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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA E URBANISMO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO URBANO
CAMILLA GOMES
UMA MEMÓRIA OFICIAL EM CONSTRUÇÃO: Do tombamento ao monumento
nas ladeiras de Olinda (1966-1980)
Recife
2019
CAMILLA GOMES
UMA MEMÓRIA OFICIAL EM CONSTRUÇÃO: Do tombamento ao monumento
nas ladeiras de Olinda (1966-1980)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestra em Desenvolvimento Urbano.
Área de concentração: Conservação
Integrada
Orientadora: Profa. Dra. Renata Campello Cabral
Coorientador: Prof. Dr. Antônio Paulo de Morais Rezende.
Recife
2019
Catalogação na fonte
Bibliotecária Jéssica Pereira de Oliveira, CRB-4/2223
G633m Gomes, Camilla Uma memória oficial em construção: do tombamento ao monumento
nas ladeiras de Olinda (1966-1980) / Camilla Gomes. – Recife, 2019. 154f.: il.
Orientadora: Renata Campello Cabral. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco.
Centro de Artes e Comunicação. Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano, 2019.
Inclui referências, anexos e apêndice.
1. Memória Cultural Urbana. 2. Olinda. 3. Tombamento. 4. Monumento Nacional. I. Cabral, Renata Campello (Orientadora). II. Título.
711.4 CDD (22. ed.) UFPE (CAC 2019-113)
CAMILLA GOMES
UMA MEMÓRIA OFICIAL EM CONSTRUÇÃO: Do tombamento ao monumento
nas ladeiras de Olinda (1966-1980)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para a obtenção do título de mestra em Desenvolvimento Urbano.
Aprovada em: 31/01/2019.
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________
Profa. Dra. Virgínia Pitta Pontual (Examinadora Interna)
PPGDU - Universidade Federal de Pernambuco
_________________________________________________
Profa. Dra. Isabel Cristina Martins Guillen (Examinadora Externa)
PPGH - Universidade Federal de Pernambuco
_________________________________________________
Prof. Dr. George Alexandre Ferreira Dantas (Examinador Externo)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
AGRADECIMENTOS
A dissertação é um trabalho solitário que seria impossível realizar sozinha.
Cada contribuição, direta ou indireta, para o desenvolvimento deste trabalho, assim
como para minha formação enquanto pesquisadora, foi importante para a construção
do conhecimento que aqui proponho sobre a memória de Olinda.
O primeiro agradecimento não poderia deixar de ser para minha mãe, por toda
a orientação para a vida. Desde criança, sempre me incentivou a estudar, a ir além,
mostrando que era o conhecimento a maior riqueza, algo que só faz sentido quando
compartilhado. Desde pequena, sempre sonhou que eu iria longe, que iria alcançar
caminhos que ela não teve a oportunidade de percorrer. Sigo no caminho acadêmico
muito por sua força e incentivo. Obrigada, mainha.
Minha gratidão ao CNPq, pelo fomento à pesquisa através da bolsa de pós-
graduação. Num momento de transição profissional, esse fomento é essencial para
os estudantes pesquisadores, e foi crucial para que eu pudesse cursar o mestrado e
me dedicar à pesquisa. Mesmo num momento em que os investimentos em Educação
vêm sendo tolhidos, é fundamental resistir.
Depois de ter me ajudado a segurar a barra do adoecimento mental na pós-
graduação, minha psicóloga Flávia Mucarbel merece todo meu agradecimento e
reconhecimento, por ter me ouvido, me aconselhado, me acalmado tantas vezes,
mesmo quando me questionei se realmente era capaz. Flutuando entre momentos de
certeza e de completa descrença, crises de ansiedade, bloqueio de escrita, o apoio
psicológico foi fundamental para conseguir passar por essa etapa. Obrigada, Flávia!
Não teria conseguido desenvolver a dissertação se não tivesse um Norte. É
esse o papel dos orientadores, direcionar os alunos, sobretudo quando estão
perdidos. Estive perdida durante o Mestrado, mas Renata Cabral foi aquela
orientadora que me deu Norte, me deu direção, luz. Admiro Renata desde quando fui
sua aluna na graduação. Percebi que ela, diferente de outros, realmente se importava
com o processo de construção do conhecimento desenvolvido em sala de aula. Ela
se importa com o aluno. Por mais que entendamos que isso deveria ser um pré-
requisito de qualquer professor, infelizmente isso é algo raro no mundo acadêmico.
Além de excelente professora, ela é pesquisadora de referência. A maneira como olha
as fontes, as problemáticas, é realmente inspiradora. Como orientadora, ela foi muito
compreensiva quando me senti perdida e precisava de ajuda. Isso é muito importante.
Sensibilidade, sensatez, ao passo que também questiona, inquieta, cobra. As revisões
do texto são muito pertinentes, ela faz apontamentos sempre muito fundamentados,
de quem tem um olhar que vai além. É esse tipo de professora orientadora que eu
desejo para qualquer pesquisador em formação. É esse tipo de professora orientadora
que me inspira, e em quem quero me espelhar. Obrigada, Renata, por ser uma grande
referência para mim.
Antônio Paulo Rezende, meu querido co-orientador, trabalha pela perspectiva
da sensibilidade, do afeto. Assim é também na orientação. Ele nos faz sentir capazes,
quando estamos mais incrédulos de nosso potencial. Ele nos ouve. Dá importância a
nossas angústias, como pessoas e como pesquisadores em formação. Suas palavras
me inspiraram a pensar a narrativa da dissertação por uma ótica mais poética. A
narrativa da memória é o trançado onde dança o esquecimento. Obrigada, Antônio,
por me despertar um olhar mais amplo e sensível.
Um agradecimento especial às professoras Isabel Guillen e Virgínia Pontual,
que na banca de qualificação me deram muitos direcionamentos pertinentes.
À professora Virgínia Pontual, coordenadora do Laboratório de Urbanismo e
Patrimônio Cultural, LUP, e à todas as professoras e membros do Laboratório, pelas
contribuições e discussões enriquecedoras, muito obrigada. Em especial, agradeço à
profa. Maria Luiza Freitas, por ter me cedido seu computador para escrever a
dissertação, e à professora Natália Miranda, também vice coordenadora do programa
de pós-graduação, pelo apoio.
Dário Santos foi um colega que conheci no mestrado de História, que se tornou
amigo e fiel conselheiro. Eu digo que ele é meu terceiro orientador e que já é um
grande Mestre. Obrigada Darinho, por todas as indicações, orientações e conselhos.
Aos meus colegas da turma do MDU, pela construção conjunta do
conhecimento, em especial agradeço a Davi Valentim, que é sempre generoso em
compartilhar conhecimento, pela parceria e admiração mútua. Agradeço às colegas
Naru Ferraz, Karla Passos, Andreza Cruz e Aline Bacelar, por podermos contar umas
com as outras no processo.
Aos professores do mestrado, em especial Ana Rita Sá Carneiro e Luiz de la
Mora (in memoriam), por ensinar que a construção do conhecimento é um processo
de contínua desconstrução do eu.
Às secretárias da Coordenação do MDU, Renata Albuquerque e Carla, pela
paciência, solicitude.
Obrigada à arquiteta doutoranda e colega de orientação Julia Pereira pelas
dicas, indicações e apoio.
Agradeço ao arquiteto do IPHAN-Olinda Philipe Sidharta Razeira, pelas
numerosas contribuições e sugestões, com quem pude contar desde o início.
Obrigada também à arquiteta do IPHAN-Olinda Vânia Cavalcanti, pela torcida e
contribuição valiosa, além do chefe do escritório técnico do IPHAN-Olinda, Fernando
Augusto, pelas discussões.
Ao arquivo central do IPHAN, pela boa receptividade para a pesquisa em
acervo, assim como a Andressa Aguiar, que me foi solícita em enviar o material para
pesquisa.
Aos amigos que acompanharam de perto nessa jornada Léuson, Marcella,
Gabriel, Daniel e Pedro, que, em tempos de muita turbulência emocional, foram
âncoras.
Aos queridos colegas da turma de História, por me mostrar que o processo de
aprendizagem é infinito e que nesta vida podemos chegar a um entendimento holístico
do mundo através da compreensão dos processos históricos. Obrigada Caio, Silvio,
Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus.
Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial
a Adriano Barbosa e Jucicleide Barbosa, por todo o apoio e suporte.
A memória é uma ilha de edição - um qualquer
passante diz, em um estilo nonchalant,
e imediatamente apaga a tecla e também
o sentido do que queria dizer.
...
Esgotado o eu, resta o espanto do mundo não ser
levado junto de roldão.
Onde e como armazenar a cor de cada instante?
Que traço reter da translúcida aurora?
Incinerar o lenho seco das amizades esturricadas?
O perfume, acaso, daquela rosa desbotada?
...
Ela é recheada de locais de desova, presuntos,
liquidações, queimas de arquivos, divisões de capturas,
apagamentos de trechos, sumiços de originais,
grupos de extermínios e fotogramas estourados.
[...]
Trecho de “Carta Aberta a John Ashbery”, Waly Salomão.
Olinda,
Das perspectivas estranhas,
Dos imprevistos horizontes,
Das ladeiras, dos conventos e do mar.
Olho as palmeiras do velho seminário,
O horto dos jesuítas;
E neste mar distante e verde, neste mar
Numeroso e longo
Ainda vejo as caravelas...
Olinda, quando o luxo, o esplendor, o incêndio
E os Capitães-mores e os jesuítas
E os Bispos e os Doutores em Cânones e Leis.
[...]
Trecho de “Olinda”, Joaquim Cardozo, 1925.
RESUMO
A presente dissertação parte da ideia de que existe uma memória cultural
urbana que é construída e portada através de meios e lugares de memória. Ao
perscrutar o processo de tombamento do conjunto urbanístico, paisagístico e
arquitetônico de Olinda, revelou-se algumas entrelinhas dessa memória cultural em
seu extrato oficial. Essa construção da memória oficial está relacionada com o
contexto político e com a construção da identidade que se pretendia para o Brasil na
época. Dentro da periodização proposta (1966-1980), a dissertação revela a memória
construída no discurso de seleção, reconhecimento e proteção do patrimônio cultural.
Dessa forma, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional se coloca como
sujeito construtor dessa memória oficial da cidade de Olinda, a qual viemos, então,
revelar. Ao entender que a memória cultural urbana é tudo aquilo que nos chega como
herança sócio cultural e baliza toda a nossa compreensão de mundo, devido às
permanências que provoca, assim como os traços culturais que traz em si, é essa
memória que nos dá referência de identidade, pertencimento e entendimento de
mundo. A partir da memória que é introjetada na vivência sócio cultural, respondemos
individual e coletivamente como portadores dessa memória. Isso implica em como nos
entendemos enquanto sociedade. A partir disso, no recorte do Sítio Histórico de
Olinda, vamos entender como parte da memória cultural urbana foi construída e nos
é portada desde o período proposto para a análise. Revelar essa memória cultural
urbana oficial é também revelar os processos de construção de nossa própria
identidade.
Palavras-chave: Memória Cultural Urbana. Olinda. Tombamento. Monumento
Nacional.
ABSTRACT
This dissertation is based on the idea that there is an urban cultural memory
that is constructed and carried through means and places of memory. When examining
the preservation process of the urban, landscape and architectural complex of Olinda,
some lines of this cultural memory in its official extract were revealed. This construction
of the official memory is related to the political context and to the construction of the
identity that was intended for Brazil at the time. Within the given period (1966-1980)
the dissertation reveals the memory built up in the discourse of selection, recognition
and protection of cultural heritage. Thus, the National Historic and Artistic Heritage
Institute places itself as the constructor subject of the official memory of Olinda, which
we have come to reveal. When we understand that the urban cultural memory is all
that comes to us as socio-cultural heritage and that it guides our whole world
comprehension, due to the permanences that it causes, as well as the cultural traits it
brings itself, it is this memory that gives us reference of identity, belonging and
understanding of the world. From the memory that is introjected in the socio-cultural
experience, we respond individual and collectively as bearers of this memory. This
implies how we understand ourselves as a society. From this, in the historical site of
Olinda, we will understand how part of the urban cultural memory was constructed and
carried since the intended period for the analysis. Revealing this official urban cultural
memory is also revealing the process of building our own identity.
Keywords: Urban Cultural Memory. Olinda. Preservation. National Monument.
LISTA DE IMAGENS
Imagem 1 – Capa do Volume I do Processo de Tombamento do conjunto
urbanístico, paisagístico e arquitetônico de Olinda-PE,
processo nº 674 -T- 62............................................................. 67
Imagem 2 – Projeto Rede de Arquivos do IPHAN....................................... 75
Imagem 3 – Coluna do Correio da Manhã de 24/04/1968, processo nº 674-
T-62.......................................................................................... 82
Imagem 4 – Certificação do Tombamento do Conjunto Arquitetônico e
Urbanístico da cidade de Ouro Preto-MG em fevereiro de
1938. Processo nº 70-T-38...................................................... 96
Imagem 5 – Fotografia da Antiga residência e colégio dos Jesuítas e Igreja
de N. Senhora das Graças....................................................... 101
Imagem 6 – Referência da Fotografia Anterior, datada de 1967................. 101
Imagem 7 – Foto Panorâmica tirada de um ponto próximo à fronteira da
Sé, onde se veem: em primeiro plano, telhados das casas da
Ladeira de São Francisco; em segundo plano, ao centro: a
Igreja de N. Senhora do Carmo, à direita, o Mosteiro e Igreja
de São Bento, a Igreja de São Pedro; e aos fundos,
Recife...................................................................................... 102
Imagem 8 – Desenho, em linha tracejada, da Poligonal de Tombamento
proposta pelos arquitetos citados. Processo nº 674-T-62........ 106
Imagem 9 – Cópia Autêntica do Tombamento do conjunto urbanístico,
paisagístico e arquitetônico de Olinda-PE. Processo nº 674-T-
62............................................................................................. 112
Imagem 10 – Decreto que erige Ouro Preto em Monumento Nacional, de
1933......................................................................................... 115
Imagem 11 – Trecho do Jornal O Globo, de 7 de setembro de 1972,
constante no processo 674-T-62.............................................. 122
Imagem 12 – Telex enviado de Renato Soeiro para Jarbas Passarinho
sobre a urgência de providências sobre a destruição de
Olinda. Data de 19 de outubro de 1972..................................... 132
Imagem 13 – Trecho do Jornal do Commercio de 3 janeiro de 1973. Consta
no Processo 674-T-62, Vol. 3, pp. 44. Série Tombamento........ 134
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Bens Móveis e Imóveis inscritos nos Livros do Tombo do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em
Olinda, até 1968........................................................................ 85
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
Arena Aliança Renovadora Nacional
BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
CFC Conselho Federal de Cultura
CNV Comissão Nacional da Verdade
CONARQ Conselho Nacional de Arquivos
CPDOC Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea
do Brasil
DPHAN Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
FGV Fundação Getúlio Vargas
FUNDARPE Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado de
Pernambuco
ICEI Instituto de Cooperação Econômica Internacional
ICOMOS Conselho Internacional de Monumentos e Sítios
IHGB Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
MDB Movimento Democrático Brasileiro
MEC Ministério de Educação e Cultura
PCH Programa Integrado de Reconstrução das Cidades Históricas
PDLI Plano de Desenvolvimento Local Integrado
SPHAN Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO. A MEMÓRIA É UMA ILHA DE EDIÇÃO................. 16
1.1 Caracterização do Problema........................................................... 16
1.2 Objetivos geral e específicos.......................................................... 21
1.3 Referencial teórico e diálogos historiográficos............................ 22
1.4 Procedimentos Metodológicos....................................................... 26
1.5 Estruturação da Dissertação........................................................... 27
2 O PATRIMÔNIO A PARTIR DA MEMÓRIA: ESCOLHAS TEÓRICAS.........................................................................................
30
2.1 Macondo como representação do mundo. Atenas como representação da vida.....................................................................
30
2.2 Mnemósyne e Clio – O mito da memória....................................... 35
2.3 A memória e o paradoxo da lembrança......................................... 39
2.4 Cidade: memória e patrimônio........................................................ 47
2.5 Lugares de memória e a memória dos lugares............................. 51
3 DO TEXTO AO CONTEXTO. A DITADURA E A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA OFICIAL....................................................................
57
3.1 Do universo da memória urbana ao recorte da memória oficial.. 57
3.2 Ditadura Militar e as reverberações no IPHAN.............................. 61
3.3 Processo, Arquivo e os Armazenadores da memória................... 65
3.4 Comissão Nacional da Verdade e o Direito à memória................ 71
4 UMA OLINDA CRISTÃ E VERDE. DO TOMBAMENTO (1966-1968)..................................................................................................
76
4.1 E esqueceste a velha Olinda, distraída?........................................ 79
4.2 Dos monumentos barrocos ao conjunto urbanístico................... 93
5 A MARTIRIZADA OLINDA CONTA A HISTÓRIA PÁTRIA. DO MONUMENTO (1972-1980)...............................................................
113
5.1 Do monumento ao tombamento e vice-versa................................ 113
5.2 A martirizada Olinda........................................................................ 121
5.3 Olinda, Monumento Nacional.......................................................... 135
6 A MEMÓRIA DE OLINDA REVELADA. CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................
140
REFERÊNCIAS................................................................................. 146
APÊNDICE A – DOCUMENTOS......................................................... 152
ANEXO A – IMAGEM 7...................................................................... 153
ANEXO B – IMAGEM 8...................................................................... 154
16
1 INTRODUÇÃO. A MEMÓRIA É UMA ILHA DE EDIÇÃO
Nas palavras do poeta Waly Salomão, a memória é lugar de constante edição daquilo
que é visto, entendido, assimilado pela percepção; é também o lugar onde tudo é
monitorado e escolhido; escolhe-se quais imagens, quais perspectivas irão
representar o fato. Esse processo de seleção, edição, escolha, implica,
necessariamente, na exclusão de outras imagens. Memória é manipulação. É também
silenciamento e esquecimento. O que se recorda é fruto de escolha, cuja intenção tem
relação com os jogos de poder. Escolhe quem está no poder.
Olinda, como cidade patrimônio, é também objeto de escolhas. O patrimônio, aliás, é
a própria seleção daquilo que é representativo de determinada sociedade. O que
permanece é o que se deve recordar. No jogo da memória, o patrimônio é a
permanente recordação do traço que constrói identidade. A cidade é patrimônio, mas
também discurso. Memória e patrimônio não estão descolados de uma realidade
exterior e complexa que orquestra a recordação através dos instrumentos do poder.
Esta dissertação trata da memória cultural urbana, em seu extrato oficial, mostrando
a Olinda construída nas ações preservacionistas do IPHAN.
1.1 Caracterização do Problema
O problema central de uma pesquisa é aquela questão que inquieta o pesquisador,
que o desperta para o entendimento mais profundo do que está envolvido nesse
determinado extrato da realidade, quem são os sujeitos, qual o contexto, quais são as
incógnitas da equação. O problema central desta dissertação gira em torno da
memória cultural. Diante do problema empírico, elaboramos mentalmente as relações
e partimos para aquilo que o esclareça, que aprofunde o nosso conhecimento do
mundo. Desde o entendimento do conceito até a elaboração da pergunta plausível, a
presente pesquisa relaciona a memória cultural e o objeto de estudo: Olinda.
A priori, comecei a questionar as relações entre memória e patrimônio cultural. Me
inquietava o fato de estudar alguns textos e correntes teóricas dentro do patrimônio
17
cultural que muito mais falam sobre a materialidade e os desafios da conservação dos
aspectos estilístico e formal. Obviamente tudo tem sua importância dentro do
processo de construção do conhecimento. A conservação do patrimônio cultural e
suas disciplinas mais aplicadas ao restauro e teorias afins são imprescindíveis até
mesmo para a discussão do que o patrimônio significa enquanto memória. Mas o que
me inquietava era precisamente essa relação. De que forma estava a memória
epistemologicamente ligada ao patrimônio cultural e por que vivemos uma época em
que o significado do patrimônio, a história que ele traz e as vivências que representa
são sobremaneira relegadas? Como se houvesse um processo de esquecimento do
que o patrimônio representa, de que vivências passadas ele é testemunho.
Essa percepção empírica me levou a questionamentos sobre o que é memória
coletiva, histórica e cultural, e o contato com novas bibliografias foi-me dando novas
percepções e instrumentos de discussão e análise. Como diz Huyssen (2000, pp. 9),
vivemos uma época de “emergência da memória, como uma das preocupações
culturais e políticas centrais das sociedades ocidentais”.
Desde o início, sabia que meu “objeto de estudo” seria Olinda. É a cidade que
investiguei no trabalho de graduação, e onde também tive experiência profissional de
estágio no IPHAN. É uma cidade com importância nacional e mundial, por ser
patrimônio da humanidade. Mas mais do que isso: é que Olinda me encanta.
Olinda se coloca como o objeto de estudo que mostrará o processo de disputas pela
representação da memória. O esforço de historicizar o processo de patrimonialização
mostra a desnaturalização do patrimônio cultural e seu entendimento como criação de
memória.
A aproximação com a ideia de memória cultural foi me dando as ferramentas para
elaboração do problema central da pesquisa. Inserido no campo dos Estudos
Culturais, o tema de minha pesquisa é precisamente a Memória Cultural Urbana.
Tema interdisciplinar, encontra fundamentação teórica em estudos realizados nas
áreas de História Urbana e Arquitetura e Urbanismo. Aliás, se for partir da minha
principal referência teórica, Aleida Assmann, em seu livro Espaços da Recordação,
Formas e transformações da Memória Cultural, posso dizer que a questão da
memória caminha ainda por áreas tão diversas como teoria da literatura, cultura e
mesmo história da memória.
18
A memória cultural é essa memória que ultrapassa a memória dos humanos, que está
para além da memória geracional e coletiva; seria o entendimento mais próximo da
memória que é construída e herdada como signo da cultura e sob forma de cultura. A
memória que lança bases de uma identidade comum sem necessariamente pertencer
a um grupo fechado que comunica essa memória através das gerações, é algo que
transcende esse processo, como fala a autora quando diz que ela “pode ultrapassar
amplamente a memória dos seres humanos” (Assmann, 2011, p. 17). Além disso,
relaciona-se com o exercício do poder:
[...] a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das
forças sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do
esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos,
dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os
esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos
de manipulação da memória coletiva. (LE GOFF, 2003, p. 422)
Fazendo-nos entender que a construção da memória é sempre um jogo político,
muitas vezes está também relacionado à ideia da guerra pela memória, refletindo as
relações de poder vigentes. Entendo que a memória cultural urbana é a construção
desse “processo social de esquecer e recordar” a cidade (ASSMAN, 2011, p. 441).
Aliás, englobe-se ao entendimento de cidade os conjuntos urbanos e os bens culturais
que a compõem. Sobre essas pedras são edificadas as representações de uma
sociedade e de sua identidade nacional, através de processos de seleção,
reconhecimento e proteção do chamado Patrimônio Cultural.
No campo do Patrimônio Cultural, por sua vez, é possível entender, a partir de um
processo de alargamento desta noção, a importância da cultura e da memória como
fundamentos epistemológicos do que se entende enquanto Patrimônio Cultural. Por
isso, estudar a questão da memória está, em sua própria natureza conceitual,
relacionada com a questão dos bens culturais e de sua conservação.
Para efeito de justificativa epistemológica da questão, nos interessa falar sobre
memória pelo esforço de pensar o patrimônio cultural a partir de uma perspectiva que
vai no cerne de sua constituição, cultura e memória, trazendo a compreensão de que
a cultura construtiva dos locais vai além de estilos e padrões estéticos, mas contém e
porta referências culturais, histórias, acontecimentos, significados, e a força simbólica
dos lugares, que é intangível, despertando então para uma discussão que trata
19
patrimônio cultural edificado para além da materialidade, entrando no limiar entre
matéria e significado. Para Carsalade,
A noção de Patrimônio Cultural contemporânea é muito mais ampla do que
aquela que se fazia há poucas décadas atrás, quando ela se estabelecia
apenas sobre os pilares da história e da arte, época em que a
excepcionalidade artística ainda tutelava o reconhecimento histórico. [...] Dois
conceitos fundamentais para o entendimento contemporâneo do patrimônio
– a cultura e a memória - não foram explorados, mas apesar disso, a prática
contemporânea aplica a teoria brandiana indiscriminadamente aos bens a
serem preservados, desconhecendo que toda ela foi estabelecida apenas
com relação às obras de arte, hoje apenas uma parcela de nosso vasto
patrimônio. (CARSALADE, 2011, p.1).
O esforço de entender a memória como constituinte do patrimônio cultural pode
apontar caminhos para compreender que o lugar não subsiste sem sua história, sua
memória. O que é patrimônio cultural, senão a herança de uma vivência, de uma
produção, de uma construção muito além do cal e da pedra, construção que lança os
fundamentos de uma identidade coletiva?
Eu parto da ideia de que existe uma memória cultural da cidade de Olinda que reside
nas mais diversas mídias, como diz Assmann (2011) e que, através de procedimentos
analítico-interpretativos da documentação selecionada (documentação essa que é um
recorte plausível das mídias da memória), me permite interpretar essa memória ou
trazê-la analiticamente à tona, à superfície da lembrança. A análise se debruça
especificamente sobre mídias relacionadas à construção de uma memória oficial da
cidade, sendo, portanto, um substrato substancial da memória urbana. Chamo de
memória oficial porque é a memória criada pelas ações do órgão federal de
preservação do patrimônio histórico. Isso me leva a questão central: Que memória
cultural de Olinda é construída a partir do processo de tombamento do IPHAN?
O IPHAN, neste trabalho, é entendido como sujeito criador dessa memória oficial da
cidade de Olinda, mesmo entendendo que não se trata de uma instituição coesa, visto
que os agentes e as vozes dentro do jogo institucional são, muitas vezes, dissonantes
e outras vezes subalternos aos interesses que estão por trás das políticas de
patrimônio, o objetivo da dissertação está mais relacionado a descobrir a narrativa da
memória da cidade do que necessariamente discutir as dissonâncias dentro da
20
instituição, mais uma vez compreendendo os recortes necessários e possíveis dentro
da pesquisa do mestrado.
Essa pergunta central gera várias inquietações adjacentes. Dentro da busca pela
memória cultural de Olinda, atendendo ao extrato “oficial” dessa memória, que traços
culturais são levados ao esquecimento? Quais são as lacunas dessa memória? Que
sociedade essa memória representa, ou que grupos sociais? Quais as intenções
políticas relacionadas a essa memória cultural urbana? As perguntas são suscitadas
ao longo do trabalho como recurso narrativo que abre portas e levanta questões não
necessariamente respondidas, visto que, como dissertação de mestrado, delimita-se
à questão temporal e aos objetivos a atingir. É pertinente, porém, deixar questões
abertas não só à reflexão, como também a possíveis futuras pesquisas.
A espacialidade proposta, para não falar em recorte, é o Sítio Histórico de Olinda. O
processo de tombamento tem início em 1966 e os processos de patrimonialização de
Olinda seguem até hoje em curso. Dentro dessa temporalidade, fiz o recorte que vai
de 1966 a 1980 para investigação na presente pesquisa. O ano de 1980 marca a
nomeação de Olinda como Monumento Nacional. Proponho, na narrativa aqui
construída, como será visto adiante, duas periodizações: a primeira (1966-1968) trata
especificamente do tombamento e a segunda (1972-1980) trata da Olinda Monumento
Nacional. A temporalidade proposta traz, portanto, o contexto político da Ditadura
Militar, e isso implicará na análise dessa construção memorial.
Em relação à justificativa para a pesquisa proposta, além de acreditar estar
contribuindo para o avanço da História e da Ciência no Brasil, e por conseguinte,
acrescentando um tijolinho na construção do conhecimento, que são em si
justificativas tão mais amplas quanto pertinentes para qualquer pesquisa, acredito que
estudar a construção da memória oficial de Olinda em um período de repressão militar,
cheio de entrelinhas e esquecimentos compulsórios, é trazer à tona memórias
reveladas, discutir que sociedade ou que estratos da sociedade são representados
por essa memória construída e o que esse tipo de tombamento significava para a
construção da identidade nacional do Brasil à época.
É importante falar de memória sobretudo em um momento em que a memória nacional
tem sido lacerada, a exemplo da perda trágica do Museu Nacional e seu acervo
inigualável, de valor inestimável, como também pelas ameaças que nossa jovem
21
democracia tem sofrido com declarações de figuras políticas que remontam ideais
autoritários, apologia à ditadura e à tortura e enunciados que violentam a História do
Brasil, distorcendo em completude aquilo que os historiadores construíram enquanto
conhecimento histórico, em total desrespeito não apenas ao trabalho dos historiadores
como, sobretudo, aos cidadãos brasileiros.
O estudo da memória não é importante apenas para a História do Brasil ou para a
Conservação do Patrimônio Cultural, mas também para entender nossa sociedade
hoje, de que forma delineamos uma suposta identidade nacional, que tipos de
esquecimento ou lacunas da memória nacional ainda persistem e de que forma a
herança cultural que nos chega pode ser interpretada como seletiva e representante
de determinadas vontades políticas do período da Ditadura, nos levando a tentar
entender o que é a memória cultural urbana construída hoje. A pesquisa é importante
não só para historiadores ou profissionais do patrimônio, mas para uma nação que
está em constante processo de construção de sua memória.
1.2 Objetivos geral e específicos
O objetivo geral desse estudo é chegar a uma narrativa do que é a memória cultural
urbana na Olinda do IPHAN.
Como objetivos específicos, podemos propor:
Chegar a apontamentos teóricos sobre o conceito de memória cultural urbana,
em diálogo com os estudiosos de memória, como Assmann, Le Goff e Nora, de
forma a trazer para a realidade brasileira a aproximação mais pertinente do
conceito.
Fazer análise interpretativa dos documentos que compõem o processo de
tombamento do conjunto urbanístico, paisagístico e arquitetônico de Olinda, o
processo 674-T-62.
Analisar o processo de tombamento de forma a delinear que tipo de identidade
nacional se buscava no período. Construir a ideia de memória cultural urbana
a partir dos bens culturais que receberam proteção até culminar no
22
tombamento do conjunto urbano, e a partir de aí problematizar que significados
tem essa memória oficial, e de que esquecimentos ela está imbuída.
Discutir a relação entre memória e esquecimento dentro da perspectiva da
força política da construção da memória oficial, com a finalidade de delinear
que esquecimentos compulsórios acontecem e por quê. Quais são as “lacunas”
da memória nacional? Que valores e memória social são representados pelos
bens culturais salvaguardados e que grupos são porventura “esquecidos”.
Entender o que esse jogo de memória e esquecimento significa para a
construção da identidade nacional na época pode apontar que possíveis
rebatimentos essa estruturação tem em nossa sociedade contemporânea.
Entender a Olinda Monumento Nacional e que relações há entre esse pleito e
os valores baseados no patriotismo e nacionalismo da época da ditadura
militar.
1.3 Referencial teórico e diálogos historiográficos
Minha proposta de pesquisa envolve, claramente, para além da análise documental,
uma elucubração sobre o conceito de memória, que desenvolvo no primeiro capítulo.
Acredito que, como mestranda, não tive a maturação intelectual necessária para
propor um conceito, ou uma nova perspectiva para o conceito, portanto, me coube
assimilar uma construção das noções de memória a partir da revisão bibliográfica.
Partindo da interlocução entre três autores que tratam do conceito de memória,
Assmann, Le goff e Nora, construo o quadro teórico a partir do qual desenvolvi minha
pesquisa, considerando os conceitos desenvolvidos por esses autores,
respectivamente a memória cultural, a memória histórica e social e os lugares de
memória.
Como já citada anteriormente, minha principal referência teórica é a alemã Aleida
Assmann em seu livro Espaços da Recordação, Formas e transformações da Memória
Cultural. A obra é a chave do conceito de memória cultural, como citado na
Introdução. Cabe mostrar que, para Assmann:
A comunicação entre épocas e gerações interrompe-se quando um dado
repositório de conhecimento partilhado se perde. [...]. Há então um paralelo
23
entre memória cultural, que supera épocas e é guardada em textos
normativos, e a memória comunicativa, que normalmente liga três gerações
consecutivas e se baseia nas lembranças legadas oralmente. (ASSMANN,
2011, p. 17).
Assim sendo, a memória cultural está para além da memória “geracional”,
transcendendo a noção de grupo e podendo abarcar, por exemplo, a ideia de memória
nacional. O que signos de gerações passadas comunicam sobre a história e vivência
daqueles grupos que importaria para o entendimento de quem somos hoje enquanto
sociedade?
Assmann fala sobre a memória dos locais, que é uma contribuição riquíssima à ideia
de memória e sua relação com os bens culturais. Ela defende “[...] que os locais
possam tornar-se sujeitos, portadores de recordação e possivelmente dotados de uma
memória que ultrapassa amplamente a memória dos seres humanos” (Assmann,
2011, p. 317).
Assmann também fala que a memória cultural depende de mídias e de políticas, já
que “no nível coletivo e institucional esses processos são guiados por uma política
específica de recordação e esquecimento”, o que reforça a ideia da guerra de
memórias, e que a memória nacional é moldada segundo intenções políticas bem
definidas, o que precisamente iremos desenvolver na pesquisa proposta.
Le goff, no clássico História e Memória, traz já uma trajetória do conceito, debruçando-
se sobre a memória dentro da história e da antropologia, mas trazendo conceitos
freudianos, por exemplo, que ajudam a entender os mecanismos psíquicos que regem
a balança entre recordação e esquecimento, mostrando que o entendimento de
memória em outros campos do conhecimento pode servir como metáfora para o
entendimento das memórias social e histórica. Além de explorar os mais diversos
entendimentos de memória, desde a mitologia grega até os desenvolvimentos da
cibernética sobre a memória, ele, como um bom medievalista, traz a ideia da memória
medieval no Ocidente e trabalha o conceito até seus desenvolvimentos
contemporâneos.
Contemporâneo e colega de Le Goff, Pierre Nora é o historiador francês que vem
desenvolver o conceito de Lugares de Memória, em seus estudos na École des Hautes
Études, a partir de 1978. Como bem situam Oliveira e Tedeschi,
24
Os lugares de memória, para Nora, são lugares, com efeito, nos três sentidos
da palavra: material, simbólico e funcional simultaneamente, somente em
graus diversos. Em sua complexidade pertencem ao domínio do simples e do
ambíguo, do natural e do artificial, do diretamente oferecido à experiência
sensível e, ao mesmo tempo, à abstrata elaboração. Os lugares de memória
nascem da vontade de memória (OLIVEIRA E TEDESCHI, 2011, p. 52).
