universidade federal de pernambuco · 2019. 10. 25. · 2011 . 2 ana carolina amaral de pontes...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
ANA CAROLINA AMARAL DE PONTES
EDUCAÇÃO PARA CIDADANIA: uma análise sobre o aprendizado
para a participação e democracia, numa leitura arendtiana.
RECIFE
2011
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ANA CAROLINA AMARAL DE PONTES
EDUCAÇÃO PARA CIDADANIA: UMA ANÁLISE SOBRE O APRENDIZADO
PARA A PARTICIPAÇÃO E DEMOCRACIA, NUMA LEITURA ARENDTIANA
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Educação, como
requisito parcial para obtenção do título
de Doutora em Educação. Área de
concentração Teoria e História da
Educação.
Orientador: Prof. Dr. Edilson Fernandes
de Souza
RECIFE
2011
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Catalogação na fonte
Bibliotecária Andréia Alcântara CRB-4/1460
P813e Pontes, Ana Carolina Amaral de.
Educação para cidadania: uma análise sobre o
aprendizado para a participação e democracia, numa leitura
arendtina / Ana Carolina Amaral de Pontes. – Recife: O
autor, 2011.
167 f ; 30 cm.
Orientador: Edilson Fernandes de Souza.
Tese (Doutorado) - Universidade Federal de
Pernambuco, CE. Programa de Pós-graduação em
Educação, 2011.
Inclui bibliografia e Anexos.
1. Sociologia educacional. 2. Cidadania. 3. Arendt,
Hannah, 1906-1975. 4. UFPE - Pós-graduação. I. Souza,
Edilson Fernandes de. II. Título.
CDD 370.19 (22. ed.) UFPE (CE2012-31)
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À Hannah, para que se torne
uma mulher repleta de fortaleza
e ternura.
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AGRADECIMENTOS
Ao longo de quatro anos de começos e recomeços, nas alegrias e angústias
que sempre permeiam um trabalho acadêmico, além do suporte parcial da bolsa
REUNI, torna-se indispensável agradecer às pessoas que cruzaram meus caminhos:
Ao criador da escola indelével de matrícula obrigatória, Deus, por nos
destinar à felicidade a despeito da indisciplina a que nos entregamos e que
nos afasta dela.
Às duas pontas de minha vida, como não poderia deixar de ser, minha mãe,
Teresa, e meu filho Hanniel, ensinando, aprendendo, reensinando,
reaprendendo...
Ao parceiro do difícil e encantador aprendizado da vida a dois, Hainer.
Ao orientador e Edilson Fernandes, por acreditar no meu potencial, por crer
na possibilidade de superação de uma educanda-educadora, e me
apresentar caminhos possíveis na minha busca teórica e prática dentro desta
tese, não haverá agradecimento suficiente para tanto.
A equipe do Programa de Pós Graduação em educação da UFPE, pelo
atendimento carinhoso e interessado, em especial a Shirley, Rebeca, e
Morgana, que torceram pela minha chegada.
Aos/as colegas de curso e educadores/as, em especial as impressões
especiais trazidas pelas professoras Alice Botler, Aída Monteiro, Márcia
Ângela, Ferdinand Rohr e a “dupla” Márcia e Batista que atraem estudantes
de tantos cursos.
A meus alunos e minhas alunas nestes oito anos como educadora, em
especial as crianças e jovens de Jordão Baixo, nos nossos domingos no
Centro Espírita Hermelinda Lopes onde vivenciei na prática os paradoxos da
teoria na aplicação prática; e os/as jovens sonhadores/as do projeto de
extensão Vestibular Solidário (UFPE- C.E.) onde dividimos as limitações e
desafios da universidade pública e construímos juntos/as a esperança de um
acesso justo a uma educação de qualidade.
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RESUMO
Passando pelas concepções históricas e conceituais sobre cidadania, e de experiências na educação brasileira, observa-se que o tema “educar para cidadania” vai além de educar para democracia. Esta tese a compreensão de conteúdo, as relações com a comunidade e o fomento de espaços de discussão democrática na escola como elementos indispensáveis para a educação para cidadania. Considerando que o discurso educacional privilegia esta última, as pesquisas nesta tese tornaram possível perceber a distância entre teoria e prática no discurso de docentes, secretarias de educação e comunidade. Os objetivos desta tese estão compreendidos em refletir sobre a polissemia do conceito de cidadania, além do que tem sido identificado como seu conteúdo e sua prática na esfera escolar na realidade pernambucana buscando uma concepção para além da educação para democracia ou apenas uma disciplina. Tomando por base o pensamento de Hannah Arendt, busca por fim propor uma compreensão da educação para cidadania que envolva a escola como um todo, incluindo discussões sobre espaços democráticos, transversalidade e relações discentes-docentes e comunidade.
Palavras-Chave: Educação para cidadania, democracia, espaços públicos, Hannah
Arendt
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ABSTRACT
Going through the historical and conceptual ideas about citizenship, education and experience in Brazil, it is observed that the theme of "educating for citizenship" goes beyond educating for democracy. This thesis understanding of content, community relations and the promotion of democratic spaces for discussion in school as indispensable elements of education for citizenship. Whereas the latter focuses on educational discourse, research in this thesis made it possible to realize the gap between theory and practice in the discourse of teachers, education departments and the community. The objectives of this thesis are included in reflecting on the polysemy of the concept of citizenship, beyond what has been identified as its content and its practice in the field school in Pernambuco seeking a reality beyond conception of education for democracy or just a discipline. Based on the thought of Hannah Arendt, seeking finally to propose an understanding of citizenship education for the school as a whole, including discussions of democratic spaces, transversality and student-teacher relationships and community.
Keywords: Education for citizenship, democracy, public spaces, Hannah Arendt.
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SUMÁRIO
Introdução .............................................................................................................. ..10
1. Cidadania- ou o que não seja ............................................................................. 25
1.1 Significados históricos e axiológicos para cidadania........................................25 1.2 Da cidadania escalonada..................................................................................38 1.3 Da cidadania. enquanto perda..........................................................................44
2. A república na escola e a educação para cidadania ........................................ 51
2.1 Da crítica à educação progressista desenvolvida por Arendt.........................51
2.2 Visões (ou ausência delas) na educação para cidadania na história da educação brasileira...........................................................................................59 2.3 Fundamentos da educação para a cidadania..................................................71
3 REPRESENTATIVIDADE E DECISÃO - DIVERSOS TONS DE UM DISCURSO. 78
3.1 Experiências de representatividade brasileira..................................................78 3.2 Do espaço e do desafio da fala pública...........................................................82 3.3 Um falso presente: sobre participação decisória nos espaços públicos......94 3.4 Desafio da representatividade republicana dos conselhos no Brasil e seu reflexo na educação para cidadania............................................................106 3.5 Algumas palavras sobre representatividade na esfera escolar brasileira....................................................................................................110
4 Educar para cidadania ....................................................................................... 116
4.1 Paradigmas e contexto escolar da educação para cidadania numa república indefinida...............................................................................................................116 4.2 Mestre cidadão/ã?..........................................................................................120
5. Qual cidadania?Resultados possíveis de pesquisas teóricas e práticas .... 129
5.1 Objetivos,campos e seleção das pesquisas empreendidas.........................129 6. Considerações finais: uma proposta de educação cidadã participativa...... 144
7 Referências utilizadas ........................................................................................ 163
ANEXOS ................................................................................................................. 168
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Introdução
Discutir a possibilidade de educar para cidadania garante uma variada
gama de perguntas. Grande pode ser o debate sobre como este pretenso ou esta
pretensa “candidata/o” à cidadã/ão passaria do estado inicial para o “desejado”. O
que significa educação para cidadania? O que poderia compreender educar para ser
cidadão, cidadã; ou melhor: para exercer a cidadania?
Naturalmente, a realidade brasileira nos demonstra o obstáculo da prática
da cidadania através das possibilidades emancipatórias disponibilizadas
formalmente pelo Estado onde a obediência ao direito estabeleceria essa premissa
pouco contemplada no âmbito da participação real hodiernamente mais associada a
orçamentos participativos, discussões em conselhos e redes de debate apoiadas
pelo mesmo Estado. A despeito de um discurso estatal favorável à efetivação da
cidadania, participação e inclusão; a concretização deste modelo tem sido limitada e
seleta, uma vez que tem estado baseada no reconhecimento do sujeito e de ser
direito pelo Estado, estagnando a construção.
Os objetivos desta tese estão compreendidos em refletir sobre o conceito
de cidadania, o que tem sido identificado como seu conteúdo e prática na esfera
escolar e sua relação para além da educação democrática ou educação para
democracia. Busca propor uma compreensão da educação para cidadania que
envolva a escola como um todo. Os marcos teóricos utilizados como pontos de
partida na temática de Política e Direitos constituíram-se na obra de Hannah Arendt
e a compreensão inicial educativa do texto “A crise na educação”. Nas conclusões,
buscamos instrumentalizar a abordagem na noção de competências, para esclarecer
a transposição da teoria para uma proposta real de educação para cidadania.
Segundo Moretti1 a escola, além de dedicar-se a ensinar os saberes
científicos e habilitar pessoas para a vida profissional, deve ter um objetivo maior:
preparar para o exercício de seus direitos. Contudo, apesar de ser um espaço
privilegiado para tal fim, o exercício da cidadania não se prende apenas às carteiras
de sala de aula.
