universidade federal de sÃopaulo escola de filosofia
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃOPAULO
ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DA ARTE
CRISTIANO ALEXANDRIA DE OLIVEIRA
A EFICÁCIA DA IMAGEM EM GEORGES DIDI-HUBERMAN
GUARULHOS
2016
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CRISTIANO ALEXANDRIA DE OLIVEIRA
A EFICÁCIA DA IMAGEM EM GEORGES DIDI-HUBERMAN
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em História da Arte
Universidade Federal de São Paulo
Área de concentração: História da Arte
Orientação: Prof. Dr. Osvaldo Fontes Filho
GUARULHOS
2016
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Oliveira, Cristiano Alexandria de.
A eficácia da imagem em Georges Didi-Huberman /
Cristiano Alexandria de Oliveira. Guarulhos, 2016.
164p.
Dissertação (Mestrado em História da Arte) –
Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, 2016.
Orientação: Prof. Dr. Osvaldo Fontes Filho.
1. Imagem (Filosofia). 2. História da Arte (teoria).
3. Teoria da Arte. 4. Crítica de Arte. 5. Didi-
Huberman. I. Orientador. II. Título.
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Cristiano ALEXANDRIA DE Oliveira
A EFICÁCIA DA IMAGEM EM GEORGES DIDI-HUBERMAN
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em História da Arte
Universidade Federal de São Paulo
Área de concentração: História da Arte
Aprovação: ____/____/________
Prof. Dr. Osvaldo Fontes Filho
Universidade Federal de São Paulo
Profª. Drª. Rita Luciana Berti Bredariolli
Universidade Estadual Paulista
Profª. Drª. Lilian Santiago Ramos
Universidade Federal de São Paulo
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AGRADECIMENTOS
Esta pesquisa foi elaborada, de certo modo, solitariamente. Estive durante muito
tempo amparado apenas pelos livros de Georges Didi-Huberman – companheiros de noites
em claro, objetos de incompreensões, de dúvidas. O estágio atual das comunicações permite-
nos que o contato com o orientador ocorra mais à distância do que presencialmente. Se devo
reconhecer, ao cabo deste trabalho, que ela foi elaborada a duas mãos, ainda que em meio a
infindáveis trocas de e-mails, admito, também, que certa dose de solidão parece ser
sintomática da vida acadêmica contemporânea.
Agradeço a meu orientador, Prof. Dr. Osvaldo Fontes Filho, pela dedicação em todos
esses anos de convívio, iniciados na graduação, estendidos pela pesquisa em nível de
Iniciação Científica e que agora se encerram com o mestrado. Mais do que todo o aprendizado
acadêmico (protocolos de pesquisa, rigor na escrita, esmero de um ourives com o sentido das
palavras), devo a ele um olhar reiterado para as sistemáticas da instituição universitária, para
as exigências do trabalho intelectual – e para a vida. Vi-o tentando superar as muitas tragédias
que a vida sorrateiramente lhe reservou, jamais deixando abalar o empenho com que verificou
cada vírgula de meus textos. Devo agradecê-lo, enfim, pela paciência com que articulou meu
amadurecimento como pesquisador e pela complacência após não concluído apenas em parte
tal processo.
Em muitas ocasiões, os olhos e mãos de meu orientador foram os de sua esposa, Profª.
Drª. Leila de Aguiar Costa, docente do departamento do Letras da Unifesp. Jamais poderei
agradecer tudo o que significou para essa dissertação seu trabalho nos bastidores. Seus
conselhos também me foram muito caros, e me sinto honrado em tê-los recebido. Guardo-os
com carinho como sábios ensinamentos para o futuro.
Agradeço ternamente às professoras doutoras Rita Bredariolli e Lilian Santiago Ramos
pela leitura atenta do projeto apresentado na qualificação e pelas orientações de grande valor,
oferecidas com generosidade, transparência e bom humor. Apesar do breve tempo que
tivemos para a discussão em torno de minha redação, suas instruções corrigiram-me alguns
equívocos em momento crucial e me forneceram ainda enriquecedoras alternativas ao
tratamento do tema da pesquisa. Foi uma honra ter sido avaliado por docentes tão
qualificadas, sensíveis e fraternais. Espero ter correspondido às suas expectativas.
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Sou grato a minha esposa, Darine Macedo de Oliveira, pela doçura e constante atenção
com que me amparou na longa e, por vezes, cansativa empreitada de uma pesquisa de
mestrado. Sem ela, sou metade de mim.
Agradeço, enfim, à Universidade Federal de São Paulo por abrir as fascinantes
portasdo conhecimento para este filho de retirantes nordestinos.
Contudo, detenho-me: como o pobre iletrado da parábola de Kafka (OProcesso), estou
diante dessas portas como diante da Lei. Luzes me cegam. Bastaria entrar?Aguardo ainda...
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A Osvaldo,
Por seus
olhos.
A Darine,
Por seu
olhar.
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―Os restos endésherénce da História fazem ou cristalizam-se em
imagens que manifestam seu potencial utópico nas suas latências. A
origem do sentido das imagens não é mais situada a partir das datações
herdadas da tradição historiográfica, mas encontrada nos interstícios e
nas dobrasde seu surgimento não-prescritível, imponderável, verdadeiro
e eventual.[...] Torna-se claro que a tarefa da História da Arte, ao
enriquecer-se num molde epistemológico aproximando o trabalho do
historiador e do filósofo do trabalho do artista, submete a História a
uma implosão fascinante. Eis, decerta maneira, uma economia da
imagem virtual e inaudita. Nessa economia,a História acorda de seu
sono racional, plena de virtualidades. Aliás, em última instância, o
empreendimento didi-hubermanianoé político. Ele multiplicaentre si os
coeficientes seguintes: de um lado,sua argumentação arranca o
monopólio do virtual aos adeptos ingênuos ou cínicos da virtualidade
críptica proporcionada pelas novas tecnologias e a gestão midiática do
simulacro [...]; de outro lado, ele desocupa o terreno ocupado pela
racionalidade e o positivismo de uma historiografia da arte tradicional
que peca em traçar os perfis do passado a partir de postulados não-
dialéticos e pouco suscetíveis de folheá-lo na sua riqueza heterogênea,
múltipla e nômade. Eis o poder utópico de uma História da Arte que se
torna uma filosofia das imagens‖.
(Stéphane Huchet. Passos e Caminhos de uma Teoria da Arte. Prefácio
à edição brasileira de Oquevemos,oquenosolha. São Paulo: Ed. 34,
1998, p.23)
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RESUMO
Esta pesquisa analisa a obra do historiador e filósofo da arte Georges Didi-Huberman, tendo
como foco de interesse sua noção de eficácia da imagem. Longe de entender eficácia como o
alcance de objetivos, o que ele designa por esse termo engloba renovada ontologia da imagem
e severa crítica de alguns postulados epistemológicos da história da arte. Nesse sentido,
abrem-se diversas vias de leitura de uma obra já caracterizada por convocar rizomática
antropologia do visual. Optamos por apresentar três linhas de trabalho na tentativa de
explicitar, sem intenção de esgotá-lo, o tema da eficácia na massa argumentativa de nosso
autor: fenomenológica (ao percorrer os detalhes da superfície visível em busca de
inquietações, dúvidas, limites e contradições do tecido representativo, destacando a relevância
da processualidade inerente ás visualidades); epistemológica (ao analisar a relação entre
imagem e conhecimento, ao procurar revelar que a eficácia de uma imagem excede os limites
de qualquer sistematização de seu saber); política (ao investigar a relação entre imagem e as
formas de poder, com particular interesse por imagens que denunciam barbáries, flagram
sobrevivências e dialogam com a memória, o testemunho e a crítica historiográfica). Isto
posto, observa-se a eficácia da imagem vinculada a sua capacidade de manter contradições em
suspenso, de se articular num equilíbrio frágil entre construção e desconstrução, abertura e
fechamento, superfície e profundidade, detalhe e completude, razão e sensação.
Palavras-chave: Imagem. História da Arte. Teoria da Arte. Didi-Huberman.
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ABSTRACT
This research analyzes the work of the historian and philosopher Georges Didi-Huberman,
focusing on his notion of image effectiveness. Far from understanding effectiveness as the
attainment of goals, what he designates by this term encompasses a renewed ontology of the
image and a severe criticism of some epistemological postulates in the history of art. In this
sense, there are several ways of reading a work already characterized by its rhizomatic
anthropology of the visual. We chose to present three lines of work in an attempt to explain,
without intending to exhaust it, the theme of effectiveness in the argumentative mass of our
author: an phenomenological issue (by traversing the details of the visible surface in search of
concerns, doubts, limits and contradictions of the Representative fabric, highlighting the
relevance of the procedural inherent to visualities); an epistemological issue (by analyzing the
relation between image and knowledge, trying to reveal that the effectiveness of an image
exceeds the limits of any systematization of its knowledge); a political issue, by investigating
the relation between image and forms of power, with particular interest in images that
denounce barbarism, capture survivances and dialogue with memory, testimony and
historiographical criticism). The effectiveness of the image is linked to its ability to maintain
suspended contradictions, to articulate in a fragile balance construction and deconstruction,
opening and closing, surface and depth, detail and completeness, reason and sensation.
Keywords: Image. History of Art. Art Theory. Didi-Huberman.
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LISTADEIMAGENS
Figura1: Victor Hugo, Madestinée, 1857 23
Figura2: Victor Hugo, Veleironatempestade [detalhe], c. 1864 23
Figura3: Sarkis Zabunyan, Aucommencent,L’apparition
[fotogramas], 2005 28
Figura4: Cela do convento de São Marco: o afresco e a janela 29
Figura5: Robert Morris, PinePortal, 1961 39
Figura6: Albrecht Dürer, AMortedeOrfeu, 1494 41
Figura7: Man Ray, ExplosanteFixe, 1934 41
Figura8: Israel Galván, cena do espetáculo LaCurva 41
Figura9: Alfred Stieglitz, Equivalent, 1930 41
Figura10: Fotogramas deLavienouvelle, Philippe Grandrieux, 2002 45
Figura11: Fotograma de WhiteEpilepsy, Philippe Grandrieux, 2012 49
Figura12a: A. Dürer, Ohomemdador, 1509-10;
Figura12b: Detalhe de fotografia anônima tirada em Auschwitz 50
Figura13: Tony Smith ,CuboNegro, 1962 59
Figura14: Donatello, BustodeNiccolòdaUzzano, c. 1432 78
Figura15: Página do Arbeitsjournal de Brecht 94
Figura16: J.-L. Godard, Videogramas de Histoire(s)ducinéma 98
Figura17: LaMadonnadelleOmbre [detalhe dos painéis inferiores],
1438 -1450 110
Figura18: Pascal Convert, Lamento, 2000 126
Figura19: Georges Mérillon, Nagafc,Veillée
funèbreauKosovo, 29 janeiro 1990 127
Figura20: Hocine Zaourar , MadonadeBentalha, 1997 128
Figura21: Aby Warburg, AtlasMnemosyne, prancha n° 42 129
Figura22: Cléo Jurino (informante indígena de Warburg).
Representaçãocosmológicacomacobra-relâmpago [detalhe], 1895 133
Figura23:Esfinge, Gizé, Egito, 1997 134
Figura24: Fotografias tiradas clandestinamente em agosto
de 1944 por membros do Sonderkommando de Auschwitz-Birkenau 138
Figura25: Fotografias em Didi-Huberman, Écorces, Paris: Minuit, 2011 144
Figura26: Éli Lotar, AuxabattoirsdelaVillette, 1929 147
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 11
I
EFICÁCIASINTOMALDAIMAGEM
FORMA, MATÉRIA E PROCESSUALIDADE: A IMAGEM
ANTES DA REPRESENTAÇÃO 22
UM ACONTECIMENTO DE IMAGEM 29
SINTOMA: IMAGEM-LIMITE 36
UM COLORIDO-LIMITE 42
HEURISTICA DA FIGURA E DESFIGURAÇÕES 45
AURA E DISTÂNCIA 51
IMAGEM DIALÉTICA 61
IMAGEM COMO GENEALOGIA DA SEMELHANÇA 65
A SEMELHANÇA COMO IDEOLOGIA 69
IMAGEM ABERTA, IMAGEM HISTÉRICA 80
II
EFICÁCIAEPISTEMOLÓGICADAIMAGEM
A FORMA-ENSAIO: ESCRITA DO CONHECIMENTO POR IMAGENS 87
A FORMA-ATLAS: CONHECIMENTO POR MONTAGEM 91
MOVIMENTO DAS IMAGENS: SABER DOS ESPÍRITOS
E DOS FANTASMAS 99
ANACRONISMO E HISTORICIDADE: TEMPO DAS IMAGENS 108
ANACRONISMO E MEMÓRIA: A CONTRAPELO DA
HISTÓRIA DA ARTE 114
III
EFICÁCIAPOLÍTICADAIMAGEM
EFICÁCIA DA IMAGEM-COMBATE 118
IMAGEM, EVENTO, DURAÇÃO 125
IMAGEM, DELÍRIO POLÍTICO E GUERRA PSÍQUICA 131
IMAGENS DA SOBREVIVÊNCIA 134
A TOMADA DE POSIÇÃO DAS IMAGENS 138
CONCLUSÃO 150
INDICEBIBLIOGRÁFICO 160
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INTRODUÇÃO
―A história da arte julgava-se uma disciplina
autônoma, mas se tornou uma disciplina positivista
que esquece os seus posicionamentos filosóficos‖;
―O esquema habitual da história da arte, de um
conformismo total, não funciona‖;
―O historiador se obriga com frequência a dizer
apenas banalidades verificáveis.‖
(Georges Didi-Huberman, DiantedaImagem) « EFFICACE. adj. des deux genres Qui produit son effet.
