasLGBTnoSistemaPrisionaldeMinasGerais.Dissertação(MestradoemPsicologia)–UniversidadeFederaldeMinasGerais,2018,p.72-73.79SCOTT, JoanWallach.Gênero:umacategoriaútildeanálisehistórica.EducaçãoeRealidade.PortoAlegre,vol.20,n.2,p.71-99,1995.

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conceituaispossíveisdotermo,quiçátentarrelatarumahistórialinearecoesadeste,

mas sim, demarcar que este é um "terreno que parece fixado, mas cujo sentido é

contestadoeflutuante"80.

Inicialmente estruturado a partir de concepções de “homem e mulher”, os

estudoscontemporâneosnocampodegêneroesexualidadecontribuíramde forma

significativaparaacomplexificaçãodarelaçãoentreosgêneros,sobretudopautados

nacompreensãodequaisosmecanismosatuamdiretamentenossujeitosparaqueeles

"caibam" nosmoldes do feminino emasculino81. Com o início das incursões nesse

campo,gêneroeraentendidocomodescritordeduassupostasidentidadessubjetivas,

forjadas por um caráter social, cuja identidade social era imposta em um corpo

sexuado82.Comainfluênciasignificativadasfeministasdesegundaonda83,porsuavez,

gênero foi pensado a partir de um viés interseccional com raça, classe e etnia84.

Posteriormente,gênerofoirelacionadocomsistemassociais,históricos,econômicose

políticosdefixaçãoelegitimaçãodopoder85,queserelacionam,ainda,comhierarquias

sociais86,queinformamascomplexasrelaçõesentreasdiversasformasdeinteração

humana.

Nesseponto,aselaboraçõesteóricasvoltaram-separaaconstruçãosocialdo

"sexo"eporumafastamentoradicaldepossíveisdeterminantesbiológicos,ouseja,

peloapontamentodequeabiologiatambéméumcampogenerificado.Detalforma

queanoçãode"gênero"apontaparatodoumsistemaderelaçõesquepodeincluiro

sexo,masnãoédeterminadoporeste,muitomenosserelacionacomasexualidade87.

80Ibid.,p.28.81CORRÊA,Sonia.Acategoriamulhernãoservemaisparaalutafeminista.RevistaSur,v.13,n.24,2016.82BEAUVOIR,Simonede.OSegundoSexo,Vol.1:FatoseMitos.4ªedição.SãoPaulo:DifusãoEuropeiadoLivro,1970.83Éimportanteapontarqueadivisãoaquipropostapossuiocunhomeramentedidáticoe,obviamente,forneceapenaselementosdecompreensãodeumadasmúltiplashistóriaspossíveisdoconceito.84 ANZALDUá A, Gloria. La conciencia de la mestiza: rumo a uma nova consciencia. Revista EstudosFeministas,13(3),704-719,2005;BRAH,Avtar.Diferença,diversidadeediferenciaçao.CadernosPagu,v.26,p.329-376,2006;CRENSHAW,Kimberlé.MappingtheMargins:Intersectionality,IdentityPolitics,andViolenceAgainstWomenofColor.StanfordLawReview,43(6),1991.85SCOTT,op.cit.86RUBIN,Gayle.PensandooSexo:NotasparaumateoriaRadicaldasPolíticasdaSexualidade,2012.Disponível em:https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/1582/gaylerubin.pdf?sequence=1. Acessoemnov/2017.87SCOTT,op.cit.

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Apesar dessamultiplicidade de usos e entendimentos possíveis em torno da

noçãodegênero,fuipercebendoqueprecisavadeumaconcepçãodinâmicadotermo,

que pudesse me ajudar a pensar em sua dimensão produtiva e constitutiva de

realidades.Precisava,emoutraspalavras,deumaportequemeajudasseaentenderos

ritos, passos, etapas, momentos de criminalização das travestis. Foi assim que

encontreinaconcepçãodegênerodeJudithButleroaportenecessáriopara“calibrar”

aquiloqueviaeentendercomodeterminadosprocedimentosproduziamgêneroe,em

setratandodetravestis,produziamocrimeeacriminosa.

Primeiro, me parece importante localizar o lastro foucaultiano nas teorias

elaboradasporJudithButler.Tallastroserelacionacomaproduçãodoteóricosobre

os efeitos das relações de poder, que incidemnão somente na produção de corpos

disciplinados, como tambémna subjetivação, responsávelpelaproduçãodo sujeito,

queengendramsujeiçãoeresistência88.

OsujeitopolíticoparaFoucault,assimcomoparaButler,nãoseconstituifora

do discurso89, sendo um efeito das relações de poder: “tornar-se sujeito significa

ocupar um lugar (ou vários lugares) a partir do qual se pode exercer vontade e

intenção.Tornar-sesujeitoimplicacapacidadedeagirdiantedeconstrangimentosde

poderquefluematravésdeposiçõesdesujeito.”90

Junto com Foucault, Butler dá importância para as relações de poder e os

atravessamentos constituintes nos processos de subjetivação dos sujeitos. Como

apontadoporSalih,existeumempenhonasteorizaçõesdeButler

[...]emquestionarcontinuamente“osujeito”,indagandoatravésdequeprocessosossujeitosvêmaexistir,atravésdequemeiossãoconstituídose como essas construções são bem-sucedidas (ou não). O “sujeito” deButlernãoéumindivíduo,masumaestruturalinguísticaemformação.91

88SOUZA,F.C.V.;MARQUES,A.C.S.Rostoecenadedissenso:aspectoséticos,estéticosecomunicacionaisdeconstituiçãodosujeitopolítico.Questõestransversais–RevistadeEpistemologiasdaComunicação,vol.4,n.7,janeiro-junho/2016,p.23.89FOUCAULT,Michel.Aordemdodiscurso:aulainauguraldoCollègedeFrance,pronunciadaem2dedezembrode1970.SãoPaulo:ediçõesLoyola,23.Ed,2013.90SOUZA;MARQUES,op.cit.,p.2391SALIH,Sara.JudithButlereateoriaqueer.BeloHorizonte:AutênticaEditora,2015,p.10.

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Aimportânciadadaàlinguísticaserelacionacomasinfluênciasderradianasno

pensamentodeButler,demodoque “seo sujeitoé construídona linguageme sea

linguagem tal comoé teorizadaporDerridaé incompletaeaberta, entãoopróprio

sujeitoseráigualmentecaracterizadoporsuaincompletude”92.

ParaButler,anoçãodesujeitoserelacionacomopapelexercidopelos(1)atos

defala,ouatosdelinguagem,ecomanoçãodeincompletudeoude(2)processualidade

dosujeito.(1)Paraaautora,antesmesmodequeosujeitopossaterqualqueratode

fala,talatojáodetermina,ointerpelaeonomeia,incidindodeformadiretanasua

formação.Emoutraspalavras,osujeitoexistepreviamenteporqueanormaoinstitui

eonomeia.Assim,aapariçãodosujeitopolíticoexigeumacondiçãoanterior,queéa

norma.

OatopolíticoparaButlercomeçapela interpelação,poraquelemomentoem

quealguémdizquemvocêé.Talatopodeserentendidocomoumatodepoder,que

tambémépolítico,equeconfiguraodizerparaooutroquemeleéecomoeledeveser.

Emlinhasgerais,paravocêexistircomosujeitoénecessárioanomeaçãoporoutrem,

de fora. Contudo, essa nomeação não implica considerar que o sujeito está sempre

determinado,postoqueéexatamenteacondiçãodeconstituídoquepossibilitaasua

agência.Defato,“podemosperguntar,eperguntamos‘eusouessenome?’Ealgumas

vezescontinuamosperguntandoaté tomarmosumadecisãosobresesomosounão

essenome,outentamosencontrarumnomemelhorparaavidaquedesejamosviver,

ou nos esforçamos para viver nos interstícios entre os nomes”93. Segundo o

pensamentodeButler,alinguagemexerceumefeitoperformativonocorponoatode

sernomeadocomoesse94.

Afirmarquedeterminados corpossãodeumsexooudeoutro,porexemplo,

longedeserumaafirmaçãopuramentedescritiva,seconstituienquantoumademanda

discursiva,umaproduçãodecorposdeacordocomumacoerênciaheterossexual,

como fêmea e macho. Onde o sexo é tomado como um princípio deidentidade, ele é sempreposicionado num campo de duas identidades

92 BUTLER, Judith. Subjects of desire: Hegelian reflections in twentieth-century France. Nova York:ColumbiaUniversityPress,1999,p.179.93 BUTLER, Judith.Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa deassembleia.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,2018,p.68.94Idem.

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mutuamente exclusivas e completamente exaustivas; é-se macho oufêmea,nuncaosdoisaomesmotempo,enuncanenhumdosdois.95

Parece-menecessário,então,reposicionaraagênciadentrodeumamatrizde

poder,emque,naesteiradaconcepçãofoucaultiana,odiscursoéconstitutivo,e

o sujeito opera como uma categoria linguística que esta sempre emprocesso de construção no interior das relações de poder. Para ela,nenhum indivíduo torna-se sujeito sem antes ter sido sujeitado oupassadoporumprocessodesubjetivação.TantoemFoucaultcomoemButler,osujeitoencontraassuasprópriaspossibilidadesdesubjetivação,construindo estratégias de resistência ou de subversão aosmandatossociaisqueolimitam.96

A nomeação do ato de fala, nesse sentido, joga com uma imposição e uma

possibilidade de desvio.Tal possibilidade de desvio expõe a incompletude e a (2)

processualidade do sujeito, enquanto um ente que não tem fim e que está em um

contínuo processo de transformação. O que a nomeação significa pra Butler se

relacionadiretamentecomaconcepçãodeinterpelação,quesignifica,emlinhasgerais,

oferecerumnomeemcimadoqualcontinuamostrabalhando.Arepetiçãodosnossos

papéis sociais, da nossa performance – que não é intencional ou fruto de uma

racionalidadeanterioraosujeito–consistenapossibilidademesmadedeslocamento.

Emcertosentidoéarepetiçãoquedenunciaafragilidadedeumsistemanormativo.

ParaButler, a norma temque estar sempre presente, reiterada, reconfirmada,mas

mesmoassimpassíveldedesvios:

Osujeitoreflexivoeresistenteaomesmopoderdoqualeconstituídoeum sujeito que, por si so, não da conta do seu próprio tornar-se,masencontra as possibilidades para ressignificar normas, discursos,experiências e práticas sociais. Em síntese, para Butler, o sujeito eperformativo,ouseja,umaproduçãoritualizada,umareiteraçãoritualdenormas,quenãoodeterminamtotalmente.Essaincompletudepossibilitao processo de ruptura e a inscrição de novos significados e,consequentemente,amudançadepráticasecontextos.97

A repetição é fundamental para a reprodução da ordem, mas também é

fundamentalparaaidentificação,postoqueosujeitoquerepeteanormaestáexposto

95BUTLER,Judith.Inversõessexuais,In:PASSOS,IzabelCFrieche(Org.),2ªed.Poder,normalizaçãoeviolência:incursõesfoucaultianasparaaatualidade.BeloHorizonte:AutênticaEditora,2013,p.98-99.96 FURLIN,N. Sujeito e agência no pensamento de Judith Butler: contribuições para a teoria social.SociedadeeCultura,Goiânia,v.16,n.2,2013,p.396.97Ibid.,p.397.

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apossibilidadedefalha,reinvençãoeressignificação.Assim,“aproduçãonormativado

sujeito é um processo de iterabilidade – a norma é repetida e, nesse sentido, está

constantemente “rompendo” com os contextos delimitados como as “condições de

produção”98.Emcertosentido,épossívelafirmarqueasuarepetiçãoétamanhaque

criaumdeslocamentodosignificante,emquearepetiçãodeixadeseraquiloqueée

passaaseraquiloqueéressignificada;“énacitaçãocontinuadaqueossignificados,os

sujeitoseomundosetransformamao longodaação”99.Épossível inferirque,para

Butler,anoçãodesubjetividadeestáintrinsicamenteligadaànoçãoderuptura.Não

existiria,portanto,umsujeito100exterioresuperiorcujopropósitoseriadeconferir

consistênciaesentidoàmatéria,objetoerealidade.

Énessesentidoque,noentendimentodeJudithButler101 ,ogêneropodeser

consideradocomoumprincípionormativodeorganizaçãodocamposocial,queatua

na produção de sentidos e inteligibilidade das práticas sociais. A noção de

inteligibilidade esta associada não apenas ao reconhecimento de determinadas

práticas,mastambémaoseuenquadramentoenquantopráticas legítimas:“definea

cena em que podemos aparecer, mas também restringe a possibilidade dessa

aparição”102.

Norma,portanto,serelacionacomoatoagirnarealidade,quecontrolanossa

experiência,aomesmotempoemquegarantenossaexistênciaefundaumarealidade

dentre outras tantas possíveis, em que as características da obrigatoriedade e da

sanção se observam em toda sua extensão. Tal concepção de norma é típica do

pensamento filosófico e político e pouco se assemelha com a concepção que esta

assumenocampojurídico.Gênero,aseuturno,encontra-sediretamenterelacionadoa

98 BUTLER, Judith.Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira,2015,p.237.99FURLIN,op.cit.,p.398.100ImportantepontuarqueanoçãodesujeitoparaJudithButlernãoéterminada,sendoapresentadonopresente trabalho um recorte pequeno e didático sobre o tema. Contudo, vale mencionar as suascontribuiçõesrecentesrelativasànoçãodesujeitopolíticoenquantoauniãodosingulareuniversal,sobretudoelaboradasemseudiálogocomLevinas.ParaButler,énecessárioobservarosujeitoemsuaindividualidade, istoé,nasituaçãodevulnerabilidadeemqueele seencontraeédefinido.Assim,arelaçãocomooutrotambéméimportanteparaoprocessodeformaçãodasubjetividade.Cf.BUTLER,op.cit.,2015.101BUTLER,op.cit,2006.102KORPI,Piia.Thenotionofgenderasanorm in JudithButler’s thought.Progradututkielma94s.Filosofia.Joulukuu2009,p.26-27.

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"umatecnologiasofisticadaque fabricacorpossexuais"103,queatuadiretamentena

regulaçãodaaparência,estreitandoocampodoreconhecível104.

As normas de gênero instauramuma racionalidade específica nosmodos de

agir, ser, pensar e desejar dos sujeitos, sendo, assim, uma categoria que constrói e

constrange as nossas formas de percepção e representação. Gênero, então, não

funciona enquanto “abstração” e pode ser concebido enquanto sucessividade ou

sequênciadeatos105queestãosempreocorrendocomo,igualmente,algo“nãonatural”:Ogêneroéaestilizaçãorepetidadocorpo,umconjuntodeatosrepetidosno interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual secristalizanotempoparaproduziraaparênciadeumasubstância,deumaclassenaturaldeser.106

Asbasesquesustentamedeterminamocamponormativodegêneropodemser

delimitadasemtrêspilares,asaber:obinarismo,noqualsedefendeaconcepçãode

gênero mediante uma dualidade; a complementariedade dos corpos e; a

heterossexualidadecompulsória.Aheterossexualidade,dessaforma,dariasentidoàs

diferençasentreosgêneros:

[...]acomplementariedadenaturalseriaaprovainquestionáveldequeahumanidadeénecessariamenteheterossexual equeosgênerossó têmsentido quando relacionados às capacidades inerentes de cada corpo.Atravésdasperformancesdegênero,a sociedade controlaaspossíveissexualidades desviantes. Será a heterossexualidade que justificará anecessidade de se alimentar/produzir cotidianamente os gênerosbinários,emprocessosderetroalimentação.Osgênerosinteligíveisestãocondicionados à heterossexualidade e esta precisa dacomplementariedadedosgênerosparajustificar-secomonorma.107

Ocamponormativodegêneroseconstituieéconstitutivodesseconjuntode

normassociais,quereiteraocaráterreificador,excludenteeabjetodedeterminadas

condutas e experiências de corporeidade. Nesse cenário, “a norma diz respeito a

todas/asequemnãosemostraraptoasernormalizadotornar-sedignoderepulsae

103PRECIADO,P.Manifestocontrassexual.SãoPaulo:n-1edições,2014,p.29.104BUTLER,op.cit.,2018,p.42.105 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismos e subversão de identidade. Rio de Janeiro:Civilizaçãobrasileira,2003,p.78.106Ibid.,p.59.107BENTO,Berenice.Oqueétransexualidade?SaoPaulo:Brasiliense,2008,p.45-46.

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reprovação,ocupandoumgrauinferiorounulodehumanidade”108.Comoreferido,as

normasdegênerosãoresponsáveisporregularnossaexperiênciae,aomesmotempo,

garantirnossaexistênciaeinteligibilidade;nãoexistindo,portanto,sujeitosalém,nem

aquém,danorma.

As reiterações contínuas de atos das normas de gênero, que atuam na

construção da subjetividade dos indivíduos, são denominadas performatividade de

gênero. Norma, nessa perspectiva, se relaciona como ato de performar ou agir na

realidade, que controla nossa experiência, ao mesmo tempo que garante nossa

existênciaefundaumarealidadedentreoutrastantaspossíveis.Nessesentido,“agir

deacordocomumamulher/homemépôremfuncionamentoumconjuntodeverdades

que se acredita estarem fundamentadas na natureza”109. Gênero, portanto, é uma

expressão,umefeitodedominaçãoqueinstalaumregime,retiraahistoricidadeea

contingênciadasconcepçõesdemasculinoefeminino.

Oconceitodeperformatividadeimplicaconceberogênerocomoumaaçãoque

seproduzesefaz,sendoumprocessorepetitivodeatosqueenvolvemrelaçõessociais

e que “faz alguma coisa acontecer ou traz algum fenômeno à existência”110. Faz-se

necessário,então,pensarocorpoemnãomaiscomoumdadonatural,mascomouma

“superfíciepoliticamenteregulada”111.Assim,

[...] a atuação não é apenas repetição, também é responsável pelasconfiguraçõesdepoderexistentes,‘aperformancetornaexplicitaasleissociais’ecolocaaconfiguraçãodegêneroemtermosnormativos.Porúltimo,segêneronãoéalgoquesetem,nemtampoucoalgoqueseés,mas simépartedeum ir sendo, temporale socialmente condicional,semorigemesemmetasdechegada,emqueoslimitesnãopodemserdefinidosanteriormente.112

108PRADO;JUNQUEIRA;op.cit.,p.60.109 BENTO,Berenice.A reinvenção do corpo: sexualidadee gêneronaexperiência transexual. Rio deJaneiro:Garamond,2006,p.93.110BUTLER,op.cit.,2018,p.35.111 RODRIGUES, Carla.Escritos de filosofia e gênero. Ebook: Rio de Janeiro, 2017, p. 34. Disponível:www.encurtador.com.br/cvLNQ.Acessoemjul/2019.112 Do original: “Desde este enfoque, la actuación no es sólo repetición, también da cuenta de lasconfiguraciones de poder existentes, ‘la performance hace explicitas las leyes sociales’, pone demanifiestolaconfiguraciondelgéneroemtérminosnormativos.Porúltimo,sielgéneronoesalgoqueumatiene,nitampoucoesalgoqueumaes,sinoqueespartedeumirsiendo,temporalysocialmentecondicionado, sin Orígenes-originales de partidade, pero tampocometas de llegada, los límites delrecorridonopuedenserdefinidosapriori”Cf.PRADO,NataliaM.Sujetoyperformatividad.In:BISET,Emmanuel(etal).Sujeto,unacategoriaemdisputa.Adrogué:EdicionesLaCebra,2015,p.313.

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Dizer que o gênero é performativo, para Butler, é dizer que ele é um

determinado tipo de representação, que é parte da “sua própria ontologia, é uma

maneiraderepensaromodoontológicodegênero,eentãoimportacomoequandoe

comqueconsequênciasessarepresentaçãosedá,porquetudoissomudaogêneroque

alguémé”113.Porisso,osatos,ouoagirnarealidade,constituemumdosmeiospelos

quaisépossívelrecusarourevisaranossaatribuiçãoinicialdegênero.Éporissoque

a“performatividadedescrevetantooprocessodeserobjetodeumaaçãoquantoas

condições e possibilidades para a ação”114. A normatividade de gênero, assim, não

funciona enquanto “abstrações”, e se materializa nos nossos atos, indo desde as

dimensõesmaisrígidasdeumasociedadeatéasmenosrígidas.

Para“percebermos”asnormasdegênero,ocaminhomaisdidáticoserianos

atentarmosparaosseusefeitos,poisasnormaspodemounãoseremexplícitas.Ainda,

quandoelasoperamcomoprincípiodaprática social, elasgeralmentepermanecem

implícitas,difíceisdeleremaisclaraedramaticamentediscerníveisnosefeitosque

produzem115.

Ao que me parece, as normas de gênero “produzida[s] a serviço de outras

formasderegulação”116têmcomoefeitoacriminalizaçãodetravestis.Issoporque,ao

seafastaremdessamatrizdereconhecimentosustentadapelasnormasdegênero,as

travestis ficam, ao mesmo tempo, submetidas “a consequências variadas e

contingenciais ao campo disciplinar, que ira atuar na regulação da conduta

desviante”117.

Parapercebermosessaregulação,énecessáriocolocaremevidênciaaspráticas

eseusmecanismosnadesigualarticulaçãodasnormasdegêneroquedefinemaquem,

ecomo,seráatribuídoapráticadeumaaçãoconsideradacomocrime.Taisquestões

exigem de nós “um giro em nossas categorias, de modo a construir um plano de

referênciaquepermitacolocaremperspectivaefiguraressesprocessos,recolocaros

problemas,”118eporoutrosaperceber.

113BUTLER,op.cit.,2018,p.68.114Ibid.,p.70.115BUTLER,op.cit.,2006.116BUTLER,Judith.Regulaçõesdegênero.CadernosPagu(42),janeiro-julhode2014,p.268.117LAMOUNIER,op.cit.,p.74.118TELLES,op.cit.,p.115.

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Paratanto,nospróximoscapítulosireidemonstrartaisarticulações,sejapela

passagememrevistadealgunsepisódiosdanossahistóriaqueversamsobrearelação

entreacriminalizaçãoea travestilidade,sejapela incursãoemcampopormeiodas

cenasconstruídaspeloaporteetnográfico.

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CAPÍTULO02:Fragmentosdarelaçãosinuosaentreastravestisea

criminalização:apresentificaçãodocenáriodapesquisa

Acriminalizaçãodasexperiênciasdissidentesdegêneroesexualidadenãoéum

fenômeno recente no Brasil. Basta olharmos atentamente a nossa história para

percebermosquehámuitoosistemapenal119éacionadoe,inclusive,produzido,para

controle do “desvio”. Na realidade, seria possível afirmar que as experiências de

lésbicas,gays,bissexuais,travestisetransexuais–conformesãodenominadashoje–

entramno“radar”dodireitopormeiodapenalizaçãoedarepressão.Noquetocaà

travestilidade,ocontroleexercidopeloaparatopunitivo-penalaolongodotempofoi

crucialparamoldaraconstruçãodessasexperiênciasnailegalidade,bemcomopara

associá-lasanoçõesdecrimeecriminalidade.

A reconstrução de alguns fragmentos históricos é profícua para recuperar o

percurso traçado pelas experiências de travestis ao longo do tempo e, assim,

“interpretarospapéisque lheestãosendoatribuídose localizaros lugaresque lhe

119Aexpressão“sistemapenal”seráutilizadaemvirtudedoseucarátermaisabrangentenoquetocaàsinstituiçõespolicial,judiciáriaepenitenciária.Compreende-se,ainda,queosistemapenalfuncionademaneiraseletiva,“atingindoapenasdeterminadaspessoas,integrantesdedeterminadosgrupossociais,apretextodesuascondutas”.Cf.BATISTA,op.cit.,2011a,p.25.ParaAndrade,osistemapenaldevesercompreendidoemumcontextodeumatotalidadede“instituiçõesqueoperacionalizamocontrolepenal(Parlamento, Polícia, Ministério Público, Justiça, Prisão) a totalidade das Leis, teorias e categoriascognitivas(direitos+ciênciasepolíticascriminais)queprogramamelegitimam,ideologicamente,asuaatuação e seus vínculos com amecânica de controle social global (mídia, escola, universidade), naconstruçãoereproduçãodaculturaedosensocomumpunitivoqueseenraíza,muitofortalecidamente,dentrodecadaumdenós,na formademicrossistemaspenais.”Cf.ANDRADE,VeraReginaPereira.Minimalismos, abolicionismos e eficienticismo: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e aexpansão.RevistaSequência,nº52,p.163-182,jul.2006,p.169.

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estão sendo reservados”120 hoje. Ainda, a passagem em revista de alguns

acontecimentos, longe de querer apontar para uma linearidade ou causalidade da

história, será feita com o intuito de possibilitar o questionamento do próprio

presente121.

Mais especificamente, partirei do ano de 1890, para entrar no período da

ditadura militar até algumas décadas após a redemocratização do país e, assim,

demonstrarasmúltiplasconfigurações,procedimentoseatoresenvolvidosnatecitura

feitaentreacriminalizaçãoeastravestis.Essacosturacomplexaquesefezpresente

aolongodotempoapontaparaumaorganizaçãodatravestilidadenailegalidadeque,

porsuavez,seconstituicomoefeitodocontroleformalexercidopeloEstado.

Em linhas gerais, serãodois os objetivos neste capítulo: o primeiro, apontar

brevemente que a travestilidade entra no “radar” do direito via criminalização; e o

segundo,defenderqueocontroledasexperiênciasdegêneroviadireitopenalaponta

paraumasofisticaçãodastécnicasderepressão,ou,naspalavrasdeFoucault122,uma

“mutaçãotécnica”namaneiradegerirasilegalidades.Pretendo,então,apontarparaa

urgência de se pensar os contornos específicos e as formas de aparição que esse

movimentodecriminalizaçãoediferenciaçãodas ilegalidadesassumemnosdiasde

hoje.Ointuitodestecapituloé,portanto,apontarcomoaexperiênciadatravestilidade

éconstruídaapartirdediscursosepráticasdecriminalizaçãoeexclusão.

Parailustraropercursoadotadoseguireiemdoistempos:1)brevepanorama

defragmentoshistóricosnoquetocaàrelaçãoentresistemapenaletravestilidadeno

Brasile;2)a(re)localizaçãodacriminalizaçãocomaorganizaçãodomovimentoLGBT

emtornodosepisódiosdeviolênciaecriaçãodasalasparatravestisehomossexuais

nosistemaprisional.Porfim,apresentareiosdadosoficiosos123doencarceramentode

travestisemumapenitenciáriadoestadodeMinasGerais.

120SILVA,op.cit.,p.187.121FOUCAULT,Michel.Nietzsche,agenealogiaeahistória.In:Microfísicadopoder.RiodeJaneiro:Graal,1984.122FOUCAULT,Michel.Vigiarepunir:nascimentodaprisão.Trad.RaquelRamalhete.42ªed.Petrópolis,RJ:Vozes,2014.123Oficioso,aqui,éutilizadoparamarcaraausênciadedadosoficiaissobreoencarceramentoetravestisnoestado.

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1. “Acaçaàsbruxas-bichas”124:notassobreacriminalizaçãodetravestisnoBrasil(1890-1988)

Art. 379. Usar de nome suposto, trocado oumudado, de titulo, distinctivo, uniforme oucondecoração que não tenha; Usurpar titulo denobreza, ou brazão de armas que não tenha;Disfarçar o sexo, tomando trajos impróprios doseu,etraze-lospublicamenteparaenganar.Pena – de prisão celullar por quinze a sessentadias.125(BRASIL,1890)

O finaldoséculoXIXe iníciodoséculoXXmarcamodestoardeumarelação

complexaesinuosaentreodireitopenaleasexperiênciashomossexuais.Amparada

pelas visões criminológicas da época e largamente influenciadas pelo positivismo

científico,asreflexõesiniciaisfeitasnessecampoorientavam-sepeloestudodascausas

docrimeedocomportamentocriminal126.NoBrasil,taisconcepçõestomaramconta

dasfaculdadesdedireitoederamespaçoparaosurgimentodetesessobrepobreza,

raçaeloucura,alémdeguiaremosesforçosparaocontroledo“desvio”emanutenção

daordemsocial127.

Asproduçõesjurídicasdaépoca,aliadasàsciênciasbiológicaseàantropologia

criminal,foramresponsáveispordeslocarofocodeanálisedoatoparaoautor,sendo

ocriminosoalçadoaostatusdeanormaledegeneradoe,assim,justificáveistodosos

esforços empreendidos pelo Estado na sua contenção. Ana Lúcia Schritzmeyer128

aponta,porexemplo,queacidadedoRiodeJaneironosidosde1890foiconsiderada

124ReferênciaàreportagemdeJoãoSilvérioTrevisannaediçãoden.6dojornalLampiãodaEsquinaem1978. Disponível em: http://www.grupodignidade.org.br/wp-content/uploads/2019/04/10-LAMPIAO-DA-ESQUINA-EDICAO-06-NOVEMBRO-1978.pdf.Acessoemout/19.125BRASIL.CódigoPenalde1890.Disponívelem:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d847.htm.126Talconcepçãoédenominadacomoparadigmaetiológico.Cf.BARATTA,op.cit.,p.19-80.127SCHWARCZ,LiliaMoritz.Oespetáculodasraças:cientistas,instituiçõeseaquestãoracialnoBrasil(1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993;SCHRITZMEYER,AnaLúciaPastore.Sortilégiodesaberes:curandeirosejuízesnostribunaisbrasileiros(1900-1990).SãoPaulo:IBCCRIM,2004;SCHRITZMEYER,AnaLúciaPastore.Oensinodaantropologiajurídicaeapesquisaemdireitoshumanos”.In:NALINI,JoséRenato;CARLINI,AngélicaLucia(coord.).DireitosHumanoseFormaçãoJurídica.RiodeJaneiro:Forense,2010,p.137-153.128SCHRITZMEYER,op.cit.,2004;SCHRITZMEYER,op.cit.,2010,p.137-153.

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umorganismodoente,sendoaprostituiçãoeasodomia129osseusprincipaismales,“o

que levoumedicos e juristas a considerarem-se aptos a combatê-los com base na

crença de que eram os ‘evoluídos’ de uma nação que precisava correr rumo ao

progressotecnológicoecientífico”130.Emoutraspalavras,produzia-seodelinquente

comosujeitopatologizado131.

Apesardasinúmerastentativas–semsucesso–detipificarahomossexualidade

como algo, por si, passível de punição132, outros dispositivos legais facilitavam o

controleeaprisãodepessoascompráticasdissidentesdegêneroesexualidade.Nesse

contexto,oCódigoPenalbrasileirode1890preconizavaque:“disfarçarosexo”eusar

“trajesimprópriosdoseu”erampráticaspunidascompenadeprisão.JamesGreen133

aponta que, alémdo reproduzido artigo 379, o Código Penal de 1890dispunha de

outrostrêsdispositivosque“deramàpolíciaopoderdeencarcerararbitrariamente

homossexuaisquemostrassemempúblicoumcomportamentoefeminado,usassem

cabelos longos, roupas femininas ou maquiagem, ganhassem a vida com a

prostituição”134.Dentreeles, o artigo266,que tipificava “atentar contraopuderde

pessoadeumoudeoutrosexo,pormeiodeviolênciaouameaças”era,notadamente,

aplicado em casosde homossexualidade envolvendo adultos emenores135, sendoo

artigo 282 aplicado aos casos de “adultos que praticassem atividades sexuais com

outrosadultosemlugarespúblicos”,oqueconfiguravaofensaaosbonscostumes.Além

desses dispositivos, o enquadramento por “vadiagem” previsto no artigo 399 era

igualmenteutilizadopararegular“manifestaçõespúblicasdehomossexualidade”136.

Osvaloresculturaisesociaispresentesnocontextobrasileiroàépoca,pautados

peladiscriminaçãocontrahomossexuais137, sematerializavampormeiodo sistema

penal.Seja“nosdiscursosmédico-legais,queconsideravamahomossexualidadeuma

129GREEN,JamesNaylor.Alémdocarnaval:ahomossexualidademasculinanoBrasildoséculoXX.SãoPaulo:EditoraUNESP,2000.130SCHRITZMEYER,op.cit.,2010,p.141.131FOUCAULT,op.cit.,2014.132GREEN,op.cit.133Idem.134Ibid.,p.58.135Idem.136Idem.137Aquiseráutilizadootermo“homossexuais”emreferênciaàépocareferenciada,postoqueesseeraotermo mais utilizado para “referir-se tanto a orientações sexuais quanto identidades de gênerodissidentes”, Cf. GREEN, James; QUINALINHA, Renan. Ditadura e homossexualidades: repressão,resistênciaeabuscadaverdade.SãoCarlos:EdUFSCAR,2014,p.13.

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doença;nosdiscursosreligiosos,quecondenavamoatohomossexualcomopecado”138

ou na estigmatização de pessoas com experiências de gênero não “tradicionais”, a

tipificação era apenas uma maneira de “gerir as ilegalidades, de riscar limites de

tolerância,dedarterrenoaalguns,defazerpressãosobreoutros,deexcluirumaparte,

detornarútiloutra”139.

Nessa época, o “travestismo” em público era considerado uma violação ao

CódigoPenal, sendoas restrições legais suspensas temporariamentenoperíododo

carnaval e de seus bailes de máscara140. Esse projeto de controle e repressão não

somente se materializa na tipificação do Código Penal de 1890, como também é

responsável por associar orientações sexuais e identidades de gênero dissidentes,

ambasabarcadaspelacategoria“homossexual”,comanoçãodeperigosocial141.Nos

anos1930nacidadedeSãoPaulo,porexemplo,PeterFry142apontaquehaviaumfluxo

entreapolíciaeosmédicos,e

[...] os delinquentes ‘homossexuais’ de uma certa classe social eramencaminhadosparaoLaboratóriodeAntropologiaCriminaldoInstitutode Identificações deSão Paulo, onde osmédicos levaramadiante suaspesquisassobreascausasbiológicasesociaisdahomossexualidade,comênfasesobreosbiótiposeambientesocialdosindivíduosemquestão.143

Em1937,na“PrimeiraSemanaPaulistadeMedicinaLegal”,foramapresentados

alguns diagnósticos produzidos por médicos da época relativo ao estudo de oito

homossexuaisdetidospelapolíciadeSãoPaulo144,querecomendavamexplicitamente

práticasdecorreçãoepuniçãoemvirtudedocrimesupostamentecometido.Apósessa

semana, a discussão sobre a criminalização da homossexualidade culminou com a

revogaçãodosdispositivosquepuniamexplicitamenteaspráticasde“disfarçarosexo”

eosdemaisdispositivos145.

138BRASIL,ComissãoNacionaldaVerdade.Relatório:eixostemáticos.Brasília:CNV,2014,p.300.139FOUCAULT,op.cit.,2014,p.267.140GREEN,op.cit.141BRASIL,op.cit.,2014.142FRY,Peter;MACRAE,Edward.Oqueéhomossexualidade.SãoPaulo:AbrilCultural,1985.143Ibid.,p.67.144Idem.145GOMES,JulianaCesárioAlvim.Porumconstitucionalismodifuso:cidadãos,movimentossociaiseosignificadodaConstituição.Salvador:JusPODIVM,2016.

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ComoCódigoPenalde1940,osmecanismosparapunirahomossexualidade

foram se sofisticando cada vez mais, posto que os “velhos referenciais ainda se

compatibilizavam com ideais de controle e contenção social almejados pela ordem

jurídicabrasileira”146.Avadiagem147,porexemplo,foienquadradacomocontravenção

penal–umaespéciedecrimeleve–evisava“exporummodelopadrãodetrabalhador

comcarteiraassinada”148.

Nadécadade1950,aomesmotempoquealgumascapitaisdopaíssetornavam

palco de shows e festas de travestis149, cresciam as reações conservadoras a essas

manifestações.Essarelaçãocomplexaéoqueexplica,emcertamedida,ofatodeque

noBrasil,emespecial,astravestisconstituemumadas“expressõesdanossacultura

sexualprópria,tendo,portanto,umahistóriaparticular”150.Sejapormeiodeportarias

eresoluçõesquevisavamproibirourestringiraocorrênciadessesespetáculos,seja

pelo“monitoramentoqueapolíciafaziadospontosurbanosdemaiorfrequênciade

gays e travestis”151, seja pela detenção direta. Fato é que, não poucas vezes, a

moralidade da época utilizava o aparato estatal para fazer valer a reclamação das

“pessoasdebem”152.