Nesta caminhada, discutimos a proficuidade de “ondas de cidadania”
algumas que pouco possuem de formação; além da fluidez da educação para
cidadania enquanto conteúdo, e o quanto esta construção, na realidade, depende de
1 MORETTI, Sergio L. Amaral. A escola e o desafio da modernidade. Revista ESPM, São Paulo,
vol.6, jan./fev,1999.
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uma concepção mais ampla não apenas de democracia escolar, mas também com
sua relação com as instâncias de pauta e decisão na comunidade que se articulam
com a escola.
As experiências que motivaram essa tese foram vividas em oficinas no
terceiro setor como educadora popular de direitos a crianças e adolescentes por três
anos; bem como em projeto de extensão do Centro de Educação da UFPE (dois
anos); como educadora infantil voluntária em comunidade no Recife por oito anos e
por fim de vivência na graduação de Direito e Pedagogia, tanto como aluna como
professora.
Na busca teórica, este trabalho representa uma verticalização em temas
anteriormente refletidos por ocasião de curso de mestrado, em temas como
cidadania, direitos, acesso à fala e espaços públicos.
Essas experiências chamaram a atenção para idéias que há muito se
discutem no âmbito do ensino não formal, mas que no espaço das escolas parece-
nos oscilar entre a transversalização sem maior compromisso ou disciplinarização
sem estabelecer as ligações indispensáveis com a escola e a sociedade como um
corpo vivo. Também na experiência da graduação em Direito, foi perceptível um
formalismo exacerbado travestido por vezes de “pureza metodológica” permeando
até alguns projetos de extensão, onde parece sugerir implicitamente a divisão entre
conhecer “direitos” e tornar-se um profissional da área (e velar por esse
conhecimento tornando-o pouco acessível, como “reserva” intelectual) ou
profissional.
Por ocasião destas reflexões, um hiato em especial aninhou a idéias deste
trabalho: o que seria “ensinar” cidadania a crianças e jovens? A escola ensinaria
uma pessoa a ser cidadã ou ensinaria como exercer a cidadania? O que seria a
competência cidadã? Quais as relações estabelecidas entre o ambiente da escola e
os espaços dos conselhos vistos por Arendt como um espaço mais próximo de uma
representatividade democrática real?
Com experiência adquirida anteriormente na leitura arendtiana, tomamos
por fio condutor Hannah Arendt, posto que pretendemos focar o aspecto político do
educar para a cidadania, no desenvolvimento de competências ligadas à crítica e
auto-crítica, da compreensão democrática (também dos instrumentos, não somente
democracia enquanto conceito ou prática) e sobretudo da fala pública, incluindo
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observações sobre as relações (ou ausência delas) com espaços como o Conselho
Tutelar e o Escolar.
Diante da extensa lista de publicações, artigos, resumos, aulas, eventos e
cursos cujo tema parece ser a cidadania, estes por vezes parecem desgastar o
termo em direções tão variadas quanto complexas.
Além de equilibrar-se na corda bamba da polissemia atual da palavra,
também utilizamos a concepção de participação, que, por sua vez, também
contemplada freqüentemente no vocabulário político, acadêmico e popular de nossa
contemporaneidade sofrendo desgastes consideráveis de conteúdo e identificação,
por essa razão dedicamos parte do trabalho a aprofundar o debate sobre o que se
identifica por cidadania, bem como o que se identifica por participação.
Do ponto de vista prático, a cidadania esta intrinsecamente ligada à
participação, e por isto constitui um dos pontos de nossa pesquisa compreender o
que requer esta cidadania que vislumbra e proporciona a competência para
participação através de conteúdo e prática. Nesse sentido compreendemos que uma
escola forma para cidadania também ao proporcionar aos alunos as competências
para intervirem, no presente espaço da escola, e posteriormente, nos espaços onde
suas vidas sociais e individuais se decidem.
A Secretaria de Educação de Pernambuco, ao definir o Plano Estadual
reafirmou a educação enquanto instrumento de formação da cidadania, como
princípio norteador da política educacional2.
O Plano Estadual de Educação concebe o ensino cidadão como “a oferta
de um ensino que apresente o conhecimento, a tecnologia, a arte e cultura como
processos históricos, e o aluno passe a ser o centro das preocupações da escola e o
mesmo tenha seus direitos assegurados”3
A escola é vista como um local que “explora e aprofunda laços de
solidariedade e interdependência inerentes à atividade pedagógica, aberta e
inovadora, que instiga a compreensão conceitual e a organização do pensamento e
tematiza o mundo do trabalho, todavia, precisa ser construída de imediato (...)”
2 Esse princípio ganha mais força quando é reconhecido que “a educação de qualidade é direito de
todos e aponta o Ensino Fundamental como direito social básico e uma necessidade social imperiosa” (P.E.E; p. 10). A definição desses princípios recebeu influência da nova Lei e Diretrizes e Bases, pois, de acordo com o art. 2 da LDB: “A educação é dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para a cidadania e sua qualificação para o trabalho”. 3 Plano Estadual de Educação, p. 11.
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Observamos que a inclusão deste princípio norteador é bastante
auspiciosa e positiva, ainda que em seu texto, ainda não sinalize tão bem o aluno/a
na interação com a pauta destes direitos, e sim na “recepção” deles, tendo-os
“assegurados”.
Polemizando as necessidades, em 1999 houve um pequeno embate entre
a Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco e o Conselho Estadual de
Educação sobre a forma do aprendizado da educação para cidadania, tendo o
primeiro instituído a obrigatoriedade de uma disciplina; e o último criticado tal
iniciativa, relembrando que o conteúdo já era contemplado de forma transversal em
diversos instrumentos, como os citados no parágrafo anterior. Disciplina, princípio ou
conteúdo transversal, isto definiria o aprendizado da cidadania? Enquanto disciplina
gera até certa curiosidade: como avaliar se alguém está “aprovado/a” na disciplina
cidadania?
Nascemos cidadãos/ãs ou nos tornamos? Cremos que, se há algo que se
“torna”, parece ser é nossa capacidade de exercer a cidadania. Se a escola
representa muitas vezes uma preparação para os papéis que desempenhamos na
próxima fase da vida enquanto adultos/as, a escola pode ser este espaço onde se
treina para ser cidadão/ã? Se a cidadania envolve participação, a preparação na
escola oferta possibilidades de compreender a ligação entre cidadania e democracia
enquanto pessoa4 de direitos? É verdade que talvez o ensino e o alcance destes
papéis sejam subjetivos. Todavia, é nossa intenção oferecer uma proposta para o
debate, fortalecendo uma concepção de cidadania ativa e não passiva, receptora de
direitos, ligada pelo vínculo espacial ou político (freqüentemente associadas em
cidadania enquanto direitos territoriais e de nacionalidade).
A discussão da construção da cidadania no espaço escolar - e o preparo
para fora deste - é valiosa uma vez que compartilhamos a idéia de que o espaço
público possui como função iluminar a conduta humana, onde se estabelece a
“permissão para cada um mostrar para pior e para melhor, quem é e o do que é
capaz”5. A escola representa um espaço semi-público que pode permitir a
preparação para compreender e apropriar-se melhor dos espaços públicos de
discussão, que também atuam produzindo direito, além dos canais formais. Nesse
4 Pela escolha da linguagem inclusiva que permeia toda esta tese, freqüentemente será optado pela
expressão pessoa em detrimento de “sujeito”, “indivíduo” ou expressões mais identificadas com o gênero masculino. 5 ARENDT, Hannah. Homens em Tempos Sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 8.
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sentido não se trata naturalmente de formar tecnocratas do direito, mas cidadãos e
cidadãs capacitados e reflexivos, interessados em participar em canais variados –
do conselho escolar à rádio comunitária, por exemplo.
Esta tese defende que a cidadania deve contemplar não apenas a
perspectiva da emancipação individual, da educação para libertação das
necessidades pessoais, materiais ou morais, mas a perspectiva da vida em
conjunto, da transformação da realidade em favor da coletividade, possibilitando às
pessoas tomarem parte de um processo de visibilidade conjunta, que também abre
as portas para a alteridade, ao minorar a indiferença causada pelo não
reconhecimento da outra pessoa como cidadão ou cidadã.
Numa colocação tocante, Gramsci fala desta invisibilidade
No entanto, quando ouvimos dizer que os turcos tinham massacrado centenas de milhares de armênios teríamos sentido o estremecimento lancinante que experimentamos que os nossos olhos caem sobre um pobre corpo martirizado ou que sentimos dolorosamente logo que os alemães invadiram a Bélgica? É um grande mal não ser conhecido. Significa permanecer isolado, encerrado na própria dor, sem possibilidade de ajuda, de conforto. Para um povo, para uma raça, significa a dissolução lenta, o aniquilamento progressivo de qualquer vinculo internacional, o abandonado a si mesmo indefeso e indigente (...). assim, a Armênia, nos seus piores momentos, não teve mais que algumas afirmações platônicas de compaixão por ela, ou de desprezo por seus carrascos: os massacres armênios tornaram-se proverbiais, não passavam, porem de palavras ocas que não conseguiam criar fantasmas e imagens vivas de homens de carne e osso
6”.(grifos nossos)
Neste trabalho usamos o conceito arendtiano de cidadania como “direito a
ter direitos” e, nessa compreensão não-restritiva da autora, juntamente com a
negação de um conteúdo fechado “a receber” ou “a assegurar”, como descrito por
Van Gusteren, que delineou ser a mesma uma “prática conflituosa vinculada ao
poder que reflete as lutas sobre quem poderá dizer o que, ao definir quais são os
problemas comuns e como serão tratados7.