Ceremèdeestefficacecontrelespoisons.Moyenefficace.Discoursefficace.LaparoledeDieuesteffic
ace.
En Théologie, Grâceefficace, La grâce qui a toujours son effet ».
(Dictionnairedel’AcadémieFrançaise, 6ª edição, 1832-35)
Eficácia estética. ―Trata-se de uma eficácia paradoxal: é a eficácia da própria separação, da
descontinuidade entre as formas sensíveis da produção artística e as formas sensíveis através
das quais os espectadores, os leitores ou os ouvintes se apropriam desta.‖
(Jacques Rancière, OEspectadoremancipado, p.56).
Se no mundo clássico a ideia de eficácia está irremediavelmente ligada a um efeito, no
mundo contemporâneo há que se admitir que, pelo menos nos domínios do estético,
defrontamo-nos com atos e fatos que a um tempo vinculam e desvinculam o visível e sua
significação, a palavra e seu efeito, que produzem e frustram expectativas.
Perguntemos, pois, de imediato: a imagem mais eficaz seria aquela que admite ser
plenamente compreendida? No caso das imagens de arte, tratar-se-ia da imagem mais bela, a
que induz reflexões mais densas, a que melhor responde às expectativas de seu espectador?
Por força do que à frente será investigado, bem se poderá adiantar que haveria eficácia na
imagem que se abre a múltiplas interpretações, que leva a questionar os paradigmas estéticos
convencionais justamente porque falha, vacila, titubeia em suas indicialidades e, assim,
confunde o olhar do observador.
Como explicar noção tão controversa de eficácia? Talvez ela se justifique à luz de
uma obra como aquela de Georges Didi-Huberman onde são procuradas, num esforço de
arqueologia crítica da História da Arte, por renovadas questões, com o fito de abertura,
esgarçamento, das tessituras usuais da historiografia. De fato, abre-se ali o campo de pesquisa
das imagens para rupturas epistemológicas de peso. Nota-se, nesse espaço aberto, devassado
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mesmo, que não há precedentes nem julgamentos. Não há verdades absolutas que
possamrecortar nas imagens uma precisa semioticidade. A renovação de suas questões
(deentendimento, de processualidade) entende ser a justa posição a se adotar diante de um
velho objeto que se apresenta fantasmaticamente, deslocando-se entre as passagens do tempo,
entre os interstícios do imaginário, entre as malhas do saber.
Talvez não seja sem interesse partirmos de uma irredutibilidade de fundo em nosso
autor:
Quando somos desarmados por uma imagem, nos é oferecida uma
experiência de abertura: imprevisível (irredutível a um programa de
pesquisa), inquietante (irredutível a um saber ou a um sistema), e
perturbadora (irredutível a qualquer forma de harmonia entre as nossas
faculdades). A experiência pede, e isso é claro, para ser suportada,
contextualizada, historicizada, teorizada. Mas sei bem que, em última
análise, a imagem permanecerá irredutível diante de mim: nem o saber
(como pensam muitos historiadores) nem o conceito (como pensam muitos
filósofos) a apreenderão, a subsumirão, a resolverão ou redimirão. A imagem
é uma passante (DIDI-HUBERMAN in POTTE-BONNEVILLE &
ZAOUI, 2006)
Discute Didi-Huberman ao mesmo tempo da experiência corriqueira,
repetível,recorrente (―quando somos desarmados‖, isto é, um desarme que ocorre
normalmente, com frequência) e da experiência única e pessoal, que se dá de modo irredutível
(inteira, total) e não permanente (―passante‖). O historiador-filósofo considera a imagem
unindo o entendimento do empirismo moderno acerca de experiência (aquele calcado em
observação metódica, demorada, a tratar como um ―experimento‖ seu objeto de estudo, a
hipotecar seus mecanismos de funcionamento) com o entendimento oriundo da vertente
merleau-pontyana da fenomenologia (a entender toda experiência como uma cisão no Ser
motivada por um fenômeno). Entre a imagem como hábito ou objeto e a imagem como
instante ou fenômeno, há de se considerar complexas articulações entre memória e
esquecimento, repetição e acidente, reconhecimento e conhecimento.
Filho de pintor, Didi-Huberman sempre se disse próximo antes dos processos e dos
atos geradores de uma imagem do que de suas versões prontas e expostas em museus.
Introduzido ao mundo das imagens pelo ponto de vista dos artistas e dos ―documentos‖ do
ateliê, estas impressões sobre o funcionamento das imagens nunca lhe deixaram, de modo que
se entrecruzam em seus textos as figuras do espectador (do olhar descompromissado diante da
imagem) e do documentarista (do olhar traficado pelas informações). Razão porque, em dado
momento ele assume:
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Acredito que todo o meu trabalho é guiado por uma intuição fundamental
sobre a imagem como ato e como processo e não como um mero objeto. É
por isso que insisti tanto nos últimos anos sobre a questão do olhar, daí o
meu uso de descrições fenomenológicas "abertas", contra a leitura
iconográfica e contra o deciframento de uma suposta "substância" da
imagem praticada por muitos historiadores da arte. Diantedasimagens
devemos convocar verbos para dizer o que elas fazem, o que elas nos fazem,
não apenas adjetivos e substantivos para acreditar dizer o que são... É preciso
considerar a imagem como imaginação, isto é, como processo de formação
de imagens (DIDI-HUBERMAN, 2010b, p. 52; grifos do Autor).
Pensar a imagem como processo e como documento fez com que o confortávelestatuto
do historiador da arte ―profissional‖ em ambiente universitário – o simbologista especializado
em leitura iconológica, que se contenta em determinar para cada imagem uma qualificação de
estilo e de técnica – não se prestasse às aspirações intelectuais de nosso autor. Seu olhar
reconhece um ―ritmo sintomático pelo qual as imagens surgem no mundo simbólico para o
atravessarem e o transformarem de um modo que não pode ser inteiramente explicado por
meio de categorias iconográficas e históricas tradicionais‖ (DIDI-HUBERMAN, 2011a, p.26).
Tal evidência, de extração warburguiana, leva-o a deslegitimar o trato com as ―fontes
verificáveis‖ e as ―tradições visíveis‖, em favor do enfrentamento, necessariamente errático,
de uma ―trama complexa de trajetos indiretos e de transmissões invisíveis, de acontecimentos
inesperados e de latências da memória‖. Quiçá resultando numa impossibilidade de diálogo
com os historiadores, essa postura abre espaço para trocas mais frutíferas entre filósofos,
psicanalistas e antropólogos. De modo controverso, ao tentar abrir a história da arte para
outras possibilidades, como para o que concerne aos rigores do pensamento filosófico, Didi-
Huberman confronta seu fechamento teórico e, eventualmente, o fechamento do corpo social
dos historiadores da arte como classe profissional.
Cada imagem singular é assim instada a desempenhar o papel de objeto de uma
―ciência sem nome‖, disciplina nada ortodoxa, de evidente fundo warburguiano, que Didi-
Huberman procura aproveitar para a história da arte em seus fundamentos críticos, em seu
método insensato, e em sua constante movência do olhar entre os contratempos da história,
nos intervalos entre as imagens. Razão porque é lembrado como ―a obra warburguiana pode
ser lida como um texto profético e, mais exatamente, como a profecia de um saberporvir‖
(DIDI-HUBERMAN, 2013b, p. 29), uma ciência ―ainda não fundada‖, como diria Agamben,
cujo valor perturbador consiste em investir nos retornos, nas sobrevivências (Nachleben) das
imagens: em suma, em seus sintomas, detalhes que concentram formas e sentidos em estado
de latência, como fórmulas à espera de materialização (―fórmulas patológicas‖, nos termos de
Warburg, Pathosformeln). Como toda imagem possui os predicados para se exercer diante
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doolhar como uma―singularidade fecunda‖, importa recebê-la a partir de uma ciência
insana,incomum, aberta, capaz de análise ―interminável‖, ―sem limites‖ (2013b, p. 42).
Buscando tornar factível para o trabalho do historiador da arte tal ciência inominada,
Didi-Huberman verifica os ganhos epistemológicos do envolvimento preferencial com
singularidades, na tentativa de evitar toda análise reducionista ou definitiva do sempre aberto
e expansivo mundo das imagens. As singularidades de cada imagem mostram-lhe que análises
de conjunto (estilos, movimentos, o conceito de arte, de beleza) facilmente são traídas por um
olhar mais demorado – ainda que preconizador de uma ―atenção flutuante‖. Deste modo,
embora se possa considerar que as singularidades se reportam ao todo das imagens, o que
tentadoramente poderia conduzir o pensamento das imagens para a constituição de categorias
e classificações estético-visuais, Didi-Huberman centra-se apenas na discussão em torno das
particularidades. Razão porque seus textos evitam agenciar verdades universais. O
conhecimento especulativo cede lugar ali a uma espécie de ―fábula filosófica‖, uma
montagem heterodoxa de argumentações filosóficas, excertos literários, estratégias
heurísticas, descrições, comentários parafrásticos. Seu método pessoal de trabalho não deixa
de ser suigeneris: fichas escritas a mão, pacientemente associadas, como um quebra-cabeça de
anotações, sobre a mesa de trabalho. A mobilidade dessa documentação, contendo trechos de
texto, imagens e anotações pessoais, vem trazer para a sua construção textual um ritmo
caleidoscópico. Trata-se, portanto, de arborescências de saberes que se nutrem da ensaística
benjaminiana assim como da iconologia dos intervalos de Aby Warburg.
Fato é que em seus percursos Didi-Huberman procura não ceder ao tempo uniforme,
retilíneo, cronometrado, da modernidade e visa o tempo heterogêneo, salpicado de
anacronismos, da memória. Pois a memória, ou melhor a reminiscência, como bem
demonstrou a metapsicanálise, não é fluida: ela preserva informações que não se conectam
logicamente, mas que referem, quase sempre, o caos das experiências sensoriais, o caos do
pathos. No ato da reminiscência, resgatam-se, aos saltos, fragmentos de imagens, por vezes
fora de seu tempo próprio. Esse ato, Didi-Huberman o refere no ―momento reminiscente‖, que
retoma de Warburg, ―um presente em que as sobrevivências se agitam, atuam‖, presente
anacrônico, pois que ―intenso, intrusivo‖, tornado complexo pelas sedimentações que abriga
(DIDI-HUBERMAN, 2013b, p. 275). O trabalho do historiador passa, pois, a ser regido pela
temporalidade fluida da imagem. Há imagens que se aprofundam no inconsciente e que são
resgatadas apenas pelos desvios e distorções próprios do trabalho do sintoma, categoria crítica
da psicanálise adaptada por Didi-Huberman para a história da arte. O tempo da memória é o
tempo do sintoma, com suas rupturas de sentido, com suas dissociações entre forma e
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conteúdo, com suas latências. Incalculável, essa forma de tempo não tolera datação.
Oraavança, ora retrocede: fluxo anadiomênico no qual a imagem surge, advém, cintila, com a
fugacidade de um ato falho.
Os tempos da imagem, do olhar e da escrita parecem possuir ritmos diferentes na obra
de nosso autor. O olhar é com frequência mais dinâmico e imediato do que a escrita, mas não
está preocupado com o saber em sua hegemonia; a escrita é lenta, pausada, entrecortada por
outras escritas, outros textos, pois se preocupa com aquilo que indicia, criticando-se
incessantemente; para além disso há o tempo da imagem, sua aura perdida ou redescoberta,
tempo de tensões e polarizações, tempo de necessária (re-)inquietação, de aparecimentos e de
esquivas, de sobrevivências. Assim ritmada, a reflexão busca por novas formas de escrever e
de pensar a imagem que considerem as modalidades flutuantes do olhar.
Razão porque o que aqui se lerá ordena-se em unidades textuais ocupadas em
percorrer os interstícios da escrita didi-hubermaniana, despindo-se tanto quanto possível de
qualquer roteirização hermética em face mesmo da exigência aberta pelo próprio objeto de
nosso estudo. Buscar-se-á, pois, pensar os modos como uma imagem, objeto tão instável em
sua forma e significado, pode se mostrar eficaz. Pensar na eficácia da imagem é pensar,
primeiramente, nos modos como essa imagem é apresentada. É pensar na complexa trama de
sentidos e figuras de linguagem que o vocábulo ―imagem‖ articula – desde a imago latina à
mancha da abstração moderna -, além de como ele exige que se abra o texto para novas
possibilidades de escrita, novos ritmos de leitura e construções argumentativas. É conjecturar,
em sequência, sobre os modos de trabalho dessa imagem, sobre a arborescência ali de
entendimentos, interpretações, pontos de vista, leituras, de quando em quando contraditórias,
conflitantes, incompatíveis. Importará, indiretamente, se perguntar pela validade da noção de
eficácia aplicada às imagens. O que significa dizer que uma imagem é eficaz, uma vez que ela
não se presta apenas para dar a ler, a reconhecer, ou a relembrar?