Aquestãodasexualidadefeminina,àquelaépoca,ocupavaigualmenteumlugar

centralnessarelação.Consequentemente,aprostituiçãocomeçouaganharcontornos

científicos que pudessem explicar uma pré-disposição moral para a mentira e a

extorsão.Assim,“ograveproblemadasmulhereséqueseriamamorais.Significadizer:

engenhosas, frias, calculistas, sedutoras,malévolas.Característicasestasque senão

146SCHRITZMEYER,op.cit.,2010,p.142.147Art.59.Entregar-sealguémhabitualmenteàociosidade,sendoválidoparaotrabalho,semterrendaquelheasseguremeiosbastantesdesubsistência,ouproveraprópriasubsistênciamedianteocupaçãoilícita: Pena: prisão simples, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses. Parágrafo único: a aquisiçãosupervenientederenda,queassegureaocondenadomeiosbastantesdesubsistência,extingueapena.Cf.BRASIL.Decreto-leinº3.688,de3deoutubrode1941,LeidasContravençõesPenais.148OCANHA,RafaelFreitas.AsrondaspoliciaisdecombateàhomossexualidadenacidadedeSãoPaulo(1976-1982). In: GREEN, James; QUINALINHA, Renan. Ditadura e homossexualidades: repressão,resistênciaeabuscadaverdade.SãoCarlos:EdUFSCAR,2014,p.155.149TREVISAN,JoãoSilvério.Devassosnoparaíso:ahomossexualidadenobrasil,dacolôniaàatualidade.4ª ed., Rio de Janeiro:Objetiva, 2018;GREEN,op. cit.,2000;MORANDO, Luiz. Por baixo dos panos:repressãoagaysetravestisemBeloHorizonte(1963-1969).In:GREEN,James;QUINALINHA,Renan.Ditaduraehomossexualidades:repressão,resistênciaeabuscadaverdade.SãoCarlos:EdUFSCAR,2014,p.53-82.150 DUQUE, Tiago. Montagens e desmontagens: vergonha, estigma e desejo na construção dastravestilidadenaadolescência.SãoPaulo:Annablume,2011,p.22.151MORANDO,op.cit.,p.55.152Ibid,p.53-82.

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impulsionamasmulheresinstintivamenteaodelito,fazem-nascairnaprostituição”153.

Foi assim que tais estudos reafirmaram algumas características criminosas às

mulheres,cujaroupagemcientíficagarantiaumcontrolemaiorelegítimoaointerdito

adeterminadascondutas154.

LuizMorando aponta que, já em 1953, se tem notícia do primeiro processo

judicial envolvendo uma155 travesti chamada Cintura Fina, que fora “acusada de

anavalharumbancárionorostoemumconfrontonazonaboemia”156.Paraoautor,

esse caso é um exemplo da vinculação direta do imaginário social da época entre

travestilidade, prostituição e criminalidade – independente das motivações que

levaram às travestis ao envolvimento em situações delituosas157. Simultaneamente

tidas como “bichas” e “putas”, a relação entre as travestis e a prostituição já era

responsávelportorná-lasalvodeintensarepressãoporpartedosagentesincumbidos

de“garantiraordem”158.Asexperiênciasdastravestis, jánaquelemomento,davam

sinaisdenãosetrataremdemerasencenaçõesdegênero,massima

[...] reiteração e materialização de discursos patologizantes ecriminalizantes que fazem comque o senso comumas veja como umaforma extremada de homossexualidade, e assim, como pessoasperturbadas. A partir dessa ótica, seu gênero “desordenado” so podeimplicarumasexualidadeperigosamentemarginal.159

Comogolpemilitarem1964,tem-seumacirramentoda“atençãorepressora

dapolícia,conjugadaàsmudançassociaisemoraisprevistaspelogolpemilitar”160ao

mesmotempoemqueseviaoiníciodaarticulaçãodastravestis“nabuscadeconstruir

umanovafiguraçãosocialcontráriaàcriminalidade”161.Contudo,operíodopós-1964

não somente marcou uma sofisticação das técnicas de tortura e repressão com as

153MENDES,op.cit.,p.43.154Ibid.,p.47.155Apesardepodersoaranacrônico,a referênciaà travestilidadeserá feitanogênero femininoemconsonânciacomasreinvindicaçõesatuaisemtornodessaexperiência.156MORANDO,op.cit.,p.70.157Idem.158 GARCIA, Marcos Roberto Vieira. Dragões: gênero, corpo, trabalho e violência na formação daidentidade entre travestis de baixa renda. Tese (Psicologia Social), Instituto de Psicologia daUniversidadedeSãoPaulo,SãoPaulo,2007,p.144.159PELÚCIO,Larissa.Abjeçãoedesejo:umaetnografiasobreomodelopreventivodeaids.SãoPaulo:Annablume,2009,p.93.160MORANDO,op.cit.,p.70.161Idem.

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experiênciashomossexuais,comotambémdelimitouaconsolidaçãodeumavisãode

Estado que possuía uma “representação do homossexual como nocivo, perigoso e

contrárioàfamília,àmoralprevalenteeaos‘bonscostumes’”162.

Duranteaditadura,erapossívelperceberumconjuntodepolíticassexuais163

emrelaçãoaocombateàhomossexualidade.Sejapelaleidaimprensa,sejapelaluta

contraavadiagem,a corrupçãodemenoreseapedofilia, fatoeraqueodireitoera

largamente utilizado para punir e prender experiências dissidentes de gênero e

sexualidade.DonKulick164apontaque,duranteoregimemilitar,eraimpraticávelpara

as travestisapareceremnaruaemtrajes femininos,umavezqueaspessoasquese

arriscavameramdetidase[...]muitasvezessubmetidosa longassessõesdehumilhaçãoetortura,comoporexemplo,seremobrigadosasentarsobreumcassetetedentrodeumcamburãodapolíciaenquantooveículorodavaemaltavelocidadeporruastotalmenteesburacadas.165

Em1968,comadecretaçãodoAI-5,ocombatea“exteriorizaçõescontráriasà

moraleaosbonscostumes”davamumtomoficialparaa“censuradepeças,letrasde

músicaseoutrasexpressõesculturaisqueafirmaramahomossexualidade”166.De1977

a 1978, Colaço167 aponta quatro movimentos de acusação de jornalistas por

abordagens contrárias à “moral e os bons costumes”, relacionadas ao tema das

homossexualidades. O caso com maior repercussão à época era o caso do jornal

“Lampião da Esquina” que, em 1978, viu seus editores serem processados por

“atentadoamoraleosbonscostumes”epor“propagaçãohomossexual”,combasena

LeideImprensa(Leinº5.250/67).Ojornal,criadoporartistaseintelectuaisdaépoca,

buscava desmistificar “a experiência homossexual em todos os campos da

162BRASIL,op.cit.,2014,p.301.163QUINALHA,R.H.Contraamoraleosbonscostumes:apolıticasexualdaditadurabrasileira(1964-1988).DoutoradoemRelaçoesInternacionais—SaoPaulo:UniversidadedeSaoPaulo,6jul.2017.164KULICK,Don.Travesti:prostituição,sexo,gêneroeculturanoBrasil.RiodeJaneiro:EditoraFiocruz,2008.165Ibid.,p.158.166GREEN;QUINALINHA,op.cit.,p.13.167COLAÇO,RitadeCassia.DeDenneraChrysóstomo,a repressão invisibilizada. In:GREEN, James;QUINALINHA,Renan.Ditaduraehomossexualidades:repressão,resistênciaeabuscadaverdade.SãoCarlos:EdUFSCAR,2014,p.201-244.

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sociedade”168deformabem-humoradaedescontraída,alémdepautarodebatesobre

sexualidade,raçaegênero.

Atéentão, a tônicados jornaisdaépocaerademobilizaramoral “eosbons

costumes”paraassociarasexperiênciasdehomossexuaiscomassassinos,pedófilose

estupradores169 e, com isso, mobilizar a opinião pública em torno de “um eterno

suspeito:ohomossexual”170.Assim,oseditoresdenunciavamessapráticanaspáginas

dojornal:

[...] temosaquidois tiposdeacusação:umageneralizada,querevesteopróprio termo “homossexual” em toda notícia veiculada por essaimprensa: como seestivesse implícita a acepção de “culpado” ou,pelomenos“suspeito”.Eoutra,específica,reclamandoaaçãodasautoridades,quenãoestariasendosuficientementerepressiva.171

168Lampiãodaesquina,n.0,marçode1978,Disponívelem:http://www.grupodignidade.org.br/wp-content/uploads/2019/04/01-LAMPIAO-EDICAO-00-ABRIL-1978.pdf.Acessoemset/19.169RODRIGUES, JorgeCaê.Um lampião iluminandoesquinasescurasdaditadura. In:GREEN, James;QUINALINHA,Renan.Ditaduraehomossexualidades:repressão,resistênciaeabuscadaverdade.SãoCarlos:EdUFSCAR,2014,p.83-124.170 Lampião da esquina, n. 06, novembro de 1978, p. 7. Disponível em:http://www.grupodignidade.org.br/wp-content/uploads/2019/04/10-LAMPIAO-DA-ESQUINA-EDICAO-06-NOVEMBRO-1978.pdf.Acessoemset/19.171Idem.

Figura1-Ediçãon.9,emfevereirode1979,doJornalLampiãodaEsquina

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Aformapelaqualahomossexualidadeeradescritaetratadapelosjornaisnos

dizmuitosobrecomoessasexperiênciaseramvistaspelasociedadeque,apoiadapela

medicinaeratificadapelostribunaisenasinstânciasdejustiça,oraeramtidascomo

“patologia”,oracomo“criminosas”.Assim,oprópriojornalquestiona:“Seriaapolícia

‘maissevera’quandoohomossexualéoacusadoemais‘tolerante’quandosetratada

vítima?”172.

Foi assim que, em menos de quatro meses de existência do Lampião, seus

editores foram processados. O processo, analisado em minúcia por Lopes173, era

baseadonoDecreto-Lei1.077/70enareferidaLeideImprensa,eacusavaojornalde

ser clandestino e ofender amoral pública e os bons costumes, alémde propagar a

homossexualidade.Comoapoiodeartistasepersonalidadesdaépoca,aliadaàpressão

internacional, Rodrigues174 aponta que o jornal obteve êxito na obtenção do

arquivamentodosautos.Emnovembrode1979,ojornal“publicaamanchete‘somos

todos inocentes’, abordando o pedido de arquivamento do processo feito pelo

Ministério Público e acatado pela 4ª Vara Federal do estado do Rio de Janeiro em

formato de absolvição”175. Contudo, apesar do arquivamento, não cessaram as

investidas do Estado para perseguir e, eventualmente, criminalizar os editores,

levandoumdeseuseditores,AntônioChrysóstomo176,aresponderanosdepoispor

umaacusaçãodepedofilia.

Nofinaldadécadade1970einíciodosanos1980,apolíciausavacomopretexto

para a prisão das travestis a famosa acusação de vadiagem e também a de

“importunaçãoofensivaaopudor”177.Otrabalhopolicialnesseperíodoeraancorado

na“filosofiadeaçãopreventivanocombateàcriminalidade”quetinhacomo“objetivo

preestabelecidoaapreensãoealvosigualmentepreestabelecidos”178.Talcenáriolevou

umdelegadodepolíciadacidadedeSãoPauloabaixarumaportariaque“determinava

aprisãoemflagrantedetravestisencontrados[sic]emviapública,esolicitavaque

172Idem.173LOPES,RodrigoCruz.Podechamardebicha,veado,baitola,masocertoéhomossexual:umapropostaanalítica para pesquisas criminológicas a partir do caso Lampião da Esquina. VI Enadir: EncontroNacionaldeAntropologiadoDireito,2019.174RODRIGUES,op.cit.,2014,p.83-124.175LOPES,op.cit.,p.8.176COLAÇO,op.cit.177TREVISAN,op.cit.178OCANHA,op.cit.,p.151.

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fossem fotografados em seus trajes femininos”179 para proceder à avaliação de sua

periculosidade.Aportaria390/1976,assim,estabeleceuuma“ligaçãoentreaimagem

femininaeanocividadeaoatrelarotipodevestimentaàcriminalidade.Destaforma,

entende-se que o indivíduo processado por vadiagem com uma foto em roupas

femininasseriamaisfacilmentecondenadodoqueooutroemtrajesmasculinos”180.

Assim, foram elaborados “estudos criminológicos de centenas de travestis,

recomendandoacontravençãopenaldevadiagemcomoinstrumentoparacombateà

homossexualidade”181.Estima-seque,“entre14dedezembrode1976e21dejulhode

1977,460travestisforamindicadasparaoestudo”182.

Éimportantepontuartambémque,aindamuitoinfluenciadopelotratamento

patológicodispensadoàhomossexualidade,comainserçãodo“homossexualismo”na

Classificação Internacional de Doenças (CID) em 1977, a transexualidade surge

tambémcomopatologiaeaberração.Osanos1970,comoapontaOcanha183,também

forammarcantesparaastravestispoismarcaramaentradadoscontraceptivosnopaís

179TREVISAN,op.cit.,p.385.180OCANHA,op.cit.,p.157.181BRASIL,op.cit.,2014,p.307.182BRASIL,op.cit.,2014,p.309.183OCANHA,op.cit.

Figura2-TravestiagredidaporpoliciaisemSãoPaulo.FotodeJucaMartins,1980

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e apossibilidadede construçãodo corpocomhormônioseaplicaçãode silicone.A

possibilidade de construção e desconstruçãode seus corpos deu umnovo fôlego à

práticadetrottoir184emarcouoiníciodessarelaçãoentrerepressãoeresistênciaem

tornodospontosdeprostituiçãotravesti.

Os primeiros anos da década de 1980marcam a chegada185 da epidemia de

HIV/AIDS no Brasil e, com os primeiros registros da doença verificados em

homossexuaismasculinos, não tardou para “que uma íntima associação entre essa

novamoléstiaeahomossexualidadefosseestabelecida”186.Adenominada“pestegay”,

aos olhos da ciência, ressuscitou grande parte dos argumentos que relacionavam a

homossexualidadeàpatologia187,impulsionandocadavezmaisjulgamentosmoraise

religiosos. Somado a isso, a década marca o acirramento da violência contra a

populaçãoLGBT,sendocrescenteonúmerodecasosenvolvendotravestisespancadas

eviolentadasnasruasdasprincipaiscapitaisdopaís188.Quandonãomorriamnasruas

das cidades, grandeparteestava expostaà contaminaçãopelovírusdaHIV/AIDSe

pelasinflamaçõesdecorrentesdeaplicaçãodesilicone189,quandonãoeramalvosde

batidaspoliciais.DonKulickapontaqueastravestis:

[...]saíamànoiteparaasruassemsabersevoltariamnodiaseguinte.Elaspodiamterquasecerteza,noentanto,dequeseriampresaspelapolíciamilitaroupelaDJC(DelegaciadejogoseCostumes).Emqualquerumdoscasos as prisões não estavam em absoluto dentro da legalidade:prostituiçãonãoécrimenocódigopenalbrasileiro,esobreastravestisdetidasnãopesavanenhumaacusação(anãoseremalgumasocasiões,quando elas eram acusadas de crime de ‘vadiagem). Travestis detidaspelapolíciacivileramlevadasaoxadrez,ondepassavamumanoite–eàsvezesduasoutrêsnoites–atéseremliberadas.190

AnykyLima,travestieativistadosdireitoshumanos,apontaquenessaépoca

erapresatodososdias:“sevocêmeperguntarcomoeusobrevivieunãovousaberte

184Palavraemfrancêsqueserefereàpráticadeprostituiçãonasruas.185GOMES,Jane.1980-2001:umacronologiadaepidemiaHIV/AIDSnoBrasilenomundo.RiodeJaneiro:ABIA,2002.186 TRINDADE,Ronaldo.De dores e deamores: transformações da homossexualidadepaulistana naviradadoséculoXX.Tese(DoutoradoemAntropologiaSocial)FaculdadedeFilosofia,LetraseCiênciasHumanasdaUniversidadedeSãoPaulo.SãoPaulo,2004,p.41.187Idem.188TREVISAN,op.cit.189KULICK,op.cit.190Ibid.,p.49.

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explicar”191.Omotivodaprisãopoderiaserqualquerum,“prendiamsóporprender,

pralavarbanheiro,pradesfilarparaospoliciais”,mas“quemsofriamesmoeramas

travestisnegras,nós,brancas,éramosretiradasdasruasparaservirospoliciaseas

negrasapanhavam”.Jácomocorpomodificadopelousodehormônios,Anykyconta

que os policiais colocavam as travestis enfileiradas na parede, pegavam jornal e

colocavamfogonapontaepassavamnapernadecadauma,tudoissosópraver“quem

usavameiafina”.

Apesardaperseguiçãoedoacirramentodarepressão,astravestisencontravam

formasdeseorganizarem.Em1985,nacidadedeSãoPaulo,BrendaLee,“transformou

acasaqueutilizavaparaatendimentoaosseusclientesnumacasadeapoioàgayse

travestisinfectadosedesamparados”192.AassociaçãoentreatravestilidadeeaAids

era utilizada de forma estratégica pelas travestis e servia como mecanismos de

resistênciaperanteasarbitrariedadesdapolícia.LuizMott193relataocasodeMarinha,

umatravestiquemoravaemSalvadornosanos1980equetinhaumcortede10cmno

braçosesquerdoquesaltavaaosolhos.Mottrelataqueomotivoparaaferidaeramos

diasquetevequepassarnaprisãonasemanaanterior:

NaDelegaciadeJogoseCostumes,depoisde fichado[sic],permaneceuatrásdasgradesportrêsdiasconsecutivos.Desesperado[sic],depoisdemuito argumentar com o delegado que não tinha roubado ninguém,estandosimplesmente‘fazendopista’enãomerecendo,portanto,castigotãoprolongado,comoúltimorecursoMirinhatiraumagiletequetraziaescondida dentro da boca e, incontinenti, abre uma chaga de uns 10centímetros em seu braço esquerdo. Commuito sangue escorrendo, opobrehomossexualé levadoperanteodelegadoque,paraeximir-sedequalquerresponsabilidade,concede-lhealiberdade.194

Sejacomoformadecomoverospoliciaismaissensíveisoudeamedrontaros

mais inseguros, o recurso à automutilação servia como forma de escapar do

aprisionamento195.Em1987,outroepisódioirrompenahistóriaeilustraessarelação

191TodosostrechosemaspasdesseparágrafosãoreconstituiçõesdeconversasquetivecomAnykyLimaaolongodotempodecampo.192TRINDADE,op.cit.,p.45.193MOTT,Luiz;ASSUNÇÃO,A.Giletenacarne:etnografiadasautomutilaçõesdostravestisdaBahia.TemasIMESC,Soc.Dir.Saúde,SãoPaulo,4(1):41-56,1987.194Ibid.,p.2.195Idem.

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conflituosa entre a polícia e as experiências de travestis. A despeito da

redemocratizaçãodopaís,aperseguiçãoaelas,sejapeloEstado,sejapelasociedade,

ainda era uma constante. É na cidade de São Paulo que emerge a denominada

“OperaçãoTarântula”,cujoobjetivoprincipaleraaperseguiçãoatravestisnacidade

comopolíticadecombateàAids196.Taloperaçãoeclodeemumcontextoemqueas

instituições eram convocadas para dar uma resposta à epidemia – “a operação foi

apenasumadasrespostasinstitucionaiscircunscritanumcircuitodeatoseefeitoscom

ramificaçõesmaisamplaseigualmenteperversas”197.

Naquelecontexto,eranotóriaaassociaçãoimediataàepidemiacomo“câncer

gay”,relacionando-sepráticashomossexuaisaocontágiodadoençaconstantemente.É

exatamenteessecontextoquepossibilitaeimpulsionaaoperação,bemcomodividea

população em geral de um lado e, “do outro[,] as travestis e demais pessoas

assumidamente LGBT”198. Essas “operações de limpeza” eram apoiadas de forma

maciçapela sociedadeque,muitasvezes, elaboravaabaixo-assinadosdemoradores

quesesentiamafetadospelapresençadetravestisnosbairros199.

Dentreasinstituições“convocadas”paradarumarespostaàepidemia,aPolícia

CivildoestadodeSãoPauloseapropriacomcriatividadedoartigo130doCódigoPenal

de1940,quecapitulavacomocrimeapráticade“exporalguém,pormeioderelações

sexuaisouqualqueratolibidinoso,acontágiodemoléstiavenérea”.Ouseja,aquise

tinhaumduplomovimentodecriminalizaçãodasexperiênciasdetravestis:aomesmo

tempoqueeramconsideradasautomaticamenteportadorasdovírusHIV,igualmente

previsíveleraaocorrênciadapráticatípicadoartigo130,demodoaantevere,assim,

materializarostrâmitesformaisnecessáriosparaoenquadramentocomocriminosas

eaprisão.Dessaforma,“nãohaveriasequeranecessidadedecomprovaraexistência

dealgumdelitoporpartedastravestisdetidas,poisjustopelofatodeseremtravestis

é certo que se não ocorreu o delito foi apenas por falta de possibilidade e este,

certamente,ocorrerá”200.

196CAVALCANTI,Céu;BARBOSA,RobertaBrasilino.OstentáculosdaTarântula:abjeçãoenecropolíticaemoperaçõespoliciaisatravestisnoBrasilpós-redemocratização.Psicologia:ciênciaeprofissão,v.38,p.175-191,2018.197Idem.198Ibid.,p.181.199SPAGNOL,AntônioSergio.Odesejomarginal.SãoPaulo:Arte&Ciência,2001,p.51.200CAVALCANTI;BARBOSA,op.cit.,p.180.

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Odelegadoresponsávelpelaoperaçãodeixouevidentesuaintençãodelimpar

“a cidade com as prisões de prostitutas e travestis”201. Dessa forma, diante do

acirramento da violência policial e do momento propício de abertura política,

eclodiramna cidadedeSão Paulomanifestaçõesdeprostitutase travestis contraa

políticadesegurançapúblicaadotadapeloestadodeSãoPaulo.

Aoquemeinteressa,aOperaçãoTarântulapodeserconsideradaumexemplo

de comoosprocedimentosde criminalizaçãooperamnotadamentepelanorma, em

outra sintonia, definindo toda a dinâmica punitiva penal em consonância com

percepçõesqueorganizavamonossocamposocialequesãoefeitosdasnormasde

gênero. Entre a explícita tipificação de pessoas que “disfarçavam o sexo” até a

regulaçãodeespaçosdesociabilidadehomossexual,passandopeloenquadramentodo

jornal “Lampião da Esquina” por vadiagem e promoção da homossexualidade, pela

limpeza das ruas em virtude da suposta ou real atividade no mercado sexual, a

criminalização de experiências dissidentes no campo de gênero e sexualidade se

reconfigurounoperíododeaberturapolítica.

2. “Prendendooumatando”:acriminalização(re)localizada

-“Oquevocêachadematarhomossexuais?”- “Euachoqueacabardeveacabar, né.Deumaformaoudeoutra,prendendooumatando.Eusoucontrahomossexuais.”202

Mesmocoma redemocratizaçãodopaís e apromulgaçãodaConstituiçãoda

Repúblicade1988,muitodamoralidadevigentenoperíododitatorialdeuotomda

relaçãoqueoaparatorepressordoEstadoestabeleceucomasexperiênciasdissidentes

nocampodegêneroesexualidadee,emespecial,comasexperiênciasdetravestis.O

paradoxo que se instaura entre os avanços obtidos na esfera pública com a

redemocratização e a manutenção de práticas violentas e arbitrárias cultivadas

201BRASIL,op.cit.,2014,p.308.202 MOREIRA, Rita. Documentário: Hunting season. São Paulo, 1988. Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=rjan_Yd0C5g&t=146s.

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durante o período militar203 se configura de uma forma específica no que toca às

experiênciasdetravestiscomosistemapenal.

Essa dinâmica é caracterizada por dois pontos principais: os episódios de

violência contra essa população e o investimento em torno da visibilização e

mobilizaçãodapautaprisional.Aarticulaçãodessasduaspreocupaçõeséresponsável,

até hoje, por ditar os (raros) esforços do Estado e da academia na elucidação e

investigaçãodessesfenômenos.Aoquemeinteressaabordar,essesdoismovimentos

devemserlidoscomopartesdeprocessosamplosdecriminalizaçãodasexperiências

detravestisqueassumemcontornosaindapoucoconhecidos.

3.1. “Matando”:oshomicídiosdetravestis

Aatençãodadaaosepisódiosdeviolência,emcertosentido,nãosomentefoi

possibilitada pela “democratização de processos decisórios e a inclusão de novos

segmentospopulacionaiscomobeneficiáriosdepolíticaspúblicas”204,quepossibilitou

umasistematização205 cadavezmaiordessesepisódios, como tambémserviu como

moteparaaorganizaçãodomovimentosocialdelésbicas,gays,bissexuais,travestise

transexuais (LGBT),quepassama atuarde “modomaispragmático, voltadaparaa

garantia dos direitos civis e contra a discriminação e violências dirigidas aos

homossexuais206.

Mais especificamente na segunda metade dos anos 1990, “uma série de

processos e acontecimentos, heterogêneos e pouco articulados entre si”207, seriam

responsáveis por mudar as “representações sociais sobre a homossexualidade,

tradicionalmentemarcadaspeloestigmaepelodesvio”208.Assim,esseperíodomarca

203ADORNO,Sergio.Crimen,puniciónyprisionesenBrasil:unretratosinretoques.Quórum,AlcaládeHenares,n.16,p.41-49,2006.204FACCHINI,Regina.Entrecompassosedescompassos:umolharparao“campo”eparaa“arena”domovimentoLGBTbrasileiro.Bagoas,n.04,2009,p.135.205ImportantepontuarqueadenúnciaeaatençãoaosepisódiosdeviolênciacontraapopulaçãoLGBTsãopautadaspelomovimentosocialdesdeosanos1970.Cf.COSTA,NicoleGonçalvesda.Dodisquedenúnciaaocallcenter:oslimitesdoDisque100paraarealizaçãodadenúnciacontraapopulaçãoLGBT.DissertaçãodemestradoemPsicologia,UFMG,BeloHorizonte,2016.206FACCHINI,op.cit.,p.138.207CARRARA,Sérgio;RAMOS,Silvia.Aconstituiçãodaproblemáticadaviolênciacontrahomossexuais:aarticulaçãoentreativismoeacademianaelaboraçãodepolíticaspúblicas.PHYSIS:Rev.SaúdeColetiva,RiodeJaneiro,16(2),2006,p.187.208Idem.

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oiníciodeummovimentode(re)localizaçãodessasexperiênciasnocampododireito

edaspolíticaspúblicas,sobretudo,apartirdaatuaçãodomovimentosocialfeminista

eLGBT209.A“lutacontraaviolênciaeaprevençãoaoHIVeAIDS”210,ainda,eramas

pautas principais das primeiras211 organizações institucionais de pessoas trans e

travestis no país que, inseridas em um processo contínuo de especificação das

“categorias identitárias abarcadas pelo movimento”212, culminaram no primeiro

EncontroNacionaldeTravestiseTransexuaisem1993213.

Impulsionados pela inoperância dos órgãos públicos na construção de

mecanismos capazes de receber e visibilizar tais denúncias, osmovimentos sociais

apostaram na prática de levantamento midiático (notícias de jornais e revistas,

reportagens,dentreoutros)relacionadoàviolênciacontraapopulaçãodeLGBTem

todooterritórionacional.AsprimeirassistematizaçõesforamfeitaspeloGrupoGayda

Bahia(GGB),aindanadécadade1980;noentanto,suapublicizaçãonãosurtiuefeitos

nocampodasegurançapúblicanopaís214.Greenapontaqueentremeadosdosanos

1990 documentou-se o “assassinato de mais de 1.200 homossexuais masculinos e

femininosedetravestisnoBrasil”215.AletalidadeelevadaeodesinteressedoEstado

emnãosomentecontabilizaressasmortescomo,igualmente,emempreitaresforços

naresoluçãodoscrimes,quandosetratamdeLGBTsvítimas,parece-meapontarpara

umaoutraformadeapariçãoeorganizaçãodacriminalização.

No que toca à produção acadêmica, uma pesquisa realizada por Carrara e

Vianna216 trouxe aportes sobre como a criminalização das experiências LGBT se

209FACCHINI,op.cit.210 COACCI, Thiago. Conhecimento precário e conhecimento contra-público: a coprodução dosconhecimentos e dos movimentos sociais de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em CiênciaPolítica), FaculdadedeFilosofia e CiênciasHumanas daUniversidade Federal deMinasGerais, BeloHorizonte,2018,p.121.211Éimportantepontuarqueantesdesseperíodoexistiamalgumasorganizaçõesinformaisemtornodapautatransequepodemsercaracterizadascomoumaformadeativismo.Cf.PRADO,MarcoAurélioMáximo(etal).Movimentosemaranhados: travestis,movimentossociaisepráticasacadêmicas.Rev.EstudosFeministas.vol.27,no.2,Florianópolis,2019;COACCI,op.cit.212CARRARA;RAMOS,op.cit.,p.187.213GREEN,JamesNaylor.“Maisamoremaistesão”:aconstruçãodeummovimentobrasileirodegays,lésbicasetravestis.Cadernospagu(15),2000,p.271-295.214COSTA,op.cit.215GREEN,op.cit.,2000,p.287.216CARRARA,Sérgio;VIANNA,Adriana.AviolêncialetalcontrahomossexuaisnomunicípiodoRiodeJaneiro:característicasgerais.In:CarlosCacerres(Org.),CiudadaniasexualenAmericaLatina:abriendoeldebate.pp.47-64.Lima:UniversidadPeruanaCayetanoHeredia.2004;Idem.“Táláocorpoestendido

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configurava no cenário pós ditadura. Os autores possibilitaram, pela primeira vez,

apontaralógicadaimpunidadepredominantenoscrimesqueentramnosistemade

justiça criminal e vitimam homossexuais ao investigarem a forma como são

construídos judicialmente os casos de homicídio envolvendo gays e travestis. Com

essesdados,procederamaolevantamentodeinquéritospoliciaiseprocessospenais

relativosàocorrênciade57crimesdessanaturezana cidadedoRiode Janeiro,no

períododejaneirode2000ajulhode2001.Comapesquisa,foipossívelverificarque

a homossexualidade suposta ou real da vítima não funciona sempre no sentido da

impunidadedoacusadoequeareaçãodajustiçaaviolêncialetalcontrahomossexuais

searticulaapartirdainteraçãodasdiferenteshierarquiasdegênero/sexo,declassee

de raça217. Os autores evidenciam que a indiferença policial na apuração de casos

envolvendoassassinatodetravestis,adespeitodeumaprecariedadegeraldosistema,

reside nas representações negativas de travestis, de modo que a morte dessa

populaçãotendeaserconsideradacomoconsequênciainexoráveldeumavidaderisco.

A partir dos anos 2000 é possível apontar para a entrada definitiva das

demandas do movimento LGBT nas políticas públicas, sobretudo a partir de dois

episódios apontados por Facchini218. O primeiro se dá em virtude da criação da

SecretariaEspecialdeDireitosHumanos(SEDH),quepassaaterstatusdeministério

e incorpora o Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD), criado

anteriormente.Osegundoconsistenacriaçãodeumplanodecombateàhomofobiado

governo federal denominado “Brasil Sem Homofobia”, no ano de 2004. Esses

movimentosderamumnovoimpulsoparaarelaçãointrincadaentredireito,gêneroe

sexualidade.

Contudo, foi somente no ano de 2011 que o poder público implementou

mecanismos para a notificação dos crimes contra a população LGBT, por meio do

“Disque100”.Referidoinstrumentorespondenãosomentepeloregistrodedenúncias

deviolaçõese crimesaosquaisapopulaçãoLGBTé submetida, como tambémpela

proteçãodasvítimas.Osdadosobtidosvia“Disque100”,somadosaoutrasfontesde

nochão”...:aviolêncialetalcontratravestisnomunicípiodoRiodeJaneiro.PHYSIS:RevistadeSaúdeColetiva,16(2),p.233-249.2006.217CARRARA;VIANNA,2006,p.245.218FACCHINI,op.cit.

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dadossecundárias219,foramsistematizadospelaprimeiravezemrelatórioproduzido

pela SEDH no ano de 2012, com dados de violência referentes ao ano anterior220.

Apesar da importância de destacar iniciativas governamentais relativas ao

aprofundamento e investigação das violências contra a população LGBT, até então,

foramapenastrês221osrelatóriosproduzidosporiniciativafederalque,somadosaos

números do último relatório, evidenciam um quadro complexo de deficiência na

notificaçãodessescrimes.

Osdadosdogovernofederalcontrastamcomlevantamentoselaboradospela

RedeTrans222queindicamque,somentenoanode2016,oBrasilfoiresponsávelpela

ocorrência de 143 homicídios que vitimaram fatalmente travestis.No ano anterior,

foram contabilizadas 113 mortes de travestis. Sendo assim, de janeiro de 2015 a

dezembro de 2016, 256 homicídios vitimaram fatalmente travestis.

Internacionalmente,segundodadosdaONGInternacionalTransgenderEurope,entre

janeirode2008eabrilde2016ocorreram845mortesdetravestisetransexuaisno

Brasil.UmaanáliseglobaldessesdadospermitiuàONGinferirqueopaíséresponsável

por40%dasmortesdepessoastransexuaisqueaconteceramnomundodesde2008223.

Abuscaporaperfeiçoamentodosmecanismosdenotificaçãolevou,nofinalde

2015,apartirdeumaintensamovimentaçãoporpartedomovimentosocialLGBT,a

uma mudança no Registro de Eventos da Defesa Social (REDS)224, com vistas a

melhorarlacunasdepreenchimentonoconhecidoboletimdeocorrênciaparamelhor

preveniretrataressescasos.Referidanecessidadedecomplexificaroentendimento

quea segurançapública tinha, atéentão, comrelaçãoaoseventosdeviolência que

219 Cumpre ressaltar que o “Disque 100” responde a, em média, 70% dos dados compilados nosrelatóriosdogoverno,sendo,assim,suafonteprimáriaemaissignificativa.220BRASIL.Relatório sobreviolênciahomofóbicanoBrasil: anode2011.Brasília:SecretariaDireitosHumanosdaPresidênciadaRepública,2012.221BRASIL.Relatório sobreviolênciahomofóbicanoBrasil: anode2012.Brasília:SecretariaDireitosHumanosdaPresidênciadaRepública,2013;BRASIL.RelatóriosobreviolênciahomofóbicanoBrasil:anode2013.Brasília:SecretariaDireitosHumanosdaPresidênciadaRepública,2016.222 “Dossiê 2016”. Disponível em: http://redetransbrasil.org/dossiecirc2016.html. Acesso emnov/2017.223TRANSGENDEREUROPE. IDAHOT2016 -TransMurderMonitoringUpdate.PressReleaseMay122016.Disponívelemhttp://transrespect.org/en/idahot-2016-tmm-update/.Acessoem:jul/2017.224 O Boletim de Ocorrência é um documento produzido por agentes da segurança pública com afinalidadededescrever,narrarereportaraocorrênciadequaisquerdelitosafetosàordempúblicaequedemandamintervenção.Referidodocumentoocupalugarcentralnasistematizaçãodasocorrênciasnoâmbitodasegurançapúblicae,noanode2003,noestadodeMinasGerais,suaproduçãoecirculaçãopassouaserdigital,sobadenominaçãodeRegistrodeEventosdaDefesaSocial(REDS).

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vitimam a população LGBT foi reconhecida, em âmbito nacional, pelo Conselho

Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos (CNCD/LGBT), por

meiodaelaboraçãodaResoluçãonº11,de18dedezembrode2014.Talresolução

muniu de força normativa e institucional a necessidade de aperfeiçoamento dos

boletins de ocorrência no país. Na esteira desse raciocínio e após muitos anos de

intensodebate,foielaborada,noâmbitoestadual,notatécnicapelogovernodoestado

de Minas Gerais no dia 06 de novembro de 2015, em que constam as diretrizes

necessárias para proceder ao devido aperfeiçoamento do REDS. Assim, nomês de

janeirode2016,foramincluídasenquantocamposderegistroobrigatórioaslacunas

de“orientaçãosexual”,“identidadedegênero”e“nomesocial”,bemcomonovasopções

depreenchimentodocampo“causa/motivaçãopresumida”,paramelhormensurare

refletirosepisódiosqueacometemapopulaçãoLGBT.

Contudo,empesquisarealizadapeloNúcleodeDireitosHumanoseCidadania

LGBT,quereuniuregistrosdecasosdehomicídiotentadoeconsumadoentre2016e

2018, emocorrênciasenvolvendo transe travestis, onomesocialnão foi citadona

metadedoscasos,aorientaçãosexualnãofoiinformadaem35%dasvezes,eocampo

“identidadedegênero”foiignoradoem33%dasocorrências225.Taisinconsistências

revelam um complexo despreparo com a questão, o que incide diretamente na

criminalizaçãodessapopulação.

3.2. “Prendendo”:acriaçãodealasparatravestisehomossexuais

Emrelaçãoàpautaprisional,asdenúnciasdeviolaçõessofridaspelastravestis

nocárcerederamatônicadasaçõesaseremempreendidasnocampodasegurança

públicaapartirdosanos2000.Esseperíodofoimarcadopelaadoção,porpartedo

governobrasileiro,de“estratégiasdesensibilizaçãoparaa temáticadasexualidade,

visandodiferentespúblicos”226.Foisomentenoanode2007queapautadasegurança

pública ganha contornos institucionais com a elaboração do “Plano Nacional de

225NUH.RelatóriodoNúcleodeDireitosHumanoseCidadaniaLGBTsobreosregistrosdehomicídiosenvolvendo LGBTs no Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2019. Disponível em:https://drive.google.com/file/d/0B97VB4S4vPTwMWFIOXZxdXdRbDBuakM3cUwwYjNJa2VpdGlF/view?ts=5d66dff8.Acessoemout/2019.226LAMOUNIER,op.cit.,p.95.