Em nosso trabalho, além da opção pela linha arendtiana, traçaremos
algumas observações necessárias sobre a diferença entre concepções de
democracia já conhecidas, mas que ainda não atenderiam a visão que defendemos,
como a influência democrática deweyana ou a democracia restrita exclusivamente
ao espaço escolar.
6CAVALCANTI,Pedro e Piccone, Paulo, organizadores, Armênia in Convite à leitura de Gramsci.
Rio de Janeiro: Achiamé, 1984, p.101. 7 VAN GUNSTEREN, Notes in a Theory of Citizenship in Pierre Birnbaum, Jack Lively e Geraint
Parry (orgs). Democracy, consensus and social contract. London: Sage. 1978, p. 27
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A escolha por Johanna Arendt possui por pano de fundo toda sua
trajetória, em especial sua compreensão de democracia e participação na vida
pública, que nos afigura mais aderente as nossas idéias, ainda que não nos
furtemos de, em alguns momentos, apontar-lhes a necessária crítica.
Cientista política8, fora discípula de Heidegger, Husserl e Karl Jaspers e
empreendeu durante toda sua vida uma profunda reflexão sobre a teoria e a prática
política, tendo suas obras reiteradamente debatidas e conhecidas, devido a sua
percepção e agudeza de crítica9. Sua visão sobre a educação ainda constitui um
item menos estudado em sua obra, possivelmente pelo enfoque menos explícito da
autora, no que tange a não possuir obra particular sobre o tema. Ainda que o tema
da cidadania, em matéria de quantidade de produções, careça de originalidade
(embora não tão carente de profundidade) falta, a nosso ver, uma maior freqüência
de análise do pensamento da autora a respeito do tema; o que torna a escolha
dotada de certa originalidade10. Arendt não exerceu a Pedagogia enquanto escolha profissional, todavia
em mais de uma ocasião a oportunidade de vivenciar questões práticas despertou
sua sensibilidade para a questão da educação, da “apresentação do velho mundo
aos novos”, em sua concepção11. Após abandonar a Alemanha, trabalhou em Paris
em uma organização que se dedicava a transferência de crianças judias da
Alemanha para a Palestina, nos kibbutz.
Falando da experiência, revelou:
8 Optamos por utilizar da posição onde mais se identificava, recordando a entrevista à Günter Gaus
em outubro de 1964 onde recusa o título de filósofa. Ainda assim, recordamos que segundo lembra Lafer, como ela mesmo afirma em uma correspondência a Gershom Sholem, “se posso falar em ‘vir de algum lugar’ este será da tradição da filosofia germânica” prefácio de A Condição Humana.Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1983, III. 9 Pelo visto, bastante precoce: na Literacy Enciclopedy, site mantido por especialistas oriundos de
universidades pelo mundo, Kelsey Wood em brevíssima biografia observa que ao perder no mesmo ano de 1913 seu pai e seu avô, registra em diário sua mãe, Martha, que a menina de oito anos a instava a consolar-se argumentando: “lembre-se, mamãe, que isto acontece a muitas mulheres.” Disponível em , acessado em 20 de abril de 2010. 10
Segundo pesquisa no Banco de Teses do Ministério da Educação, foram realizadas, de 1987 em diante, em todos os cursos de pós graduações cadastrados, quarenta e quatro dissertações e vinte e três teses com alguma ligação teórica com Hannah Arendt e Educação. Destas, apenas cinco dissertações abordam a cidadania como foco sob a luz da autora, apenas uma delas foi defendida no C.E. da UFPE, em 2010. No campo das teses, existem duas teses com a temática da educação e autonomia, uma apenas uma sobre cidadania em relação ao trabalho (considerando-se, mais uma vez, as que trazem abordagem sob Arendt). Pesquisa realizada em setembro de 2011. 11
ARENDT, Hannah, Entre o passado e o futuro. A crise na Educação. São Paulo: Perspectiva,1997, p. 225.
http://www.litencyc.com/php/speople.php?rec=true&UID=143
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Eu sentia então um profundo respeito por elas. As crianças ali recebiam uma formação profissional acompanhada de uma readaptação escolar. Cheguei mesmo a introduzir, às escondidas, por uma ou duas vezes, crianças polonesas. Essa era a regra do meu trabalho; era um trabalho social, educativo. Haviam instalado grandes acampamentos por todo país, onde preparavam as crianças e onde elas também faziam cursos, aprendiam a trabalhar a terra e tinham, sobretudo, que crescer. Era preciso vesti-las dos pés à cabeça, cozinhar para elas, conseguir-lhes papéis, negociar com seus pais – e principalmente conseguir dinheiro. Essa tarefa em grande parte cabia a mim. Eu trabalhava em colaboração com os franceses. Eis mais ou menos em que consistiam nossas atividades
12.
Por vezes, inclusive, antes de opinar sobre o tema, rendeu um breve
mea-culpa da ausência de formação na área13, entretanto, suas observações sobre
educação têm lugar em obras como em Da revolução, ou A condição humana.
Algumas características do pensamento de Arendt sobre o tema podem
ser, desde logo, observadas, o que aqui se explicita, por clareza: não esperemos
dela qualquer louvamento de soluções revolucionárias na educação, posto que a
mesma demonstra sérias prevenções em relação da acentuada paixão pela
aplicação imediata de novas práticas pedagógicas, em detrimento da observação
cuidadosa da teoria em si. O que a autora demonstrou foi certa desconfiança da
aplicação excessivamente prática de novas teorias pedagógicas, sem o crivo de
uma análise teórica corroborada pelo tempo e pelo bom senso14.
Acreditamos que talvez este pensamento remeta ao medo da autora do
não-pensar que, protegido, pode levar ao ancorar-se a qualquer conjunto de regras
de condutas prescritas num dado momento. Arendt demonstra temor, não pelo medo
da manutenção do status quo através do apego às regras, mas sim do apego às
normas em si, em prejuízo da capacidade de decidir. E isso não se fecha num
aspecto temporal: “se aparece alguém que, seja lá por que razões ou propósitos,
deseja abolir os velhos valores ou virtudes, achará bem fácil fazê-los, contanto que
ofereça um novo código.” (grifo nosso). Pior: conforme observa Arendt, não será
necessária persuasão ou força, nem mesmo nada que prove que os novos são
12
ARENDT, Hannah Só permanece a língua materna, in Entre o passado e o futuro São Paulo: Perspectiva, 1997, p. 131. 13
“À parte essas razões gerais que fariam parecer aconselhável, ao leigo, dar atenção a distúrbios em áreas acerca das quais, em sentido especializado, ele pode nada saber (e esse é evidentemente, o meu caso ao tratar de uma crise na educação, posto que não sou educadora profissional)”. ARENDT, Hannah, Entre o passado e o futuro. A crise na Educação. São Paulo: Perspectiva,1997, p. 222. 14
“(…) em nenhum outro lugar as teorias mais modernas no campo da Pedagogia foram aceitas tão servil e indiscriminadamente” aduz Arendt ao criticar aplicação prática massificada de novas teorias educacionais nos E.U.A. ARENDT, Hannah, Entre o passado e o futuro. A crise na Educação. São Paulo: Perspectiva,1997.
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melhores que os velhos, pois quanto mais forte for o apego a um código, mais
ansiosos/as estarão para assimilar o novo.15
Outra postura arendtiana de fácil compreensão é a rejeição da alcunha de
filósofa para a de cientista política, que será utilizada neste trabalho. Na prática, tal
escolha representa a rejeição da contemplação em relação à ação. Em sua obra
Crises da república, demonstra irritação com pesquisas como as que apontam
resultados como, por exemplo, que a fome interfere no aprendizado:
A resposta do governo para isto, e para o igualmente evidente colapso dos serviços públicos, tem sido invariavelmente a criação de comissões de estudo, cuja fantástica proliferação nos últimos anos fez dos Estados Unidos provavelmente o mais pesquisado país do mundo. Não há dúvida de que estas comissões, depois de gastar muito tempo e dinheiro para descobrir que “quanto mais pobre se é, maior é a chance de se sofrer de séria desnutrição” (genialidade que motivou até o Quotation of the day do New York Times), muitas vezes aparecem com recomendações razoáveis. Estas, no entanto, raramente têm algum efeito e são muitas vezes submetidas a um novo rol de pesquisadores. Todas as comissões têm em comum um esforço desesperado em descobrir algo sobre “as causas profundas” do problema, qualquer que seja ele – especialmente se se trata de violência – e uma vez que “causas profundas” são por definição ocultas, A conclusão final da equipe de pesquisa quase nunca passa de hipótese e teoria sem demonstração. A conseqüência evidente é que a pesquisa tornou-se um substituto para a ação, enquanto as “causas profundas” vão ocultando as causas óbvias – freqüentemente tão simples que nenhuma pessoa “séria” e “letrada” poderia lhe dar alguma atenção. Certamente descobrir remédios para deficiências óbvias não assegura a solução do problema; mas negligenciá-las significa que o problema não será sequer adequadamente definido. A pesquisa se tornou uma técnica de evasão e isto certamente não melhorou a já minada reputação da ciência. (grifos nossos)
16
Naturalmente, as pesquisas não podem ser banidas ou ignoradas (aliás,
esta tese apresenta algumas), e não é isto que sugere Arendt. Contudo, o desgaste
de algumas pesquisas, cuja finalidade indesejada pode ser a ocupação estática de
estantes nas bibliotecas, não pode ser classificado como o fim almejado por elas,
razão pela qual se busca nesta tese uma proposta em seu final. Em muitas
situações, pesquisas parecem sair das estantes tão somente para alimentar novas
pesquisas, sendo a manutenção deste círculo bastante irrazoável.