Ao sabor de tais interrogações, a primeira parte desta dissertação procura entender
como Didi-Huberman aproxima o detalhe pictórico dosintoma psicanalítico, modo de
reexaminar o estatuto epistemológico da leitura iconológica panofskyana. Grosso modo, ele
realiza uma leitura de dentro para fora da imagem, o que inverte, de certa forma, o sentido da
leitura iconológica, acostumada a percorrer superficialmente a extensão da imagem,
fragmentando-a em trechos significativos. Didi-Huberman estuda-a em sua profundidade, em
suas aberturas, suas rasgaduras, e confronta a imagem em sua imanência, em sua
processualidade – é de seu interior em mutação que arborescem sentidos e possibilidades de
leitura. Nesse tocante, importa retomar sua análise da relação entre matéria e ideia
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naformação da imagem. Desse ponto emerge a questão da processualidade, a série de ações
ouoperações que ocorrem no processo de formação das imagens (origem, criação,
desenvolvimento, execução) até que ela efetivamente apareça para o olhar, fenomenalidade
que bem se poderia denominar um ―acontecimento- imagem‖.
Num primeiro momento, seria possível afirmar que a imagem é eficaz porque aparece
sintomaticamente, a exigir outra forma de legibilidade – a legibilidade do que aparece como
sintoma, antes do reconhecimento, antes da representação, como signo sem significado.
Haverá, aqui, com que ir ter com suigeneris anatomia, dado que, no corpo humano, a pele
recobre a carne e, de certa forma, a faz desaparecer, pois não a revela abertamente, mas
expele fluidos vindos de glândulas internas, e se ruboriza com sangue, que percorre a carne;
de maneira que a pele não é apenas limite, mas interstício, pois não escancara a carne, antes
lhe fornece seus indícios, sua posição, condição, estado. O mesmo ocorre com a superfície da
imagem, sugere Didi-Huberman: ela recobre os sentidos, deles mostra apenas alguns signos;
ela estabelece trocas entre o interior e o exterior, na forma de cores e pigmentos; é zona de
trocas entre olhante e olhado, entremeio. Esse limite tende a funcionar ao mesmo tempo como
verdade absoluta e alteridade absoluta. Não por acaso, Didi-Huberman designa como
―colorido-limite‖ o matiz projetado na superfície da pintura, premeditado, mas jamais
realizado, como se a pintura, ao ser pensada como um corpo, pudesse apresentar sintomas de
sua própria deriva. Entendido, diferentemente do signo, como um significante que se
manifesta na superfície da imagem em completa dissociação com qualquer significado, o
sintoma é o ponto de encontro entre a superfície da imagem e a pele do corpo, entre a
profundidade de sentidos e a profundidade da carne. Ao escavar o humano, penetrando-lhe as
tramas de nervos e tecidos, a imagem dá voz à carne, produz o encarnado, que visa ser
duplamente notável: por aquilo que lhe subjaz (veias e fibrilas entrelaçadas) e pelo que lhe
transparece.
O sintoma, porém, possui uma estrutura contraditória: ao mesmo tempo em que a
partir dele muitos significados podem surgir, ele interrompe ou desestabiliza significados já
existentes. De modo que ele exige um questionamento sobre o próprio conhecimento advindo
das imagens, assim como protocolos para desvelar sua proliferação de sentidos. Em vista
disso, na segunda parte da dissertação, são explicitados alguns eixos de discussão para os
desdobramentos teóricos de uma noção de eficácia da imagem que não passe pelo produzir de
saberes, mas pelo produzir de dúvidas e inquietações no sujeito do olhar. O conhecimento
pela imagem segundo Didi-Huberman não se dá mais, como é corrente supor na historiografia
de filiação panofskyana, por associação com as textualidades, mas por meio de
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umprocedimento móvel, adaptativo, próximo de uma poética visual: um conhecimento
pormontagem, em ligações que se dão num ―inconsciente do tempo‖. Diferentemente da
história da arte ortodoxa, essa estruturação sintomática da pesquisa não teme anacronismos. A
escrita ensaística e o atlas de imagens tornam-se, pois, métodos privilegiados de desvelamento
das formas heterogêneas, por vezes contraditórias, de eficácia das imagens.
A bem entender seu viés revisionista, as reflexões que aqui serão percorridas apontam
para uma forma de fazer história da arte contrária ao elencar das categorias estilísticas
tradicionais, e procuram ampliar o campo fenomênico de estudo das imagens acrescentando
crítica perniciosa de sua eficácia simbólica. Ao considerar a imagem como símbolo psíquico e
cultural, mas ao mesmo tempo como ato social e corporal, a Kulturwissenschaft (ciência da
cultura) de Warburg seduziu Didi-Huberman por seus questionamentos complexos, abertos,
capazes de refundar a história da arte como verdadeira antropologia histórica. Nessa forma de
abordagem da historicidade das formas visuais, a imagem não se dissocia do agir global de
uma sociedade; do saber próprio de uma época, de suas crenças e angústias, o que abre a
história da arte para a perspectiva de uma ―eficácia mágica‖ das imagens, eficácia de caráter
litúrgico, jurídico ou político. Assim vinculados seus multisseculares vieses, torna-se possível
entender a ―força mitopoética‖ das imagens, seu poder de convencimento e de
enlouquecimento, de sobrevivência e de sobredeterminação das condições históricas,
permanecendo como fantasmas numa dinâmica de sedimentações antropológicas (DIDI-
HUBERMAN, 2013b, p. 35-41).
Por fim, na terceira parte desta dissertação, observam-se as imagens em suas
constelações. Razão porque o estudo parte da imanência em direção à transcendência por
assim dizer, ou seja, à circulação da imagem, modo de se desmontar e se remontar em âmbito
político. As questões iniciais continuam sobre a mesa, contudo sob nova configuração: o tema
do "branco" no afresco de Fra Angelico ou do "nada" que resta da pintura do Frenhofer de
Balzac, lugares iniciais do périplo didi-hubermaniano, vêm se associar às ruínas de
Auschwitz, onde nada resta a ver, mas tudo a imaginar. Com a reevocação da metáfora
pasoliniana dos vagalumes, imagem de inquietação política, Didi-Huberman recupera em
dado momento a temática do sintoma enquanto linguagem estruturada do inconsciente
coletivo. Assim, essa parte de nosso texto procede a leituras na forma de relampejos, ensaios,
comentários pontuais, reveladores do potencial inesgotável de variação de formas e usos das
imagens, e por isso mesmo reveladores de uma conotação política da noção de eficácia das
imagens.
18
Em suas processualidades, a imagem de algum modo reverbera sentidos e
sentimentosda Sociedade e da História. Enquanto vasculhamos as imagens com nossos olhos,
em retorno elas nos tocam, reviram nossos medos, repulsas, horrores, ou acendem nossos
prazeres e perversões. Essa tensão entre nós e as imagens aponta inequivocamente para uma
dimensão política da experiência do olhar. Ao tomarem contato com tudo o que há de mais
profano, abjeto ou sublime, as imagens testemunham, inquietas, cenas de sua própria des-
figuração. Silenciosamente, porém, agenciam resistências. Como mostrou Benjamin,
referência primeira de nosso autor, a história da arte deveria permitir às imagens evidenciar
não só o seu traço de cultura, mas também o seu sentido de barbárie. Importaria, pois, olhá-las
mais criticamente em suas relações, em suas aproximações e distanciamentos, no modo como
povoam o imaginário ou ardem quando de uma queima de arquivos.
Por outro lado, o saber veiculado pelas imagens não deveria ser destinado à formação
de qualquer teoria, mesmo social ou política, pois não é próprio a elas dizerem a verdade. À
análise das imagens exige-se um saber aberto, uma gaia ciência, capaz de reinventar o próprio
objeto que estuda. As imagens não se conformam a erudições, pois admitem digressões,
derivas/esquivas dos sentidos. O que lhes cabe, deste modo, é constituírem possibilidades de
conhecimento, virtualidades, potências. Assim, cada imagem aponta para o que seria da
ordem de uma transversalidade, de uma porosidade do olhar. Ao olhar é devido, ainda, o
benefício do tato. Quando as olhamos, as imagens nos tocam, em nossa corporeidade, modo
de nosso autor assumir a derrocada de ancestral tabu do contato, onolimetangere fonte de
nossa figuração sobrecodificada. As experiências do olhar e do toque são, diante da imagem,
potencializadas. Assim, o que torna eficaz a imagem, torna inquieta nossa experiência
sensível. Explodem, com isso, visões diferentes, pontos de vista. Cada imagem produz, em
culturas e épocas diferentes, distintos usos e interpretações. A complexidade desse fenômeno
assume, inevitavelmente, uma dimensão antropológica. A imagem escava o humano, rasga o
tempo, enquanto marca e ressignifica a memória.
A eficácia das imagens não refere uma simples transmissão de saberes, mas imbróglios
de saberes e de não-saberes. Isso exige modo diverso de olhá-las: por uma atenção flutuante
que, no momento de concluir, demora-se ainda, e tanto, que abre mão de apreender para
permitir ser apreendido. Ocorre, pois, falar de um ―trabalho do negativo‖ a revelar a ―eficácia
sombria‖ das imagens: trabalho de rasgo do mundo da lógica, de modo a desdobrar
possibilidades de comunicação e de interpretação, com isso alcançando a potência necessária
para escavar o visível enquanto ordenação dos aspectos representados, e ferir olegível
19
enquanto ordenação dos dispositivos de significação. Rasgadura do visível e dolegível,
aimagem se abre para a exibição fulgurante de enigmáticos sintomas. Lê-se:
Há um trabalho do negativo na imagem, uma eficácia ‗sombria‗ que, por
assim dizer, escava o visível (a ordenação dos aspectos representados) e fere
o legível (a ordenação dos dispositivos de significação). De certo ponto de
vista, aliás, esse trabalho ou essa coerção podem ser considerados como uma
regressão, pois nos levam de volta, com uma força que sempre nos espanta,
para um aquém, para algo que a elaboração simbólica das obras havia no
entanto recoberto ou remodelado. Há aí um movimento pelo qual o que
havia mergulhado ressurge por um instante, nasce antes de mergulhar de
novo em seguida: é a materiainformis quando aflora da forma, é a
apresentação quando aflora da representação, é a opacidade quando aflora da
transparência, é o visual quando aflora do visível. (DIDI-HUBERMAN,
2013, p. 189)
O sintoma, operador basilar da teoria didi-hubermaniana, causa certo embaraço.
Obriga-nos a reconhecer que o sujeito do conhecimento é figura sobre-estimada, que sua é
uma lógica da certeza que encanta o historiador, mas deixa o fenomenólogo insensível. Se o
historiador da arte rejeita o sintoma, é porque entende se manter como o sujeito que sabe. Ele
desconfia, principalmente, do seu potencial de rasgadura do saber, essa que é,
angustiantemente, sua ―perturbadora eficácia‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 212).
Didi-Huberman é enfático quanto às conseqüências disso para o trabalho do
historiador: ―é preciso (...) compreender que a tarefa autêntica de uma história da arte –
compreender as imagens da arte – significa compreender a eficácia dessas imagens como
fundamentalmente sobredeterminada, ampliada, múltipla, invasora‖ (DIDI-HUBERMAN,
2015b, p. 187). Em outras palavras, o historiador da arte deveria tentar compreender o
sintoma enquanto investiga o funcionamento da eficácia das imagens, que não é limitada a
especificidades históricas ou estilísticas, mas se estende à paixão, à admiração que causam. O
que distancia, portanto, da história da arte panofskyana, herdeira do racionalismo kantiano,
mas que aproxima de uma história da arte tal como exigia Carl Einstein, atuante no contrapé
dos modelos estético-idealistas e dos juízos de gosto que geralmente sustentam a apreciação
―pacificada‖ das imagens (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 190).
Talvez se deva considerar o historiador como um fictor, modelador do passado que ele
dá a ler. Ora, a história da arte parece buscar na arte apenas a história e o saber únicos. Em
face disso, Didi-Huberman propõe outras vias de acesso aos registros visuais: uma eficácia
polimorfa. A história da arte deve reformular sua extensão epistemológica e questionar: que
gênero de saber produzir? Na "falsa aparência do essencial" que ela acredita atingir, uma
incógnita: um ponto de suspensão. "A imagem pensa. Como?", pergunta-se Didi-Huberman
20
em seus começos. Essa "pensatividade da imagem", tema caro também a Jacques
Rancière,outro autor que recriminou o "discurso pré-figurado da história da arte", faz com que
ela guarde uma "reserva de sentido", como uma cisão nas trocas entre olhante e olhado; entre
narração e expressão: a "eficácia desgarradora" da imagem: Nocomment, Didi-Huberman lê
em um fotograma de FilmSocialisme, de Godard: a imagem por vezes não permite dizer,
comentar. É questão em ato, é "figura figurante", processo, caminho. Fechá-la é evitar discutir
um processo (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.187). A imagem põe tudo em dúvida, em aporia.
Exige, quiçá, uma ―contra-história da arte‖, cujos fundamentos teórico-metodológicos se
procurará a seguir, e apesardetudo, comentar.
21
I
EFICÁCIASINTOMALDAIMAGEM
Não apreender a imagem e sim deixar-se ser apreendido por
ela: portanto deixar-se desprender do seu saber sobre ela.
[Um sintoma:] o entroncamento repentinamente manifesto
de uma arborescência de associações ou de conflitos de
sentidos.
(Didi-Huberman, Diantedaimagem)
Saber olhar uma imagem seria, de certo modo, tornar-se
capaz de discernir o lugar onde arde, o lugar onde sua
eventual beleza reserva um espaço a um ―sinal secreto‖, uma
crise não apaziguada, um sintoma.