A princípio, esse conceito deu o aporte teórico que eu precisava para conseguir falar
do Patrimônio Cultural pela perspectiva da memória, falar da intangibilidade
praticamente invisível nos discursos patrimoniais, falar das cidades históricas não
apenas como amontoados de pedra e cal, ou de valores imagéticos ou estéticos como
são os valores artístico e histórico, mas para falar de valores enquanto memória, falar
dos significados e histórias portados por esses sítios. Lugares de memória expressam
dimensões além da matéria, como as relações indissociáveis entre matéria e
significado.
Além da minha tríade Assmann, Le Goff e Nora, tem muitas contribuições sobre o
entendimento de memória que enriquecerá essa construção teórica autores como
Ruskin, na Lâmpada da Memória; teóricos da memória como Halbwachs, na memória
coletiva e Jeanne Marie Gagnebin, quando fala da “morte da memória” em seu livro
Sete aulas sobre linguagem, memória e história; e Andreas Huyssen, que vem
tratando da “onda memorial” que tem marcado os estudos a partir da década de 1990,
como um fenômeno de “emergência da memória como uma das preocupações
culturais e políticas centrais das sociedades ocidentais” (Huyssen, 2000, p. 9).
Com essa dissertação se quer dialogar, também, com estudos dedicado a entender a
atuação do IPHAN e os processos de ruptura e continuidades na seleção do que
preservar e para quem preservar, a exemplo do recente texto de Marins (2016), citado
nas conclusões, em que faz um balanço das políticas patrimoniais no Brasil após
1980.
Outras obras que me foram essenciais no pensamento das políticas preservacionistas
do IPHAN foram O Patrimônio em Processo. Trajetória da política federal de
preservação no Brasil, de Cecília Londres Fonseca; A tese de doutorado de Ana Paula
da Silva, O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (iphan) e a Construção
da Memória Histórica Nacional por meio dos Bens Culturais Imóveis Inscritos no Livro
do Tombo Histórico (1937-1985); Sérgio Miceli, num texto sobre o IPHAN como
25
“refrigério da cultura oficial” e o texto de Marcia Chuva e Laís Lavinas O Programa de
Cidades Históricas (PCH) no Âmbito das Políticas Culturais dos anos 1970: Cultura,
Planejamento e Nacional Desenvolvimentismo, que cita o contexto político do regime
militar. Pontual e Milet no artigo Olinda, Memória e Esquecimento, trazem uma
primeira discussão sobre a memória urbana relacionada a “que práticas urbanísticas
levam ao esquecimento ou a memória da história do lugar? ” (PONTUAL E MILET,
2002, p. 40). O texto busca em documentos e relatos de memorialistas traços da
memória da cidade, fazendo uma reconstrução da memória histórica de Olinda e
trazendo a discussão das práticas urbanísticas que revelam ou escondem essa
história em suas ações. Minha proposta para o entendimento da memória urbana
parte, porém, das ações do IPHAN como sujeito que cria a memória oficial da cidade
a partir do processo de tombamento, o que difere, portanto, do artigo pioneiro de
Pontual e Milet.
Esses trabalhos ao mesmo tempo me dão embasamento e dialogam com meu
propósito de pesquisa: a busca da narrativa da memória cultural urbana – oficial-
construída sobre Olinda nas políticas e ações preservacionistas do IPHAN. Centrar
atenção numa determinada memória de Olinda, a oficial, me possibilitou não ter que
ir, obrigatoriamente, a pesquisas já feitas sobre outras memórias culturais urbanas de
Olinda e outros agentes1.
1 Sobre participação dos moradores nos processos de salvaguarda em Olinda ver dissertação de
Juliana Barreto, De Montmartre nordestina a mercado persa de luxo: o Sítio Histórico de Olinda e a
participação dos moradores na salvaguarda do patrimônio cultural (UFPE, 2008).
26
1.4 Procedimentos metodológicos
As fontes da pesquisa são os documentos constantes no processo de tombamento do
conjunto urbanístico, paisagístico e arquitetônico de Olinda, o processo 674-T-62, da
Série Tombamento, do IPHAN. Como veremos no desenrolar do trabalho, esses
documentos também são considerados mídias nas quais se ancora a memória da
cidade, conforme Assmann (2011). Além do processo de tombamento, a ida ao
Arquivo Noronha Santos me propiciou o contato com documentos constantes na Série
Inventário, onde pude encontrar algumas fotografias da cidade, inclusive algumas
citadas no próprio processo de tombamento, mas não constates nele.
O Arquivo Noronha Santos, arquivo central do IPHAN, localizado no Palácio Gustavo
Capanema (Temporariamente realocado para o Centro Empresarial Teleporto, Cidade
Nova, RJ) é o principal arquivo para a pesquisa documental da pesquisa.
Dialogando com a História Cultural, que tem ampliado não só as temáticas estudadas
como também a validade das diversas naturezas de fontes históricas, ainda que
estejamos propondo análise de documentos “oficiais”, propõe-se analisar os
documentos buscando a construção da memória, a representação dessa memória no
discurso e na seleção proposta pelo tombamento para qual cidade salvaguardar para
a memória nacional. Como lembra Pesavento,
O que cabe destacar é a abordagem introduzida pela História Cultural: ela
não é mais considerada só como um locus, seja da realização da produção
ou da ação social, mas sobretudo como um problema e um objeto de reflexão.
Não se estudam apenas processos econômicos e sociais que ocorrem na
cidade, mas as representações que se constroem na e sobre a cidade. Indo
mais além, pode-se dizer que a História Cultural passa a trabalhar com o
imaginário urbano, o que implica resgatar discursos e imagens de
representação da cidade que incidem sobre espaços, atores e práticas
sociais (PESAVENTO, 2008, p.78).
A análise interpretativa dos documentos é a busca da memória da cidade no discurso.
Na primeira parte analítica, busco, no tombamento, a memória oficial criada da cidade
de Olinda, a partir daquilo que se selecionou e o contexto das intenções dos agentes
envolvidos no processo. A exemplo, monto tabela que permite a comparação
cronológica dos bens culturais tombados antes do tombamento da cidade enquanto
27
conjunto, para que seja possível uma leitura comparada e holística do que é o
patrimônio urbano de Olinda construído desde os primórdios do IPHAN.
Na segunda parte analítica, busco, no pleito de transformar Olinda em Monumento
Nacional, a memória oficial criada a partir dos valores e entrelinhas que viam no
Regime Militar a principal força para a preservação da cidade, de modo a buscar uma
ratificação dos valores defendidos pelo regime.
1.5 Estruturação da dissertação
Componho a análise a partir de cinco capítulos.
1 – Capítulo Teórico- O Patrimônio a Partir da Memória: Escolhas Teóricas
Momento de investigação e construção de diferentes perspectivas sobre a memória.
A partir da revisão da contribuição de alguns autores como Aleida Assmann, Pierre
Nora, Jacques Le Goff e Maurice Halbwachs, construo a ideia de memória que será
trabalhada durante toda a dissertação, ao passo que faço a costura com o conceito
de patrimônio cultural, buscando então o nexo do que seria o conceito central do
trabalho: memória cultural urbana.
2 – Capítulo Contextual- Do Texto ao Contexto, A Ditadura e a Construção da Memória
Oficial
Neste capítulo, falo sobre a memória cultural urbana em seu universo e explico o
recorte escolhido a ser analisado na pesquisa, a memória oficial, relacionada às ações
preservacionistas do órgão oficial de preservação do patrimônio cultural. Também
exploro a relação entre o IPHAN e a Ditadura Militar. Falo sobre as fontes da pesquisa,
o arquivo como armazenador de memória e as relações de poder que regem o direito
à memória.
3 – I Capítulo analítico– Uma Olinda Cristã e Verde. Do Tombamento (1966-1968)
28
Momento de análise do discurso dos agentes envolvidos no tombamento de Olinda.
As várias naturezas de documento que compõem o processo são analisadas e
relacionadas ao contexto vivido, em busca da criação da memória cultural de Olinda
na preservação dos bens culturais. É no discurso que encontro a memória revelada
de Olinda e trago à superfície da lembrança.
4 – II Capítulo analítico– A martirizada Olinda conta a História Pátria. Do Monumento
(1972-1980)
Novamente, análise de documentos que compõem o processo, mas agora uma nova
periodização e um novo nexo para a memória cultural urbana: o entendimento de
Olinda enquanto Monumento Nacional, buscando relacionar o discurso ao contexto
histórico e aos valores pretendidos na criação desta memória urbana.
5 – Capítulo conclusivo- Memória de Olinda revelada. Considerações finais.
A partir da contribuição dos capítulos anteriores e daquilo que a análise documental
revelou, apresento considerações sobre a memória cultural de Olinda, mostrando
tanto os traços memoriais que foram ressaltados nos documentos, quanto a relação
política da construção da memória oficial, de forma a revelar Olinda em sua faceta
oficial que se apresenta como memória cultural urbana.
29
A índia, porém, explicou a eles que o mais terrível da
enfermidade da insônia não era a impossibilidade de dormir,
pois o corpo não sentia cansaço algum, mas sua inexorável
evolução rumo a uma manifestação mais crítica: o
esquecimento. Queria dizer que quando o enfermo se
acostumava com seu estado de vigília, começavam a se
apagar de sua memória as recordações da infância, depois o
nome e a noção das coisas, e por último a identidade das
pessoas e a consciência do próprio ser, até afundar numa
espécie de idiotice sem passado.
García Márquez em Cem anos de solidão, p.86.
30
2 O PATRIMÔNIO A PARTIR DA MEMÓRIA: ESCOLHAS TEÓRICAS
2.1 Macondo como representação do mundo. Atenas como representação da
vida
A importância da memória, no trecho supracitado, é mostrada a partir das
consequências que o esquecimento geraria, não apenas para a identidade, o saber
quem se é, como para a completa noção daquilo que nos cerca: uma espécie de
sequela que García Márquez chama de “idiotice sem passado”.
Enquanto alegoria, esse trecho nos serve bem para introduzir e discutir a importância
da memória, entendida, neste caso, como a faculdade de registrar lembranças (a partir
também de seu negativo, o esquecimento), de forma que o todo constitui um conjunto
dotado de sentido, capaz de representar identidades - e a isto caibam as questões
mais ontológicas - assim como de fornecer um complexo de referências sobre o
mundo, sobre as pessoas, sobre a vivência.
Esquecimento não é contrário à memória, faz parte dela. É preciso esquecer para
lembrar. É uma situação problemática, porém, quando esse esquecimento afeta as
referências daquilo que nos faz entender quem somos e o que é mundo ao nosso
redor. Por que a importância da memória é dada pelo que seria o estado crítico do
esquecimento? É isso que a alegoria proposta em Cem anos de solidão nos remete,
ao mostrar que, fazendo parte da faculdade memorial, o esquecimento pode chegar a
afetar determinadas lembranças que seriam cruciais para a construção das
identidades.
Porque a correção da memória pesa definitivamente sobre o indivíduo e
somente sobre o indivíduo, como sua revitalização possível repousa sobre a
sua relação pessoal com seu próprio passado. A atomização de uma
memória geral em memória privada dá à lei da lembrança um intenso poder
de coerção interior. Ela obriga cada um a se lembrar e a reencontrar o
pertencimento, princípio e segredo da identidade (NORA, 1993, p. 12).
Quando os personagens de García Márquez são atingidos pela peste da insônia e,
como consequência, passam pelos episódios de evasão da memória, eles acabam
não apenas esquecendo o nome das coisas, mas “até os fatos mais impressionantes
31
de sua infância”. Como artifício de manter a memória e a referência daquilo que os
circundava, eles começaram a marcar todas as coisas com seus respectivos nomes:
“mesa, cadeira, relógio, porta, parede, cama, caçarola”2.
Essa alegoria é ótima para entender a transição de uma memória vivida na oralidade
para a escrita. Etiquetavam as coisas ao redor para não esquecer o que eram, para
que serviam. No momento em que a memória se esvai, procuram desesperadamente
gatilhos de memória. Anotar para não esquecer. Em se esquecendo, anotavam os
nomes das coisas. A salvação da memória se dava pela própria rememoração em
signos exteriores ao corpo. A memória viva transformava-se, então, numa prótese.
Essa transição da oralidade para a escrita é, no diálogo de Fredo3, chamada de “a
condenação platônica da escrita”. Platão fala sobre os “limites internos da
comunicabilidade”. Na Atenas de Platão, a escrita ganhava espaço com a difusão do
livro, mas a palavra oral continuava tendo força de constituição das identidades,
através dos poetas. Sobre a transição cada vez mais crescente da palavra oral para
a escrita, Platão resiste:
As resistências de Platão são de outra ordem: remetem aos deslocamentos
socioculturais que a difusão do texto escrito provoca em relação à tradição e
à memória coletivas. Enquanto o poeta, na época arcaica, era o detentor de
uma memória que permitia, graças a essa palavra sagrada, dádiva das Musas
ao serviço de Apolo, a um povo inteiro de se construir e de se assegurar uma
identidade, a transferência cada vez maior dessa “função de tesaurização
mnêmica” ao escrito acarreta, simultaneamente, sua democratização e sua
dessacralização, isto é, segundo Platão, a banalização até a perversão da
atividade do lembrar (GAGNEBIN, 2005, p.51).
Esse processo de marcar as coisas com seus respectivos nomes, em Macondo, é
uma alegoria para mostrar que a memória se evadia da função psíquica do corpo e ia
se ancorar, então, em suportes externos. A escrita, neste caso, é o suporte “que
removeu a memória de dentro do ser humano e a tornou fixa e independente dos
portadores vivos” (Assmann, 2011, p. 367). Pode-se entender, então, que, para
2 García Márquez, Cem anos de solidão, 2011, Record, p.89.
3 Texto da filosofia grega clássica em que Platão descreve Sócrates em diálogo com Fredo, nas
margens de um rio. Platão, entre outras temáticas, revela sua baixa confiança em qualquer discurso
fixado na escrita, o que vem a ser conhecido como “condenação platônica da escrita”.
32
Platão, a escrita dessacralizava a memória à medida que a ancorava em um suporte
exterior ao corpo. Para Gagnebin (2005, p. 51) “Mnemósyne retira-se e deixa lugar à
fidelidade exangue do rastro escrito, acessível a todos, mas – ou talvez, segundo
Platão, muito mais por isso mesmo – desprovido do segredo que garantia a plenitude
da palavra rememoradora. ”
Mas, García Márquez vai além na evasão da memória:
Pouco a pouco, estudando as infinitas possibilidades do
esquecimento, percebeu que podia chegar o dia em que as
coisas seriam reconhecidas por suas inscrições, mas ninguém
se lembraria de sua utilidade. Então foi mais explícito. O letreiro
que pendurou no cachaço da vaca era uma mostra exemplar da
forma pela qual os habitantes de Macondo estavam dispostos a
lutar contra o esquecimento: Esta é a vaca, e deve ser
ordenhada todas as manhãs para que se produza leite, e o leite
deve ser fervido para ser misturado com o café e fazer café com
leite. E assim continuaram vivendo numa realidade
escorregadia, momentaneamente capturada pelas palavras,
mas que fugiria sem remédio quando fosse esquecido o valor da
letra escrita.4
A palavra, oral ou escrita, também precisa da memória para que cumpra sua função
de comunicação. Entendemos, então, que a memória é algo anterior à própria palavra.
O acontecimento de Macondo é uma espécie de absurdismo, onde tudo está à beira
de perder-se devido à evasão da memória. A memória funciona, podemos pensar,
como âncora, onde todas as nossas referências de vida estão aportadas. Inclusive a
palavra, a comunicabilidade, a compreensão de nós mesmos e daquilo que nos cerca.
O que seria da comunidade de Macondo sem a memória das coisas?
José Arcádio Buendía decidiu então construir a máquina da
memória que um dia desejou para se lembrar dos maravilhosos
inventos dos ciganos. O artefato se baseava na possibilidade de
4 García Marquez, Ibid.
33
repassar, todas as manhãs, e do princípio até o final, a totalidade
dos conhecimentos adquiridos ao longo da vida.5
A máquina da memória é uma invenção que não serve para a memória, mas para a
rememoração. Aliás, compreendendo também as faculdades da memória, seria
impossível repassar a totalidade vivida. A memória sem o esquecimento também não
é possível, porque reviver a totalidade vivida através da lembrança nos impediria de
viver. O excesso de recordação nos prenderia em um looping da lembrança, nos
impedindo de construir novas vivências para rememorar depois. Seria o eterno
passado no presente. A sorte dos Buendía é que Melquíades chegou com o frasco
cuja substância trouxe à luz sua memória!
Para Platão, entretanto, a memória continua sendo, por essência, uma capacidade
interior. À medida em que se ancora em suportes externos, a memória é
dessacralizada e destituída de sua aura. No diálogo de Fredo, Platão descreve um
encontro entre Fredo e Sócrates, em que conversam sobre muitas coisas, desde o
amor, a alma, a loucura, até a questão que nos interessa: a memória. Sobre isso,
Platão cria uma narrativa para expressar sua condenação da escrita:
Sócrates conta então uma história lendária que parece um mito, mas que ele
inventou sem dúvida para as necessidades do momento, sobre a origem da
escrita: há muito tempo, no Egito [...] o jovem Thot, o inventor dos números e
dos jogos de dados, apresentou sua nova invenção, a escrita, ao deus
soberano e solar, Tamuz, modelo do rei-juiz arcaico cuja palavra tem força
de lei. A escrita deveria resolver os problemas de registro e de acumulação
do saber; Thot a define como “uma droga para a memória e para a sabedoria”
(mnèmès te gar kai sophias pharmakon 274e). Tamuz, o rei solar que não
precisa escrever para garantir a durabilidade de sua palavra, contradiz essa
definição: a escrita só fará aumentar o esquecimento dos homens pois eles
colocarão sua confiança “em signos exteriores e estrangeiros” (exothen
hypo’allotriôn typôn) ao invés de treinarem a única memória verdadeira, a
memória interior à alma (ouk endothen autous hyp’autôn
anamimneskomenous [275 a]). Vem então o juízo famoso: “Não é para a
memória, é para a rememoração que descobriste um remédio” (GAGNEBIN,
2005, p. 52).
5 Ibidem.
34
O que há em comum entre o que se passa em Macondo e Atenas? Apesar de
recorrermos à literatura fantástica, as duas narrativas se entrelaçam de maneira
análoga quando falam da memória que é retirada da interioridade e é transferida para
a exterioridade. Há tanto um processo de evasão da memória, quanto de sua
transposição para signos externos. Macondo sucumbe à realidade imaginária. Atenas
passa por uma revolução da escrita, que vem a marcar profundamente, a posteriori,
os processos de vivência da memória.
De uma maneira ou de outra, a importância da memória é mostrada através da
compreensão do que pode ser ou se tornar um mundo em que nossa memória
desapareça. Uma realidade imaginária, uma “idiotice sem passado”, uma “alucinada
lucidez”, segundo Márquez. A memória, que já não habita os humanos, seria uma
prótese de conhecimento à beira do abismo do esquecimento.
Apesar da condenação platônica, de outro ponto de vista, a alemã Aleida Assmann
considera a escrita como medium de eternização e suporte da memória. Ela contradiz
Platão quando diz que foram os próprios egípcios que “enalteciam a escrita como o
medium mais seguro da memória” (Assmann, 2011, p. 195). Como o fenômeno que
marcara o “início da História”, ou, se podemos assim considerar, o fim do “período
ágrafo”, seria a condenação da memória? Para a autora, “Um papiro do século XIII de
nossa era compara a força preservadora de túmulos e livros e chega, com isso, ao
resultado de que a escrita é uma das armas mais eficientes contra a segunda morte
social, o esquecimento” (Assmann, ibidem).
É precisamente esse paradoxo que Platão sugere, e que comparece em Macondo,
como vimos. Lá, a anotação teria como objetivo não esquecer, mas se comportaria
como um remédio para a rememoração, porque a memória em si já se esvai.
Se a tarefa essencial do poeta, na Grécia arcaica, era a de “contar os acontecimentos
passados, conservar a memória, resgatar o passado, lugar contra o esquecimento”
(GABNEBIN, 2005, p. 15), então, podemos dizer que essa mesma tarefa coube ao
texto escrito.
O paradoxo da escrita há de se revelar suporte da memória. Se memória é tanto uma
faculdade do espírito quanto aquela transmitida oralmente, vemos, então, duas
esferas possíveis. Uma esfera interior, que corresponde ao desenvolvimento
individual da compreensão do mundo por meio das informações ancoradas na
35
memória, e outra, exterior, construída coletivamente pela palavra oral, pelo relato, pelo
compartilhar de vivências que se faz em comunidade e entre gerações. A escrita é
também uma esfera exterior da memória, mas que nasce a partir da construção seja
individual que coletiva. Para Assmann:
“A escrita não é só medium de eternização, ela é também um suporte da memória. A
escrita é, ao mesmo tempo, médium e metáfora da memória. O procedimento da
anotação e da inscrição é a mais antiga e, através da longa história das mídias, ainda
hoje a mais atual metáfora da memória” (Assmann, 2011, p. 199).
Visitar Platão e o diálogo de Fredo é uma maneira de trazer à memória aquilo que
está estabelecido como pilar fundador da nossa sociedade ocidental, a filosofia grega,
e contemplar o paradoxo de Platão ao condenar a escrita se utilizando dela própria.
A figura de Melquíades como aquele que vem curar a comunidade de Macondo da
peste da insônia e do esquecimento, por sua vez, é alentadora quando relacionamos
com o papel do pesquisador e do historiador na nossa sociedade contemporânea.
Muitas vezes cabe a nós portar aquela “substância de cor suave naquela maleta
entulhada de objeto indecifráveis” que, porventura, trará luz sobre a memória.
Cabe-nos agora uma estrada de compreensão da memória enquanto categoria,
conceito e fenômeno, até chegarmos a um entendimento possível do conceito chave
desta pesquisa que vem a ser a ideia da memória cultural urbana.
2.2 Mnemósyne e Clio – O mito da memória
La vida no es la que uno vivió, sino la que
recuerda y cómo la recuerda para contarla.
(García Márquez, em Vivir para contarla)
Nossa tradição de pensamento tem sempre a necessidade da busca pelo mito
fundador, e, como pilar fundante de nossa sociedade, temos a razão grega, que, entre
filosofia, política e mitologia, tem muito a nos dizer sobre nossa identidade ocidental.
Se olharmos para sua mitologia, a Grécia Antiga tem muito a nos ensinar, a nos fazer
entender onde está a origem de compreensões que temos hoje sobre o mundo.
36
Do grego, memória - mnèmes - denota o significado de conservação de uma
lembrança, assim como no latim - memoria. Para os gregos, a memória estava
relacionada à divindade Mnemósyne, mãe das musas, protetora das artes e da
história.
Ao radical grego podemos relacionar também algumas categorias da filosofia
platônica do conhecimento: “especificamente ‘anamnese e a hypomnese, a
reminiscência da essência e a lembrança da escrita” (Gagnebin, 2005, p. 53).
Anamnese (do grego ana, trazer de novo e mnesis, memória – trazer de novo à
memória) também é entendida como a reminiscência de uma recordação ou uma
lembrança incompleta e é uma categoria utilizada na área da medicina. Hypomnese
ou hypomnema, também do grego, tem várias significações possíveis nos diferentes
idiomas: pode significar memória comemorativa, lembrete, nota, normalmente
relacionada à escrita.
Também temos a mnemotécnica, que significa “a arte da memória”, sendo arte aqui
entendida no seu sentido antigo, de técnica. A mnemotécnica é talvez uma velha
conhecida dos procedimentos didáticos, a chamada memorização. Também remonta
à antiguidade6, tendo sido considerada como método de armazenamento das
informações.
Diz a mitologia grega7 que Mnemósyne, filha de Urano (o Céu) e de Gaia (a Terra) é
uma força primitiva da natureza e a guardiã da memória. Ela é não só guardiã da
memória, como sua própria personificação. Como um ser fantástico, a titânica
Mnemósyne é também irmã do titã Cronos. Trazendo para nossa reflexão, a memória
é irmã do tempo, aquele que, na compreensão antiga (em particular em Platão e em
Aristóteles), relacionava-se ao movimento dos corpos externos, em particular em
relação ao movimento dos astros (Gagnebin, 2005, p. 68).
Mnemósyne teve com Zeus nove filhas, as chamadas musas, entre as quais Calíope,
a musa da eloquência; Erato, a musa da poesia romântica; Polimnia, a musa da poesia
lírica; Melpômene, a musa da tragédia; Talia, a musa da comédia; Euterpe, a musa
da música; Terpsícore, a musa da dança; Urânia, a musa da astronomia e astrologia
6 Ver Assmann, Espaços da Recordação. Campinas, 2011, p. 31.
7 Ver mais em HESÍODO. Teogonia, A Origem dos Deuses. Estudo e tradução de Jaa Torrano, São
Paulo: Iluminuras, 1992.
37
e finalmente Clio, a musa da história. Assim, simbolicamente para nós, a história é
filha da memória.
Dessa forma, Mnemósyne é tida como a protetora das artes e da história, e o
simbolismo disso para nossa compreensão significa que é pela memória que
construímos e desenvolvemos os sistemas culturais. A música, a literatura, o teatro, a
dança... tudo e toda a compreensão do mundo está ancorada na memória. Somos
filhos da memória, daquilo que respalda uma existência anterior à nossa memória
individual e psíquica, mas que através do tempo tem estabelecido as compreensões
do mundo. Para Rosário,
A Grécia arcaica da mesma forma que diviniza a função psicológica da
Memória, diviniza a possibilidade de suas funções: a poesia é uma espécie
de possessão pelas Musas, de delírio divino que toma o poeta e o transforma
no intérprete de Mnemósine, daquela que tudo sabe, e como nos canta
Hesíodo "inspiraram-me um canto divino para que eu gloreie o futuro e o
passado".8 Apud ROSARIO, 2002, p. 2
Essa ideia de que a história é filha da memória é muito clareadora do conflito
contemporâneo que alguns historiadores têm travado sobre esse tema. Há quem as
assemelhe, há quem as antagonize. Se nos ativermos à diferença primeira entre os
dois sentidos de História (no alemão, Geschichte, como o conjunto dos
acontecimentos passados e Historie como a disciplina histórica, a narração dos
acontecimentos passados), já podemos entender que a disciplina História é
claramente uma ação baseada em pesquisa e articulação da linguagem para se referir
ao passado. A disciplina histórica tem no passado sua matéria-prima para a
construção do conhecimento. Ela é bastante distinta da Memória. Já a História
(Geschichte), como o conjunto de acontecimentos consolidados no passado, mas que,
em totalidade, forma uma significação consistente sobre a vida, essa se assemelha
mais à memória, que por sua vez é entendida como lembrança corpórea ou o conjunto
de lembranças que nos dá a referência de quem somos e do mundo ao nosso redor.
Uma vez que esse tema envolve os objetivos e fundamentos do próprio
trabalho historiográfico, muitos pesquisadores debruçaram-se sobre ele
(como Jacques Le Goff, Pierre Nora e Maurice Halbawachs) concluindo que
a memória não pode ser interpretada apenas como um processo de lembrar
8 HESÍODO. Teogonia ... p. 31-32.
38
fatos passados, ela é uma construção de referenciais sobre o passado dos
diferentes grupos sociais que são influenciados pelas mudanças culturais
(BISCOUTO FRESSATO, 2005, p.5).
Mas a memória está para além da lembrança corpórea. Ela pode inclusive não ter sido
vivida testemunhalmente, como no caso das memórias cultural e histórica. Memória
abarca em si a História, quando pensamos na nossa história enquanto indivíduos ou
como cidadãos dotados de uma identidade nacional ou de grupo.
A nossa história seria o conjunto de tudo o que vivemos e a nossa memória seria
aquilo que traz significação a nossa vida, é aquilo que constitui nossa identidade,
nosso entendimento do mundo, porque não somos capazes de lembrar da totalidade
dos acontecimentos, mas é a tarefa de seleção e balanço entre o lembrar e o esquecer
que nos dá um conjunto dotado de sentido, e, a partir de então, podemos construir
uma compreensão dos processos por que passamos até nos tornarmos nós, isso tanto
na escala individual quanto coletiva. Para Nora,
Memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência que tudo
opõe uma à outra. A memória é vida, sempre carregada por grupos vivos e,
nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da
lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações
sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de
longas latências e de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução
sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um
fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma
representação do passado (NORA, 1993, p. 9).
Tentando esclarecer ainda mais a distinção, podemos pensar que, quando Heródoto,
que é considerado o ‘pai da história, nas primeiras linhas das historiai, diz que sua
investigação é “para que a memória dos acontecimentos não se apague entre os
homens com o passar do tempo”, ele está falando do propósito da história, em ser
esse tipo de “guardiã” da memória. Mnemósyne é divindade, é a memória em si, é a
que mantém os acontecimentos vivos, a que luta contra as águas do esquecimento,
sendo âncora e fundamento para todas as expressões culturais, desde a escrita da
história, a palavra poética até as flutuações da música. Memória é aquela que nos dá
toda possível referência e entendimento do mundo.
39
2.3 A memória e o paradoxo da lembrança
Na parede da memória
Esta lembrança
É o quadro que dói mais
(Belchior em Como nossos Pais)
Para Le Goff (2003, p. 419), “A memória, como propriedade de conservar certas
informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas,
graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou
que ele representa como passadas”. O estudo da memória é diverso e complexo.
Diverso porque essa é uma categoria estudada por distintas áreas do conhecimento.
Os estudos culturais têm várias ramificações que estudam a memória: História,
Literatura, Sociologia.
As ciências naturais estudam as funções psíquicas da memória, como nos campos da
“psicologia, psicofisiologia, neurofisiologia, biologia e psiquiatria”, segundo Le Goff.
Além disso, nas últimas décadas, temos visto o surgimento das ciências e tecnologias
da informação, que também se apropriam da categoria da memória, justamente como
a capacidade de reter dados. É interessante pensar que tudo isto está interligado. O
diálogo e a perspectiva transdisciplinar nos presenteiam diversas metáforas e
analogias para entender a memória sob a perspectiva cultural.
Balança simbólica entre o recordar e o esquecer, a memória é mais do que a
capacidade de armazenar informações ou dados, é mais do que as funções cognitivas
individuais, mas passa por essas condições transcendendo para o seio social. A
memória é também construção coletiva. Vontade política, jogo de poder. A memória é
fenômeno deveras complexo para ser alcançada numa simples categoria. Para
Assmann, “Recordar e esquecer interpenetram-se e transmutam-se sob a forma do
declínio sorrateiro, do apagamento permanente das experiências dos sentidos e das
noções do tempo” (Assmann, 2011, p. 108).
Antes de tentar explicar o conceito, é preciso compreender, então, que não podemos
fechar um entendimento absoluto sobre o que é memória, por se tratar de um
fenômeno complexo e que é objeto de estudo de diversas áreas do conhecimento,
40
conformando-se como um campo aberto em que se adicionam perspectivas para a
compreensão e avanço da construção do conhecimento sobre o tema. A própria
Aleida Assman fala que “o fenômeno da memória, na variedade de suas ocorrências,
não é transdisciplinar somente no fato de que não pode ser definido de maneira
unívoca por nenhuma área; dentro de cada disciplina ele é contraditório e controverso”
(ASSMANN, 2011, p. 20).
A memória traz em si uma idiossincrasia paradoxal. Freud pergunta “de que maneira
apresentar a simultaneidade das funções opostas de preservar e apagar? ”9 Como
conciliar a lembrança e o esquecimento dentro do fenômeno da memória?
Le Goff, no verbete Memória10 escrito para a enciclopédia Einaudi, consegue ser
sucinto em nos dar chaves de compreensão para esta categoria. Ele diz que a
memória é um fenômeno individual e psicológico que também está ligado à vida social.
Varia de acordo com a sociedade, pois pode ocorrer mais por meio da oralidade ou
por meio da escrita. Talvez uma das compreensões que mais se aplique a este
trabalho é a de que a memória é objeto da atenção do Estado que, para conservar os
traços de qualquer acontecimento do passado, produz diversos tipos de documentos
e monumentos, faz escrever a história e acumula objetos.
Como dito nos procedimentos metodológicos, esta pesquisa se debruçará sobre o
processo de tombamento da cidade de Olinda, então, entender memória como essa
da ação do Estado que conserva traços de acontecimentos passados é uma chave
analítica importante para quando estivermos falando especificamente da memória de
Olinda, visto que entenderemos o próprio Estado como sujeito criador de memória.
Uma das possíveis analogias para entender a dialética da lembrança e do
esquecimento na Memória seria a Conservação do Patrimônio Cultural. Na
Conservação, estamos também em uma balança: entre a permanência e a mudança.
A mudança é um fenômeno ininterrupto, está acontecendo através do tempo, todo o
tempo. A permanência é quando os traços são mantidos por mais tempo, resistindo
aos processos de transformação, mas nunca sendo, no caso dos bens culturais, o
mesmo de antes, sofrendo, pouco a pouco, em diversas escalas, mutações. A
9 Freud apud Assmann, 2011, p. 168.
10 Le Goff, História e Memória, 2003, Editora da Unicamp, pp. 419.
41
lembrança está para a permanência assim como o esquecimento está para a
mudança. A lembrança se comporta como um traço riscado no terreno do
esquecimento. São esses traços que nos dão a baliza da nossa existência, o nosso
Norte em relação ao tempo decorrido, e se nessa analogia tempo e espaço se
confundem, é porque a memória é já outra dimensão. A lembrança é permanência na
memória, o esquecimento é um processo inerente à memória. Os bens culturais são,
neste caso, permanência e lembrança, são narrativa e testemunho de sociedades e
experiências consolidadas no passado, que atravessaram o tempo, e que, apesar do
tempo, nos trazem à memória aquilo que é essencial para nosso entendimento do
mundo. A esse respeito Chauí diz que "[...] memória é uma evocação do passado. É
a capacidade humana para reter e guardar o tempo que se foi, salvando-o da perda
total. A lembrança conserva aquilo que se foi e não retornará jamais" (CHAUÍ, 2005,
p. 138).