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SegurançaPúblicaparaoenfrentamentodahomofobia”que,apartirde62propostas,

abordava a questão da violência homofóbica,mas, sobretudo, voltava a atenção ao

tratamentopolicialdispensadoàpopulaçãoLGBT.Lamounier227aponta,contudo,que

nenhumadaspropostaschegaramaserrealizadas,ficandoacargodasConferências228

LGBTs,estaduaisenacionais,noanoseguinte,revisitarotema.Asreinvindicaçõese

propostas das conferências no que toca ao temada segurança pública se voltou de

formasignificativaparaaquestãoprisionalecolocouemdebate:[...] os problemas históricos das violações cometidas pelas/nasinstituiçõesprisionais(ouseja,violênciasestatais),queatingemtodosossujeitosqueseenvolvemcomsuarealidade:aspessoasemprivaçãodeliberdade, os agentes penitenciários, a equipe técnica, a gestão e, atémesmoseusfamiliares.229

Dessaforma,apautaprisionalnãosomenteinauguraodebatesobreainterface

entreosprocessosdecriminalizaçãodogêneroesexualidade,comotambéminfluencia

as preocupações que viriam a ser elaboradas nos próximos anos, notadamente

pautadaspelasituaçãodetravestisnocárcere.Destarte,oanode2009marcaumponto

importante na história conturbada da travestilidade com o sistema penal: a

institucionalização230dasalasnoestadodeMinasGerais.Apartirdedenúnciasecartas

recebidasdepresoseseus familiaresrelativasa inúmerasviolaçõesquetravestise

gaysestavamexpostasnaprisão,oCentrodeReferênciadeGays,Lésbicas,Bissexuais,

Travestis, Transexuais e Transgêneros (LGBTTT), órgão ligado à Secretaria de

227Idem.228Asconferências“sãoespaçosamplos,geralmenteconvocadaspelopoderpúblico,comparticipaçãodemovimentossociais,ativistasesociedadecomum,paradiscussãosobreprioridadesdeinvestimento,comarticulaçãocoletivaedesenvolvimentodeestratégiasparaelaboraçãodepolíticaspúblicas.EmcadaprocessodeConferência sãosistematizadaspropostasa serem indicadasparaogovernocomopautasprioritáriasdeatuação,emváriossegmentosdapolíticapública (saúde,educação,segurançapública,seguridadesocial,etc)”.Cf.Ibid.,p.96.229Ibid.,p.98.230A regulamentaçãoveioem2013,viaResoluçãoConjuntadaSecretariadeDefesaSocial (SEDS)eSecretariadeEstadodeTrabalhoeDesenvolvimentoSocial(SEDESE),nº1de2013.

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DesenvolvimentoSocialdoestadodeMinasGerais,iniciouumprojetoparaacriação

daprimeiraalaespecíficaparaessapopulação.

Retireiessafotodacapadeumdocumentoquecontinhaoprojetoelaborado

pelo CRGBTT em 02 demarço de 2009. Logo acima da imagem, têm-se os dizeres

“ProgramadeReabilitaçãoeRessocializaçãodastravestisegaysnapenitenciáriade

Bicas”.Napágina seguintedodocumento, constaquea criaçãodasalas tinha como

objetivo: “a implementação de um programa de recuperação da autoestima,

asseguramentodasaúdeesegurançaepromoçãodacapacitaçãoprofissionalparao

cidadãogayeacidadãotravestiqueseencontramcerceadosdesualiberdade”231.A

preocupaçãocomautoestimavinda logonaprimeira linhadosobjetivosdoprojeto

parece apontar para aquilo que teria sido omote de criação das alas: o corte dos

cabelos.EmentrevistafeitacomogestordasalasnoestadodeMG,feitaporLamounier,

aquestãodocortedecabeloerauma

231Trechoretiradodosdocumentosoficiaisdecriaçãodoprojeto.

Figura3-SãoJoaquimdeBicas,2009.

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[...] preocupação domovimento social frente aos abusos que estavamacontecendo e apareceu mesmo um olhar sobre como fazer para queessas pessoas não mais tivessem seus direitos violados. Um exemplo:cortar os cabelos, retirar toda a feminilidade que era construída, issoprincipalmenteparaastravestisetransexuaisfemininas.232

Gostariademedeterumpoucomaissobreaimagemporacreditarqueelanão

somente representa um modo de funcionamento geral das prisões, mas também

representaa formaqueaprisãochegaàs travestisecomotemospensadoarelação

comacriminalizaçãoapartirdocárcere.Doladoesquerdodafoto,épossívelperceber

umamontoadodecorpossemrosto.Ocabeloraspado,ospéscalçadoscomchinelosde

dedoseasmãospremidasporalgemasdãoaimpressãodetratar-sedeumacoisasó.

Aindistinçãodeseuscorposapontaparaoapagamentoabsolutodecaracterísticasque

nosindividualizam,nosdiferemunsdosoutros.Poderiaseroretratodecamposde

concentraçãoemmeadosdosanos1940,ouumaimagemdasExposiçõesUniversais

deParisnofinaldoséculoXIX,masoanoé2009eessefatoédesconcertante.

Voltandoàimagem,depé,seispessoasolhamfixamenteparaesseamontoado

decorpos.AspessoasdeternoegravatasãorepresentantesdoEstadoesãoasúnicas

queaparecemgesticulandonaimagem.Burocratas,tecnocratas,pessoasdagestãoque

ilustram como que o surgimento da ala ocorreu no lastro de uma série de

acontecimentossituadosemummomentohistóricoespecífico,queproporcionaramas

condiçõesnecessáriasparaqueesselugarinstitucionalsetornassepossível.

Após a implementação das alas em2009 no estado deMinas Gerais, outros

estados seguiram a iniciativa e estruturaram espaços com finalidades parecidas.

Paraíba, Bahia, Mato Grosso e Rio Grande do Sul233 também seguiram o mesmo

caminhoe,alémdisso,noanode2014,aSEDHjáhaviaassinadocomoutros16estados

brasileirostermosdecompromissoparaaelaboraçãodeaçõesvoltadasapopulação

232Ibid.,p.148.233SobrepesquisasdagaleriadoPresídioCentraldePortoAlegre,ver:PASSOS,AmiltonGustavodaSilva;SEFFNER,Fernando.Umagaleriaparatravestis,gayseseusmaridos:forçasdiscursivasnageraçãodeumacontecimentoprisional.Sexualidad,SaludySociedad,n.23,ago,2016,p.140-161;FERREIRA,GuilhermeGomes.TravestisePrisões:ExperiênciasocialemecanismosparticularesdeencarceramentonoBrasil.Curitiba:Multideia,2015.

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carceráriaGBT,culminandonapublicaçãodaResoluçãoConjuntanº1de2014234,que

normatizaoacolhimentoàpopulaçãoLGBTemprivaçãodeliberdade.

Contudo, essamaior visibilidade não veio acompanhada necessariamente da

implementação de mecanismos institucionais capazes de verificar e acompanhar a

situaçãodetravestisnocárcere–sejaparafinsdeelaboraçãodepolíticapública,de

monitoramentodemográficooudeacompanhamentodepossíveisviolaçõessofridas

dentrodocárcere,comoacontececomtodoorestantedapopulaçãocarcerárianopaís,

aindaqueprecariamente.

E esse, talvez, seja um dos motivos principais que expliquem a completa

ausência e precariedade de dados referentes ao encarceramento de travestis e,

consequentemente,sobreosprocedimentosresponsáveispelasuacriminalização.Não

sabemos quem são, quantas são, qual é o tipo penal mais aplicado, como se dá a

execuçãodesuaspenasequiçácomoandaasuasituaçãoprocessual.Seconsiderarmos

queoaumentodapopulaçãocarcerária“deve-semaisaumapolíticaderepressãoede

criminalização”235, o acesso a esses dados pode auxiliar de forma significativa o

movimentode(re)localizaçãodadiscussãosobrecriminalizaçãodetravestis.

Emabrilde2015,porexemplo,umaimagemchocantecirculounosjornais:uma

pessoasentadanochãoemfrenteaumaviaturapolicial,comospésalgemadoseas

mãosamarradasatrásdocorpo;sóseviaumrostodesfigurado,oscabelosraspadose

uma área turvada tampando os seios descobertos. Verônica foi detida pela polícia

acusada de agressão a uma senhora de idade. Contudo, os desdobramentos que se

seguiram daí foram inimagináveis: nas mãos dos agentes de segurança pública do

estadodeSãoPaulo,Verônicaquasemorreu.Ementrevistatempodepoisdofato,ela

relatou“[...]chutes,socos,tentativasdeasfixiacomsacosplásticos,spraydepimenta

diretamenteemseusolhos”236.Paramuitosaimagemeramaisumaquealimentavaos

reacionários de plantão e conclamava o ódio para os ávidos pela punição e

234 Resolução Conjunta nº 1 de 15 de abril de 2014. Disponível em:http://www.lex.com.br/legis_25437433_RESOLUCAO_CONJUNTA_N_1_DE_15_DE_ABRIL_DE_2014.aspx235MONTEIRO,FelipeMattos;CARDOSO,GabrielaRibeiro.Aseletividadedosistemaprisionalbrasileiroeoperfildapopulaçãocarcerária:umdebateoportuno.Civitas,PortoAlegre,v.13,n.1,jan-abr,2013,p.101.236 “Verônica Bolina: ‘estou recomeçando, reconstruindo minha vida”. Disponível em:https://www.brasildefato.com.br/especiais/veronica-bolina-estou-recomecando-reconstruindo-minha-vida/.Acessoemset/2019.

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consternados pela impunidade no Brasil. Para outros, era a constatação de que a

discussãosobreosistemapenaleasexperiênciasdetravestissemprefoinecessária.

Tais episódios de violência, apesar de pouco conhecidos, inseridos em um

contextodeencarceramentoemmassanopaís,sobretudodepessoasjovensenegras,

apontamque essa lacuna de registro é, nomínimo, alarmante. Segundo os últimos

dadosdoINFOPEN237,apopulaçãoprisionaldoBrasilchegouaopatamarde726.712

pessoaspresas,emquearelaçãoentreonúmerototaldepessoasprivadasdeliberdade

eaquantidadedevagasexistentesnosistemaprisionalchegaa197,4%,apontando

paraumasuperlotaçãodosistema.Emrelaçãoàraça,corouetniadaspessoasprivadas

deliberdadenoBrasil,osdadossãoigualmentealarmantes:64%dosistemaprisional

é composto por pessoas negras. No que toca ao número de crimes pelos quais as

pessoasprivadasdeliberdadeforamcondenadasouaguardamjulgamento,oINFOPEN

apresentaumdadocurioso:“oscrimesderouboefurtorepresentam38%doscrimes

pelos quais os homens privados de liberdade foram condenados ou aguardam

julgamento”,sendoqueoscrimesligadosaotráficorepresentam26%dosregistros.

Tratando-sedasmulheres,ocrimedetráficodedrogasatinge62%,enquantorouboe

furtosomam20%.

Partedaliteraturasobreotematembuscadoentenderas“razõesdegênero”

quesãoarticuladasaoincrementodastaxasdeencarceramentofemininoeapontam,

por exemplo, para os efeitos deletérios da Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006) na

populaçãoemgeral,mas,sobretudo,noestímuloàcriminalizaçãodemulheres,

[...]seosistemapenaléestruturalmenteseletivonogeral,verifica-seaespecial(eperversa)seletividadecomqueseencarcerammulheresmães,negrasepobres,justoaquelasquebuscamnocomércioilícitodedrogas,por necessidades de subsistência de sua família, uma melhorremuneração,quandonãosãocoagidasouameaçadasparalevardrogasapresídios.Paraessasmulheres,querompemduplamentecomseupapelsocial (por praticarem um crime e, além disso, por serem “mulherescriminosas”)oníveldeestigmatizaçãoeisolamentoaqueestãosujeitaséainda pior, afastadas de seus filhos e abandonadas por seuscompanheiros.238

237OINFOPENéumaplataformacriadapeloMinistériodaJustiçacomointuitodereunirumbancodedadossobreosestabelecimentosprisionaisnopaíseoperfildapopulaçãocarcerária.Cf.MONTEIRO;CARDOSO,op.cit.238 BOITEUX, Luciana. Encarceramento feminino e seletividade penal. Rede justiça criminal:discriminaçãodegêneronosistemapenal.Edição09,setembrode2016,p.5.

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Atrelado ao crescimentodo encarceramento no país, umamaior visibilidade

dessasquestõestemfomentadoumacrescentemobilizaçãoemtornodapauta,bem

comoumaincorporaçãogradualdasquestõesdegêneroesexualidade,sobretudono

“combateàviolênciadegêneroemsuasdiversasformas–pelosmovimentosdedefesa

dosdireitoshumanosqueestãohistoricamenteenvolvidoscomadefesadedireitosda

populaçãocarcerária”239.ZambonieLagoapontamqueaacademianãofoiindiferente

a tais processos e incorporou de forma significativa as pesquisas realizadas “sobre

contextos de privação de liberdade que incorporam questões de gênero e

sexualidade”240.

Contudo,noquetocaaosprocessosdecriminalização,quepassampelocárcere,

masnãosomenteporele,osautoresapontamque“emcomparaçãocomasquestões

de raça e classe, os problemas de gênero e sexualidade são relativamente menos

visíveis, mais naturalizados e menos politizados”241. Gostaria de acrescentar que,

ainda, quando trabalhados, tais temas parecem não abranger a experiência de

travestis. Isso porque o crescimento significativo da produção sobre a seletividade

penaledacriminalizaçãodegrupospobresenegrosnãonecessariamentepossibilitou

pensarsobreocontrolepenalcomoefeitodasnormasdegênero.

Grande parte das pesquisas existentes sobre a investigação de processos de

criminalizaçãodetravestisfoipautadapelaanálisedeautosprocessuaise,apesarde

pontuais,lançampistassobreessecenário.BeckereZahra242procederamaanálisesde

julgamentosdoTribunaldeJustiçadoRioGrandedoSuleconcluírampelaexpressiva

vinculaçãodastravestis aáreacriminal, independentementedeatuaremounãoem

fatos tidos como criminosos. Em abordagemsimilar, Becker e Lemes243 analisaram

quatroacórdãosrelativosahomicídios,tentadoseconsumados,envolvendotravestis

239LAGO,Natália;ZAMBONI,Márcio.Políticas sexuaiseafetivasnaprisão:gêneroe sexualidadeemcontextosdeprivaçãodeliberdade.40encontroanualdaANPOCS,SPG13:Estudosemantropologiadodireito,sociologiadapuniçãoeencarceramento.Caxambu(MG),2016,p.3.240Idem.241Ibid.,p.5.242 ZAHRA, VivianManfrimMuhamed;BECKER, Simone. As representaçoes das(os) transexuais nasaldeiasarquivosdoTJRS:oPoderdanomeaçao,eisagrandequestao.Pensata:RevistadosAlunosdoProgramadePos-GraduaçaoemCienciasSociaisdaUNIFESP.V.4,N.1.p.69-92dez.2014.243BECKER,Simone;LEMES,Hisadora.Vidasvivasinviáveis.EtnografiasobreoshomicıdiosdetravestisnosTribunaisdeJustiçadoMatoGrossodoSul.RevistaÁrtemis,Vol.XVIIIno1;jul-dez,2014.pp.184-198.

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na cidade deDourados (MS) e apontaramque, apesar de as concepções de gênero

adotadas pelos operadores do direito serem pautadas em aspectos negativos e

depreciativos da experiência social da travestilidade, todos os autores dos crimes

forampresos.Serra244,aoanalisar100acórdãoscriminaisdoTribunaldeJustiçade

São Paulo, coletados com a palavra-chave “travesti”, buscou investigar em quais

contextosatravestilidadeeraacionadapelosdesembargadores.Umadasconclusões

do autor vai no sentido da reafirmação das travestis como pessoas desviantes e

criminosas,naquiloqueforadenominadocomo“profeciaautorealizada”.

Klein245 investigou a relação entre a experiência de travestis e as noções de

marginalidadeecrime.Oautorapontaaintrínsecarelaçãoentreojornalismopolicial,

a produção de narrativas criminalizantes e a relação seletiva como sistemapenal.

Barbosa246, por sua vez, a partir de entrevistas com travestis, jovens e adultas, em

privaçãodeliberdadenacidadedeRecife,apontacomoainterferênciadapolíciasefaz

presente nessas trajetórias. Assim, algumas trajetórias são construídas “a partirde

elementos discursivos que as caracterizam socialmente como sujeitas criminosas,

fazendo com que o crime pareça ser inerente”247. Ainda, o autor ponta que a

sexualidade e a maneira de lidar com o corpo são aspectos centrais para essa

construção.

Ferreira248investigouasexperiênciasdemarginalizaçãodetravestiseoduplo

“crime/castigo” para pensar como seus marcadores operam nos processos de

incriminação,criminalizaçãoeseleção.Oautorconcluique“nocasodastravestis,ter

uma vida precária e uma vida passível de criminalização se relaciona com os

244SERRA,VictorSiqueira. “Pessoaafeitaaocrime”: criminalizaçãode travestiseodiscurso judicialcriminal paulista. Dissertação (Mestrado em Direito), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais daUniversidadeEstadualPaulista“JúlioMesquitaFilho”.Franca,2018.245 KLEIN,Caio Cesar. “A travesti chegou e te convida praroubar”: representações sociaise sujeiçãocriminaldetravestisnamídiapolicial.Dissertação(MestradoemCiênciasCriminais)-Pós-GraduaçãoemCiênciasCriminaisdaFaculdadedeDireitodaPontifíciaUniversidadeCatólicadoRioGrandedoSul,PortoAlegre,2016.RAC246BARBOSA,MariaJúliaLeonel.Ébabado,confusãoegritaria:ashistóriasdetravestisrecifensessobumolhardacriminologiacrítica.Dissertação(MestradoemDireito),UniversidadeFederaldeParaíba,JoãoPessoa,2016.247Ibid.,p.156.248FERREIRA,GuilhermeGomes.Donasderua,vidaslixadas:interseccionalidadesemarcadoressociaisnasexperiênciasdetravestiscomocrimeeocastigo.Tese(DoutoradoemServiçoSocial),PontifíciaUniversidadeCatólicadoRioGrandedoSul,PortoAlegre,2018.

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marcadores sociais experimentados por essa população” que, do ponto de vista da

análisecriminológica,“carregaemsitambémasujeiçãocriminal”249.

Zamboni250 por sua vez, apresentou de forma inédita alguns dados sobre o

encarceramento de travestis no estado de São Paulo, em que, no ano de 2013, “a

secretaria [do Estado] informou haver 431 travestis e 19 transexuais em suas

dependências”.Oautoralerta,contudo,queessesdadossãopoucoconfiáveis,masque

podem dar “parâmetros da dimensão do fenômeno de criminalização e

encarceramentodetravestis”.

3.2.1. Osdadosoficiososdoencarceramentodetravestis:apenitenciáriaProfessorJason

SoaresAlbergaria

Aolongodosúltimostrêsanos,tenhomeaproximadodarealidadeprisionalno

intuitodeacessarmaiselementossobreacriminalizaçãodetravestis,considerandoo

papel importante que o cárcere exerce nessa dinâmica. O cárcere, assim, foi se

constituindoenquantomeupontodepartidaemeupontodechegada,permeandoem

maioroumenorgraumuitastrajetóriasdetravestiscomquemconviviaolongodesse

tempo.Maisespecificamente,essecontatosefezcomaaladaPenitenciariaProfessor

JasonSoaresAlbergaria (PPJSA), localondeencontram-sepresas travestis,bichas e

seusmaridos.

Aminha primeira incursão nesse espaço se deu a partir de umapesquisa251

realizada pelo Nuh, feita em parceria com o Centro de Apoio Operacional às

PromotoriasdeJustiçadeDefesadosDireitosHumanosdoMinistérioPúblicodeMinas

Gerais (CAO-DH), relativaaos “SistemasdeSegurançaPúbicae aviolência contraa

populaçãoLGBT”.Pararealizaçãodapesquisa,foraminstituídasduasfrentesdeação

distintas,o“Observatóriodeviolênciasdegênero:análisedehomicídiosenvolvendo

travestis e transexuais emMG” e a frente sobre o “Encarceramento de travestis e

homossexuaisemMG:interfaceentreosistemadejustiçaeosdispositivosdegênero”.

249Ibid.,p.196.250ZAMBONI,Márcio.Travestisetransexuaisprivadasdeliberdade:a(des)construçãodeumsujeitodedireitos.REA,n.2,Jun.2016.251EssapesquisaéfrutodoConvênionº42de2013firmadoentreasreferidasinstituições.

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Emrelaçãoaessaúltimafrentedeatuação,tentamoslevantarosprocessosdas

travestispresasnaalaparacompreendermosumpoucomelhorqualeraarealidade

do seu encarceramento. Contudo, essa tarefa se mostrou mais complexa do que

imaginávamos.Oprimeiropassoparaacessarmososdadosfoirequereràdireçãoda

PPJSA,pormeiodoCAO-DH,alistagemdenomedetodasaspessoaspresasnopavilhão

4. Com essa lista emmãos fomos a campo para podermos diferenciar quem ali se

reivindicavaenquanto travesti, homossexualoumarido. Issoporqueatéopresente

momentonãoháqualquermeiodecontroleeidentificaçãodastravestispresasnaala,

sendo que acesso a esses dados é somente possível mediante uma incursão

propriamenteditanaqueleespaço.

Aestratégiaqueutilizamospara conseguiressesdados foi adeelaborarum

questionárioparaseraplicadocomtodaapopulaçãodopavilhão4,que,naqueleano,

abrangiaumamédiade40pessoas.Noquestionário,elegemosapergunta“qualéoseu

nomesocial?”comobalizaparaidentificarmosastravestisepessoastrans.Apesarde

apesquisa comessesdadosnão ter sedesenvolvido, aquele contatomarcouomeu

primeiromomentodeaproximaçãocomarealidadedaala.Naquelemomentotambém

comecei a construir uma tabela com as informações processuais daquelas pessoas,

sobretudoastravestis.

Noanoseguinte,apósessaprimeiraincursão,comeceiatrabalharcomoapoio

jurídiconaONGTransvest,voltadaparaoacompanhamentoeensinodetravestise

transexuaisemBeloHorizonte.NoâmbitodasatividadesdaONG,aminhaprincipal

atribuição foi se consolidando em torno da assessoria jurídica das travestis. Essa

assessoria me permitiu também o acesso aos dados de algumas travestis que se

encontravampresas e, assim, identificar os processos pelos quais elas respondiam.

Esse contato me permitiu, igualmente estreitar os laços com as travestis que, não

poucasvezes,meconsideravamumainterlocutoraimportante.

Maisrecentemente,nomêsdemarçode2019,volteiafrequentaraAla–dessa

vez com uma frequência semanal e em um contexto completamente diferente do

anterior. Neste momento, as travestis encontravam-se em outro pavilhão e o

contingente de pessoas presas tinha aumentado vertiginosamente. De 40 pessoas

presasnaAlanos idosde2016,hojeessenúmerochegaa280, comumamédiade

apenas20a30 travestispresas.Esse contato sedeuemvirtudedoprojetodeque

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participeicomalgumasoutrastravestisparaofereceroficinasdeartesanatoparaas

travestispresas.Alémdasoficinas,muitastravestismeprocuravamcomdúvidassobre

asituaçãoprocessual,aoqueeutentavaresponderomaisrápidopossível.

Issoposto,aolongodessesanosdecontatosmaisoumenoscontínuoscomas

travestispresas,pudelevantaralgunsdadossobreasituaçãoprocessualdecadauma.

Conseguilevantarinformaçõessobreidade,tipopenalaplicado,médiadeprocessos

porpessoaecidadedeorigemde39travestis.Assim,paratentarinvestigarumpouco

melhorarealidadedoencarceramentoedoscontextosdecriminalizaçãodastravestis,

vourestituir252algunsdosresultadosalcançados.

Todas as 39 travestis eu conheci dentro da prisão, ou seja, apesar de

representaremsomenteumapartedesseafunilamentoseletivo,ainvestigaçãodeseus

contextos pode apresentar pistas e levantar dúvidas sobre os procedimentos de

criminalizaçãodessasexperiências.

Oprimeiropontoquegostariadedestacaréemrelaçãoàmédiadeidade.Do

totalde39travestis,20,5%têmentre18-24anos;23,1%têmentre25-29anos;20,5%

têmentre30e34anose;35,9%,entre35e45anos.

Sobreasituaçãoprocessual,25,6%dastravestisnão

tinham sentença ainda e respondiampelos processos em

sededeprisãoprovisória.Das29travestisjáemcursona

execuçãopenal,amédiadeprocessoserade2,5porpessoa.

Ou seja, é notório que há uma certa trajetória dentro do

sistema prisional por parte das travestis, que acabam

reincidindodeformasignificativa.

Vistodeoutraforma,41,4%dastravestisrespondemporapenasumprocesso,

sendoque27,5%respondempordoisatrêsprocessose31%respondemporquatro

ou mais processos. Isso quer dizer que mais da metade (58,6%) das travestis

respondempordoisoumaisprocessos.Alémdisso,emnenhumdosprocessosonome

socialfoirespeitadoe,emmédia,apenaaplicadagiraemtornodeseisanos.

Emrelaçãoaolocaldenascimento,44%nasceramemBeloHorizonteeregião

metropolitana e 56% no interior do estado. Talvez a predominância de travestis

252ArestituiçãodessesdadospodeservistanoinfográficodecontextodisponívelnoApêndiceAdestadissertação.

Figura4-Infográficodemédiadeprocessosportravestis.

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oriundasdessaregiãosedêemvirtudedoacordofirmadoentreoMinistérioPúblicoe

oestadodeMinasGeraisemumaAçãoCivilPública,homologada judicialmenteem

08.10.19, que estabeleceu que a PPJSA receberia toda a população LGBT da região

metropolitana.

Noquetocaaotipopenalmaisaplicado,osdadosmeparecemmaiscuriosos.

49,3%dosprocessoseramrelativosaocrimederoubo;17,3%,aocrimede furtoe;

14,7%, ao crime de tráfico. Os demais crimes, como sedução, falsa identidade,

resistênciaehomicídiosomados respondema18,7%do total.Aoquemeparece, a

incidência significativa do crime de roubo se relaciona diretamente com a

prostituição253eopreconceito.

Oscasosemqueastravestisalegamarealizaçãodetrabalhossexuaise,mesmo

assim,sãoprocessadaspor rouboexigemdesvelarmosdinâmicassociais e arranjos

feitosnosterritóriosdeprostituição,“ascondiçõesparticularesdevulnerabilidadede

cada contexto: como o

policiamento é organizado e

executado,comoasverdades

sãoconstruídasaolongodas

investigaçõesedosprocessos

jurídicos, quem são as

pessoas envolvidas e quais

legitimidades são dadas a

cada uma dessas pessoas e

suasnarrativas”254.

Aapresentaçãodesses

dados oficiosos do encarceramento de travestis, longe de pretenderem lançar

conclusões generalistas, visa apontar para a necessidade de refletirmos mais

criticamente sobreos contornosespecíficoseas formasdeapariçãoeproduçãoda

criminalizaçãodetravestis.Porsuavez,apassagememrevistadealgunsepisódiosda

nossahistóriarecentenoquetocaàrelaçãoentreacriminalizaçãoeatravestilidade

253AbordareiesseassuntodeformamaisextensanoCapítulo3.254SERRA,op.cit.,p.86.

Figura5-Gráficodetipopenalmaisaplicado.

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visammostrarqueasnormasdegênerofuncionamsustentandoalei.Ouseja,nofinal

dascontas,alei,ouotipopenalaplicado,poucoimporta.

Dessa forma, a criminalização de travestis não tem nada de novo, mas sim,

demandamdenóscompreendermosomovimentodecriminalizaçãoediferenciação

dasilegalidadesexistentesnosdiasdehoje.Compreendermoscomoacriminalização

seconstituicomoefeitodaarticulaçãodeumasériemultifacetadademecanismose

atoresdeextensãoecarátervariados.Aoquemeparece,paratal,restamapearmosos

mecanismos específicos e singulares que são acionados para produzirmos essa

criminalização; desvelarmos como as infrações são distinguidas, distribuídas e

utilizadasdeformasespecificaseasuarelaçãocomasnormasdegênero.

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CAPÍTULO03:Trêsatosdacriminalizaçãodetravestis“Falamquenãoexistejustiçaequeajustiçanãofunciona,mas funciona sim. Se você é travesti epreta a justiça funciona muito bem.” (conversacomAnykyLima,cadernodecampo,2018)

Omodopeloqualacriminalizaçãodetravestissematerializaé,semdúvidas,

complexo, sinuosoe, sobretudo, relacional.Possodizerquenãoexiste somenteum

modo,massimqueessacriminalizaçãoéproduzidaematerializadaapartirdeatos,

conexões,teciturasquecompõemostrânsitosentreolegaleoilegal.

Comointuitodedemonstraradinâmicadacriminalização,suascontrovérsias

econexões,estecapítuloépermeadoporcosturas,trajetoseitineráriosquepercorri

aolongodomeutrabalhodecampo.Écomposto,também,porpersonagens,desejos,

angústias e sensações queme acompanharamnesse percurso.Nessas cenas, temos

umacosturatecidanocruzamentodepercursossociaisenormasdegênero.Organizei

essestrajetosapartirdaescolhadecritériosquetornassemavisualizaçãodidática,

dadoocaráterheterogêneoemúltiplodasinformaçõesqueobtive.Dessaforma,omeu

objetivoaquiédemonstrarumaconcatenaçãodeatosemapearumcertotrajetode

materializaçãonacriminalizaçãodetravestis.Emcadapontodevirada–precariedade,

prostituição,violência,migração,patologização–ilustrarosarranjosqueconvergem

históriasdiversaseencenama criminalizaçãode travestis.Oque seráapresentado

serãolinhasgerais,encontradasemcampo,deumprocessodetalhadoanaliticamente

nocapítuloseguinte.

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Dividiessepercursoemtrêsmomentos.Noprimeirofalosobreoqueseriaa

criminalização das experiências de travestis antes do cárcere; no segundo, sobre a

criminalizaçãoqueocorredentrodo cárceree,por fim, comoessa criminalizaçãoé

reproduzidaereiteradacomareincidência.

1. Primeiroato:avidatravesti

Certavez,ouviAnykydizerquetravestimilitadesdeoprimeiromomentoque

pisanarua.OuvideIsis,também,quetravestiésinônimodeluta.Enãoesqueçojamais

deouvirRôgritandonacapa255desuacela:“travestiépoder!”.Sertravestiéumpouco

disso tudo. O que fui percebendo, também, é que ser travesti é tensionar

rotineiramente a força da fixação histórica das posições de gênero no corpo256. É

tensionarmesmo semquerer; tensionarmesmo sem saber. E nessemovimento do

avesso,sertravestiéestarsuscetívelacontrole,puniçãoecriminalização.

Falar de criminalização de travestis implica pensarmos no controle exercido

sobreumavida,ousobreumcertotipodevida.Implicapensarmosacriminalizaçãode

experiênciasquetensionamasfronteirasentreosgênerosequecomprovamque,mais

doquealgoquesetem,gêneroéalgoquesefaz.

Com o tempo, fui me convencendo cada vez mais que, para pensarmos em

criminalização de travestis, é necessário falar de família, saúde, escola. Implica

pensarmosempossíveispassagenstraumáticaspelasinstituiçõesenosatermosmais

criticamente sobre os efeitos de raça, classe e gênero nas nossas vivências diárias.

Implicanosdepararmoscomaprecariedade,prostituiçãoevigilânciapolicial.Implica

pensarmosumnãolugar.Implicapensarmosumprojetodesociedadequecriminaliza

eque,sobaégidedasnormasdegênero,utilizadoaparatopunitivoparafazervaler

uma certa coerência de corpos. Implica, enfim, nos havermos com a nossa

responsabilidadenissotudo.

Bianãofalavamuito.Negra,moradoradeperiferia,temumairmãgêmeaque

tambémé travesti.Dizia, rindoda coincidência,que foraalgumacoisana águaque

beberamquandocriançaqueasdeixaramassim.Abandonadapelamãe,viviacoma

255Acapapodeserdescritacomoa“porta”dacela,adivisóriaentreacelaeocorredor.256PRADO,MarcoAurélioMáximo.Ambulare.BeloHorizonte:PPGCOMUFMG,2018.

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avó paterna e o pai, portador de sofrimento mental que demandava cuidados

incessantes.

Nosidosdos16para17anos,asirmãscomeçaramacometerpequenosfurtos,

“precisávamoscomer,Júlia,elánacasadaminhaavónãodavapraconseguirmuita

coisa não”. A trajetóriadeBia parecia umpouco com a trajetória demuitos jovens

negros no país que, quandonãomortos pelapolícia, são aprisionados.O tempona

escolafoicurto.Sófoiobrigadaafrequentarquandoforaacauteladacomsuairmãno

Sistema Socioeducativo do estado.Naquele período, o excessode regras e o tempo

medidocontrastavamdrasticamentecomumavidainteirafeitanarua.Chegueiaouvir

umpoucoasuahistóriaquando,aindanagraduação,meaproximeidaexperiênciade

adolescentes travestis em cumprimento de medida socioeducativa. Lembro que,

naquelaépoca,asduasestavamlá.

Muitojovenseespertas,encontravamsoluçõesparaquasetudo:“émuitodifícil

chegaremqualquerlugareaspessoasrespeitarem,masagentesevira”.Onossoinfeliz

reencontrosedeuanosdepoisquando,emumadasvisitasnaala,olheifundonosseus

olhoseexclameisempensar“nãoacreditoquevocêtáaqui!”.Biafitouomeurostoe

esboçou um sorriso daqueles que damos quando, apesar da familiaridade, não

conseguimoslembrardealguém.Volteiparaacasanessediacertadequeexisteuma

trajetóriadecriminalizaçãonavidadastravestis.Essatrajetória,nocasodeBia,éa

provavivadequetemoserradomuito.

Pudeconversar comBiamaisduasou trêsvezes.Nonossoúltimoencontro,

pergunteiseachavaqueofatodetersidopresaserelacionavacomasuaexperiência

detravestieela,prontamente,disse:“não,eufuipresaporqueminhafamílianãovale

opratoquecome”.Sobreafamília,mecontouqueaavónãoaceitavaqueasnetasse

“vestissemdemulher”ediziasempreemtonsdeameaça“naminhacasavocêstêm

queficardireito,casocontrário,aportaéserventiadacasa”.Ficardireitosignificava

nãopoderdarpinta257,nãopintarasunhas,nempassarbatom; tampoucoamarrar

panos na cabeça para fingirem longas madeixas. Não somente tinham que ficar

“direito”comotambémviviamcomotemordodiaquefariam18anos,pois,segundo

257Expressãoêmicaquesignificadeixarapareceraspectosdefeminilidade.

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conta,eraadatalimitequeaavóestabeleceuparasaírememcasa.Pergunteioporquê

dos18anoseeladisse“porquenóssomosassim,Júlia”.

ParaBia,elahaviasidopresaporqueaavóaexpulsoudecasa.ParaBia,também,

a avó a expulsou de casa porque “se vestia” demulher. Penseimuito sobre o que

significavao“somosassim”deBiaeatéhojenãoseiaocerto.Prefiropensarquese

aproximeumpoucodaquiloqueAnyky,RôeÍsisfalavam.FatoéqueBiafoipresaum

dia depois de fazer 18 anos. A sentença? 12 anos e 15 dias – a serem cumpridos,

inicialmente,noregimefechado.

Acriminalizaçãodavidatravestipodesefazervalerdemúltiplasarticulações.

Me interessa aqui, apontar, a criminalização como efeito da 1) precariedade; da 2)

prostituiçãoe;da3)migração.

1.1. Acriminalizaçãopelaprecariedade

Tomei coragem e abri a carta lentamente. Tomar coragem é coisa de gente

grande,pensei.Opapelestavadelicadamenteflorido,haviarosasdesenhadasemcada

cantoemeunomeestavano topoemvermelho– comoseumdesenho fosse.Li as

palavrasdeIsiscommuitaatenção,elacomeçoumeagradecendoportodaaajudae,

sobretudo,poracreditarnela.Pareinessahoraefiqueipensandosobrequantasvezes

na minha vida eu agradeci alguém por acreditar em mim – talvez nenhuma. Em

desesperos contínuos, ainda dentro de umúnico segundo incomeçável, as palavras

escreveram: “Sei que respondi as perguntas com clareza, tentei ser o mais objetiva

possível e em tudoqueeudisse fui sincera.Percebi tambéma friezadapromotora, e

estranheio fatodelanãome fazerpergunta, como se ela já estivesseconvicta emme

condenareassimfoifeito”258.