(Didi-Huberman, “Quando as imagens tocam o real”)
22
FORMA, MATÉRIA E PROCESSUALIDADE: A IMAGEM
ANTESDAREPRESENTAÇÃO
Um historiador da arte não pode ser um metafísico, ao menos não sem denegar o que
está diante de seus olhos. É o que ocorre, por exemplo, com Giorgio Vasari, que, em sua
metafísica do disegno, nega na imagem tudo o que não se relaciona com a Idea. Na
interpretação que abre em Diantedaimagem as denegações da historiografia dita humanista,
Didi-Huberman toma as três ―palavras mágicas‖ vasarianas (idea, rinascità e imitazione)
como termos de um particular protocolo de leitura instado a tudo fazer conter no desenho, o
que lhe confere um viés transcendental ao remeter integralmente o visível aos ditames do
ingegno. O que Vasari assim denega, bem observa Didi-Huberman, segue via de mão dupla,
pois que transcendentaliza sem, porém, abdicar da referência às práticas multisseculares do
ateliê – local de processualidades, de ofício, mais do que de raciocínio –, de modo que seu
discurso criva-se de contradições teóricas. Essa postura ambígua em relação à processualidade
da imagem manteve-se, durante séculos na história da arte, e mesmo na análise iconológica
panofskyana onde todos os esforços convergem para o significado simbólico, conceitual,
representacional de uma imagem, enquanto os grafismos na tela, os rascunhos, as
experimentações com os materiais são deixados para os níveis inferiores da análise. Denota-
se, assim, uma denegação de tudo quanto diga respeito, para além do que Didi-Huberman
(2002, p.107) chama o ―idealismo mágico‖, aos factuais desígnios dos artistas junto à matéria.
Ocorre que a separação entre forma e matéria (considerando a clássica noção de forma
como essência, aquilo que é inteligível ou que define a matéria) frequentemente não é
evidente ou intuitiva. Pois a forma, para aquele que pinta, é o que ela encarna, movimenta ou
produz materialmente. Em algum momento, a forma pode até mesmo não se separar da
matéria e se mover com ela. Seja como for, inevitavelmente ―a forma se forma, como um
organismo‖ (DIDI-HUBERMAN, 2002, p. 87). De maneira que, ao mesmo tempo em que dá
contornos à matéria, ela é matéria do contorno. A imbricação fundamental entre forma e
conteúdo é, como se verá, repensada por Didi-Huberman em suas noções de encarnado,
informe e impressão (empreinte), mas está no alicerce, também, de seu principal conceito,
sintoma
As visualidades parecem pródigas em deslegitimar todas as oposições entre matéria e
forma. Nesse sentido, os desenhos de Victor Hugo, analisados no ensaio ―A imanência
estética‖, parecem se oferecer a nosso autor como exemplos sintomais da derrocada dessa
tradicional dualidade (figs. 1 e 2).
23
Fig.1:VictorHugo,Madestinée,1857
Fig.2VictorHugo,Veleironatempestade[detalhe],c.1864
24
A renovação estética hugoliana toma o rumo de uma morfologiadaimanência –
―‗fluxogeneralizado‗, a dobra de cada coisa em cada coisa, a vida em toda parte, a matéria
porosa destinada às turbulências‖ – a produzir, com isso, efeito crítico sobre a representação
(DIDI-HUBERMAN, 2003a, p. 125). Victor Hugo faz da imanência uma potência de
metamorfose, como se ele buscasse reconstituir certa ―genealogia do sublime‖, o que pode ser
notado por seu fervor particular pelas ruínas e pelas constantes remissões à Antiguidade.
Leitor dos Antigos, Victor Hugo compreende que a noção de metamorfose poderia ditar as
regra da Poesia e da Filosofia, pois multiformidades, quimeras e desordens constituiriam as
formas mesmas da vida. Nesse mundo, que o romanesco projeta no gráfico, todas as
substâncias irradiam ondas – o Todo como um grande abismo de formas em constante
mutação. A imanência aí se move: o mundo todo se ondeia em seu ritmo próprio e as
tormentas que lhe chegam são como espasmos, crises, sintomas em um corpo imenso (DIDI-
HUBERMAN, 2003a, p. 129). Assim, confrontado com MaDestinée, registro hugoliano de
uma turbulência interior que se projeta em folha e que o pincel empastado procura trazer à
tona, Didi-Huberman analisa:
O que ele faz diante da indescritível onda? Faz primeiro como o poeta que é:
trabalha. Põe papel sobre sua mesa, uma pena e tinta (e outros ingredientes
para toda uma cozinha, se necessário). Ele não descreverá essa onda que não
consegue imaginar exatamente. Mas a fará nascer, o que é bem melhor. Ele a
fará jorrar, quase às cegas, abandonando-se ao material e no próprio meio
que é o seu: uma mesa como crosta terrestre, uma folha como superfície de
flutuação, tinta extravagante como "dobra misteriosa e negra do turbilhão", o
sopro do próprio artista como vento largo. Isso significa representar uma
onda ou uma tempestade? Não exatamente, não simplesmente, uma vez que
se tratou de produzi-la, isto é, de provocar seu real surgimento, de apresentá-
la em ato... mas em miniatura, naturalmente. Tempestade real – fluida,
acidentada, fazendo estragos – sobre uma mesa de trabalho (DIDI-
HUBERMAN, 2003a, p.141).
O desenho do poeta bem se prestaria a ilustrar a forma de trabalho de nosso autor.
Mesmo porque ali o mundo mostra-se caótico, sua forma elementar é a ―onda‖: produzir
ondas é o movimento mesmo da imanência. Se o mar se mostra a referência fundamental de
toda forma pictórica, é porque uma potência da imanência deve se evidenciar: uma rítmica do
produzir figuras, que fluem e refluem, ora desabam, nascem, inflam, mas também se
dissolvem e morrem. A imanência como ―propriedade do que é interior e que se reconhece na
exteriorização‖. A onda nos desenhos de Victor Hugo são processos e, ao mesmo tempo,
aspectos construídos por meio de procedimentos gráficos diversos (uso de resíduos de café, de
barbas de pena): trata-se de uma estética desejosa das gestualidades, não das
25
representações:Darstellung mais que Vorstellung, processualidade e não aparência, contato e
não distância.De modo que o grafismo se converte num teatro onde encenar o grande jogo do
mistério da vida – mistério que bem poderia ser entendido como aquele da representação, da
imagem que se faz e se desfaz diante do olhar (DIDI-HUBERMAN, 2003a, p. 143).
Mistério nada místico, diga-se: é o simples caso de uma representação por fazer, de
matéria em transformação, de imagem sob processo; é ver a imagem ainda informe, em
formação – considerar o trabalho na imagem (debruçar-se sobre o objeto, manipulá-lo, dar-lhe
contornos) como o trabalho próprio à imagem, trabalho da imagem (ela que se constrói diante
do olhar). Deveria ser esta a reflexão primeira a se fazer acerca de qualquer ato
representacional (antes de tudo, a matéria bruta e a processualidade que a transforma)?
Deveria ser esta, também, a reflexão última a que se permite pensar o ato de imagem, sua
máxima eficácia (não ser mais que ato junto à matéria, processualidade)?
Antes de respondermos, detenhamo-nos ainda um tempo na leitura didi-hubermaniana
dos desenhos de Victor Hugo. Particular grafismo este que aponta para uma denegação do
representacional. Na ―rasgadura‖ do pincel, denota-se o processo pelo qual as imagens tomam
forma, antes de sua apropriação pelos sistemas de representação correntes. Lê-se, em dois
momentos distintos do olhar de imanência:
É a mesma tinta que é utilizada, de um lado com a ponta da pluma para
despertar os aspectos – um barco, em nosso exemplo – , e de outro lado com
os pelos do mesmo pincel para afogar os aspectos nessa espécie de
turbulência fluida ou de tormenta generalizada. Em suma, a tinta é aqui um
meio de imanência que reúne a forma com o informe, com a matéria, com o
conteúdo, com o símbolo e com tudo que se encontrar ainda nesses desenhos
... O filósofo ‗claro e distinto‗ poderá se intimidar com tal mistura, sem
dúvida. Mas é preciso aprender, com as imagens, a pensar todas as coisas
impuras e intrincadas (DIDI-HUBERMAN, 2002, p.15).
É um fato que os desenhos "oceano" de Victor Hugo apresentam com
freqüência, numa primeira abordagem, uma grande desordem de composição
e uma verdadeira confusão dos aspectos. Mas a confusão se revela sempre,
se os olhamos duas vezes, como uma sutil – ainda que violenta –
participação dos aspectos no meio que os destrói. Uma espécie de "cólera
gráfica" surge aqui : ora, a raiva é a dos próprios elementos, e a pena
utilizada às avessas – com as barbas umedecidas na tinta – cria um
eriçamento de toda a figura, uma turbulência aguda na qual o aspecto do
navio tende a desaparecer opticamente. E ele só não afunda, como aspecto,
porque naufraga figuralmente no meio de tinta agitado pela mão veemente
do desenhista (DIDI-HUBERMAN, 2003a, 143).
Didi-Huberman proporá, é caso de dizê-lo de imediato, uma crítica filosófica
darepresentação. Ele analisa cuidadosamente, e com certo ceticismo, a tradição filosófica que
sustentou por séculos a noção de representação como imagem mental ou
26
conceitocorrespondente a um objeto externo. Essa tradição abarca extenso período histórico,
que vaido humanismo de Vasari à Iconologia de Panofsky, passando pelo racionalismo
kantiano. Em comum nessa linha de pensamento estaria a recusa em se pensar sobre a
experiência (enquanto forma de conhecimento espontâneo, vivência) diante de uma imagem e
o entendimento de que para interrogar uma obra visual deve-se imediatamente procurar a
ideia, a marca do ingegno (seus desenhos, di-segni/desígnios) por detrás dela (DIDI-
HUBERMAN, 2002, p. 91).
Ora, a experiência é assumida como clara contrafação: ―é a experiência que me
mobiliza, porque a experiência, com a surpresa filosófica que a caracteriza, começa sempre
por colocar em questão tudo o que se acreditava pensar até então‖. A experiência questionará
o que se entende por gênio e o que se entende por ideia. Modificará a matéria mesma do
pensar. Apesar de sua aparente fragilidade (a experiência, por ser imediata, seria tão intensa
quanto passageira), ela possuiria a extraordinária capacidade de ―fazer surgir as
singularidades, fecundas e capazes de transformar, de repente, toda a nossa visão do mundo‖
(DIDI-HUBERMAN, 2002, p. 91). É o que ocorreria diante das imagens de Victor Hugo,
capazes de criticar a noção de representação em sua fatura mesma, em sua imanência. Seria a
representação o que imaginamos apartirda imagem? Seria aquilo que a imagem deixa
imaginar nelamesma, enquanto imagem, agrupamento de manchas e de cores? Ou seria aquilo
que ela substitui, por semelhança?
Criticar a noção de representação consiste, pois, em pensar a imagem antes dela. O que
significaria pensar em uma noção não-artística de imago. Didi-Huberman insiste nisso, pois
os artistas tendem a pensar a imagem surgida após a representação. Nesse sentido, a noção de
representação já estaria assentada na própria imagem. Para criticá-la, portanto, mostra-se
conveniente um passo arqueológico, retorno ao registro latino da imago, onde o valor estético
se mistura àquele genealógico. A imagem como forma mnêmica do morto alerta para o
paradigma genealógico da imagem. Didi-Huberman dele propõe uma análise de base histórica
e antropológica. Ele opera uma noção de genealogia análoga à noção de impressão ou de
matriz. Esta análise ocorre à maneira de Warburg, que interroga a história ocidental das
imagens segundo uma genealogia das semelhanças. Sem ter a intenção de dar uma resposta
definitiva para o paradoxo entre o estético e o genealógico, Didi-Huberman retoma ainda o
secular conceito filosófico de dialética, que lhe permite pensar a imagem como uma
ambiguidade. A dialética leva a considerar que na imagem há polaridades irredutíveis, que se
transformam ou se deslocam constantemente. Essas polaridades movimentam-se em
27
seuinterior como numa espécie de turbilhão (analogia que lhe vem de Benjamin):
um―movimento imanente‖ que não conhece síntese.
Para melhor entender essa interioridade convulsiva da imagem, Didi-Huberman
encontra apoio na psicanálise. No paradigma freudiano, que explora os signos para além da
semiologia estruturalista, o sintoma está para o signo assim como a carne está para o corpo e a
imagem está para a representação. Deste modo, há que se falar não apenas em imagem, mas
em ―imagem-sintoma‖ – singularidade dialética, signo que critica a representação.
Convém mencionar, quanto ao sintoma, que ele ―se forma‖, não surge de repente.
Freud estudou longamente o processo de formação dos sintomas (Symptombildung). Para
Didi-Huberman, esse processo permite ser comparado ao processo de formação de imagens.
Em artigo sobre Aucommencent,L’apparition, vídeo-arte de Sarkis (artista turco radicado em
Paris), Didi-Huberman volta a observar o sintoma na processualidade de sua formação. No
vídeo vemos de início uma bacia parecida com aquelas usadas para revelação de fotografias
em laboratórios. No fundo, há a presença de uma figura que nos lembraria (a nós, ocidentais)
a letra K, feita em espessa camada de tinta vermelha. ―Poderia ser pi, a letra grega‖ ,
conjectura Didi-Huberman (2005), ou ―mesmo um pictograma chinês, e poderia evocar, por
exemplo, o caractere Yuanqi, ou ‗respiração primordial‗, utilizada por Guo Ruoxu, estudioso
chinês do século XI, para caligrafar o que pintar significa‖. A seguir, Sarkis derrama
suavemente leite sobre a letra. Deparamo-nos então com a insuspeita habilidade descritiva de
Didi-Huberman:
À medida que o líquido branco toma posse do recipiente, forma-se uma nova
matéria que vai se tornar uma cobertura invasiva, o meio mesmo da tela. O
fundo da bacia desaparece aos poucos. A letra vermelha deixa uma ruína
errática, um vestígio, depois um simples traço, em seguida, uma lacuna
pouco visível abaixo do leite, que vai desaparecer ela também. (...) O leite
continua a fluir: ele cria uma profundidade. (...) Tudo se acalma. De repente,
surge uma sombra fina seguida de um dedo humano. O artista estava bem
ali, tão perto. Eis o seu corpo. E o dedo, calmamente, com uma vontade tão
firme quanto delicada, põe-se não ―sobre‖ o leite, mas, eu diria, ―no‖ leite.