Arendt decanta da ironia à simples irritação ao lembrar:
Há, por exemplo, o fato conhecidíssimo e superpesquisado de que crianças em escolas de cortiço não aprendem. Entre as causas mais óbvias, está o fato de que muitas destas crianças chegam à escola sem o café da manhã e
15
ARENDT, Hannah, Entre o passado e o futuro. Pensamentos e considerações morais. São Paulo: Perspectiva,1997,p. 159. 16
ARENDT, Hannah, Entre o passado e o futuro. A crise na Educação. São Paulo: Perspectiva,1997, p.67.
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18
estão desesperadamente famintas. Há uma porção de causas “profundas” para o fracasso delas em aprender, e é muito incerto que o café da manhã ajudaria. O que não é de modo algum incerto é que mesmo uma classe de gênios não poderia ser ensinada se ocorresse deles estarem com fome.
17 (grifo nosso).
Anteriormente ao texto A crise na educação, vemos em As origens do
totalitarismo sua análise sobre as contradições do recurso da educação entre
pessoas judias como forma de manutenção ou aceitação em sociedades não-judias,
bem como da duplicidade entre a fidelidade à educação nos moldes judaicos e
educação geral. Para isso ela cita a sustação de vultosa doação em 1820 pelos
Rothschild para uma comunidade em Frankfurt pela idéia de reformadores que
desejavam que as crianças judias recebessem educação geral18. Se por um lado a
educação primorosa, que faziam com que parte da sociedade vislumbrasse entre a
elite judaica uma “sede de instrução” como rota para a aceitação, esses
“maneirismos” adotados eram acrescentados de certo abandono dos aspectos mais
rigorosos da lei judaica, que eram opostos à postura de exigir dos/as demais (que
não viviam tal realidade, pertencentes às massas) a fidelidade à ortodoxia.
Parece-nos que as reflexões da autora sobre educação vieram a se tornar
mais freqüentes após o início de sua experiência em Berkeley e em Princeton. Deste
período, torna-se possível extrair dentre suas reflexões os temas recorrentes, que
lhe caracterizam o interesse. Encontramos de forma constante suas comparações
extraídas da Roma Antiga, em compreender crianças e jovens como “os novos”
(observe-se que a autora distinguia pessoas gregas de romanas justamente por
estas últimas vislumbrarem que o objetivo da educação fosse unir novos/as e
velhos/as, fazendo-os/as dignos/as de seus/uas ancestrais.) 19
Na Grécia, jovens invadiam a estabilidade do status quo, e uma análise
dos escritos de Arendt sobre o tema nos remetem ao fato de que ela opta pela
escola romana na compreensão da educação (pois considera que a essência da
educação é a natalidade). Assim o ponto de partida é a tensão entre “os novos seres
humanos e os que já caminham sob o sol, e os recebem”. Outros temas também
surgem como multiculturalismo, (possivelmente uma preocupação ramificada de
17
Idem. 18
A autora faz menção ao fato na nota de rodapé n. 17, à página 85 de As Origens do Totalitarismo.Anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 19
ARENDT, Hannah, Da Revolução. Brasília: Ática-UnB,1988, p. 22.
-
19
1951 sobre a adaptação de apátridas); bem como o contexto desta tese: o espaço
escolar como transição para a esfera pública20.
Em A crise na educação, Arendt analisa eventos ocorridos nos Estados
Unidos da América, todavia um dos problemas levantados por ela e encontrado na
realidade estadunidense (e também européia) é o multiculturalismo.21 Este, todavia,
não seria o desafio marcante de nossa realidade brasileira em comparação ao tema
das desigualdades sociais, bem mais premente. Em nossa realidade, a educação
termina buscando atender de forma mais estreita às necessidades ligadas a
cenários de desigualdade. Em nosso país, as escolas (notadamente públicas) são
incitadas a assumirem funções ausentadas dos lares pelas desigualdades sociais e
econômicas que marcam nossa realidade (alimentação, higiene, vestimenta, entre
outros).
A autora não nega que desde Rousseau a educação se tornou um
instrumento da política (e a própria atividade política, também, como educação).
Todavia o problema da utopia política residirá no fato de que julgar possível começar
um mundo novo com “os novos”, pode recair tão somente em “forjar” um novo à sua
medida, pela vontade dos adultos (os “velhos”). Até porque, mesmo o “desejo de
criar algo novo” dos que já compartilham o mundo (os “velhos”) será mais antigo que
os “novos” que o possam executar.22 A isto, Hannah Arendt chama do desejo de
“arrancar dos recém-chegados sua própria oportunidade face ao novo23.
Esta fraude demonstrada pela autora tem suas raízes na constatação de
que não existe um mundo novo para as crianças: existe um velho mundo,
preexistente, e que foi cimentado com as heranças e ações das pessoas que estão
e das que já se foram, e que só é “novo” para quem está chegando.
Nesse sentido, Arendt atribuía a essa falsa impressão do novo as críticas
contundentes que fez à adoção de experimentos ainda incipientes na Europa
Central, que, em suas palavras, derrubou quase que de um dia para o outro todas as
tradições e métodos estabelecidos de aprendizagem; qualificando de “miscelânia de
20
ARENDT, Hannah, Entre o passado e o futuro. A crise na Educação. São Paulo: Perspectiva,1997, p 238. 21
Idem, p. 223. 22
Idem, p.226. 23
“Cada geração deseja ser livre para obrigar suas predecessoras”. Idem, p.226.
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20
bom senso e absurdo” e que “todas as regras do juízo humano foram deixadas à
parte.”24
A autora então rejeita concepções de que o nível escolar inferior
americano em relação à Europa não reside na pouca tradição ou juventude de um
país que não alcançara os padrões do Velho Mundo, mas na servilidade da
aceitação de teorias dispersas educacionais. Por outro lado, de forma radicalmente
oposta, Arendt aponta que na realidade européia, o rigor da admissão ao estudo
secundário, privilegiando a meritocracia (e por isso eliminando parte dos/as
concorrentes) seria impensável na América do Norte, pela compreensão da
educação como direito e da igualdade como pilar (e também em nossa concepção
brasileira, naturalmente). Como efeito, Arendt aponta uma sobrecarga nas
universidades que necessitam instituir períodos preparatórios para a mesma, dentro
de suas próprias estruturas de ensino (o que também ocorre no Brasil, oscilando
entre a evasão nos primeiros anos da universidade ou proposições como atualmente
alguns dos objetivos do REUNI, que tem como foco aos/as bolsistas que estes
empreendam projetos que diminuam a evasão universitária, por exemplo).
A idéia de meritocracia como método seletivo, no Brasil, seria impensável
não apenas porque contraria a autora quando diz que a meritocracia neste caso não
seria de riqueza ou nascimento, mas de talento25. A utopia da visão arendtiana, para
nós, consistira no fato que, na realidade brasileira, a meritocracia escolar está
absolutamente submersa nas graves questões sociais e econômicas, que subvertem
substancialmente o mérito escolar. Qualquer conceito de meritocracia (e vez ou
outra florescem pessoas a defender, baseados em mui eventuais casos de
superações individuais de adversidades esmagadoras, que a meritocracia seja valor
seletivo absoluto26); é discutível quando não há a menor possibilidade de saber se
aquela aluna ou aluno seria capaz de, em outras condições geradas por riqueza ou
nascimento27, atingir maiores vôos.
24
ARENDT, Hannah, Entre o passado e o futuro. A crise na Educação. São Paulo: Perspectiva,1997, p. 226 e p.227. 25
Idem, p. 229. 26
Em observação verbal em sala de aula no curso de Doutorado em Educação na UFPE, em 2009, a professora Dr. Márcia Ângela empreendeu algumas críticas relevantes sobre a “heroicização” de alunos/as específicos/as que, a despeito de circunstâncias fortemente adversas e ausência de educação privilegiada, vencem obstáculos, obtendo colocações surpreendentes em exames nacionais, uma vez que cria, em muitas pessoas, a falsa impressão de que “só não vence quem não quer” ou não tem “fibra suficiente”. 27
E aqui lembramos que o autor Brayner observa que a escola republicana, universal, pública, laica e obrigatória pode ser capaz de atuar nas questões de um “nascer não escolhido e
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21
Arendt também assinala como pontos da crise a criação artificial de
mundos infantis como fundamento de uma pretensa igualdade que se deteriora
numa tirania da maioria, assim como o abandono da autoridade pelo conhecimento
do/a professor/a, uma realidade que vislumbramos com certa clareza em nossas
pesquisas empíricas conduzidas, com docentes que lecionavam educação para
cidadania, por exemplo.
Este último pressuposto encontrar-se-ia enraizado no terceiro e último
pressuposto criticado por Arendt28: a de não seria necessário ao/a mestre o
conhecimento da matéria ensinada, para privilegiar a prática em detrimento da
teoria. Que se demonstrasse constantemente como o conhecimento é produzido, o
que, convenhamos é muito diverso da dimensão tomada da pouca importância do
conhecimento prévio. Por outro lado, a exacerbação do inculcamento de habilidade
refletiu-se na proliferação de habilidades diversas, em prejuízo de pré-requisitos
usuais de um currículo escolar razoável (observe que a crítica da autora não está na
inovação dos currículos, mas na exagerada valoração das chamadas habilidades
extracurriculares29). Estas são algumas das visões arendtianas que encontrarão
espaço para aprofundamento nesta tese, ao abordarmos o desafio da educação
para cidadania em nosso país.