Conheci Isis aqui fora, lembro como se fosse ontem o dia em que ela

desapareceu.Amobilizaçãoparaencontrá-laeratamanhaqueatéeuouseisairnarua

aqueledia,procurandoalgumacoisaqueaindanãoentendiamuitobem.Naúltimavez

quehavíamosnosvisto,Isiscompartilhavacomigoalgumasfotosdeumensaioemque

258Todasasexpressõesreproduzidasemitálicoeaspasforamretiradasliteralmentededocumentos,cartaseautosdosprocessospenaisemqueaspersonagensfiguram.

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elasevestiudenoiva, “olhacomoeuestoubonitanessas fotos”,dizia.Ovestidode

noivaguardavanoinstantedoflashseudestinosemcomeço.

Certavez,suamãe,Dulce,meprocuroucomumasacolacheiadepapéis.Coma

audáciadeummetroemeio,cabeloscurtosepassoslentos;pareciadelongecarregar

o peso do mundo naquelas sacolas. Como ouvi certa vez, “mãe ensacolada é mãe

engolidaemocionalmente”.Ouviatentaoseudepoimentosobreo filhoe,dasacola,

tiravavárioscertificadosecomprovantesdetodaordem,“elesemprefoiummenino

muitobom,omelhordaclasse.ChegouatéapassaremumvestibularparaPedagogia”,

disse.Paraela,eraaindaomeninoJoãoVitore,mastigandosemalegriaacalmado

ressentimento,faziaquestãodechamá-lopelonomecomposto.J-o-ã-oV-i-t-o-r!Ouvia

comatençãoDonaDulceque,entreumafalaeoutra,acendiaumcigarroefumavacomo

senãofossetãopequena.

NodiaemqueIsissumiu,DonaDulcecontaqueobrigouofilhodomeioalevá-

laatéela.Commuitocusto,foiparadebaixodapontenaregiãocentraldacidade.Isis,

quandoviuamãenaquele lugar, logo começoua chorar“mãe, essenãoé lugarpra

senhora.Porquevocêveioatéaqui?”.DonaDulceprontamentepegouafilhapelamão

eolevouatéemcasa,colocou-odebaixodaáguafriaeperguntavaincessantemente:

“vocêtemcasa,comidaquente,porquefazessascoisascomigo?”.Elacontaquedepois

dessediaseesforçouparacompreendermelhoressacoisa“delesevestirdemulher”.

NaquelediaeuchegueimaiscedodoqueousualnoFórum,echegarmaiscedo

me dava uma segurança inquieta. Talvez pudesse observar as pessoas que

frequentavam aquele lugar, tentar entender como se comportam e, assim, talvez

pudesse me sair melhor. Parada no corredor olhando atentamente ao redor fui

questionada:“vocêéadvogada?”.Demoreiumpoucopararesponderedeprontoouvi

“se não é não pode ficar em pé nesse corredor”. Corredor. Onde corre a dor. Não

entendiamuitobemapressa,osaltoeofatodenãopoderficarparadanocorredore,

morna,mesenteinascadeiraslaranjasqueestavamaliperto.Oalaranjadoerainsosso,

cordestoante,emnomedenadaeracormaldita.

Alguns instantesdepois,umacolegameencontrouaprofundadanascadeiras

laranjas.Ela começouamecontaraestratégiadaaudiência e,naqueleuniversode

palavrasdesconhecidas,ouviaatentamentecadafrase.Entreumaestratégiaeoutra,

conteiaelaqueIsiseraamelhoralunadocursoquefrequentava,quesemprefoimuito

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bemarticuladaeque tinhaumahabilidadedepersuasão impressionante.Confessei

também,umpoucotímida,quechegueiaprocurá-lanasruasquandodeseusumiço.

Fiquei surpresa com o pedido e minha ansiedade subiu rapidamente. “Eu,

testemunha?Masoqueeuvoufalar?”,disseemespanto.Teriaquedeporpara Isis.

Confessoquetreineiumasquatrovezesatéahoraqueouvimeunomesendochamado

nocorredorlotado.Entreinasala,friaereceosa.Naminhafrenteumapequenacâmera,

logoatrásestavaIsis,rodeadapordoispoliciaismilitaresarmados,quemeolhavam

com um olhar de dúvida e apreensão. Isis vestia aquelas roupas vermelhas que

parecemseesforçarpara tiraravidadaspessoasqueasusam,diriaquevestuário

melhornãoháparaacerimôniadedegradação259queseseguiriadali.Ajuíza,queouvia

omeurelatoatenta,perguntou“vocêtemconhecimentodoenvolvimentodeJoãoVitor

comtráficodedrogas?”.Meseguravaparanãoolharparatrás,esperoqueelasesinta

segura–pensava.ComtantosdiscursossobreIsis,seucuidadoestavaemnãosemexer.

Todaaquelacenapareciaserguiadaporumacertalógicafabril,comoseaspessoasali

estivessem repetindoomesmoprocedimento diversas vezes seguidas – semmuita

reflexão,aoqueparecia.

Fazia seis anos que Isis entrava e saía da prisão. A primeira vez que teve

problemacomaJustiça,nosidosde2010,Isispôderesponderemliberdadepelofato

deestarportandoumadeterminadaquantidadededroga.Daquelaveztevesorte.O

pior mesmo veio em 2013, quando sentiu na pele que a justiça criminal, como

preconizavaamúsica260,erarealmenteimplacável.Eraomêsdeabril,Isisestavacom

suaamigaRôfazendopontonobairroSantaAmélia–regiãoconhecidapelaquantidade

significativademotéis–quandoforamprocuradasporMarcosparafazeremprograma.

Marcos,contudo,haviasedirigidoaolocalcomointuitodeconsumirdrogase,junto

comoprograma,levouasduasparaummotelondepassaramamadrugada.Aconfusão

estavaanunciada.Umdesentendimentoquantoaovalordoprograma,compedrasde

259 O trabalho empreitado em um julgamento penal pode ser considerado como uma “das maisexpressivascerimôniasdegradantes”,emqueseprocedeamudançada“chave”deinteligibilidadedeumapessoanormalparacriminosa.Cf.THISEAN,GracielaFernandes.Oprocessopenaleacerimôniadegradante. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais), Faculdade de Direito da PontifíciaUniversidadeCatólicadoRioGrandedoSul,PortoAlegre,2006,p.113.Talexpressão,porsuavez,foipor elaborada pelo sociológico Harold Garfinkel, em 1956. Cf. GARFINKEL, Harold. Conditions ofsuccessfuldegradationceremonies.LXI,Chicago:TheAmericanjournalofSociology,1956.260 Referência à música “O homem na estrada” do grupo de rap Racionais MCs. Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=02-h9t0VpVI.Acessoemjan/2019.

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crackconsumidasenãopagasforamsuficientesparaMarcosacionaraPolíciaealegar

quehaviasidoextorquido.Comosenãobastasse,osecadordecabeloealgunscremes

dadospelamãedeMarcoscomointuitodesanaradívidadofilhoforaminterpretados

como a “res furtiva”, prova cabal da ameaça empreitada. Para Isis e Rô restava

“apresentar versão convincente, que justificasse a posse dos bens apreendidos”. Mal

sabiamqueversãoconvincentenãohá.Nosautos,asrelaçõesconcretasexistentesem

tornodoatoeraminalcançáveis.Eosdiscursospresentesexpressavamumaordenação

específicaeseletivaqueproduziaarealidade.

Alguns agravantes aqui e acolá, o concurso de pessoas comprovado pelo

“vínculopsicológico”entreasduasearepetiçãodanarrativavencedoraculminaram

nãosomentenacomprovaçãodaextorsãosofridaporMarcosesuamãe,comotambém

emnoveanose11mesesdeprisãoparaIsis.Aosolhosdajustiçaimplacável,prisão

para João Vitor. Isis ali nãomerecia nem o título de apelido. Anos depois, Isisme

confessouqueaquelaforaavezqueficoumaistempopresa;tudo“porcausadeum

programa que o cara contratou e nãome pagou. Aí deu confusão e eu fui presa e

condenada”.

AcondiçãoprecáriadeIsiséincontestável.Éverdadequeatodosnóstambém

oé,oquedifere,talvez,sejaomodocomoédistribuída261.AprecariedadedeIsistem

muitoavercom“vidasquesãopassíveisdelutoouquesãodignasapenasdeumluto

marginal e episódico”262.Nocasode Isis, a falta deproteçãoeapoio sempre foram

marcantesemsuatrajetória.

Daquelaveznãotinhaenvolvimentocomcliente.Depoisdeficarquatroanosna

tranca263,Isisteveseuregimeprogredidoepôdesairasruasnovamente.Aconteceque

asortenãoestavadoseulado,naverdade,meperguntosealgumavezjáesteve...Era

abril novamente. Mês maldito. Agora na Santos Drummond – outro local de

prostituição na cidade. Na delegacia, o policial narrou que “recebeu uma ‘denúncia

anônima’apontandooenvolvimentodeum‘travesti’navendadedrogas”.Aquantidade

dedrogaerabaixa,1,05gramasdecrack.Isissaiudaaudiênciadecustódiacomuma

261 BUTLER, Judith. Ethics and politics of non-violence. Abril, 2018. Disponível em:http://www.cccb.org/en/multimedia/videos/ethics-and-politics-of-non-violence/228942. Acesso emnov/19.262BUTLER,Judith.Vidaprecária:ospoderesdolutoedaviolência.BeloHorizonte:AutênticaEditora,2018,p.131.263Atrancaserefereaocumprimentodepenatotalmentenoregimefechado.

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tornozeleira eletrônica. Sua sentença estava dada. Um dia depois, repito, u-m dia

depois,nomesmolocal,umpolicialrecebeuumadenúnciaanônimadeque“umtravesti

comshortrosaetornozeleira”estariapraticando“tráficodedrogas”.EraIsis,quehavia

acabadodesairdoFórum.Comela,nenhumadroga.Masnoarbustoqueestavaaoseu

ladoquandodabatidapolicial,2,10gramasdecrack.Paraojuiz“ocontextodeprisão

guardamuitasemelhançacomadetrêsdiasatrás”, logo,restavaa Isisvoltarparaa

prisão.

A droga e Isis sempre tiveram uma relação conturbada. Certa vez, Isis me

confessouqueaconheceuaos17equenocomeçoosencontrossedavammaisanoite,

emboates, na sauna que frequentava e na prostituição.Não tardou e os encontros

começaramaaconteceremqualquerhoraelugar.Eracomosefosseumciclosemfim,

abebidaeadroga,diziaIsis,nuncamaisaabandonaram,lembrodedizer“seeuusar

drogaaíeubeboeseeubeber,euquerodroga.Bebermelhoraaondadadroga,corta

umpoucoaviagem,cadaumtemumaviagem”.

Oencontromaisimportantesedeuaos21anos,quandoIsisconheceuocrack.

Como crack, veioa rua. “Eunãoqueria levardrogapra casa,nãoqueria levaresse

problemapraminhamãeetambémnãoqueriaficarnasituaçãoderuanomeubairro

pranãoconstrangerminhamãe,sabe?”disse.FoiporissoqueIsisfoipracapital,elá

passouamaiorpartedotemponasruas,unsoitoanosemeio,conta.Entreumapausa

eoutranaconversa,Isiscompleta,“masassim,issosomaotempoderuaeotempoque

euficavanacadeia.Quandoeusaíadacadeiaeuficavanaminhacasa,maseupassava

poucos dias em casa e voltava pra rua. Eu achei que eu ia voltar pra casa

definitivamente quando encontraram aquela droga no arbusto e me acusaram de

tráfico.Imagina,eu,traficante?”.

Eununcahaviarecebidocartasantes.Aquelafoiaprimeira.Lembroquesegurei

comasduasmãosemireiomeuolharnelaporumtempo–aindasemcoragemde

abrir.Oenvelopeerabranco,simples,masestavaenfeitadocomarabescosfeitosde

canetacolorida.Noaltoestavameunome,enfeitadodevermelho,comumaletratão

bonita que parecia ter saído de um convite de casamento. Por ummomento fiquei

pensandonotrânsitodaquelacartaatéchegarnasminhasmãos.Comoépossívelalgo

tãobonitosairdosmurosdeumaprisão?Imagineiocontrastedabelezadascoresdo

arabescocomosmurosfeiosesujosdeumlugarquesequestraasalmasdaspessoas–

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não de todas, pelo visto. Em desesperos últimos, as palavras selaram: “Eu tinha

ganhadoalbergueeestavatentandoficarsóemcasa.Eujuro.Nãoseicomoexatamente,

maseunãoconsegui.Naépocaqueeufuipresatinhaummêsqueeuestavanaruade

novo.Eradezembroeeusaídecasa, trabalhei,ganheidinheiroeaí,poracaso,passei

numaruaquetinhaumasamigasusandodrogaeporalifiquei.Minhamãeacaboume

encontrandoemelevoupracasa.Foiquandoeutiveoverdose.Nãofiqueiquasenadaem

casaejáfuipraruadenovo.Nãoconseguiavoltarpracasasabe?Achoqueminharecaída

agora foi muito forte. Eu tive tanta vontade de sair dessa vida de rua que acabei

piorando...Eutômepreparandopravoltar,achoquehojeemdiaminhamãemeaceita

melhor.Maseupreciseibatalharcomaminhamãe,viu?Comodizemmesmo,travestié

símbolodeluta,né?”.

Aquelediadevoterficadouns40minutosnotelefoneconversandocomDona

Dulce.Estimoquepassoude30minutos,issoécerto.Lembroqueolheinorelógioeo

horáriodealmoçojáestavaquasenofim.Eeuali,entretida.DonaDulce,comavoz

roucadecigarro,compartilhouasangústiasedúvidasdeumamãequenãoentendeo

queaconteceucomofilho,JoãoVitor,paraqueeleseenvolvessecomdrogaseomundo

docrime, “vocêdámoledemais.O seupaimorreudoentede tanto respiraraquela

fumaça da SLU264. Seu pai nunca matou, nunca fumou, nunca bebeu. Onde você

arrumouissonavida?”.

Na cabeça de Dona Dulce, homossexuais como o filho “só procuram coisa

errada”,afinal,foidepoisdevirarhomossexualqueascoisasficarampiores.Elaconta

que,naidadedeJoãoVitorcomeçaratrabalhar,pediuaomaridoqueconversassecom

ochefedaSLUparaconseguirumempregoparaofilho.Comsucesso,avagaestava

garantida,masascoisasnãosaíramcomoimaginado.“Aíoqueelefez?Ficouamigodo

filho de um colega de trabalho domeumarido. Foi onde tudo começou. JoãoVitor

dormianacasadelequasetodososdias.Ocolegadetrabalhodomeumaridoeragente

boa,tinhaumaesposalegaltambém.Mastinhaumfilhoqueerahomossexual”.

Depoisdissonãocansavadedizeraele“essacoisadeserhomossexualédifícil,

écomplicadodemais.Vocêentrouemummundoquevocêpensaquesãoflores,mas

nãoé...Seumcasalnormaljáencontraumasériededificuldades,imaginavocê?”.Sem

264SuperintendênciadeLimpezaUrbana.

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titubear, completou “desde que o mundo é mundo o normal é homem e mulher.

Imaginasevocêtáemumempregoedescobrequevocêéhomossexual?Acabou,fica

tudomaisdifícil”.

Nessahora,resignada,lembreiumpoucodaminhamãeecomoelasempreme

falavacoisasparecidas.Sejaporcuidadoexcessivooupormedodemãe,fatoéque“ser

homossexual”édifícileassançõessociaispodemvircomtudo.Antesmesmodepoder

concluirmeuraciocínio,DonaDulcecompletou“epretotemoportunidade?Pretotem

oportunidadedeser lixeiro igualmeuesposo foi”.Envergonhada,dissequeela tem

razãoe,queera solidáriaa tudoaquilo,mesmo tendouma trajetóriadeprivilégios

enquantobrancadeclassemédia.

AperguntadeDonaDulce talvezmostre suabusca incessantepela causado

“desvio”dafilha,contudo,respostapraessaperguntanãohá.Aresposta,talvez,para

ela, se relacione com a homossexualidade e, por isso, se relaciona com o gênero

também.Aoquemeparece,naverdade,arespostaparaDonaDulcetemavercomessa

certacriminalizaçãocomoefeitoecausadaprecariedade.Dizmaisdedeterminadas

vidasque,detãoalijadas,padecemsemlugar.

1.2. Acriminalizaçãopelaprostituição

Nadelegacia,umdosrapazescontaque,juntocomseusamigos,“resolveramdar

uma“zoada”comasgarotasdeprogramaqueestavamnaAv.AfonsoPena”.Conta,ainda,

semsaberao certoo tamanhodaspalavrasque “pensaram inicialmenteque seriam

mulheres”,masque“aoperceberqueseriamhomens”orientouosamigos“aconferiros

bolsos, pois travestis costumam furtarpertences”.Eraquinta-feiraeoCruzeiro tinha

acabadodeganharumapartidaimportanteparaocampeonatomineiro.

O laudomédico preconizava: o quadro não era estável. Fraturas graves nos

ossos da face, traumatismo craniano e um coágulo no cérebro. De novo era o

diagnósticoquetornavaseucorpopúblico.Quandoconverseicomela,medissequea

pedradaquerecebeunosolhosfezcomqueumpoucodearentrassenoseucérebro.

Nuncatinhavistonadaparecidocomaquilo,ingenuidademinhatalvez.Aindaquenão

tivessemorridodefato,talveztivessemorridonametadedaquelafrase.

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Jadeestavanacidadefaziapoucomaisdequatromeses.E,naquelaquinta-feira,

andandoporaquelacidadetodafeitacontraela,saiudohotelondeestavamorando

para trabalharna rua.Quinta-feiraédiadeagonia,deve serporquedia ímpar tem

dessascoisas:semprefaltamaisum.Digotrabalharnaruaporque,naverdade,étênue

alinhaquedefineomorareotrabalhardeJade.Elaalugavaumquartoabafadoemum

sobeedesce265localizadonaregiãocentraldacidade,R$180porsemana.Atendiauma

médiade15clientespordiae,semprequepodia,faziapistanaruaparacomplementar

arenda.

Deviaserumasduashorasdamanhã.Noaltodaavenida,avistouumatravesti

correndo em sua direção, fugindo de três rapazes. Sem pensar duas vezes, Jade

começouacorrerevirouaprimeiraruaqueviu.Logoali,foiperseguidapordoisdos

rapazes,quegritavam“chutaela,chutaessafilhadaputa”.Caiunochãoesentiuoduro

desocosechutes.

Eles sentiram olhares anônimos e pararam, precisaram perceber que não

estavamsozinhosnarua.Maspararnãodiminuíaador.Ajustificativaveiologodepois,

“esse travesti veio aqui falou que ia pegar no pau da gente, rouboumeu celular e

estávamospegandodevolta”.Masviolênciajustificadaéironia,étruculênciamedida.

Ironiaécoisaque,querendofazer,fingefazerdeoutrojeito.

Jadeselevantaemfrangalhose,emdireçãoàavenida,encontraumaamiga.O

rapaz,aoperceberqueasjustificativasnãoiriammobilizaraspessoasafazeremalgo

emsuadefesa,vaiatéacaçambaqueestavalogoaoladoepegaaprimeirapedraque

vêpelafrente.Comapedranamão,miraemJadeeacertaoseurosto,emumaclara

tentativa de feri-la fatalmente – demonstrando a banalidade do ato e a completa

ausênciade“pudor”emempreitartamanhaviolência.Não,abanalidadedavidaouda

nãovida.Sinaisdeumaexistênciamiúdaeemudecida.

Jade caidesacordadano chãocoma forçadapancadae suaamiga começaa

pedirajuda“Matouela,matou!Polícia!”.Aspessoasqueestavamno localcomeçam

igualmente a gritar pedindosocorro.O rapaz, nessa hora, coloca amãono bolso e

percebequeseucelularnuncasaiudali.

265Referênciaaoshotéisdeprostituiçãocomintensofluxodepessoassubindoedescendoasescadas.

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UmaviaturadaPolíciaMilitarpassanolocaleparaosdoisrapazesresponsáveis

pelaagressãodeJade.Umdospoliciaispassapeloseucorpo.“Táláocorpoestendido

nochão!”266.Écadáver?“Vidanua”267?Masmorreu,será?Já!Jadejámorreu877vezes.

Aspessoaspresentesnahoragritam“eleagrediuela!Bateunela”.Opolicialresponde,

“vouveroquefaço”.

Fuipegadesurpresacomaimensidãodosseusolhos,brilhantesevivazes.O

seurostojáestavadesinchando.Entreoshematomasnaregiãodosolhoseacicatriz

vermelhanatesta,ocontornodorostocomeçavaatomarforma.Comadiminuiçãodo

inchaço osdoisolhos verdes começaram a contrastar com asmarcasde sangue ao

redor.Eracomoseasírisverdesficassemimersasemumaimensidãovermelha,que

guardavaumasutilezaúnicaaomesmotempoquegritavamviolência.Eraapalavra

mudaemumcorpoquegritava268.

Noprimeirodiaqueavi, Jade choravamuito.Lembrodeentrarno corredor

lotadodoHospitalemeperderentreosgemidosdedoreosangue.Deprontoimaginei

queaquelaeraasalaondeelaestava,naportatrêspoliciaismilitaresdevigia,comose

alguém,emumhospital,apresentassealgumperigo.NãoentendimuitobemoqueJade

dizia;entreosgritosdedor,percebiqueelaestavaalgemadanacama,premidapelos

pulsosepresanoseuprópriodestinosemcomeço.Oseurostoestavacompletamente

desfigurado, os olhos não existiammais e no lugar estava dois bolsões de sangue.

VisiteiJadeemsetedosdezdiasqueficouinternada.Emcadavisita,saíadelácadavez

menor.

As algemas, como esperado, causavam um grande desconforto em Jade.

Algumasvezeseladisse “osagentesestãometorturando” comum tomenfáticode

quem temquedizeroóbvio.Olhavapara Jadeenão conseguiaparardepensarna

pergunta: como se constrói uma travesti criminosa? Essa pergunta perplexa me

acompanhavaemtodasasvisitas.Ali,seconstruíacomasalgemas,ocorpotatuado,a

polícianaporta.Semesseselementos,oqueseriadacena?

266 Referência à música de João Bosco, “De frente pro crime”.https://www.youtube.com/watch?v=vov8kDn0KkY.Acessoemjan/2019.267AGAMBEN,Giorgio.HomoSacer:opodersoberanoeavidanua.BeloHorizonte:EditoraUFMG,2002.268BUTLER,Judith.Avidapsíquicadopoder:teoriasdasujeição.BeloHorizonte:AutênticaEditor,2017,p.223.

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Licomespantooboletimdeocorrência.Jadefoiassimrelatada“otravestiloiro

continuoucorrendoqueotravestiloirotropeçouecaiunochão”.Nadelegacia,umdos

rapazesalegaatitudesuspeita–“tropeçou,caídoaochãoetendoumpequenoferimento

nacabeça;queessetravestiestavausandosaltoaltoeaocorrercaiu”.

Tudo isso por um fatídico celular.Mas serámesmo?O PM responsável pelo

flagrantedisseque ficousabendoque Jade,oumelhordizendo,Afonso, “juntamente

comoutrotravestiteriamsubtraídooscelularesdasvítimas;queotravestiAfonsopor

suavezreclamouquefoiagredidofisicamentepelosdemaisenvolvidos;queoinvestigado

Afonsoseencontrainternado,emobservaçãomédica,sobescoltadaPM,porém,segundo

informaçõesdoboletimmédico,aslesõesforamsuperficiais”.

“Lesõessuperficiais”.Noinquérito,nempistasdelaudosmédicos.Achismopuro.

Aprendinaquelahoraquetravestireclama,nãosente.Nodespachoratificador,Jade

“teria sofrido uma queda, se ferindo, razão pela qual foi encaminhado pela PMMG a

atendimentomédico,ondepermaneceatéentão”.Comoémesmo?Dizemque“umavida

temqueserinteligívelcomoumavida,temdeseconformaracertasconcepçõesdoque

éavida,afimdesetornareconhecível”269.ParaJade,ali,apalavrareconhecimentoera

derimadifícil.

“Travestis costumam furtar pertences”. Sentença maldita. Para o delegado,

prisãoemflagrantedelito“peloscrimesprevistosnoart.155,§4,incisoIV”,quaissejam,

furtoqualificadopeloconcursodepessoas.Todosostrêsrapazesresponsáveissaíram

delásoltos,supostas“vítimas”dofurto.Jade,porsuavez,tevesuaprisãoratificada

pelodelegado.Jadenãotemlugarnamesa,éoresto,oabjeto.

Recebiumaligaçãoinesperada.Dooutroladodalinha,Paulo,ofegante,medizia

que dois policiais foram até o hotel onde Jade morava-trabalhava na busca pela

“travestimorena”quesupostamenteestavacomelanomomentodocrime.Ospoliciais

ameaçaramagerenteedonadohotelarealizarumaapreensãoemtodososquartos,

casonãoencontrassemonomedaoutratravesti.Estãomexendocomfogo,penseiem

silêncio.

Escrevodadelegacia.Entreincontáveisidasevindas,meacomodoresignadana

saladeespera.Aomeulado,duaspessoasconversam.Orapaz,quedeveteruns30

269BUTLER,op.cit.,2015,p.125.

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anos,relatacomindignaçãoquefoifurtadoe,comosenãobastasseo“disparate”,o

responsávelpelo furto teriase justificado, “omeu filhovaiparaapraiaeprecisava

comprarumprotetorsolar”.Asenhoraigualmentedesaprovaeorapazcompleta,“pelo

menostrouxeeledesacordado”.Justiceirosdeplantão.Incomodada,resolvoromper

com o obstáculo de papel “apenas permitida a entrada de pessoal autorizado” e

enfrentaroadesivo“17”270pregadonaporta.Suboasescadasemesentonascadeiras

localizadasemfrenteàsaladodelegado,afundadaeimersanotemponecessáriopara

encontraremoinquéritodesaparecidodeJade.Aqui,asparedessãotodasbrancas,o

chãoé cinzaeo caos reinanas salasapertadasdodelegadoedoescrivão.Ora sou

doutora e ora menina. Quando sou menina, os investigadores param e perguntam

incessantemente“estáprecisandodealgumacoisa?”.Quandosoudoutora,nãofaltam

justificativasparaademoraemencontraroquepreciso.

Tentandomostrarfamiliaridade,oescrivãodiz“Ah!Aquelecaso.Euconheciela.

Ébonita!Fiqueisabendoqueficoucegadeumolho”.Nessahora,doisinvestigadores

entramnasalacuriosos.Umseantecipa“Ah!ÉdaquelecaraqueapanhounaAfonso

Pena”,aoutradiz,“masquecaraéesse?”.Respirofundoeinterfiro“Naverdadeéuma

mulher,eseunomesocialé Jade”.Sempaciênciaa inspetoraretruca“cadahorame

falamumacoisa,éhomemoumulher?Ah!Éotravesti”.Ficoemsilêncio.Resignadae

semoinquéritoemmãos,vouemboraeavisoquevoltareidepois.

**

OcasodeLarissasempre foiumdosquemaismeassustavam.Ela ficousete

mesespresapreventivamenteemumapenitenciáriadacapital,supostamentecoma

imputaçãodocrimedeextorsão.Omotivo?Umclienteserecusouapagaroprograma.

O valor? R$300. Dentro do cárcere, Larissa conheceu seu atual marido, José. Nas

oportunidadesqueconversamos,eramnotóriosoempenhoeadedicaçãodelacomo

rapaz.Segundomerelatou,tudoissosedavaemvirtudedeumcertosensodegratidão,

postoqueforaelequeaprotegeudurantetodootempodecárcere.Masoamor,até

paraela,tinhalimites“seeleforpresodenovonãotemoqueeupossofazer,entendeu.

270Naépocadesterelato,estávamosemperíodoeleitoral.

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Játereifeitoaminhaparte.Porqueelemeajudoumuitoládentro,nãodeixouninguém

encostarodedoemmimnemnada.Precisofazerissoporele”.

No inquérito policial de Larissa, a associação entre prostituição e crime era

notória,"opolicialAlextambémdestacouquejáregistroumaisdedezBOssobrefatos

idênticos, elucidando que diversos "travestis" abordamas vítimas na via pública e as

assaltam no hotel destinado a programas com transexuais, sendo certo que diversas

vítimas sequer registram os boletins objetivando ocultar a prática de programas

sexuais".Aimpressãoqueficaéqueastravestisjáentramperdendo.Quandochegoua

horadojulgamento,Larissaforasurpreendentementeabsolvidaporfaltadeprovas.

Emumasegunda-feira,no finaldatarde,estavanasaladeumadonadecasa

conhecidanacapital,esperandoalgumastravestischegaremparaconversarmosum

pouco sobre o projeto que iríamos começar nomês seguinte. Larissa,muito gentil,

estavamefazendocompanhiaenquantoesperavae,entreumaconversaeoutra,ousei

perguntar a ela sobre o ocorrido. Muito direta, Larissa me disse que existe uma

desvalorizaçãodoprogramadastravestis,equetaldesvalorizaçãoserelacionacomo

própriolocalqueessaexperiênciaocupasocialmente.Muitofranca,meexplicouque

“omeuprogramaéR$40, eo cliente sabequeéR$40.Masmuitosnãovalorizam...

QueremdarR$20,darR$10.Etácomodinheiroaliprapagar,tácomodinheiroalipra

valorizaroprograma.Masnãoquer.Sóporqueachaqueétravestiequenãomerece.

LánazonasevocêfalarqueoprogramaéR$50,R$100reaiselesnãoentram”.Para

ela,essasituaçãopermanentededesvalorizaçãodoprogramacausaumainsatisfação

generalizada.Segundoconta,éexatamenteissoquefazcomqueastravestis“fiquem

revoltadas”.

“R$40éumpreçohumilhante”,completou.Comosenãobastasseovalorbaixo,

algunsclienteschegamacompararoprogramacomastravestiscomoprogramacom

outrasmulheresnazona,“temmulheresquefazemprogramaporR$10,R$20nazona

aquinocentro...Muitosfalam,travestiquercobrarR$40?”.Somadoatudoisso,Larissa

contaquequandoospoliciaischegam“ésóparamassacrarasbichas”.Completaque

nãoédeseespantarqueastravestistêmquepegarodinheiroàforçaparavalorizaro

programamesmo.

Aoquemeinteressa,éjustamentenocontextodaprostituiçãoqueasmulheres,

travestis e transexuais, além de expostas aos mais diversos tipos de violências,

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inserem-senaquiloqueTelles271,remetendoFoucault272,denominacomo“gestãodos

ilegalismos”. Aqui, é possível apontar as fronteiras instáveis e fluidas entre as

atividades que envolvemosmercados ilícitos, ilegais, informais e que caracterizam

grandepartedashistóriasnasquaisastravestisseviamenvolvidas.

Nãoforampoucasasvezesqueastravestismedisseramqueestavampresas

pormotivode“programacomcliente”ou“desentendimentocomcliente”.Comoparte

da prática de prostituição,os programas e pagamentos são acertados verbalmente,

entreaquelaqueofereceosserviçoseaquelequedesejaobtê-lo.Aprecariedadedetal

acordoéconsiderável, tendoemvistatantoa fragilidadedoacordoverbalquantoa

truculênciaeaviolênciadapolícianaabordagem,eonãoreconhecimentojurídicoda

prática. A dívida por prostituição, até o momento atual, não pode ser cobrada

judicialmente,poisrepresentariaumatentadoamoraleaosbonscostumes.Assim,a

frequentequebradoacordoporpartedosclientesquesenegamapagaracentuaainda

maisacondiçãodeprecariedadedastravestis.

Nãoquerotirararesponsabilidadedastravestisemmuitasdestascenas,como

ouvicertavezdeAnyky,“aminhacomunidadenãoésanta,não,euseidisso”.Aoque

parece,nãosetratadeencontrarasupostaverdadedofato,ouaaçãoexatadecada

uma.Oquemepareceimportantepontuaréuminvestimentonacriminalizaçãoena

constituição da travesti “criminosa”, feita de múltiplas formas, sendo a prática de

prostituição uma delas. É essa prática que se insere na dinâmica como fator de

criminalização.

Acriminalizaçãosedá,contudo,exatamentepelopoucovalordadoàpalavraou

àversãodastravestissobredeterminadofato,emqueoclientequasesempresaicomo

“vítima”dasituação–sejaelaqualfor.Eéexatamentesobreessadisputadenarrativa

que li em um depoimento de um outro inquérito policial, tempos depois: "estava

dirigindo umUBER e o passageiro da frente começou a passar amão pelo corpo do

depoente e o depoente ficou assustado com aquela situação, "tentando levar na

profissional"; tevemedodereagirporquesabequehojeemdianãosepodexingaras

pessoasdegay,ficoucommedodeserincriminadosereagisse;nãofeznenhumprograma

271TELLES,Vera.Nasdobrasdolegaledoilegal: ilegalismose jogosdepodernastramasdacidade.Dilemas:RevistadeEstudosdeConflitoeControleSocial.vol.2,n.5-6,jul-dez,2010.p.97-126.272FOUCAULT,op.cit.,2014.

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comoacusadoecomparsas;nadelegaciaoacusadoecomparsasafirmaramquefizeram

programacomodepoente eatédisseramonomedamarcada cuecaqueodepoente

estavausando,acrescentandoqueelesviraonomedamarcadacuecaporqueeleestá

estampadonapeçaíntima,comletrasgrandes;oacusadoecomparsasestavamvestidos

comroupademulherfoiconstatadoqueeleseramtravestis".

Questões relativas a gênero e sexualidade se inseremnessa seleção causal e

configuram a concepção da travesti inexoravelmente criminosa, com baixa

credibilidadeemoral.Aqui,asnormasdegêneroincidemdiretamentenavalidaçãoou

nãodedeterminadotestemunhoouvisãodofato,aomesmotempoemqueaprática

deprostituiçãoétidacomofatordecriminalização.

1.3. Acriminalizaçãopelamigração

Jadetemnoveirmãos.NasceunoestadodeAlagoase,apesardetersidoexpulsa

decasaaos13anos,temumaboarelaçãocomafamília.Dosnoveirmãos,quatrosão

mulheresecincohomens,“comigosãocincomulheresecincohomens”completouem

tomdebrincadeira.Do interiordeAlagoas foiparaa capital,Maceió, e lá ficoupor

algunsanos.LogodepoispartiuparaSãoPaulo,ondeconheceuoseucompanheiro,

Pedroquetrabalhavacomprostituiçãoemumarepúblicanacapitalpaulista.Elaconta,

entusiasmada,quechegouapedirqueeleparassecomosclientes,afinalagoraeleteria

“umhomememcasa,masquepelomenospareceumamulher”.

Apráticadeprostituiçãotemmuitoavercomotrânsito273dastravestisdeum

lugarparaoutroque,porsuavez,ensejaconsequênciasdistintasnoquetocaasua

criminalização. Muitas travestis que conheci não eram nascidas na capital, mas

buscavamacidadegrandepormotivosvariáveis,sejapelapossibilidadedeobtenção

derendanaprostituição274,pelodesejodeexpressarsuasexualidadeedegênerode

formamaislivreou,também,pelafuga“àsameaçassofridasemumdeterminadolocal,

273AspectosdamigraçãodetravestisfoiamplamentediscutidoemKULICK,op.cit.;BENEDETTI,MarcosRenato.TodaFeita:ocorpoeogenerodastravestis.DissertaçãodeMestradoemAntropologiaSocial.PortoAlegre,UniversidadeFederaldoRioGrandedoSul,2000.274SegundopesquisarealizadapeloNuhcom139travestisetransexuaisqueexercemotrabalhosexualemBeloHorizonteeregiãometropolitana,66%dasentrevistadasalegamqueotrabalhofoiomotivoque as levaram a mudar de cidade. Disponível em:http://www.nuhufmg.com.br/gde_ufmg/index.php/projeto-trans.Acessoemdez/19.

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por parte dos clientes, policiais ou outras travestis”275. Contudo, para o direito, o

sentido de residência émuito próprio. Pressupõe a existência de pessoas que não

transitam,quenãoflutuam,quesefixamdeformapermanentenoslugares.

Em2015,Jadechegouafurtarduasbermudasemumshoppingnoseuestado

natal.Fazia15diasqueseuprocessonãochegavaeacicatriznatestaalembravatodos

osdiasdoseudestinosemcomeço.Parecequeomovimentoéumpoucoesse...Junto

comacriminalizaçãovemofluxomigratório.Vidanova,estadonovoecidadenova.

Abandona-setudo,semolharparatrás,masaspalavrasdifíceisqueperformamum

mundoinalcançávelnãodemoramachegar.Nonovoestado,senãoforporcliente,é

presaporteridoembora.

O estabelecimento prisional fica em uma rua com passeio de um lado só.

Transitarporláapéétarefadifícil.Deumlado,opasseioestreitodivideoasfaltodos

murosenormesdaprisão.Dooutro,umtrilhodeproteçãoenquadraohorizonteda

zonaoestedacidade.Jadenãoestavapresapelaquinta-feira,mastalvezestivessepela

burocracia.