Ele passa através da profundidade do líquido, ele entra. Ele se imobiliza,
tocou o fundo. Em torno dele forma-se uma auréola irregular, um pequeno
turbilhão de pigmento vermelho. Vemos, então, que o dedo em si estava
pintado de vermelho (de uma aquarela que não se dilui, que extravasa
espontaneamente no líquido branco que acabou de tocar). Em seguida, o
dedo é removido. Naquele momento - momento mágico, e é aí que
lembramos da palavra "aparência" – forma-se uma flor vermelha na
superfície do leite. Ela surge ou se estende. Não, ela se forma na retração,
estreitando-se ligeiramente, como se procurasse o seu ponto de maior
intensidade possível. Ela se forma deixando a impressão de que alguma
coisa dela é aspirada para o fundo. Isso é admirável e um pouco
28
inquietante,como se o leite fosse, de repente, mais profundo do que o
esperado (DIDI-HUBERMAN, 2005).
O vídeo de Sarkis (fig.3) presta-se bem a nos evocar o sintoma em processo: a
tintaderramada sobre o leite forma-se de dentro para a fora, da profundidade para a superfície.
A representação de uma flor é desmentida em sua origem mesma. A simples noção de
superfície também é, de certo modo, rejeitada, superada. A flor que se forma é acidental, mas
toda a potência de figurar descende desse pequeno jorro de tinta. A eficácia da flor como
imagem é a eficácia mesma de toda a figuração, de toda a capacidade de constituir imagem,
própria ao sintoma. A figura se forma, ainda, a partir de um fundo branco que bem poderá nos
remeter, de imediato, às análises de Didi-Huberman em torno da Anunciação de Fra Angelico.
Figura3:SarkisZabunyan,Aucommencent,L’apparition[fotogramas],2005
29
UMACONTECIMENTODEIMAGEM
Didi-Huberman abre Diantedaimagem, livro publicado em 1990, com um
comentáriosobre o afresco da Anunciação, de Fra Angelico (fig.3). A mesma obra já havia
sido estudada em FraAngelico:dissemblanceetfiguration, livro publicado meses antes. É em
complemento a esse livro, na verdade, que se fez necessária essa nova análise. Pintado na
parede de uma clausura ―caiada de branco‖, o afresco não é descrito imediatamente por Didi-
Huberman. Ele retém, primeiramente, o local onde se encontra a obra. E destaca, em dado
momento, que a pintura parece ter sido realizada numa contraluz voluntária (DIDI-
HUBERMAN, 2013b, p. 19). Por alguns instantes, o olho, velado, não consegue ver o que
está diante. Passa-se um tempo, a visão se acostuma com a luz do local, e então o afresco ―se
aclara‖, mas para tão logo retornar a um branco, o branco da parede, um branco que retém o
olhar.
Figura4:CeladoconventodeSãoMarco:oafrescoeajanela
30
Didi-Huberman afirma ter lutado contra essa sensação de possessão que tal
brancohavia causado a seus olhos porque ele estaria, àquela época, ―prevenido‖. Essa
prevenção parece resultar de uma herança de certo modo de fazer história da arte. Prevenção
que o guardou de mantê-lo afetado por aquele detalhe da brancura do afresco. No que
concerne à simples prática do historiador diante de uma imagem, seria nesse instante, no qual
o olho supera, digamos, esse branco, quando começa a perceber os detalhes representacionais
da imagem, que ela se torna realmente visível. E tornar realmente visível, de acordo com essa
herança especialmente humanista na história da arte (Didi-Huberman evoca, dentre outros,
Alberti e Vasari), é o mesmo que reconhecer signos, é dar significados para o que se vê. Logo,
quando um detalhe é percebido para além de sua simples materialidade – naquilo que
consiste, no afresco, em ―duas ou três manchas de cores desbotadas, sutis, postas num fundo
da mesma cal, ligeiramente umbrosa‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013c, p. 19) – torna-se possível
evocar ou traduzir unidades mais complexas, temas ou conceitos. Paralelamente ao instante
em que o quadro se torna visível, ele também se torna legível. É quando se acredita poder ler
o afresco que ele se torna plenamente visível. Assim, ao falarmos em leitura, falamos ainda
em istoria, em dar corpo a uma série de alegorias, em reunir logicamente unidades visuais por
meio das quais seria possível formar uma sequência narrativa. Ao se dar a ler, o afresco passa
a evocar textos, adquire um grau de legibilidade por assim dizer definitivo, pois aprofunda o
rumo à cultura erudita. Nessa busca por legibilidade, vai-se até as ―fontes‖, os textos de
origens, para entender o que o afresco poderia querer ―dizer‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013c, p.
20-21).
Nesse ponto, Fra Angelico acaba decepcionando, pois a história que ele dá a ler no
afresco é entendida de forma muito simples, sem exigir maiores refinamentos técnicos.
Aquilo que se lê decepciona, pois, representação sumária, parece não falar além do que
mostra. Para tentar contornar a simplicidade do traço do pintor beato, alguns historiadores
teriam sustentado que, para além do legível e do visível, haveria um invisível, ligado a uma
ideia de infigurável ou de inefável (DIDI-HUBERMAN, 2013c, p. 23), que representaria
melhor o acontecimento místico da Anunciação. Reportam-se a um vazio, a um nada que há
no afresco, que seria esse nada a trazer todo o interesse da obra, e não o que há para se ver
realmente. Didi-Huberman critica com veemência essas duas posturas, tanto a de reduzir o
pintor a um artista menor por conta de sua técnica, quanto a de negligenciar a crueza de sua
simplicidade em face de um invisível que se revela improvável e que seria mais da esfera
teológica que historiográfica. O convite a um olhar não prevenido pelo saber é inequívoco:
31
Olhemos: não há o nada, pois há o branco. Ele não é nada, pois nos atinge
sem que possamos apreendê-lo e nos envolve sem que possamos prendê-lo
nas malhas de uma definição. Ele não é visível no sentido de um objeto
exibido ou delimitado, mas tampouco é invisível, já que impressiona nosso
olho e faz inclusive bem mais que isso. Ele é matéria. [...] É um componente
essencial e maciço na apresentação pictórica da obra. Dizemos que ele é
visual. (DIDI-HUBERMAN, 2013c, p.24-25)
Essa questão do detalhe vazio, sem significado, uma espécie de nada sem figura, já
havia sido tratado em APinturaEncarnada, onde o objeto de análise – há sempre em seus
livros um objeto de análise que problematiza a história da arte e nela reabre questões – é ainda
uma pintura, mas trazida, de modo impertinente, sob o olhar de um conto de Honoré de
Balzac – ―nada, nada!‖ é o lamento do personagem Frenhofer diante de sua tela fracassada:
- Nada em minha tela! – exclamou Frenhofer, olhando alternadamente para os dois pintores e o quadro.
- Que fez você? – perguntou Porbus em voz baixa a Poussin. O velho
segurou com força o braço do rapaz e disse-lhe:
- Você nada vê ali, tolo! Patife! Canalha! Tratante! Para que veio então aqui?
Meu bom Porbus – e continuou, virando-se para outro pintor -, será que você
também se diverte às minhas custas? Responda! Sou seu amigo. Diga, por
acaso arruinei meu quadro? Porbus indeciso não se atreveu a falar; porém, a ansiedade estampada na face
lívida do ancião era tão comovente que ele apontou para a tela e disse:
- Veja!
Frenhofer contemplou seu quadro um instante e cambaleou: - Nada! Nada! E
dediquei-lhe dez anos de trabalho!
Desabou na cadeira e chorou (BALZAC apud DIDI-HUBERMAN,
2012a, p. 177).
Esse detalhe vazio, aproximado da ideia de trama (pan, muro, pano, trecho),
apontaainda para a noção de fulgor enquanto ―acontecimento pictórico e uma fratura da
pintura‖ (DIDI-HUBERMAN, 2012a, p. 105). A escansão da fulgurância do branco no
afresco revela uma espécie de indecisão entre aquilo que se vê e o que se pode tocar. Abrem-
se duas possibilidades frente a essa indecisão: a que assume o pan de branco como um
puramente visível, pois tocável; ou a que o assume como marca de um invisível.
A crítica feita a essas duas formas de interpretar o detalhe sem significado da pintura
de Fra Angelico parece ser um prelúdio do que seria repensado mais tarde em
Oquevemos,oquenosolha, nas posturas extremas da dicotomia entre o ―homem da crença‖ e o
―homem da tautologia‖, mas a partir de outro objeto, igualmente emblemático: o túmulo. De
fato, diante do túmulo duas reações antagônicas se manifestam: a do homem da crença, a de
acreditar que sempre haverá algo além do que se vê do túmulo (crença numa metafísica da
imagem, numa iconologia pautada pela religiosidade); e a do homem da tautologia, que,
32
diante da angústiaque o túmulo causa, simplesmente afirma só ver o que há diante dele, o
visível é tudo o queali existe. Cada postura apresenta o seu problema epistemológico: a
tautologia (―o que eu vejo é o que eu vejo‖) desconsidera tudo o que não se encerra na
visibilidade; a crença desconsidera simplesmente a matéria diante de si, ou a materialidade da
imagem.
Notamos como em Didi-Huberman olhar é um ato temporal e espacial. Ao contemplar
o afresco de Fra Angelico, ele não se contenta em dizer o que vê, mas nos conta sob que
condições a obra foi vista. Não por acaso, sua análise reveste-se de teatralidade: descreve a
cela da clausura tal como se optou por mantê-la no projeto expográfico do convento,
atualmente, Museu Nacional de São Marcos; descreve a luz do local, a impressão de
ofuscamento causado pelo reflexo da luz do sol na parede branca (pois ver é ver em algum
tempo e sob determinadas condições); descreve o ofuscamento na entrada, o efeito de
contraluz possivelmente voluntária que ―vela antecipadamente o espetáculo esperado‖ (DIDI-
HUBERMAN, 2013c, p. 19). Paradoxalmente, a intenção de ver claramente resultaria em
outra maneira de velar a observação da imagem do afresco, pois para tanto seria necessário se
esquivar da fulgurância do branco da parede. Como para a historiografia humanista algo só é
visível quando se torna possível reconhecer elementos discretos de significação, o branco, que
nada significa, é de imediato velado. O visível de nosso autor, diversamente, não é tutelado
pela autoridade do significado, mas se esgueira por uma fenomenologia do significante. O
branco de Angelico evidentemente faz parte da economia mimética de seu afresco. Ele
pertence, pois, ao mundo da representação. Mas ele o intensifica para fora de seus limites,
desloca os percursos do saber, e os faz ―significar noutra parte, de outro modo‖.
Se não há nada entre o anjo e a Virgem da sua Anunciação, é que o nada
dava testemunho da inefável e infigurável voz divina à qual, como a Virgem,
Fra Angelico devia se submeter inteiramente... Mas [tal julgamento] se priva
de compreender os meios, a matéria mesma na qual esse estatuto [religioso
da obra] existia. Ele vira as costas à pintura e ao afresco em particular [...],
acredita compreender a pintura somente ao desencarná-la, se podemos dizer
(DIDI-HUBERMAN, 2013c, p. 23).
O visível, o legível e o invisível seriam três categorias de uma ―incompleta
bsemiologia‖. Estudar o afresco de Fra Angelico pelo ponto de vista de seus signos deixa
apenas duas opções: ou se entende que esta imagem esteja no mundo do visível, e então seria
possível descrevê-la (a descrição se encontra na esfera da legibilidade); ou se entende que esta
imagem remete à região do invisível, e então o que se torna possível seria uma espécie de
33
metafísica da imagem, ―desde o simples fora de campo inexistente do quadro até o mais-
alémideal da obra inteira‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013c, p. 23). Acreditamos que nosso autor
aí serefira a metafísica no sentido de estudo do ser e do não ser, isto é, estudo da
transcendência, com o uso da razão para explicar o que não possui existência real. Haveria,
porém, uma possibilidade de nos desviarmos dos equívocos provocados por essa incursão
parcial, simplificada, reducionista, pelos sistemas de signos das imagens. Essa possibilidade
supõe que a eficácia de uma imagem ―atua constantemente nos entrelaçamentos ou mesmo no
imbróglio de saberes transmitidos e deslocados, de não-saberes produzidos e transformados‖
(DIDI-HUBERMAN, 2013c, p. 23). Ao afirmar que os saberes veiculados pelas imagens
encontram-se em ―imbróglios‖, isto é, embaraços, complicações, intrigas, tramas, nós, Didi-
Huberman sustenta a tese de que não é possível apreendermos a eficácia unívoca de uma
imagem.