Do ponto de vista prático-formal, este trabalho buscou seguir as
orientações técnicas da Associação Brasileira das Normas Técnicas nas questões
gerais, e quanto ao uso de negrito, este ficou restrito aos títulos de referências,
sendo o inclinado destinado a expressões em língua estrangeira, e a utilização de
ambos os recursos para o destaque de informações que desejamos transmitir.
Apesar de um pouco mais trabalhoso e menos utilizado, optamos pelo sistema
completo de notas de rodapé, para facilitar a identificação exata da página ou trecho
da obra a que se referem citações ou mesmo transcrições literais de passagens de
textos, e evitar remeter o/a leitor/a às referências ao final do trabalho, como ocorre
com o sistema autor-data.
arbitrário”.BRAYNER, Flávio Henrique Albert. Educação e republicanismo. Experimentos arendtianos para uma educação melhor. Brasília: Líber, 2008, p. 47. 28
ARENDT, Hannah, Entre o passado e o futuro. A crise na Educação. São Paulo: Perspectiva,1997, p 232. 29
“Não discutirei tampouco a questão mais técnica, embora a longo prazo mais importante, de como é possível reformular os currículos de escolas secundárias e elementares de todos os países de modo a prepará-las para as exigências completamente novas do mundo de hoje”.Idem, p.234.
-
22
Quanto às pesquisas empíricas empreendidas, utilizaremos o penúltimo
capítulo para explicações mais detalhadas, além da disponibilização em anexo dos
questionários e gráficos necessários. Os caminhos metodológicos inerentes a uma
tese de doutorado passaram, naturalmente por alterações. As investigações
preliminares mostraram inicialmente alguns obstáculos no sentido de que, quando
não disponível em uma disciplina, a educação para cidadania dificilmente estava
contemplada em ações que pudessem ancorar a transversalidade, sendo a última
mais presente no discurso que na prática.
Desta forma, pareceu-nos que o contraste teria mais a contribuir para o
objetivo dessa pesquisa, dificultada pelo fato de que escolas particulares haviam
buscado mais a disciplinarização da educação para cidadania, enquanto escolas
públicas normalmente abordavam a educação para cidadania de forma transversal.
Por isso, enveredamos sobre o estudo comparativo. Ainda assim, nos inspiramos
parcialmente na experiência de pesquisa vivenciada pelos professores Alfredo
Gomes e Edson Francisco de Andrade, publicizada no artigo Autonomia das
escolas: dimensões e contradições no sistema municipal de Recife, por ocasião
do estudo com as escolas nomeadas primavera, verão, inverno e outono, para
pesquisarmos a prática da educação para cidadania em quatro escolas (públicas e
privadas). Temos compreensão que tal escolha gera um ponto de vista, que sozinho,
não poderá contemplar toda a multiplicidade de situações e justificativas para a
prática, onde a comparação em educação gera uma dinâmica de raciocínio que
obriga a identificar semelhanças e diferenças entre dois ou mais fatos, fenômenos
ou processos e sua interpretação, o que revela a importância de compreender outros
dados e discursos.
Para os propósitos dessa pesquisa sentimos necessidade tanto de dados
qualitativos como quantitativos. Com isso, decidiu-se, em relação às entrevistas com
professores/as, por questionamentos com liberdade de acréscimos e comentários
dos/as mesmos/as, e pela observação do ambiente escolar. Do ponto de vista
quantitativo, empreendemos duas pesquisas, uma direcionada a pessoas votantes
em uma eleição para o conselho tutelar, e na outra ponta, uma pesquisa direcionada
aos secretários e secretárias de educação dos municípios pernambucanos, sobre a
programação da abordagem da educação para cidadania nas escolas municipais.
Naturalmente foi empreendida uma pesquisa bibliográfica clássica, para o
suporte teórico da tese em mãos. Utilizou-se a análise documental de legislação,
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23
planos, matérias em jornais e sites, outras teses e dissertações, publicações de
institutos de pesquisas e obras relativas.
Do ponto de vista do conteúdo, este trabalho organiza-se em seis
capítulos: no capítulo inicial são debatidos conceitos sobre a cidadania, com seus
significados históricos bem como as concepções de cidadania escalonada e de
cidadania enquanto perda.
No segundo capítulo apresentamos alguns ruídos atuais na realidade
brasileira para a conexão entre cidadania e educação para cidadania, tratando da
concepção de república na escola e dos fundamentos da educação para a cidadania
ao longo da experiência brasileira, com seus avanços e retrocessos.
No terceiro capítulo, estabelecemos a análise da idéia da
representatividade e decisão, com as experiências de representatividade brasileira,
o desafio da fala pública e da participação decisória nos espaços públicos.
No quarto capítulo traremos as compreensões do educar para cidadania,
nos paradigmas e contexto escolar da educação para cidadania quando a própria
concepção de república brasileira parece, por vezes, oscilar.
No quinto capítulo refletimos sobre os resultados de nossas pesquisas
empíricas, estabelecendo os sentidos entre a pesquisa teórica bibliográfica e os
fragmentos de realidade encontrados em nosso recorte prático, conectando os
achados para fornecer as reflexões das nossas considerações finais na proposta de
educação para cidadania, ao sexto capítulo.
Justificamos a escolha do tema pela relevância da compreensão de como
entender a perspectiva do ensino da cidadania, em limitações e possibilidades, e
sobre qual formação para cidadania propor. A justificativa não se restringe a como
se compreende “ensinar cidadania”, mas como conceber a cidadania no ambiente
escolar sob um olhar participativo (mais que democrático) e que a contemple como
construção, sem abrir mão da competência.
Com esta escolha, teremos a oportunidade de fazer uma análise de um
tema relevante na educação sem, esperamos, recair no pouco punido delito das
palavras vazias, como forma de tornar a cidadania mais próxima de nossas vidas, e
desta forma contribuir em seu fortalecimento.
-
24
1. CIDADANIA - OU O QUE NÃO SEJA
1.1 Significados históricos e axiológicos para cidadania
Discussões sobre organização estruturada humana podem ser observadas
na concepção de contrato social de Rousseau, onde se compreendeu a perspectiva
do Estado como uma criação humana a serviço dos mesmos seres humanos, numa
renúncia de sua força e liberdade ao Estado através deste contrato. A recompensa
constituiria a proteção de um interesse comum, na função de legitimidade-poder
(pensamentos já aventados por Spinoza, que além da idéia de “pacto social”,
assinalara “jamais seremos homens se não formos cidadãos”). A perspectiva é
encontrada em outras leituras posteriores, como a legitimidade-crença de Weber,
onde a dominação legítima compreende a “submissão voluntária aos sistemas de
poder em cuja validade o sujeito acredita”30.
Hodiernamente, podemos observar que, em se tratando da posição
humana na sociedade, enquanto cidadãos ou cidadãs, os critérios de
enquadramento de cidadania começam na redução da cidadania territorial ou
declarada. Nesta estreita concepção, atenderiam pelos nomes de outros ou outras,
o que couber na extensa peneira das minorias atemporais, a exemplo de imigrantes,
apátridas ou mulheres. Como o próprio conceito de cidadania, o conceito de
excluídos/as também se presta a algumas críticas. Observa Oliveira que
Antes de tudo, creio que uma decantação terminológica preliminar se faz necessária, pois, como costuma ocorrer com os conceitos que caem no domínio público, também o de exclusão vem se prestando aos mais diversos usos, o que ocasiona uma certa diluição retórica de sua especificidade. Assim é que têm sido chamados de excluídos os segmentos sociais mais diversos, caracterizados por uma posição de desvantagem e identificados a partir de uma pertinência étnica (negros e índios), comportamental (homossexuais), ou outra qualquer, como é o caso dos deficientes físicos, por exemplo. Na maior parte dos casos, esses segmentos constituem grupos tradicionalmente chamados de ‘minorias’, designação que permanece, a meu ver, mais apropriada
31.
De qualquer maneira, além da exclusão fática de situações como a
negação prática da cidadania, como no caso da condição de apátrida, também se
identificam as distorções conhecidas por cidadãos e cidadãs em situações de
30
MERQUIOR, José Guilherme. Rousseau e Weber, dois estudos sobre legitimidade. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 2002, pág.22, 75 e 106. 31
OLIVEIRA, Luciano. Os excluídos existem? Notas sobre a elaboração de um novo conceito. Disponível em , acessado em 20 de julho de 2011.
-
25
“escalonamento” de acesso às benesses que deveriam ser oportunizadas na
sociedade em que vivem. Possivelmente pelas nuances provocadas pelo
subjetivismo da segunda análise, deixou-se de digressar sobre a cidadania negada
premptoriamente (na situação de não-cidadãos/ãs, formalmente). Prevalece a
relevância que oscila em dois níveis: da inefetividade ou diversidade das cidadanias
entre as pessoas de uma mesma sociedade, ou até a concepção (que parece ter se
imiscuído mais especialmente na esfera educativa) de que tudo possa contribuir
para reduzir essa distância da cidadania almejada.
Nesse sentido, discorrer sobre o tema provoca inicialmente um
contragosto do presente trabalho, que é o fato de que a palavra cidadania
assemelha-se atualmente a uma roupa desgastada pela utilização de inúmeros
transeuntes, cada qual com o manequim mais diverso que outro, que dilatam ou
reduzem sua extensão, e sobretudo trocam seu conteúdo de acordo com quem a
vista e para qual fim deseja dirigir-se.