Choviamuito,semguarda-chuvamerestavaandarapassosrápidos.Naporta,

umadesivo“17”ocupavaumlugarcentralnavertiginosaportademetal.Pareciaum

prelúdio,umanúnciomiméticodasvozesinaudíveisnaquelelugar.Muitaspessoasse

amontoavamemfila,ávidaspornotícias;outrasapenasqueriamentregarositensde

higieneparapodercomeçarodiadetrabalho.Lembreidaquelafrase,comoémesmo?

“Filhopresoépenitênciademãeensacolada”.

Nãodemoroumuitoefomosencaminhadasparaoparlatório.Seusolhosverdes

estavammolhados,masagoranãoerador.Oseuolharnaquelediapareciadesespero,

aperto e exasperação. Sua voz falhava e, insistindo, perguntou quanto tempomais

ficariaali.Perguntasemresposta.FaziadiasquemedirigiareligiosamenteaoFórum

para conseguir as mesmas notícias: seu processo ainda não tinha chegado. E a

previsão?“Nãoconsigodizer,doutora,precisamossistematizarmaisoumenos100mil

malotes digitais aqui na Vara... A quantidade é tamanha que nem o sistema daqui

aguenta”.

275GARCIA,op.cit.,p.8.

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Nasegundavezque fuiatéaprisão,nãopudever Jade.Era feriadoeoclima

estava estranhamente calmo, sem filas e mães ensacoladas. O primeiro turno das

eleiçõeshaviapassadoeoadesivo“17”nãoestavamaisali.Àminhadireita,umrádio

nointeriordasaladosagentestocavaChicoBuarque.Enquantoentregavaminhabolsa

edocumentos,aprecieiumpoucodamúsicaimprovável.Estavaláparaentregaralguns

itensdehigienepessoalpara Jade,que contavaapenas comaajudadeoutrasduas

travestisqueestavampresascomela,comodisseentreossorrisos“tônacelacomduas

travestiseonamoradodeumadelas.MasnãocontaproPedro!”.

Meorientaramasubirumaencosta íngremeeviraràdireita, logoaliveriaa

garagemondedeveriaentregarasacolacomositens.Talvezpelafaltadepessoal,ou

porpreguiça,oagentemepediuparaentregaralgumascorrespondênciasemumlocal

próximo.Enquantosubia,procuravaincessantementealgumsinaldoadesivoperdido.

No local, três agentes jogavam conversa fora. Chegando lá, entreguei a sacola e

preenchiumpapelcomosdadosdeJade.Apósainspeção,descobriqueosbiscoitos

nãopoderiamentrar.Sabe-seláoporquê...

Umadasagentespedeparaqueescrevaonome“dopreso”nasacola.Conflito.

Qualnomedevousar?Tentofazerascontasmatemáticas,probabilidadesepossíveis

efeitosqueamerainserçãodonome“Jade”poderiacausarnaqueleespaço.Premida

pelotempo,escrevoprimeiro,emletrasmenoreseentreparêntese:“AfonsoSouza”.

Mas,logoacima,emletrasgrandeserobustasescrevocomoseuoseunomenãofosse

pequeno:“Jade”.Aagentenãopercebee,quandotemasacolaemmãos,diz“Não,não.

Nãoépravocêescreveroseunome”.Aoportunidadequeesperava,“masessenãoéo

meu nome”, completei. Um tempo em silêncio. As três agentes se entreolham.

Quebrandootempo,umadiz“ah!Masagentenãotrabalhacomissoaqui”.Retruquei

“vocêquerdizerquenãousaonomesocial?”,constrangidadiz“é... issoconfundeos

agentesládentro”.Calo-me,ecomcaradepoucosamigos,nãodigonada.Mevirosem

olharparatrásemedeparocomoadesivodesaparecido,“17”agorafiguravanabase

da mesa onde os familiares alocam os pertencentes para inspeção. Saí com uma

sensaçãoamargadevitória,erasutil,masaqueleespaço falava,produzia,constituía

muitacoisasemdizernada.Desciaencostaresignada.Agoranasalaapertadatocava

AdrianaCalcanhotto.

**

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Um dos casos que mais me marcaram nesse percurso foi, sem sombra de

dúvidas,odeFernanda.Nascidanointeriordadivisadosdoismenoresestadosdopaís,

teveumainfânciatranquila,mesmocomohábitode“colocarunspanosnacabeçapara

fingirqueeramulher”.Aos12anostevesuaprimeirarelaçãohomossexualcomum

homemmaisvelho,momentoqueFernandaatribuiumavirada significativana sua

vida.Foi apenasaos18anosque sentiunecessidadede sairde casa, apesardaboa

relaçãoquenutriacomafamília.Odesejodesairdecasa,segundomecontou,veioda

vontadedemontarocorpoeconheceromundo.Foiassimquedepoisdeirpracapital

deSergipe,FernandafoiparaoRio,EspíritoSantoedepoisEuropa.

Conheci Fernanda no meio da multidão de rostos da Cela 1. Com olhos de

espanto, suas bochechas perfeitamente redondas esbarravam nos corpos pouco

vestidos de 11 presos que disputavam com vigor um espaço na capa. Fernanda,

ofegante,medissequenãosabiaomotivopeloqualestavapresa.Relatou,comosea

miséria fosse pouca, que chegou a pagarR$7.000 para um advogado, irmãode um

agentepenitenciário,quefugiusemdeixarvestígios.

Erajulhode2016quandoFernandaestavanobardoBarataquandopoliciais

chegaram. No registro de ocorrência, Fernanda estava detida por “negar saldar

despesa”. Umapesquisa rápida no sistema e pronto. Ummandadode prisão aberto

contraFernandanoestadodeSergipe,datadode2002,queimediatamentefoidetida

emsededeprisãopreventiva.

Em Aracaju, Fernanda foi denunciada pela prática do crime de roubo

qualificado,emconcursodeagentes.Os“agentes”,nocaso,eramduastravestisque

estavam com ela na Orla do Atalaia, quando “anunciaram o assalto, adentrando no

veículodavítimae,depossedeumobjetopontiagudo(prendedordecabelos,tipobicode

pato),renderam-na,colocando-anobancodetrásdocarro”.AvítimaeraAlex,quehavia

convidadoastrêsparaumprograma,masnãoteriapagoumprogramaanteriorcom

FernandanovalordeR$20.Agraveviolência,porsuavez,foiconfiguradapelapresilha

de“bicodepato”.Depoisdesseepisódio,Fernandacontaquesaiudoestadoeatédo

país.Fluenteemitalianoegrandeentusiastadoshomensfranceses,morouporanos

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na Europa onde fez fortuna,mas também teve seus problemas276 com a justiça. O

motivodaprisãoeraquaseomesmo:prostituição.Sóqueláeracomtodasasletrase

foiosuficienteparamandá-ladevoltanovoodabeleza277comdestinoaoBrasil.

14anossepassaramentreadatadofatoeaprisãodeFernanda.Nessesanos,

saiudopaísemudoudeestadoduasvezes.Comoseusumiço,veioacitaçãoporedital

e o prazo de prescrição parou de contar. Fernanda nunca soube de nada disso e,

naqueledia,tivequeexplicarcomcriatividadeosentidodafrase“odesconhecimento

daleiéinescusável”278.

*****

Precariedade, prostituição e migração são categorias que constroem a

experiência de travestilidade ao mesmo tempo em que participam ativamente na

dinâmica articulatória da criminalização. No caso da precariedade, a rua, as

dificuldades de inserção no mercado de trabalho formal, a raça, as drogas e a

travestilidade configuram uma trajetória. Inseridas nas dinâmicas nebulosas da

prostituição,secadoresdecabeloecremesparapentearsearticulamparaconfigurar

provadaextorsão–vindodetravestis,nãoháversãoconvincenteparaapossedetais

bens.Dessavez,éodocumento“apontandooenvolvimentodeum‘travesti’navendade

drogas”, os shorts rosa, a tornozeleira eletrônica e a rua conhecida pela prática de

prostituiçãoquesearticulamnaproduçãodacriminalização.Naaudiência,asroupas

vermelhas,asmãospremidaspelasalgemaseoapagamentodetraçosdefeminilidade

somam-seàausênciadonomesocial.

A prostituição também articula a cena de criminalização. A fragilidade dos

acordoscomosclientes,asdinâmicasdomachismoealegitimidadedadaànarrativa

276Importantepontuarquenãopretendoreduziracomplexidadedofenômenodemigraçãoparaastravestis.ComobemapontaFláviaTeixeira,“aquantidadedeálbunsepequenossouvenirestrazidoscomorecordaçãosãotestemunhosdeumavidaqueemnadaremeteàexploraçãoouaocárcere”,sendonecessárioanalisaraquestãocomacomplexidadedevida.Cf.TEIXEIRA,FláviadoBonsucesso.L’Italiadei Divieti: entre o sonho de ser europeia e o babado da prostituição. Cadernos pagu (31), julho-dezembrode2008,p.286.277Expressãoutilizadaemreferênciaaodocumentárioetnográficoqueilustraosprocessosmigratóriosde travestis no exterior, cujomovimento de deportação é denominadopelasmesmascomo“voodabeleza”.Disponívelem:https://www.youtube.com/watch?v=WDldyRFFDvo.Acessoemjan/19.278Art.21,caput,1ªpartedoCódigoPenal.

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de cada um dos envolvidos configuram um cenário que tem na criminalização das

travestisumdesfechocerto.Éocontextoeanarrativadaprostituiçãoquedãoforça

parauma“presilhabicodepato”configurargraveviolência.Aviolência,ocorpocaído

nochão,osaltoaltoeocelularnobolsosãoapagadosecedemlugarparaasentença

“travestiscostumamfurtarpertences”.Nadelegacia,nenhumsinaldoinquéritosobreo

casodo“caraqueapanhounaAfonsoPena”.Mas,éaprostituiçãoquearticulaacenae

mudaorumodasinvestigações,direcionaosesforçospoliciaisnabuscapela“travesti

morena”eratificaaprisão.Nohospital,porsuavez,sãoasalgemas,ocorpotatuadoe

ospoliciaisnaportaqueproduzematravesticriminosa.

Junto com a criminalização vem o fluxomigratório, em que, se não for por

prostituição,acriminalizaçãoéproduzidaporteridoembora.Amigraçãoestámuito

centrada nas vigilâncias de gênero. As obrigações legais no estado de origem não

interferemnadecisãodemudançaexatamenteporquenãosãointeligíveis,palpáveise

compreensíveis. Não se configuram enquanto impedimento, apesar de sê-lo. O que

entraemcenaaquiéademoradeandamentonoprocessoemvirtudedamudança,que

nãopoucasvezes implicapedidosdeprisãoquecorremdemaneiracompletamente

desconhecidaparaastravestis.Nessescasos,bastaumabatidapolicial.

Todosesseselementos,assim,fazempartedearticulaçõesqueconstroemuma

trajetóriadecriminalizaçãodoscorposdastravestis.

2. Segundoato:aprisão

“Sabe o inferno? Então, o inferno é issodaí.” (Conversa com Fernanda sobre aprisão,cadernodecampo,2019)

Lembrodeuma ligaçãoquerecebinomeiodeumatardedequarta-feira.Do

outro lado da linha, a recém-chegada diretora de atendimento da PPJSA já se

desculpavaantesmesmodecomeçarafalar.Dissequeestavasesentindoconstrangida

comaligação,afinal,nuncahavíamosnosconhecidopessoalmente.Contudo,asituação

pediaurgência–explicou.Peloseurelato,haviachegadohápoucomaisdetrêsdiasno

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cargodedireção,quando, aovisitaroPavilhão1279, deparou-se comumasituação

alarmante:“em10anosdeexperiêncianosistemaprisionalnuncavicoisaparecida”.

Contou,poralto,40pessoasqueestavamcommúltiplasferidaspelocorpo,amaioria

deorigemdesconhecida,sintomasclarosdesífilis,segundooseuprópriodiagnóstico.

Atéentãocontinuavasementendermuitobemomotivodaligação,mas,atenta,

aouvidizerque,peloqueviu,deveriafazeranosqueodiretoranteriornãodescialá,

“encontreipelomenosseistravestisqueestavamsemmedicaçãoparaHIV,Júlia,sem

contar as outras tantas com feridas no corpo e um rapaz com o braço quebrado”.

Contouque,logoapóssedepararcomessasituação,foisequeixarcomocorpotécnico

da penitenciária – psicólogos, assistentes sociais e enfermeira – que, com desdém,

expressaram ojeriza no trato com as pessoas presas na Ala LGBT. “Vocês estão

trabalhando aqui há anos e nunca desceramnaquele pavilhão?”, perguntoumesmo

sabendoa resposta.Ao finaldorelato, adiretorapediuencarecidamente seeunão

conseguia“comosmeus contatos”algummédicopara ir atéapenitenciária fazero

atendimentodastravestis.Afinal,misérianuncaépoucaquandofalamosdeprisão.

Poróbvio,eueraapenasumapesquisadoraejamaisconseguiriaresolveraquela

situação. Contudo, confesso que fiquei estranhamente comovida como pedido, que

tinhaumtomdedesesperoeexasperação.Aquelepedido,apesardeinusitadamente

direcionadoamim,eraumametáforaperfeitaparaoestadodefaltaquesefezpresente

emtodoomeutempodecamponacadeia.Esseestadodefaltadizdeumsentimento,

umesquecimentoou,comodizÂngelaDavis280,deumapresençaausênciadaprisão.É

umpoucosobreomedoquesurgeaonosdepararmoscomoqueacontecedentroda

cadeiaaomesmotempoqueaconsideramosumfatoinevitáveldavida.Diz,talvez,da

nossaincapacidadegramaticaldepensarmosalternativasàprisãoedarelutânciaem

enfrentararealidadequealiseesconde.Talvez,sejasobrefaltaeesquecimento.

Essapresençaausênciapodeparecerumtantoquantointensa–edefatofoi.

Essaintensidade,nãopoucasvezes,meconsumiuemeadoeceu.Talveztenhafaltado

umacertapreparaçãoparaoqueviria,mas,aomesmotempo,hojequestionosetal

279DesdeomeutempoemcampojápresencieitrêsmudançasdepavilhãodaAlaLGBT.Aprimeiravezquefui,aAlaficavanoPavilhão4,notadamentemenore,àépoca,correspondiaa35pessoaspresas.TempodepoisamudançafoiparaoPavilhão2.Aúltimamudançaocorreuemagostode2019,emqueaAla foi transferida para o Pavilhão 1 em virtude do espaço e da localização estratégica dentro dapenitenciária.280DAVIS,Ângela.Estarãoasprisõesobsoletas?RiodeJaneiro:Difel,2018,p.16.

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preparaçãosequerexiste.Comonosprepararparaoinesperado?Oumelhordizendo,

comonosprepararparaafaltaeoesquecimento?Pois,ládentro,afaltaéumestado

constante:faltaágua,faltaluz,faltacomida,faltaremédio,faltamédico,faltacama,falta

espaço.Direito,comdmaiúsculo,nãopassanempeloportãodeentrada.

Oanoera2016e,nosúltimosperíodosdocursodedireito,visiteiopavilhãono

âmbitodeumapesquisadoNuhsobresegurançapúblicaepopulaçãoLGBT.281Apesar

de a visita ter um fim específico, fui bombardeada por inúmeras perguntas sobre

execuçãopenalporpartedaspessoaspresas.Oexcessoveioacompanhadotambémda

sensação de desamparo, afinal, esse tema, dentre tantos outros de extrema

importância,nãoéabordadonocursodeDireito.Daqueledia,lembrodocheiroeda

certezadequenãoseriamaisamesma.

DesdeentãopossodizerquefrequentoaAlaemantenhoumcertocontatocom

as travestis que lá estiveram ou que ainda estão presas. Essa frequência, ou

participação,paraaminhasorte,sedeudeformasmuitodistintasaolongodessestrês

anos. Apesar de não ter conseguido abandonar completamente o meu status de

“alguém do direito”, consegui estabelecer relações distintas e acessar realidades

diferentesnotratocomastravestis.

Noanode2018,volteiàAlacomoapoio jurídicodaONGTransvest.Naquele

momento, jádevidamentemunidadaminhacarteiradaordem,eraesperadoque já

soubesse responder as perguntas quemuitasme faziam. Ledo engano.Me restava,

apenas,anotarasdúvidasemecomprometerarespondê-lasquandodapróximavisita.

Nesseperíodo,osvoluntáriosjurídicosdaONGsomavam17pessoas,contudo,nunca

conheci nenhum deles. Lembro da angústia interminável em buscá-los para tirar

dúvidaseeventuaispedidosdeatuaçãoconjuntae recebera resposta “esse temaé

muitoimportante,jáescrevisobreisso”.Ali,meespanteicomessecertofascínioquea

experiênciadatravestilidadeexercenosditos“operadoresdodireito”.Fascínioesse

que,ancoradonoexóticoenovitimismoexacerbado,poucomobilizaosprofissionais

emuitorendeemmesasdebarouemeventosacadêmicos.

281 Mais informações sobre a pesquisa e os seus resultados podem ser obtidos no link:http://www.fafich.ufmg.br/nuh/seguranca-publica-e-populacao-lgbt/.Acessoemdez/19.

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Contudo, esse contato solitário foi central para me aproximar da prisão. Lá

dentro, me permiti ser afetada282 e me envolvi de tal maneira que excedeu

significativamenteoâmbitodeatuaçãodaONG.Apesardesemprerecusaresselugar

de“advogada”ereforçarodepesquisadora,percebiquepoucoeraentendido.Nãopor

dificuldadesdecompreensão,massimporurgênciasqueaquelelugarimpunha.

Foisomentenofinalde2018,jáforadaONG,queconsolideiumcertolugarde

confiabilidade naquele espaço. Era novembro quando recebi uma carta de Lara

pedindoajudasobreumaaudiênciaqueteriaqueenfrentardentrodaprisão.Naquele

momentoestavaredigindoumhabeascorpus283coletivoparaimpetraremfavordas

travestisquandopediaumacolegaparaatuarnocasocomigo.Possodizerqueesse

encontro foi crucial para compreender um pouco melhor as dinâmicas de

criminalizaçãoqueoperamnaqueleespaço.

Emagostode2019,meenvolvideumaformadiferentecomaala.Fuiconvidada

para compor uma equipe que iria concorrer a um edital daOpen Society voltado a

trabalhadorassexuais.Comorequisitodoedital,eueraaúnicaintegrantedaequipe

quenãoexerciao trabalhosexual.Comasminhascolegasdegrupo, todastravestis,

conseguimos oferecer oficinas de artesanato para algumas travestis presas na ala.

Durante três meses, toda semana encontrava a equipe às 7h da manhã em uma

pastelariaemfrenteàrodoviáriadacidade.Olocal,escolhidopeloacessofacilitadoàs

rodoviasquelevavamàprisão,erafrequentadopelastravestisqueatendiamnohotel

alipróximo.Sempre,nessehorário,viaváriastravestistomandocaféesepreparando

paraodiadetrabalho.

Foisomentenessecontextoquepudeocuparolugardaescutacomastravestis

ebichas daala.O lugardaescuta, semdúvidas, foi aquelequemaismeexigiuuma

gramáticadiferentedo lugarcomumecorriqueirododireito.Foiassimquepercebi

queaescutapodeserumatocrucialna lutacontraacriminalizaçãodetravestis.A

escuta284podereposicionarodiscurso,fornecernovasnarrativasereiteraranorma

282 FAVRET-SAADA, Jeanne. 1990. “Être Affecté”. Gradhiva: Revue d’Histoire et d’Archives del’Anthropologie,8,1990,p.3-9.283Estapeçafoi feitaem2019como intuitodepedir, emcaráter limitar,aexpediçãodealvarásdesolturadastravestispresasnaPPJSA.Aaçãofoipautadanaimpossibilidadedeestimarmosonúmero“oficialdetravestispresas,ocompletodescasocomonomeeogêneroqueelasdefatoseidentificam,somada a crescente criminalização de suas experiências”. Para mais informações, ver:https://bhaz.com.br/2019/01/29/liberdade-travestis-cumprem-pena-presidios/.Acessoemnov/19.284PRADO,op.cit.,2018.

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de umamaneira diversa. Assim, uma escuta qualificada pode ser uma ferramenta

importantenocombateàcriminalizaçãodessasexperiências.

Toda essa multiplicidade de lugares espaçados em uma temporalidade

significativa,nãopoucasvezes,mecolocavaemsituaçõesdedúvidaconstantequanto

aoconteúdoquepoderiarelatareusarnoâmbitodadissertação.Percebi,contudo,que

todosesseslugaresmedefiniamemecolocavamemumcontextoúniconalidacomo

campo. Por óbvio, não faltaram explicações para as travestis sobre o meu papel

múltiplodeadvogada, estudante,oficineira, amigae, também,pesquisadora.Muitas

vezes após tentar explicar essa situação, elasachavamgraça e perguntavam se iria

escreverumlivrosobreahistóriadecadauma.

Essesmomentos,nãonecessariamentemarcadospelatemporalidade,massim

pela formaqueeuocupavaaprisão, foramcentraisparamepermitirvermúltiplas

formas de criminalização que envolviam as travestis e incidiam diretamente no

cárcere. Desde a violência truculenta dos agentes penitenciários até as dinâmicas

nebulosasdas travestis e seusmaridos, passando pelos ritos institucionalizadosde

avaliaçãodecomportamento,aprisãofoiseconstituindo,cadavezmais,nãosomente

enquanto esse lugar da falta e do esquecimento, mas, sobretudo, como o lugar da

criminalização.

Há muitos mitos sobre a situação de encarceramento das travestis. Um diz

respeitoàviolênciaenfrentadapelas travestisdentrodocárcereeooutrosobreas

necessidades de saúde. Sãomitos permeados por um reforço à criminalização e à

patologizaçãodessasexperiênciasque,nãopoucasvezes,sãoutilizadosparalegitimar

discursos e práticas adotados pelos atores envolvidos na dinâmica prisional. Me

interessaapontaremquemedidaessesmitossãoefeitosdasnormasdegêneroequais

consequências a sua reiteração produz, pois, nesse estado permanente de falta, a

criminalizaçãoassumeoutrasfaceseacionaoutrosmecanismosparaseconcretizar.

Escolhinomeardoisdessesmecanismose,apartirderelatosdecampo,demonstrar

comoocorre sua operação, quais sejam: 1) criminalização pela hipersexualização e

violência institucional e; 2) criminalização pela patologização, ou em nome de um

cuidadocomasaúde.

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2.1. Acriminalizaçãopelahipersexualizaçãoeviolênciainstitucional

Asaladaassistentesocialerapequena.Váriosmóveiscinzasdisputavamespaço

comumamesa,umcomputador,umacadeiraeumodorinquisitório.Namesa,odizer

“todososdireitoshumanosdevemserrespeitados”.Emcimadeumdosmóveis,no

canto direito da sala, um objeto chamava atenção. Era uma placa grande que se

equilibravaentreosobjetosqueocupavamumespaçoapertadoemcimadoarmário.

Meaproximeicomcautelaepercebique,naverdade,aplacasemjeitoeraumprêmio

que,escritoemletrasgarrafais,preconizava“MissPrisional2018”.Chegueimaisperto

aindae,naspontasdospés,percebiquelogoembaixo,emletrasmenoresetímidas,

estavaescrito“MissTrans”.

Laratemcabelospretoselisos.Semprevistosos,ocabelolongoparecedisputar

comosseus1,80mdealtura.Certavez,entreumaconversaououtra,meconfessouque

jáameaçaramcortarseuscabelosinúmerasvezes.Seriaumapena,pensei.Naqueledia

tambémmeconfessouqueéosétimoNatalquepassalongedecasa.Olheibemfundo

paraosseusolhoscastanhosefiqueiemsilêncio.

Acordeiagitadahoje.Ésempreassim:diasantesdaminhaidaàpenitenciária

meucorpopareceseprepararparaumabatalha.Podeserumpoucodosoleopânico

deficarhorasnaquelepátioquentedoPavilhão4.Hojevaiserasegundaouterceira

vezquevouporocasiãode“festa”.Confessoqueessahistóriatodamecausaarrepios...

Festanaprisão?Semprevoltoreflexivasobreorealimpactodessasiniciativasemum

local já hámuito falido.Mas esses pensamentos disputam espaço com a felicidade

aparentequeastravestisdemonstramcomanossachegada.

Dasúltimasvezesquefui,erasim:mealocavaemumcanto,emcadeirasemesas

deplástico.Nopátioextenso,dividiaespaçocomumas70pessoaspresasqueficavam

circulandoporentreas“bases”ondevoluntáriosfazemunha,secamcabeloeoutras

coisasparaastravestis.Éengraçadocomoaminhabaseéquetemamaiorfila.Dezenas

depessoasseagrupamdeformaorganizadaparapodersentarnacadeiraeconversar

comigo.Nessasfestas,chegoaconversarcom30pessoasmaisoumenos.Aconteceque

ocuparumcertolugarde“direito”mecolocavaemumcontextoespecíficonalidacom

opessoal.Decertaforma,eueraainterlocutoraqueelasmaisalmejavam,sobretudo

pelacompletaausênciadeesclarecimentosemrelaçãoàsituaçãoqueaslevouatéali.

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Ao longo do tempo fui percebendo que ser do “apoio jurídico” restringia a minha

possibilidadedediálogocomastravestisaquestõesprocessuais,deprazoou“quando

équevousairdaquidoutora?”.Apesardasminhastentativasdeescaparumpouco

dessarelação,grandepartedastrocasquepudefazernaqueleespaçotangenciavam

esselugartortoqueocupava.

MasnãocomLara.Jáconheciasuahistóriaantesmesmodeiniciarasvisitasna

penitenciária.Contamque,quandoestavaacauteladaemumpresídionointeriordo

estado,foivítimademaustratoseagressõesfísicasporpartedoGrupodeIntervenções

Rápidas(GIR).Elajáestavasofrendocomproblemasdesaúde,semrecebertratamento

adequadoecontínuo,haviapassadoporumacirurgianotestículo.Mesmoestandoem

pós-operatórioe,claramente,impossibilitadadefazermovimentosbruscos,osagentes

a fizeram correr pelo pátio e chutaram seu testículo, que veio a ser removido

posteriormente.Larameconfessoucertavezque,naqueledia,oshomensencapuzados

“riramdemimporque souhomossexual eperguntaramseeu tinha testículoseme

chutaramnosaco”.

Nemaviolênciadoschutes,omaucheiro,aferidaabertaearecomendaçãode

repousopelomédico foramsuficientespara convencer a juíza. À Lara foi negadoo

pedidodeprisãodomiciliar, afinal “acondiçãonaqual se encontraoacusadonãoé

incompatívelcomosistemaprisional”.Odesesperoeratamanhoqueatéoseuadvogado

na peça processual disse que “em 10 anos de advocacia criminal nunca presenciou

tamanha desumanidade”. Desumano. Mal sabia Lara que aquele adjetivo iria

acompanhá-laporumbomtempo.

Coma institucionalizaçãodaAla em2013,demoroupoucoparaoespaço se

tornar popular na população carcerária, que frequentemente é orientada por seus

advogados a pedir transferência para lá, com promessas de “privilégios”. Lá não é

obrigatóriousaraquelasroupasvermelhas,ocabelopodeficarconformeavontade,

váriositenssãopermitidose,o“melhor”,ascelasnãosãotãocheias.Paraentrarno

espaço basta assinar um “termode homossexualidade” que performa, aos olhosdo

Estado,umaexperiênciaquedeveserprotegidadaviolência.

Aprimeiravezque conheciLara, eladividiaaCela6 commais trêspessoas.

Olhouparamimedissequepreferiao riscode serexpostaa todaaquelaviolência

novamentedoquepermanecernaquelelugar.Nascidaecriadanointeriordoestado,

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órfã de pai, sua mãe dispende muito tempo cuidando da irmãmais nova e nunca

conseguiu ajudá-la. Estar longe da família, segundo Lara, era o que causava mais

sofrimentoetornavaosdiasinsuportáveis.Estarlongedafamíliaqueeradesumano.

Nos últimos dois anos, a população carcerária do Pavilhão 4 triplicou.

Superlotação,subjugaçãoeviolência.Ali,todassãobichas,gayzinhas,travestis,bofese

homens do seguro285 que se misturam e conformaram um aglomerado de pessoas

inclassificáveis.Aconteceque,deunstemposparacá,astravestiscomeçaramaocupar

abasedahierarquiaeperderamespaçoemumlugarqueoriginalmentefoipensado

“para”elas.

Lembro de uma das vezes em que Lara me contou que a situação ficou

alarmante.Emdeterminadomomento,astravestisrepresentavam12das85pessoas

queestavampresasnaAla.Oanoera2016eelaorganizouumareuniãocomtodasas

travestisebichasafeminadasnopátiodapenitenciária. Juntas,demandaramparao

diretorumtrabalhoexterno286.Atéaquelemomento,motivosnãofaltavamparanegar

essapossibilidadederemiçãoparaelas.Asjustificativaseramdetodasorte,desdeo

impedimento do trânsito nas imediações para não chamarem muita atenção, até

pressuposiçãodequenãodariamcontadotrabalho,porseremfrágeisouatémesmo

emvirtudedosilicone.Astravestiseramsempreasúltimasdafila.Emdecorrência,tal

populaçãonãoangarianenhumtipoderemiçãodepena,pelocontrário;issoeutilizado

comomaisumaformadeaspenalizarem.

13réus.Larafoicondenadaa12anos,5mesese10diasdereclusãoportráfico

dedrogaseassociaçãoparaotráfico.Naépocadaprisão,Laraestavacom22anos.A

decisãodajuízaesbanja187páginase,porincrívelquepareça,poucoseexplicasobre

ascircunstânciaseparticipaçãodeLara.

Dos 12 anos de prisão, Lara já cumpriu sete. Dos sete, apenas ummês em

liberdade. O motivo? Aparentemente, Lara tem se envolvido em muitos atos

considerados “graves” dentro do estabelecimento prisional e, com isso, tem

incessantemente o seu regime regredido. A cada falta grave atribuída a Lara,

interrompe-se por um ano a contagem para progressão de regime. Pensando com

285Oseguroéo localonde ficam localizadaspartedapopulaçãocarceráriamaisestigmatizadasporteremcometidoscrimessexuais.286Faxina,ounajardinagem.

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ViannaeLowenkron287,adinâmicadaprisãocompõemaisumcenárioondeaspráticas

generificadasatravessameproduzemanossavidasocial;adiferença,talvez,residano

fatodequeépelasprisõesqueessaspráticassetornamviáveisecompreensíveis.E

todoessetrabalhosedesenvolveapartirdaproduçãodecategoriasjurídicasoficiais,

permeadaspormodosderegulaçãoquenocasodadinâmicaprisional,ganhaonome

de“AudiênciadoConselhoDisciplinar”288.

Na iminência de aplicação da sua terceira falta grave, Larame pediu ajuda.

Estava desesperada pois teria uma Audiência do Conselho Disciplinar em algumas

semanas e, caso fosse condenada, teria que esperarmais um ano para sair. Acabei

respondendoaopedidodaLarae,apesardasminhaslimitações,concordeiemajudá-

la.

FoiaíqueLarameconfessouquetinhatidomuitoproblemascomumagente

penitenciário.Tudohavia começado, segundoconta,háalgunsanos,quandoestava

trabalhandonalavanderia.Nessedia,oagenteteriapassadoamãoemsuabundae

proferido palavras assediadoras. Esse fato teria culminado em uma espécie de

perseguição,queteriadadoazoaumasériedeepisódiosdamesmanatureza–abuso

deautoridadeeassédiosexual.

Tempos depois, Lara conta que presenciou esse mesmo agente exigir de

Fernanda que levantasse a blusa e lhemostrasse os seios, pois só dessa forma ela

conseguiriaopãoquelhehaviapedido–aoqueestaobedeceu.Porissoficouindignada

quandoviuessemesmoagentedestruindoseusartesanatosdeformaarbitrária.Lara

estavanopátioedeláimploravaaoagentequeparasse,aoquefoirespondida“calaa

boca,traveco”.Sobressaltada,teriaditoque“possosertraveco,masopiorévocêque

pedepraveropeitodetraveco”,emclaraalusãoaoepisódioocorridocomaamiga.

287 VIANNA, Adriana; LOWENKRON, Laura. O duplo fazer do gênero e do Estado: interconexões,materialidadeselinguagens.CadernosPagu(51),2017.288No curso da execuçãopenal, a audiência do conselho disciplinar é realizada no estabelecimentoprisionalondeapessoacumprepena.Afinalidadedaaudiênciaéaapuraçãodeeventualfaltacometidaaolongodaexecuçãodapena.Emlinhasgerais,realiza-sealavraturadaocorrênciacomaconduçãodopreso ao chefe de plantão ou supervisor, o qual comunicará o fato ao diretor (ou gerente) doestabelecimentopenal.Emseguida,esteinstauraoPADmedianteatoadministrativo(normalmenteumaportaria) que contenha a descrição fática pormenorizada e encaminha o documento ao ConselhoDisciplinar. O colegiado procede à apuração da conduta, investigando a veracidade dos fatos epropiciandoaproduçãodeprovasdetodosostiposemaudiência.Apósessemomentoumcorpode3juradosemiteparecernãovinculantequantoàexistênciada falta, àautoria,à classificaçãoem leve,médiaougravee,enfim,sugereassançõesaseremaplicadas.

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Tal fatoteriaculminadocomoagentedizendoque“nãodánadapramim”e

determinandooencaminhamentodeLaraparaopátio,composteriorrecolhimento

delaemceladesegurança(isolado),ondeteriapermanecidopordoisdias.Noisolado,

teriasidoprivadadealimentaçãoeatacadacomgásdepimenta.

Para a minha surpresa, os documentos elaborados pelo estabelecimento

prisional para julgar o comportamento de Lara diziam apenas que, “ao realizar o

procedimento de revista geral minuciosa no pavilhão 04, na cela 01, em que está

recolhidoopreso supracitado,nomomentoemqueestávamos retirandoo excessode

pertencesematériasnãopermitidasqueestavamdentrodacela,opresogritoudopátio,

difamando-meecaluniando-me,atravésdosseguintesdizeres‘osóR.émachãoaquina

cadeiaenaruaébemdiferente[...]éhomofóbicoaqui,masnaruaéumamaricona’”.

Restavaapenasaaudiência internado conselhodisciplinarpara corroborarounão

comaversão“oficial”dosfatose,assim,imputaraLaraocometimentodefaltagrave.

Aaudiênciaestavamarcadaparaas9hdamanhã.Chegueicomantecedênciae

mesmoassimtivequeaguardar1h30deatraso.Aqueledianãoeradiade festa.No

primeiroportãomepedemocelular.Nosegundo,umagentepegaminhaidentificação.

Àminhaesquerda,umasalaamplaabrigaoparlatório,obodyscan,assalasderevista

íntimaeosarmáriosdos funcionários.Umpoucomaisà frente,sou interpeladapor

umaagentequealertaque,seeucontinuassecomabolsa,teriaqueserrevistada.Não

meimportomuitocomoalertaepeçoparaconversarsozinhacomLara.Naqueledia

elaestavamuitomal,febrealta,muitatosseedoresnocorpo.Confessou-melogoque

oagenteteriaidoatéasuacelaontemeditoque“estavadoidoparaaaudiênciachegar

porquevoufodercomvocê”.Laradissequenaúltimasemanatentaramdissuadi-la

paradispensaraminhaajudacomoadvogada,alegandoque“oresultadoseriamelhor

semaminhapresença”.Convicta,Laranãohesitou.Dissequelogoapósdessefatoa

minhacartachegoue,comisso,tevemaiscertezaquenãoestavasó.Medespeçode

Laramomentaneamente,olhofirmenosseusolhosetentopassarsegurança.Vaidar

certo.Temquedar.

Umagentemeacompanhaatéolocalondeaaudiênciairiaacontecer.Aindano

pátio,umagradeenormeaprisionaohorizonteeenquadrameucampodevisão.Do

outrolado,umcorredorextenso,acéuaberto,écruzadopordoisoutroscorredores.

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Daquioespaçonãoparecetãohorripilante,hávegetaçãoealgunsgatosecachorros

abandonadosdãovidaaolugar.Quantaironia...Osanimaisvivemsoltosafinal.

Apesardosalertas,nãotivequepassarpormaisnenhumarevista.Aausência

deregrasdavalugaràexceção;invençãopura,casoacaso.Subiummorroextensobem

àdireitadopátio,emcéuaberto,eosolqueimavaforte.Nocaminhodavapraseouvir

umavoz firmevindadopavilhão femininoqueecoava:“ôdona,vaideixaroprédio

morrerdesede?”289.