Se pretendermos entender como imagens podem ser eficazes, elas exigem de nós um
olhar que não procure recortá-las em partes individualmente significativas, tais como objetos,
personagens ou temas. Tampouco que se busque a todo custo nomeá-los. Exige-se, em vez
disso, um olhar que, de início, afasta-se para ampliar a visão da obra. Nesse afastar-se,
necessário para que o todo não se perca ante o retalhamento que a leitura iconológica produz,
não será possível de imediato ver claramente tudo o que a obra apresenta. Didi-Huberman
refere-se a essa postura diante da imagem como resultado de uma ―atenção flutuante‖ ou de
uma ―longa suspensão do momento de concluir‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013c, p. 23). Essa
pausa daria tempo para que a interpretação da imagem possa ser feita em suas diversas
dimensões. A interpretação dada pelo que ele denomina ―incompleta semiologia‖ da história
da arte é impaciente, ansiosa, pois entende resolver com a maior brevidade possível a angústia
causada pelo desconhecido. Ao encontrar algum significado para um significante, o
historiador da arte que Didi-Huberman muitas vezes qualifica como ―tradicional‖ ou
―convencional‖ pronto se contenta com o que descobriu e não admite crítica a seu modelo
interpretativo, pois é o que lhe garante esquivar-se do não saber.
O revisionismo de nosso autor reivindicará, por sua vez, esse não saber. Entre
significante e significado, haveria uma ―etapa dialética‖, oportunidade para nos deixarmos ser
apreendidos pela imagem em vez de apreendê-la. Essa etapa inverte o contato inicial com a
imagem. Quando não se procura apreender, tal denota ―desprender do seu saber sobre ela‖
(DIDI-HUBERMAN, 2013c, p. 24). Ato de abnegação, sacrifício do saber. O que não ocorre
sem o risco da ficção: abertura para a fantasia, para a imaginação. Mas é um risco que se
assume aceitável. Imaginar é o que resta ante o inexplicável. Nesta etapa, volta-se para as
34
―obscuras evidências do ponto de partida‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013c, p. 24). O que há
deevidente no afresco de Fra Angelico? A sua localização no convento de São Marcos,
emdeterminada cela, cujas paredes são caiadas de branco; a evidente justaposição de
pigmentos, lançados sobre a parede; uma janela na contraluz da obra; uma luz artificial
colocada pela administração do convento. Percebamos que não há ―nomes‖ específicos. Não
há ―anunciação‖, ―anjo‖, ou ―Maria‖. Há condições de apresentação da imagem e de sua
figurabilidade – a possibilidade de vir a figurar alguma coisa a partir das evidentes manchas
de tinta. Didi-Huberman não deixa de ressaltar o desconforto causado pelo ―branco‖ da
parede, resultante da contraluz. O branco, localizado entre o anjo e a Virgem, parece nada
evidenciar. Não deixa nada a dizer. Seria preciso nos contentar em simplesmente olhar para o
branco e vê-lo. Pois, ao menos, há o branco – o branco existe, preenche o vazio. Há alguma
coisa, um algo, que é possível ver como matéria. Algo da ordem de uma ―onda de partículas
luminosas‖ ou de um ―polvilhar de partículas calcárias‖ , algo físico, tangível. Esse tipo de
detalhe da obra Didi-Huberman (2013c, p. 25) o denomina visual. Seria tudo aquilo que se vê,
mas não se pode dizer o que representa; o visível que não é legível; o significante sem
significado; ou que se considera ―invisível‖ para a Iconografia. Lê-se em
Oquevemos,oquenosolha:
[Será preciso talvez] reconhecer que só haja imagem a pensar radicalmente
para além do princípio de visibilidade [...]. Esse mais além, será preciso
ainda chamá-lo visual, como o que estaria sempre faltando à disposição do
sujeito que vê para restabelecer a continuidade de seu reconhecimento
descritivo ou de sua certeza quanto ao que vê. Só podemos dizer
tautologicamente ―vejo o que vejo‖ se recusarmos à imagem o poder de
impor sua visualidade como uma abertura, uma perda – ainda que
momentânea – praticada no espaço de nossa certeza visível a seu respeito. E
é exatamente daí que a imagem se torna capaz de nos olhar (DIDI-
HUBERMAN, 1998, p.105).
Em Diantedaimagem, quando se trata de retirar todas as consequências metodológicas
do trato com as incertezas do visual, lê-se:
Designamos o visual, e não o invisível, como o elemento [de uma] força
coercitiva de negatividade em que as imagens são pegas, nos pegam. [...]
Não se trata de estabelecer em estética a duvidosa generalidade do
irrepresentável. Não se trata de invocar uma poética da irrazão, do pulsional,
ou uma ética da muda contemplação, ou ainda uma apologia da ignorância
diante da imagem. Trata-se apenas de lançar um olhar sobre o paradoxo,
sobre a espécie de douta ignorância a que as imagens nos compelem [...].
Não se trata de modo algum de escolher um pedaço, de fatiar – saber ou ver -
, mas de saber permanecer no dilema, entre saber e ver [...]. Trata-se apenas
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de dialetizar: pensar a tese com a antítese, a arquitetura com suas falhas,
aregra com sua transgressão, o discurso com seu lapso, a função com sua
disfunção (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.189-190).
Tal dinâmica desata o nó das ortodoxas partilhas entre ―imagem‖ e ―real‖ e
entre―imagem‖ e ―objeto‖, e abre a estrutura sobressignificante da imagem; torna-a rasgadura,
ruína.
Árdua mostra-se, pois, a tarefa de nomear esse branco do afresco, pois se trata de um
acontecimento, mais que de um objeto. Não se pode contestar que esse acontecimento
impõe,com máxima eficácia, sua potência, antes que se possa reconhecer nele uma figura.
Paradoxalmente, porém, esse branco é um virtual: ―situa-se no cruzamento de uma
proliferação de sentidos possíveis do qual extrai sua necessidade, que ele condensa, desloca e
transfigura‖. Porventura, para Didi-Huberman,éforçosodenominá-
losintoma:―entroncamento repentinamente manifesto de uma arborescência de associações ou
de conflitos de sentidos‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013c, p. 26).
36
SINTOMA:IMAGEM-LIMITE
Sintoma: conceito-chave para pensar a obra de Didi-Huberman. Boa parte de sua
formulação teórica, crítica e analítica centra-se, rodeia, resvala de um modo ou de outro esse
tema de absoluto fascínio. Não o fascínio como aquele que resulta de uma estupefação diante
do belo, mas o fascínio que a dúvida, suspensiva do pensamento e paralisante da fala,
impregna no sujeito diante de uma imagem. O sintoma não é produzido, mas surge, aparece,
dá-se a ver simplesmente, como uma ―questão infernal‖, aquela do próprio aparecer. Questão
que flagra o pensamento da imagem, ou a imagem que pensa. E se pensa, como? Eis a dúvida
que abre APinturaEncarnada e que também abre a imagem como objeto de conhecimento,
abre-a para o olhar que contempla o próprio ato da imagem sendo produzida, o processo, seu
devir. Como se rompesse da imagem a película de inteligibilidade que a leitura iconológica a
ela fez aderir, Didi-Huberman nos mostra, trabalhado em texto, todo o potencial expressivo da
simples complexidade do nada – ou melhor, daquilo sobre o que não há nada a se dizer, mas
tudo a ver e, pourcause, a indagar.
Sintomas encontram-se no limite do ato pictórico, que é ato de imagem ou imagem em
ato. Esse limite, definido por Didi-Huberman, em pintura, como o encarnado, é o ponto no
qual a imagem pode sonhar com sua mais alta eficácia, quase no instante de poder saltar, viva,
do suporte por meio do qual aparece; instante, igualmente, dos riscos da desfiguração, do
fracasso, do caos (DIDI-HUBERMAN, 2012a, p. 36). Para isso, basta que o pintor, ao retocar
em demasia a imagem na procura (desesperada) da irreversível perfeição, acabe por exagerar
(na esperança da plena indicialidade) na espessura das camadas de tinta. Esse limite, todavia,
é móvel, é uma variação da relação entre superfície e profundidade da tela no tempo. Pois a
imagem e seu ―colorido em ato e em trânsito‖ deixam-se ver como trança temporalizada,
―passagem colorida que não deixa de ser uma dialética indiscreta, sempre previsível, do
aparecimento e desaparecimento‖ (DIDI-HUBERMAN, 2012a, p. 36).
Fazer aparecer é o ideal almejado pelo pintor Frenhofer no conto de Honoré de Balzac
que dá ensejo à massa argumentativa de APinturaEncarnada. Mais do que mostrar, mais do
que representar, trata-se de produzir uma criação tal que se imagine uma pintura dotada da
capacidade de ser tocada, acariciada, enquanto surge diante da aproximação do olhar. Lê-se
no conto:
É preciso ter fé, fé na arte, e viver durante muito tempo com sua obra para
produzir semelhante criação. Algumas dessas sombras custaram-me
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muitostrabalhos. Vedes, há ali sobre a face, abaixo dos olhos, uma leve
penumbra que, se a observardes na natureza, parecer-vos-á quase
intraduzível. Pois bem! Pensais que ela não me custou penas extraordinárias
para ser reproduzida? (...) olha atentamente meu trabalho, e compreenderás
melhor aquilo que eu te dizia sobre a maneira de tratar o modelado e os
contornos. Olha a luz do seio, e vê como, por uma sequência de retoques e de
realces fortemente empastados, consegui captar a verdadeira luz e combiná-la
com a brancura lustrosa dos tons iluminados; e como, graças a um trabalho contrário, apagando as saliências e o grão da pasta, pude, à força de acariciar
o contorno de minha figura, mergulhar no semitom, suprimir até a ideia de
desenho e de meios artificiais, e o ela dar o aspecto e a própria redondez da
natureza. Aproximai-vos, vereis melhor o trabalho. De longe, ele desaparece
(BALZAC in DIDI-HUBERMAN, 2012a, p. 176).
―De longe, ele desaparece‖: trabalhar a imagem de modo a permitir que opere
transformações na aproximação ou no distanciamento do olhar é lidar com a possibilidade,
cruel para a sapiência do pintor, de ver apenas o nada. No ―limite da pintura‖ cria-se uma
tensão entre ―verdade absoluta‖ e ―alteridade absoluta‖ que a torna capaz, tal qual um corpo,
de se ver ―atravessada, assombrada pelos tormentos, pelos reviramentos do humor‖ (DIDI-
HUBERMAN, 2012a, p. 36), capaz, portanto, de produzir a dúvida – em outras palavras, o
olhar que a imagem nos devolve quando a olhamos. No limite, a imagem nos inquieta, talvez,
porque não se resolve, não in-forma, não con-forma.
A perspectiva não deixa de lembrar o conhecido tema da ―inquietante estranheza‖,
Unheimlich, em Freud, conceito-paradigma que não passou despercebido por Didi-Huberman.
Freud desenvolveu o conceito de Unheimlich em ensaio (FREUD, 1919/1996) dificilmente
classificável dentro de sua obra. Nele, ele procura entender como se dá na psique o sentimento
da estranheza. Primeiramente, ele faz um exercício filológico do termo alemão Unheimlich. O
radical heimlich liga-se, a princípio, a familiar, mas também se encontram usos no sentido de
oculto ou secreto. De modo que a partícula de negação, Un-, acaba por produzir um paradoxo,
pois, em certas acepções, refere-se ao que ―não é familiar‖, mas em outros casos se refere ao
que ―não é oculto/secreto‖. Freud reconhece que o uso de Unheimlich como o não-familiar
prevaleceu, mas nas entrelinhas da ideia de estranheza também haveria a possível revelação
de um segredo (talvez escondido na própria psique). Daí que Didi-Huberman utilize o
conceito para se referir ao aparecimento ou desaparecimento próprios da experiência-limite
proporcionada pelas imagens. O Unheimlich se manifesta na dúvida, na desorientação,
―experiência na qual não sabemos mais exatamente o que está diante de nós e o que não está‖
(DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 231): aparecimento e desaparecimento convivendo ao mesmo
tempo. Um não reconhecimento, uma dificuldade de entender.
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Em vista disso, Didi-Huberman convoca o imemorial motivo da porta constante da
parábola―Diante da lei‖, penúltimo capítulo de OProcesso de Kafka (2009). Nessa angustiante
história de dúvida, de incompreensão, um homem simples do campo pede para o guardião de
um templo para que o deixe entrar, atravessar a porta: ―entrar na lei‖. Pedido negado sem
justificativa, o homem vê-se obrigado a ver indefinidamente a porta permanecer aberta diante
de si. E ali ele permanece, apático, no limiar, durante anos, sem jamais entender o motivo da
proibição. Essa proibição não seria a mesma que se impõe no conto de Balzac (apud DIDI-
HUBERMAN, 2012) a Poussin diante da tela que ele tanto almeja? Essa porta não seria a
alegoria da imagem que se abre diante de nós, mas nos nega que de fato por ela penetremos?
A porta permanece fechada para o homem até próximo do fim de sua vida, quando lhe ocorre,
finalmente, perguntar ao guardião porque mais ninguém o havia interpelado quanto á
passagem pela porta. O guardião grita-lhe que mais ninguém além dele poderia entrar por
aquela porta, pois essa abertura teria sido feita apenas para ele. E então fecha a passagem em
definitivo. A porta aberta na irônica narrativa kafkiana é um limiar intransponível, inacessível,
e que impõe sua distância. Diante da porta aberta, Didi-Huberman alegoriza o que significa
estar diante da imagem para o historiador da arte interessado numa heurística renovada de seu
objeto. Estar diante da imagem é estar diante do limite, do colorido-limite, do colorido-
sintoma – simples limite, extremamente simples (―nada, nada!‖; só há uma porta, basta
entrar), mas fundamentalmente estranho, tenso, imóvel em sua irredutibilidade (1998, p. 245-
248).