Possivelmente, podemos observar que não é tão difícil pensar o que talvez
não seja cidadania, ou mais nitidamente que muitas coisas podem contribuir para
um desenvolvimento geral humano, mas não necessariamente da cidadania de um
ser humano inserido numa determinada sociedade.
Primordialmente, não caberá a promessa de um pretenso mapeamento
histórico do conceito de cidadania neste capítulo. Além da crítica qualquer espécie
de “evolucionismo histórico” podemos resvalar em mera compilação de informações
de resultado sofrível. Exposição minuciosa de itens sobejamente conhecidos resulta,
no falar de Oliveira, na “tendência a escrever na dissertação ou tese verdadeiros
capítulos de manual, explicando redundantemente (...) o significado de princípios e
conceitos que são como o bê-a-bá da disciplina”32. Desta forma, atemo-nos aos
fatos de buscar aqui atender a um dos olhares possíveis sobre o percurso histórico
da conceituação da cidadania.
A despeito da sua origem intrinsecamente ligada à vida em sociedade,
variações diversas de ordem política, social e econômica trouxeram um
cinzelamento da cidadania aos padrões vigentes de cada espaço de tempo e
32
OLIVEIRA, Luciano. Não fale no Código de Hamurábi! Disponível em acessado em 21 de março de 2009.
-
26
convicções. Sua existência nas relações humanas organizadas ora sofreu
estreitezas, ora alargamentos em seu conceito.
Na realidade da Grécia, a cidadania atendia por um conceito de
naturalidade: homens nascidos em terras gregas atendiam o requisito primário de
cidadão, conseqüentemente excluindo estrangeiros. Sendo posteriormente
acrescidos na esfera da cidadania, permaneceram, contudo, os critérios de
separação, hierarquizando as cidadanias, numa polarização do poder político que
traziam em seu bojo a limitação do seu acesso 33.
Em Roma, por sua vez, a similitude alcançava também a realidade da
cidadania. A economia lastreada na escravidão, e a óbvia disparidade entre classes
de habitantes, traziam uma cidadania restrita ao patriciado, que dispunham dos
direitos políticos vigentes. Condições posteriores foram acrescidas a quem tivesse
naturalidade romana além da situação de homem livre. Contudo não se pode falar
em popularização da condição cidadã neste caso. A influência da religião calcada
nos mitos serviu de instrumento para uma alegada comunicabilidade exclusiva do
patriciado com as divindades, exercendo controle sobre os campos políticos, como o
Patriciado e mesmo o Senado 34. Mesmo com o advento da criação do Tribunato e
da Assembléia da Plebe, a vocação aristocrática romana se mantinha firme ainda
que eivada de algumas conquistas.
No Feudalismo, a nuvem religiosa sobraçou o brilho da preocupação com
as questões políticas35, e somando-se às invasões bárbaras que surpreendiam uma
população ainda de costumes sobreviventes da queda do Império Romano; o cenário
resultou numa organização social dividida em camponeses/as, nobreza e clero. A
dependência da proteção de nobreza e clero pelas possibilidades materiais de
defesa destas classes trazia situações como a impossibilidade de que integrantes de
classes inferiores estabelecessem seus próprios julgamentos de conflitos entre si;
diferentemente da nobreza, só julgada entre seus pares. À maneira de crianças, não
se reconhecia na plebe a capacidade de solucionar conflitos ou mesmo representar
suas necessidades, exigindo-se para tal estarem vinculados aos senhores de
antanho. Desta forma, um servo só acessaria o poder público sob mediação de um
33
Sobre isto discorre Cardoso, citando as classes censitárias do legislador Sólon, no século VI a.C. CARDOSO, Ciro Flamarion . A Cidade Estado Antiga. São Paulo: Ática,1985, p.47. 34
Idem, p.65. 35
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 43.
-
27
nobre, em relação de submissão e fidelidade36. Faz-nos pensar se esta
representação “amparada” se repete nos dias atuais, diante da mistura de
representatividade ou mero apoio aos/as que não possuiriam condições de
representarem-se, no dilema entre “falar com” ou “falar por”.
É importante acrescentar que há distinções entre cidades medievais
propriamente ditas e a sociedade feudal. Entende-se que na sociedade feudal não
havia princípio de igualdade entre cidadãos, enquanto que nas cidades medievais
havia “ensaios” de cidadania, através de direitos e deveres restritos e intra-muros.
Marshall repele esta situação com embrionária de cidadania, pois concebe a mesma
como nacional: não baseadas em costumes locais, mas em costumes de um país 37.
Tal compreensão ganha corpo no período da Baixa Idade Média, onde a
gradual centralização do Estado estabeleceu um novo dinamismo econômico,
político e social. Com um capitalismo nascente que fazia par com as aspirações da
nova burguesia, esta última vivia a dualidade do poder econômico despido de
direitos, que ainda restritos a outras classes. A idéia de um caráter hereditário do
poder perde força na Baixa Idade Média, adquirindo um aspecto de transição. As
transformações trazidas no bojo do nascente desenvolvimento da ciência, e a
propagação do conhecimento, começam a trazer uma maior valorização do sentido
de liberdade. E, embora discutíveis posto que restritos, também aos desejos de
igualdade. As transformações sociais e políticas que acompanhavam a mudança de
mãos do dinheiro existente inclinavam-se à contestação da hegemonia do clero e
nobreza, sendo que as sementes espalhada pelo novo pensamento favoreciam a
ascensão da burguesia. Essa nova racionalidade sentiu-se atendida com as idéias
iluministas-liberais, florescentes à época.
De forma ainda incipiente, tais compreensões alimentava-se de
experiências como as Revoluções Burguesas na Europa, nos séculos XVII e XVIII, e
de fontes teóricas como Rosseau e Locke38. A revolução de idéias começou a
receber a poderosa injeção da Revolução Industrial, delineando uma luta por
igualdade que, na prática, foi mais voltada a reduzir a distância entre burgueses e
36
BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal. Lisboa: Editorial Estampa, 1982, p.398-405. 37
MARSHALL, Thomas Humprey. Cidadania, Classe social e Status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967, p.64. 38
LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. São Paulo: Abril Cultural, 1973 e ROSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social e Outros Escritos. São Paulo: Ed.Cultrix, 1980. Enquanto as concepções abraçadas por este último compreendiam uma universalidade; as idéias de Locke pareciam servir às necessidades da burguesia, uma vez que buscavam associar ao conceito de liberdade o conceito de propriedade material (mesma referência, p.88).
-
28
nobreza. Abaixo destas, havia toda uma massa, que passando ao largo destes
novos clamores, personificava a “burguesia” ansiosa da “nobreza burguesa”. Com o
agravante de que não restava-lhe poder econômico para suavizar o impacto da
pressão exercida 39.
Diante deste novo quadro, observava-se inicialmente nestas pessoas
apenas a privação de cidadania, onde trabalhadores desempregados (homens, em
sua maioria, mas já grassava o trabalho insalubre de mulheres e crianças, sub-
remuneradas) decidiram voltarem-se contras o aspecto visível da Revolução
Industrial: as nascentes máquinas. O retorno sobre estas atitudes desesperadas
consistiu na aprovação pelo Parlamento Britânico, em 1812, da pena de morte para
quem destruísse uma máquina40.
Além da visível influência nas relações de trabalho à época, as novas
concepções inspiraram movimentos de reformas e de independência em outros
países. A primeira oportunidade de reconhecimento de valores elevados à condição
de direitos e garantias foi a Bill Of Rights, datada de treze de fevereiro de 1689,
como marco da chamada Revolução Gloriosa. Nessa circunstância, o a burguesia
inglesa conseguiu impor limites à ação real. Vale observar que esta noção à época
estava bem mais fixada a uma valorização do direito de propriedade (numa
concepção mais individualista que comunitária). Naturalmente que o resultado
estabelecia uma cidadania desigual, onde o critério para caracterizar a condição de
cidadão com direitos não era mais a religião ou a nobreza, mas a propriedade
material. Assim, a discussão sobre cidadania terminou adiada para o período
posterior às Revoluções Burguesas, em critérios como liberdade e igualdade.
Este novo eixo – liberdade e igualdade – terminou por discutir a inclusão
de mais integrantes da sociedade nos direitos políticos, ainda que para cidadãos
39
Na busca de minimização de custos e aumento de lucros, a força de trabalho masculina adulta era desprezada em contrapartida à utilização de mão de obra feminina e infantil, trazendo duas formas de convulsão social: a fragilidade orgânica e a ausência de normas de proteção escravizava estes/as, enquanto a massa de homens desempregados fomentava o comércio de bebidas, aumentando as ocorrências de agressões, muitas delas dirigidas às mesmas mulheres e crianças. Depoimento de Thomas Clarke, onze anos, em 1883, à Comissão do Parlamento Inglês: “Ganhava quatro xelins (com a ajuda do irmão) como emendador de fios. Sempre nos batiam se adormecíamos... O capataz pegava uma corda da grossura do meu polegar e batia em nós... costumava ir até a fábrica pouco antes das seis, e trabalhar até nove da noite. Trabalhei toda noite, certa vez.” GUIMARÃES, Christina e ALVES, Antônio. Atualidades, uma visão histórica. Recife: Líber, 1996, p.15. 40
Lord Byron, membro da Câmara dos Lordes, afirmou dissonantemente - embora em tom paternalista - que não se poderia negar que as revoltas surgiram de circunstâncias provocadas pela miséria sem paralelo: “a luta destes miseráveis mostra que apenas a carência absoluta poderia ter levado pessoas antes honestas e industriosas, a cometer excessos tão prejudiciais a si, suas famílias e a comunidade”. Idem, p.15.