Meudestinofinaleraumgalpãoamploqueficavanofinaldasubida.Oespaço

era claramente improvisado. Parecia uma quadra de esportes que há muito não é

utilizada.No fundo,umaimensidãodecadeirasemóveisvelhosocupamespaço.No

outroextremo,cincomesasdiferentesposicionadasladoalado,emumareprodução

claradeumasaladeaudiência.Naextremadireita,umagenteprisional,trêsjurados,o

diretoreaescrivã.Nocentrodaquelacena,Larasentadaemumacadeiradeplástico

branca,devidamentevestidadevermelhoealgemadanasmãosepés.Ospéscalçados

comumchinelohavaianasnovoecolorido,presentedeFernanda.Sentei-menocanto

esquerdoeaguardeiatentaodesenrolardaaudiência.

Odiretordopresídioabreostrabalhoslendoasdocumentaçõespresentesno

procedimento administrativo aberto contra Lara: oitiva, declaração do agente e

comunicado interno.Nofinaldaleitura,perguntaàLaraseelaconfirmaoocorrido.

Nessahora,Lara tomaapalavraemostramuitobemoque tempassado ládentro.

Algumas perguntas são feitas e Lara se sai cada vez melhor. Tudo estava sendo

registradoporumamulhermunidadeumcadernopautadoeumacanetaBic.

Chegando a minha vez, li as quatro páginas de defesa como se minha vida

dependessedaquilo.Apesardofoco,pudeperceberomovimentododiretor,quepegou

umafolhareciclada,embranco,erasgouemtrêspedaços.Cadapedaçofoientregueas

pessoasqueiriamvotarpelovereditodeLara.

Minutosdepois,emsilêncio,odiretorrecolheospapéise,comoresultadoem

mãos,nãoexpressanada.Oplacar?2x1pelacondenaçãodeLara.Ela,emdesesperos

contínuos,seresignaemdizeremaltoebomsom:“eupossoestarpresa,maseunão

souburra”.

289Nestediafaltavaáguaemtodaapenitenciária.

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Devoltaàsaladaassistentesocial,naspontasdopévoltoomeuolharpara

aquele objeto. Na base da placa sem jeito do prêmio que preconizava “Miss Trans

2018”,encontroumpedaçodefitacrepeescritoemlápis:“LucasAlves”.Eraonomede

Lara.Naquelediafuiemborapequena.

Apósseisanosesetemeses,Larasaiudaprisão.Lembrodeencontrá-laamenos

decincodiasemliberdadeeoseurelatodosconflitosconstantescomosfamiliares.

Eladisseque,por terpassadomuito temponaprisão, totalmentevigiadae comos

passoscontrolados,haviadesenvolvido,aquifora,umaintolerânciacontraoexcesso

de regramento.Dentro da prisão, Larame relatou aquilo que Foucault já apontava

sobreaprisãoenquantouma“regulamentaçãofelizdoespaço:oolhardovigiapodee

devetudover.Umaregulamentaçãodotempo,cujautilizaçãoéfixadaacadahora.Uma

regulamentaçãodosgestos,dasatitudes,dosmínimosmovimentosdocorpo”290.Pelo

menosagora,avigilânciavinhadesuamãe.

Fatoéquenãoforampoucasasvezesemqueastravestismecontavamsobrea

violênciadosagentespenitenciáriosesobrecomoessaviolênciaassumiaafacedeuma

faltadisciplinar291passíveldesanção.Fuipercebendo,assim,queoproblemamaiorda

criminalização é quando ela é produzida por atos, que também são discursos

institucionais292,quedesencadeiamumasériedeatosinjustosque,emúltimaanálise,

prolongamotempodeencarceramentodastravestis.

**

Duranteasminhasúltimasvisitasnaala,Yaraseapresentavadeformatímida.

Aprimeiravezqueavi,lembrodefitaroseucorpocobertocomtatuagensdelinhas

finas; todas, segundo ela, feitas lá dentro pelo seu companheiro de cela. Feitas,

meticulosamente,comatintapretaquesaidacapademarmita,quandooalumínioé

expostoaofogo.Depoucaestatura,pelemuitobrancaepoucoscabelospretos,Yara

conversavacomigocomavozbaixaeamãosempretentandotamparaboca–comose

estivessedesconfortáveleprecisasseesconderalgumacoisa.

290FOUCAULT,M.Gerirosilegalismos.In:PolDroit,Roger(org.).Foucaultentrevistas.SaoPaulo:Graal,2006,p.44.291Previstasnosart.635a643doRegulamentoeNormasdeProcedimentosdoSistemaPrisionaldeMinasGerais(ReNP).292PRADO,op.cit.,2018.

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Emumamadrugadadesetembrode2015,Yara,comosseus20para21anos,

forapresapelaprimeiraveznoestadodoRioGrandedoNorte.Quandoelaresolveu

compartilharcomigoasuacapivara293,definiuasituaçãocomo“confusãocomcliente”.

Diriaqueexpressãomelhornãohá.Nosautosdoprocessoavítimaalegoutersidoalvo

deumgrupodetravestis,que“começaramaabordarele;queofereciamprogramaeque

vieramparacimadele”.Apósessemomento,alegaqueessemesmogrupopegouoseu

celular, ocasião em que “saiu correndo com a carteira e pediu ajuda a seu pai”.Os

policiaisaparentementenãopouparamesforçosnabuscapelastravestis,sendo“quea

polícia colocou uma dessas travestis na viatura e que encontraram vários grupos de

travestismasnãoeramosassaltantes;quecontinuaramadiligênciaeelereconheceu3

travestisqueparticiparamdos fatos [...];quesempreviano localalgunstravestismas

nessediaéqueviutantas;quenãoconhecianenhumadasacusadas;quejánaviaturaas

acusadasdisseramqueeledepoentetinhafeitoumprogramaenãotinhapago;quenão

foiissoqueocorreuenãoquisfazerqualquerprograma”.ParamásortedeYara,elafazia

partedesse“grupodetravestis”.Forapresaesentenciadanosartigos157,§2º,incisos

Ie IIdoCódigoPenal,enoartigo244-BdoEstatutodaCriançaedoAdolescente,a

seremcumpridosinicialmentenoregimesemiaberto.

Comopartedoscritériosdesseregime,Yaradeveriadormirnoestabelecimento

prisional,podendosairdelánapartedamanhãcomretornomarcadoparaofinalde

tarde.Contudo,mecontouqueessapenitenciáriadoRioGrandedoNorteera“sóde

homem”enão tinhaprojeto,ou seja, eraobrigadaa ficarno seguro, epor issonão

conseguiadormirdireito.Contou,assim,quecertanoitequandoretornava,sedeparou

com “aquele tanto de homem” na fila pra entrar. Logo lembrou das noites não

dormidas, do incômodo atroz e simplesmente não retornoumais. Fora dada como

fugitiva,mudoudeestadoe, trêsanosdepois,emMinasGerais,quandosaíadeum

motel,seviu,novamente,emumaconfusãocomcliente.Aconfusãotinhasidopequena,

mas,comachegadadaPolícia,todosqueestavamporalitiveramquedaronomepara

aelaboraçãodoBoletimdeOcorrência.Pronto!Apósconferirnosistema,Yara foia

únicaquesaiudeláalgemada.

293Termoêmicoquesignificaocrime,ouotipopenal,peloqualapessoaestavapresa.

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YaraficoupresanopresídiodaGameleira,responsávelporreceberospresos

provisóriosnoestado.Ládentro, foi expostaa todo tipodeviolênciaporpartedos

agentespenitenciários.Amaioremaisescabrosadessasforaodiaquealgunsagentes

alevaramemumterrenobaldioeaobrigaramafazersexooralcomeles.Filmaram,

debocharamechamaram-nadeatrizpornô.Logodepoisdesseepisódio,nãotardou

parachegaràAlaLGBT.Sónãopoderiacontarque,chegandoporali,seriaobrigadaa

retirar a prótese dentária e os cabelos. No primeiro dia em que a conheci, ela se

resignouaperguntarunicamentecomofaziaparaconseguirtudoissodevolta.

Algumtempodepois,volteiàAlaetivemaisumdaquelesmomentoscomYara.

Ela chegou pra mim naquele dia com o rosto inchado, o supercílio cortado e a

respiraçãoofegante.Esperouosagentesseafastarem,mepegoupelamãoemelevou

atéumcantodasalaondeestávamosfazendoasoficinasdeartesanato.Contou,assim,

queduranteoprocedimentodechamada,demoroualgunsinstantespararespondero

seunomee,parasuasurpresa,asconsequênciasdessademoraforamterríveis.Conta

que,porserecusaradescerdacama,umdosagentesentrounasuacelaapegando

peloscabelosedisse“temquesairdaíseuveadosafado”.

Nessa hora, Yara, confessou-me que xingou de volta os agentes. Diante da

resistência, os agentes a pegaram pelo pescoço e a levaram até a entrada da

penitenciária. Em uma sala feita pra isso, Yara ficou premida na bailarina294 até o

diretorapareceredizer“trazesseveadoaquiqueeuvouensinarelearespeitaros

meusagentes”.

Lá dentro foi espancada. Colocaram seu corpo virado para a parede e a

chutaramcompoucaforça–osuficienteparanãodeixarmarcas.Recebeuumtapana

partedetrásdacabeça,que,pelaproximidadedaparede,fezcomquebatesseorosto

comforça.Odiretor,aopegá-lapelagoladablusavermelha,disse“próximavezque

vocêmerespondereudeixovocêdesmaiadaoumorta”.OpreçodosilênciodeYarafoi

baixo:uma lataderefrigerante,um iogurteeumacoxinha. Issoeavozecoandoao

fundo“palavradepresonãovalenada”.

Nodiaemqueaencontrei,fiqueiestarrecidacomorelato,sobretudoquando

medissequeaqueleepisódiohavialherendidoumafaltagravequeseriainvestigada

294Referênciaàbarrademetal,afixadanaentradadapenitenciária,emquesealgemamaspessoaspresas.

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em uma Audiência do Conselho Disciplinar. Tentei acalmá-la dizendo que,

independentedoresultadodaaudiência,cabiaaojuízodaexecuçãoreconhecerounão

afalta.Ledoengano.Mecomprometiadarumalidanosdocumentosproduzidospela

unidadeemrelaçãoaofatoefiqueiestarrecidacomanarrativacriada.

Ocomunicado interno,escritoemprimeirapessoapeloagentepenitenciário,

diziaquenadata“DEIORDEMparaqueospresossevestissemecomparecessemàporta

dacelaparaserfeitaconferênciadefísicaenessemomentoopresosupracitadorecusou

a cumprir a ordem, se apresentando a porta da cela apenas de cueca e se recusou a

responderdeformacorreta,falandoseunomeeINFOPENdeformaanãoentenderoque

ele estava falando [...] chamei o preso novamente e lhe perguntei porque estava

reclamando da conferência e omesmome respondeu ‘não sou obrigado a responder

chamada nenhumanão, bebe’. Diante dissoORDENEI que o presome entregasse seu

uniforme e procedesse à revista geral, pois ele seria encaminhado à presença da

CoordenaçãodeSegurança,poisseriacomunicadoporterdesrespeitadoàordemquelhe

foidada.Opresosaiunormalmentedacela,porémquandoeuoestavaconduzindodo

pavilhãoparaaCoordenaçãodeSegurança,opresodificultouàcondução,serecusando

a ser conduzido de forma correta e por quatro vezes dei ordem para que o preso

permanecessedentrodoordenadoeomesmoserecusou,entãofoinecessárioconduziro

presoàforça,eotrouxeàportariatrês”.

Oqueseseguiudepoisdessa“conduçãoàforça”sófoimencionadonoboletim

deocorrência,feitopelodiretordapenitenciária,que,“aoperceberoocorridoodiretor

de segurança que presenciou a indisciplina do preso determinou que o detento fosse

conduzidoparaasalapeloagenteequandoopresoadentrouasaladodireitoele se

mostroumuitonervosoeagitado, proferindoxingamentos,nestemomento foidadaa

ordemparaqueopresosevirassedefrenteparaaparede,opresoacatouaordemporém

porvontadeprópriaaosevirardefrenteparaaparedeopresobateuacabeçacontraa

paredefazendoumcortenosupercíliodireito.Diantedisso,foinecessárioconteropreso

paraqueeleparassedeseautoflagelar”.

Autoflagelo.Na audiência de justificativa, para homologação ou não da falta,

Yara movimentava a cabeça de um lado para o outro durante toda a leitura do

comunicado.Ajuíza,assim,perguntou“oquefoiqueaconteceunessedia,então?”.Yara

disse que tinha sido tratada de formamuito agressiva nahorada chamada e, após

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demonstrardescontentamento,oagenteateriarespondido“seeuquiserquevocêfaça

oprocedimento100vezes,vocêvaiprecisarfazer100vezes,seuveadosafado”.Em

juízo,Yaraconfessouque,defato,haviaperdidoanoçãoexingadooagentediantede

tantocomportamentohostil.Completouorelatoemjuízoedisseque“odiretorme

pegoupelagoladacamisa,mejogoudentrodasalaebateuminhacabeçanaparede.

Logodepoisdisso,aoverosangue,mepegoupelagolae,nocaminhoparaaenfermaria

dissequeerapraelafalarquetinhacaídodacama”.

Resignada,completoudizendoque“aúnicaprovaqueeutenhoépelasimagens

de segurança”. Após esse relato, a juíza volta-se para a Promotoria e a Defensoria

Públicaeindaga“perguntas?”.Eassimseencerraaaudiência.Nasentença,nenhuma

mençãoàtruculênciaeàviolênciadosagentes.Senãofosseoseurelatonaqueledia

atípicoeagravaçãodaaudiência,aquelefatonuncairiaexistir.Yarateveafaltarelativa

à fuga homologada em juízo. Agora, teria que ficar mais um ano presa sem a

possibilidadedeessetempocontarparaconseguirprogredirderegime.

E é um pouco por isso que faço coro a outros pesquisadores295 que têm se

debruçadosobreasituaçãodepessoastransetravestispresasaoafirmarqueomaior

responsávelpelaviolênciaqueaconteceládentrosãoosprópriosagentesdoestado.

Essaviolênciapodeassumirafacedeumacriminalizaçãoedeumabanalizaçãodavida,

aquiloquefazdacadeiaolugarque“ofilhochoraeamãenãoouve”.

Essepontoserelacionacomanecessidadedeabandonarmosodiscursodeque

astravestissãoasquemaissofremviolênciadentrodaprisão296.Defato,nãosetrata

dequalificarmosdessa forma,postoquetodosestãoexpostosàviolênciadaprisão,

mas sim procurarmos compreender os diferentes modos, contextos e atores

envolvidosnessasviolências,bemcomoasconsequênciasadvindasdisso.

Aquemeinteressa,oreforçodoargumentodatravesticomoamaiorvítimade

violênciaserelacionadiretamentecomacrençadequeoseumaioralgozseriamos

outrospresosdeseuconvívio.Essaconcepção,predominantenanarrativadoEstadoe

do Judiciário, mobiliza muito as ações empreendidas dentro da Ala e serve como

verdadeiracortinadefumaçaparacompreendermosquegrandepartedaviolênciae

295SANDER,Vanessa;CAVALCANTI,Céu.Contágios, fronteiraseencontros:articulandoanalíticasdacisgeneridadeporentretramasetnográficaseminvestigaçõessobreprisão.CadernosPagu(55),2019;FERREIRA,op.cit.,2018;LAMOUNIER,op.cit.296LAMOUNIER,op.cit.

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criminalização a que estão expostas vem dos próprios atores prisionais – agentes,

diretores,técnicos.

Essaimpossibilidadedenomearmoscorretamenteassituaçõesdeviolênciaque

estão expostas é sustentada pelas normas degênero e o racismoque não somente

reiteraaconcepçãodoshomenspresoscomopotenciaisestupradores,comotambém

hipersexualiza as travestis. Essa hipersexualização das travestis, por sua vez, pode

assumirváriasfacetas.

Lembrodecertavez,porexemplo,que,porocasiãodeumaoficinaagendada,a

diretoradapenitenciariameligou.Commuitotato,fezquestãodedizer“agestãode

segurançaanterioreramais liberalcomisso,masonossodiretordesegurançanão

querdeterminadasroupasquepodemchamaratençãodoshomensdaqui.Entãoeu

queria te pedir para dar um toque nas meninas para evitarem roupas decotadas,

transparências emuito justas que possam chamar atenção”. Asmeninas a quemse

referiaeramasminhascolegasdeoficinas,queofertavamasatividadesdeartesanato

dentrodaAlajuntocomigo.Ora,emnenhummomentoelamepediuparamaneirarno

meudecoteouvestimenta.

Carla, certavez,me relatouospercalçosqueestavaenfrentandono trabalho

externo na penitenciária. Embora a poucaoferta e a precariedade desses trabalhos

façampartedocontextogeraldaprisão,essasquestõessãomobilizadasdemaneira

distintanocasodastravestis.Nãopoucasvezes,oargumentoutilizadoparapreteri-las

nessasvagasgiraemtornodotemorqueameracirculaçãodeseuscorpospodecausar

noespaçoprisional.Essetemor,paraLamounier297,dizmuitosobreumaexpressãode

corpo pautada pela desobediência às regras do gênero, que, quando presas,

desestabilizamosistemabináriodeorganizaçãodasprisões.

Assim, múltiplos discursos e práticas são acionados para evitar essa

desestabilizaçãocausadapelomerocirculardeseuscorposnoespaçoprisional.Ora

porchamarematençãodemais,oraporseremfrágeisepoucoaptasaotrabalho,ora

portemordecomplicaçõesemvirtudedosilicone,astravestissãosistematicamente

colocadascomoúltimasnafilaparaseconseguirumtrabalhoexterno.

297Ibid.,p.77.

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Presadesde2013,Carla jáeraconhecidadetodosporaliesabiamuitobem

comotransitarporaqueleespaçoeencontrarbrechasdenegociaçõespossíveis.Foi

assimque,logoapósterprogredidoparaoregimesemiaberto,conseguiuumtrabalho

externocapinandooterrenoemvoltadapenitenciária.Otrabalhoerafeitocommais

trêscolegasdepavilhãoquefaziampartedoseuconvívioporanos.Contudo,naquele

dia,merelatouumincômodograndecomosagentesquefaziamavigiadotrabalho.

Disseque,porser travesti,osagentestemiamqueela fosseviolentadasexualmente

pelos colegas de trabalho, “você acha que aquelesmeninos vão fazer alguma coisa

comigo? Não vão. Eles mesmo falaram. Conheço todos há anos. Mas eles já estão

achandoruimdosagentesficarememcimaotempotodo”.

Maisumavez,ahipersexualizaçãoseconfiguravaenquantoriscoiminentede

violênciaquetensionavaofrágilequilíbriodacadeia.Essaposiçãoduplaocupadapela

travestilidade,oraobjetodetutela,oraobjetodeviolação,éumaconstantenavidadas

travestispresasedizmuito sobreamanutençãodopodernaqueleespaçoepouco

sobreagarantiadesegurança.

Por outro lado, essa familiaridade que Carla reivindicava com os colegas de

trabalhodiziamuitomaisdaexistênciadelaço,sociabilidadeaafetodoquequalquer

outra coisa. Contudo, para conseguirmos ver dessa forma, me parece necessário

deslocarmosoolhareosesforçosinstitucionais.Implica,sobretudo,pensarmosmeios

eficazesdeapuraçãodedenúnciasdeabusoscometidospelosprópriosagentes.

DiferentedocasodeLara,osagentesresponsáveispeloepisódioenvolvendo

Yara faziampartedo“GrupodeIntervençãoRápida”,oGIR.Oquetornaorelatode

Yaramaisfrágil,talvez,sejaofatodequeosagentesresponsáveispelosprocedimentos

daAlaentramláencapuzados,semafaceexpostaedesprovidosdequalquervestígio

que possa identificá-los. O grupo fora criadopara agir em intervenções táticas nos

pavilhõesde“altapericulosidade”comvistasaconterrebeliões.Contudo,nodiaadia

aleatóriodacadeia,ogrupoéescaladoparalidarcomosprocedimentosrotineirosdo

pavilhãoLGBT.

Lembroqueemumadasvisitaspudepresenciarumpoucocomoogrupoopera.

“Umpouco”,poisacompanheiaaçãodoladodeforadopavilhão,jáquenãopodemos,

nunca,ficarládentroquandoogrupoentra.Estacionaramnaportacincoaseispessoas

encapuzadas,trajandoroupamilitarverdeescuro,botas,capacete,armasdeborracha

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namão,escudoeumcachorronacoleira.Antesdeentrar,bateramocadeadonoportão

quatrovezes–sempre,quatrovezes.Osomdasbatidasecooudentrodopavilhãoque

rapidamentefoitomadoporumsilênciosepulcral.

Tempos depois da entrada do grupo, duas travestis, Sara e Vanessa, são

arrastadasparaforadopavilhão.Sara,tãopequena,pareciadesapareceraosecurvar

totalmenteprabaixo,comosbraçosserradosatrás.Osolhos,quandocruzavamcom

osnossos,estavamtotalmentevermelhos–depoismecontouqueerareaçãodogásde

pimentaquehaviasidojogadonasuacela.Vanessa,porsuavez,nãoserendeufácil.A

visaindoaosgritos,olhandoparanósedizendo“távendooquefazemcomagente

aqui?”.Foracarregadaatéescapardenossohorizonte,mas,insolente,fezopercurso

da formamais lentapossível.Gritavae se jogavano chão.Recusava, assim, terque

abaixaracabeça,comoseaquilodependessesuavida.

NaquelediacomeceiaentenderumpoucoadinâmicadaviolêncianaAla–me

localizarentreaquiloquepresenciava,oqueouvia,eoqueeramobilizadopelosatores

institucionais.Esseinterstíciomepermitiuperceberalgunsmodosdefuncionamento,

embatedenarrativaseoimpactodissonareiteraçãodacriminalizaçãodastravestis.

2.2. Acriminalizaçãopelapatologização

Fernandanãotemumahistóriapequena.Nordestina,nasceuemumacasacom

quatroirmãos.Teveumainfânciatranquila,apesardasreprimendasdopaiaovê-la,

aindacriança,comatoalhadebanhoamarradanacabeçaperformandolongoscabelos.

Saiudecasacom18anosparamorarnacapitaldoseuestadoe,11mesesdepois,partiu

paraoRiodeJaneirojuntocomoutrasamigas.

Quandofez34anos,foipresaemBeloHorizonte,acusadadetercometidoroubo

majoradocomafatídicapresilhabicodepatocontraumclientenoanode2002emseu

estadonatal.Sófuiconhecê-lapessoalmentenacadeia,quandojáestavahámaisou

menosumanoemeiopresa,semsaberabsolutamentenadasobreoquealevaraaté

ali.Digo“pessoalmente”porquejáhaviaouvidofalardelaemoutroscontextos,devido

à sua fama enquanto alguém que “arrumamuita confusão lá dentro”. Na verdade,

Fernandasentiaaangústiadafaltadeinformaçõesnapele.Umanoeseismesesassim,

semnotícias–esperandopassarumtempoquenuncapassa.

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Depoisdeconseguiroseualvará,mantivemosumarelaçãopróxima; talveza

prisãotenhanosunidodeumaformacuriosa.Emumaquarta-feiraqualquer,Fernanda

me ligaepergunta sepossopassarna casadela,mas “sónão reparanãoqueeu tô

clareando”.Naquele dia, ela havia recebido uma intimação para comparecer a uma

audiência do Juizado Especial Criminal da cidade de Vespasiano – local onde está

localizadooestabelecimentoprisionalquecumpriupartedapena.

Fernandacontaqueficoutempos“foradesi”naprisão.Muitosfalaramqueela

tiravaaroupaemmomentosinadequados,brigavacomtodomundoetinhacarade

poucosamigos.Umdia,aindapresa,quandoestavapiordoqueocostume,pediupara

iràenfermaria.Deprontoteveoseupedidonegadoe,apósinsistir,ouviudeumcerto

agente“vocêtemquemorrerveado”.

Acontecequeosdesdobramentosdessefatoforaminesperados.Fernandateria

que comparecer em juízo para responder pelo delito de ameaça cuja vítima era

exatamenteesseagentepenitenciário.NoBoletimdeOcorrência,ohistórico,escrito

emtrêslinhas,diziaque“oenvolvido1ameaçouoenvolvido2comosseguintesdizeres

‘depoisvocêvaiaparecermortoenãosabeporque’depoisdeameaçaroenvolvido2,o

envolvido1retiroutodaaroupa,ficoutotalmentepelado,eproferiupalavrasdebaixo

calãocontraoenvolvido2”.

Nadenúncia,adatade31deoutubrode2017marcaodiaemque“naUnidade

Prisional,odenunciadoameaçou,porpalavras,causarmalinjustoegraveàvítima[...],

agentepenitenciário”.Deprontonãoestava acreditandonas circunstâncias trágicas

daquela cena. Emqual contextopossívelum agente penitenciário,munidode força

institucionalesimbólica,sesentelegitimadoparaimputaraalguémsobsuacustódia

odelitodeameaça?Detentordomonopóliodaviolênciaemumaterrasemleisesentiu

injustiçado.

MeesforceiparatentarexplicaraFernandaasituação,noqueconsistiaofatoe

sobrequalepisódioelateriaqueresponderemjuízo.Indignada,encontrouresposta

paraasuaprópriaindagaçãoperplexa,“masporqueelesfazemissocomagente?São

mausmesmoné”.Fernandadissequelembravapoucodaqueledia,lembravapoucoda

maioriadosdias,naverdade,poispassavaboapartedotemposoboefeitoderemédios.

Segundocontou,emmenosdeumasemanaqueestavapresafoiencaminhada

paraumCentrodeReferênciadeAssistênciaSocial(CRAS)próximodapenitenciária.

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Lá,foirecebidaporummédico,umaúnicavez,que,compoucasperguntas,receitou

um certo remédio sem pestanejar. Tratava-se do denominado Levozine, um

antipsicóticoindicadoparacasosmuitoespecíficosdepessoasquetêmodiagnóstico

dadoençaeque,poróbvio,apresentainúmerosefeitoscolaterais.

DeacordocomasespecificaçõestécnicasdoLevozine,estemedicamento“está

indicadonos casos emquehajanecessidadedeumaaçãoneuroléptica e sedativa em

pacientespsicóticosenaterapiaadjuvanteparaoalíviododelírio,agitação,inquietação,

confusão, associados com a dor em pacientes terminais”. De acordo com Fernanda,

“gritar”e“tirouaroupa”sãocomportamentosquelhesãoabsolutamenteestranhos,

dosquaisnãoconsegueselembrarouexplicarasrazões.

Pouco a pouco os episódios envolvendo as confusões vivenciadas no seu

períododocárcereforamganhandooutrasinterpretações.Lembraquenãoeraaúnica

do pavilhão a fazer uso prolongado e forçado de medicamentos psiquiátricos no

períododerecolhimento,masdurantetodootempoqueestevepresa,talveztenhasido

aúnicaaapresentarsintomasdeconfusãomental,alucinaçãoauditiva,excessodesono

e tontura. Fato é que Fernanda não possuía o diagnóstico de quadro psicótico que

ensejasseousodestamedicação,oquetrouxe,quandodeseuusoindiscriminado,uma

sériedeperturbaçõescomportamentaisementais.Aomesmotempo,parardetomar

oremédiotambémnãoeraumapossibilidade,poisquemserecusassepoderiareceber

umaadvertênciadosagentes.Atutelasobreoseucorpo,agora,erafeitademaneira

compulsóriaetinhaumquêdecontençãoquímica.Apatologizaçãotinha,finalmente,

encontradomeioseficazesdefazervalernaqueleespaço.

Peloprocesso,Fernandajáhaviacomparecidonaaudiênciapreliminar,masnão

lembravadessefato.Adatacorrespondiaaotempoqueestavapresa,masapesarda

suaassinaturanodocumento,juroudepéjuntoquenuncaviuacaradojuiz.

Agorajáestavaemliberdadeenãoiriasozinhaparaaaudiência.OFórumda

cidadedeVespasianoficaemumaruaresidencialesuaarquitetura familiar lembra

umacasadointeriordeMinas.Fizemosotrajetodecarro,ouvindomúsicaefingindo

que a vida não tinha um pouco de trágico. Chegando lá, uma grande árvore de

jabuticabaocupapartedalateraldoFórum.AssimqueFernandafitaaárvore,lembra

deumdiaquechegouairnaquelelocal,disse“foiaquimesmo,lembroporcausada

árvoredejabuticaba;osagentescomiamjabuticabaotempotodoecuspiamnochão”.

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Completou, dizendo que ficou aguardandomuito tempo dentro do carro de

transporte penitenciário, até quando um dos agentes a entregou em mãos um

documentoepediuqueassinasse.Premidapelasalgemas,pelotempoepelassementes

dejabuticaba,Fernandaassinaodocumentosempensarduasvezes.Temposdepois,

descobrimosquetaldocumentosetratavadasuaoitivanaaudiênciapreliminareque

oagentequedirigiaocarroeraoagentequeaacusavadeameaça.Atéhojeasentença

deFernandanãosaiu.Foradacadeiae longedosmedicamentos, temlevadoavida

assim,comoquemserecuperadeumalongaviagem.

A relação entre uma suposta preocupação com a saúde, a patologização e a

prisãoapresentaumoutroefeitoquandonosatentamosparaaassociaçãorotineira

das travestis com infecções sexualmente transmissíveis. Todas, ali, são vistas como

portadoras em potencial da doença e, quando não recebiam um tratamento

discriminatório por parte da gestão, não recebiam tratamento algum quando

apresentavamosprimeirossintomas.

O que pude perceber é que existe uma certa condescendência por parte da

gestão prisional no que toca à possibilidade de contágio lá dentro. Por certo, essa

possibilidade não é restrita à Ala e deve ser considerada uma realidade de toda a

prisão. Afinalde contas, não são só as travestis e os homossexuais que fazemsexo

quando privados de liberdade. Mas, essa condescendência tem como efeito o

estabelecimentodedinâmicasmuitoespecíficasnopavilhão.

Carla, certa vez, comentou comigo que quando foi ao ambulatório, omédico

disse que estava tendo um surto grande de HIV no pavilhão. Perguntei pra ela do

porquêdosurto,seelaatribuiissoaalgumacausaespecífica,quandomerespondeu“o

povotátransandosemcamisinha...outrodiaeutomeiumsusto,chegouumabichade

19anospramimedisse‘Carla,eusousoropositiva’”.Emtomdelamento,completou

“a bicha tem 20 anos, Júlia, e pegou isso dentro da cadeia”. Carla continuou

conversandocomigosobreoassuntoedisse“tádifícildetomarocoquetelládentro...

temgentequetomadiasimedianão”.

Quandopergunteisobreacamisinhaeafrequênciaquearecebemdentrodo

pavilhão, Carla disse que éumamédiade quatro por semana,mas quemuitos não

usam.Carlameexplicouquemesmosedercamisinha,muitasvezesaspessoasnão

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usamporquefalamqueserelacionamsócomoparceiroque,nessescasos, “jáestá

morto”.

Estarmortodentrodaprisãosignificaqueapessoajátemamenina,ouseja,que

setratadeumapessoaquejápossuiovírus.Carlamerelatoualgunsdiálogosquejá

tevecomoscolegasdeceladopavilhão,emqueelesafirmamque“nóisjámatouquem

tinhaquematarmesmo”.ParaCarlaopiordessassituaçõeséquandoapessoapassa

malporquesobrecarregou298ooutro.Nessescasos,explicouquecabeaorestantedo

pavilhãobombar299a cadeiaatéalguémresolver tirá-losde lá e encaminharparao

atendimentomédico.

Adespeitodetodaessacomplexidadederelaçõesefaltas,amaiorpreocupação

dagestãogiravaemtornodotrânsitodeumúnicoalicatedeunhaemtodoopavilhão.

Porrazõesdesegurança,sóerapermitidoumalicatedeunhanopavilhãointeiro.Esse

alicateteriaquedarcontadefazeraunhadas30-35travestisquecompunhamaala.E

foraessealicatequemobilizouacriaçãodeumsalãodebelezasnopavilhão.

Lembroque,emumasegunda-feiracinzadedezembro,apesardeconvictada

impossibilidadedeconciliarasvisitascomaescritadadissertação,volteinopavilhão

maisumavez.Dessavezomotivoeramaisoumenosválido:foraconvidada,pelajuíza

dacomarca,paraparticiparda“cerimôniadeaberturadoSalãodaPPJSA”.Oconvite

detãoinusitadomedeixousemsaberaocertooqueesperar.

Segunda-feiraédiadeentregadekitparaaAlae,porisso,apenitenciáriaestava

movimentada.Na saladeesperaparaoprocedimentode revista, estavaRuth,uma

donadecasa300conhecidadaregiãodaPampulha,queestavaaliparaentregarositens

paraomaridopreso.Comenteicomelaqueiríamosparaacerimôniadeaberturado

salãoeela,muitointeressada,perguntousepoderiaparticipartambém.Dissequenão

poderiagarantir,masquecontariaosdetalhespraeladepois.Nessahora,umaagente,

altaecomasunhaspintadasdevermelhosangue,começouaconversarconosco.Olhou

pramimedissequeeupareciamuitoumasobrinhasua,masaúnicadiferençaeraque

eu era um pouco mais baixa. Disse para ela que gostaria, inclusive, de ter alguns

centímetrosamaisdealtura.Elalogomedesestimulouaisso,dissequeéterrívelser

298Sobrecarregarnessecontextosignificaaumentaracargaviraldoparceirodeformasignificativapelapráticasexualsempreservativo.299Bombarsignificafazerbarulho,baternacapadacelaparachamaraatençãodosagentes.300Donasdecasasãotravestisquepossuemcasasondemmoramoutrastravestis.

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tãoalta,poisnãopodeusarsalto,senão“ficaparecendooutracoisa”,direcionandoo

olharparaRuthqueestavalogoaomeulado.

Apósocomentáriosórdidoseguimosparaacerimônia.Nofinaldeumasubida

íngreme, o pavilhão rosa claro chama a atenção. Lá dentro, quatro fileiras de seis

cadeiras brancas, de plástico, formam a plateia. Bem em frente, umamesa grande,

forradacomumtecidoxadrezvermelhocomseisbíbliasutilizadasparademarcaro

local.Circunscrevendoasextremidadesdasala,bemencostadasnaparede,11cadeiras

brancasestavamdispostasumabemaoladodaoutra.

Apóstodasasautoridadesseacomodarem,chegamastravestisvestidascomo

vermelho sangue do uniforme. Todas entram cadenciadas, bonitas, com as unhas

pintadaseoslábiosdecorrosachoque,easmãoscerradasparatrásdocorpo.Oolhar,

comosempre,baixo,fitandoochão;“conheçotodaspelonome”,logopenso.

Apedagogainiciaacerimôniae,comomicrofoneemmãos,anuncia“estamos

aquireunidosparaainauguraçãodesseespaçoquevaialémdabeleza;maisdoque

tudoaqui,celebramosumespaçodesaúdeedeprevençãodedoenças”.Apósessafala

pontual,odiretorgeraldapenitenciáriaagradeceprimeiroesobretudo,a“deuspor

essedia”.Disse,deformasucintaqueaqueleespaçorepresentavaumaoportunidade

dereinserçãosocial.Aoladodele,umadvogadodaOrdemdosAdvogadosdoBrasil,

figura jáconhecidadosmeusdiasemcampo,sobretudopeloseuhábitopeculiarde

falardastravestisempalestraseeventosqueparticipa.Talfatonãopoucasvezesme

foirelatadocomcertodesconforto...Comrazão.

O advogado, devidamente vestido comseu terno e sua gravata cor de caqui,

carreganalapeladireitaumterçoazulbebê,fixadonoternocomaimagemdejesus.

Todo aquele espaço, a vestimenta, os personagens e as falas, todos denotavam a

presençaproblemáticaerelacionaldareligião,oumelhor,daigrejanaprisão.Erauma

metáforaperfeita,umafiguradelinguagemdemonstrativadeumagamaderelações

queseperfazianaquelelugar.Eraamaterializaçãodainstituiçãomaispresentenodia

adiadaprisão:aigreja.

Ajuízadacomarcafoiapróximaasepronunciar,muitoséria,disse“namesade

juiznãocheganadade flor;chegasóoquedáerradonasociedade”.Muito incisiva,

apontaaresponsabilidadequepossuinaexecuçãodepenade4.000pessoasdaquela

comarcaeoseucompromissona“devoluçãodepessoasàsociedade”.Devolução,como

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aquilo que fazemos com mercadoria, pensei. Pontua que, desde julho de 2019, os

“holofotesestãovoltadosparaa Jason”,devidoaotermo firmado judicialmenteque

prevêatransferênciadetodosospresosLGBTdaregiãometropolitanaparalá.Diz,

assim,quenãoimportamuitoseacreditaounãoemressocialização,massimquevai

fazer de tudo para colocar esses4.000 presos trabalhando. Continuou dizendo que

paramuitosabelezaétidacomoalgofútil,demenorimportância,masquealiabeleza

significavaautoestima.Disse,complacente,queentendiaoqueastravestispassavam,

postoquesempreestudouem“escolademadame”eque,“apesardapernacabeludae

docabeloondulado”,saiudeláfortalecida.Ela,quenão“tinhacaradepatricinhaem

uma escola de patricinha”, afirmou categoricamente que também fora vítima de

discriminaçãoequeéexatamenteissoqueatornaraumapessoaseguraparalutarcom

outraspessoaspeloqueécerto.Finalizoudizendoquealiéumespaçoquevaialémde

beleza,masserelacionacomhigiene,saúdee,sobretudo,prevençãodedoenças.