Para que se faça luz no entendimento sobre a memória, trataremos de alguns pontos
centrais dos estudos desenvolvidos sobre essa grande e complexa categoria. Como
já vimos um pouco da proposição de Le Goff, e sabendo que em seu verbete Memória
ele faz uma história da memória, vamos seguir adiante. Com Halbwachs, vamos
entender um pouco sobre a memória individual e coletiva. Com Assmann, vamos
compreender a ideia de memória cultural. Mais adiante, com Nora, vamos entender a
noção de lugares de memória.
Halbwachs se destaca na questão da confrontação entre memória individual e
coletiva, e também no desenvolvimento do conceito de memória histórica. Se
pensarmos na relação dialética entre memória individual e coletiva, entendemos que
uma não existe sem a outra. Ao passo que a nossa memória individual é também
construída pelo testemunho dos outros, daqueles que compõem a nossa vivência, o
conjunto das memórias é sempre feita a partir de cada contribuição individual. E assim
se retroalimentam as memórias, sendo que a memória coletiva faz parte de um
processo de reivindicação de identidade e pertencimento, especialmente relacionada
a grupos, e é o que assegura a manutenção desses laços, do sentimento alentador
de uma identidade que dá sentido àquele agrupamento, um passado político, um
território conquistado, um traço cultural. Assmann nos explica que
A investigação de Halbwachs em torno dessa “memória coletiva” resultou no
seguinte: a estabilidade da memória coletiva está vinculada de maneira direta
42
à composição e subsistência do grupo. Se o grupo se dissolve, os indivíduos
perdem em sua memória a parte de lembranças que os fazia asseguraram-
se e identificarem-se como grupo. Mas também a alteração de um contexto
político pode levar ao apagamento de determinadas lembranças, já que
estas, segundo Halbwachs, não têm uma força imanente de permanência e
carecem essencialmente de interação e atestação sociais (ASSMANN, 2011,
p. 144).
Se pensarmos que a memória coletiva é uma construção social, temos que fazer o
contraponto dialético de que tudo o que vivenciamos coletivamente também é incutido
na nossa memória individual. Halbwachs fala que a memória coletiva pode também
“reorientar” nossa memória individual, ao passo que a ela se incorpora. Para ele,
“dentro desse conjunto de depoimentos exteriores a nós, é preciso trazer como que
uma semente de rememoração, para que ele se transforme em uma massa
consistente de lembranças” (Halbwachs, 1990, p. 28).
Halbwachs também desenvolve o entendimento sobre memória coletiva. Para o autor,
a memória coletiva está também no cerne do entendimento de formação de
identidade, pertencimento a determinado grupo ou nação, e, por conseguinte,
relacionada também à construção daquilo que se entende como patrimônio cultural,
visto que a atribuição de valores aos monumentos, cidades, paisagens, conjuntos,
expressões ou imaterialidades parte das ideias da identidade coletiva e de uma
herança que nos chega a partir de um passado comum, de forma a passar para a
nossa geração aquilo que vem de gerações que nos precederam.
Em relação à memória histórica, que é outro conceito que Halbwachs propõe, ele
esquematiza a ideia que parte da construção coletiva:
Durante o curso de minha vida, o grupo nacional de que eu fazia parte foi o
teatro de um certo número de acontecimentos, dos quais digo que me lembro,
mas que não conheci a não ser pelos jornais ou pelos depoimentos daqueles
que participaram diretamente. Eles ocupam um lugar na memória da nação.
[...]. Quando eu os evoco, sou obrigado a confiar inteiramente na memória
dos outros, que não vem aqui completar ou fortalecer a minha, mas que é a
única fonte daquilo que eu quero repetir (HALBWACHS, 1990, p. 54).
Ele compõe então o entendimento de “memória histórica” como uma “memória
emprestada”, que não é de nossa vivência, mas sim do conjunto de lembranças que
formam os traços sobre a história da nação.
43
É também interessante pensar, a partir de Huyssen (2000) que as transformações
ocorridas no presente século já sacodem as formas de lidar com a memória, não só
pela multiplicação de mídias e vetores de memória como nas transformações vividas
na forma de se inter-relacionar de um possível grupo. Para ele, “[...] as velhas
abordagens sociológicas da memória coletiva – tal como a de Maurice Halbwachs,
que pressupõe formações de memórias sociais e de grupos relativamente estáveis -
não são adequadas para dar conta da dinâmica atual da mídia e da temporalidade, da
memória, do tempo vivido e do esquecimento” (Huyssen, 2000, p. 19).
Assmann (2011, p. 21), na questão da memória, deixa claro no início de seu livro
Espaços da Recordação que “quem procurar uma teoria unificadora nas próximas
páginas não obterá sucesso, pois uma tal teoria mal conseguiria ligar com o caráter
contraditório das descobertas. Esse caráter contraditório é, em si mesmo, uma parte
irredutível do problema. ” Ela mostra que o fenômeno da memória é deveras complexo
para que seja alcançado por uma teoria que a defina. Apesar disso, ela traz diversas
perspectivas, metáforas, considerações sobre a memória que nos aproxima de uma
visão holística, de um possível entendimento.
A partir disso, uma das perspectivas mais interessantes sobre o entendimento de
memória cultural que ela traz é quando se utiliza daquilo que Huyssen chama de
“lugar-comum universal da memória”. Para esse autor, “É precisamente a emergência
do Holocausto como uma figura de linguagem universa que permite à memória do
Holocausto começar a entender situações locais específicas, historicamente distantes
e politicamente distintas do evento original” (Huyssen, 2000, p. 13).
Assman se utiliza dessa metáfora da memória, que é a memória do Holocausto, para,
precisamente, trazer à luz o entendimento de memória cultural:
O evento do Holocausto não ficou pálido e descolorido com o passar dos
anos, mas, paradoxalmente, está mais próximo e vivo do que se imaginaria.
[...]. Isso se deve ao fato de que a memória experiencial das testemunhas da
época, caso não se deva perder no futuro, deve traduzir-se em uma memória
cultural da posteridade. Dessa forma, a memória viva implica uma memória
suportada em mídias que é protegida por portadores materiais como
monumentos, memoriais, museus e arquivos. [...]. Já que não há auto-
organização da memória cultural, ela depende de mídias e de políticas, e o
salto entre a memória individual e viva para a memória cultural e artificial é
44
certamente problemático, pois traz consigo o risco da deformação, da
redução e da instrumentalização da recordação (ASSMANN, 2011, p. 19).
Vindo então do entendimento de Halbwachs, percebemos que Assmann dá um salto
no entendimento de memória cultural. É uma memória que não necessariamente foi
vivenciada, mas que é engendrada em nós através do conhecimento histórico,
suportada pelas mídias ou meios de memória e que nos pertence enquanto
consciência da nossa humanidade.
Nós recebemos como herança uma memória que não vivemos. Essa memória é
cultural. Construída coletivamente e transpassada ao longo do tempo através das
pessoas e dos vetores da memória. Apesar de não termos vivenciado, essa memória
nos constitui enquanto cidadãos, fundamentando nossa memória enquanto seres
sociais pertencentes a uma coletividade, mas também enquanto seres individuais, já
que nascemos dentro de uma cultura que moldará a nossa existência, desde a forma
como nos portamos, a maneira de pensar, de se expressar e de entendermos o mundo
que nos cerca.
Para aproximar-nos do entendimento de memória cultural, podemos dizer que é
aquela memória que “supera épocas e é guardada em textos normativos” (Assmann,
2011, p. 17). Ou, ainda, quando ela fala sobre os locais da recordação, “[...] que os
locais possam tornar-se sujeitos, portadores de recordação e possivelmente dotados
de uma memória que ultrapassa amplamente a memória dos seres humanos”
(Assmann, 2011, p. 317). Essa memória que ultrapassa a memória dos humanos, que
está para além da memória geracional e coletiva, seria o entendimento mais próximo
da memória que é construída e herdada como signo da cultura e sob forma de cultura.
A memória que lança bases de uma identidade comum sem necessariamente
pertencer a um grupo fechado que comunica essa memória através das gerações é
algo que transcende esse processo. Como fala a autora, “pode ultrapassar
amplamente a memória dos seres humanos”. Além disso, temos, amparados em Le
Goff, que:
...a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças
sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é
uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que
dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os
45
silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da
memória coletiva. (LE GOFF, 2003, 422).
O autor nos faz entender que a construção da memória é sempre um jogo político,
que muitas vezes está também relacionado à ideia da guerra pela memória, refletindo
as relações de poder vigentes. Entendo que a memória cultural urbana é a construção
desse “processo social de esquecer e recordar”11 a cidade, a partir do reconhecimento
e proteção de determinados traços urbanos. Aliás, englobe-se ao entendimento de
cidade os conjuntos urbanos e os bens culturais que a compõem. Sobre essas pedras
são edificadas as representações de uma sociedade e de sua identidade, através
também de processos de seleção, reconhecimento, proteção do chamado Patrimônio
Cultural.
Ainda sobre memória cultural, Assmann fala sobres os meios da memória, que são os
suportes externos em que ela se ancora. A autora traz, em seu livro, a ideia de que a
escrita, a imagem, o corpo e os locais constituem meios da memória, e são os
portadores materiais da memória cultural. Além disso, os arquivos, os museus e
monumentos também são meios, mas são sobretudo “armazenadores” da memória,
que podem abarcar uma memória que está em seu estado de potência, e,
eventualmente, vir à superfície daquilo que ela chama de “memória funcional”, “O que
existe no estado de latência momentaneamente inacessível pode ser redescoberto
por uma época posterior, reinterpretado e imaginativamente reavivado por ela”
(Ibidem, p. 439).
Ela faz, então, a distinção entre memória cumulativa e memória funcional, fazendo a
correlação com as estruturas psíquicas da “memória consciente”. Ela equipara a
memória funcional à memória habitada, aquela que nos permite a produção de
configurações de sentido, a partir das lembranças e experiências mantidas à
disposição. De memória cumulativa, ela chama a memória das memórias, é a que
contém elementos inertes, latentes, mas as vezes fora do alcance da atenção.12 Assim
sendo, “enquanto os processos de recordação ocorrem espontaneamente no
indivíduo e seguem regras gerais dos mecanismos psíquicos, no nível coletivo e
institucional esses processos são guiados por uma política específica de recordação
11 Assmann, 2011, p. 441.
12 Cf. Assmann, 2011, p. 148.
46
e esquecimento” (Ibidem, p. 19). A memória cultural está ancorada, pois, em suportes
e mídias, e, enquanto constructo social, precisa de políticas de memória para que
esteja na superfície dos “espaços da recordação”.
Nora seria o teórico que completaria nosso entendimento sobre a noção da memória
a partir da noção de lugares de memória. Veremos um pouco mais adiante, ainda
neste capítulo. Mas ainda há algumas construções interessantes antes de
adentrarmos o conceito de lugares de memória, que tem se alçado tão importante no
cenário internacional e especialmente no Brasil com o reconhecimento do Cais do
Valongo como lugar de memória pela UNESCO em 2017.
47
2.4 Cidade: memória e patrimônio
Há apenas dois fortes vencedores do esquecimento dos
homens: Poesia e Arquitetura; e a última de alguma forma inclui
a primeira, e é mais poderosa na sua realidade.
(Ruskin, A Lâmpada da Memória, p. 54)
Ruskin, homem do século XIX, distoa dos autores aqui citados, por ocupar um lugar
na história mais distanciado dos tempos atuais. Sem historicizar o contexto de suas
inquietações, o usamos brevemente aqui, para nos ajudar na aproximação à
conservação da cultura material na sua relação com a memória. Autores recentes,
como Assmann, continuam a iluminar as ideias aqui expostas.
Ruskin fala que a Arquitetura é essencial para a rememoração. Que o testemunho
material não pode ser comparado a outro tipo de representação, seja documental, seja
um relato. Que a sensação trazida pela nossa interação com o espaço edificado é
incomparável enquanto âncora dos significados trazidos pelas gerações, pois
representa não apenas o que as populações pensaram ou sentiram, mas o que com
suas mãos edificaram, pedra a pedra. Com isso, ele diz ser imprescindível a
conservação da Arquitetura como a mais preciosa de todas as heranças, por trazer
significados e sensações em sua tridimensionalidade.
É como centralizadora e protetora dessa influência sagrada13, que a
Arquitetura14 deve ser considerada por nós com a maior seriedade. Nós
podemos viver sem ela, orar sem ela, mas não podemos rememorar sem ela.
Como é fria toda a história, como é sem vida toda fantasia, comparada àquilo
13 Refere-se ao escrito no capítulo I quando descreve “uma sensação de um grande poder começando
a manifestar-se na terra”, e fala sobre a sensação de estar nesse lugar (uma floresta de pinheiros no
Jura), e depois de rememorar a sensação que teve quando esteve nesse lugar), mostrando a lembrança
ser insuficiente para transmitir todas as sensações que o lugar transmitira.
14 Importante notar que Ruskin escreve em 1849, quando a noção de Arquitetura abarcava noções que
só viriam a se desenvolver a posteriori como Paisagem e Conjunto Urbano. Assim sendo, quando fala
da Arquitetura, podemos tomar como entendimento que está falando do Patrimônio Arquitetônico.
48
que a nação viva escreve, e o mármore incorruptível ostenta! - quantas
páginas de registros duvidosos não poderíamos nós dispensar, em troca de
algumas pedras empilhadas umas sobre as outras! (RUSKIN, 2008, p. 54)
Para usar um conceito de Assmann, seria a Arquitetura um “gatilho” imprescindível
para a memória da humanidade? A arquitetura, a cidade, a paisagem são constructos
testemunhais da relação das sociedades com o meio, em qualquer que seja o contexto
locacional. É produto direto dessa relação e imbuída de significados que mostram não
apenas culturas construtivas, mas formas de organização do espaço, de
hierarquização das relações sociais, de estratégias de defesa, de adaptações às
condições ambientais e até mesmo de ornamentos que indicam posição social ou
prestígio. Toda a organização espacial culturalmente materializada carrega em si
memórias sociais.
Ruskin fala que a Memória é a Sexta Lâmpada da Arquitetura:
[...] é ao se tornarem memoriais ou monumentais que os edifícios civis e
domésticos atingem uma perfeição verdadeira; e isso em parte por eles
serem, com tal intento, construídos de uma maneira mais sólida, e em parte
por suas decorações serem consequentemente inspiradas por um significado
histórico ou metafórico (RUSKIN, 2008, p. 55).
Fala tanto da arquitetura doméstica quanto dos monumentos e como eles são
testemunhos da vivência dos povos. Ele escreve que a arquitetura, como nosso
domicílio terrestre, é aquela que testemunha e mesmo compartilha nossas alegrias e
sofrimentos e que é esse lugar que conta a história, como se o lugar fosse em si
mesmo sujeito da ação narrativa da memória, que revela também as marcas que as
vivências humanas deixaram na materialidade.
Ruskin fala na conservação da arquitetura enquanto conservação da memória vivida,
fazendo com que Choay, em A Alegoria do Patrimônio (2001, p. 181) diga que sua
abordagem para com o patrimônio é de tipo “memorial”: “(...) Para ele [Ruskin], é
sacrilégio tocar nas cidades da era pré-industrial; nós devemos continuar a habitá-las,
e habitá-las como no passado. Elas são as garantias de nossa identidade, pessoal,
local, nacional e humana. ”
Segundo Assmann (2011, p. 318), os locais “solidificam e validam a recordação, na
medida em que a ancoram no chão, mas também por corporificaram uma continuidade
49
duradoura que supera a recordação relativamente breve de indivíduos, épocas e
também culturas, que está concretizada em artefatos”.
A arquitetura como lâmpada da memória é então a memória materializada e
corporificada na experiência humana que a edificou, sendo a mais completa tradução
da relação homem-meio. Num nível mais abstrato, a arquitetura que atravessa as
gerações, sendo então um patrimônio, é, portanto, mais uma âncora material e
externa que suporta a memória dos povos.
Segundo Arantes (2009, p.11), “Os grupos humanos atribuem valor diferenciado a
estruturas edificadas e a elementos da natureza que balizam seus territórios, ancoram
suas visões de mundo, materializam crenças ou testemunham episódios marcantes
da memória coletiva”. Isso nos mostra que a cidade e seus componentes são âncoras
da memória coletiva, da vivência dos povos. É claro que ocupações que não se
encaixam na categoria de “cidade” também podem configurar essa mesma
ancoragem, afinal, estamos lidando com territórios, marcos paisagísticos, vivências,
lugares providos de significado atribuído pelos povos. Mas a cidade é, por excelência,
o lugar do desenvolvimento das culturas e sociedades, e entendamos isso desde a
pólis, a villa, até a cidade, tal qual a entendemos hoje, em suas várias escalas. Como
fenômeno cultural, a cidade é também o registro da vivência dos povos, e, portanto,
passa pelo mecanismo sociocultural de produção de memória.
A ideia de que cidade é documento e registro de memória e vivência é válida em toda
a sua abrangência, mas por que apenas alguns sítios são patrimonializados? O que
isso tem a ver com a construção da memória?
Imaginemos uma cidade em desenvolvimento, que tenha passado por vários
processos históricos, que apresente várias camadas de construção ao longo do
tempo. Imaginemos patrimonializar toda essa cidade, todas essas camadas. É como
entender que memória seria o conjunto de todas as vivências de um indivíduo ou
sociedade. Pergunto: a memória é o conjunto das vivências? Para Silva,
A nossa memória colectiva modelada pelo passar do tempo não é mais de
que uma viagem através da história, revisitada e materializada no presente
pelo legado material, símbolos particulares que reforçam o sentimento
colectivo de identidade e que alimentam no ser humano a reconfortante
sensação de permanência no tempo (SILVA, 2000, p. 219).
50
Talvez História (no sentido de vivência, do que passou) seja esse conjunto completo.
A memória é a organização seletiva que fazemos para entendermos nossas
referências culturais e nossa construção indentitária. Tanto como indivíduos como
quanto sociedade, é impossível lembrar de tudo. Seria como a máquina da memória
proposta por José Arcadio Buendía, que passaria todas as manhãs a totalidade de
conhecimentos adquiridos. Nem no nível ficcional, nem na realidade individual ou
coletiva isso seria possível, é por isso que a memória é seletiva, porque precisamos
daquilo que é imbuído de significado para a construção indentitária, seja individual que
coletiva.
Do mesmo jeito se comporta a ideia de cidade como memória. Se tudo fosse
patrimonializado, por exemplo, o que seria então o significado excepcional, aquilo que
faz sentido para a construção do sentido e da identidade da cidade? É por isso que
temos monumentos, lugares de memória, conjuntos e sítios reconhecidos em função
de sua excepcionalidade, seja artística, cultural, histórica, etc.
A cidade é o campo das memórias possíveis. E mesmo aquilo que não está
efetivamente protegido (ou a cidade que se transforma) pode deixar registro de
memória, da construção memorial que um dia foi. Sim, o conjunto das vivências
importa, mas a memória, assim como a cidade, tem sua seletividade daquilo que é
importante que se mantenha ao alcance da consciência, e daquilo que, no demolir do
esquecimento, apenas faz parte da construção cultural das sociedades, sem precisar
estar no nível da memória funcional. Nem só de pedra e cal é construída uma cidade,
mas também de memórias.
Assim sendo, podemos entender a memória como constituinte não só da noção de
patrimônio cultural, mas também como um elemento central da dimensão intangível
deste patrimônio, porque é essencialmente uma relação. Frente a isso, a memória
constitui-se como ponto-chave de discussão.
Quando Calvino fala sobre as cidades e a memória, ele destaca que a descrição
apenas física da cidade seria inútil, pois a cidade é feita das “relações entre as
medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado” 15
15 “Inutilmente, magnânimo Kublai, tentarei descrever a cidade de Zaíra dos altos bastiões. Poderia
falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma de escada, da circunferência dos arcos dos
51
Sabemos que nesse universo de memórias urbanas possíveis, há, para além da
memória oficial, a memória histórica, as memórias que estão também na condição de
memória cumulativa, ou também a memória que está nos lugares não reconhecidos
como patrimônio. E essa própria seletividade do patrimônio tem muito a revelar sobre
a construção da memória, sobretudo em determinados recortes temporais.
Como Calvino falava, a cidade é feita das relações, e buscaremos, nesta dissertação,
trazer à tona relações entre o espaço e os acontecimentos de Olinda, discutindo o
substrato de sua memória oficial, tendo a consciência da infinitude de suportes da
memória cultural urbana.
2.5 Lugares de memória e a memória dos lugares
É importante separar do conceito de memória a noção de lugares de memória de
Pierre Nora, não só pela sua especificidade teórica, como por se tratar de uma nova
categoria dentro da ação preservacionista do IPHAN e da UNESCO, como no caso
do Cais do Valongo, conforme veremos a seguir. O cais foi reconhecido como
patrimônio da humanidade pela instituição não só como sítio arqueológico, mas
também na categoria de lugar de memória.
Como estamos a trabalhar com memória cultural urbana, a memória do lugar, da
cidade, é essencial trabalhar com Nora em diálogo com Assmann. Conforme Assmann
falava dos meios de memória, é imprescindível relacionar aos lugares de memória de
Nora, trabalhando a ideia que os documentos que me servirão como fonte de análise
da memória da cidade são também lugares de memória, e, partir dessa visão analítico-
interpretativa, a memória da cidade será problematizada.
A obra Lieux de Mémoire é colossal. Foram sete volumes publicados ao longo de nove
anos (1984-1993), e que contou com a colaboração de cerca de 130 intelectuais do
pórticos, de quais lâminas de zinco são recobertos os tetos; mas sei que seria o mesmo que não dizer
nada. A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os
acontecimentos do passado: a distância do solo até um lampião e os pés pendentes de um usurpador
enforcado; [...]” (CALVINO, 2003, p. 7).
52
panteão acadêmico francês, em sua maioria historiadores. Essa foi a obra que lançou
Nora no cenário dos grandes intelectuais da França, o que viria a lhe render o Grande
Prêmio Nacional de História (Grand Prix National d’Histoire) em 1993 e lhe projetaria
para ocupar uma cadeira na Academia Francesa, entrando então para a constelação
dessa instituição. Tudo isso se deve ao trabalho de Nora na coordenação dessa obra
de monumentalização da memória nacional e na proposição dessa noção que tem
atravessado fronteiras.
Nora fala, na entrevista concedida ao periódico História Social16, que esse conceito foi
desenvolvido ao longo de muitos anos, com ajuda de intelectuais colaboradores e que
sofreu transformações com o tempo, assim como ultrapassou as fronteiras da França,
ganhando novas significações em diferentes contextos:
Eu acredito que um dos efeitos dos Lugares de memória não foi somente de
inventar temas, mas de lhes dar um brilho, uma centralidade que nunca
tiveram. Então, pouco a pouco, todo um campo se desdobrou diante de mim
e, evidentemente, eu não poderia explorá-lo sozinho. [...]. Eu levei muito
tempo para fazê-la, e ela evoluiu muito lentamente, porque se eu me precipitei
sobre a expressão os lugares de memória, que me pareceu se impor desde
o princípio para abranger objetos tão diferentes uns dos outros, essa noção
em si mesma, [...] ela, progressivamente, se transformou (Nora apud BREFE,
1999, p. 26).
Nora diz que achava que o conceito seria “pouco exportável”, mas que se enganou, e
que, devido ao que ele chama de “onda memorial”, o conceito foi apropriado e aplicado
a diferentes contextos nacionais, inclusive na América Latina, devido à crise de
identidade americana como um tipo de interrogação para a “recuperação de seu
próprio passado” ou devido a uma “necessidade premente de memória de nossa
sociedade contemporânea”.
Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento [de] que não há
memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter
aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar
atas, porque essas operações não são naturais (...). [Os lugares de memória]
são bastiões sobre os quais se escora. Mas, se o que eles defendem não
estivesse ameaçado, não se teria, tampouco, a necessidade de construí-los
(NORA, 1993, p.13)
16 História Social, Campinas-SP, Nº 6, 13-33, 1999, entrevistado por Ana Cláudia Fonseca Brefe.
53
Nora preconiza, nesse conceito, todo um entendimento da onda memorialista em que
vivemos e de como o alargamento da noção de Patrimônio Cultural tem abarcado os
aspectos intangíveis e simbólicos, incorporando o pensamento de muitos estudiosos
da área (como o do próprio Nora) para a compreensão cada vez mais global do que
nossa geração porta ao futuro e de que forma a herança que recebemos do passado
passa por processos de ressignificação importantes para o entendimento do próprio
tempo presente. Lugares de memória expressa dimensões além da matéria, como as
relações indissociáveis entre matéria e significado. Para Oliveira e Tedeschi,
Os lugares de memória, para Nora, são lugares, com efeito, nos três sentidos
da palavra: material, simbólico e funcional simultaneamente, somente em
graus diversos. Em sua complexidade pertencem ao domínio do simples e do
ambíguo, do natural e do artificial, do diretamente oferecido à experiência
sensível e, ao mesmo tempo, à abstrata elaboração. Os lugares de memória
nascem da vontade de memória (OLIVEIRA E TEDESCHI, 2011, p. 52).
Nora tem uma posição bem definida quando praticamente coloca memória e história
em posições antagônicas. As relações entre Mnemósyne e Clio são postas em
conflito. Antes de chegar à ideia de Lugares de memória, porém, ele faz divagação
teórica sobre memória:
A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela
está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do
esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a
todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e repentinas
revitalizações (NORA, 1993, p.9).
Retoma Halbwachs quando relaciona a memória à vivência de grupos, à entidade
carregada e transpassada dentro de uma organização social. Usa também a postura
dialética da lembrança e do esquecimento como mecanismos da memória. Quando
fala em deformação, é impossível não relacionar com as políticas de memória, que,
enquanto ação do Estado, podem tanto deformar quanto provocar silenciamentos e
esquecimentos compulsórios.
O que Nora chama de lugares de Memória, Assmann chama de meios de memória.
“A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto” (Nora,
1993, p. 9). Associado a esses dois entendimentos, podemos pensar na a ideia de
vetores de memória, aqueles que portam em si a memória e que são gatilhos da
memória, quando provocam a epifania dos significados e dos valores simbólicos que
54
estão ali arraigados. “[...] museus, arquivos, cemitérios e coleções, festas,
aniversários, tratados, processos verbais, monumentos, santuários, associações, são
marcos testemunhais de uma outra era, das ilusões de eternidade” (Ibidem, p. 13).
Nora fala que, à medida que a memória verdadeira desaparece, que é aquela que
existe no processo mental, nós sentimos a necessidade de ancorá-la em suportes
exteriores e “referências tangíveis de uma existência que só vive através delas”
(Ibidem. p. 14). Ele fala então da “materialização da memória”. Vejamos se o que Nora
fala não figura exatamente o episódio de Macondo? Quando a memória verdadeira,
viva e interior começou a se evadir dos personagens, eles sentiram a necessidade de
ancorar sua memória em suportes externos, através da escrita, que, segundo
Assmann, é a metáfora primeira da memória. Os lugares de memória, então, são
âncoras da memória, mas sempre atendem, para Nora, às três dimensões propostas:
material, funcional e simbólica, em coexistência. Para ele,
É material por seu conteúdo demográfico; funcional por hipótese, pois
garante, ao mesmo tempo, a cristalização da lembrança e sua transmissão;
mas simbólica por definição visto que caracteriza por um acontecimento ou
uma experiência vivida por um pequeno número uma maioria que deles não
participou (NORA, 1993, p. 22).
Os lugares de memória são, então, não necessariamente “lugares”, no sentido físico.
Um minuto de silêncio pode ser um lugar de memória, por exemplo. Porque sua
materialidade, nesse caso, vem da ideia de “unidade temporal”. O que importa é que
os lugares onde a memória se ancora estão no “incessante ressaltar de seus
significados”. Sendo, então, o significado o que mais importa. Os lugares de memória
são “lugares onde se ancora, se condensa e se exprime o capital esgotado de nossa
memória coletiva” (Ibidem, p. 28).
Podemos, pelo exposto, fazer um paralelo desses “lugares” com a noção de
Patrimônio Cultural, já que este é legitimado para representar e significar uma série
de referências culturais que nos representam enquanto sociedade. Patrimônio é
memória chancelada. É criação de memória oficial. Cada bem cultural protegido pelo
Estado é memória que se cria.
55
Por ser um conceito surgido a partir de 1984 com o trabalho de Nora17, não podemos
cometer o anacronismo de querer aplicá-lo a tombamentos e reconhecimentos
anteriores, porque o próprio processo de alargamento da noção de Patrimônio mostra
etapas importantes da mentalidade das épocas passadas, assim como o surgimento
desta noção marca a mentalidade de nossa época. Esquivando-nos do anacronismo,
podemos, porém, repensar o patrimônio que chega para nós hoje, o que ele significa,
e como o queremos portar ao futuro, e isso implica pensar nossas cidades e sítios
históricos enquanto lugares de memória, visto que a compreensão desses lugares e
do passado que sobre eles paira, e da memória que através deles chega é a pedra
sobre a qual fundamos nossa identidade coletiva e a forma pela qual colocamos
expectativa no futuro.
Em sendo o lugar de memória um portador da herança, podemos usar este conceito
como metáfora para as cidades e sítios históricos patrimonializados, mais
especificamente para a dita dimensão intangível do Patrimônio Cultural material, afinal
o que seria essa herança edificada senão um portador de memória? O uso do conceito
de Nora é, sobretudo, uma estratégia de discutir o patrimônio enquanto memória,
justamente porque o conceito lugares de memória fala de uma dimensão intangível,
ou seja, mesmo que os edifícios sejam restaurados e não tenham mudança aparente,
há algo além da matéria, o que Jokilehto18 mostra ser o que dá o verdadeiro
significado.
17 Les Lieux de Mémoire, Pierre Nora, 1984
18 JOKILEHTO, 2006, Considerations on authenticity and integrity in world heritage context. City & Time
2 (1): 1. [online] URL: http://www.ceci-br.org/novo/revista/docs2006/CT-2006-44.pdf “The physical
presence of the temple and the god’s image in themselves do not yet assign the significance to the site,
but it is the god’s presence, the spiritual or the intangible dimension, when evoked, that gives the real
meaning.” Jokilehto fala da dimensão espiritual e intangível do sítio, que, quanto evocadas, é que dão
o verdadeiro significado.
56
Olinda, Cidade Eterna
Olinda, cidade heróica,
Monumento secular
Da velha geração...
Olinda!
Serás eterna e eternamente viverás
No meu coração!
Quisera ver
Teu passado, Olinda,
Quando era ainda cheia de ilusão,
Para contemplar a tua paisagem
Para olhar teus mares,
Ver teus coqueirais...
Pular na rua com a meninada,
Brincar de roda e de cirandinha...
Depois subir a ladeira do mosteiro,
Rezar a Ave Maria E nada mais,
Rezar a Ave Maria E nada mais...
Olinda! Eterna!
Olinda! Eterna!
(Capiba)
57
3 DO TEXTO AO CONTEXTO: A DITADURA E A CONSTRUÇÃO DA
MEMÓRIA OFICIAL
3.1 Do universo da memória urbana ao recorte da memória oficial
O aporte teórico e o entendimento da memória cultural urbana nos dão um universo
possível de mídias e meios da memória de Olinda. Dentro deste universo, fazemos
um recorte plausível da construção de uma memória oficial a partir dos processos e
ações do IPHAN. Entendendo, ainda, que o universo da memória tem sua
complexidade de fontes e pontos de vista, de registros e sensibilidades tão
abrangentes quanto a própria narrativa da memória urbana.
Nem só de pedra e cal é construída uma cidade, mas também de discursos. A
memória da cidade se ancora em diversos tipos de mídia. A memória cultural urbana
pode se escorar em diversas âncoras, como proposto por Assmann. A escrita, a
imagem, o corpo e os locais, como veremos, podem ser essas âncoras.
Se pensarmos na construção proposta por Assmann, tanto a cidade em si, em seu
traçado, em seu conjunto edificado, quanto tudo o que se produz a partir disso é
construção de memória, sobretudo a partir das vivências. Para seguir a ideia da
autora, podemos realizar o exercício de elencar diversas dessas âncoras da memória
para Olinda, sem pretensão de esgota-las:
A Escrita – tudo o que se escreve sobre Olinda, desde poemas, literatura, jornal,
música, documento, memórias de moradores, trabalhos técnicos, descrição turística,
o próprio processo de tombamento do IPHAN, e tudo o que cabe dentro deste
universo.
A Imagem – Fotografias, desenhos, ilustrações, filmagem, produção audiovisual
ficcional, documentários, e tudo o que se refira à imagem da cidade.
Corpo – A exemplo da vivência do carnaval de Olinda, como é marcada no corpo. Mas
não só o carnaval, que é um momento de exceção, como o caminhar pelas ladeiras,
o sentir o cheiro, os sabores de Olinda, o ver com os olhos do corpo.
Locais – O próprio conjunto urbanístico, paisagístico e arquitetônico é memória
cultural urbana, assim como locais em específico, que, por ventura, estejam mais
58
relacionados à criação de uma memória afetiva ou que marquem em especial
determinados grupos, a exemplo dos pontos de cultura e dos trajetos das
procissões19.
É bom entender que essa é uma mentalidade que também a Nova História20 propôs
para o entendimento dos novos tipos de fonte histórica. Além da multiplicidade das
fontes, cabe pensar também a multiplicidade de olhares sobre o objeto. A História
Cultural permite uma análise da cidade que se debruce sobre as representações que
dela são feitas, como no caso de entendermos os vetores em que a memória cultural
se ancora, particularmente a memória cultural urbana, a memória de Olinda. Para
Pesavento,
O que cabe destacar é a abordagem introduzida pela História Cultural: ela
não é mais considerada só como um locus, seja da realização da produção
ou da ação social, mas sobretudo como um problema e um objeto de reflexão.
Não se estudam apenas processos econômicos e sociais que ocorrem na
cidade, mas as representações que se constroem na e sobre a cidade. Indo
mais além, pode-se dizer que a História Cultural passa a trabalhar com o
imaginário urbano, o que implica resgatar discursos e imagens de
representação da cidade que incidem sobre espaços, atores e práticas
sociais. [...] Mas, destruir e remodelar a urbe implica julgar aquilo que se deve
preservar, aquilo que, em termos de espaço construído, é identificado como
ponto de ancoragem da memória, marco de reconhecimento e propriedade
19 Em relação aos locais, como pesquisadora que já teve experiência profissional, durante a graduação,
em Olinda, posso trazer um relato que me marcou profundamente nos meus anos de IPHAN-escritório
técnico de Olinda. Certa vez, em visita ao Convento Franciscano, a arquiteta responsável perguntou
ao frade o que ele achava de haver manifestações de religiões de matriz africana no lugar onde é o
Cruzeiro do Conjunto Franciscano. Ele falou, para a surpresa da arquiteta, que achava muito válida
aquela apropriação, porque aqueles que vivenciavam aquele espaço dentro de uma outra crença
estavam apenas ratificando que aquele se tratava de um Lugar Sagrado. Esse relato nunca me saiu da
cabeça, porque é construção de memória de Olinda.