A porta é tradicional motivo evocador de todas as passagens, de todas as visões e
expectativas, entre certezas e decepções. Contra a ortodoxia historiográfica, a Pineportal de
Robert Morris (fig.5), simples batente de porta exposto numa sala de museu, bem define a
imagem como um limiar: diante da imagem estamos como que "diante do vão de uma porta
aberta" (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p.15). Nessa imagem que é embate constante entre
memória e expectativa, entre certeza e dúvida, seus efeitos são produzidos com sua negação.
Pergunta-se Didi-Huberman (1998, p.249): ―seria a função originária das imagens começarem
pelo fim [...], baterem ao ritmo de algo e de alguém que já tiveram fim? [...] Por um limiar
interminável – ‗porta estreita‗, dizia Benjamin – entre o que um dia teve fim e o que um dia
terá fim‖. Entre "véu e dilaceramento", a imagem terrífica de um "batimento dialético". Seja
como for, assumirá o historiador-filósofo, o que se tem são imagensapesardetudo, apesar de
serem objetos da angústia por excelência. Assim, as imagens que aqui e acolá se encontram
nos textos de Didi-Huberman não são senão imagens-limite: fora de todo consenso, abrem
para a "experiência dilacerante" de uma "dessemelhança essencial".
39
Figura5:RobertMorris,PinePortal,1961.
Entendê-las, pois, em sua eficácia menos evidente exige uma arqueologia crítica
aretomar Benjamin quando nos convoca a ―ler o nunca escrito‖, a denunciar a impossibilidade
de leitura conclusiva das imagens mundanas, a colocar em questão toda a experiência
autêntica moderna. Não será preciso dizer o quanto isso tudo contraria a história estetizante da
arte de Winckelmann e de Vasari. É voltar-se uma vez mais para o ―fantasma‖ Warburg para
quem uma história da arte não se abre nem pela ressurreição cristã nem pela glória olímpica,
mas por ―um despedaçamento do humano, passional, violento, congelado num momento de
intensidade física [psíquica]‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.27), como se deixa ilustrar na
gravura de Albrech Dürer (fig. 6). Uma história não estetizante procurará o significativo não
no consenso do belo, mas no deslocamento das assertivas, no limiar dos desfazimentos de
sentidos. Aí encontrará as formas em volúpia e repouso de Explosantefixe, de Man Ray (fig.
7); a dança flamenca de Israel Galván (fig. 8), em que o corpo abandona a sua estrutura
imemorial para cair ao solo, quase descarnado; ou quiçá as nuvens de Alfred Stieglitz (fig. 8),
em seu "transbordamento específico", que abre, histeriza a simples imagem do sintagma
visual ―céu‖.
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Convém, para o encontro das imagens-limite, o limite da mente: o mergulho
noinconsciente, onde a eficácia sombria das imagens possa ser avaliada, onde o princípio da
incerteza possa, finalmente, vir ter com o trabalho do historiador da arte. Razão porque Didi-
Huberman resgata em seus gestos revisionistas a terminologia psicanalítica. O que não é
novidade para o psicanalista, para o historiador da arte é motivo de renovação de sua prática:
a eficácia da imagem não é seu esclarecimento, mas ferida no legível e escavação no visível.
O historiador-arqueólogo Benjamin bem sabia que a matéria informe persiste no escondido,
que o visual aflora para além do visível, que toda opacidade é convocada no que se imagina
transparência – tal como o inconsciente pode vir à tona no mais simples ato consciente. Em
termos que não poderiam ser mais concisos, Benjamin reconhece a eficácia da imagem
técnica, obtida pelo de fotografar ou filmar, em nos revelar o que Freud descobrira
empiricamente em suas investigações ao lado de Breuer – que há um espaço inconsciente na
psique para além do visível, mundo novo que nossa limitada percepção consciente é incapaz
de vislumbrar em todo o seu esplendor:
[a câmera] nos abre, pela primeira vez, a experiência do inconsciente ótico,
do mesmo modo que a psicanálise nos abre a experiência do inconsciente
pulsional. De resto, existem entre os dois inconscientes as relações mais
estreitas. Pois os múltiplos aspectos que o aparelho pode registrar da
realidade situam-se em grande parte fora do espectro de uma percepção
sensível normal (BENJAMIN, 1998, p. 189).
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Figura6:AlbrechtDürer,AMortedeOrfeu,1494
Figura7:ManRay,ExplosanteFixe,1934
Figura8:IsraelGalván,cenadoespetáculoLaCurva
Figura9:AlfredStieglitz,Equivalent,1930
42
UMCOLORIDO-LIMITE
No modo de funcionamento das imagens percebe-se a atuação de um duplo regimeque
as tornariam capazes de ―produzir um efeito com a sua negação‖ (DIDI-HUBERMAN, 2012c,
p. 107; grifo do Autor) – com sua contradição, com seus desmentidos, rejeições ou recusas.
Esse duplo regime nos faz pensar em quais seriam as possíveis consequências para o estudo
das imagens a hipótese de que elas produzam impressões contraditórias.
Ao evocar as discussões teóricas seculares da carnação (a representação pictórica do
corpo humano nu, principalmente o rosto, em sua cor natural), Didi-Huberman nos apresenta
uma dificuldade geral em se representar o corpo humano: ao que lhe parece, todo o
dispositivo visual da imagem posterga o arremate da obra, pois exige que o artista a
modifique, a transforme, acrescente indefinidamente detalhes a fim de tentar dar conta dos
efeitos visuais da pele, como ocorre, por exemplo, na representação do rubor e das manchas
vermelhas que parecem se movimentar por debaixo do tecido epitelial quando das grandes
emoções. A partir da análise de alguns textos antigos que tratavam de questões técnicas da
pintura da carnação, Didi-Huberman retoma em A PinturaEncarnada a ancestral noção de
encarnado de modo a entender a eficácia visual da representação pictórica da carne em suas
pulsações páticas.
A palavra encarnado não permite esclarecer se o prefixo en- refere-se a dentro ou
sobre; nem se o radical, carne, diz respeito ao interior do corpo, por oposição à branca
superfície. Didi-Huberman repensa a pictoriedade da carne invocada para designar o Outro,
alteridade apresentada como pele. Essa indecisão pertinente ao próprio significado do termo
constituiria algum fantasma maior da pintura. Talvez mais do que isso, pois essa ―impossível
arbitragem‖(DIDI-HUBERMAN,2012a,p.32)dapalavraencarnadotoca inconscientemente na
partilha entre a premeditação do pintor, seu modo de projetar a obra, e os gestos de seu
arremate.
Ao analisar as recomendações acerca do colorido dos rostos dadas pelo pintor Cennino
Cennini em seu tratado de pintura renascentista Illibrodell’arte, Didi-Huberman observa que
ali o encarnado não é pensado nem como superfície, nem como interioridade, mas como um
―entrelaçamento‖, inextricável, do branco e do vermelho. Cennini preconizava iniciar a
carnação de rostos por algumas demãos de branco de chumbo diluídos em água; depois,
acrescentar tons roseados com cinabre (tinta vermelha obtida do sulfeto de mercúrio),
regulados por mais ou menos branco para expressar os diferentes graus de carnação da face; e,
finalmente, aplicadas as diferentes cores de carne, voltar ao branco, delicadamente, para
43
daracabamento sobre os relevos mais salientes. O cinabre, nesse procedimento de pintura,
seria―como um sangue‖ (DIDI-HUBERMAN, 2012a, p. 34) Complementa a comparação a
rica conotação da cor: mítica, ela viria do sangue dos dragões quando mortos em combate;
geológica, ela resulta da fossilização nauseabunda de animais antediluvianos. Nesta última
forma de obtenção da cor rubra, como se parte de um processo de alquimia, ao se fazer reagir
o enxofre ao mercúrio, o cinabre resultava numa goma que servia como ―a melhor cor para
imitar o sangue‖, de acordo com Furetière (apud 2012a, p. 34). Tais incursões pelas
vicissitudes do cinabre dão tônus ao que um teórico renascentista chamou ―a voz da carne‖.
Jogo da subjacência e da transparência, o encarnado se evidencia tanto pelo que se sugere por
debaixo quanto pelo que se exige em superfície. Assim, colorido por excelência, o encarnado
seria da ordem do entremeio, imperativo categórico da convergência entre superfície e
profundidade.
No paroxismo de seu efeito mimético, conta a Didi-Huberman o teórico de antanho, o
cinabre pode equivaler a uma perfuração na carne; se aproximaria, com isso, da chaga, da pele
escorchada. Entretanto, o destino dessa perspectiva aponta para seu imponderável. É o que
ressalta Diderot, para quem a face humana se apresenta aos que tentam reproduzi-la como
uma ―tela que se agita, se move, se estende, se distende, se colore, esvai-se‖ ( 2012a, p. 35) de
infinitas maneiras. A ―incessante passagem de humores‖, essa ―vicissitude do colorido‖ que é
a carne humana, por onde oscila o pathos, seria, para o autor de Oeuvresesthétiques, por um
lado a dificuldade maior do exercício da pintura, onde se encontraria sua possibilidade de
intelectualização, de teorização; por outro lado, poder-se-ia encontrar na carne a loucura, a
irracionalidade maior do ato de pintar, pois haveria o risco sempre iminente de se corromper o
olho do pintor ao ponto de que não mais seja capaz de se deter na superfície, ao ponto de não
conseguir mais do que escorchar suas figuras. A pintura constituiria, deste modo, uma ―louca
dificuldade‖, uma aporia. Diderot teria observado, ainda, que seriam nesses obstáculos
impostos pelo rosto ao ofício do pintor que se administraria a questão do que ele avocou como
a ―temporalidade monádica do corpo‖ (DIDI-HUBERMAN, 2012a, p. 35). De modo que, por
ser ―colorido em ato e em trânsito‖, o encarnado seria como uma ―trança temporalizada‖ entre
superfície e profundidade corporais. Não deixaria de constituir, por consequência, uma
―dialética indiscreta‖ do aparecimento (epiphasis) e do desaparecimento (aphanisis) dos
fluidos e humores corporais (DIDI-HUBERMAN, 2012a, p. 36). Diderot teria concluído seu
texto alegando que a oscilação temporal do encarnado do rosto indicaria um limite da pintura,
um ponto extremo que assinalaria uma incontornável restrição do que o pintor pode executar
sobre uma superfície. Limite tão logo convertido em desespero e loucura, pois é quando
44
seconvoca o processo de retoque, indefinidamente assediado pelo fracasso, pelo caos,
peladesfiguração da obra. Como os humores oscilam incessantemente, suas manchas se
apresentam em transformação: ora destacam-se na superfície, ora se escondem na
profundidade da carne. Por conta do que seria possível entender o encarnado como um
―colorido-limite‖ que representa a alternância absoluta da verdade e da alteridade na obra.
Sobretudo, seria um colorido visado (desejado e ao mesmo tempo olhado) pela pintura, mas
de improvável realização pelos mimetismos usuais.
Ao evocar a perspectiva diderotiana, Didi-Huberman preconiza que se pense o
encarnado como um ―colorido-sintoma‖, ―um colorido por meio do qual a pintura imagina-se
dotada de sintoma‖ (DIDI-HUBERMAN, 2012a, p. 36). A pintura poderia assim ser pensada
como um corpo e como um sujeito. Sendo o colorido da vicissitude, poderia ainda ser o
colorido do despertar do desejo. Mas, principalmente, poderia ter a capacidade de se ruborizar
– como o rosto de uma amante que entrega seu desconforto, ou satisfação, ao se sentir olhada
pelo amado.
―Isso é tudo o que se pode esperar da eficácia de uma imagem‖ (DIDI-
HUBERMAN,2012a, p. 37). Espera-se que as imagens não sejam inertes, mas que reajam de
algum modo aos olhares que recebem, que possam olhar de volta e se sentirem tocadas na
profundidade de sua carne, e não apenas, friamente, sejam olhadas em sua superfície, em sua
aparente planaridade, e não interajam com o olhante. Em última instância, talvez olhamos
apenas para sermos olhados.
Haveria um fantasma, relativo aos meios da própria pintura, presente no olhar de
compaixão das imagens milagrosas da Virgem, ou no sangue da Paixão que escorre dos
corpos crísticos. Ou, ainda, no corpo feminino histérico, estudado à exaustão no século XIX
por médicos e artistas. É o fantasma de um colorido em ato e em trânsito, de um encarnado
inquieto e convulsivo. Uma histeria da pintura. Uma histeria congênita da imagem.
45
HEURÍSTICADAFIGURAEDESFIGURAÇÕES
O cinema revela, ou exacerba, o que a fenomenologia frequentemente designa
porvisada: operação em que a consciência volta-se intencionalmente para determinado objeto.
Não é o caso, porém, do cinema de Philippe Grandrieux, no qual o reconhecimento de um
objeto não é a intenção da cena. Em Meurtrière (2015) e LaVieNouvelle (2002), há figuras
que apresentam acontecimentos de imagem, não representam objetos. Não são, portanto,
realidades externas conforme percebidas pelos sentidos. São figuras intensivas, fantasmáticas,
corporeidades avizinhadas da materialidade fílmica. Em Meurtrière, por exemplo, corpos
aparecem como espasmos, misturando-se ao fundo, em desfiguração. Não são mais formas de
corpos, mas figuras quase informes, indícios de um corpo de intensidades (fig. 10). Talvez
tenhamos aqui com o que aproximar a corporeidade sintomal de que trata nosso autor.