As falasqueseseguiramdali,semexceção,agradeceramadeusereiteraram

queaqueleespaçovaiparaalémdabeleza.Adefensorapúblicaserestringiuadizer

que, nos muitos anos de profissão acumulada, tinha a convicção que o

desconhecimentodo“impériodalei”eraagrandecausadoaprisionamentoemmassa.

Relatou,emtonsdeabsurdos,quepercebeuissonodiaqueatendeuumpresoque“não

sabiaqueoquetinhafeitoeratipificadocomocrime;precisoqueapessoaconheçaque

o que ele fez é crime”. Para resolver esse problema, sugeriu aulasde direito penal

obrigatóriasnasescolas.

Nãomeentendammal.Adevidaesterilizaçãodofatídicoalicateé,semdúvidas,

umamedidaimportante.Contudo,questionoatéquepontoapompaeagrandiosidade

do evento não se relaciona mais com os recém adquiridos “holofotes” para a

penitenciária do que uma preocupação real com a saúde das travestis. Oumelhor

dizendo,atéquepontofalardesaúdeparatravestiséfalardeinfecçõessexualmente

transmissíveis.Éfalarparaalguémquenãosabedesi.

Aqueleespaço,aquelasdinâmicas,meparecemorganizadasemfunçãodeuma

certarepetiçãoclassificatóriaepatologizantequeé,notadamente,difícildedesmontar

–aindamaisemambientestotais.Afinaldecontas,“tudoestáorganizadoemfunção

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dareiteraçãoclassificatória.Aspercepções,asperguntas,osolhares”301e,também,as

açõesepolíticascriadasnopavilhão.Fuipercebendo,assim,quefalávamosotempo

todo de um conhecimento sobre a verdade de um corpo, sobre a verdade de uma

experiência.Conhecimentoessereiteradoeproduzidoatodomomentonaprisão,que

produzpatologizaçãoecriminalização.

*****

Violência institucional, hipersexualização e patologização são elementos que

sãoarticuladosnacenadecriminalizaçãoqueocorredentrodaprisão.Taiselementos,

por suavez,dizemmuitodedinâmicasprópriasdo contextoprisionalque,quando

coordenadaspelasnormasdegênero,produzemacriminalizaçãodetravestis.

Osilicone,oimpedimentodotrabalhoexternoeaimpossibilidadederemição

depenaestãodiretamente imbricadosemumapermanênciamaiordastravestisno

regime fechado. Ao mesmo tempo, estando no regime fechado, submetem-se à

exposição reiterada da coordenação de elementos, como a violência institucional, a

hipersexualizaçãoeapatologização,quesearticulamnaproduçãodacriminalizaçãoe

serelacionamcomasvigilânciasdegênero.

Nessascenas,aviolênciainstitucionalprecisaserapagadaparacederlugarà

faltadisciplinareàindisciplina.Ahipersexualizaçãoarticulaacenaemquesetorna

necessáriomostraropeitoparaobterumpedaçodepão.Paraprocederaoapagamento

dessa violência institucional, valem-se de artesanatos quebrados e de gritos no

pavilhãoparasubsidiaraaberturadeumprocedimentoadministrativodeapuraçãode

faltagrave,sobaalegaçãodeindisciplina.Longedeapurar,asaudiênciasdoconselho

disciplinarmaterializamuma sentença contraa qual não há escapatória, posto que

levadaacabopelosprópriosagentesinstitucionaisperpetradoresdeviolência.

A fatídica frase “tem que sair daí seu veado safado“, proferida em um

procedimento de conferência, produz indignação, mas precisa ser apagada para a

indisciplinasematerializar.Aviolênciainstitucionalétraduzidaemautoflagelo,posto

queumsupostomovimentode“bateracabeçacontraaparededeformareiterada”é

301PRADO,op.cit.,2018,p.65.

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apontado como responsável pelos cortes no rosto de uma travesti. Em juízo, a

materializaçãodaviolênciainstitucionalpodesedaremumdepoimento,porexemplo.

Mas, ao mesmo tempo, sua desmaterialização é levada a cabo pela ausência de

perguntas e encaminhamentos por parte da juíza: agem como se nada tivesse

acontecidoe,comisso,produzemumaversãodosfatosquetemcomoconsequênciaa

criminalizaçãodastravestis.Comafaltahomologada,maistempoemregimefechado.

A criminalização ainda está diretamente relacionada com patologização das

experiênciasdetravestis.Osefeitoscolateraisdacontençãoquímicalevadaacabopelo

uso indiscriminado de medicamentos antipsicóticos são apagados. No Boletim de

Ocorrênciarestadizerque,apósaameaça,“oenvolvido1retiroutodaaroupa,ficou

totalmente pelado, e proferiu palavras de baixo calão contra o envolvido 2”. Aqui, a

patologizaçãoproduzaindisciplinaparacriminalizar.Emnomedeumapreocupação

àsaúde,pautam-seasaçõesnopavilhãoreiterandoofantasmadaAIDSnocorpoda

travesti.Longedeconsistiremumapreocupaçãorealcomasaúde,éessefantasmaque

afastaostécnicosdalidadiáriacomastravestiserestringe,assim,aspossibilidadesde

construirumcuidadoqueestejaemrealconsonânciacomasdinâmicasprisionaisede

gênerodaqueleespaço.

3. Terceiroato:areincidência

Deveriaserumaquarta-feiraquandorecebialigaçãodeMarta,umatravestique

trabalhavanasecretariadeumaONGdacapital.Aconheciadeoutrasocasiõese,do

outroladodalinha,perguntavasepoderiareceberduastravestisqueacabaramdesair

dacadeia.Porsorte,estavaporpertoedeprontoacerteioencontro.

UmadelaseraaJoana,deestaturabaixa,pelemuitobrancaeumcurtocabelo

vermelho.Aoutra,Isadora,combraçosdefinidoseoscabelosloiros.Asduaspareciam

ter percorrido longas distâncias, chegaram com roupas puídas e chinelos nos pés.

Nenhumpertenceemmãos.Deprontoasacomodeiporali,ofereciáguaetenteideixá-

lasconfortáveis.Nãoconheciao tamanhodahistóriadecadauma,apenasque fazia

menosde12horasquehaviamsaídodacadeia.Oquepensavam?Sentiamfome?Sono?

Desejo?

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Inundadadeperguntas,nãopergunteinada.Oupergunteimuitopouco.Comoli

certa vez, perguntar demais pode ser sinal de um furor classificatório também. A

primeiraaconversarcomigofoiIsadora.Mãedeumameninadenovemeses,casada,

moravaemumacidadedointeriordoestado,300kmdacapital.Aquelaforaasegunda

vezquefoipresa,masaprimeiraquetevequesertransferidaparaaAla.Antes,havia

cumpridopenanacadeiapúblicadasuacidadenatal.Omotivodaúltimaprisãoforao

furtode“1(um)hidrante;1(um)cremedepentear;1(uma)ampoladehidratação;1(um)

cremedental”.Ficoupresadefevereiroajunho.

Joanatinhaumahistóriaparecida.Outalvezoqueasaproximavasejaofatode

seremestrangeirasnaquelas terras.Pelosdepoimentosprestadosnadelegacia, José

estavaemseucarroquandofora“surpreendidoporumindivíduo,travesti,decabelos

vermelhos, trajandoblusadecorazuleshorts curtos,que lhepediudinheiroe tentou

realizarumprogramacomele”.Indignado,Josécontaquetrancouasportasdocarro,

masquandopercebeuhaviaperdidoR$100.Apósessemomento,teriaidoatéapolícia,

queprontamente localizouJoanaedeuvozdeprisão.Aversãode Joanapareceser

outra,disseque “realizouumprograma sexual comumsenhor, coroa,no interiordo

carrodele,sendoque,aofinal,esteserecusouempagar,retirandoodeclarantedocarro

e jogando-o no chão”. Joana também era do interior e havia chegado na Ala por

transferênciaapósunsproblemasquetevenapenitenciáriadesuacidade.

Semdinheiroparapagarapassagemdeônibusdevoltaparaacidadedeorigem,

oplanodasduasapartirdali eradormirna ruaaté conseguir juntardinheiropara

voltar para casa. A urgência da rua provavelmente iria impor outras demandas e

prioridades – na rua, estariam mais expostas ao encarceramento. A passagem de

Isadora para casa custavaR$35 e a de JoanaR$45 e o valor não era cobertopelos

centrosdeapoiodomunicípio.Parecequeessascoisasnãosãoporacaso,oualgumas

vezessão,mas,naquelediaconseguimoscomprarapassagemdasduas.

Naquele dia, sobretudo, entendi um pouco melhor o sentido da palavra

prevençãoeaurgênciadeexpandirmosnossovocabulárioquandosetratadecombate

ao encarceramento. Entendi também como desconhecemos os percalços e as

dificuldadesqueastravestisenfrentamforadocárcere.

ÉAnykyquenoslembraqueastravestis“saemdaprisãoenãotêmnada;não

têm uma casa para apoiar; daí, vão pra rua, fazem uma coisa errada e voltam de

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novo”302.Foradocárcere,precariedade,prostituiçãoemigraçãoaindapodemsefazer

presentes.Contudo,essecenáriotomaproporçõessingularesquandoastravestistêm

queenfrentarpenasrestritivasdedireito,comoaprestaçãodeserviçoàcomunidade,

ouquandodeumaprisãodomiciliarprecisasesubmeteràmonitoraçãoeletrônica.Em

todasessasmedidas,aimpressãoqueficaéquesepressupõeumavidaquenãoexiste.

3.1. Acriminalizaçãopelasmedidasalternativasaocárcere

Aquela seria a primeira vez que faria uma audiência sozinha. Ansiosa, havia

dormidopouconodiaanterior.OcaminhoparaoFórumélongoetriste.Acidadefica

a50kmdeBeloHorizonteeabrigaasegundamaiorpopulaçãocarceráriadoestado.

Dentre as unidades prisionais abarcadas, está penitenciária responsável pelo

aprisionamentodealgumastravestis,bichase seusmaridos.Cartórios,delegaciase

escritóriosdeadvocaciadisputamespaçocomvendinhasecomércioslocais.Quasenão

háárvoresnasruaseoclimadacidadeésempreabafadoequente.Carrosrobustose

pintadoscomascoresdoSistemaPrisionaldoEstadoocupamosespaçosedãoatônica

aumlugarjálargamentemarcadopelaprisão.

A audiência estava marcada para às 14h. Cheguei um tempo antes e pude

observar um pouco o lugar. No geral, as instalações do Fórum são feias e pouco

acolhedoras – como têm que ser. As paredes cinzas e o chão de cerâmica branco,

etéreos,me remetiam a hospitais. Na sala de espera o teto é feito de ummaterial

transparenteque,ao invésdeamenizaroclimado lugar,criaumefeitoestufa,pois

impedequeosraiossolarespossamsair.Ládentro,atemperaturaéaindamaisquente.

Estava afundada nas cadeiras quando uma secretária chamameu nome. Ela

dissequeaminhaaudiênciaaindanãotinhacomeçado,masajuízaestavaprecisando

falar comigo. Entrei na sala e pude sentir o contraste dos lugares na pele – a

temperaturaeramuitobaixapeloarcondicionadoligado.Ládentroencontreiajuíza,

sentadaemfrenteaocomputadoreumapessoavestidadevermelhoemfrenteaela.

Estranheiacena:nadadopromotornemdadefensorapública.Apenasasduas,ali.Era

praserumaaudiência,pensei.

302Trechodecadernodecampo.

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A juízavemaomeuencontroediz“Júlia,oqueeu façocomessecaso,ein?”.

Assusto com a interpelação e olho com calma para a pessoa de vermelho. Cabelos

pretoselongos,umafranjaperfeitamenteajustadaàesquerdadoseurostoescondia

partedeseusolhos.Asmãos,grandesebonitas,estavamentrelaçadasepremidaspela

algemaapertada.Lembrodetermeperdidoumpoucoolhandoparaassuasmãos.Nas

unhas,umesmalterosachoquepareciadisputarespaço,seimpunhaesinalizavaum

certo fiodevida.Fui longee comecei apensaremcomoépotentenão se renderà

prisão.Eissoastravestisfazemmuitobem.Semaquiam,secuidam,semprecomas

unhasdevidamentefeitas.Éimportantenãoseperderládentro,pensei.

Olheifirmenosseusolhosepergunteioseunome.“MeunomeéCaio”,disse.

Retruquei“vocêtemalgumoutronomequequerserchamada?”.Deprontodisseque

não,quenão tinha “dessas coisas”; continuei “mecontaoqueaconteceucomvocê,

Caio”.Caiodissecalmamenteque,antesdeserpreso,nãoera“daquelejeito”,masque

ficou“assim”dentrodaprisão.

Na gramática legal, digamos assim, o benefício da prisão domiciliar com

monitoraçãoeletrônicadeveseguiralgunsparâmetroscondicionaisàmanutençãodo

benefício.Omais simplesdelesdiz respeitoànecessidadedepossuirumendereço

residencialfixoenãopoderausentar-sedecasaemdeterminadosdiasehorários.Em

umprimeiromomento,ocumprimentodetalcondiçãopodenãoparecerproblemático.

Afinal,ésónãosairdecasa,certo?

Nãonecessariamente... Caio contaquequando teveobenefíciodadomiciliar

concedida,colocouoendereçodecasacomoreferência.“Acontecequemeuspaisnão

sabiamqueeuestavaassim...quandomeviramchegaremcasalogomeexpulsaram.

Falaramquenãoiriammeaceitar”,completou.Ajuízaintervémediz“ÉissoJúlia.Eu

coloqueiatornozeleiranele,maselerompeu...Eusóprecisodeumendereçofixopra

liberá-lo,eeletámedizendoaquiquenãotem”.

VolteiaatençãoaCaio.Fizalgumasperguntastentandoacessarumacertarede

deconfiabilidadequepoderianãoserinteligívelparaajuíza.Gasteimeuvocabulário

nabuscaporumconhecido,umadonadecasa,algumgrupodebichasetravestisque

pudesserecebê-lo.Nãoadiantou...Caiosemontounaprisão,criouumasociabilidade

própriaque,atéaquelemomento,pareciacircunscreveroespaçodocárcere.Caiofoi

expulso de casa pela forma que performava gênero. Acontece que no seu caso, a

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produção de gênero ali estava diretamente relacionada com a manutenção de seu

encarceramento.

**

Diferente de Caio, Roberta conviveu bem com a tornozeleira por um certo

período de tempo.Na verdade, conviveu bempor exatosdoismeses. Pode parecer

pouco, mas concluir esse tempo com a tornozeleira é algo difícil de conseguir. A

precariedadedoequipamentoétamanhaque,aoinvésdepossibilitarumarealchance

de inclusão em sociedade, configura-se uma verdadeira armadilha. Um truque,

mecanismoeficienteparafazercomqueaspessoasvoltemparaacadeia.

Confesso que, quando conheci Roberta, não fazia ideia do funcionamento da

monitoraçãoeletrônica.Depronto,elameencaminhouumvídeoquediziaaofundo“é

issoaqui,Júlia,aluzroxanãoparadepiscareeunãoseimaisoquefazer”.Demoreium

poucoparaentenderademandadeRoberta.Aoouvi-la,sópensavanadificuldadeque

oaparelhoapresentava.Pediaelaquecalmamentemeexplicassetudoquesabiasobre

o equipamento e, do lado de cá, me comprometi a investigar. Disse, na hora, que

provavelmenteelasaberiamaisdoqueeusobreoqueeranecessáriofazer.

Basicamente,elatemtrânsitolivredasegundaàsexta-feira,de6hdamanhãaté

20hdanoite.Nosfinsdesemana,nãopodesairdecasa.Atornozeleiraéquasecomo

umGPSquesefixaemumendereçofornecidonomomentodacolocação,possuiquatro

luzesqueapitamemcircunstânciasespecíficas–ounão.Cadaluztemumafunçãoese

relaciona comdeterminada tarefa. Desde o apontamento para a falta de bateria do

equipamento, até comunicados de urgência e perda de sinal. Além de fornecer um

endereço,énecessárioregistrartrêsnúmerosdecelularesquesãoutilizadoscasovocê

fiquesemsinalpormaisdeumahora.

Além de Roberta, outras travestis reclamaram comigo sobre a

incompatibilidadedohoráriodoequipamentocomotrabalhosexual.LembrodeTati,

umatravestide1,80m,peitoslargos,cinturafinaelongoscabelospretos.Primária,foi

presaporumdesentendimentocomclientee,dentrodacadeia, ficoupoucotempo.

Lembrodequandomecontouquepediaàmãeparabaterohormônionofeijãoque

trazianavisita,eraoúnicojeitoqueelaencontrouparamanteras“curvas”quetanto

seorgulhava.Tatifoiumadasúnicastravestisqueconheciqueconseguiuficarosseis

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mesescomatornozeleira,semmaioresproblemas.Lembroqueelapassouporvárias

dificuldades,sobretudopelosdesentendimentosquetinhacomasoutrastravestiscom

quemmorava.

PossodizerqueTati,apesardospercalçoscomoequipamento,conseguiuficar

tantotempocomoequipamentodevidoacondiçõesmuitosingularesdesuatrajetória.

Ocorpobombado,apelebrancaeamoradiajuntoaumadonadecasapossibilitavam

atenderosclientespormeiodesites.Essetipodeprostituiçãoémuitoespecíficode

determinadaclassesocial,porassimdizer.Paraatenderdessaforma,énecessárioque

astravestistenhamumapartamentopróprioeumcertodinheiroemcaixa,postoque

oanúnciogiraemtornodeR$150porsemana,semcontarovalordasfotos,quepode

chegar até a R$500. A hora de Tati chegava a custar R$300 e foi exatamente a

possibilidade de atender clientes dentro de casa, ou seja, dentro do perímetro da

tornozeleira,quegarantiuumaaderênciasemmaioresobstáculosàmonitoração.

Contudo,trajetóriascomoaTatisãopoucas.Roberta,porexemplo,nãotinha

bombado ainda,ocorponãoeratãomarcadopelousodehormônioesuatransição

haviacomeçadohápoucotempo.Nãohaviafrequentadoaescolaetambémnãofazia

pista.Sempremuitomagra,comapelenegraelongoscabelospretos,Robertateveuma

trajetória de precariedade que teve o cárcere como o destino esperado. Quando a

conheci,jáhaviasidopresaoutrasduasvezescomapenas20anos.

Quandosaiudacadeiadessavez,colocouoendereçodamãecomoreferência.

EraumbarracãonaregiãodeNeves,quedividiacomoutrasquatropessoas:amãe,o

irmão, a avó e a cunhada. Me explicou que aquela já era a segunda vez que a

tornozeleiraapitava.Daprimeiravez,emmenosdedoisdiascomoequipamento,disse

teridoaosalãodebelezanofinaldasuaruaforadohoráriopermitido,“ninguémme

explicouoqueeupodiafazer”,completou.

Daquelavez,otrâmitefoimaisoumenosesse:assimqueoaparelhoficaroxo,é

necessárioligarparaumúniconúmerodetelefone.Robertadisse,contudo,quechegou

aficartrêshorasligandosemparareotelefonesempredavaocupado.Omotivo?Cada

númerodetelefoneabrangeummontantede3.000pessoasnacapitalqueestãocom

oequipamento,“euchegueiemcasaeligueisabe,estavatodasuadaecansadadarua

masfiqueiumtempãoligandolá;foisónaquintaousextavezeuconseguifalar”.Se

vocênãoentraemcontato comaUnidadeGestoradeMonitoração (UGM), isso fica

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registradonoseusistemaeemmenosde24helesligamumavezparacadaumdostrês

númerosde telefone disponibilizados. Caso apessoa não atenda, um comunicado é

encaminhadoparaodelegadodepolíciaprocederàrecaptura.

Robertamepediu,assim,queaacompanhassenaUGM.Dizia“comvocêláeles

vãoterpaciênciaparameexplicaroqueeuprecisofazerporqueninguémmeexplica

nada”.Marcamosdenosencontrarnocentroedeláseguiríamosapé.Eramarçoea

chuvanãodavatrégua.

Naqueledia,Roberta reclamavadedoresnascostas–perguntei seelahavia

dormidomale,rindo,merespondeu“équeeutenhoumabalaalojadaaquinascostas”.

Afastouamangadablusaememostrouolugar.Nãoconseguidisfarçarmeuespantoe,

tentandodescontrair,Robertamecontouqueoseucunhadobatiasemprenasuairmã

equeissoadeixavamuitobrava.Certodia,quandosuairmãestavagrávida,Roberta

saiu em defesa dos socos e chutes que o cunhado dispensava na irmã. Após esse

episódio,oseucunhadoteriaficadocomraivae,nasemanaseguinte,chegouatéacasa

ondeestavaedisparouseistiroscontraela,“eufiqueidoismesesemcoma,Júlia,dos

seistiroselessóconseguiramtirarquatrobalas.Umaestáalojadanaminhacolunae

seeutirarficoparaplégica,aoutratáaquinasminhascostas”.ParaRoberta,nãoerao

siliconequefaziaochãodurodaceladoer,massim,abalanassuascostas.

Deprontoimagineiquealiseriaolugar.Emumaruaíngreme,váriaspessoas

estavam em fila de um lado e do outro. Amontoadas e organizadas, tentavam se

protegerdachuvaforte.Olugarpossuiumaentradaúnicaeasaltasgradesbrancas

protegiam as pessoas com uniformes de agentes penitenciários que por lá se

encontravam.Comachuvaforte,entreirápidonoestabelecimentoe,aoolharpratrás,

vi queRoberta tinha ficado lá fora. Segundosdepois, um agente penitenciário com

pranchetanamãocomeçaafazeraleituradeumasériedenomesemaltoebomsom

– como se fosse uma chamada de escola. Quando ouviam o nome, as pessoas

amontoadas levantavamamãoeviamoportão seabrir.Entravamno lugarem fila

indiana.Braçoscruzadosparatráseolharcaído,fitandoochão.

Vi Roberta do outro lado da rua, se agrupando com o restante das pessoas.

Deveriaserumas15h40eohoráriomarcadoera16h.Entendi,ali,quepertencíamosa

lugaresemundosdiferentes.Amim,branca,performandoumseradvogada,restava

meprotegerdachuva.ARoberta,restavaorelentoeomolhado.

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Nessahora,fuipegaporumconflitomentalinterminável.Poucofamiliarizada

comolocal,minhaparcaexperiêncianaadvocaciaeadesconfiançaemtornodesses

ambientestotaismeinibiramdepedirqueachamassempelonomesocialnahorada

chamada.Seráqueissoeraumapreocupaçãominhaoudela?Afinaldecontas,oque

eraumnomepertodachuva,daspessoasedatornozeleira...

Tenteimefamiliarizarcomoespaçoefingirdesconhecimento.Nesseslugares,

nãopoucasvezes,oshomenssesentemautorizadosameoferecerexplicaçõessobre

tudo.Tenteiextrairomáximodedetalhesdaqueleespaço.Aomeuladodireito,uma

mesaeumapessoaquenãosaiadotelefone.Quatroagentespenitenciáriosfazema

supostaguardado local e,no ladodireito,umcorredor inacabável.Perguntei aum

agentecomofuncionavaotrâmitedatornozeleirae,deformaríspida,oouvidizerque

sóexistemdoismotivosparaoequipamentomudardecor:umquandoapessoaevade

olocal,outro,quandoperdeosinal–nocasodesteúltimopodesertambémquandoa

UGMprecisacontatá-lo.

Robertaficounachuvapor25minutos.Quandofinalmentetomeiadecisãode

solicitaroseunomesocial,ouvi“FernandoLopes”emaltoebomsom.Meresigneie

abaixeiacabeçajunto.Robertafoiencaminhadaparaofinaldocorredorextensoeeu

fuiorientadaasubiroutrasescadas–entendialiquenãopoderíamosficarnomesmo

espaçosozinhas.

Noandardecima,entramosemumasalacomumascincopessoas, todasem

frenteacomputadoreseusandoaquelasroupasverdemusgoinsossas.Sentamo-nos

na mesa de um agente, que logo olhou pra mim e disse “em que posso ajudar?”,

cordialmente.RespondiqueeraadvogadaeamigadeRobertaequeestavaalipara

entenderosmotivosdatornozeleiradartantoproblemaemtãopoucotempo.Nessa

hora,oagente,mudouaexpressão,pegouopapelqueRobertacarregavanamãoe,em

silêncio,fitouateladocomputadorporumcertoperíododetempo.

Osilênciofoirompido.CompoucaspalavrassevirouaRobertae,comomapa

namão, disse “essa parte aqui é sua casa ainda?”; ao que ela respondeu “sim, é o

quintal”.Compoucaspalavrasoagentedisse“é, vou terqueaumentar suaáreade

extensão;desse jeitosevocê fornoquintalnasuacasavaiconstarcomoevasãode

área”.Aquelaconversaeratudomenosbanal.

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OagenteinsistiaemformalizaraocorrênciadeRoberta“essaésóasegunda,

doutora, elaainda temmaisuma; sóprecisa ficarquieta agora”. Insistiqueelanão

poderiaserpunidaporumerrodelese,comalgunsargumentos jurídicos,oagente

concordouemnãoanotaraquelaocorrência.

Nãoimaginariaqueteriaquevoltarnaquelelugartãopoucotempodepois.Era

umdomingo,21h.Lembrocomexatidãododiaedahoramaispelasensaçãoqueofinal

dasemanacarregadoqueporteranotadoemalgumlugar.Omeucelulartocoueo

númeroquechamavaeradesconhecido.Dooutroladodalinha,umapessoacomvoz

de choro perguntou “Dra. Júlia?”. Gelei nesse momento. Respondi que sim e logo

perguntei quem falava, “aqui é a Simone, mãe do Fernando, levaram meu filho

doutora”.“Fernando?”volteiapergunta.“Sim,aRoberta”.

Nãopodiaacreditar.Tentandoaparentar calma,pediparameexplicaroque

haviaocorridoeorelatofoimaisoumenosesse.Amãedissequepassouodiainteiro

comRoberta,queeraaniversáriodotioequeelasficaramjuntasotempotodo.Contou

quequatropoliciais,“semroupasdepoliciais",bateramnaportadacasadelae,sem

pedir licença, foram entrando perguntando onde estava o filho dela. A despeito do

sustocomasituação,omaiorincômododamãedeRobertapareciatersidoacompleta

violaçãodesuacasa,desuaintimidadeedoseufilho.“Elesentraramcomosefossem

donos da minha casa, doutora. Chegaram chamaram meu filho de bandido e se

recusaramadarqualquerinformaçãosobreondelevariamele.Meajudadoutora,estou

desesperada”.

OuviatentamenteoseurelatoemecomprometiaencontrarRoberta.Assimque

desliguei o telefone, entrei empânico.Não fazia ideia do queprecisava fazer, onde

deveriair,quemdeveriaacionar.Meculpeiumpoucopelaingenuidade.

Nodiaseguinteacordeimais cedodoqueousual esegui atéa rua íngreme.

Dessaveznãochoviaeaspessoasagrupadasnopasseiopareciammenosurgentes.

Perguntei pelo mesmo agente que na outra semana havia me recebido. Devo ter

esperado uns 30minutos até que decidi simplesmente ir até lá. Pronto, ávida por

informações,ouvi“oseuclientedeuproblemadenovo,doutora?”.Ríspida,respondi

queonomedelaéRobertaequeeuprecisavadeinformaçõessobreoseuparadeiro.

Merecuseiadizeremvozaltaseunomederegistroe,apenas,estendiamãocomum

pedaçodepapelcomosdadosnecessários.

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Após segundos no sistema, ele me diz que ela tinha violado o perímetro

novamente.Ohorário?20h35.Eomotivodaprisão?Tentaramcontatá-lapelonúmero

fornecido e ela não atendeu. Só depois descobri que o celular de sua mãe havia

quebradonomesmodia.Comopodemandarmosrecapturaralguémporumtelefone

quenãoatende?

Desolada, o agente tenta me passar algum conforto, “o que as pessoas não

entendem,doutora,équeatornozeleiraéaprópriacela”.Saídeláarrasadaelogoliguei

parasuamãe,expliqueiasituaçãoedissequeteríamosqueaguardaraaudiência.A

mãe perguntou “você vai acompanhar meu filho, doutora? Não sei o que fazer”.

Respondiquesim.

Dois meses depois a audiência estava marcada. Uma das únicas coisas que

lembrodessediaédoamarelodosolhosdeRoberta.Elaestavajuntocomoutrastrês

travestisnacelaqueficaemumaespéciedeporãodoFórumdacidade,emisolamento

completo.Naluzdosolseusolhosreluziamumamarelopreocupantee,comasroupas

vermelhas, estava mais magra do que o normal. Na audiência, tentei encontrar

justificativasparaoinjustificável:35minutosqueculminaramnoretornoaocárcere.

Ouvi, da Promotoria, que “35 minutos pode ser o tempo necessário para comprar

drogas.Maseuacreditoquenãofoi,massevoltaraaconteceraminhamanifestação

seráoutra”.

VaifazerumanoagoraqueRobertasaiudacadeiasematornozeleira.Aúltima

vezqueavi,tinhasidoexpulsadecasaeestavavendendobalasnosinalparaconseguir

algumarenda.Dessavez,veioatéomeuencontroabaladaporumepisódioquehavia

ocorridocomelarecentemente.Nuncaavitãotriste.Mecontouque,andandonarua,

passounaportadeumaescola,quandoalguémjogouumbaldedeáguaemcimadela.

Contouqueficoutãoindignadacomtamanhahumilhaçãoquefezquestãoderegistrar

umboletimdeocorrênciasobreofato.AlémdeRoberta,atrajetóriadeJadeparecia

reduziraspossibilidadesdereconstruirsuavidaforadocárcere.

HojefoiaaudiênciadaJade.Marcamosdeencontraràs13hnaportadoFórum

e,nohoráriomarcado,láestavaelaaguardandonaporta.Medeuumabraçoapertado

e,fitandoseusolhosverdes,dissequeestavafelizemfinalmentevê-laforadacadeia.

No dia 28 de outubro de 2019, Jade ainda estava presa. Naquela data, havia sido

anunciadoopróximopresidentedoBrasil.Jadedisseque,naqueledia,acadeiadormiu

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diferente.Assimque foraanunciadaavitória,osagentespenitenciários foramatéo

corredorondeestavapresa juntocommaisduasbichas. Jogaramspraydepimenta,

bateramo cassetetenasgradesem tomde festa, “foram lá zoar comanossa cara”,

completou.

Aquelaaudiênciaseriaaprimeiraaserfeitanoâmbitodaexecuçãodesuapena.

Quandoéassim,uma listacomosnomesdaspessoasécoladanaparede lateraldo

corredor.Éofamoso“pregão”.Semoseunomederegistrolá,meresigneiapedirpara

aassessorado juizqueretificasseapauta.Semmaioresproblemas,onomede Jade

finalmenteestavalá.

Entramosemumasalafriae,namesaaofundo,estavaapenasopromotoreo

escrivão. Sem o juiz, ouvi “estou adiantando aqui, vamos ir resolvendo” disse o

promotor.Apontuaçãodetãoinesperadamedeixousemação,esemaçãomeresignei

aconcordarcomacabeça.Fatoéqueaaudiênciasedeuporencerradasemapresença

dojuiz.

AsentençadeJade:prestaçãodeserviçosàcomunidadeporseismeses.Fomos

orientadasaseguiratéofinaldocorredorparajáagendarocomeçodocumprimento

damedida.Chegandolá,aassistentesocialolhadetidamenteparaJadedecimaabaixo.

Depossadesuacaneta,começaasperguntaspassapelonome,endereço,telefone.Jade,

quenãotinhaamaioriadessascoisas,dáoquetem.

Logodepoisaassistentesocialfala“vamosvercomovamosfazercomvocê...só

temosinstituiçõesreligiosascadastradasporaqui;vamosterquetecolocaremuma

dessas”.Jade,resignada,acenapositivamentecomacabeça.Saímosdeláenuncamais

avi.Sepudesseapostar,diriaqueelanuncadeuascarasporlá.

*****

Atornozeleiraeletrônicaeaprestaçãodeserviçosàcomunidadesãoelementos

quesearticulamadinâmicadecriminalizaçãoforadaprisão.Poróbvio,prostituição,

migração,precariedadenãoseausentam,masmeinteressaapontarcomoasmedidas

alternativas ao cárcere participam ativamente na articulaçãoda criminalização. Em

ambasascenas,aproduçãodegêneroestárelacionadadiretamentecomamanutenção

doencarceramento.

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Asdinâmicasdatornozeleiraeletrônica,asunhaspintadasderosa,oscabelos

pretos e longos e a imposição de um endereço fixo articulam-se e produzem a

criminalizaçãonovamente.Umaligaçãonãoatendidaeumacasalocalizadaemuma

região periférica, habitada por pessoas negras, pode articular a criminalização e a

recaptura.Aomesmotempo,umaadvertênciaporsupostaevasãodaáreadeextensão,

quando articulada com a presença de uma advogada, visibiliza os erros do

equipamentoea falibilidadedessesistemanoquetocaàexecuçãodepena,sejaela

definitivaouprovisória.Atornozeleira,também,alteraasdinâmicasdecriminalização

aosercoordenadacomprostituição,raçaeclasse.

A tornozeleira, em vista disso, é um elemento que articula a cena de

criminalização,postoquepressupõeumavidaquenãoécompatível,muitasvezes,com

a experiência da travestilidade, em que a estabilidade de um endereço fixo, por

exemplo,passaaolargodaquiloquecompõetaistrajetórias.

Tratando-se da prestação de serviços à comunidade, a predominância de

instituiçõesreligiosasédemarcadaaoserarticuladapeloefeitodocorpotravestiem

um fórumde justiça.Emumacenaemque sentenças sãodadassemapresençade

juízes, tal demarcação é um prelúdio de incompatibilidades que produz o não

prosseguimentodapena.

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CAPÍTULO4:Criminalizaçãooperativa:lei,ilegalismoseaverdadeoperativa

Entreaatribuiçãodeumacondutatipificadaaalguémeabuscapela“verdade

real”303dosfatos,percebiqueocrimeéalgoqueécriado,poisseancoraemprocessos

situadosemcadalugar,produzidosemcadaato,acionadopormúltiplosatorese,no

caso das travestis, sustentado pelas normas de gênero. Os dados encontrados em

campo me levaram inevitavelmente a compreender como essa materialidade é

produzida.Ascenas,porsuavez,constituíraminstrumentoseficazesnaempreitadade

tornarevidenteaquiloqueseforjananãoevidência304.

Emcadaatoaquidemonstrado,adinâmicadacriminalizaçãoépermeadapor

conexõesqueaproduzemdemaneirasdistintas.Emumaimensidãoderealidadese

trajetórias, o fazer da criminalização não se dá de maneira aleatória. Assim,

prostituição, migração, precariedade, violência institucional, patologização,

tornozeleiraeletrônicaeprestaçãodeserviçosàcomunidadenãosãoapenascenários,

masconstituem-secomomeiopeloqualocrimeseperforma.Éaconcepçãonormativa

de gênero que não somente encontra no corpo travesti seu local predileto de

303 A verdade real é um dos princípios norteadores da prática processual penal. É uma regra quedetermina que o juiz deve pautar a instrução criminal na busca pela verdade real dos fatos,circunstânciaseatoresenvolvidosnatramacriminal.304 PRADO,Marco AurélioMáximo. Por um levante do gesto: política e subjetivação. CATONNI,M.;VIANA,I.(Orgs.)Conferências:políticasdaperformatividade.BeloHorizonte:Conhecimentolivrariaedistribuidora,2019,p.43–58.

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materialização,comotambémsustentaacoordenaçãodesseselementosheterogêneos

naproduçãodesuacriminalização.

Paradarcontadessadimensãorelacional,encontreinanoçãodeilegalismouma

categoriaanalíticaquemepermitiutrabalharcomocamporeciprocamenteconstruído

eporosodasdobrasdolegaledoilegal.Auniãodessesaportesteóricospossibilitoua

proposituradeumaexperimentaçãoquedenomineicomo“criminalizaçãooperativa”,

que consiste em compreender a criminalização como efeito de um processo de

manipulaçãoordenadadeelementosheterogêneos–taisquaisprostituição,migração,

patologização,violênciainstitucional,precariedadeemedidasalternativasaocárcere

–pelapráticadamaterialidadedanormadegênero.

De forma a explicitar o percurso adotado, seguirei em três tempos: 1)

apontamentossobreaproduçãodematerialidades;2)incursãonopapeldaleiedos

ilegalismosnaproduçãodacriminalizaçãoe;3)contornosiniciaisdacriminalização

operativa.