20 “Neste ponto, cabe mostrar que a História Cultural não exclui a política de suas análises, como
apontam alguns de seus críticos. Pelo contrário, o campo do político tem demonstrado ser um dos mais
ricos para o estudo das representações, com o que se pode mesmo afirmar que a História Cultural
trouxe novos aportes ao político, colocando questões renovadoras e sugerindo novos objetos. Não
seria demais falar em uma verdadeira renovação do político, trazida pela História Cultural”
(PESAVENTO, 2008, p. 75).
59
coletiva. Lugares de memória, políticas de patrimônio, definições de
identidades urbanas são algumas das vias temáticas que se abrem com esse
campo de pesquisa (PESAVENTO, 2003, p. 77-79).
Ou seja, o universo da memória, se assim podemos entender, faz jus à sua definição
de infinitude. Como, então, trabalhar com a memória cultural urbana dentro de uma
pesquisa de Mestrado? Essa foi uma das questões centrais que me acompanhou nas
divagações teóricas. O fato é, como estamos trabalhando o entendimento de memória
como um ato político, sobretudo na definição que Le Goff faz sobre memória, como
vimos anteriormente, desenvolvemos a hipótese de que há uma “memória oficial” da
cidade, que não necessariamente abarca todo esse universo das memórias possíveis
de Olinda, mas é um substrato desse universo. É uma memória chancelada, criada a
partir das ações preservacionistas do IPHAN, que é o órgão federal de proteção do
patrimônio cultural.
A partir desse entendimento da criação da “memória oficial” da cidade, a qual
gostaríamos de discutir a fundo nesta pesquisa, justamente para entender quais são
as “lacunas” dessa memória, e os porquês envolvidos nesse “jogo da memória”,
decidimos partir da análise do processo de tombamento da cidade de Olinda, o
processo 674-T-72, para entender essa criação de memória feita pelo Estado, e quais
as implicações relacionadas a isso.
Mas, a análise do processo ficará para mais adiante. Agora cabe-nos entender a
cidade como memória, em toda a sua complexidade de relações e vetores possíveis.
Um trabalho desenvolvido em Olinda pelo ICEI (Instituto de Cooperação Econômica
Internacional) merece destaque como uma âncora de memória. O livro intitulado
Olinda – patrimônio cotidiano. Memória coletiva dos seus Moradores recolheu, por
metodologia de história oral, muitos relatos de moradores que moram no sítio
histórico. Cerca de 80 moradores foram entrevistados e foram também recolhidas
fotos pessoais para retratar suas vivências e memórias da cidade. No prefácio do livro
se pergunta: “Quantas histórias de vida, significados, lembranças estão escondidos
em uma ladeira, em uma casa, em uma paisagem?”. Destaca-se que o entendimento
de preservação do patrimônio passa pela salvaguarda da memória coletiva. Segue-
se: “Este registro oral, plasmado no papel, é uma contribuição simples e necessária
para consolidar a memória coletiva de uma comunidade que luta para conhecer,
60
reconhecer e manter seus costumes, tradições e histórias que compõem sua
identidade”.
Que memória guarda a cidade? Essa pergunta pode ser interpretada nos sentidos
ativo e passivo, que alternam os sujeitos em suas posições de ação.
Primeiro, a memória como sujeito: que memórias guardam a cidade? Que tipo de
memória é guardiã de uma narrativa sobre Olinda? Que memórias constroem Olinda
enquanto cidade viva de tradição, de cultura, de arte, de expressão do mais puro
Pernambuco? Que memórias narram Olinda enquanto a cidade eterna de Capiba?
Que memória guarda Olinda em suas tramas de lembrança e esquecimento?
Inversamente, Olinda como sujeito: que memórias Olinda guarda? Quantas e tantas
memórias vividas e construídas na cidade-mulher de Alceu? Quantas vivências,
quantas temporalidades, quantas populações envolvidas na construção da cidade?
Que memórias terá Olinda que revelar? Que memórias essa cidade guarda em suas
formas, volumes, traçados, espaços e lugares? O que os becos de Olinda têm a
revelar de sua memória? O que sua composição material tem a revelar do processo
construtivo? Das relações sociais que se escondiam nos muxarabis?
A memória tem relação direta com a seleção dos discursos. “A memória também é
alvo das disputas políticas e ela é feita mais de esquecimentos do que de lembranças”
dizia Migowski. Os discursos estão permeados por jogos de poder. Há a memória
oficial, que supomos aqui ser construída pelo IPHAN, à medida que protege o
patrimônio. O ato de tombar é também um discurso. Tombe-se.
E é também importante entender de que modo essa construção da memória oficial da
cidade está relacionada com as vontades do Estado, num momento em que havia
intenções muito claras da criação de uma identidade nacional aglutinadora. Talvez
seja pertinente olhar para a construção da memória pelo prisma que Silva (2017, p.
15) propõe em sua tese. Para ela:
Ao selecionar por muito tempo bens cuja história remetia-se a uma ideia de
Brasil branco, católico, elitista, de origem lusitana, ordeiro e disciplinado que
se queria construir do Brasil na década de 1930 o IPHAN contribuiu para a
afirmação de imaginário e princípios sociais afeitos ao Brasil do autoritarismo,
correspondendo especialmente aos interesses do Estado Novo e da Ditadura
Militar.
61
Atentos a isto, procuremos entender o contexto e, logo em seguida, a análise crítica
fundamentada dos documentos selecionados.
3.2 Ditadura Militar e as reverberações no IPHAN
É importante pensar que o SPHAN/DPHAN/IPHAN, como órgão federal ligado ao
Ministério de Educação e Cultura (à época), não é isento em atender a interesses
políticos do Governo ao qual estava subordinado. A construção da memória, como
dito, atende a vontades políticas, que podem tanto afirmar determinados traços, como
promover um esquecimento compulsório de outros, dentro das intenções próprias da
criação e afirmação de uma identidade, dita, nacional.
A documentação proposta para análise nesta dissertação inicia-se em 1966, já dentro
do período do Regime Militar. As periodizações propostas também ocorrem dentro
deste regime. Pensar o tombamento de Olinda e, logo após, sua elevação à condição
de Monumento Nacional é também tentar enxergar as entrelinhas da afirmação de um
Patrimônio elegido para representar determinada sociedade. O patrimônio legitimado
é objeto de políticas públicas, afinal.
Fonseca (1997, p. 42), no livro Patrimônio em Processo, diz que a trajetória da política
federal de preservação esteve ligada, desde os primórdios, à ideia da elaboração da
identidade nacional através de um patrimônio histórico e artístico.
Através da seleção, reconhecimento e proteção desse patrimônio é que nos cabe
questionar que identidade é essa? Que traços culturais foram realçados, no caso de
estarem relacionados a determinados grupos sociais, e que marcas da cultura que
constrói patrimônio foram apagadas, portadas ao esquecimento?
É claro que essa construção existe em diversas pesquisas com enfoque num recorte
nacional, mas a dissertação proposta intenta verificar a construção dessa memória
oficial no âmbito da Cidade de Olinda, avaliando que podemos entender como “oficial”
aquela memória que está relacionada a ações do órgão federal de proteção ao
patrimônio histórico.
Silva (2017, p. 22), em sua tese de doutoramento, trata
62
[...] de que forma a prática de tombamento estabelecida pelo SPHAN
privilegiou tombamentos que se remetiam à memória coletiva de grupos
privilegiados da sociedade e apresentavam o Brasil como um país católico,
branco, elitista, ordeiro e disciplinado. Embora a ênfase seja nas
caraterísticas dos trabalhos desenvolvidos na fase de 1937 a 1964, sobretudo
durante o Estado Novo, obviamente a representatividade desses
tombamentos não se alterou imediatamente a favor de outros, portanto,
abordamos a continuidade e as semelhanças que transcorreram até 1985.
É exatamente a criação dessa memória cultural urbana, que se coloca como oficial,
que cria a ideia da identidade coesa e harmoniosa de um Brasil branco, cristão e
barroco. É quando o patrimônio é usado para legitimar essa suposta identidade, de
modo a selecionar não apenas bens culturais, mas traços culturais que devem ser
legitimados como fundadores da memória. Em contrapartida, há os esquecimentos.
Fonseca (1997, p. 59) fala que “a noção de patrimônio se inseriu, portanto, no projeto
mais amplo de construção de uma identidade nacional, e passou a servir ao processo
de consolidação dos Estados-nações modernos”. Ela mostra que a legitimação do
patrimônio estava ligada a determinadas “funções simbólicas”, tais como:
1- Reforçar a noção de cidadania a partir dos bens culturais que agora pertencem aos
cidadãos;
2- Reforçar a ideia de Nação, de forma que essa “coesão” nacional é necessária para
a própria defesa do patrimônio comum;
3- Legitimar o poder atual a partir do “mito de origem da nação”;
4- Instrução dos cidadãos pela noção de pertencimento em relação aos bens culturais.
Tudo isso é formador de sentimento de pertencimento a um grupo ou coletividade. As
funções simbólicas do patrimônio são, portanto, fundadoras da identidade nacional,
quando legitimado pelas políticas públicas de preservação.
Na década de sessenta, em pouco mais de trinta anos de atuação, o IPHAN21
mantinha uma política de preservação pautada nos tombamentos e obras. Neste
período, entra, porém, numa fase de desgaste e retração econômica, devido à falta
de recursos destinados à preservação. Fonseca (1997, p. 158) aponta que
21 À época, SPHAN.
63
Esse desgaste ficou evidente na contundente campanha movida pelo
jornalista Franklin de Oliveira, de novembro de 1966 ao final de 1967, através
do jornal O Globo, denunciando a degradação do patrimônio, com o título de
“Morte da memória nacional”. (Oliveira, 1991)
O jornalista denunciava a precarização da proteção ao patrimônio, falando da carência
dos recursos financeiros destinados às políticas de preservação. A partir de 1965 o
IPHAN começa a alinhar suas políticas preservacionistas à UNESCO, de modo a não
apenas reforçar sua atuação no campo da preservação do patrimônio, como também
responder a interesses desenvolvimentistas que viriam a transformar os bens culturais
em mercadorias de potencial turístico (FONSECA, 1997, p. 161).
Como narrativa nacional, Gonçalves afirma que a criação e legitimação do patrimônio
cultural no Brasil é, sim, construção de memória: “Interpreto esses discursos como
‘narrativas nacionais’, isto é, modalidades discursivas cujo propósito fundamental é a
construção de uma ‘memória’ e de uma ‘identidade’ nacionais” (GONÇALVES,1996,
p. 11).
O nexo do patrimônio como objeto dessa construção memorial vem desde os
primórdios do IPHAN, atravessando o Estado Novo e a Ditadura Militar, como disse
Silva22 acima. Gonçalves (1996) fala que essa busca da construção da memória e
identidade nacionais se vale, muitas vezes, de um conjunto heterogêneo e
fragmentário de itens culturais para formar esse composto homogêneo chamado de
“cultura brasileira”. Para o autor,
Redimida enquanto “civilização” e “tradição”, a nação, na narrativa de Rodrigo
[Melo Franco de Andrade], individualiza-se, na medida mesmo em que
consegue resgatar e preservar essas entidades que sustentam sua memória
e identidade. [...] O Brasil é simbolicamente visualizado por meio de
elementos concretos e contingentes, tais como objetos, monumentos,
cidades históricas, que são usadas para representar verdades
transcendentes como a “tradição” e a “civilização”. (GONÇALVES, 1996, p.
120)
22 Cf. SILVA, Ana Paula da. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e a
construção da memória histórica nacional por meio dos bens culturais imóveis inscritos no Livro do
Tombo Histórico (1937-1985). 2017. 230 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Ciências
Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, Franca, 2017.
64
O Estado autoritário militar buscava, na construção dessa identidade nacional, a
afirmação de uma civilização que herdava a cara portuguesa em sua cultura
construtiva. Nação “civilizada”. Buscava-se uma noção de brasilidade vinculada ao
nacionalismo da época militar.23
Importante pontuar nessa época o surgimento do Conselho Federal de Cultura, em
1966. O conselho foi pensado para fortalecer justamente as instituições culturais
ligadas ao MEC que passavam por desgaste político-institucional e financeiro, além
de tentar remediar a imagem negativa que o Regime Militar tinha nos setores culturais.
Na 255ª sessão plenária do CFC, em 1971, Josué Montello narra o episódio
de quando convenceu o presidente Castelo Branco sobre a necessidade de
criação do CFC. Montello conta que sabia da preocupação de Castelo Branco
em relação às constantes campanhas de “Terrorismo Cultural” que se
alastravam nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, sendo que nestas
localidades encontravam-se muitos grupos artísticos e intelectuais de
oposição ao regime. Assim, apresentou o projeto do CFC como uma forma
de reação as críticas e as crises institucionais e financeiras do setor cultural
do MEC. De acordo com Tatyana Maia (2010a), o Conselho Federal de
Cultura “aparecia como uma opção à imagem negativa construída pela
atuação extremamente repressora de setores do governo na cultura”
(LAVINAS, 2014, p. 75).
É nesse contexto que se insere a construção da memória nas ações do IPHAN.
Levando em consideração todas as contradições do período, as entrelinhas e
sobretudo as intenções na busca de uma identidade nacional coesa. De um lado, o
“terrorismo cultural” contra os grupos de artistas e intelectuais que eram contrários ao
regime, com destaque para o Tropicalismo e o Teatro Oficina, de outro, a tentativa de
remediação e afirmação de uma política preservacionista preocupada com a “tradição”
e civilidade da nação, protetora dos monumentos e cidades históricas,
salvaguardando os objetos que têm valor simbólico de um nacionalismo exaltado.
Quando os militares assumiram o poder político em 1964 o patrimônio cultural
já traduzia uma imagem que lhes interessava, a do Brasil ordeiro e
disciplinado, conduzido por determinados grupos, e um Estado forte, capaz
23 Cf. Laís Villelaa Lavinas, Um animal político na cultura brasileira: Aloísio Magalhaes e o campo do
patrimônio cultural no Brasil (anos 1966-1982). 2014. 223f. Dissertação (Mestrado em História).
UNIRIO, 2014.
65
de defender o país desde os portugueses que expulsaram holandeses,
franceses e espanhóis e posteriormente lutaram pela independência, um
povo de bom caráter e fiel a Deus. O que estava representado no patrimônio
cultural protegido e inscrito no Livro do Tombo Histórico não era o Brasil
explorado por Portugal, composto pelas três raças que guardavam diferenças
e conflitos entre si, com cultos religiosos sincréticos etc., mas sim o Brasil da
homogeneidade e da suposta democracia racial (SILVA, 2017, p. 178).
Como sabemos, o governo militar criou o Programa das Cidades Históricas (PCH),
organizado a partir do final de 1972. O IPHAN atuou como fiscalizador de obras de
restauro, chancelando escolhas como a de destruição da feição eclética da Sé de
Olinda, em detrimento de um retorno a uma, em parte inventada, feição seiscentista
(CABRAL, 2016). Apesar do PCH ser elemento importante para pensar a construção
da memória oficial de Olinda, com marcas na materialidade dos bens produzidas pelas
restaurações, priorizamos o documento de tombamento do conjunto urbanístico, por
ter no IPHAN seu agente principal e por inaugurar, cronologicamente, um
entendimento do que seria a Olinda merecedora de preservação24.
3.3 Processo, Arquivo e os Armazenadores da Memória
Como já apontado anteriormente, nos procedimentos metodológicos, o conjunto de
documentos utilizados como base de análise da presente pesquisa compõe o
processo de tombamento da cidade de Olinda. Dessa forma, esta dissertação utiliza
como fonte primária de pesquisa os documentos oficiais da instituição à época
nominada DPHAN (Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional),
autarquia federal ligada ao então Ministério da Educação e Cultura - MEC.
Para melhor entendimento, processo é a forma burocrática de registro de como se
dão as ações administrativas da instituição, no que concerne aos seus trâmites legais.
Assim sendo, dentro deste processo, encontramos diversos tipos de documentos de
diferentes naturezas, tais como cartas, ofícios, informações, mapas, fotografias,
propostas, pareceres, atas de reunião do Conselho Consultivo, notificações etc., tudo
24 Para maiores informações sobre o PCH ver Dossiê organizado pelos Anais do Museu Paulista
(vol.24 no.1 São Paulo jan./abr. 2016).
66
devidamente protocolado e datado, para entendimento e consulta pública. O processo
tem início em 1966 e, embora haja presença de alguns manuscritos, a maioria dos
documentos é registrada em sua forma datilografada.
No que se refere ao tombamento, é em 1937 que ocorre o estabelecimento de seu
marco legal, através do Decreto-Lei Nº 25, de 30 de novembro do referido ano. O
tombamento constitui-se enquanto instituto jurídico por meio do qual um conjunto de
bens selecionados pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, atual
IPHAN, será objeto de proteção especial por parte do Estado. Através do Art. 4º do
Capítulo II do Decreto Lei, o então “Presidente da República dos Estados Unidos do
Brasil”, Getúlio Vargas, estabelece a proteção ao que era então considerado
patrimônio histórico e artístico nacional, a ver:
DO TOMBAMENTO Art. 4º O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional possuirá quatro Livros do Tombo, nos quais serão inscritas as obras
a que se refere o art. 1º desta lei, a saber: 1) no Livro do Tombo Arqueológico,
Etnográfico e Paisagístico, as coisas pertencentes às categorias de arte
arqueológica, etnográfica, ameríndia e popular, e bem assim as mencionadas
no § 2º do citado art. 1º. 2) no Livro do Tombo Histórico, as coisas de interêsse
histórico e as obras de arte histórica; 3) no Livro do Tombo das Belas Artes,
as coisas de arte erudita, nacional ou estrangeira; 4) no Livro do Tombo das
Artes Aplicadas, as obras que se incluírem na categoria das artes aplicadas,
nacionais ou estrangeiras. § 1º Cada um dos Livros do Tombo poderá ter
vários volumes. § 2º Os bens, que se incluem nas categorias enumeradas
nas alíneas 1, 2, 3 e 4 do presente artigo, serão definidos e especificados no
regulamento que for expedido para execução da presente lei (BRASIL, 1937).
Assim sendo, o processo de tombamento é o registro dos trâmites legais e ações
administrativas concernentes a essa proteção legal - a inscrição nos Livros do Tombo
- dada aos bens culturais considerados patrimônio histórico e artístico de relevância
nacional.
Olinda já havia tido processos de tombamento anteriores, relacionados, porém, a bens
arquitetônicos em específico, em sua maioria igrejas barrocas.25 O processo que
vamos analisar se difere dos anteriores porque traz o entendimento de que se constitui
25 No capítulo seguinte são listadas as igrejas e monumentos tombados isoladamente pelo IPHAN antes
do tombamento de Olinda enquanto conjunto.
67
como patrimônio não mais apenas elementos arquitetônicos isolados, mas o conjunto
urbano.26
Imagem 1 - Capa do Volume I do Processo de Tombamento do conjunto urbanístico, paisagístico e arquitetônico de Olinda-PE, processo nº 674-T-62.
Fonte: Arquivo Noronha Santos - IPHAN
26 Sobre isso, aprofundaremos adiante a relação da Carta de Veneza (1964) com as ressonâncias no
modo de atuar do SPHAN, à época.
68
Atendendo pelo código 674-T-62, o processo em suas vias físicas originais encontra-
se no arquivo central do IPHAN, no Rio de Janeiro, o chamado Arquivo Noronha
Santos27.
O arquivo, que nasceu como biblioteca, teve a contribuição de Carlos Drummond de
Andrade na organização de sua coleção. Em 1954, passa a chamar-se Arquivo
Noronha Santos, em ocasião da morte do historiador Francisco Agenor Noronha
Santos, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB, e também
insigne colaborador do SPHAN. O Arquivo, hoje, está subordinado ao Departamento
de Identificação e Documentação do IPHAN e lhe é atribuída a salvaguarda da
documentação produzida no âmbito da instituição, tais como os processos de
tombamento, entre outros, sendo de suma importância para o desenvolvimento de
estudos sobre políticas de cultura, memória e patrimônio e sobre a atuação do Estado
Brasileiro na preservação do patrimônio histórico.
Situado no Palácio Gustavo Capanema, o Arquivo Noronha Santos guarda
documentação organizada em quatro séries: Inventário, Arqueologia, Obras e
Tombamento. A série Tombamento é precisamente composta dos processos de
tombamento, onde, portanto, pode-se encontrar o processo que estamos a trabalhar,
o 674-T-92. As demais séries contam com documentos textuais e iconográficos,
compondo importante referência de pesquisa sobre as obras realizadas no âmbito da
instituição, além de inventário de bens culturais das mais diversas naturezas. Além
dessas séries documentais, o arquivo também possui os Livros de Tombo. É nos livros
de Tombo que se registra os bens que receberão proteção especial do Estado
Brasileiro, conforme apontado anteriormente, segundo o que diz o Decreto Lei Nº
25/1937.
Segundo Assmann (2011, p. 367), “A palavra ‘arquivo’ vem do grego arché, que além
de ‘início’, ‘origem’ e ‘autoridade’, significa ‘repartição pública’ e ‘escritório público’. [...]
O arquivo está ligado desde o seu princípio com a escrita, a burocracia, a
administração e aos atos administrativos. ” É importante, então, entender que há
27 Importante destacar que este arquivo, referência para muitos pesquisadores brasileiros, nasce como
Biblioteca do Patrimônio, em 1936, criada por quem viria a ser o primeiro presidente do SPHAN, em
1937, Rodrigo Mello Franco de Andrade.
69
relações fundamentais entre o arquivo, a escrita e a memória, concebendo o arquivo
como mais do que uma simples instituição armazenadora e organizadora de
documentos, mas um lugar que possui caráter político e crucial importância para a
memória da sociedade, funcionando como o que eu chamaria de âncora da memória.
Arquivos podem ser organizados tanto como memórias funcionais quanto
como memórias de armazenamento; no primeiro caso, eles contêm
documentos e peças comprobatórias que asseguram a base legitimadora das
relações de poder vigentes; no outro caso, revelam fontes potenciais que
perfazem o fundamento do saber histórico de uma cultura (ASSMANN, 2011,
p. 438).
A autora fala que a existência dos arquivos é possibilitada pela técnica da escrita, “que
removeu a memória de dentro do ser humano e a tornou fixa e independente dos
portadores vivos” (Assmann, 2011, p. 367), e daí vemos a primeira relação essencial
entre escrita, arquivo e memória. O surgimento do arquivo está relacionado, então,
com esse volume de documentos escritos, sendo, portanto, um armazenador em
essência. Ainda segundo Assmann, “Assim, a partir do arquivo como memória da
economia e da administração, surge o arquivo como testemunho do passado” (Idem).
A escrita também está imbricada com a memória desde seu nascimento e é um meio
essencial para o suporte dessa memória e seu passar entre as gerações, como
herança. Nos primórdios da História28, a escrita é já colocada como suporte da
memória.
A escrita é meio de memória, nas palavras de Assmann, “Escrita é medium de
eternização e suporte da memória”, podendo, ao longo do tempo, resistir, em seu
suporte material, até mais do que monumentos arquitetônicos.
Já os antigos egípcios enalteciam a escrita como o medium mais seguro da
memória. Quando olhavam retrospectivamente para a própria cultura, em um
28 “Heródoto de Halicarnassus apresenta aqui os resultados da sua investigação, para que a memória
dos acontecimentos não se apague entre os homens com o passar do tempo, e para que os feitos
admiráveis dos helenos e dos bárbaros não caiam no esquecimento; ele dá, inclusive, as razões pelas
quais eles se guerrearam” (I, 1). Heródoto retoma e transforma a tarefa do poeta arcaico: contar os
acontecimentos passados, conservar a memória, resgatar o passado, lutar contra o esquecimento.
Tarefa essencial que a voz do poeta--numa sociedade sem escrita como o era a Grécia arcaica--
encarnava, e que continuou também no texto poético escrito. ” (GAGNEBIN, 2005, p.15)
70
lapso temporal de mais de mil anos, ficava-lhes claro que construções
colossais e monumentos jaziam em ruínas, mas os textos daquela mesma
época ainda eram copiados, lidos e estudados. ASSMANN, 2011, p. 195
Assim sendo, podemos inferir que a escrita é mídia, suporte da memória, e o arquivo
é um armazenador da memória, sendo este também relacionado à memória na ideia
da guerra pela memória, ou seja, refletindo as relações de poder vigentes. Se
tomarmos como exemplo os arquivos secretos de regimes ditatoriais, a exemplo da
Ditadura Militar no Brasil, fica clara a ideia de o poder sobre o arquivo ser o poder
sobre a memória. Para Derrida, “A questão jamais pode ser posta como questão
política entre outras questões. Ele define todo o campo e na realidade decide de A e
Z a respeito da res publica. Não há poder político sem o controle sobre os arquivos,
sem o controle sobre a memória” (DERRIDA, 1995, p. 10).
Dessa forma, temos relações basilares entre escrita, arquivo e memória, de forma a
entender que a escrita surge como sistema de registro da memória, tornando possível
levar a memória para além da herança de três gerações ligadas pela oralidade, para
além da memória humana, configurando-se então como memória cultural, como
discutido anteriormente. Além disso, tem-se o arquivo, que deriva da acumulação da
escrita, e que é armazenador de memória, sendo espaço de memória em potencial,
justamente porque há relações políticas que agem sobre o arquivo, colocando a
memória como objeto de disputas de poder.
O arquivo é, primeiramente, a lei daquilo que se pode dizer, o sistema que
comanda o surgimento das afirmações como acontecimentos individuais.
Mas o arquivo também é aquilo que faz com que tudo que é dito não se
amontoe até o infinito em uma pilha enorme e amorfa, e também não
desapareça por causa de condições externas repentinas. [...] Arquivo [...] é o
que desde o princípio, nas raízes de uma própria afirmação, define o sistema
de sua expressividade enquanto acontecimento, e isso no próprio corpo em
que essa afirmação se dá (FOUCAULT, 1973, p. 186).
71
3.4 Comissão Nacional da Verdade e o Direito à Memória
No âmbito nacional, os arquivos públicos são regulamentados pela Lei Federal no
8.159/1991. Em seu Art. 7º define-se que “Os arquivos públicos são os conjuntos de
documentos produzidos e recebidos, no exercício de suas atividades, por órgãos
públicos de âmbito federal, estadual, do Distrito Federal e municipal, em decorrência
de suas funções administrativas, legislativas e judiciárias”. Esta mesma Lei
regulamenta a organização e administração dos arquivos, mostrando como essas
instituições armazenadoras de memória estão sob a tutela do Estado e,
consequentemente, sob relações de poder, o que tanto pode significar processos de
ocultamento da memória nacional, no caso de documentos dos arquivos secretos da
ditadura, como processos de revelação da memória, a exemplo da instauração da
Comissão Nacional da Verdade29, tendo sido instaurada em governo democrático, que
teve intenção política de revelação da memória, como nenhum governo anterior já no
período democrático.
Ao se tornarem públicos, os documentos levantados e os trabalhos
desenvolvidos durante a vigência de uma Comissão da Verdade, reforçam
esses três objetivos30, que forma parte dos eixos da Justiça de Transição.
29 Cf. http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/, acesso em set/2018. A Comissão Nacional da Verdade,
instituída no Governo Dilma Rousseff, conta com a presença de vasta equipe de conselheiros e
pesquisadores ligados às principais universidades públicas do país, os pensadores da ciência e da
história do Brasil
30 Objetivos gerais da Comissão da Verdade instaurada no Governo Dilma:
1. Analisar os contextos sociais e históricos nos quais se passaram os abusos e violações,
esclarecendo, na medida do possível, os fatos que muitas vezes foram encobertos ou distorcidos por
mecanismos do próprio Estado. Assim, frequentemente as Comissões da Verdade enfrentam uma
cultura do esquecimento com que se pretende negar o acontecido e dificultar a apuração das evidências
que permitam apontar os responsáveis pelas violações de direitos humanos ocorridas no período.
2. Reconhecer e proteger as vítimas exigindo que o Estado valorize seus testemunhos como
fundamentais para a construção da verdade histórica e repare, mesmo que parcialmente, os danos
decorrentes das violências sofridas.
3. Elaborar relatórios e recomendações, com sugestões de reformas institucionais, revisões
constitucionais e processos de justiça que possam garantir o aperfeiçoamento da democracia.
72
Além disso, possibilitam que um amplo debate social se estabeleça e que a
população e as instituições reflitam sobre seu passado, tentando, assim,
impedir que graves violações aos direitos humanos sigam ocorrendo no
presente. (CNV, 2014)
A Comissão Nacional da Verdade fala da construção de uma “narrativa da memória”
como forma de não só resgatar o passado, revelar as verdades ocultadas sobre as
violências e práticas repressivas da ditadura militar, como também para que a
memória viva sirva de exemplo para que “nunca mais” se repitam tais atos contra a
democracia, contra os direitos humanos.
A memória foi o dever da Argentina posterior à ditadura militar e o é na maioria
dos países da América Latina. O testemunho possibilitou a condenação do
terrorismo do Estado; a ideia do “nunca mais” se sustenta no fato de que
sabemos a que nos referimos quando desejamos que isso não se repita
(SARLO, 2007, p.20).
Aliás, cabe aqui mostrar o paralelo entre a ascensão do discurso da memória e o
movimento transnacional pelos direitos humanos, que, segundo Huyssen, “são
construções complexamente sobredeterminadas, geradas por constelações políticas
específicas do final do século XX, as quais resultaram do fim das ditaduras na América
Latina, [...] ” e de outros movimentos políticos sociais da época.31
O recurso na presente narrativa à Comissão da Verdade, que coloca em jogo vidas,
não pretende igualar os esquecimentos no campo da cultura material aos dessas
vidas, mas atentar para a importância simbólica de ocultamentos de memórias de
determinados grupos e sua invisibilidade enquanto formadores do patrimônio dito
nacional.
A ideia da memória exemplar é essencial nessa guerra de memórias, em que o
processo de esquecimento “precisa ser situado num campo de termos e fenômenos
como silêncio, desarticulação, evasão, apagamento, desgaste, repressão”
(HUYSSEN, 2014, p.158), de modo a manipular a memória nacional, fazendo cumprir
intenções políticas de ocultamento da verdade, típico de posturas autoritárias. A
31 Cf. Huyssen, Os direitos humanos internacionais e a política da memória: limites e desafios. In:
Culturas do passado-presente. Modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2014, pp.195-213
73
memória é exemplar na medida em que, constantemente trazida à tona, nos impede
de repetir os mesmos erros, ou de, enquanto sociedade democrática, permiti-los, ou
ainda nos dá a consciência das atrocidades cometidas no passado, nos dando luz
sobre processos presentes, como golpes e discursos que laceram a memória
nacional.
Democratizar o acesso aos arquivos públicos e aos documentos e coleções é uma
forma de administração que visa a aproximação do público aos registros de memória.
É possível observar a transformação da intenção política quando se compara a Lei nº
8.159, de 8 de janeiro de 1991, do então governo Collor de Melo, com a Lei nº 12.527,
de 18 de novembro de 2011, do governo Dilma Rousseff, e isso é importante porque
o arquivo é objeto de disputas de poder (segundo Assmann, 2011, p. 368, “controle
do arquivo é controle da memória”). No primeiro momento, é garantido o acesso à
informação contida nos documentos do arquivo “ressalvadas aquelas cujos sigilo seja
imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, bem como à inviolabilidade da
intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas”. Especificamente o
capítulo V, que em 1991 versava sobre o “acesso e sigilo dos documentos públicos”,
é revogado pela lei de 2011, que garante um processo de reclassificação dos
documentos considerados sigilosos, mas garante o acesso àqueles fundamentais
para a luta contra as atrocidades cometidas durante a ditadura militar, a ver:
Art. 21. Não poderá ser negado acesso à informação necessária à tutela
judicial ou administrativa de direitos fundamentais.
Parágrafo único. As informações ou documentos que versem sobre condutas
que impliquem violação dos direitos humanos praticada por agentes públicos
ou a mando de autoridades públicas não poderão ser objeto de restrição de
acesso. (BRASIL, 2011)
Um detalhe que não me passou despercebido é a presença de Jarbas Passarinho32
na Lei de 1991, como ministro da Justiça do governo Collor, devido a sua presença,
como veremos no capítulo a seguir, em documentos do Processo de Tombamento de
32 Cf. http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/jarbas-goncalves-passarinho
acesso em set/2018. PASSARINHO, JARBAS (*militar; gov. PA 1964-1966; sen. PA 1967; min. Trab.
1967-1969; min. Educ. 1969-1974; sen. PA 1974-1983; min. Prev. Social 1983-1985; sen. PA 1986-
1990, 1992-1994; const. 1988; min. Just. 1990-1992.)
74
Olinda, quando era então Ministro de Educação e Cultura do regime militar durante o
período Médici. Segundo o Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil – CPDOC-, ligado à Fundação Getúlio Vargas –FGV-,
“Como todos os ministros que integravam o Conselho de Segurança Nacional, Jarbas
Passarinho foi signatário do AI-5. ” Esse detalhe corrobora para a ideia de Derrida,
que fala que “Não há poder político sem o controle sobre os arquivos, sem o controle
sobre a memória”33.
Em tempos de conversão de mídias analógicas para digitais, pensar em formas de
digitalização de acervos é uma estratégia sine qua non para o funcionamento e a
democratização dos arquivos, quando há essa intenção política. O Conselho Nacional
de Arquivos – CONARQ –, criado em ocasião da Lei de 1991, ligado ao Arquivo
Nacional, chegou a recomendações técnicas para a digitalização de documentos
arquivísticos permanentes34 em 2010. A recomendação traz que:
A digitalização de acervos é uma das ferramentas essenciais ao acesso e à
difusão dos acervos arquivísticos, além de contribuir para a sua preservação,
uma vez que restringe o manuseio aos originais, constituindo-se como
instrumento capaz de dar acesso simultâneo local ou remoto aos seus
representantes digitais35 como os documentos textuais, cartográficos e
iconográficos em suportes convencionais, objeto desta recomendação.