-
29
desprovidos economicamente, esta cidadania estivesse longe de representar uma
realidade. Deste período, destaca-se a Declaration des droits del´homme et du
citoyen, em vinte e seis de agosto de 1789, que evidenciou a questão da cidadania.
Na ocorrência das guerras mundiais, vieram à tona nuances mais
complexas deste debate. Uma coleção de situações inusitadas gerava uma
perplexidade que foi além das discussões sobre cidadania e desigualdade social,
que foi o caso de nossa primeira hipótese, no início deste capítulo. A velha
vinculação da cidadania a uma nação perdera completamente o sentido nas fusões
e mesmo eliminação da divisão tradicional do mundo conhecido. A violência sem
precedentes dos conflitos, foi aumentada por um poder dizimador superior ao já visto
até então (fruto, quem sabe, da não-visualização do inimigo, redutor de conflitos
éticos ou internos na eliminação do que sequer se vê...). A criação e a manutenção
de regimes totalitaristas, a prática da violência institucionalizada pelo Estado e a
fragilidade do poder da sociedade civil; bem como um novo tipo de medo reinante
sobre o futuro, sinalizavam que a cidadania necessitava encontrar um caminho para
além dos partidarismos e nações. Começou, portanto, a idéia ainda vacilante da
vinculação da cidadania aos direitos humanos, ainda que, às vezes, ser cidadão do
mundo, muitas vezes, fosse ser “cidadão de nada”.
Com a Segunda Guerra Mundial, as perplexidades só aumentaram. O
extermínio em massa de milhões de pessoas num passo a passo resumidamente de
cidadãos/ãs malquistos/as, para cidadãos/ãs de segunda classe e não – cidadãos/ãs
igualou judeus/as, eslavos/as, ciganos/as, homossexuais, comunistas, velhos/as,
portadores/as de deficiência física ou mental aos antigos hilotas das sociedades
espartanas. Talvez um pouco mais grave: sua morte não apenas era banal, ou sua
condição sub-humana: sua eliminação foi considerada, preventiva ou tardiamente41,
necessária.
A eliminação “criteriosa” de pessoas somava-se à morte massificante e
anônima, através de métodos de longo alcance como o lançamento das bombas
atômicas sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, a seis e nove de
agosto de 1945, que mataram cem mil pessoas diretamente e deixaram marcas em
41 Cerca de setenta mil pessoas foram consideradas inaptas a viver, pelo regime nazista, por questões de velhice ou doença. Muitas foram assassinadas nos próprios sanatórios e orfanatos em que se encontravam, na tentativa de eliminar por completo a população de portadores/as de deficiência física ou mental. CORREIO DO BRASIL, Descoberto Cemitério Nazista, reportagem de cinco de outubro de 2006.
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30
gerações posteriores42. Diante de tantas perguntas, mas sobretudo diante da
necessidade urgente de respostas, em vinte e seis de junho do mesmo ano foi
criada a Organização das Nações Unidas, cujo órgão mais importante, o Conselho
de Segurança, assumiu a tarefa de buscar manter a paz mundial. Em 1948, a
Declaração Universal dos Direitos do Homem foi seguida pela elaboração de outras
declarações43. A criação de mecanismos internacionais de proteção de direitos
humanos buscou inicialmente atender a um novo conceito de cidadania; não mais
focada na vinculação das pessoas às nações, mas à sua condição humana. O
entrave, todavia, permanecia num aspecto crítico: embora os direitos humanos
fossem definidos como insuscetíveis de alienação, superior aos governos (e aí os
primeiros vagidos de uma concepção de cidadania planetária); no momento em que
não havia um governo também inexistia instituição com força suficiente para garanti-
la. Ou, conforme observou Arendt no caso das minorias, quando uma entidade
internacional se investia de autoridade supra-nacional não-governamental, “seu
fracasso se evidenciava antes mesmo que suas medidas fossem completamente
tomadas”. Isto porque se opunham não somente os governos a esta pretensa
usurpação de soberania, e sim porque diante de um discurso, segundo a visão da
autora, que aproximava-se constrangedoramente da defesa dos animais (pela
fraqueza da efetividade real); “as próprias nacionalidades interessadas deixaram de
reconhecer uma garantia não-nacional, desconfiando de qualquer ato que não
apoiasse claramente os seus direitos “nacionais”44.
A transição de cidadania e do poder público, em situação de condições
aviltantes e desiguais também pôde ser observada na criação do Welfare State, o
Estado do Bem Estar Social. Com a perspectiva de atender aos desequilíbrios
econômicos, terminava por constituir um óbice por sua própria formação, baseada
em posturas paliativas, não estruturais. Tal política trouxe na década de setenta a
42
GUIMARÃES, Christina e ALVES, Antônio. Atualidades, uma visão histórica. Recife: Líber, 1996, p.91. 43
Convenção para a Prevenção e a repressão do Crime de Genocídio, 1948; Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, 1965; Pacto Internacional Relativo aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, 1966; Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos, 1966; Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação das Mulheres, 1980; Convenção contra Tortura e Outras Penalidades ou Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes, 1984. 44
ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. Anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.325.
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exposição da debilidade de suas ações na promoção de alterações significativas
para consecução da cidadania almejada.
Tanto a idéia do Estado do Bem Estar Social quanto os acordos firmados
entre as nações; e mesmo as garantias constitucionais entre as nações após as
discussões desdobradas pela ocorrência das guerras; não foram suficientes para
uma verdadeira promoção de cidadania. Não que contemplasse em profundidade
temas como liberdade, igualdade ou direitos humanos. Atualmente, além do aspecto
democrático de alguns regimes, e da substituição gradual do Estado do Bem Estar
Social pelo Estado Democrático de Direitos; percebe-se que em nosso caso
específico, não são as diferenças culturais ou tolerâncias que nos afastam. Na
prática, nossas desigualdades sociais e contrastes econômicos são os dados que
continuam alijando pessoas do processo de participação e decisão política,
alienando-nos de direitos essenciais. Nesse sentido, sabemos que não basta relegar
à escola, mais uma vez, o condão de alterar estruturas das quais ela mesmo faz
parte. Embora seja indiscutível a importância da escola no processo de
desenvolvimento humano em sociedade, não se pode esquecer que freqüentemente
tem se transferido à escola responsabilidades e transformações almejadas (ainda
que a sinceridade deste desejo seja criticada por muitos/as) que, individualmente, e
nas atuais condições, não seria capaz, nem responsável.
Na conhecida análise sobre a cidadania elaborada por Marshall, o
sociólogo inglês acreditava que o desenvolvimento da cidadania atendeu a relações
entre diferentes classes. Entendeu o autor que ela é ditada mais pela história que
pela lógica:
Chamarei estas três partes, ou elementos, de civil, política e social. O elemento civil é composto dos direitos necessários à liberdade individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à justiça. (...) Por elemento político se deve entender o direito de participar no exercício do poder político, como um membro de um organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos membros de tal organismo.(...) O elemento social se refere a tudo que vai desde o direito a um mínimo de bem-star econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade
45.
45
Nesse sentido, a cidadania surge dividida em categorias diversas, no interesse de demonstrar o desenvolvimento discrepante de cada uma, vinculando-as aos setores da sociedade que pertenciam. MARSHALL, Thomas Humprey. Cidadania, Classe social e Status. Rio de Janeiro: Zahar. 1967, p.63 a 66.
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Assim, Marshall trouxe que a cidadania civil, superando o período da
Idade Média, foi direcionada à burguesia. O autor demonstrou duas conseqüências
sobre quando a justiça real - fixada no direito consuetudinário do país e não em
costumes locais- é estabelecida. A primeira identifica que no desligamento dos
elementos da cidadania tornou-se possível para cada um deles “seguir seu caminho
próprio, viajando numa velocidade própria sob a direção de seus próprios princípios
peculiares”. Na segunda, a distância dos órgãos nacionais, com tecnicismos que
fizeram com que os cidadãos tivessem que apoiarem-se em especialistas que
pudessem fornecer orientações sobre a natureza dos seus direitos de cidadania e
auxiliá-los/as a obtê-los.46.
O que torna, passado os anos, incomum na leitura de Marshall não
constitui suas noções conceituais do que seja cidadania, e sim como a narrativa dos
vôos solitários de seus componentes ainda encontra reflexo na contemporaneidade.
Verificamos que possuímos, numa postura autista, um conteúdo teórico e um
conteúdo prático sobre cidadania, cujo desafio tem se encontrado na diminuição da
distância entre um e outro. E isto tem pontuado, praticamente, a prolongada
discussão sobre o papel da escola na educação para cidadania. O que na realidade
poderia significar aceitar que os alunos e alunas (especialmente parece existir este
discurso para discentes de escolas públicas, devido à situação de vulnerabilidade
econômica e social) embora sejam considerados e consideradas formalmente
cidadãs e cidadãos por nascimento, necessitariam da atuação da escola para
atingirem esse estado prático de exercício da cidadania. Não se discute amiúde a
situação destes e destas do ponto de vista nacional em relação a outros países
(embora isto ocorra eventualmente em casos de crianças de pais com
nacionalidades diversas). A discussão reside em como se tornar cidadão/ã em seu
próprio país, mesmo posteriormente a ter assim sido declarado/a
“documentalmente”.