1. Apontamentossobreaproduçãodematerialidades

A importância de Dona Haraway305 no desenvolvimento das primeiras

preocupações sobre o lugar do corpo e da materialidade nas concepções pós-

estruturalistas foi central,não somenteparaa formulaçãodeumacrítica feminista,

massobretudoparaapromoçãodeumaviradaontológica-material importante.Tal

virada,porsuavez,consistiunasuperaçãodaconcepçãodualebináriaentreomaterial

eodiscursivo.Agora,emumaperspectivanãodicotômica,foipossívelperceberqueo

materialédiscursivoe,assim,elaboraroutrasformasdeacessaramaterialidade.Tais

centrosseconjugam,articulamepromovemcondiçõesdepossibilidade,verdadeiras

“multiplicidadesheterogêneas,simultaneamentenecessáriasenãopassíveisdeserem

espremidasemfendasisomórficasoulistascumulativas”306.

305HARAWAY,Donna.Manifestociborgue.In:HARAWAY,Donna;KUNZRU,Hari.(Orgs.)Antropologiadociborgue:asvertigensdopós-humano.2ed.BeloHorizonte:autêntica,2000;HARAWAY,op.cit.,1995.306HARAWAY,op.cit.,1995,p.26.

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Pensaramaterialidadeemumaperspectivaquenãosejadicotômicafoioque

Haraway fez ao propor a figura do ciborgue, enquanto “uma matéria de ficção e

tambémdeexperiênciavivida”307,umargumento“emfavordoprazerdaconfusãode

fronteiras,bemcomoemfavordaresponsabilidadeemsuaconstrução”308,emque“a

natureza e a cultura são reestruturadas: uma não pode mais ser o objeto de

apropriaçãooudeincorporaçãopelaoutra”309.Aambiguidadenessafigura,enquanto

propostaepistemológicaepolítica310,nosajudaapensá-laenquanto“umaficçãoque

mapeianossarealidadesocialecorporal”311.

FoilendoHarawayqueencontreiumaporteteóricoimportanteparacomeçara

compreender os dados que havia encontrado em campo. A teórica apontou-me os

caminhos para compreender como amaterialidade se perfaz e, assim, perceber os

modospelosquaisoscorpos–eacriminalização–sãoconstruídosedesconstruídos.

Compreendi,então,aimportânciadepensarnovaspossibilidadesdeanálise,emque

asfronteirasdoscorpos[...] se materializam na interação social. Fronteiras são desenhadasatravésdepráticasdemapeamento;"objetos"nãopre-existemenquantotais. Objetos são projetos de fronteira. Mas fronteiras oscilam desdedentro; fronteiras são muito enganosas. O que as fronteiras contêmprovisoriamente permanece gerativo, produtor de significados e decorpos. Assentar (atentar para) fronteiras e uma prática muitoarriscada.312

ParaHaraway,oinvestimentonopensamentodefronteiravemnãosomentena

necessidade de fazer frente ao equívoco de teorias universais e totalizantes que

“deixamdeapreender–provavelmentesempre,mascertamenteagora–amaiorparte

da realidade”313, como também da importância de abraçar a “habilidosa tarefa de

reconstruir as fronteiras da vida cotidiana, em conexão parcial com os outros, em

comunicaçãocomtodasasnossaspartes”314.Assim,suascontribuiçõesemtornodos

307HARAWAY,op.cit.,2000,p.26.308Ibid.,p.27.309Ibid.,p.29.310 Assim, “o ciborgue não está sujeito a biopolítica de Foucault; o ciborgue simula a política, umacaracterísticaqueofereceumcampomuitomaispotentedeatividades”,Cf.Ibid.,p.46.311Ibid.,p.27.312HARAWAY,op.cit.,1995,p.40-41.313HARAWAY,op.cit.,2000,p.71.314Idem.

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saberes localizados315 implicam concebermos o objeto do conhecimento como “um

atoreagente,nãocomoumatela,ouumterreno,ouumrecurso,e,finalmente,nunca

comoumescravodosenhorqueencerraadialéticaapenasnasuaagênciaeemsua

autoridade de conhecimento ‘objetivo’”316. Dessa forma, o modo pelo qual nos

posicionamoseolhamosparaarealidadeestátotalmenterelacionadocomofazerda

pesquisa,postoqueonossolugarnacenatambémconstituiumelementoquedeveser

considerado. Por sua vez, conceber uma corporificação enquanto “prótese

significante”317implicanoshavermoscomoseucarátercontingente,umcorpoquenão

éseparadodaprótese.Nãosetrata,assim,depensarocontexto,masapontarqueo

contextodeixadeserapossibilidadedacenaepassaaserumelementodacena.

O acesso a esses contextos foi possibilitado pela prática etnográfica e pela

elaboraçãode cenas, emquebusquei compreender comosedáa criminalizaçãode

travestistalqualelaacontecenocotidiano,semrecorreraexplicaçõesgeneralizantes

ehomogêneas sobreessaarticulação.EmdiálogocomAnnemarieMol318,demarcar

esselugarapontavaquearealidadenuncaéanterioràspráticasqueaconstituem.

Ascríticasdaautoraemtornodosestudosderepresentaçãomostraram-meque

nóscriamosconstantementearealidade,aoinvésdemeramenteinterpretá-la.Dessa

forma, “se a realidade e feita, se e localizada histórica, cultural e materialmente,

tambémemúltipla”319.Longedeexistirdiferentesversõesdarealidadeoudiferentes

produções discursivas da realidade, Mol defende a existência de diferentes

realidades.Logo,foipossívelcompreenderquediferentespossibilidadesdecrimes,ou

nãocrimes,tambémpodemserproduzidos,enãotantoobservados320.

Um dos trabalhos mais importantes de Mol321 foi a investigação322 da

aterosclerose múltipla, mais especificamente em como os pacientes vão fazendo a

315HARAWAY,op.cit.,1995.316Ibid.,p.36.317Ibid.,p.29.318MOL,op.cit.,2008.319Ibid.,p.65.320Ibid.,p.70.321 MOL, Annemarie. The Body Multiple: ontology in medical practice. Durham and London: DukeUniversityPress,2002.322AconcepçãodeMolnãopodeserseparadeseumétodo,postoquelevartudoissoemconsideração,poróbvio,implicarepensarfortementeocampometodológico,ouomodoquetemosfeitopesquisa.Apraxiografiaéumaformadepensarocampo,emqueaspráticasemqueoselementosmateriaisnãosósãocenários,comocompõemsuaprópriaperformação.Nãosãosóefeito,compõemaspráticas.Éumaproduçãoemumfazerpresente.Assim,“minhaestratégiaetnográficagiraemtornodaartedenunca

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doençanocorpoecomoessadoençavaisendofeitapelamedicina.Ointeressepelas

práticas médicas e diagnósticas se deu pela indagação inicial de que, a partir de

determinadosprocedimentosadotadosnoshospitaisquepesquisou,algosurgecomo

umadoença.Nesse sentido, o diagnóstico – ou a sentença –, é um engajamento de

práticas e de realidades, que não existe “paraalémdas interaçõesdas quais fazem

parte,sendo,assim,conjuntosdeefeitosrelacionais.Interaçõeseefeitos,portanto,são

sempremaisoumenosprecáriosoutransitórios”323.

Arealidadesobreumcrime,portanto,estásempresendoperformadaapartir

de práticas e de determinadas materialidades que compõem essas práticas. Se

engatamosdeterminadoselementosheterogêneos,épossívelqueperformemcoisas

diferentes, emquearticulaçõesespecíficasproduzemdeterminadas realidadese, se

fossediferente, produziria outras.Dessa forma, não há umsujeito324 criminalizável

anterioràspráticas:suaproduçãosedáemato.

AperspectivadeMol325meajudouacompreenderqueacriminalizaçãopode

serconsideradaumengajamentodepráticasederealidadesproduzidas,umaquestão

demanipulação326.Nocasodastravestis,háumaproduçãomedianteprocedimentos

quevãoacontecendodeformacriminalizarogênero.Àluzdoquepudeencontrarem

campo, esse engajamento se efetiva ao acionarmos prostituição, migração,

precariedade,violênciainstitucional,patologização,tornozeleiraeletrônica,prestação

de serviços comunitários que, articulados com outros elementos, produzem a

criminalização.

esquecerdosmicroscópios.Oudepersistentementeprestaratençãoemsuarelevânciae sempreosincluiremhistóriassobrefisicalidades.Écomessaestratégiaqueadoençaétransformadaemalgosobreoqueetnógrafospodemfalar.Porquedesdequeaspraticalidadesdefazeradoençasãopartedahistória,éumahistóriasobrepráticas.Umapraxiografia”.Cf.Ibid.,p.31-32,traduçãominha.323 ROHDEN, Fabíola. Considerações teórico-metodológicas sobre objetos instáveis e ausênciaspresentes: analisando processos dematerialização do desejo feminino. In: SEGATA, Jean; RIFIOTIS,Theophilos(Orgs.).Políticasetnográficasnocampodaciênciaedastecnologiasdavida.PortoAlegre:UFRGS,2018,p.138.324UmadiferençapossíveldeserapontadaentreButlereMoléque,paraaúltima,interessapensarascoisasnessefazereascoisasquesedãoematoefetivamente.ParaButler,opoderestáimbricadonanossaformadefazer.Ainda,osujeito,paraButler,passapelanoçãonodiscurso,aomesmotempoemque,paraMol,sãoaspráticasqueproduzemrealidade.325MOL,op.cit.;MOL,op.cit.,2008,p.63-75.326 Importante pontuar que essa manipulação não pode ser lida como um voluntarismo, ou umhumanismoquepressupõeumsujeitoplanificado.ApesardenãoserabordadoporMol,defendoqueháhierarquiasequadrosdepossibilidadenessefazer.Cf.MOL,op.cit.,2002.

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Acriminalizaçãoé,assim,umarealidadevividaecontraditóriaporsimesma

porquedependesempredaspráticas.Issoimplicanoshavermoscomumaimensidão

derealidadescompletamentecontraditóriasqueseengajamelevamadizeroqueé

crimeequemdeverásercriminalizado,postoqueapráticadanormadegêneroéum

exercícioconstantedecoordenaçãodepráticasematerialidadesheterogêneas.

Essacoordenação,contudo,nãoéaleatória.AmadeM’Charek327apontaquea

materializaçãoenvolveummovimentodedesmaterialização,lastreadosemumcerto

regime histórico denominado como temporalidade328. A temporalidade é, por

conseguinte,importante329paracompreenderacoordenaçãodosobjetosepráticasna

realidade. Dessa forma, não importa apenas a performance do objeto, mas sim as

camadas de temporalidade que os compõem. Isso implica atentar-se aos “retornos,

recorrências,citaçõesdealgoquevematona,emcertassituaçõesenãoemoutras,em

estritacorrelaçãocomseusefeitospolíticos”330.

Comoexemplo,AmadeM’Charekdefendequearaça,longedeseralgonatural,

possuiumahistória, importandomaiscomoéperformadaemcadasituaçãoecomo

produzadiferença.Araçanãoéumacoisaquedesaparece,massuaapariçãosedáem

situaçõesmuitoespecíficas,postoqueoseuapagamentoserepete,porexemplo,nos

esforçosdeneutralidadelevadosacaboporpretensõescientíficas.O“objetodobrável”

éumapresençaausência,postoquechamaatençãoparaomovimentodeapagamento

ou apariçãoperformado em situaçõesdeterminadas.Dessa forma, “a raça pode ser

performada a partir do engajamento de corpos e cores, ou até mesmo quando

articulada com roupas, movimentos corporais, posições no espaço, local ou

preconceitos”331.

327 M’CHAREK, Amade. Beyond fact or fiction: on the materiality of race in practice. Culturalanthropology, vol. 28, issue 3, p. 420-442, 2013; M’CHAREK, Amade. Fragile differences, relationaleffects:storiesaboutthematerialityofraceandsex.Europeanjournalofwoman`sstudies,n.17,2015.328M’CHAREK,Amade.Race,timeandFoldedobjects:theHeLaerror.Theory,culture&society.2014,vol.31(6),29-56.329 Nas palavras da autora, “granting objects history and attending to temporality is crucial forunderstandingthepoliticstheyarticulate”,Cf.Ibid.,p.29.330ROHDEN,op.cit.,p.139.331 Assim,“racewasenactedasa relationbetweendifferentbodiesand their color, in this case therelations that mattered were between bodies on the one hand, and clothing, bodily movement,positioninginspaceandlocation,aswellaspublicprejudices,ontheother.”Cf.M’CHAREK,op.cit.,2013,p.431.

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Tratando-sedecriminalizaçãodetravestisdentrodaprisão,comoexemplo,a

violência institucional eoassédioem trocadeumpãoprecisamserapagadospara

performarafaltadisciplinar.Paratanto,valem-sedeartesanatosquebradosedegritos

nopavilhãovindosdeumatravestiparasubsidiaraalegaçãodeindisciplinae,assim,

promoveraaberturadeumprocedimentoadministrativodeapuraçãodefaltagrave.

Longedeapurar,talprocedimentomaterializaumasentençaepromoveocaráterde

veridicidade a tal prática, não restando escapatória a não ser criminalizar tais

experiências.

Paracompreendermosessesarranjos,torna-senecessáriomapearmososfluxos

eostrânsitosemdiferentescontextosdeperformação,oqueelaslevamconsigoeo

queelasreconectamcomoutrascoisasemoutroslugares,paracompreendermosoque

organiza e engata as práticas heterogêneas e produzem a criminalização. Implica

“prestarumaatençãorenovadaaonúmeroderealidadesheterogêneasqueentramna

fabricação de certo estado de coisas”332. Em outras palavras, torna-se necessário

promovermosumadesmaterializaçãoparatornamosamaterialidadevisívelnonosso

regime de inteligibilidade. Tratando-se de criminalização e gênero, desvelar os

movimentosdemontagensedesmontagensnosmostracomoacoerênciaéconstruída

naspráticasarticulatóriasdeelementosheterogêneosconstituindoumaverdadeem

operaçãonosatos.

2. Sobrealeieosilegalismos

Paradarcontadessadimensãorelacional,encontreinanoçãodeilegalismouma

categoriaanalíticaimportante.Comessacategoriafoipossíveltrabalharcomocampo

reciprocamente construído e poroso das dobras do legal e do ilegal e escapar da

planificaçãodasanálisesqueadimensãoda lei ede crime impõe.Tem-seque lei e

direito definem um espaço conceitual crucial a partir do qual grande parte dos

problemas são definidos, bem como seus diagnósticos e resoluções. Contudo, a

criminalizaçãodetravestisimpõecircunscrevermosumaoutraordemdeproblemase

mobilizarmosoutrasreferênciasecategorias;maisdoquepensarmosemcomoalei

332LATOUR,op.cit.,2012,p.136.

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seleciona a ilegalidade de forma diferencial, me parece importante pensarmos em

comoaleiproduzailegalidade.

Existeum“elementoabsolutamentepositivo”333nalei,postoqueproduz,não

sendomeramentesancionatória.Nessesentido,aleinãoéumapeçadiscursiva,mas

simumapeçamaterial.Porsuavez,paraFoucault,aleiéuma“ficçãoteórica”334que,

maisdoqueselecionara ilegalidadede formadiferencial,produzos ilegalismos,ou

seja,o“ilegalismonãoéumacidente”335.Bastaatentarmos,comocitadoanteriormente,

paraasmúltiplasconfigurações,procedimentoseatoresenvolvidosnacriminalização

detravestisdesdeosanos1890atéosdiasdehoje.Porexemplo,quandoapontamos

paraavedaçãodo“travestismo”empúblicopeloCódigoPenalde1890,quecessava

temporariamente no período do carnaval e de seus bailes demáscara. Ou quando

atentamosparaoperíododaditaduraeosusosquesefaziamdaLeideImpressapara

subsidiar a perseguição a veículos jornalísticos que tratavam do tema das

homossexualidades.

Osilegalismos,assim,nãodizemrespeitoanenhumtipodetransgressão336,mas

a“umconjuntodeatividadesdediferenciação,categorização,hierarquizaçãopostas

emação”337pelasnormasdegêneroque fixam e isolamas suas formas, aomesmo

tempoemquearmamocamposocialetendemaorganizara“transgressãodasleisem

umatáticageraldesujeições”338.Emvistadisso,“leis,codificaçõeseregrasformaistêm

efeitos de poder, circunscrevem campos de força e é em relação a elas”339 que

precisamossituaredescreveratransitividadeentreoscampos.

Os ilegalismos,enquantomaneirasde“burlaraprópria lei”340,serelacionam

comosucessodaleiem“gerirasilegalidades,deriscarlimitesdetolerância,dedar

terrenoaalguns,de fazerpressãosobreoutros,deexcluirumaparte,detornarútil

outra,deneutralizarestes,detirarproveitodaqueles”341.

333FOUCAULT,op.cit.,2006,p.50.334Idem.335Idem.336Nãomerefiroaquiàoposiçãojurídicaqueocorreentrelegalidadeepráticailegal.337TELLES,op.cit.,2010.338FOUCAULT,op.cit.,2006.339 TELLES, Vera;HIRATA,Daniel Veloso. Ilegalismose jogos de poderemSãoPaulo.Tempo Social,RevistadeSociologiadaUSP,V.22,n.2.p.41.340FOUCAULT,op.cit.,2006,p.51.341FOUCAULT,op.cit.,2014,p.267.

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Entreaatribuiçãodeumacondutatipificadaaalguém,ouabuscapela“verdade

real”,ocrimeéalgoquesefaz,poisseancoraemprocessossituadosemcadalugar,

produzidos em cada ato, acionado por múltiplos atores e, no caso das travestis,

sustentadopelasnormasdegênero.Nãosetrataaquideumafronteiraparaalémdo

Estadoedesuasleis,naverdade“legaleilegal,formaleinformal,lícitoeilícitoaíestão

imbricados nas práticas, nas tramas sociais, nas disputas ou alianças entre atores

diversos, tudo isso condensado”342 encenado e produzido pelas normas de gênero.

Conceber a lei enquanto responsável por produzir um conjunto de práticas de

diferenciação,hierarquizaçãoetipificaçãofixadaspelasnormasdegêneronoslevaa

concluirpelaimpossibilidadedeexistirumaaplicaçãoboa,oujusta,daleipenal.

Legalidade e ilegalidade não fazem um par. Não estabelecem entre si uma

relação de oposição, mas auxiliam “mutuamente na construção daquilo que é

percebidocomoDireito”343.Sãorelacionais,complementares,porososesópodemser

compreendidos na relação que os constituem. E é essa relação não binária que

possibilita fugirmos de uma linearidade simples, abrindo espaço para vermos uma

vastaconjugaçãodeatoreseatosenvolvidosnatramadacriminalização.

VeraTellesexemplificaessaquestãoaotrazerà tonaoschamados“autosde

resistência”344, em que se procede a uma prática “recorrente e sistemática de

execuçõessumárias”345semqueissosejaconsideradoumcrime.Nosremeteaindaao

exemplodeDoralice,umamoradoradaperiferiadeSãoPauloque,entreosintervalos

deseutrabalhocomodiarista,nãohesitaemmontarumabarracaparavenderCDs

piratasemumbairropróximodecasaouemacionaruma“espantosaredequeopera

omercadodereceitasmédicasfraudadasparaconseguiroremédiodequedependea

vidadomarido”346.Nosparcosganhos,sabequepartedeveserreservadaparapagar

a“proteção”dosfiscais,ouentão,dapolícia.Napremênciadelidarcomasurgências

342TELLES,op.cit.,2010,p.93.343FILHO,JoséCarlosAbissamra.SobreilegalidadesdoSistemaJurídicoCriminal.Dissertação(MestradoemDireito)naUniversidadeCatólicadeSãoPaulo,2017,p.13.344 Os autos de resistência dizem respeito à alegação de legítima defesa vinda de um policial apósexecutar um possível suspeito de crime. A produção dessa alegação gera uma série de atos nainvestigaçãodocasoquedesencadeiamnaabsolvição,ounaausênciade investigaçãodo fatoedascircunstânciasemtornodessesupostocrime.São,assim,“assassinatosemnomedalei”.Cf.TELLES,op.cit.,2010,p.155.345Idem.346Ibid.,p.174.

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davida,Doralicenãoseconsiderainseridano“mundodocrime”,apenasseviracomo

pode nesse trânsito de fronteiras borradas do legal e do ilegal. Existem, contudo,

modalidadesdeoperaçãonagestãodiferencialdeilegalismosquesediferenciampelos

dispositivosdepoderacionados“conformeograudeincriminaçãodessasatividades:

osagenciamentospolíticosqueoscilamentreatransgressãoconsentida,osmercados

deproteçãoeaspráticasdeextorsão,alémdarepressãoedaexposiçãoàmortepelo

usodaviolênciaextralegalporpartedasforçasdaordem”347.

Essaeconomiageraldosilegalismosdegênero,ouessa“gestãodiferencial”,nas

palavrasdeFoucault348,mepareceapontarparaummovimentodeilegalismosquefaz

partedonossotecidosocialequecaracterizaadinâmicaexistenteentreaquiloque

seria do domínio do legal e do ilegal. Esse domínio é, suponho, por si, poroso,

escorregadio,postoquenãosetratadeuma“oposiçãoentreoformaleinformal,legal

e ilegal.Naverdade,énasdobrasquesecircunscrevemjogosdepoder,relaçõesde

forçaecamposdedisputa”349.Assim,

[...] a vida, ela mesma, seria uma dobra aberta, permanentementeinacabada e cuja flexão ao fora e ao dentro remeteria a um tipo demovimento que implica e multiplica, conecta e separa, dividindo-seinfinitesimalmente em outras dobras menores e maiores, masconservandosempreumacoesãoqueeprópriadesuaarticulação.350

Pensarnadobrasignificadizerque“nãohalimitesrígidosentreilegalidadee

legalidade; legalidade e ilegalidade não se opõem necessariamente; ao contrário,

muitas vezes, relacionam-se numa articulação útil, funcional”351. É na dobra que

ocorrem os agenciamentos e as modulações entre o legal e o ilegal, bem como a

passagemdeumparaooutro.Énadobraqueseprocessamos jogosdepodereas

relaçõesdeforça352dalei,dosilegalismosedasnormasdegênero.

Nesse sentido, “será preciso deslocar o parâmetro e decifrar o jogo dessas

relações,conexões,articulaçõesquesefazemnessaindistinçãodolegaledoilegal,do

lícito e do ilícito, e fazer aparecer, como forças atuantes e estruturantes, os vários

347TELLES;HIRATA,op.cit.,p.42.348FOUCAULT,op.cit.,2014.349TELLES,op.cit.,2010,p.197.350DELUCCA,Daniel.Asdobradurasdacidade.Novosestudos–CEBRAP.2011,n.90,pp.179-187.351FILHO,op.cit.,p.15.352TELLES,op.cit.,2010.

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atoresecoletivosenvolvidos”353desdeoEstadoesuaspráticasinstitucionaisatéas

institucionalizadas. As normas de gênero organizam os ilegalismos, estruturam e

deslocamoscamposdeforçaeosjogosdepoder,“fazemerefazemademarcaçãoentre

aleieoextralegal354,demodoque

nãoháumajustiçapenaldestinadaapunirtodasaspráticasilegaiseque,paraisso,utilizasseapolíciacomoauxiliar,eaprisãocomoinstrumentopunitivo,podendodeixarnorastrodesuaaçãooresíduoinassimilávelda“delinquência”.Deve-severnessajustiçauminstrumentoparaocontrolediferencialdasilegalidades.355

ParaFoucault,apassagemdeumladoparaoutrosedánafiguradodelinquente.

Ailegalidadeeadelinquência356,assim,adquiremumpapelimportantenasociedade;

longedesereliminadas,devemsergeridas.Paraodelinquente,nãoimportatantoo

queelefez,masoqueeleé.Nocasodastravestis,natramadetolerâncias,repressão,

violência,abusodeautoridadequecaracterizamagestãodosilegalismoscomoforma

decontroledessasexperiências,aciona-seacriminalização.

O crime, longe de ser uma entidade abstrata, se constitui enquanto um

significantevazio357,quesóseefetivaporqueseancoraemprocessossituadosemcada

lugar, produzidos em cada ato, acionado por múltiplos atores e sustentado pelas

normasdegênero.Remete,dessaforma,àumamatrizdereferênciadeidentificação

desujeitos,práticasesentidosproduzidosemtornodatravestilidade.Acriminalização

nesse sentido é um exercício constante e cotidiano de coordenação de práticas

heterogêneas. Os elementos na cena de criminalização não são só cenários:

prostituição,migração, precariedade, violência institucional, patologização e até as

medidas alternativas ao cárcere compõem a própria performação do crime. Como

exemplo, é possível nos atentarmos para como a prostituição articula a cena de

353Ibid.,p.162.354TELLES;HIRATA,op.cit.,p.42.355FOUCAULT,op.cit.,2014,p.277.356Adelinquênciaé,paraFoucault,umaformadeilegalidadecolonizada,controlada.Umailegalidadevisível,marcada,irredutívelaumcertonívelesecretamenteútil–rebeldeedócilaomesmotempo.Umaoperaçãocertamentepolítica,quedissociaasilegalidadesedelasisolaadelinquência,objetivando-aportrásdasinfrações.Cf.FOUCAULT,op.cit.,2014,p.230.357ParaLaclau,osignificantevazioseriaestratégicoparaapontarumamultiplicidadedesignificadosemummesmodiscurso,detal formaqueosentidoinicialécompletamenteperdido.Éoexcessodesentidosincorporadosquepodeensejarumaadesãoparaumconjuntovastoevariadodeindivíduos.Cf.LACLAU,Ernesto.Arazãopopulista.SãoPaulo,TrêsEstrelas,2013.

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criminalização, em que a fragilidade dos acordos com os clientes, as dinâmicas do

machismoealegitimidadedadaànarrativadecadaumdosenvolvidosconfiguramum

cenárioquetemnacriminalizaçãodastravestisumdesfechocerto.

Portanto,amaterialidadenãoésóumefeito,mascompõeaspráticas,éuma

produçãoemumfazerpresenteemqueocrimeéperformadodemodosdistintosde

acordocomastécnicasutilizadasparadescrevê-loeenquadrá-lo.

3. Acriminalizaçãooperativa

Para colocar em perspectiva esses processos e recolocar os problemas, é

importantepontuarque,mesmoquehajaporosidadenasfronteirasdolegal-ilegal,a

passagem de um para o outro não é simples. Tratando-se de processos de

criminalização,alémdamultiplicidadedediscursoseatosqueproduzemdeterminado

fato,hátrânsitosemdiferentescontextosdeperformação,quereconectamcomoutras

coisasemoutroslugares;háoesforçodeestabilizaçãocomaimputaçãodocrimea

alguém,defazerapassagemdeumladoparaooutro.Oquefixa,ouoquedobraas

posições,contudo,éoquepodemoschamardeverdadeoperativa358.

Bruno Latour remete a esse termo ao discorrer sobre proliferação das

ferramentasdigitaiseoseuefeitoemborrar“as fronteirasentreoqueéentendido

enquanto conhecimento cientificoounão”paradefender que, “analisandocasopor

caso,seriapossívelobterumadescriçãocadavezmaisfacilmenterevisável,decadeias

de argumentos que definemos cosmogramas”359. A verdade operativa seria, assim,

“aquilo que é efetivado como verdadeiro dado o seu caráter manipulativo e

engendrável”360.

Dizer que um fato é construído, ou que uma verdade é construída, implica

conceber que “explicamos a sólida realidade objetiva mobilizando entidades cuja

reunião poderia falhar”361. Latour aponta que isso pouco se relaciona com uma

358LATOUR,op.cit.,2016,p.135.359MARACCI,JoãoGabriel.Reflexõessobreverdadeepolítica:ummapeamentodecontrovérsiasparaoKit Gay. Dissertação (Mestrado em Psicologia), Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social eInstitucionaldoInstitutodePsicologiadaUniversidadeFederaldoRioGrandedoSul(UFRGS),PortoAlegre,2019,p.29.360Ibid.,p.30.361LATOUR,op.cit.,2016,p.168.

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flexibilidade interpretativaoupontosdevistavariadossobreumamesmacoisa.Ao

contrário,“éaprópriacoisaquepermitiuserdesdobradacomomúltiplae,portanto,

ser apreendida através de diferentes pontos de vista, antes de ser possivelmente

unificadaemalgumaetapaposterior,dependendodashabilidadesdo coletivopara

unifica-los”362.

Essa estabilização363 é abordada por Latour em sua noção de controvérsias

sociotécnicascomo“rastros”parasepensarasconexõessociais364.Orastreamentoda

redeemquedeterminadofatoseconecta,então,fariacomque“emvezdeenunciados

flutuantes,osenunciadosestariamenganchados,rastreados,ancoradose,sobretudo,

seriamdebatidos”365.Arede,emsuma,éumconceito,uma“ferramentaquenosajuda

adescreveralgo,nãoalgoqueestejasendodescrito”366.

Para compreendermosa formacomquea criminalizaçãooperaénecessário

contornar omovimento das ilegalidades,mapeá-lo, rastreá-lo, para percebermos o

investimentodasnormasdegêneronaproduçãoenaarticulaçãodacriminalização.

Serianecessário,enfim,“registrarenãofiltrar,descreverenãodisciplinar”367.E,não

por outro motivo, são as cenas “que nos permitem flagrar o traçado das práticas,

mediações e mediadores” e os personagens aqueles que nos oferecem os fios que

precisamosseguirpara“aprenderasconexõesquetecemosmundossociaise,apartir

daí,chegarnãoaconclusõesfechadas,masaperguntasenovasquestõesqueabram

perspectivas sintonizadas com os possíveis inscritos na realidade dos fatos e

circunstâncias”368.

Paraessaempreitada,proponhopensarmosemtermosdeumacriminalização

operativa.Talconceitoanalítico-metodológicoexpandeonossocampodointeligívele

possibilita demonstrarmos como os ilegalismos são distinguidos, distribuídos e

utilizadosdeformasespecíficas,sendoacriminalizaçãoefeitodaarticulaçãodeuma

série multifacetada de mecanismos e atores de extensão e caráter variados. Tal

conceito,ouexperimento,nospermiteseguircosturas,mapearatos,quevêmsendo

362Idem,2012,p.171.363UmadasdiferençasquepodemosapontarentreLatoureMolresideaí.Molseinteressanomomentodedesestabilização,enquantoLatourfocanasestabilizações.364Idem.365Ibid.,p.168.366LATOUR,op.cit.,2012,p.192.367LATOUR,op.cit.,2016,p.88.368TELLES,op.cit.,2010,p.100.

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materializados na criminalização de determinadas experiências. É um experimento

que propõe uma outra saídana imbricada armadilhade buscarmos a afirmaçãoou

negaçãodocaráterverdadeirooufactualdocrime.

Énecessáriocompreender,contudo,arelaçãoentresesubmetereseadequarànormadegênero,oumelhordizendo,qualpapeléatribuídoànormanoengajamento

de práticas heterógenas. Ou seja, o que a norma precisa apagar para produzir a

criminalização.Comodemonstradoanteriormente,afatídicafrase“temquesairdaíseu

veado safado“ é um ato que produz indignação, mas precisa ser apagado para a

indisciplinasematerializar.Esseapagamentoéreiteradoemjuízo,emqueaausência

deperguntaseencaminhamentossobreoscortesnorostoproduzemumaversãodos

fatosquetemcomoconsequênciaacriminalizaçãodastravestis.

A criminalização, dessa forma, pode ser compreendida enquanto efeito da

coordenação de elementos heterogêneos levada a cabo pelas normas de gênero,

estando diretamente implicadas emuma certa produção de gênero. Tal referencial

implica compreendera criminalização comoefeitodeumprocessodemanipulação

ordenada de elementos heterogêneos – tais quais prostituição, migração,

patologização,violênciainstitucional,precariedadeemedidasalternativasaocárcere

–pelapráticadamaterialidadedanormadegênero.

É a criminalização operativa que nos permite perceber “novas mediações e

conexõespelasquaisessesdeslocamentosdasfronteirasdo legaledo ilegalvêmse

Figura6-Ilustraçãodacriminalizaçãooperativaeasnormasdegênero

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processando”369e,então,“compreenderomodocomoosvínculoseconexõesoperam,

já que, sempre situados, se fazem na conjugação de atores, circunstâncias, fatos e

artefatos”370.

Porfim,seexisteumasuperposiçãodemundosdiversos,seexisteumaconfusão

das“fronteirasdo legaledo ilegal,do formaledo informal,do lícitoedo ilícito,há

tambémfricção,tensão,algocomoumpontodefugaquepode,noacasodascoisasda

vida,abalaroudesfazer”371esseequilíbrio.Asexperiênciasdecriminalizaçãotravestis

sãoestratégicas,poisnospermitemvisualizarmosascosturasqueconstroemocrime

emsuasrelaçõescomogênero.

Nocasodastravestis,parece-mequeéaíqueentramaprostituição,amigração,

aprecariedade,bemcomoaviolênciainstitucional,apatologização.Énoacionamento

desseselementosqueadobrase fazou,emoutraspalavras,énessespontosqueo

entrelaçamentoderedesoperaeproduzacriminalizaçãoemsuarelaçãocomogênero.

Assim,“vistospeloângulodaspráticascotidianas,todosessesfeitossemisturamese

entrelaçamnosagenciamentospráticos”372comasurgênciasdavidasobamoldura

dasnormasdegênero.

369Ibid.,p.164.370Ibid.,p.111.371Ibid.,p.166.372Ibid.,p.168.

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CONSIDERAÇÕESFINAIS

Iniciei este trabalhocoma indagaçãoacercada relaçãoda criminalizaçãode

travestis com as normas de gênero. A partir de uma incursão teórica no campo

criminológico, foi possível perceber que boa parte da literatura sobre o tema,

estruturada a partir da categoria de gênero, não abarcava as experiências que

encontravaemcampo.Issosedeveaousoquesetemfeitodacategoriagêneronesse

campoteórico,considerando-oenquantopapelsocial.

Talprerrogativamepareceinsuficienteparacompreenderacriminalizaçãode

travestis, à medida em que considerarmos gênero como papel social implica

acionarmos chaves de representação de “feminilidade” e “masculinidade” que se

constituemefeitosdeumaimposiçãoanterior.Encararaproposiçãodegênerocomo

verbo, ou seja, enquanto ato, implica escapar da noção de papel social e nos

reposicionarmosquantoaomodoqueformulamosnossasperguntaseorganizamoso

nosso campo de investigação e inteligibilidade. Torna-se necessário colocar em

evidênciaaspráticaseseusmecanismosnadesigualarticulaçãodasnormasdegênero

quedefinemaquem,ecomo,seráatribuídaapráticadeumaaçãoconsideradacomo

crime.

Poressavia,foipossívelapontarapresençadacriminalizaçãodetravestisem

episódios da nossa história, que não somente moldaram a construção dessas

experiências na ilegalidade, como também as associaram a noções de crime e

criminalidade. Essa tecitura feita entre a criminalização e as travestis ao longo do

temponospermiteperceberqueessacriminalizaçãopoucotemavercomalei,esim

relaciona-secommaneirasespecíficasdegerirasilegalidadeseasnormasdegênero.

Paratanto,foinecessárioproporoutrasformasdepensaroscontornosespecíficose

asformasdeapariçãodacriminalizaçãoemsuarelaçãocomasnormasdegênero.

Tratando-sedecriminalizaçãoegênero,foiimportantedesvelarosmovimentos

de montagens e desmontagens para mostrar como a coerência é construída nas

práticas articulatórias de elementos heterogêneos constituindo uma verdade em

operaçãonosatos.Éaíqueacriminalizaçãoassumeoseuprotagonismo.Assim,nos

havermos comuma imensidão de realidades completamente contraditórias implica

nos atentarmos tanto para aquilo que engaja e produz o crime quanto para quem

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deverá ser criminalizado, posto que a prática da norma de gênero é um exercício

constantedecoordenaçãodepráticasematerialidadesheterogêneas.

No caso das travestis, à luz do campo, esse engajamento se efetiva ao

acionarmos prostituição, migração, precariedade, violência institucional,

patologização, tornozeleira eletrônica e prestação de serviços à comunidade que,

articulados com outros elementos, produzem a criminalização. A criminalização é,

portanto,umarealidadevividaecontraditóriaporsimesma,porquedependesempre

daspráticas.

O esforço teórico e metodológico em torno da “criminalização operativa”

consiste em apontar a importância de procedermos a uma complexificação do

entendimentosobreocrime.Concluoqueacriminalizaçãosedáporumprocessode

manipulação ordenada de elementos heterogêneos coordenada pela prática da

materialidadedasnormasdegênero.Acriminalizaçãoassume,assim,umanovaface

nacoordenaçãodepráticasheterogêneassustentadaspelaconvençãonormativado

gênero,quetemnocorpotravestiseulocalprediletodematerializar-se.

Daíqueseriapossívelafirmarqueocorpotravesti,antesmesmodequalquer

atocriminoso,éopalcoporexcelênciaparaquesedêacoordenaçãodepráticastão

heterogêneas, mas que, quando articuladas pelas convenções sociais, produzem o

corpocriminosoantesdopróprioatoditoilegal.

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APÊNDICEA–Infográficodeinvestigaçãodecontexto