CONARQ, 2010, p. 4
Desde 2010, o IPHAN tem feito um trabalho de digitalização dos documentos originais
do Arquivo Central como ação de preservação desses próprios exemplares. Através
do Programa de Preservação de Acervos 2010/2011, financiado pelo Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES -, têm sido disponibilizados muitos
documentos digitalizados para acesso por meio da internet, no portal do IPHAN, na
aba ‘Rede de Arquivos do IPHAN’.
33 Derrida, Jacques. Archive Fever. A Freudian Impression, Diacritics 20.2, 1995, pp 9-63; o trecho
citado está nas pp. 10-1. Apud Assmann, 2011, p. 368.
34 Lei Federal nº 8.159/1991, Art 8º, § 3º - Consideram-se permanentes os conjuntos de documentos
de valor histórico, probatório e informativo que devem ser definitivamente preservados.
35 Representante digital - (digital surrogate) - Nos termos dessa Recomendação é a representação em
formato de arquivo digital de um documento originalmente não digital. É uma forma de diferenciá-lo do
documento de arquivo nascido originalmente em formato de arquivo digital (born digital). CONARQ,
2010, p. 4
75
A iniciativa possibilita acesso às informações existentes nos arquivos do
Iphan por meio da Rede de Arquivos Iphan, além do tratamento e
conservação preventiva dos documentos para evitar o manuseio indevido das
fontes históricas. Preservando adequadamente os originais, garante-se a
perenidade das informações e futuras digitalizações ou o uso de novas
tecnologias que poderão surgir. (IPHAN, Rede de Arquivos)
Assim sendo, o repositório de documentos do IPHAN é uma iniciativa que democratiza
o acesso à documentação que é de interesse público, mostrando uma postura de
socialização do poder sobre a memória nacional.
Imagem 2 - Projeto Rede de Arquivos do IPHAN
Levando em conta os 80 anos de atuação do IPHAN, a iniciativa de digitalizar e
disponibilizar os documentos entre os quais “inventários, imagens, plantas, dossiês,
relatórios de obras e processos de tombamento, além de rica documentação
iconográfica e cartográfica”, é não apenas importante para pesquisadores, como para
toda uma sociedade, que ancora sua memória nesses suportes e armazenadores, nas
formas “cumulativa” e “funcional”, como vimos anteriormente. Para Assmann, “Nas
culturas escritas tem-se as duas formações, e o futuro da cultura depende em grande
medida de que essas memórias continuem existindo lado a lado, também sob as
condições proporcionadas pelas novas mídias” (Assmann, 2011, p. 154).
São 80 anos de políticas de cultura, memória e patrimônio, registradas nessa vasta
documentação que mostra o alargamento da noção de patrimônio cultural rebatido em
políticas de preservação. A seleção, reconhecimento e proteção desse patrimônio
mostra também uma certa construção da memória e identidade de uma nação, que
precisa ser compreendida em seu contexto de produção, sob o risco de continuarmos
em certas direções, sem quebrarmos verdadeiramente determinadas lógicas e
escolhas.
76
4 UMA OLINDA CRISTÃ E VERDE: DO TOMBAMENTO (1966-1968)
Meu pai também acreditava que o banho de mar salutar era o
tomado antes do sol nascer. Como explicar o que eu sentia de
presente inaudito em sair de casa de madrugada e pegar o
bonde vazio que nos levaria para Olinda ainda na escuridão?36
O trecho do conto de Lispector é o exemplo de uma memória ligada à cidade de
Olinda. No conto, ela fala sobre os banhos de mar que tomara lá, e tudo relacionado
ao trajeto, às sensações, ao próprio mar. Para Assmann (2011), a memória ancora-
se em diversos meios, sejam eles a escrita, a imagem, o corpo, o lugar, além dos
armazenadores, como vimos, o caso do arquivo.
Quando falamos de memória da cidade, estamos falando de um universo de “mídias”
ou vetores que portam em si vivências, como signos do passado, tal como o edifício
é suporte para a pátina que nele depõe, assim são os vetores para a memória. A
memória da cidade é também composta de muitas memórias possíveis. Podemos
pensar sobre a memória dos moradores; a memória de quem tem alguma vivência em
Olinda que lhe seja cara; a memória dos carnavais; a memória na literatura, na poesia,
nas cantorias, nos maracatus; a memória que repousa nas fotografias, nas ilustrações,
nos desenhos, nos mapas e estudos. A memória, também, que está nos rituais, nas
expressões religiosas, no caminhar das procissões ou no coco pisado. Há uma
infinidade de memórias e de meios nos quais a memória se ancora.
Dentro deste universo de possíveis memórias, falar sobre memória oficial é buscar um
substrato desse universo que reflita uma memória construída por meios oficiais, como
no caso de estarmos trabalhando com o processo de tombamento da cidade,
documentação produzida por um órgão federal de proteção ao patrimônio nacional.
O processo encaixa-se então com um constructo da memória oficial da cidade. Assim
sendo, podemos entender a documentação como meio de memória, sendo a mídia de
escrita depositada no armazenador da memória, o arquivo. Podemos também
entender o ato de tombar, de selecionar, reconhecer e proteger determinada parte da
36 LISPECTOR, Clarice. “Banhos de mar”. In: Clarice Lispector, Todos os contos.
77
cidade também como uma forma de construção da memória urbana, à medida em que
salvaguarda e porta para futuras gerações o testemunho do vivido, do construído,
daquilo que vai ser base para a identidade da sociedade vindoura, memória urbana
ancorada em ‘pedra e cal’.
O processo de tombamento de Olinda é composto por quatro volumes e um anexo. O
volume I inicia-se em 1966, com a abertura do processo, contendo uma carta37 do
arquiteto Augusto da Silva Telles endereçada ao arquiteto José Luís da Mota
Meneses. É o início da proposta. Nesta dissertação, vamos nos ater à documentação
referente às seguintes periodizações propostas para o entendimento da memória
urbana:
A primeira, de 1966 a 1968, onde trata-se exatamente do tombamento, da inscrição
do polígono urbanístico nos Livros do Tombo. A segunda, de 1972, ano de retomada
do processo, até 1980, ano em que é concedido o título de Monumento Nacional à
cidade de Olinda, buscando analisar não apenas a história de como se deu a definição
do polígono e a proteção da cidade em âmbito federal, como também buscar entender
que processos de criação de memória urbana estão engendrados nessa seleção e na
concessão do título de Monumento Nacional.
Porém, temos mais três volumes e um anexo, em que constam os seguintes assuntos:
Volume II – contém algumas segundas vias de documentos do volume I, acrescido de
proposições como um:
Plano de preservação de uma área entre o Recife e Olinda na qual
não fossem consentidas construções, de forma a permitir a visão
desembaraçada da paisagem e das velhas construções olindenses –
seus montes, suas casas, suas igrejas, sua vegetação – e o visitante,
ao aproximar-se da cidade-mater da civilização portuguesa em todo o
Norte brasileiro, percebesse desde então a importância histórica e
artística da antiga capital.38
37 Dphan, 674-T-26, Vol I, Carta nº 370, de 30 de set. de 1966. Documento assinado por Augusto da
Silva Telles.
38 Proposição, 674-T-62, Vol. II, S.E.N.E.C, Conselho Estadual de Cultura, de 18 de junho de 1974.
Documento assinado por Luiz Delgado.
78
Proposição feita por Luiz Delgado, então membro do Conselho Estadual de Cultura,
ligado à então Secretaria de Estado dos Negócios de Educação e Cultura, do Estado
de Pernambuco. Entre outros documentos, é também citada a missão da UNESCO
na figura de Michel Parent. O volume é dedicado, sobretudo, ao estudo da extensão
do tombamento.
O volume III versa propriamente sobre a discussão de Olinda tornar-se Monumento
Nacional. E a isto vamos dar a devida profundidade.
O Volume IV trata da rerratificação do polígono de tombamento, sendo já uma
documentação que data de 1985 em diante.
O anexo contém alguns processos jurídicos relacionados ao Ministério Público
Federal processando a Prefeitura de Olinda sobre possíveis danos ao patrimônio etc.
Como dito, vamos nos ater às duas periodizações propostas, para entender não
apenas o processo de tombamento como criação de memória urbana, como a
elevação de Olinda a condição de Monumento Nacional, como proteção e criação de
identidade balizadas por interesses específicos e seletivos sobre a memória da nação.
Tentaremos percorrer estradas de análise que nos permitam uma narrativa da memória
da cidade sob perspectivas inovadoras, para que tragamos à luz memórias reveladas.
Para isso, propomos como chaves analíticas as seguintes ideias:
1- Identificar, no tombamento proposto, quais são as representações da memória
da cidade. Por representações da memória entenda-se o que é selecionado,
reconhecido, classificado e legitimado como patrimônio que simboliza a
memória da cidade.
2- Identificar, no tombamento proposto, que grupos sociais são representados e
o que isso significa enquanto construção de uma memória oficial. Entendendo
enquanto memória oficial aquela construída e proposta pelo órgão federal de
proteção e salvaguarda do patrimônio, o IPHAN.
Como procedimento analítico-interpretativo dos documentos, a análise do discurso,
dentro da perspectiva da História Cultural, coloca-se para nós enquanto metodologia
fundamental para o desenvolvimento da pesquisa, funcionando como espécie de
“lupa”, cuja lente se intermedia entre meu olhar de pesquisadora e a documentação.
A análise de discurso está em busca da construção do sentido, através da retomada
79
de outros discursos e da relação das estratégias discursivas com a História. Conforme
vimos no capítulo anterior, o contexto histórico não é apenas pano de fundo, mas
permeia as ações, os sujeitos e as relações políticas na construção da memória
através, no nosso caso, das ações preservacionistas do IPHAN.
A análise documental traz à luz uma série de entrelinhas vividas no processo de
tombamento da Cidade de Olinda. Como lugar de memória, o documento é em si
registro e representação do vivido, sendo também vetor de memória, que é agora
desvelada, mas que se constitui enquanto memória cumulativa e potencial, evocada
para o entendimento do que significa este patrimônio cultural protegido e regido sob a
maestria do Estado, na figura do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
na época, Diretoria.
Como antes dito, dentro do processo encontram-se as mais diversas naturezas
documentais, dentre documentos oficiais protocolados e repercussões da imprensa
local na época. Uma delas, a que gostaria de iniciar explorando neste primeiro
momento do processo (1966-1968), é uma coluna do Correio da Manhã39, datada em
24/04/1968, escrita pelo poeta Carlos Drummond de Andrade.
4.1 E esqueceste a velha Olinda, distraída?
Chefe de gabinete do ministro Gustavo Capanema por 15 anos, Carlos Drummond de
Andrade usa um poema de Manuel Bandeira, Cotovia, escrito saudoso de um Recife
passado, para fortalecer a iniciativa do DPHAN de proteger o sítio histórico de Olinda,
cidade vizinha, também em Pernambuco. O texto de Drummond nos servirá para
problematizar a dupla “memória e esquecimento” antes de entrarmos na análise do
processo de tombamento. Segundo Drummond,
O poeta nacional Manuel Bandeira (que na moita, acaba de completar
82 anos gloriosos) encontrou-se com uma cotovia de suas relações,
que há muito não aparecia. Perguntou-lhe por onde tinha andado.
39 IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol I, pp. 34.
80
Como a resposta mencionasse diferentes ares e lugares, menos um
certo, recriminou-a:
-E esqueceste Pernambuco, distraída?
Não, a cotovia em suas voanças (existirá a palavra? Fica existindo),
pousara no Cais da Rua da Aurora, lugar dileto do bardo. Assim
também, ao ver a DPHAN colocar sob sua especial proteção conjuntos
urbanos tradicionais, como Ouro Preto, Diamantina, e outros, em
Minas, Parati no Estado do Rio, Pilar em Goiás, Alcântara, no
Maranhão, seria o caso de inquirir-lhe: “E esqueceste a velha Olinda,
distraída? ”
Não houve esquecimento, os principais monumentos arquitetônicos de
Olinda, desde Igrejas e conventos até casas de requintado muxarabi,
já estavam inscritos há longo tempo nos Livros do Tombo da instituição
federal. Isso era bastante, dadas as condições estáticas que definiam
a vida da cidade de Duarte Coelho, em sua pacatez de coqueiros e
praias posando para namorados.
[...]
Já agora, a industrialização, taxa demográfica ascendente, loteamento
e turismo (elemento vitalizador e, ao mesmo tempo, deformador),
conjugando-se, armam grave ameaça à fisionomia secular de Olinda,
exigindo cuidados de vigilância e assistência técnica só praticáveis
pelo tombamento completo do acervo paisagístico e urbanístico da
cidade. É o que acaba de fazer a DPHAN, na hora certa, por iniciativa
do arquiteto Augusto da Silva Telles, da nova geração de especialistas
em preservação de monumentos, formada sob a influência e o
exemplo dos mestres Rodrigo M. F. de Andrade e Renato Soeiro. O
conselho consultivo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
unânime, aprovou o parecer de Paulo F. Santos, favorável à medida,
e mandou que Olinda, em sua área poligonal de mais viva
caracterização antiga, com o casario disposto em arruamento
espontâneo (a casa impondo, aqui e ali, a formação irregular da rua)
entrasse para a categoria dos monumentos nacionais, na companhia
ilustre de suas irmãs de outros Estados.
[...]
81
Mas o importante, a meu ver, é que decisões como essa do Conselho
não devem ficar escondidas na monotonia gráfica do Diário Oficial.
Toda vez que se movimenta um grupo de técnicos, eruditos e
pesquisadores, para proteger o acervo nacional de arte e história,
inserindo o passado no presente, em harmonia com os imperativos do
desenvolvimento, sentimos que a atualidade não é feita apenas de
fofocas e violências; que há um pensamento sério, construtivo,
animando pessoas de boa-vontade e saber, para que o Brasil não se
despeça de si mesmo, e mantenha a unidade de cultura. Olinda
monumento nacional é desses sinais alentadores.
O título da coluna é Olinda, monumento nacional, porém, gostaria precisamente de
desfazer o equívoco. Ao que Drummond se refere por monumento nacional é o
reconhecimento de Olinda como cidade-patrimônio nacional pelo Tombamento - a
inscrição de Olinda nos Livros do Tombo, que foi o que ocorreu em ocasião de 1968.
A ideia de Monumento Nacional como título implica em “regime excepcional de
proteção” e na adoção de um plano urbanístico específico, com captação de recursos
para a preservação do sítio.40 A elevação de Olinda a Monumento Nacional só vem a
ocorrer em 1980, pela Lei nº 6.863, de 26 de novembro de 1980, publicada no Diário
Oficial da União em 27 de novembro de 1980, que é a segunda periodização que
vamos explorar, mais adiante. Até aqui, atenhamo-nos ao tombamento, que é sobre
o que Drummond trata nesta coluna.
40 Como exemplo, temos a cidade de Paraty, RJ. Foi inscrita nos Livros do Tombo do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional em 1945 e somente em 1966 foi erigida à condição de Monumento
Nacional, através do Decreto nº 58.077 de 24 de março de 1966.
82
Imagem 3 - Coluna do Correio da Manhã de 24/04/1968, processo nº 674-T-62.
Fonte: Arquivo Noronha Santos – IPHAN
O poeta utiliza uma figura de linguagem para mostrar que a cidade de Olinda,
enquanto conjunto urbanístico, foi relegada pela proteção do Patrimônio Histórico por
algum tempo em relação a outras cidades históricas brasileiras, como as citadas na
coluna, Ouro Preto, Diamantina, entre outras, que tiveram o reconhecimento e
proteção vindos muito mais cedo, o que favoreceu sua preservação. “E esqueceste a
velha Olinda, distraída? ” Engraçado perceber que o processo de construção da
memória implica necessariamente em esquecimentos.
Nas palavras de Assmann (2011, p. 437), “O que se seleciona para a recordação
sempre está delineado por contornos de esquecimento. O recordar que enfoca e
concentra implica esquecimento, [...]”. O SPHAN, como se chamava na época,
protegeu, a priori, aquilo que se entendia significar os mais importantes traços da
83
memória e identidade nacionais, e, ao longo dos anos, essa compreensão e proteção
vai se ampliando e agregando novas representações de memória.
A ação preservacionista do IPHAN se coloca, então, como uma força de criação de
memória cultural urbana. Se formos pensar epistemologicamente, o que chega até
nós não é apenas patrimônio, herança de cultura material. O que nos chega é a
memória cultural do que foi essa construção em processo de nosso país, de nossa
identidade enquanto nação e de uma cultura chamada brasileira.
Para aproximar-nos do entendimento de memória cultural, podemos dizer que é
aquela memória que “supera épocas e é guardada em textos normativos” (ASSMANN,
2011, p. 17). Ou ainda, quando a autora fala sobre os locais da recordação: “[...] que
os locais possam tornar-se sujeitos, portadores de recordação e possivelmente
dotados de uma memória que ultrapassa amplamente a memória dos seres humanos”
(ASSMANN, 2011, p. 317).
Essa memória que ultrapassa a memória dos humanos, que está para além da
memória geracional e coletiva, seria o entendimento mais próximo da memória que é
construída e herdada como signo da cultura e sob forma de cultura. A memória que
lança bases de uma identidade comum sem necessariamente pertencer a um grupo
fechado que comunica essa memória através das gerações, é algo que transcende
esse processo, como fala a autora.
O patrimônio que chega até nós e que é legitimado pelo órgão federal é o suporte
exterior onde “se ancora, se condensa e se exprime o capital esgotado de nossa
memória” (NORA, 1993, p. 28) e, portanto, o patrimônio cultural remanescente da
cultura material que atravessa o passado e chega até nós é constituinte
epistemológico da noção de memória cultural. Herdamos não apenas conjuntos
urbanos, monumentos arquitetônicos ou linhas e formas estilísticas, mas todo o
significado e a simbologia imbuída nesses representantes. Herdamos a memória.
Acredita-se que o conceito de memória cultural urbana consegue abarcar em si um
entendimento que vai muito além da cultura material, da pedra e cal, ou de aspectos
formais e estilísticos. Ademais, vai além de uma memória coletiva que se comunica
pela oralidade, restrita a grupos ou comunidades. Estamos falando de uma memória
em escala nacional, transepocal, que se constitui como fundamento da identidade
nacional, que é transmitida por uma série de mídias e vetores de memória, mas que,
84
no caso específico que estamos analisando, de uma memória advinda de documentos
oficiais de órgão federal, integra uma faceta da memória “oficial”.
Some-se a isto a ideia daquilo que é urbano. A memória cultural urbana criada a partir
das ações do IPHAN é o traço fundante do nosso entendimento de mundo, de nossa
cultura, do passado no qual caminhamos, em cada traçado urbano preservado, em
cada monumento que nos comunica desde o passado, pelo seu atravessar-o-tempo.
A nossa vivência enquanto sociedade é marcada pela memória cultural urbana, que
nos dá o senso não só de herança e do passado do nosso país, mas de que processos
fundaram tudo aquilo que somos hoje enquanto sociedade. Desde o modus vivendi
de sociedades passadas, a oferta de materiais à época, a forma de ordenamento das
ruas, o traçado, as relações espaciais de igrejas, pátios, largos e ruas, o testemunho
da presença das ordens religiosas e sua importância na forma de estruturação da
cidade, etc. Memória que nos faz compreender como chegamos aqui, como as coisas
se construíram até o que temos hoje enquanto sociedade, abrindo margem para o
entendimento de diversos traços culturais de nosso corpo social.
As ações preservacionistas do IPHAN nos fazem entender que a construção da
memória é sempre um jogo político, que muitas vezes está também relacionado à
ideia da guerra pela memória, refletindo as relações de poder vigentes. Entendemos
que a memória cultural urbana é a construção desse “processo social de esquecer e
recordar”41 a cidade. Aliás, englobe-se ao entendimento de cidade os conjuntos
urbanos e os bens culturais que a compõem. Sobre essas pedras são edificadas as
representações de uma sociedade e de sua identidade nacional, através de processos
de seleção, reconhecimento, proteção do chamado Patrimônio Cultural.
Se prestarmos atenção nos monumentos citados por Drummond que já eram
tombados antes da efetivação da proteção do conjunto urbanístico, podemos trazer
em mente que monumentos eram esses e em que sequência temporal receberam a
proteção do tombamento. A relevância disso é entender o que era considerado
importante e representante da memória nacional dos primórdios do IPHAN até o
momento do tombamento do conjunto urbanístico de Olinda, em 1968. Não omitamos
disto o alinhamento das ações preservacionistas do IPHAN com o desenvolvimento
das políticas patrimoniais internacionais, através, por exemplo, dos congressos de
41 Assmann, 2011, p. 441.
85
arquitetos que culminaram nas cartas de Atenas, 1933, e Veneza, 1964, além do
desenvolvimento das teorias da restauração e conservação no âmbito mais
acadêmico dos pesquisadores, intelectuais e teóricos da área. O processo de
alargamento da noção de Patrimônio Cultural está diretamente ligado a essas
reverberações internacionais, e temos que levá-lo em conta, embora nosso viés de
pesquisa se apoie sobre a ideia da construção da memória nacional, em específico, a
memória cultural urbana de Olinda.
Para entender o desenrolar dos processos de tombamento na cidade de Olinda antes
de seu tombamento enquanto conjunto urbanístico, paisagístico e arquitetônico,
desenvolvemos uma tabela que mostra, em ordem cronológica, os bens imóveis
inscritos nos Livros do Tombo do IPHAN. A ver:
Tabela 1 - Bens Móveis e Imóveis inscritos nos Livros do Tombo do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional em Olinda, até 1968.
Bens Móveis e Imóveis inscritos nos Livros do Tombo do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em Olinda, até 1968
Nome Imagem Processo Livro do Tombo Data
Seminário de Olinda
131-T-38
Livro de Belas Artes, Vol. 1,
Insc. 69, Folha 13
17/05/1938
Palácio Episcopal (Antigo)
131-T-38
Livro de Belas Artes, Vol.1,
Insc. 70, Folha 13
17/05/1938
86
Igreja e Convento de São Bento
050-T-38
Livro de Belas Artes, Vol. 1,
Insc. 179, Folha 31 e
Livro Histórico, Vol. 1, Insc. 86,
Folha 16
16/07/1938
Igreja de N. S. do Monte
170-T-38
Livro de Belas Artes, Vol. 1,
Insc. 181, Folha 32 e
Livro Histórico, Vol. 1, Insc. 87,
Folha 16
16/07/1938
Convento de São
Francisco
143-T-38
Livro de Belas Artes, Vol.1,
Insc. 189, Folha 33
22/07/1938
Igreja da Misericórdia
124-T-38
Livro de Belas Artes, Vol.1,
Insc. 202, Folha 35
05/08/1938
Igreja de Santa Teresa
142-T-38
Livro de Belas Artes, Vol. 1,
Insc. 203, Folha 35
05/08/1938
87
Igreja de N. S. do
Carmo
148-T-38
Livro de Belas Artes, Vol. 1,
Insc. 217, Folha 38 e
Livro Histórico, Vol. 1, Insc.
108, Folha 19
05/10/1938
Casa com Muxarabi à
Rua do Amparo, nº
28
192-T-38
Livro de Belas Artes,Vol. 1,
Insc. 237, Folha 41
27/04/1939
Casa com Muxarabi à Praça João Alfredo, nº
7
191-T-38
Livro de Belas Artes,Vol. 1,
Insc. 238, Folha 41
27/04/1939
Casa do Antigo Aljube
638-T-61 Livro Histórico,
Vol. 1, Insc. 386, Folha 62
16/03/1966
88
Capela de São Pedro Advíncula
638-T-61 Livro Histórico,
Vol. 1, Insc. 387, Folha 62
16/03/1966
Fonte: Tabela desenvolvida pela autora com dados do IPHAN, 1994.
Vendo essa tabela, podemos enxergar a emergência desses primeiros tombamentos,
enquadrados dentro da noção de Belas Artes, feitos nos primeiros anos de fundação
do IPHAN. Para Rodrigo Melo Franco de Andrade, presidente do IPHAN desde sua
criação até 1967, esses primeiros anos de criação do Serviço do Patrimônio, como
então era conhecido (SPHAN), foram marcados pela busca de um mapa da civilização
brasileira em monumentos. Em suas palavras, “[...] teríamos de considerar a obra de
civilização realizada no país: a produção material e espiritual que herdamos”
(Andrade apud RUBINO, 1996, p.97). O texto de Rubino problematiza que o passado
“mapeado” pelos pioneiros do IPHAN era precisamente o passado que aquela
geração “tinha olhos para ver”. Essa construção é interessante porque dialoga
metalinguisticamente com o olhar que nós lançamos sobre o passado que, por sua
vez, tem o olhar próprio de seu tempo para lançar sobre o retrovisor. O passado que
eles viam, descobriam e se propunham a salvaguardar revela o prisma específico do
que eles consideravam importante nesse mapeamento das obras significativas de
uma identidade nacional. Temos que ter em mente que o olhar que lançamos do nosso
presente é diferente e permeado por filtros e condicionantes próprios da nossa época.
A tabela acima figura um tipo específico de bem cultural que foi reconhecido em
Olinda, desenhando, então, a proposta de uma memória oficial urbana em escala
nacional. Para Rubino (idem) “O conjunto de bens tombados desenha um mapa de
densidades, períodos e tipos de bens, formando conjuntos fechados e finitos”. O
enquadramento desses primeiros tombamentos era relacionado, sobretudo, a valores
históricos e artísticos. Como vemos na tabela, a maioria dos bens é inscrito no Libro
89
de Belas Artes, mas o entendimento do tombamento também trazia um olhar sobre a
memória histórica: “O decreto que criou o SPHAN definia o patrimônio histórico e
artístico nacional como ‘o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país, quer
por sua vinculação a fatos memoráveis, quer por seu excepcional valor arqueológico,
etnográfico, bibliográfico ou histórico’” (RUBINO, 1996, p.98) (grifo nosso).
A salvaguarda dos monumentos católicos barrocos foi prioridade absoluta em 1938.
Monumentos quase todos brancos. Quase todos barrocos. Que representam uma
memória que, de quase europeia, como verdade é tratada42. A memória de um traço
específico de nossa herança cultural: o português, branco, europeu, cristão-católico,
que ostenta o ouro e os traços religiosos definidos como fundantes da memória
cultural urbana. Sim, o processo de tombamento é construção de memória, porque
não apenas reconhece o que vem do passado, como projeta ao futuro as bases do
que é reconhecido enquanto memória oficial.43
Se Pierre Janet44 ”considera que o ato mnemônico fundamental é o “comportamento
narrativo”, que se caracteriza antes de mais nada pela sua função social”, o que dizer
dessa narrativa da memória urbana de Olinda? Seminário dos Jesuítas, patrimônio
legitimado, Antigo Palácio Episcopal, tombado, Igreja e Convento dos Beneditinos,
Igreja de N. S. do Monte, Convento dos Franciscanos, Santa Teresa, Ordem dos
Carmelitas, recebem salvaguarda. São as ordens religiosas, afinal, que constituem a
memória urbana. Foram elas que ditaram a formação da cidade, são elas, então,
traços fundantes da memória de Olinda. “O conjunto eleito revela o desejo por um país
passado, com quatro séculos de história, extremamente católico, guardado por
canhões, patriarcal, latifundiário, ordenado por intendências e casa de câmara e
cadeia, e habitado por personagens ilustres, que caminham entre pontes e chafarizes”
(RUBINO, 1996, p. 98).
42 Citação indireta de Haiti, Caetano Veloso.
43 A predileção do patrimônio colonial, em especial do século XVIII, é tocada por Rubino em seu texto
Entre o CIAM e o SPHAN: Diálogos entre Lúcio Costa e Gilberto Freyre, onde mostra como Freyre
influenciou os arquitetos do patrimônio com suas teses sobre a arquitetura colonial que demonstrava
traços de ‘abrasileiramento’.
44 Apud Le Goff, 2003, p. 421.
90
As casas com muxarabi, enquanto traço da arquitetura moura que penetrou a cultura
construtiva da península ibérica, são também traços da herança portuguesa, mas que
trazem à tona peculiaridades de um momento mouro naquela arquitetura, o que talvez
destoasse do nexo europeu ocidental cristão que é tão marcante na formação dessa
memória.
Nora faz uma reflexão, no tocante aos lugares de memória, sobre os lugares
“dominantes” e os lugares “dominados”, que se encaixa de maneira ímpar à trajetória
de tombamentos dos monumentos olindenses, visto que esse tipo de proteção aos
monumentos barrocos, “espetaculares e triunfantes”, era uma ação impositiva do
Instituto (à época Serviço-SPHAN) validada pelos intelectuais, sem nenhum tipo de
representação ou representatividade popular, porque, à época, claramente, não se
discutia esse tipo de ação democrática. Mas para além da participação e da ideia do
patrimônio que representa uma identidade coletiva, atenhamo-nos ao contraponto que
faz Nora sobre os lugares de memória “dominante” sobre os “dominados”, e
imaginemos tantos lugares de memória negra e indígena que foram esquecidos e
silenciados na construção da memória nacional.
Oporemos, por exemplo, os lugares dominantes aos lugares dominados? Os
primeiros, espetaculares e triunfantes, imponentes e geralmente impostos,
que por uma autoridade nacional, quer por um corpo constituído, mas sempre
de cima, tem, muitas vezes a frieza ou a solenidade de cerimônias oficiais.
Mais nos deixamos levar do que vamos a eles. Os segundos são lugares de
refúgio, o santuário das fidelidades espontâneas e das peregrinações do
silêncio. É o coração vivo da memória (NORA, 1993, p. 26).
Conforme temos discutido que a construção da memória é feita por contornos de
esquecimento, pensar a ideia de lugares dominantes e dominados é também
compreender as relações de poder que envolvem a legitimação dos patrimônios que
nos chegam como herança. Aliás, o legitimar é o ponto central nas ações do Instituto
(SPHAN/DPHAN/IPHAN). É através do tombamento, por exemplo, que se cria a ideia
de Patrimônio Nacional, e, por conseguinte, de Memória Nacional. O que significa,
então, os esquecimentos? O silenciamento dos lugares “dominados”? De que forma
as lacunas na memória reverberam na criação da identidade? Seriam esses
silenciamentos análogos à uma amnésia compulsória?
[...] num nível metafórico, mas significativo, a amnésia é não só uma
perturbação no indivíduo, que envolve perturbações mais ou menos graves
91
da presença da personalidade, mas também a falta ou a perda, voluntária ou
involuntária, da memória coletiva dos povos e nas nações, que pode
determinar perturbações graves de identidade coletiva (Le Goff, 2003, p.
421).
É importante entender isso porque a Memória Cultural ou Histórica é engendrada nas
sociedades tanto de forma coletiva como individual. Se há perturbação da memória,
no caso metafórico, a amnésia, há, por conseguinte, perturbação na identidade, e não
só coletiva. É essa memória, cultural e histórica, que nos dá o sentimento de
pertencimento a um determinado grupo ou nação. De forma análoga, é esse
sentimento de pertencimento que constrói nossa identidade, novamente, tanto coletiva
quanto individual.
Porque a correção da memória pesa definitivamente sobre o indivíduo e
somente sobre o indivíduo, como sua revitalização possível repousa sobre a
sua relação pessoal com seu próprio passado. A atomização de uma
memória geral em memória privada dá à lei da lembrança um intenso poder
de coerção interior. Ela obriga cada um a se lembrar e a reencontrar o
pertencimento, princípio e segredo da identidade (NORA, 1993, p. 12).
Ao entender o processo de criação de identidade, ligado à ideia da memória que não
foi necessariamente vivida, mas que vem de um passado comum, como podemos
então entender que determinados traços de nossa memória são compulsoriamente
esquecidos? E se formos olhar para a memória urbana construída pelo IPHAN neste
momento trabalhado, só veremos um tipo de identidade.
Drummond, em sua coluna, mostra ser imprescindível o tombamento do conjunto
urbanístico e paisagístico da cidade, dadas as pressões advindas dos processos de
industrialização, crescimento demográfico, loteamento e turismo. A fala do poeta
marca a dinâmica vivida na época, o desenvolvimento urbano que, na falta de um
planejamento integrado à conservação, ameaçava a cidade colonial, ameaçava o
traçado urbano, a herança cultural.
É importante perceber como o próprio processo anterior, demonstrado na tabela da
inscrição dos bens imóveis nos Livros do Tombo, de criação de memória através dos
tombamentos dos monumentos isolados, vai reverberar na poligonal escolhida para o
conjunto urbanístico, paisagístico e arquitetônico proposto em 1966 e aprovado em
1968. É como se todos os monumentos tombados anteriormente agora ditassem qual
92
será a poligonal de tombamento do conjunto, mantendo, dessa forma, uma coerência
com a construção da memória cultural urbana que perpassa o governo Vargas e a
Ditadura Militar.
As ordens religiosas ditam as linhas da memória. E cada vez mais é legitimada uma
memória barroca como memória oficial da cidade de Olinda, segundo as ações do
IPHAN. É o que o momento pedia.
Isso se confirma no seguinte trecho da Proposta de tombamento do acervo
urbanístico, paisagístico e arquitetônico da cidade de Olinda-PE.45
[...]
Demarcado a partir das edificações religiosas que se foram
construindo, e acompanhando a topografia local, o arruamento antigo,
que ainda se conserva, a despeito dos acrescentamentos que se
foram somando, é espontâneo, com a característica dos arruamentos
dos povoados portugueses de origem medieval.
[...]
Um ponto importante na fala de Drummond é: “[...] para que o Brasil não se despeça
de si mesmo, e mantenha a unidade da cultura. ” O que se pretendia na época era a
criação de uma identidade nacional coesa, de uma cultura única, em unidade, de uma
memória nacional que representasse uma cara brasileira. No olhar que lançamos do
presente para essa construção passada de um ideário, temos visto que essa “unidade
de cultura” tem representado, na realidade, o processo de esquecimento de alguns
grupos do nosso corpo social.
Ao selecionar por muito tempo bens cuja história remetia-se a uma ideia de
Brasil branco, católico, elitista, de origem lusitana, ordeiro e disciplinado que
se queria construir do Brasil na década de 1930 o IPHAN contribuiu para a
afirmação de imaginário e princípios sociais afeitos ao Brasil do autoritarismo,
correspondendo especialmente aos interesses do Estado Novo e da Ditadura
Militar (SILVA, 2017, p. 15).