Sabemos que estes avanços e recuos adquiriram valor à medida que nos
demonstram que a cidadania de fato se constrói cotidianamente, sobretudo porque
nossos conceitos são constantemente renovados diante de um mundo que também
se mostra em variadas formas47. Ainda assim, é importante destacarmos que a
46
Idem, p.66. 47
Isto, remetendo-se, claro, ao fato de que a compreensão do mundo (onde também nossos conceitos são inseridos) é inacabada. Sobre o tema, certa oportunidade Arendt coloca: “a
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cidadania, compreendida como processo e integrante do jogo democrático, requer o
contemplar da fala pública, da possibilidade da visibilidade, da interferência nas
relações. E nesse sentido, este processo sente a importância da formação escolar.
Tanto nos fatores mais comezinhos, como a compreensão do código falado e
escrito, como de uma compreensão maior sobre a cidadania em si mesma. Desta
forma, faz sentido dizer que os conteúdos contemplados na escola contribuem para
a cidadania, através das ferramentas e construções oportunizadas, porém não
elimina a constatação que educar para a cidadania compreende mais que fornecer
elementos gerais.
Na esteira do entendimento de cidadania e gerações de direitos,
recordamos serem os humanos, políticos e civis na primeira geração; sociais e
econômicos na chamada segunda geração; direitos coletivos na terceira e por fim os
direitos dos povos, como quarta geração48. Esta quarta geração, por sua vez,
aproxima a cidadania de temas como o respeito ao diferente e a tolerância, que
também são conteúdos transversais em freqüente discussão nas escolas brasileiras.
Ainda que saibamos que a diversidade e especificidades humanas tragam conflitos
de ponderação de interesses, apoiamo-nos em observações como da pesquisadora
argentina Elizabeth Jelin que nota ser necessário reconhecer que não existem
critérios racionais para a eleição entre valores alternativos. Também acresce que
esta situação traz como resultado uma busca mais especial: encontrar um espaço
em que, no reconhecimento da contingência das crenças próprias, se reconheça a
urgência de um compromisso ético-político em conformidade com as questões
centrais “dos tempos que nos cabe viver”. Neste contexto, “evitar o sofrimento,
ampliar as bases da solidariedade, expandir os campos da ação pública e
responsável, ao mesmo tempo em que se promove a tolerância, o respeito à
autonomia e à diferença”, podem não ter uma justificativa una e transcendente, mas
podem, diante destes tempos, serem contingentes49.
compreensão é interminável e, portanto, não pode produzir resultados finais; é a maneira especificamente humana de estar vivo, porque toda pessoa necessita reconciliar-se com um mundo que nasceu como um estranho e no qual permanecerá sempre um estranho, em sua inconfundível singularidade.” ARENDT, Hannah. Compreensão e Política, in A Dignidade da Política, Rio de Janeiro: Relume-dumará, 1993, p. 39. 48
JELIN, Elizabeth. Construir Cidadania: uma visão desde baixo. Revista Lua Nova. N 33. 1994, p. 44. 49
Idem, p.44.
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Necessitamos para este processo a constante discussão sobre a
cidadania, seja através dos meios de comunicação, das associações, conselhos;
mas naturalmente das escolas. Sabemos que o próprio conceito de cidadania está
em movimento, não sendo um conceito acabado e entregue quando de seu
nascimento com vida (e quando registrado...). Partindo deste ponto, não nos bastará
discutir apenas o conceito, mas colocar em pauta o papel da escola numa formação
que favoreça a fala pública e a visibilidade, que permitam instrumentalizar e educar
este/a cidadão/ã não apenas no jogo democrático, mas no exercimento de uma
concepção maior de cidadania.
Com uma realidade social e política peculiar, vemos que alguns dos
desdobramentos das idas e vindas do conceito de cidadania de forma global
traduziram-se em nosso país como uma visível diferença entre o Brasil legal e o
Brasil real. Esta dualidade marca-se pelo domínio das forças do Estado em relação
às forças da sociedade civil e a apropriação da coisa pública, numa ausência muito
clara de limites entre o público e o privado.
Recortando o trecho histórico brasileiro a partir da Velha República, onde
não apenas ausentava-se uma estruturação razoável dos direitos civis, como em
tantos outros países, estes direitos não se estendiam de forma a estabelecer como
cidadão/ã qualquer habitante. Aliás, nem mesmo entre estes havia uma relação
horizontal de cidadania. Esta última sofria a ausência de direitos sociais, a falta dos
direitos estabelecidos em função de uma solidariedade comunitária e organizada
pelo Estado, no atendimento às necessidades básicas.
Para a década de trinta até meados de quarenta, a noção de cidadania
estava fortemente controlada pelo Estado, e mesmo a existência de sujeitos
coletivos não tornava possível sua popularização. Começando em 1945 (e até 1964)
situações como o pluripartidarismo e uma reorganização das forças políticas, o
crescimento da autonomia da sociedade civil começou por demonstrar um vôo
autonômico do reconhecimento de entidades coletivas. Nesse sentido, a atuação
das Ligas Camponesas, entidades sindicais e União Nacional dos Estudantes
contribuíram para um questionamento maior sobre cidadania brasileira. Essa
discussão acabou diminuída (na verdade fortemente adiada) pelo advento do Golpe
de Estado, intervenção militar que acabou significando a restrição de direitos por um
período de vinte anos (1964-1985). Este conhecido período, marcado por
repressões em todas as esferas de organizações da sociedade civil e também a
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partidos políticos; estabeleceu a “cidadania negativa”. No caso, a ausência de
direitos só não era maior que a ausência das garantias destes direitos. Perceberam-
se situações de negação do direito à vida na prática, sem que sequer estivesse
previsto na teoria.
Podemos inferir deste período dois resultados do ponto de vista axiológico:
para parcela da população se ampliou a idéia de comunidade e clamor por
cidadania. Aqui, explicita-se, não mais uma cidadania que contemplasse direitos
sociais voltados à assistência, mas de foco desviado para as garantias, no sentido
do direito da força do/a cidadão/ã contra o Estado. Assim, sua independência e
inviolabilidade buscavam a limitação do poder do Estado. Por outro lado, entre a
massa de quem pouco sabia (se bem que violência, em muitos períodos da História
parece precedida por uma negação de incredulidade de quem recebe a notícia)
havia também a profunda cisão do eu privado e eu social de alguns/mas. Isto no que
tange aos/as que haviam abraçado a idéia da necessidade da cidadania conjugada
no coletivo, mas estavam enredados na angústia da salvação individual física em
detrimento dos valores pessoais abraçados a sonhos no plural. O mais grave talvez
fosse que nem a salvação individual absolveria o/a supliciado/a. Se o/a salvasse do
presente, não o salvava da dívida de culpa no futuro. Talvez porque a crueldade do
futuro esteja em desconsiderar as circunstâncias específicas do passado. Este
pareceu constituir o destino de personagens de carne e osso como frei Tito50. Num
dos depoimentos colhidos e publicados pela Arquidiocese de São Paulo:
Eu não pensava em mais nada que não fosse a possibilidade de me safar daquela situação. O que me preocupava era uma salvação individual, não procurava uma sobrevivência política. (...)Quando as torturas se amainaram, meu estado psicológico era deplorável. Ao mesmo tempo em que tudo fizera para livrar-me da tortura, agora começava a sentir remorsos por tudo aquilo e ficava com uma contradição muito grande, pois enquanto eu não hesitava em trair para conseguir uma condição de melhora pessoal, começava a pensar no que representou essa traição, não só ao nível político, como também ao nível pessoal
51. (grifo nosso)
Além da cassação de representantes políticos e da instalação do
bipartidarismo, houve praticamente a supressão dos direitos civis, ao mesmo tempo
em que o desenvolvimento econômico e a segurança receberam mais ênfase que o
social (ainda que discutíveis). Também foi clara a predominância da força do Estado
sobre a sociedade civil e seus efeitos sobre a concepção de cidadania, tais como a
50
ARQUIDIOCESE DO RIO DE JANEIRO. Brasil: Nunca Mais. Petrópolis: Vozes, 1985, p.222. 51
.Idem, idem.
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invasão do espaço público pelo privado e o reforço da profunda dependência
econômica e cultural de outros países.
Com a lenta retomada do que compreendíamos por democracia (ao
menos no que tange às eleições direitas...) o efeito mais interessante para a
cidadania, além da promulgação da Constituição de 1988 (que estabeleceu a
cidadania como princípio interno, e os direitos humanos como princípio externo); foi
a reocupação do espaço público pelas organizações de sociedade civil. Esta
reorganização, somada ao fortalecimento dos movimentos sociais e o
pluripartidarismo, deu a tônica de uma nova fase para a cidadania brasileira.
Logo após o fôlego da liberdade, a cidadania no que tange ao aspecto dos
direitos políticos sofreu um irônico revés com a renúncia tardia (objetivando evitar o
impedimento) do primeiro presidente da república eleito por voto direto no país. O
“choque de gestão” iniciado pelo presidente deposto foi suavizado, todavia mantido
por seu vice-presidente assumido (Itamar Franco). Posteriormente este último
auxiliou a eleger seu ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso. O ex-
ministro teve como marco da gestão a re-separação entre público e privado.
Infelizmente esta se focou apenas no ponto de vista econômico, na promoção de
privatizações de entidades públicas.
É possível perceber que embora no mundo ideal da cidadania sugerido
pela Constituição brasileira, as propostas destaquem-se pela promoção da
igualdade, traçando metas tangentes ao ideal; a grande desigualdade social do
saldo de fusão entre público e privado, conseqüentemente força a criação