45 Proposta de tombamento do acervo urbanístico, paisagístico e arquitetônico da Cidade de Olinda -
PE. Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. 1, pp. 5, de 24 de
janeiro de 1967, RJ. Documento assinado pelo arquiteto Augusto da Silva Telles.
93
Quando partimos das ações preservacionistas do IPHAN, podemos ver um nexo
cultural muito definido, do cristão branco europeu, representado pela Igreja e pelo
Estado. A memória é política e o esquecimento compulsório das representações
culturais de determinados grupos sociais podem hoje ser enxergadas com mais
clareza. Le Goff (2003, p. 422) afirma:
Do mesmo modo, a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante
na luta das forças sociais pelo poder. Tornar-se senhores da memória e do
esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos,
dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os
esquecimentos e os silêncios da história são reveladores destes mecanismos
de manipulação da memória coletiva.
A fala de Drummond no Correio da Manhã coroa a declaração de tombamento da
cidade de Olinda e traz à memória uma cidade não esquecida, mas com
reconhecimento tardio em relação “as suas irmãs de outros Estados”. Cidade que
havia tido uma construção memorial baseada no tombamento dos monumentos
religiosos portugueses. Cidade de memória cristã, onde as ordens religiosas
delinearam sua identidade. Diria Capiba: “Quisera ver teu passado, Olinda, / [...]/
Depois subir a ladeira do Mosteiro/ Rezar a Ave Maria e nada mais/[...]”.
Mas já que Drummond termina a coluna falando de “sinais alentadores”, temos que o
tombamento do conjunto urbanístico foi, sem dúvida, uma ação de preservação da
memória urbana. Legitimação e construção dessa memória. Ou podemos também
dizer que o tombamento do conjunto é revelador dos “mecanismos de manipulação
da memória”?
4.2 Dos monumentos barrocos ao conjunto urbanístico
Antes mesmo da Carta de Veneza46, de 1964, que é a grande marca da mudança de
compreensão de conjunto urbano enquanto Patrimônio Cultural, o alargamento das
noções já ocorria tanto no Brasil quanto no cenário internacional.
46 “Fruto do II Congresso Internacional de Arquitetos e de Técnicos de Monumentos Históricos,
realizado em Veneza de 25 a 31 de maio de 1964. Essa Carta permanece como documento-base do
94
As primeiras cidades no Brasil tombadas enquanto “conjunto urbano” são as cidades
mineiras, a exemplo de Ouro Preto e Diamantina, entre outras47. Até chegar a Olinda,
muitas outras cidades receberam tal proteção, como diversos trechos da cidade de
Salvador e Cachoeira na Bahia e conjuntos arquitetônicos e urbanos em Goiás e Pilar
de Goiás. Isso dá a entender que Olinda estava esquecida pelo IPHAN, como falou o
poeta.
Logo nos primeiros anos de ação do recém-criado SPHAN, aquelas cidades
receberam o reconhecimento de Patrimônio Cultural enquanto totalidades ou
conjuntos arquitetônicos e urbanos, não apenas os monumentos isolados. Ouro Preto,
por exemplo, é tombada enquanto “conjunto urbano” em 1938, com inscrição no Livro
do Tombo de Belas Artes, mas só em 198648 recebe inscrição nos Livros Histórico e
Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico.
As primeiras ações do Patrimônio nos centros tombados tratavam a cidade
como expressão estética, entendida segundo critérios estilísticos, de valores
que não levavam em consideração sua caraterística documental, sua
trajetória e seus diversos componentes como expressão cultural em parte de
um todo socialmente construído (MOTTA, 1987, p. 108).
Icomos, criado em 1965 e acolhido pela Unesco como órgão consultor e de colaboração. ” (KUHL,
2010, p.288).
47 Lista de bens tombados e processos em andamento. A tabela mostra nome e localização do bem,
classificação relacionada à forma de proteção (se é edificação, conjunto urbano, patrimônio natural,
sítio rural, sítio arqueológico, bem móvel ou integrado etc.), número do processo, ano de abertura,
situação do processo e em que livro do tombo recebeu inscrição, no caso de ter sido tombado.
Informações do Portal do IPHAN,
http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Lista_bens_tombados_processos_andamento_20
18 Acesso em 21/10/2018.
48 A Informação 110/86 constante no processo de tombamento de Ouro Preto (70-T-38), assinada por
Augusto da Silva Telles em 30 de julho de 1986 mostra muito bem essa ampliação de compreensão
devido à Carta de Veneza. Ele fala que “A inscrição foi realizada, apenas, no Livro das Belas Artes.
No entanto, entende-se hoje, que um conjunto urbano constitui, mais do que um bem de valor artístico,
um acervo que representa uma paisagem urbana e, mesmo, se integra forçosamente à paisagem
natural na qual está inserida. A Carta de Veneza, de 1964 é enfática, quando diz que ‘a conservação
de um monumento implica ade uma moldura à sua escala’. ” E então, o arquiteto solicita a inscrição de
Ouro Preto também nos Livros nº 1 e 2: Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico e no Histórico.
95
O entendimento de conjunto arquitetônico e urbanístico da cidade de Ouro Preto em
1938 é uma compreensão, como diz Motta, ligada sobretudo a aspectos formais e
estilísticos, tanto que é inscrito primeiramente no Livro do Tombo de nº 3, o de Belas
Artes. No entanto, isso foi essencial para a conservação dessa e de tantas cidades
que receberam proteção nessa época.
É importante pontuar como a noção de conjunto urbanístico e paisagístico está
também relacionada a Carta de Veneza, de 1964. Não podemos deixar de lado o
contexto internacional e sua reverberação nas políticas de patrimônio nacionais. A
Conservação enquanto processo tem revisto suas práticas à medida em que se alarga
a compreensão do que se constitui enquanto Patrimônio Cultural. E por isso podemos
ver essa transição entre os tombamentos monumentais, baseados sobretudo em
compreensões de traços artísticos e históricos, como os Livros de Belas Artes e o
Livro Histórico, e o tombamento do conjunto urbanístico, paisagístico e arquitetônico
de Olinda, na compreensão sobretudo da harmonia de sua totalidade.
96
Imagem 4 - Certificação do Tombamento do Conjunto Arquitetônico e Urbanístico da cidade de Ouro
Preto-MG em fevereiro de 1938. Processo nº 70-T-38.
Fonte: Arquivo Noronha Santos-IPHAN.
Consta na Carta de Veneza:
Portadores de mensagem espiritual do passado, as obras monumentais de
cada povo perduram no presente como testemunho vivo de suas tradições
seculares. A humanidade, cada vez mais consciente da unidade dos valores
humanos, as consideram um patrimônio comum e, perante gerações futuras,
se reconhece solidariamente responsável por preservá-las, impondo a si
mesma o dever de transmiti-las na plenitude de sua autenticidade. [...]
Artigo 1º - A noção de monumento histórico compreende a criação
arquitetônica isolada, bem como o sitio urbano ou rural que dá testemunho
de uma civilização particular, de uma evolução significativa ou de um
acontecimento histórico. Estende-se não só às grandes criações, mas
também às obras modestas, que tenham adquirido, com o tempo, uma
significação cultural (ICOMOS, 1964)
97
A carta de Veneza49 traz a compreensão de que não é só o monumento arquitetônico
de vultuoso traçado que tem valor patrimonial, mas também o ordinário, o cotidiano, o
“comum” sítio urbano e rural, desde que tenha adquirido significação cultural ou que
seja testemunho excepcional do passado, que carregue em si a memória histórica e
cultural do processo de construção e, se assim podemos chamar, “evolução” da
humanidade. Na Carta de Veneza, “o caráter de documento histórico dos bens
culturais é enfatizado e, por isso, tais bens não são reproduzíveis e não devem ser
desnaturados” (Kühl, 2010, p. 293). Esse alargamento da compreensão de Patrimônio
Cultural não só acende o entendimento do conjunto urbano como bem cultural, como
realça a condição de produto da cultura, documento histórico, exemplar de uma
memória construtiva da cidade.
A Carta de Veneza é marco da compreensão de que não apenas os traços materiais,
monumentais, ostentadores de uma excepcionalidade imagético-estética na cidade
eram merecedores da valoração patrimonial. A cidade era agora entendida como o
próprio processo histórico de construí-la, as culturas construtivas, a oferta de
materiais, o modus operandi das sociedades que deixaram a cidade com testemunho
de sua ocupação e domínio. Para Nascimento (2016, p. 125):
O conceito de “testemunho da história” validará as ações de preservação na
esfera alargada do ambiente urbano. Todas as edificações teriam o direito de
permanecer às gerações futuras, sejam monumentais, sejam modestas, na
medida em que documentavam a história. Para Laurajane Smith, a Carta de
Veneza é um dos textos fundacionais das práticas e dos movimentos de
preservação nos anos 1960 em diante, formando a base filosófica dos
processos técnicos de gerenciamento do patrimônio nas décadas seguintes.
Kühl mostra que a Carta de Veneza vem reverberar no Brasil e ter sua discussão
aprofundada sobretudo na década seguinte à sua publicação. Ela destaca que o
arquiteto Augusto da Silva Telles, peça central no tombamento de Olinda, foi um dos
professores do curso ofertado na USP em 1974 e é em suas aulas que a Carta é
“extensa e fundamentadamente perscrutada”. 50
49 A esse respeito, cf. Beatriz Kuhl, Notas sobre a Carta de Veneza, Anais do Museu Paulista. São
Paulo. N. Sér. v.18. n.2. p. 287-320. jul.- dez. 2010.
50 Augusto da Silva Telles, também deu cursos sobre a Carta de Veneza em Recife, em 1976. Sabendo
que esses cursos foram posteriores ao tombamento de Olinda em si, é importante apontar que ele
98
Em relação a ser testemunho excepcional do passado, Olinda se coloca, então, no
processo de tombamento, como exemplar das primeiras ocupações nas terras que
viriam a ser o Brasil. É registro da ocupação, sendo documento histórico, ao passo
que é escoramento do traçado urbano que é testemunho desse passado. Memória de
uma vivência que nos antecede enquanto sociedade, ao passo que nos forma como
tal.
Olinda é testemunho da ocupação das terras conquistadas pelos portugueses, no
século XVI, conforme trecho da Proposta de tombamento do acervo urbanístico,
paisagístico e arquitetônico da cidade de Olinda-PE51, sendo, portanto, vista como
pedra fundante da história e memória urbanas do Brasil, com permanências de
atributos como topografia e aspecto paisagístico:
OLINDA, a vila fundada, logo a seguir a de Igaraçu, no mesmo ano de
1535, pelo Donatário Duarte Coelho Pereira, na elevação junto ao mar
denominada pelos gentios, de “Marim”, apresenta, ainda, muito da
topografia e do aspecto paisagístico antigos.
mostrava ter uma visão aprofundada da Carta de Veneza. “As aulas do professor Augusto da Silva
Telles, técnico do Iphan, tratavam da legislação e dos conceitos de ambiência urbana, arquitetura
‘menor’ e o valor documental da cidade e da arquitetura (TELLES, 1976). Na ementa de sua disciplina
Teoria da Conservação, no Curso de Especialização de 1976 em Recife, o item Carta de Veneza traz
a seguinte explicação, reveladora do nível de conhecimento que se pretendia passar aos alunos:
‘Análise dos conceitos de monumento e de bem cultural – sua ambientação – a ‘mise-en-valeur’ ou
valorização – sua integração ao entorno em que se situa e o testemunho histórico que representa –
estudo através das definições dos documentos internacionais/ regionais.‘ (TELLES, 1976)”
(NASCIMENTO, 2016, p. 125)
51 Proposta de tombamento do acervo urbanístico, paisagístico e arquitetônico da Cidade de Olinda -
PE. Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. 1, pp. 5, de 24 de
janeiro de 1967, RJ. Documento assinado pelo arquiteto Augusto da Silva Telles.
99
[...]O parecer histórico52, dado por Paulo F. Santos53 à proposta de Silva Telles
também destaca a excepcionalidade da cidade de Olinda, e ratifica a importância de
seu tombamento enquanto conjunto:
Olinda é um dos nossos mais expressivos exemplos de cidade de
plano informal, cuja evolução pode ser acompanhada através das
plantas que constam nos livros de Gaspar Barleus (1647) e Gioseppe
di Santa Teresa (1698), comparativamente à que se insere no
Processo. Vê-se em como os caminhos indicados nas duas primeiras,
aproximadamente retilíneos, foram adquirindo, quando se
transformaram em ruas, a extrema irregularidade que aparece no
terceiro mapa-, o que faz presumir que foi não a rua, mas a casa, que
promoveu o traçado da cidade, constatação que a ser verdadeira
atestaria uma reminiscência da prática usada na Idade Média
Peninsular, a Mulçumana e a Cristã. No que tange ao traçado, é
importante conservar a Cidade tal como se acha, assim tão densa de
tradição. Se tiver de crescer, cresça para o lado de fora, e o faça
seguindo as imposições da técnica urbanística moderna. No que tange
à arquitetura, além da preservação dos monumentos principais, vários
dos quais já tombados pela D.P.H.A.N., preservem-se também outros
menos ambiciosos e, à proporção que forem sendo feitas reformas nos
demais já abastardados, procure-se melhorar as frontarias, como, com
certeza saberá fazer o esclarecido e exemplar chefe do 1º Distrito da
D.P.H.A.N., o engenheiro Ayrton Carvalho, a quem o tombamento da
Cidade conferirá para tanto os poderes que merece ter.
Opinamos pois, pelo tombamento da Cidade de Olinda nos limites
fixados conjuntamente pelo autor da proposta, arquiteto Augusto da
SilvaTelles em saudável colaboração com o engenheiro Ayrton
Carvalho e os arquitetos Lúcio Costa, Paulo Thedim Barreto e José
Luiz da Mota Menezes.
52 Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. 1, pp. 15, de 14 de
janeiro de 1968, RJ. Documento assinado pelo arquiteto Paulo Ferreira Santos.
53 Arquiteto e historiador da arte, Paulo Ferreira Santos foi professor da Universidade do Brasil, antiga
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), conselheiro do Iphan durante 25 anos, autor de
diversos livros e artigos.
100
O tombamento do conjunto foi precedido da proteção de muitos monumentos isolados,
como já vimos, que acabaram por ditar a poligonal do conjunto urbanístico, conforme
veremos a seguir. A excepcionalidade histórica de Olinda vem como traço muito mais
importante para seu reconhecimento em 1968 do que necessariamente os traços e
reminiscências baseados no entendimento do Livro de Belas Artes, cujo valor artístico
é o principal condicionante para a valoração, como foi, por exemplo, o tombamento
de Ouro Preto em 1938, que, por sua vez, também teve o entendimento de seu
tombamento alargado depois da Carta de Veneza54.
O testemunho da ocupação e colonização portuguesas, da invasão holandesa, da
cidade que subsistiu no tempo mantendo seu traçado, é, neste caso, um gatilho de
memória para o entendimento de seu vulto simbólico e semântico. É o testemunho, a
memória ancorada nos traços urbanos que a tornam excepcional. O “burgo Duartino”
manteve em si a topografia e os quintais arborizados que lhe conferem singularidade
paisagística, aos braços do mar.55
O processo faz referência a algumas fotografias de Olinda que foram enviadas junto
ao estudo da poligonal: “A Proposta vem acompanhada de uma planta da Cidade de
Olinda, com indicação das “Áreas Históricas-1966” e 18 fotografias, das quais 5
panorâmicas”. 56 Dentre as fotografias, as seguintes correspondem melhor à ideia da
Olinda Verde, dos quintais arborizados que compõem a paisagem da cidade. Temos
a seguinte descrição: “VI- Foto da antiga residência e colégio dos jesuítas e Igreja de
N. Senhora da Graça, tirada do terraço do segundo pavimento do edifício da Caixa
d’Água. ” Conforme vemos na correspondência a seguir:
54 Cf. nota 48.
55 Gilberto Freyre já havia ressaltado a singularidade paisagística de Olinda no sentido de apontar para
a composição feita entre o mar e as colinas. Em 1941, no Correio da Manhã (Rio), ele escreve uma
coluna intitulada “As praias e os montes de Olinda”, em que diz: “Praias e montes, nisto pode simplificar-
se Olinda. As corografias se estendem em detalhes, mas a ladainha de todos os autores é essa:
‘Olinda... situada à beira mar sobre os montes’ ... ‘Olinda... baixa junta à costa, e logo ondulada de
montes’. Olinda: quatro praias e oito montes.” 22-11-1941. Excerto do Jornal Correio da Manhã, Série
Inventário, PE, Cx. 0321. Arquivo Noronha Santos-IPHAN.
56 Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. 1, pp. 14, de 27 de
outubro de 1967, RJ. Documento assinado pelo arquiteto Paulo T. Barreto.
101
Imagem 5 - Fotografia da Antiga residência e colégio dos Jesuítas e Igreja de N. Senhora das Graças.
Fonte: Série Inventário, Pernambuco, Cx. 0322. Arquivo Noronha Santos-IPHAN
Imagem 6 - Referência da Fotografia Anterior, datada de 1967.
Fonte: Arquivo Noronha Santos-IPHAN
102
Mas acreditamos que nenhuma das fotografias pertencentes ao processo traduz
melhor a memória da Olinda Verde, da Olinda dos “quintais arborizados aos braços
do mar” como a seguinte57:
Imagem 7 - Foto Panorâmica tirada de um ponto próximo à fronteira da Sé, onde se veem: em
primeiro plano, telhados das casas da Ladeira de São Francisco; em segundo plano, ao centro: a
Igreja de N. Senhora do Carmo, à direita, o Mosteiro e Igreja de São Bento, a Igreja de São Pedro; e
aos fundos, Recife.
Fonte: Série Inventário, Pernambuco, Cx. 0322. Arquivo Noronha Santos-IPHAN
A história de Olinda é lugar de memória. O documento, o tombamento, a cidade. Em
tudo se ancora o pulsar da lembrança. Espaços da recordação. Locais de
hasteamento da memória. São, nesse sentido, narrados os lugares por onde a cidade
se ramifica e cria civilização:
O povoado teve início no alto, onde se encontram, hoje, a Sé, o antigo
Palácio dos Bispos, a Caixa d’Água e a Misericórdia. Aí, Duarte
Coelho, em 1535, construiu a primeira igreja (depois Matriz e Sé) e o
“Castelo”, - obra de fortificação para defesa contra os índios e já
desaparecido.
Logo a seguir, em 1540, funda-se a Misericórdia. Em 1551, no
arruamento demarcado pela Matriz (atual Sé), e pela Misericórdia,
num dos extremos, no mais próximo ao mar, onde existia a ermida de
Nossa Senhora da Graça, localizaram-se os Padres Jesuítas. Mais
abaixo, já nas faldas do outeiro, os franciscanos se instalaram em
1577, em uma outra ermida, dedicada à Nossa Senhora das Neves.
57 Foto reproduzida e ampliada no Anexo A, para melhor visualização.
103
No sopé do outeiro, no extremo do recente povoamento, em um
montículo junto ao mar, na capela aí existente, de Santo Antônio e São
Gonçalo, fixaram-se, em 1580, os frades carmelitas.
Em 1592 é edificada, no primeiro arruamento da vila, no extremo
oposto ao litoral, a capela de São João Batista. Aí se alojaram,
inicialmente, os beneditinos. Estes, depois de passarem um par de
anos na ermida do Monte, foram se localizar em ponto distante, na
falda do outeiro de Olinda, no lado mais próximo ao rio Beberibe. Aí
vão dar início, anos depois, à construção de seu mosteiro e igreja.58
Como antes dito, as ordens religiosas ditam as linhas da memória. Ditam o traçado da
cidade, que se molda às suas ocupações e se curvam a suas bendições. É a Igreja
que dita a cidade, no século XVI, e dita o reconhecimento dessa cidade como
Patrimônio Nacional, no século XX. É a Igreja que dita a poligonal de tombamento de
Olinda como conjunto urbano, tendo ditado também os tombamentos individuais, a
criação de memória urbana a partir da salvaguarda dos monumentos. Nas linhas da
memória da Olinda Cristã e Verde, os autores do Processo percebem como de grande
valor os espaços verdes:
Será no espigão entre São Bento e a capela de São João, assim como
nas suas faldas e vertentes, no perímetro demarcado pelas igrejas de
São Bento, São João Batista, Misericórdia, Sé, Nossa Senhora da
Graça, Nossa Senhora das Neves e Carmo, que a vila, depois cidade,
se vai desenvolver, principalmente depois da restauração
pernambucana, quando a maioria de seus edifícios, incendiados ou
depredados, vão ser reconstruídos, e muitos outros edificados.
Com suas faldas e vertentes, suas praças, seus jardins e cercas
conventuais, verdejantes de árvores e coqueiros, a cidade ainda
aparece, hoje, imersa e envolvida em densa arborização que a enfeita
e lhe confere graça excepcional.59
58 Proposta de tombamento do acervo urbanístico, paisagístico e arquitetônico da Cidade de Olinda -
PE. Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. 1, pp. 5, de 24 de
janeiro de 1967, RJ. Documento assinado pelo arquiteto Augusto da Silva Telles.
59 Ib.
104
O caráter paisagístico é destacado na proposta de tombamento como atributo que
realça Olinda e lhe confere excepcionalidade. Não apenas os quintais e jardins
arborizados, mas a ideia de conjunto verde, em harmonia com o ambiente construído,
numa colina aos pés do mar, conforme testemunharam as fotografias. O testemunho
da ocupação portuguesa em alta colina, que, a priori, tinha propósitos de defesa do
território, alinhava aos bons auspícios uma excepcional vista para o mar, que é
generoso com a cidade, e lhe compõe belíssimos pontos de vista. Enquadramentos
paisagísticos de beleza estonteante, a velha Olinda verdejante anuncia os coqueiros
para o mar, em suas “faldas e vertentes”.
Além disso, a manutenção das alturas das edificações, ainda permitindo uma visão
de conjunto harmonioso é destacada no documento. O edifício em altura da Caixa
d’Água, o mais verticalizado, não comprometeria essa harmonia, já que considerado
marco da nova arquitetura. Lembra-se que Lúcio Costa, um dos colaboradores da
proposta, segundo Paulo Santos, diria, nos anos 1930, que a boa arquitetura sempre
combina com a boa arquitetura60:
Além disto, em toda a área antiga, um único edifício de caráter
comercial moderno existe com mais de dois pisos (excluído o da Caixa
d’Água, considerado marco da nova arquitetura, no Nordeste).
Da mesma forma, são poucas as construções irrecuperáveis para um
plano geral de restauração. Existem algumas, mas essas se perdem
entre as de boa origem, não chegando a comprometer o conjunto.
Mesmo na área litorânea, a zona nova, os prédios possuem, no
máximo 3 pavimentos.
60 Em Carta a Rodrigo M. F. de Andrade, então presidente do então SPHAN, Lúcio Costa fala sobre a
inserção de um hotel modernista projetado por Niemeyer em Ouro Preto, e faz a seguinte reflexão: “’De
excepcional pureza de linhas, e de muito equilíbrio plástico, é, na verdade, uma obra de arte, e, como
tal, não deverá estranhar a vizinhança de outras obras de arte, embora diferentes, porque a boa
arquitetura de um determinado período vai sempre bem com a de qualquer período anterior’ [...]” Apud
Motta, 1987, p. 109.
105
Cremos, por isto, que ainda é tempo de salvar-se Olinda, e urge que
isto se faça rápido, antes que a febre imobiliária a descubra e a
desfigure por completo.61
O processo de tombamento tem abertura em 30 de setembro de 1966 com uma carta62
do arquiteto Augusto da Silva Telles, arquiteto da DPHAN, para o então servidor do
1º distrito da DPHAN, em Pernambuco, José Luiz da Mota Menezes. Segundo Cabral
(2016, p. 196) “Menezes tinha grande aproximação com Ayrton Carvalho, referindo-
se a si mesmo como o ‘motorista do gordo’ na labuta diária de estagiário voluntário no
Iphan por aproximadamente dez anos”. Na carta, Telles diz estar ultimando as
propostas de tombamento do pátio de São Pedro (Recife) e de Olinda, como
tombamento paisagístico e urbanístico. Participaram dos estudos da proposta da
poligonal de tombamento de Olinda os arquitetos Lúcio Costa, Ayrton Carvalho, José
Luís da Mota Menezes e Augusto da Silva Telles. Logo em seguida, ele descreve a
poligonal proposta:
- Em Olinda, a ideia é de incluir, como área tombada, a delimitada pela
seguinte poligonal:
Av. Joaquim Nabuco até o encontro do segmento que vindo da Igreja
de N. Senhora do Monte tangencia os fundos da capela de São João.
Seguiria por este segmento de reta até a referida Igreja de N. Senhora
do Monte, donde seguiria por outro seguimento que daí passasse pelo
Farol até o litoral. Seguiria pelo litoral até encontrar o início da Av.
Joaquim Nabuco.
Nesta área, o tombamento seria paisagístico e urbanístico, nele
incluindo-se, principalmente, o traçado urbano existente e a
vegetação, tanto pública, quanto particular. Todas as novas
edificações a serem feitas nesta área, deverão ocupar, no máximo,
61 Proposta de tombamento do acervo urbanístico, paisagístico e arquitetônico da Cidade de Olinda –
PE. Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. 1, pp. 6, de 24 de
janeiro de 1967, RJ. Documento assinado pelo arquiteto Augusto da Silva Telles.
62 Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. I, pp. 2, Carta nº 370
de 30 de setembro de 1966. Documento assinado por Augusto da Silva Telles.
106
25% dos respetivos terrenos, e deverão ser cobertos telhados de
telhas canais de feito antigo.
O arquiteto Lúcio Costa sugeriu, outrossim, a inscrição com
tombamento, também em caráter arquitetônico, das edificações de
alguns logradouros; talvez o arruamento: Rua de São Bento, Rua 13
de Maio, Rua do Amparo.
A poligonal63 proposta pelos arquitetos compreende o que hoje entendemos por setor
de preservação rigorosa da rerratificação, incluindo setores A, B e C. O processo
mostra que “a proposta vem acompanhada de uma planta da Cidade de Olinda, com
a indicação das “Áreas Históricas-1966” e 18 fotografias, das quais 5 panorâmicas”64.
Imagem 8 – Desenho, em linha tracejada, da Poligonal de Tombamento proposta pelos arquitetos
citados. Processo nº 674-T-62.
Fonte: Arquivo Noronha Santos - IPHAN
A carta de Silva Telles para Mota Menezes traz para nós a ideia do trabalho conjunto
desenvolvido pelos arquitetos:
63 Foto reproduzida e ampliada no Anexo B, para melhor visualização.
64 Processo 674-T-62, Vol. I, pp. 14.
107
[...]
Indago, então aos Caros Amigos:
- Julgam a delimitação certa? - ou sugerem alguma redução ou
acréscimo? - Há um grupo de edificações novas que, talvez, penetrem
nesta área, no trecho entre a Igreja do Rosário e a do Monte? Julgam
que devamos excluí-las? - A denominação Av. Joaquim Nabuco vem
desde o mar, ou tem início na Estrada que vem do Recife?
-Concordam com as características do tombamento? Acho que não
há possibilidade em ser Olinda tombada como conjunto
arquitetônico na sua totalidade. Ela está muito deturpada. Assim,
só paisagístico, poderá ser incluída a área litorânea, que ficará, desta
forma, preservada, no que concerne a gabaritos e densidade de
construções novas.
-E quanto ao arruamento a ser preservado como conjunto
arquitetônico? Propõe inclusão de alguma outra rua, ou praça, a ele
ligado, ou isolado?
[...]65
(grifo nosso)
As transformações vividas pela cidade são apontadas pelo arquiteto como uma
deturpação de seu estado, impossibilitando a ideia de um tombamento enquanto
conjunto arquitetônico íntegro. A ideia aqui é que o reconhecimento do patrimônio
cultural respeita uma certa ordem do fazimento antigo, que deve ser mantido para que
seja considerado algo de valor, algo que valha o reconhecimento e proteção. Diferente
de suas “irmãs de outros Estados”, Olinda não teve um reconhecimento imediato na
criação do SPHAN. Talvez essa própria falta de proteção tenha acarretado ou
permitido essas ‘’deturpações” no conjunto arquitetônico, como citado por Silva Telles.
Quando pensamos em arquitetura como “lugar de memória”, ideia já lançada por Le
Goff (1993, p.467) quando fala que a “História que fermenta a partir do estudo dos
‘lugares’ da memória coletiva, [...] lugares monumentais como os cemitérios ou as
arquiteturas”, fazemos a correlação de que esses lugares carregam em si uma
65 Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. I, pp. 2, Carta nº 370
de 30 de setembro de 1966. Documento assinado por Augusto da Silva Telles.
108
linguagem que atravessa o tempo, e que caso se “deturpe” em sua expressão
arquitetônica, significa uma perturbação também da memória. Assmann (2011, p. 317)
fala “a respeito de uma força específica da memória e do poder vinculativo dos locais”.
O conservar dos locais é também o conservar da memória, entendendo que os locais,
as arquiteturas são também lugares e sujeitos da memória, e neste caso, podemos
pensar na memória cultural urbana como essa que é vinculada aos locais.
Ainda que o próprio processo de Conservação seja uma forma de interferir na
arquitetura, através de restaurações ou intervenções na matéria, isso mesmo faz parte
da compreensão de que nem a materialidade nem a imaterialidade são estáticas ou
atravessam o tempo de forma “congelada”. O próprio atravessar-o-tempo é uma
transformação constante dos lugares, das arquiteturas, da memória. A memória em si
é um processo, uma construção social, a entidade que traz para nós linguagem e
referência do passado, mas que é também modificada e construída por nossa
interpretação mesma sobre o passado. “O lugar se torna o portador e o gatilho da
mémoire, e a palavra em francês (e também em português) traz o significado de
memória tanto como uma recordação quanto como uma faculdade mental,
dependendo do contexto” (DOLFF-BONEKAMPER, 2017, p. 70).
Ainda assim, vemos que a proposta de Lúcio Costa de inserir alguns arruamentos com
casario preservado foi de suma importância para a preservação desses traços
arquitetônicos, que, dentro da proposta de tombamento de conjunto, figura uma ideia
de representação imagética e estética da memória urbana, que não poderia ser feita
apenas pelo traçado das ruas, tampouco por um conjunto volumetricamente
harmônico, mas que já não portasse os traços antigos em suas casas. A proposta de
Costa é importante para a memória urbana em sua representação da arquitetura de
uma cidade colonial.
Ao responder a carta de Silva Telles, Mota Meneses acrescenta às sugestões de
Costa as seguintes ruas:
Apenas informaria o seguinte adendo: Acrescentaria no tombamento
de ruas tradicionais parte das ruas 27 de Janeiro – casas anexas ao
sobrado do páteo São Pedro – tombamento de gabarito e Rua
Prudente de Morais casas quase defronte ao mesmo sobrado
tombamento em gabarito, isto é, fixação do gabarito máximo de um
pavimento. Os conjuntos de residências em ruas tradicionais são
109
melhores os da rua do Amparo embora gostasse de também incluir
como ruas além do Amparo as ruas 13 de Maio e Bernardo Vieira de
Melo.
[...]
Não se me tornem bem claro no que proponho. Espero que você, que
percorreu Olinda toda comigo, possa traduzir para a proposta de
tombamento esses adendos.66
A fala de Mota Menezes traz, além de sugestões de tombamentos de conjuntos
arquitetônicos, uma ideia bem interessante, que é o fato de Silva Telles ter percorrido
Olinda toda com ele. Sua memória de Olinda o faria entender o que Zé Luís M.
Menezes estava sugerindo67.
Visto isso, chegamos à compreensão de que a memória cultural urbana é tanto a
construída coletivamente, quanto a própria experiência corpórea daqueles arquitetos
que foram responsáveis pelo tombamento da cidade de Olinda. É tanto a construção
social da cidade, quanto a construção social que se faz a partir da cidade. Memória é
mais do que uma faculdade cognitiva, é um processo complexo e amplo, que
transcende a materialidade e se apresenta como um conjunto de significados e
expressões simbólicas apreendidas por uma coletividade, a cada unidade temporal
em que herdamos do passado determinada herança. O “percorrer Olinda toda” dos
arquitetos que propuseram a poligonal de tombamento é também, como diria Nora,
“atomização” da memória geral.
Chegando ao consenso, Silva Telles completa a proposta:
Propomos, portanto, a inscrição do conjunto urbano e paisagístico de
Olinda, nos Livros do Tombo criados pelo Decreto-lei nº 25, de 30 de
novembro de 1937, correspondente à área delimitada pelo seguinte
perímetro: -partindo-se da orla marítima, pelas ruas Santos Dumont e
Joaquim Nabuco até encontrar o prolongamento do rumo que passa
66 Trecho da carta do arquiteto José Luís Meneses, de 5/XI/66, ao arquiteto Silva Telles. Arquivo
Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. I, pp. 4.
67 O caminhar e a experiência corpórea, segundo Dolff-Bonekamper (2017, p. 62), podem ser
potencializadores da memória.
110
pelas igrejas Nossa Senhora do Monte e São João Batista, este rumo,
seguindo-se até a citada igreja do Monte; daí por um segundo rumo,
passando-se pelo Farol até a orla marítima; por esta orla marítima, até
o início da Rua Santos Dumont , por onde se principiou.
Seriam inscritos, dentro deste perímetro, os conjuntos urbanísticos e
arquitetônicos das Ruas 13 de Maio, Amparo e Bernardo Vieira de
Melo.
Nas demais áreas e arruamentos, ficaria a inscrição feita como
extensão do tombamento dos vários monumentos tombados, e,
principalmente, além dos arruamentos agora sugeridos, das igrejas de
Nossa Senhora do Carmo, de São João Batista, da Misericórdia, da
Conceição, de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, do Amparo, do
Monte, do Convento de Nossa Senhora das Neves, da antiga
residência dos jesuítas e da igreja de Nossa Senhora das Graças, do
Mosteiro de São Bento, do antigo Palácio dos Bispos, do antigo Aljube,
atual Museu de Arte Contemporânea, e da casa no Páteo de São
Pedro.
Essa preservação referir-se-á, principalmente, à manutenção do
gabarito e do caráter plástico das edificações – frontispícios e telhados
de telhas antigas (procurando-se, com o tempo, alterar as novas
edificações), e à fixação da densidade máxima de 20%, com vista aos
seus terrenos e limitadas a um único pavimento, as novas
construções. A única exceção seria na área plana, do litoral, aonde
não haveria limite de densidade, mas tão somente limite de gabarito,
de dois pavimentos.
Rio de Janeiro, 24 de janeiro de 1967.68
Destacamos mais uma vez que, mesmo se tratando de uma proposta que considera
o conjunto urbanístico, paisagístico e arquitetônico, a presença dos monumentos
religiosos cristãos são ênfase absoluta na memória da cidade.
68 Proposta de tombamento do acervo urbanístico, paisagístico e arquitetônico da Cidade de Olinda –
PE. Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. 1, pp. 6, de 24 de
janeiro de 1967, RJ. Documento assinado pelo arquiteto Augusto da Silva Telles.
111
Em sessão ordinária do Conselho Consultivo da DPHAN, “aos doze dias do mês de
março de mil novecentos e sessenta e oito, às quinze horas, no recinto do Plenário do
Conselho Federal de Cultura”, reuniram-se os conselheiros sob a presidência de
Renato Soeiro, então Diretor do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, e
deliberaram pelo tombamento da cidade:
Processo 674-T-62 Monumento: conjunto urbanístico, paisagístico e
arquitetônico de Olinda-PE. Relator: Paulo F. Santos.
Resolução: o Conselho deliberou, por unanimidade, de acordo com as
conclusões do voto do Relator, proceder ao tombamento.69
Paulo F. Santos foi o que concedeu o parecer histórico, citado acima. Após a
resolução de tombamento, foram notificados a Prefeitura de Olinda, na pessoa do
prefeito Benjamim Machado e o Chefe do Distrito da DPHAN em Pernambuco, Ayrton
de Carvalho. Olinda teve as seguintes inscrições: Sob o número 44, fls. 11, Livro do
Tombo nº 1; Sob o número 412, fls. 66, Livro do Tombo nº 2; Sob o número 487, fls.
88, Livro do Tombo nº 3.
69 Ata da quinquagésima reunião ordinária do Conselho Consultivo da Diretoria do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional. Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. 1,
pp. 15.
112
Imagem 9 - Cópia Autêntica do Tombamento do conjunto urbanístico, paisagístico e arquitetônico de
Olinda-PE. Processo nº 674-T-62.
Fonte: Arquivo Noronha Santos – IPHAN
Desta forma se dá a construção da Memória Cultural de uma Olinda Cristã e Verde,
que tanto assimila a identidade de uma Olinda Barroca, quanto debruça suas colinas
verdes sobre o mar em sua peculiaridade paisagística. A Olinda do saudoso poeta.
Olinda tombada. Sob as asas do IPHAN está, então, o burgo Duartino.
113
5 A MARTIRIZADA OLINDA CONTA A HISTÓRIA PÁTRIA: DO MONUMENTO
(1972-1980)
Como fênix, ave fabulosa da mitologia, Olinda vive muitos séculos. E
queimada, renasce das próprias cinzas. Como no incêndio do
passado, como na destruição recente. A força do renascimento vem
de suas próprias entranhas. Do encantamento e do mistério de seu
nome. Esconde-se nesses montes, nesses verdes, nesses mares. E,
em 1980, desceu do alto como um dom de Deus. Como um sonho do
Fundador da Cidade, no V centenário de Duarte Coelho. Do velho
Donatário, a valiosa lição. O brasão de armas, como o lendário Leão
do Norte, a parta em riste, pronto para lutar. Para conquistar palmo a
palmo, o que por direito lhe foi dado às léguas. Para erigir Olinda, no
Congresso, Monumento Nacional. E, na UNESCO, Patrimônio Cultural
da Humanidade.
Germano Coelho, Prefeito de Olinda.
5.1 Do monumento ao tombamento e vice-versa.
Ouro Preto foi a primeira cidade brasileira a ser erigida à condição de Monumento
Nacional, antes mesmo da existência do SPHAN, que só viria a ser efetivamente
criado em 1937. Já em 1933, diante de inquietações sobre a proteção do patrimônio
cultural, com o surgimento de projetos de lei para criação de Inspetorias dos
Monumentos Históricos, criação de Inspetorias estaduais, etc. Ouro Preto é
condecorada com o título honroso de Monumento Nacional70.
A propósito, é nas primeiras décadas do século passado que há esse despertar para
a proteção do patrimônio arquitetônico no Brasil. E Minas Gerais é enxergada como o
“berço de uma civilização brasileira”. Tanto é que já em 1938, com o advento do
70 Decreto nº 22.928 de 12 de julho de 1933. Assina Getúlio Vargas. Processo 0070-T-38. Vol.1, pp. 4.
IPHAN-Série Tombamento.
114
tombamento, muitas cidades mineiras foram tombadas e protegidas como conjuntos
urbanos, a exemplo de Ouro Preto, como citado no capítulo anterior.
Foi numa viagem a Minas, em 1916, que Alceu Amoroso Lima e o então
jovem Rodrigo Melo Franco de Andrade “descobriram” o Barroco e
perceberam a necessidade de proteger monumentos históricos. Foi numa
viagem a Diamantina, nos anos 20, que o arquiteto Lúcio Costa, então adepto
do estilo neocolonial, teve desperta sua admiração pela arquitetura colonial
brasileira. Foi também em viagens a Minas, uma delas em 1924,
acompanhado do poeta Blaise Cendras, que Mário de Andrade entrou em
contato com a arte colonial brasileira [...] O fato é que não só mineiros, como
cariocas, paulistas e outros passaram a identificar em Minas o berço de uma
civilização brasileira, tornando-se a proteção dos monumentos históricos e
artísticos mineiros – e, por consequência, do resto do país- parte da
construção da tradição nacional (FONSECA, 1997, p. 99).
Nascia a cara do Brasil, um Brasil barroco, pautado na herança colonial branca e
cristã, que é a mais fiel representação da identidade que aquela sociedade queria
enxergar. Para Miceli (1987, p. 44), “Essa geração de jovens intelectuais e políticos
mineiros converteu sua tomada de consciência do legado barroco em ponto de partida
de toda uma política de revalorização daquele repertório que eles mesmos mapearam
e definiram como a ‘memória nacional’”.
115
Imagem 10 – Decreto que erige Ouro Preto em Monumento Nacional, de 1933.
Fonte: Arquivo Noronha Santos-IPHAN.
Em 12 de julho de 1933, o chefe do Governo Provisório da República dos Estados
Unidos do Brasil, Getúlio Vargas, em decreto, diz:
116
Considerando que é dever do Poder Público defender o patrimônio
artístico da Nação e que fazem parte das tradições de um povo os
lugares em que se realizaram os grandes feitos de sua história;
Considerando que a Cidade de Ouro Preto, antiga capital do Estado
de Minas Gerais, foi teatro de acontecimentos de alto relevo histórico
na formação da nossa nacionalidade e que possui velhos
monumentos, edifícios e templos de arquitetura colonial, verdadeiras
obras d’arte, que merecem defesa e conservação;
O decreto deixava claro que, a partir daquela data, a cidade e todos os bens nela
contidos, como obras de arte ou bens eclesiásticos, ficariam entregues “à vigilância e
guarda” do Estado.
Como vimos no capítulo 2, o tombamento é instituição jurídica própria do SPHAN. A
ideia de Monumento Nacional, que foi aplicada a Ouro Preto, ocorreu pela primeira
vez antes da existência da instituição. Seu surgimento tem a ver com a circulação de
ideias sobre nacionalidade, também relacionadas ao Movimento Modernista e às
missões culturais de intelectuais brasileiros que desbravavam os rincões do Brasil.71
Nos permitindo sair do contexto brasileiro e explorando a ideia de Monumento
Nacional, podemos lembrar o entendimento de Le Goff sobre a palavra Monumentum:
A palavra latina monumentum remete à raiz indo-europeia men, que exprime
uma das funções essenciais do espírito (mens), a memória (memini). O verbo
monere significa “fazer recordar”, de onde “avisar”, “iluminar, “instruir”. O
monumentum é um sinal do passado. Atendendo às duas origens filológicas,
o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a
recordação, por exemplo, os atos escritos (LE GOFF, 2003, p. 526).
Le Goff ressalta que o monumento é, por excelência, um legado da memória coletiva.
Assim sendo, a ideia de monumento como título honorífico dado à cidade traduz sua
importância na manutenção da memória coletiva, e, no entendimento mais
contemporâneo de Assmann, na ancoragem da memória cultural. O documento
assinado por Vargas se refere, também, à ligação desses monumentos com a
“História Pátria”.
71 Sobre isso, cf. FONSECA, 1997, p. 93. Capítulo “O Movimento Modernista e o Patrimônio”.
117
Como já é bem sabido, é na França que a ideia de monumento, passível de proteção
e de pertencimento comum, vai ganhar forma, a partir das repercussões da Revolução
Francesa de 1789. Fonseca (1997, p. 58) diz que os bens ameaçados de destruição
“passaram a ter também um valor como documentos da nação, e se converteram em
objetos de interesse não apenas cultural como também político”. A gênese da ideia
de patrimônio comum, da faceta pública e do dever civil de protegê-lo, vem desse
contexto. Para a autora (ibidem), “A ideia de posse coletiva como parte do exercício
da cidadania inspirou a utilização do termo patrimônio para designar o conjunto de
bens de valor cultural que passaram a ser propriedade da nação, ou seja, do conjunto
de todos os cidadãos”. A autora fala que foi durante o período revolucionário francês
que o valor de nacionalidade dos bens se sobrepunha aos demais valores, trazendo,
desde sua gênese, um nexo muito político no entendimento e na proteção do
patrimônio. Para Nunez,
A partir do século XIX, passou a considerar-se o monumento nacional como
o elemento básico que integraria o patrimônio como herança em comum,
baseado no valor de antiguidade, acima inclusive do valor artístico. [...]. Os
nacionalismos europeus do século XIX, portanto, viram nos monumentos os
testemunhos das virtudes e da identidade dos povos, e por isso os
monumentos foram definidos como monumentos nacionais (NUNEZ, 2016,
p.197).
É na lógica de servir ao Estado como aglutinador de uma pretensiosa nacionalidade
que o patrimônio é pensado, e alavanca-se, então, a ideia de Monumento Nacional.
Mas Olinda andava esquecida, como disse Drummond. Em livro72 comemorativo à
sua elevação enquanto Monumento Nacional, Fernando Coelho, autor do projeto de
lei que solicitava tal feito, fala sobre o processo:
Outras cidades brasileiras – quase todas mais novas e com presença menos
assinalada na nossa história e na nossa vida cultural - já haviam sido
distinguidas com o título honroso de “Monumento Nacional”. Com o título e
com o tratamento a que o título obriga. Enquanto Olinda permanecia
esquecida. Discriminada nos orçamentos federais. Sem conseguir sequer os
recursos imprescindíveis para conter o avanço do mar, as inundações do
Beberibe, o deslizamento dos morros. Injustiçada com a negativa do galardão
72 Edição comemorativa à Elevação de Olinda a Cidade Monumento Nacional 1982. Direitos reservados
da edição à Prefeitura de Olinda.
118
e dos serviços públicos a que tinha direito. Abandonada à sua própria sorte,
sem meios nem ao menos para conservar o conjunto arquitetônico do Sítio
Histórico, ameaçado de destruição (COELHO, 1982, p. 13).
Devemos, porém, problematizar que o significado de Ouro Preto ter sido erigida à
condição de Monumento Nacional em 1933 é diferente do que representa Olinda ter
sido alçada a esta condição em 1980. Não apenas porque os contextos políticos eram
diferentes, mas sobretudo porque eram diversos os conceitos, dado o próprio
alargamento da noção de Patrimônio Cultural. Além disso, em 1980, já se havia uma
experiência prática de políticas culturais voltadas à preservação do patrimônio de, pelo
menos, 40 anos.
Olinda é reconhecida como “Monumento Nacional” doze anos após seu tombamento
em 1968, o que nos dá margem a pensar que o tombamento não havia sido
“suficiente” para sua preservação, como sugere o trecho transcrito de Coelho (1982),
e questionar o que significou, então, esse título honorífico para a esquecida e
injustiçada cidade.
Após um hiato de três anos, o processo 674-T-62 tem continuidade a partir de 1972,
com a documentação enviada à DPHAN por Luiz Vital Duarte, que será explorada
adiante.
É importante, antes, contextualizar brevemente, que nesse momento há uma série de
eventos acontecendo em paralelo e que são, em intensidades diferentes, também
construtores de uma memória oficial.
Sabe-se que, entre novembro de 1966 e junho de 1967, uma comissão de técnicos
da UNESCO percorreu o Brasil com o objetivo de estudar a proteção e a valorização
do patrimônio cultural brasileiro em perspectivas de desenvolvimento turístico e
econômico.73
Nessas missões da UNESCO, de reconhecimento do patrimônio brasileiro, é que
temos a presença de Michel Parent e suas famosas impressões sobre Olinda,
constituidoras de representações da cidade.
73 Proposição do Conselho Estadual de Cultural de Pernambuco. Documento assinado em 18 de junho
de 1974 por Luiz Delgado. Consta no Processo 674-T-62, Vol. 2, pp. 19-21. Série Tombamento, IPHAN.
119
Os intelectuais do Conselho Estadual de Cultura também lutavam nessa construção
de sentidos, investindo na imagem de Olinda como um grande jardim:
Olinda é uma joia do Brasil. Nela se reúnem admiravelmente a paisagem
marinha e a cidade de arte, com uma riqueza de vinte igrejas barrocas e um
grande número de casas antigas pintadas em vivas cores. [...] em Olinda a
arquitetura surge dentre os esplendores da natureza tropical. O oceano
aparece no fundo do quadro, por trás das torres e dos coqueiros. Entre as
ruelas, a vegetação luxuriante enche a colina. Essa feição esparsa do tecido
urbano deve ser absolutamente preservada. Olinda não é uma cidade: é um
jardim recheado de obras primas de arte. 73
No início dos anos 1970, como informado por Augusto da Silva Telles74, desenvolvia-
se um Plano de Desenvolvimento Local Integrado para Olinda75.
O plano, entre outras coisas, definia a área de preservação rigorosa, áreas non
aedificandi, áreas de preservação ambiental etc. Tratava-se de um plano diretor para
o desenvolvimento da cidade integrado aos preceitos da conservação do patrimônio
cultural.
Em parecer76 de 1975 do Conselho Estadual de Cultura, o relator José Antônio
Gonsalves de Mello fala que o arquiteto José Luís da Mota Menezes, agora
trabalhando pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado de
Pernambuco - FUNDARPE, havia feito um estudo sobre a ampliação da poligonal de
tombamento de Olinda, especificando setores, taxas de ocupação e gabaritos para
que o acelerado processo de urbanização que ocorria no Recife não embaraçasse a
visão de Olinda, “de forma a permitir a visão desembaraçada da paisagem e das
74 “Estive em Olinda, em companhia do Sr. Chefe do 1º Distrito para assistir ao segundo e último
seminário sobre o plano de desenvolvimento local integrado que a prefeitura olindense encomendou
sob o financiamento do SERFHAU”. Informação nº 261, de 20 de novembro de 1972. Assunto: Plano
de Desenvolvimento Local Integrado de Olinda. Documento assinado por Augusto da Silva Telles.
Processo 674-T-2, Vol. 1, pp. 41. Série Tombamento. IPHAN.
75 Sobre O PDLI, ver Aline Bacelar em O PDLI DE OLINDA E O TURISMO CULTURAL: conceituação
e práticas, 2017, XV Seminário de História da Cidade e do Urbanismo.
76 Parecer do Conselho Estadual de Cultura. Documento assinado em 05 de maio de 1975 por José
Antônio Gonsalves de Mello. Consta no Processo 674-T-62, Vol. 2, pp. 22-24. Série Tombamento,
IPHAN.
120
velhas construções olindenses – seus montes, suas casas, suas igrejas, sua
vegetação – e o visitante, ao aproximar-se da cidade-mater da civilização portuguesa
em todo o Nordeste brasileiro, percebesse desde então a importância histórica e
artística da antiga capital” 76
O presidente do Conselho Estadual de Cultura, à época, Gilberto Freyre, encaminhou,
então, os estudos elaborados por Mota Menezes em anuência com o corpo técnico
da FUNDARPE, ao IPHAN, para prosseguimento do processo. A ampliação do
tombamento do IPHAN requerida no processo, pedia: “[...] cumpre ampliar a área
tombada, para incluir a planície de aproximação da cidade, tanto do Sul, do Recife,
quanto do Norte, de Rio Doce, e o trecho a oeste da mesma, que abrange as fraldas
do ‘Monte’ e de Guadalupe” 76
A extensão do polígono de tombamento vem a se concretizar em 1979, já na gestão
de Aloísio Magalhães.
Olinda foi palco, ainda, de obras financiadas pelo Programa Integrado de
Reconstrução das Cidades Históricas, mais conhecido como PCH77. O Programa foi
uma importante iniciativa no âmbito das políticas culturais nos anos 1970, políticas
que vinham se fortalecendo desde a criação do Conselho Federal de Cultura de 1966.
Alinhados a ambições de desenvolvimento pelo turismo cultural, também relacionado
com as missões da UNESCO no Brasil, os militares investiram em políticas de
recuperação das cidades históricas que estavam degradadas. As políticas culturais
entravam no nexo desenvolvimentista do período78.
77 Para o assunto, ver Márcia Chuva e Laís Vilela Lavinas, O Programa de Cidades Históricas (PCH)
no âmbito das políticas culturais dos anos 1970: cultura, planejamento e nacional desenvolvimentismo,
An. Mus. Paul.,vol.24, nº1,São Paulo, Jan/Abr 2016.
78 Ao longo das duas décadas que se seguiram à Carta de Veneza, o Brasil esteve sob a ditadura civil-
militar, instaurada também em 1964, mesmo ano da carta. O período será repleto de desafios,
mudanças conceituais, políticas e práticas para o campo disciplinar da preservação no Brasil. Do papel
fundamental dos consultores internacionais por meio da Unesco ao Programa de Cidades Históricas
(PCH), gestado fora do Iphan como política de governo dos militares, a Instituição focará seus esforços
na gestão e viabilidade econômica dos monumentos protegidos por lei (CORREA, 2012;
NASCIMENTO; MARINS, 2016). Apud NASCIMENTO, 2016, p. 126.
121
Obras de restauro como a da Sé de Olinda, que destruiu sua feição eclética, são
transformações materiais carregadas de sentido do que seria a Olinda a preservar
para a posteridade79.
Esses processos paralelos e imbricados configuram criação da memória urbana,
assim como foi o tombamento, mas a perspectiva adotada no presente trabalho ratifica
a questão da memória e sua força na criação da identidade nacional, muito mais por
questões de significação simbólica, e, por tanto, a ideia de Monumento Nacional cabe
mais apropriadamente aos objetivos da dissertação.
5.2 A martirizada Olinda
Em carta80 a Carlos Drummond de Andrade, o então presidente do IPHAN, Renato
Soeiro, fala, já em 1968, dos problemas que Olinda enfrentava. Primeiro com o avanço
do mar, que foi solucionado com a construção de um quebra-mar em torno dos anos
1960. Falava também dos riscos de deslizamento das encostas.
As insatisfações sobre a degradação de Olinda continuam por alguns anos, com
repercussões na imprensa.
79 A respeito do restauro, ver CABRAL, 2016.
80 Carta endereçada a Carlos Drummond de Andrade, em 28 de março de 1968, assinada por Renato
Soeiro. Processo 674-T-62, Vol. 1, pp. 28. Série Tombamento, IPHAN.
122
Imagem 11 - Trecho do Jornal O Globo, de 7 de setembro de 1972, constante no processo 674-T-62.
Fonte: Arquivo Noronha Santos-IPHAN
Trecho do Jornal O Globo, de setembro de 1972, mostra que o então prefeito de
Olinda, Ubiratã de Castro, seguiria para se encontrar com o ministro da Justiça para
tratar sobre o tombamento de Olinda e sua possível inclusão na zona de segurança
nacional. Diz o prefeito:
[...] há muito o Governo Federal deveria ter dado à antiga ‘Marim dos
Caetés’ o tratamento dispensado a Ouro Preto. O Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional não pode deixar a cidade abandonada, com suas
relíquias – com os velhos templos e mosteiros, seu casario e o
seminário – ameaçados de se transformarem em ruínas. Precisamos
de verbas para conservar Olinda, 437 anos de luta pela cultura do
Brasil. 81
81 Trecho do Jornal O Globo, de 7 de setembro de 1972, constante no processo 674-T-62, Vol. 1, pp.
42. Série Tombamento, IPHAN.
123
Diante do cenário desolador da cidade, uma série de articulações foram feitas para
chamar atenção para a preservação do patrimônio cultural, considerando todos os
processos que corriam em paralelo, como o próprio andamento do Plano de
Desenvolvimento Local Integrado.
Como figura central na petição de Olinda como cidade Monumento Nacional, Luiz Vital
Duarte, enviara, em setembro de 1972, uma documentação que pedia o
reconhecimento da velha Marim dos Caetés.
[...] vem, respeitosamente, submeter à alta apreciação de V.
Excelência, por intermédio do Excelentíssimo Senhor Ministro da
Educação e Cultura, com fundamento no parágrafo 30 do art. 153 da
Constituição Federal82, a proposta que objetiva transformar a CIDADE
DE OLINDA em “MONUMENTO NACIONAL”, ouvidos se assim o
Governo Federal o desejar os Ministério da Justiça e Conselho de
Segurança Nacional, a qual ficaria sob a administração direta do
Governo da República, através da pessoa idônea e de plena confiança
do Presidente da República [...]83
Vital Duarte era oficial da reserva do Exército (Major), residia em Olinda e também era
membro do Instituo Histórico de Olinda. Era, ainda, presidente da Irmandade de N. S.
da Conceição dos Militares.
Sobre os aspectos legais do título honorífico, e que talvez traga maior clareza sobre a
diferença da lei do tombamento, Vital Duarte diz:
A Decretação, pelo Governo da República, da Cidade de Olinda como
Monumento Nacional com a prerrogativa de ter na Chefia do Executivo
um administrador da confiança do Chefe da Nação, é uma medida que
garantiria ao Município o fiel cumprimento das disposições do Decreto-
lei nº 25 de 30 de novembro de 1937 que dispõe sobre as medidas de
proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, impedindo,
realmente, que as coisas tombadas continuassem a ser destruídas e,
82 § 30. É assegurado a qualquer pessoa o direito de representação e de petição aos Podêres Públicos,
em defesa de direito ou contra abusos de autoridade. (Artigo 153 da Constituição Federal de 1967)
83 Processo protocolado como MEC 001549, enviado por Luiz Vital Duarte à Presidência da República
para requerer a elevação de Olinda à Monumento Nacional. Datado de 25 de setembro de 1972.
Processo 674-T-72, Vol. III, pp. 2-20. Série Tombamento, IPHAN.
124
também, sem prévia autorização especial do Instituto do Patrimônio,
continuassem a sofrer, como tem sofrido Olinda, pinturas,
restaurações e reparos contrastando flagrantemente com as suas
linhas fundamentais, com flagrante descaracterização.
[...]
O Administrador Federal da “Cidade Monumento” diligenciaria no
sentido de que, por falta de iniciativa das autoridades encarregadas de
mandar executar as obras consideradas necessárias à conservação
de edificações de real valor histórico artístico e cultural, os
proprietários das coisas tombadas não viessem a exercer o direito que
lhes faculta a lei de requerer o destombamento; diligenciaria também
para que, em caso da verificação de urgência na realização de obras
e conservação ou reparação em qualquer coisa tombada, estas
fossem imediatamente projetadas e executadas com a assistência e
participação do Serviço do Patrimônio, independente de qualquer
outra formalidade que viesse obstaculizar a sua ação fiscalizadora,
tendo em vista a preservação dos monumentos de real valor histórico
e artístico existentes na Cidade Monumento.83
O que propõe Vital Duarte, então, é uma forma de administração mais direta e
centralizada sobre a cidade, pois vinda de indicação do “Chefe da Nação”. Seria o
Poder Executivo como interventor federal para gerir o patrimônio histórico e artístico
de Olinda, sem desconsiderar o significado do Decreto-lei nº 25 de 1937, e levando
em consideração o trabalho fiscalizador do IPHAN. Em relação a esse órgão, ele deixa
claro, porém, que não entende estar sendo suficiente para a preservação da cidade:
“[...] conclui-se que a ação fiscalizadora da DPHAN não tem conseguido resultados
mais positivos para a preservação dos monumentos, sobretudo em face da indiferença
dos Prefeitos que tem ocupado a Chefia daquela Cidade, [...]”83, diz o major.
Vemos como o contexto político traz uma outra semântica para o título honorífico de
Monumento Nacional, se formos comparar à elevação de Ouro Preto em 1933. Não
se trata apenas de um título de honra que a equipararia “às suas irmãs de outros
Estados”, mas de uma intervenção federal na administração e gestão da cidade e de
seu patrimônio cultural, além de ser uma medida protetiva que poderia angariar mais
recursos da União em sua restauração.
125
O título conversa com as intenções de recuperação de cidades históricas para
promoção da indústria turística, como era intenção do governo militar, em seu mote
de desenvolvimentismo nacionalista, assim como corroboraria para o trabalho que a
UNESCO vinha desenvolvendo no reconhecimento de bens culturais como Patrimônio
da Humanidade, como viria a ocorrer a Olinda anos mais tarde.
Politicamente, o Major busca também o nexo da brasilidade que o patrimônio tem por
representação. Clama a Olinda um lugar no panteão dos deuses da memória nacional,
a memória oficial que representaria o Brasil que se tentava construir naquela época.
Continua o Major:
As forças políticas de Olinda não são atuantes nem coesas, [...]
desprovidas de objetivos sociais e políticos de grande envergadura,
entregam-se comumente nos bastidores, às práticas condenáveis e
mesquinhas de uma política partidária alheia aos superiores
interesses da coletividade, subestimando, como é óbvio, as mais
autênticas tradições que Olinda tem, como legado de seus
antepassados que sempre primaram pelo respeito à ordem e à
liberdade, fazendo do poder político a força latente que faria florescer
a grandeza e os sentimentos de brasilidade de olindenses, então
empenhados em estabelecer a autonomia e a independência das suas
manifestações culturais e políticas.
Nas suas campanhas [...] limitam-se aos ataques pessoais [...] quando
deviam debater com as massas os problemas nacionais,
esclarecendo-lhes acerca das medidas de alto nível que vem sendo
tomadas pelo Governo da Revolução.
[...]
As facções políticas do Município, em vez de estimularem a formação
de valores, procuram alijar das hostes partidárias municipais, homens
inteligentes e perspicazes preparados para administrar porque
conhecedores dos males que afligem os diferentes setores da
atividade púbica municipal, muitos deles aliando a um grande fervor
patriótico o desejo apaixonado de servir à coisa pública, só porque tais
elementos não se prestariam para agenciar suas barganhas,
contrariando os princípios fundamentais da Revolução de Março de
1964.
126
[...]
Se ocorrer a derrota da Arena, então assumirá o candidato do MDB,
acarretando para Olinda uma situação político-administrativa
insustentável, completamente divorciada dos verdadeiros objetivos
nacionais e sem a força necessária para postular junto ao Governo
Central, a implantação de certos melhoramentos que importam no
bem-estar, no progresso da Comunidade Olindense.
[...]
Uma solução justa e razoável que consiste na sua transformação em
Cidade-Monumento Nacional, antes mesmo da realização das
eleições, a fim de que nenhuma relação possa existir entre os
resultados do pleito e a concretização da medida aqui sugerida.
De outra forma, o Governo ficará impossibilitado de acorrer às
angústias da população Olindense, pois não encontrará no seio dos
emedebistas aquela indispensável confiança que lhe possibilite aplicar
no Município, os recursos que o mesmo carece para a conjugação dos
seus esforços com a União Federal, na execução dos planos nacionais
de desenvolvimento. 83
Os aspectos políticos trazidos pelo Major Luiz Vital Duarte em seu discurso
demonstram total alinhamento com o Regime Militar, de forma a exaltar os valores
prezados pelo governo autoritário como “respeito à ordem”, mostrando que os
problemas que, segundo ele, o poder executivo enfrentava, acabava afetando os
“interesses superiores da coletividade”, de modo a não provocar o “sentimento de
brasilidade” que os cidadãos deviam endossar na época.
Em crítica ao governo municipal, fala que “homens inteligentes e perspicazes” eram
alijados do governo, homens que, como ele, possuíam grande desejo de servir à
Nação, aliado a “grande fervor patriótico”.
Frisa que o reconhecimento de Olinda como Monumento Nacional legitimaria a
intervenção do Governo Federal na administração da cidade. Em relação à Segurança
Nacional, o Major continua:
Quanto aos aspectos relativos à segurança nacional, a medida se
apresenta como das mais alvissareiras, visto como Olinda, sede de
127
quatro unidades militares, e transformada em Cidade Monumento
Nacional sob a Administração Central da União, eventualmente, pode
constituir-se ponto estratégico para a manutenção da ordem política e
social.
É importante frisar ainda que pela sua condição estratégica, Olinda
teve em seu território, recentemente, vários aparelhos de subversão
desbaratados pela polícia, os quais se situavam ao longo de suas
praias.
Demonstrando claro apreço à “manutenção da ordem política” vigente, o Major via em
Olinda “Monumento Nacional” o ponto estratégico de representação do governo
autoritário.
Nessa documentação enviada à Presidência da República através do Ministério de
Educação e Cultura, protocolada pelo Departamento de Assuntos Culturais como
Processo MEC 001549, Vital Duarte destrincha as razões pelas quais fazia o pleito
pela Olinda Monumento:
Por sua arquitetura típica do período colonial brasileiro, quando do
fastígio da agro indústria do açúcar nos séculos XVII e XVIII, Olinda
de há muito já devia ter sido oficialmente reconhecida como Cidade
monumento, o que teria preservado a inteireza de muitas de suas
edificações mais historicamente expressivas que, pela ação predatória
e inconsequente de administradores incapazes, sofreram ao longo de
muitos anos, deformações imperdoáveis com a conivência descabida
e ilegal da administração do Município, irregularidade que ainda
subsiste, inobstante a ação fiscalizadora do IPHAN. 83
Vemos que Vital Duarte realça a importância da arquitetura colonial, do testemunho
histórico que ela representa e mostra que Olinda andava esquecida pelas autoridades,
e que seu prévio reconhecimento como Monumento Nacional poderia ter evitado muito
de sua degradação. Insiste em falar, então, do momento de degradação e desolação
vivido pela cidade, que vinha sendo denunciado e percebido há anos, porém sem
atitudes efetivas para remediá-la. Se pensarmos, então, nos processos paralelos que
ocorriam no período, vemos que as missões da UNESCO foram muito importantes
para o reconhecimento do valor excepcional da cidade, assim como para o clamor
pela “proteção absoluta”, além de já falar sobre as ameaças sofridas pela cidade.
128
A partir do intento do Governo autoritário em explorar o potencial turístico das cidades
históricas, em parceria com a UNESCO, foram pensadas políticas de cultura que
revalorizassem os sítios históricos, que restaurassem as cidades degradas, o que
culminou, então, no PCH. Tudo estava ocorrendo em paralelo e de forma interligada,
assim como os estudos para a expansão do polígono de tombamento e o próprio PDLI,
que tinha como uma de suas premissas o desenvolvimento local através do potencial
do turismo cultural. Segundo Chuva e Lavinas,
Destacaremos também uma questão de natureza teórica, relativa ao conceito
de Estado que embasa a interpretação das políticas culturais (e do PCH)
como parte do processo de modernização autoritária do Estado
implementada pelo regime militar - que aprofundou as relações capitalistas
no Brasil e complexificou o Estado e a integração de redes sob seu
controle (CHUVA e LAVINAS, 2016, pp. 77).
Vital Duarte realça a importância histórica da cidade esquecida, como se esse fosse
o traço mais forte de uma memória que era carregada pela cidade, pelos lugares, em
seu traçado urbano, em seu casario, em sua espacialidade marcada pelos eventos
históricos, sobretudo do passado colonial:
[...] fundada por Duarte Coelho Pereira, Donatário da Capitania de
Pernambuco, e, oficialmente, reconhecida como vila por Alvará Régio
de 12 de março de 1537, teve considerável importância na história
política, social e econômica de Pernambuco e do Brasil, merecendo,
portanto, o seu conjunto arquitetônico e urbanístico, cuidados
especiais para que conserve as características expressivas da arte
Tradicional Brasileira e, também, as significativas peculiaridades
regionais. 83
O major clama por proteção federal à cidade (como se o IPHAN e o tombamento já
não cumprissem essa função), dizendo que a municipalidade permite que sejam
realizadas obras, tanto de cunho privado quanto estaduais, à revelia da lei de
tombamento federal (de 1968), o que provoca progressiva descaracterização do
conjunto arquitetônico e urbanístico.
É flagrante os processos de desvalorização e descaracterização vivido pela cidade
durante esses anos. Avanço do mar, enchentes do rio Beberibe, construções
irregulares, abandono de monumentos, como o Seminário de Olinda. Todo esse
129
processo entra no âmago do impulso de preservação empreendido pelo major Duarte.
E no processo, o autor continua a salientar as relações da cidade com os eventos
históricos, clamando para a importância da permanência material desse testemunho:
[...] os monumentos históricos de Olinda se destacam não só pela sua
imponência, mas, principalmente, pela relação com os mais
importantes fatos ligados à formação e ao desenvolvimento da
nacionalidade brasileira. Encontram-se no município monumentos de
destaque como: o Antigo Colégio dos Jesuítas, primeira instituição de
ensino primário do Brasil, até que em 1796, Azeredo Coutinho, Bispo
de Olinda, o transformou em Seminário, emprestando-lhe caráter de
escola secundária, a melhor escola desse nível até então fundada no
país. Foi no velho seminário de Olinda que o célebre Padre Antônio
Vieira ensinou retórica. A sua fundação está ligada a iniciativa de
Jesuítas ilustres como Manuel da Nóbrega e Luís de Grã. Frequentou-
o como aluno o Padre João Ribeiro, herói e mártir da Revolução de
1817. Encontra-se hoje, praticamente abandonado.
Outro monumento de real valor que V. Exa. bem conhece é o mosteiro
de São Bento, onde funcionaram os primeiros cursos jurídicos do
Brasil, criados pelo Decreto Imperial de 11 de agosto de 1822[...]
O prédio que fora construído por Duarte Coelho para funcionamento
do Senado da Câmara e depois doado a D. Estevão Brioso de Oliveira,
Bispo de Olinda, que o converteu em Palácio Episcopal, denominação
que ainda hoje conserva, permanece sem os cuidados especiais que
lhe deviam ser dispensados, somente recebendo ligeiras reparações
e pinturas por iniciativa da Cúria, sem a preocupação de reproduzir
exatamente os aspectos originais da construção.
Além desses, há vários outros monumentos e igrejas que difícil seria
enumerá-los todos, podendo, todavia, ressaltar mais alguns como: A
casa que viveu Fernandes Vieira, o Herói da Restauração, a única
casa que escapou ao fogo ateado pelos Holandeses e mais uma série
de pontos em que se desenvolveram fatos importantes da história
colonial do Brasil e a igreja de S. João dos militares que também
escapou às chamas do incêndio, merecedores, por conseguinte, da
mais rigorosa proteção que até hoje não lhes tem sido dispensada.
130
A proteção que submeto à honrada apreciação de V. Exa., e do
Excelentíssimo Senhor Presidente da República, assenta, sobremodo,
no fato de ter sido Olinda, depois da chegada de Duarte Coelho, em
1535, construída sobre as encostas de uma colina, dominada por uma
capela e fortificação, constituindo destarte, o primeiro exemplo na
América, de cidade portuguesa tipicamente medieval, de ruas e
ladeiras tortuosas e íngremes e de súbitas declividades.
Outro acontecimento de real significação histórica que teve lugar em
Olinda, sem dúvida alguma, é o nascimento do “Teatro entre nós em
1575, no Colégio dos Jesuítas”, então Seminário de Olinda onde os
seus alunos levaram à cena uma tragédia inspirada na parábola “Rico
avarento e Lázaro pobre”, constituindo, destarte, tal encenação a
primeira manifestação da arte teatral brasileira que mais tarde se
expandiria por todo País.
A casa da Praça Conselheiro João Alfredo apresentando um
expressivo conjunto de elementos arquitetônicos que nos permitem
identificá-la como um valoroso remanescente da arquitetura
residencial do mais remoto período colonial brasileiro, encontra-se
hoje em ruínas, sem que ao menos a Municipalidade em conjunto com
o IPHAN, se disponha a colocar uma fortificação qualquer para evitar
o seu desmoronamento.
O conhecimento e a vivência que tenho dos problemas de Olinda, me
têm despertado para a análise dos fatos atentatórios da integridade do
seu patrimônio histórico e arquitetural, levando-me a propor a
autoridades como V. Exa. e o Chefe da Nação, medidas de defesa
capazes de impedir a sua desvalorização e amesquinhamento, pois,
inobstante a legislação em vigor que proíbe, expressamente, a
destruição desse patrimônio, predominam acontecimentos de
natureza diversa e de origem variada [...] todos virtualmente
prejudiciais à proteção do acervo artístico cultural da velha e
legendária Olinda. 83
Atenção para o nexo de nacionalidade que reclama o Major a Olinda. Em diversos
momentos de sua fala, apela para o marco primeiro, o mito de origem que Olinda
significa para o Brasil. Primeiro colégio, primeiros cursos jurídicos, primeiro teatro,
primeiro exemplo na América da cidade portuguesa. Essa busca pelo lugar fundador
131
é a busca pela âncora da memória. É o estandarte da memória que reside nos locais,
como diria Assmann. A autora remonta ao teórico da mnemotécnica romana para falar
da “força da memória que reside no interior dos locais” (ASSMANN, 2011, pp. 317). A
autora fala que os locais “solidificam e validam a recordação, na medida em que a
ancoram no chão, mas também por corporificarem uma continuidade da duração que
supera a recordação relativamente breve de indivíduos, épocas e também culturas,
que está concretizada em artefatos” (ASSMANN, 2011, pp. 318).
Já diria o hino do estado de Pernambuco: A República é filha de Olinda. Vital traz à
tona os marcos importantes da História não só de Pernambuco, como do Brasil, que
tiveram como cenário Olinda. A construção, o incêndio, a restauração, o primeiro grito
da república, o atravessar-o-tempo, são processos de desenvolvimento em que a
cidade se transforma ao passo que porta em si, em sua materialidade, em seus
lugares, a memória cultural. Vive e testemunha os eventos históricos, de forma a
representar um monumento (em Le Goff, o legado da memória coletiva) com
expressão de uma nacionalidade requerida, que estava em construção e buscava
âncoras do nexo identitário, portanto, sim, Monumento Nacional.
O relatório de Luiz Vital Duarte é então recebido pelo Departamento de Assuntos
Culturais do IPHAN e analisado por Silva Telles, que encaminha ao diretor, Renato
Soeiro, uma informação84 dando aval ao pedido do Major, dizendo que “tal decreto
dará maior ênfase e responsabilidade às autoridades municipais e estaduais, para a
preservação do acervo urbano”.
84 Informação nº 258 de 17 de novembro de 1972 cujo assunto era: Preservação de Olinda PE como
“Monumento Nacional”. Documento assinado por Augusto da Silva Telles. Processo 674-T-62, Vol. III,
pp. 25. Série Tombamento-IPHAN.
132
Imagem 12 - Telex enviado de Renato Soeiro para Jarbas Passarinho sobre a urgência de
providências sobre a destruição de Olinda. Data de 19 de outubro de 1972.
Fonte: Arquivo Noronha Santos-IPHAN
Em outubro do mesmo ano, Soeiro envia Telex ao ministro de Educação e Cultura,
Jarbas Passarinho, falando da urgente situação de Olinda, dizendo ser necessária
sua presença no local. Em linguagem que cabia à tecnologia do Telex, disse ao
ministro: “ [...] a necessidade urgente da presença do senhor em Olinda para estudar
in loco providencias serem adotadas salvar destruição monumentos históricos aquela
cidade.”85
Após ser enviado e protocolado no Ministério de Educação e Cultura, o processo de
Luiz Vital Duarte foi enviado ao ministro pelo próprio diretor do IPHAN, Renato Soeiro.
85 Telex enviado de Renato Soeiro para o ministro de Educação e Cultura Jarbas Passarinho sobre a
urgência de providências sobre a destruição de Olinda. Data de 19 de outubro de 1972. Processo 674-
T-62, vol. 1, pp. 44. Série Tombamento-IPHAN.
133
Em informação86, o diretor diz que o relatório do major traz informações de que “os
conjuntos de valor histórico e artístico correm risco quanto à sua integridade”, e por
isso mesmo e do fato de já ser tombado, o diretor julga “cabível e de interesse a sua
transformação em Monumento Nacional”. Ele fala que para que ocorra devida
proteção, as cidades-monumento devem ser consideradas áreas de defesa nacional,
e, por isso, propõe que seja feito um projeto de lei para enquadrá-las nessa zona.
Chuva e Lavinas contextualizam esse movimento da cultura em aproximação à defesa
nacional:
Observando ainda o documento da "Política Nacional de Cultura: diretrizes",
verificamos que a preservação da cultura tornou-se uma questão de
segurança nacional87, aspecto que até então não havia sido elaborado
nesses termos. A defesa da cultura era comparada à "defesa do território, dos
céus e dos mares pátrios", pois "contribui para a formação e a identificação
da personalidade nacional" e visava "edificar uma sociedade aberta e
progressista". Aliar desenvolvimento e cultura como medidas estratégicas
relacionadas à segurança nacional foi posto claramente nesse documento,
ao lado da noção de Brasil Grande [...] (CHUVA e LAVINAS, 2016, p. 81).
O trabalho de Luiz Vital Duarte foi reconhecido e repercutido como pioneiro para a
elevação de Olinda a Monumento Nacional, embora devamos considerar que os
trabalhos desenvolvidos pela FUNDARPE na pessoa de José Luís da Mota Meneses
e equipe para a rerratificação do polígono de tombamento de Olinda, assim como o
PDLI também era inciativas que presavam pela preservação do patrimônio cultural da
cidade. Também interessava ao Governo da época a reconstrução das cidades
históricas para seu aproveitamento na indústria turística, como vimos. O seguinte
trecho do Jornal do Commercio enfatiza a “preservação do barroco” nessas inciativas
governamentais.
86 Departamento de Assuntos Culturais. Informação encaminhada ao ministro de Educação e Cultura,
em 6 de dezembro de 1972. Documento assinado por Renato Soeiro. Processo 674-T-62, Vol. 1, pp.
47. Série Tombamento-IPHAN.
87 Chuva E Lavinas (2016, pp 81) falam que “A ideologia da Segurança Nacional durante o regime
militar teve seus princípios básicos formulados pela Escola Superior de Guerra e serviu como amparo
fundamental para o discurso de legitimação do golpe de 1964. Além de ser utilizada como justificativa
para a continuidade do regime. ”
134
Imagem 13 - Trecho do Jornal do Commercio de 3 janeiro de 1973. Consta no Processo 674-T-62,
Vol. 3, pp. 44. Série Tombamento.
Fonte: Arquivo Noronha Santos-IPHAN
São sobrelevados os traços da memória branca, cristã e barroca na preservação deste
patrimônio. O trecho acima cita que seriam portados “para a posteridade os
remanescentes da arte barroca no Nordeste”, com destaque para as ações que
elevam “Olinda e Igarassu à condição oficial de redutos de barroco nordestino”.
A luta de Vital Duarte teve repercussão na imprensa local, com devido apoio de
intelectuais e entidades da sociedade que queriam a preservação de Olinda. Porém,
como processo burocrático que é, passou anos em “processo”, sem nenhuma
resposta ou atitude por parte do governo militar. Em 1974, o major Duarte fala em
Cartas à Redação do Diário de Pernambuco de 4 de outubro.
[...]
O Instituto Histórico de Olinda, defensor das mais autênticas tradições
artístico-históricas e culturais da “cidade-símbolo” que é realidade e
135
grandeza, em cuja formação houve a meditação do sábio e o sacrifício
do herói, envidou o melhor de seus esforços pelo reconhecimento de
Olinda como cidade MONUMENTO NACIONAL. A maioria de seus
componentes à frente seu operoso Presidente o Patriarca Gaston
Manguinho, responsabiliza o atual Prefeito da sofrida e martirizada
cidade por não haver mantido nenhuma gestão em prol do
mencionado movimento salvador.
É oportuno salientar que Porto Seguro, dada a importância do Monte
Pascoal, por haver contado com o integral apoio de seu Prefeito (e do
Governador da Bahia), já é CIDADE MONUMENTO NACIONAL,
enquanto Olinda está injustamente relegada ao esquecimento, pelo
indiferentismo e falta de sensibilidade às gloriosas tradições
olindenses, por parte de seu edil que é “considerado inimigo da
cultura”.88
Olinda martirizada estava relegada ao esquecimento. Havia outros esforços em prol
da preservação da cidade, mas a cidade ainda não tinha a certidão de Monumento
Nacional, e, pelo menos em mais alguns anos, a batalha de Vital Duarte continuaria.
5.3 Olinda, Monumento Nacional
Olinda, multicentenária, mítica e mística, preserva nas pedras de suas
ladeiras e monumentos, as marcas desses sonhos e lutas “que por
seu viver morreram”, desde os mais aguerridos Tabajaras e Caetés,
aos heróis do Capitão André Temudo contra o invasor batavo, dos
mártires da República e da Liberdade, na Guerra fraticida contra os
Mascates, aos mais humildes do povo marginalizado que vegeta nos
manguezais da Ilha do Maruim, num painel feito de sonhos, fantasias,
idealismo e horror, por entre as extasiantes paisagens dos seus
“imprevistos horizontes” e das suas cores de azuis e de vermelhos
poentes.
88 Trecho do Diário de Pernambuco, 4 de outubro de 1974. Cartas à Redação, por Luiz Vital Duarte.
Consta no Processo 674-T-62, Vol. 3, pp. 67. Série Tombamento-IPHAN.
136
Uma cidade – a mais antiga e brasileira das cidades brasileiras – no
quanto de Brasil Colonial, seja Portugal dos Trópicos, e seja barroco
acachapado, e seja fé cristã sincretizada, e seja escravidão e ideais
libertários, e seja tradição e renovação, conspiração e lealdade,
bravura e mansidão, canto, forma e cor, cantigas de amor e cantochão
de amor divino no ádrio sombrio dos conventos, palmeiras ao vento,
sons de sinos, jasmineiros em flor, praias e ladeiras, infância,
senectude, começo e fim, entrudo carnavalesco e sisudez monástica
das quaresmas medievais.
Cidade símbolo. Muito, muito mais que apenas MONUMENTO
NACIONAL – o mais belo testemunho do Homem nos trópicos
americanos, produto do Engenho, do Sonho, da Arte das três culturas
fundamentais brasileiras, amalgamando-se, miscigenando-se e
construindo no Novo Mundo uma Civilização nova e um dia, a Deus
querer, uma Nova ordem mais humana, mais cristã e mais digna do
que a hoje imperante no dual e conturbado universo dominado pelo
sistema industrial capitalista.
Olímpio Bonald Neto, prefácio do livro Olinda Monumento Nacional, de
Fernando Coelho, 1982.
O prefácio do livro ensaia uma cidade vitoriosa, que havia apenas sido condecorada
com o título de Monumento Nacional e representava, na visão daqueles que lutaram
pelo título, toda a glória, ainda que por uma perspectiva deveras otimista, da cidade
que carregava “nas pedras de suas ladeiras e monumentos” a memória de feitos,
eventos, povos, e heróis que viveram a cidade, e que essa memória cultural chegava
então àquele presente de Olímpio B. Neto89 como a herança dessa cidade gloriosa,
agora Monumento.
89 “Olimpio Bonald Neto da Cunha Pedrosa, advogado, jornalista, folclorista, escritor, poeta e pintor,
nasceu em Olinda, no dia 7 de outubro de 1932. Participou ainda do Movimento de Artes da Ribeira,
em Olinda, na década de 1960, com várias exposições. Em 1966, recebe o prêmio de Poesia, conferido
pela União Brasileira de Escritores, e em 1976 é agraciado com o prêmio de Ensaio pela Academia
Pernambucana de Letras. ” Para mais informações: ANDRADE, Maria do Carmo. Olímpio Bonald Neto.
Pesquisa Escolar online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em:
<http://basilio.fundaj.gov.br//>. Acesso em 26 dez. 2018.
137
O processo, porém, levou mais alguns anos para ter vitória. A luta pela Olinda-
Monumento Nacional começara em 1972 e iria até 1980, passando pelo processo de
redemocratização do país. Enquanto isso, a cidade enfrentava cheias do Beberibe,
avanço do mar, deslizamento de morros, descaracterização de seu patrimônio.
Em 1975 é apresentado à Câmara dos Deputados o projeto de lei nº 1.140 por
Fernando Coelho, então deputado federal do MDB-PE, que, no texto, retoma muito do
que foi dito pelo major Duarte. Fernando Coelho usa as palavras do major, publicada
precedentemente em “Carta Aberta ao Presidente Geisel”, publicada no Jornal do
Commercio, do Recife, edição de 27 de setembro de 1975. Em palavras do major,
dentro do projeto de lei90, consta:
A vetusta Olinda, fundada por Duarte Coelho, em 1537, antiga “Capital
Eclesiástica pernambucana” e “florão de nossas glórias”, representa,
exatamente a melhor e mais preciosa relíquia de nosso passado, de
gloriosas tradições nacionais, por ser recordista do pioneirismo: da
arte barroca do Nordeste; das moendas de açúcar de Pernambuco;
dos cursos jurídicos do Mosteiro de São Bento, cenóbio transfigurado
em templum juris, do lançamento da semente do ensino primário e
eclesiástico do Nordeste, do teatro, da Santa Casa de Misericórdia, do
Jardim Botânico, do desenho e lirismo brasileiros; da fundição, da
Alfândega, das Irmandades, Ordens Religiosas, do atendimento
hospitalar e das Escolas de Agronomia e Veterinária pernambucana;
do Seminário para formação de padres católicos, “foco de irradiação
das ideias liberais” fundado por Azeredo Coutinho, em 1800; dos
Conventos Carmelitanos e Franciscanos e dos Escritores do Brasil;
dos formosos monumentos nacionais, dos autênticos movimentos
libertários: da guerra dos mascates, no nativismo, da Revolução
Praieira, da Revolução Pernambucana de 1817 e da Convenção de
Beberibe, antecipando a independência lograda no “Leão do Norte”,
onze meses antes que o Príncipe D. Pedro respondesse às Cortes que
ficariam no Brasil; dos heróis que erigiram o grande edifício da
nacionalidade; do berço da civilização e da cultura nacionais e do
90 Projeto de Lei nº 1.140 de 1975, Câmara dos Deputados, por Fernando Coelho. Consta no processo
674-T-62, vol. 3, pp. 74-75. Série Tombamento-IPHAN.
138
primeira general brasileiro, cuja história e evolução do tempo não
conseguirá apagar.
A martirizada Olinda, digna de veneração, dentro de cujos templos se
ouviram os mais pungentes gemidos da pátria opressa, como
ecoavam em suas abóbadas as notas melodiosas dos hinos e ações
de graças pelas vitórias conquistadas a custo de muito sacrifício e
derramamento de sangue que tingiu os chãos sagrados de Olinda,
pelos seus mais valentes defensores que escreveram páginas de
heroísmo na nossa história-Pátria, oferece aos estudiosos da vida
pernambucana um conjunto de aspectos e de sugestões do mais
incomparável valor. Em sua fisionomia paisagística, relembra um tanto
a velha Coimbra; e se de Portugal emigrou para o Brasil a semente da
tradicional Faculdade de Direito, fazendo na lendária Marim, de
batismo Tabajara, segundo Frei Santa Maria Jaboatão, nascer a
formação jurídica brasileira, na expressão de Oliveira Lima, novos
estabelecimentos de cultura universitária se firmam para avivar nela
os traços ainda existentes de sua fisionomia coimbrã. 90
Em conclusão de seu projeto, Coelho diz “Quando se condena e se tenta evitar, a todo
custo, a perda da memória nacional; quanto o país se empenha em conservar vivo o
passado que serviu de alicerce à sua grandeza no presente – a homenagem que
deveremos prestar à cidade de Olinda, através da presente proposição, constitui um
ato de justiça a que não poderá faltar o Congresso Nacional”. 90
O projeto tramita no Congresso Nacional durante cinco anos, trajetória narrada no livro
do próprio Fernando Coelho intitulado Olinda Monumento Nacional, edição
comemorativa ao feito, que, portanto, dá conta dos vaivéns do projeto no Congresso.
O importante é mostrar que o projeto de lei partiu das palavras do Major Vital Duarte.
A Lei nº 6. 863 de 26 de novembro de 1980 erigiu Olinda em Monumento Nacional,
sancionada por João Figueiredo.91 Olinda já corria, nesse momento, em busca do
título de Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Coelho afirma que “’Monumento
91 Lei que erige Olinda Monumento Nacional em 1980. Consta no processo 674-T-62, Vol. 3, pp. 183.
Série Tombamento-IPHAN
139
Nacional’ e ‘Patrimônio Cultural da Humanidade’ são títulos que distinguem e
notabilizam uma cidade – mesmo aquelas já consagradas como tais” (COELHO, 1982,
pp. 102). Ele diz que mais do que título honorífico, a condição de Monumento Nacional
traria os recursos e os caminhos para a restauração da velha cidade e “para a melhoria
das condições de vida do seu povo sofrido e abandonado à própria sorte, durante
tantos anos”.
O discurso do Major foi, desde o início, gatilho da memória cultural urbana, visto que
trazia à tona os eventos históricos vividos naquele lugar, o sangue dos heróis
derramado naquele chão. Vemos um apelo que se alinhava ao patriotismo e
nacionalismo da época, de modo a esperar do governo militar uma espécie de “defesa”
da cidade, quando é proposta a ideia de colocá-la na zona de segurança nacional.
Vemos o quanto alinhado ao regime estava o major Duarte, e podemos, então, refletir,
que Olinda Monumento Nacional é, portanto, traço desse patrimônio branco, cristão,
ordeiro, patriota e reconhecidamente filha do regime militar, que buscava, no
patrimônio, o monumento nacional, a ideia de “brasilidade” defendida pelo major.
Vemos que a ideia de Monumento Nacional está relacionada à criação possível da
identidade que se pretendia dentro dos anseios do regime militar. A memória oficial
nos discursos do IPHAN e do Congresso que a consagrou em 1980. O burgo Duartino,
a Marim dos Caetés, a martirizada Olinda, passava a ser, agora, Monumento Nacional
reconhecida dentro do regime que foi enxergado como “salvador da pátria” para a
salvaguarda de seu patrimônio.
140
6 A MEMÓRIA DE OLINDA REVELADA. CONSIDERAÇÕES FINAIS
[...]
E na janela do dia
Olinda erguida de dentro d’água.
(Renata Rosa em Janela do dia)
As análises documentais trouxeram à superfície da lembrança muitos traços de
Olinda, que são memória urbana, como sua relação paisagística com o mar. Como a
cidade que é erguida de dentro d’água. A Olinda que se vê desde o mar. Dos banhos
de Clarice no mar de Olinda, à Marim dos caetés, a “elevação junto ao mar” tem sua
composição entre o mar e as colinas ressaltada por Freyre. A paisagem marinha de
Parent, com “o oceano que aparece no fundo do quadro”. A orla marítima é linha
formadora da poligonal de tombamento, como citada pelos arquitetos.
A Olinda verde das fotografias que foram utilizadas nos estudos para o polígono de
tombamento (Anexos A e B). Quintais arborizados e coqueiros que anunciam sua
glória. “Com suas faldas e vertentes, suas praças, seus jardins e cercas conventuais,
verdejantes de árvores e coqueiros, a cidade ainda aparece, hoje, imersa e envolvida
em densa arborização que a enfeita e lhe confere graça excepcional” 92. O jardim de
Parent, recheado de obras primas.
A Olinda cristã e barroca. Como mostra a tabela de tombamentos anteriores ao
tombamento do conjunto, Olinda é, desde o início, representação do barroco no
Nordeste brasileiro. A memória barroca é a primeira força de memória que é legitimada
e ratificada até o tombamento do conjunto e mesmo até enquanto Monumento
Nacional. Como dito, as ordens religiosas ditam as linhas da memória de Olinda.
“Demarcado a partir das edificações religiosas que se foram construindo, e
acompanhando a topografia local, o arruamento antigo, que ainda se conserva, a
92 Proposta de tombamento do acervo urbanístico, paisagístico e arquitetônico da Cidade de Olinda -
PE. Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. 1, pp. 5, de 24 de
janeiro de 1967, RJ. Documento assinado pelo arquiteto Augusto da Silva Telles.
141
despeito dos acrescentamentos que se foram somando, é espontâneo[...]”93. Como
disse Miceli (1987, p. 44), o barroco foi ponto de partida para o que as políticas de
cultura delinearam enquanto “memória nacional”.
Dentro da construção de uma memória oficial da cidade, a partir do processo de
tombamento do IPHAN, encontramos uma Olinda esquecida, diante de “suas irmãs
de outros estados”. Reclama-se que tanto o tombamento quanto o título de
Monumento Nacional já deveriam ter sido concedidos, enquanto a cidade sofria,
martirizada, descaracterizações em sua forma devido tanto a causas naturais, como
o avanço do mar, as cheias do rio Beberibe e o deslizamento das colinas, quanto por
obras irregulares realizadas pelos chamados “inimigos da cultura”.
O processo de tombamento mostra a representação da memória da cidade,
construída em cada etapa, no tombamento em si, nos estudos da rerratificação do
polígono, no plano de desenvolvimento local integrado, no título de Monumento
Nacional, etc. porém, dentro deste recorte temporal explorado, a representação dessa
memória está relacionada à herança lusitana de sua construção, especificamente por
representar a arquitetura portuguesa que se “adaptou” aos trópicos, “com a
característica dos arruamentos dos povoados portugueses de origem medieval.”94 O
burgo Duartino é chamado de Portugal dos Trópicos e de Coimbra Brasileira. Ainda
que seja também a Marim dos Caetés e Tabajaras, nenhum traço indígena é
ressaltado nas reminiscências da cultura material que são, então, protegidas e
seladas sob as faculdades legais do Instituto do Patrimônio. Com isso, encontramos
muito mais a representação da Olinda portuguesa, colonial, barroca, cristã e branca
do que propriamente traços de outros grupos sociais que porventura tenham
amalgamado a sociedade representada nessa construção memorial. Uma
permanência nos modos de operar do IPHAN, que insiste em ser predominante,
apesar de importantes rupturas e ganhos, como aponta Marins (2016). Para ele,
93 Proposta de tombamento do acervo urbanístico, paisagístico e arquitetônico da Cidade de Olinda -
PE. Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. 1, pp. 5, de 24 de
janeiro de 1967, RJ. Documento assinado pelo arquiteto Augusto da Silva Telles.
94 Proposta de tombamento do acervo urbanístico, paisagístico e arquitetônico da Cidade de Olinda -
PE. Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. 1, pp. 5, de 24 de
janeiro de 1967, RJ. Documento assinado pelo arquiteto Augusto da Silva Telles.
142
Os traços de permanência do padrão elitista oriundo tanto das escolhas
realizadas quanto dos que escolhem, que Miceli chamou de “marca classista”
do IPHAN, da intensa hierarquização e da sub-representação dos grupos
étnicos e das práticas religiosas, bem como da canonização de uma certa
noção de mestiçagem – dimensões essas que serviram simultaneamente à
celebração e à opacidade de agentes formadores do Brasil (MARINS, 2016,
p. 12).
É justamente por ser a herança do projeto dos Modernistas, que as políticas de
preservação do IPHAN continuaram por tantos anos a perpetuar práticas de seleção
de memória baseadas num “atavismo exclusivo e excludente que é a marca da
trajetória federal de preservação no Brasil” (MARINS, 2016, p. 12). Quando vemos a
trajetória dos tombamentos dos bens culturais de Olinda desde 1938 até a culminância
do tombamento do conjunto urbanístico, paisagístico e arquitetônico, fica claro o
alinhamento dessas políticas de preservação do patrimônio com a ideia de um Brasil
cuja identidade se construía na supressão de grupos sociais desprivilegiados. Para
Miceli, “O reverso desse tesouro tão apreciado é a amnésia da experiência dos grupos
populares, das populações negras e dos povos indígenas, para citar apenas aqueles
referidos pelo projeto andradino” (MICELI, 1987, p. 44).
São também realçadas suas excepcionalidades históricas. No tombamento elas
aparecem no que se refere ao traçado urbano, que representa temporalidade e cultura
construtiva do período de colonização portuguesa das terras que viriam a ser o Brasil,
sendo “um dos nossos mais expressivos exemplos de cidade de plano informal”95,
que também “atestaria uma reminiscência da prática usada na Idade Média
Peninsular, a Mulçumana e a Cristã”96. No Monumento Nacional, essas
excepcionalidades aparecem na exaltação dos marcos históricos, os eventos, os
heróis, os marcos de início para o país e seu feitio de “brasilidade”. O burgo Duartino,
reconhecido como vila em 1537, é palco de muitos eventos históricos que chegam até
nós e até aqueles que pleitearam pelo título como memória histórica. Vital Duarte
chega a dizer que a importância de Olinda não está apenas na imponência de seus
95 Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. 1, pp. 15, de 14 de
janeiro de 1968, RJ. Documento assinado pelo arquiteto Paulo Ferreira Santos.
143
monumentos, mas na relação deles com os fatos ligados à “formação e
desenvolvimento da nacionalidade brasileira”96.
A análise do contexto político trouxe, sobretudo no discurso do major Duarte, uma
clareza sobre o alinhamento daqueles que buscavam a proteção do patrimônio com
os valores e intenções do Regime Militar. Tanto que a elevação à condição de
Monumento Nacional significaria, na prática, uma intervenção federal, colocando
Olinda na “zona de segurança nacional”. Esse nexo traz também a ideia de que esse
era o Brasil e a cara brasileira que se construía e que se pretendia na época, e que
Olinda era a joia representativa desse “fervor patriótico”, como disse o major.
Para Marins,
A canonização da arquitetura monumental, do barroco e da mestiçagem
como evidência do ethos nacional chegara à década de 1980 ainda plena de
vitalidade, assim como a herança autoritária e excludente das práticas de
eleição patrimonial, concentrada nos técnicos e na aparente neutralidade de
suas escolhas, derivadas sobretudo da descrição formalista e estilística dos
monumentos artísticos (MARINS, 2016, p. 11).
Olinda, ainda martirizada, foi exaltada em sua memória histórica e cultural, como a
fênix que se reconstruiu depois do incêndio dos holandeses, como a cidade onde
nasceu a educação (dado o Colégio dos Jesuítas, primeira instituição de ensino
primário do Brasil, como também os primeiros cursos jurídicos) e cultura (o nascimento
do Teatro no Brasil), de modo a significar um “mito de origem” para o desenvolvimento
da nação. O Portugal dos Trópicos que sincretiza a sacralidade da fé cristã em suas
igrejas, é também palco de profano carnaval.
As considerações sobre a memória trouxeram à luz a ideia do universo possível da
memória, que reside e se ancora em diversas mídias ou “lugares”. Trouxe também a
ideia desse “extrato oficial” da memória que se constrói politicamente, no caso de
Olinda, através das ações e políticas preservacionistas do IPHAN, e, por conseguinte,
nos trouxe o entendimento de que a memória é política e também responde a jogos e
interesses de poder. A medida em que se selecionaram determinados traços a serem
96 Processo protocolado como MEC 001549, enviado por Luiz Vital Duarte à Presidência da República
para requerer a elevação de Olinda à Monumento Nacional. Datado de 25 de setembro de 1972.
Processo 674-T-72, Vol. III, pp. 2-20. Série Tombamento, IPHAN.
144
lembrados, a partir de “critérios de seleção da memória e da identidade nacionais
construídos pelo IPHAN desde a década de 1930” (Marins, 2015, pp.15), também
entendemos que houveram traços de grupos sociais que foram excluídos dessa
construção memorial, levando ao esquecimento compulsório, tornando a memória
oficial, então, lacunar.
Revelar essas lacunas, ou a memória oficial “em negativo”, aquilo que ficou de fora e
os grupos não representados, requereria adentrar em bibliografias as mais diversas e
já existentes sobre a memória cultura urbana de Olinda e seus agentes não oficiais.
Nessa dissertação, que, como todo trabalho acadêmico tem data de início e fim, não
nos foi possível precisar ao leitor a riqueza da memória não oficial. Pode-se, no
entanto, anotar ausências importantes como o terreiro de pai Edu, no Alto da Sé,
também conhecido como Palácio de Iemanjá, que desde os anos 1950 constitui
importante centro de cultura de matriz africana, e mesmo igrejas coloniais que
representam herança não necessariamente ligadas à cristandade branca, como a
Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e a Igreja de Nossa Senhora
de Guadalupe, que não haviam tido seu tombamento enquanto monumentos, e são
somente comtempladas com o polígono de tombamento do conjunto urbano.
No extremo oposto da pirâmide social estavam as irmandades de negros e
pardos mestiços. As de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos eram
constituídas das matrizes, construindo posteriormente igreja própria. Por
volta de 1630, essa irmandade já existia em Olinda e, em meados do século,
em Recife. As atuais igrejas são, entretanto, reconstruções do século XVIII.
A primeira irmandade de pardos a se constituir em Pernambuco foi a de
Nossa Senhora de Guadalupe, em Olinda, que iniciou a construção de sua
igreja em 1626. (OLIVEIRA e RIBEIRO, 2015, p.48)
A memória cultural urbana que é toda a referência de mundo, aquilo que baliza nossa
percepção de herança cultural e pertencimento a um grupo social, é objeto de
construção política, e, por conseguinte, representativa de determinados jogos e
relações de poder. Sérgio Miceli (1987) diz que o patrimônio histórico e artístico,
dentro da trajetória de tombamentos do IPHAN, é o inventário feito à imagem e
semelhança das elites brasileiras. Dialogando com Miceli, mas refletindo a partir de
um levantamento atualizado quantitativamente e qualitativamente das seleções de
tombamento mais recentes do IPHAN, Marins aponta um importante caminho. Para
ele,
145
O peso da tradição, e sobretudo de uma herança conceitual simultaneamente
agregadora e segregadora, sintética e hierarquizadora, é parte constitutiva
dessa mesma trajetória de patrimonialização, o que certamente não pode ser
olvidado para um devir que seja pautado pelo equilíbrio dos agentes que
compõe o país (MARINS, 2016, p. 26).
Se a busca pelo equilíbrio fica como meta a ser alcançada pelo órgão, olhando para
atrás, particularmente para Olinda, pode-se dizer que a memória cultural urbana de
Olinda foi, então, revelada como construção de uma cidade martirizada e gloriosa,
cristã e verde, branca e barroca. Do tombamento ao Monumento, Olinda conta a
História Pátria, e grande é a forçada memória que nos chega como signo de cultura e
sob forma de cultura.
Olinda, afinal, é testemunho material dessa herança segregadora que forjou a nossa
“brasilidade”.
146
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152
APÊNDICE A - DOCUMENTOS
Foram consultadas duas séries documentais no arquivo central do IPHAN, o arquivo
Noronha Santos97, as séries Inventário e Tombamento. Todos os documentos
consultados constantes nos processos estão devidamente assinalados nas
respectivas notas de rodapé.
Processos de tombamento:
IPHAN. Processo nº 674-T-62. Seção de História. Tombamento do conjunto
urbanístico, paisagístico e arquitetônico de Olinda-PE. Volumes I, II, III, IV e Anexo I.
_______. Processo nº 70-T-38. Seção de História. Tombamento do conjunto
arquitetônico e urbanístico de Ouro Preto-MG. Volumes I e II.
97 Endereço temporário no Centro Empresarial Teleporto - Avenida Presidente Vargas, 3131, sala 1404
- Cidade Nova – Rio de Janeiro/RJ.
153
ANEXO A - IMAGEM 7
Foto Panorâmica tirada de um ponto próximo à fronteira da Sé, onde se veem: em primeiro plano, telhados das casas da Ladeira de São Francisco; em segundo plano, ao centro: a Igreja de N.
Senhora do Carmo, à direita, o Mosteiro e Igreja de São Bento, a Igreja de São Pedro; e aos fundos, Recife. Fonte: Série Inventário, Pernambuco, Cx. 0322. Arquivo Noronha Santos-IPHAN
154
ANEXO B - IMAGEM 8
Desenho, em linha tracejada, da Poligonal de Tombamento proposta pelos arquitetos citados. Processo nº 674-T-62. Fonte: Arquivo Noronha Santos - IPHAN