Figura10:FotogramasdeLavienouvelle,PhilippeGrandrieux,2002
46
A imagem para Grandrieux é antes háptica que visível. Ela é visual na exata
medida,ousamos afirmá-lo, da acepção didi-hubermaniana do termo. À visão dita normal,
submetida às regras do discurso, se opõe o visual: aquilo pelo qual a imagem escapa ao
discurso. Na medida em que a história da arte se interessa apenas pela visão, ela se mostra
incapaz de dar conta do enigma da figura, que a um só tempo dá acesso a algo e o oculta. Um
cinema como o de Grandrieux não é uma questão de imaginação, mas diz respeito ao que está
diante: ao mistério das formas que estão diante insensatamente, a pura presença das coisas.
Não sendo uma simples narrativa, não entende dizer a verdade. A realidade objetiva que
veicula não trata da exposição de fatos externos ao seu próprio mecanismo de projeção, mas
reside na imagem. Pois não é caso de mostrar algo, mas de estardentro deste algo. O que
poderia significar ―estar dentro‖ para uma forma de arte tão acostumada a entender o
espectador como aquele que está fora, simples expectância? E tão acostumada a entender a
tela como um espelho do real? Estar dentro não parece ser o mesmo que fazer parte da obra
ou interagir com ela, transformando-se em mais um objeto da cena. Estar dentro é compor
com a obra durante o fenômeno mesmo de estar em sua presença. Compõe-se com a obra
sempre que o olhar é convidado a se abrir à imagem fílmica. O dessemelhante e o infigurável
nas películas de Grandrieux parecem realizar esse convite. Diante da abertura de sentidos que
elas produzem, o olhar é convidado a trabalhar em conjunto com o filme, que não exibe, por
conta disso, formas estáveis, mas formas em constante de-formação.
Philippe Dubois designa como figural essa ―plasticidade, da matéria e das formas,
sempre cambiante e fundamentalmente instável; plasticidade da presença fenomenal das
coisas‖ (DUBOIS apud HUCHET, 2012, p. 99). Talvez se possa então afirmar que o cinema
de Grandrieux seja figural, pois sua imagem, de certa forma, é moldável pelo olhar. É o
espectador que dá sentido ao que vê. E dar sentido, no campo de estudo das imagens,
assemelha-se a ―dar forma‖. Parece estarmos aqui no terreno da escultura; não se trata de algo
moldável do mesmo modo como se molda uma pedra bruta, mas há uma tatilidade essencial a
se pensar este tema. ―Dar forma‖ a uma imagem e ―dar-lhe um sentido‖ são, de certo modo,
operações semelhantes, mesmo que a primeira operação pareça ser da ordem do plástico, do
molde, da manipulação; e a segunda, pareça da ordem do intelectual, do pensamento. O
figural parece ser a categoria que consegue reunir o ato de dar forma com o ato de dar sentido,
ambos ocorrendo na mesma operação, pois o figural depende da presença, do imediato, do
fenômeno. Parece ser algo que se constrói apenas durante o olhar, como um acontecimento do
olhar. Fora de qualquer visada, um figural não existe como objeto único. Por isso, nunca
estará pronto, mas em processo.
47
Mas por que insistir nas paragens do figural? Em Diantedaimagem, Didi-
Hubermandistingue a apresentabilidade das imagens e a representação figurativa dos objetos
do mundo natural. Isto porque a apresentação situa-se do lado do que suplanta o
imediatamente percebido e que o ausenta da representação figurativa. O figural é o para além
do visível; ele se situa do lado do recalque, do esquecimento, do que se suspende/se posterga.
Ele assinala o desvio e torna-se sinônimo de falha, lacuna, rasgadura. Onde há rasgadura –
esse ―jogo‖ do ―mundo das imagens‖ com o mundo da lógica, da racionalidade (DIDI-
HUBERMAN 2013, p.188) – o sentido torna-se presente. Paradoxal falar de sentido quando
estamos na chave de uma ―suspensão‖? Ora, o esforço em vista do sentido é elaborado por
atos de um sujeito implicado, que se põe em particular relação (em ―jogo‖) com o objeto
visual. Didi-Huberman põe em linha a figuratividade e o visível (o ver), e o figural com o
visual (o olhar), o que o leva à figurabilidade; interessa-o o que não faz figura numa obra, mas
que, apesar disso, faz sentido. O que está em questão aqui é justamente o ―sentido do
sentido‖. O que não deixa de nos levar a uma concepção negativa do sentido, aquilo que toca
o sujeito do olhar a partir do não sentido do figural.
Quando Didi-Huberman situa a representação do lado do figurativo e a presença
próxima ao figural, ele se afasta de uma tradição segundo a qual a presença seria oposta à
ausência. A presença, por intermédio do figural, oscila entre a falta e o excesso, o pouco e o
demasiado. A essa oscilação acresce-se outra: entre a tendência à ―boa forma‖, que se situa do
lado do senso comum, e a deriva/desfiguração proposta pelo figural, que se situa nos lugares
em que se ausenta o ―espectador originário ou universal‖. Diante da Anunciação do Angelico,
o que mais importava senão uma figura da ausência, um objeto de desfiguração, para
justamente sustentar uma heurística metodológica? Diante dos corpos canônicos da exegese
figurativa cristã, Didi-Huberman preconiza uma experiência visual da imagem que prescinde
da soma de conhecimentos que a torna inteligível. Razão pois do convite, implícito ao longo
dos revisionismos metodológicos, para ―esvaziar‖ o ―longo desvio‖ pela ―mediação [do]
conhecimento específico‖ do que ―nos atinge imediatamente‖ .
Quiçá o cinema de Grandrieux nos sirva de paradigma para o que bem poderíamos
identificar nas análises de Didi-Huberman como sendo da ordem de um contratempo do
visual e de uma latência na imagem. O que impede uma real implicação com a imagem é,
segundo ele, o discurso que fecha na idealidade da ―concordância dos tempos‖, isto é, a
hermenêutica iconológica que se limita a ressaltar o valor intrínseco da imagem, e aquele do
tempo a que pertencem ela e o artista que a realizou. Essa perspectiva oblitera a dimensão
figural da imagem e faz primar a inteligibilidade discursiva, a forma. O que excede a
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imagem,o mistério da Encarnação no afresco de Fra Angelico por exemplo,
―desfigura‖oconhecimento documental, interrompe-o, o põe em dificuldade, pela
presentificação paradoxal da ausência (divina). Assim, o que a concordância dos tempos não
pode conceber, o que permanece heterogêneo, somente se exprime numa tensão entre o que se
mostra e o que se oculta, no contratempo de um sintoma, no anacronismo de um
acontecimento de imagem.
Ao final de WhiteEpilepsy, o fato intensivo do corpo investe a materialidade da película
fílmica de modo a expressar a capacidade de des-figuração da imagem. Pela utilização
extrema de possibilidades técnicas tais como a câmera lenta, a iluminação extra-diegética, a
sobre-exposição e o outfocus, Grandrieux sombreia e deforma os contornos do rosto da
mulher, dissipando os traços reconhecíveis de sua figura (fig.11). A imagem que resulta,
lacerada, irregular, explora o informe e os limites da expressividade. Não somente o objeto
narrado é subtraído da lógica da representação e ganha os domínios da figurabilidade: também
a forma e o espaço sofrem o mesmo tratamento. A forma em WhiteEpilepsy de fato é
ultrapassada nas suas componentes tradicionais de ordem, harmonia, equilíbrio para se tornar
força anômala e irregular por meio da iluminação e dos sons não naturais; do mesmo modo, o
espaço ali, sucedâneo contemporâneo do vazio argiloso da Anunciação renascentista, ocupado
inteiramente pelo primeiro plano do rosto da mulher e das intensas fulgurâncias de luz, abre-
se para o tempo e para os deslocamentos livres e arbitrários dos fantasmas interiores. O corpo
figural irrompe no filme como um rasgo/ferida na representação. O figural é ali des-figuração,
irrupção, desvelamento, laceração, transgressão do objeto, da forma e do espaço.
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Figura11:FotogramaderradeirodeWhiteEpilepsy,PhilippeGrandrieux,2012
Ao longo dos textos de Didi-Huberman, vemos como a figurabilidade, esta noção
queuma psicologia da imagem sintomal convoca do freudismo, ―se opõe ao que entendemos
habitualmente por ‗figuração‗― (DIDI-HUBERMAN, 2013c, p.27). A passagem prossegue:
―assim como o momento visual, que ela faz advir, se opõe a, ou melhor, torna-se obstáculo,
incisão e sintoma, no regime ‗normal‗ do mundo visível, regime no qual se acredita saber o
que se vê, isto é, no qual se sabe nomear cada aspecto que o olho está acostumado a capturar‖.
Razão porque podemos ―identificar‖ (as aspas se impõem aqui) alguns corpos sintomais ao
longo dos textos de nosso autor. Em Diantedaimagem, Ohomemdador de Dürer
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parececonvocado como imagem exemplar da figura contraída, sem troca esclarecida com
seuespectador, invaginação da forma numa recusa à plena visibilidade. A esse deus em
retração bem responderiam as figuras esmaecidas das fotografias de Auschwitz-Birkenau:
simbolicidade em ruptura de eficácia, convite a vir ter com economia mais incisiva do olhar e
da imaginação (figs. 12a e 12 b).
Figura12a:A.Dürer,Ohomemdador,1509-
10;Figura12b:DetalhedefotografiatiradapormembrodoSonderkommandoemAuschwitz.
51
AURAEDISTÂNCIA
Em 1972, Hubert Damisch, em seu Théoriedunuage, procura articular História daArte
com Estética. Analisando rigorosamente a representação clássica e barroca das nuvens, ele
encontra elementos perturbadores da falsa homogeneidade cultural de ambos os períodos
históricos. O conceito damischeano de sintoma refere a disposição do sintagma visual nuvem
em subverter semiologicamente a supremacia da representação e a uniformidade do sentido
das imagens. Seus estudos produziram o abalo das certezas da prática iconológica e abriram,
assim, espaço para a busca de Didi-Huberman por instrumentos de investigação que
escapassem do reducionismo dos signos, temas e símbolos das imagens (HUCHET apud
DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 10-11). Efetivamente, Damisch sugeria, assim como o fizera
anteriormente Jean-François Lyotard em Discours-Figure, empregar a psicanálise como
instrumento para investigar as imagens de modo a permitir que ela se converta em corpo de
expressão para rastros sedimentados de patologias, como se fosse uma estrutura linguagética
viva (HUCHET in DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 15-17). Fato é que as múltiplas referências
do conceito didi-hubermaniano de sintoma consideram-no, de modo geral, como um agente
perturbador de padrões, de hegemonias, produtor de crises e dilaceramentos, como fenda
através da qual as imagens manifestam ―sua estrutura complexa e suas latências
incontroláveis‖ (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 17). Destaca-se ainda seu poder de fazer
aflorar ―memórias, relações, semelhanças e tensões com as múltiplas temporalidades que se
manifestam nas imagens‖ (MELLO, 2014, p. 23).
Acontecimento crítico de natureza singular, a intensidade visual do sintoma é
contraditória: ao mesmo tempo, é estrutura significante em obra, sistemática do próprio surgir
dos acontecimentos; mas também produção de enigmas, de fenômenos-indícios, a não
permitir qualquer estabilidade de significados. Assim, o sintoma seria uma ―entidade
semiótica de dupla face‖, que ora lampeja, ora dissimula, motivo de ruptura da soberania da
estrutura (DIDI-HUBERMAN, 2013b, p. 335). Uma das grandes forças da imagem, ou talvez
devamos dizer sua eficácia maior, bem poderia ser encontrada no fato de ela
concomitantemente produzir conhecimento e subtração caótica (DIDI-HUBERMAN, 2012d,
p. 214). Como a imagem apresentaria tempos distintos que sobrevivem no encontro entre a
diferença e a repetição, a perspectiva sugere que pensar o tempo é pensar os seus sintomas e
anacronismos. Ao interromper o curso da representação visual e da história cronológica, a
imagem-sintoma exige ser pensada do ponto de vista de um ―inconsciente da representação‖ e
de ―memórias entrelaçadas‖. (KERN, 2010, p. 18).
52
Heterogeneidade e inconstância marcam, pois, o sintoma. Devido a isso nos importa
diretamente a listagem sintomal composta por Raul Antelo, que se reporta ao arder da imagem
em contato com o real:
Como sintomas [do] antimodernismo de Baudelaire, as FloresdoMal nos
fornecem imagens políticas, éticas, filosóficas e até mesmo teológicas
inerentes à própria modernidade ocidental. (...) Conseguir ler tais imagens é
detectar (...) onde elas ardem, onde queimam, onde se consomem. Como
sintoma, nas páginas da RevuedesDeuxMondes, os poemas de Baudelaire
lêem-se, em rede, com os textos de Elisée Reclus, de Ferrari, de Adolphe
d‗Assier, de Théodore Lacordaire ou Émile Adet. São textos, como os de
Charles de Mazade, sobre a violência política, filosófica e moral retratada no
Facundo, que, junto aos da condessa de Merlin, de extração ética, nos
fornecem imagens do exotismo do Mal; algo que também constatamos, tanto
nas resenhas proto-heterológicas da antiga vida mexicana de Ferdinand
Denis, como nos poemas dedicados à Espanha, de Théophile Gautier, a
quem são dedicadas as FloresdoMal, poemas esses de Gautier em aberta
sintonia com a modernidade "oriental" de Manet, esse discípulo de Goya ou
Velázquez. Aliteraturaeomal, o livro de Georges Bataille, começa a se
escrever nessas páginas de DeuxMondes. E além de os lermos em rede,
como sintoma, é preciso lê-los também como peculiares exercícios de saber
ou conhecimento. (ANTELO, 2007)
Tem-se aqui um painel das dessemelhanças do sintoma. São obras cujas interligações
não se dão por categorias, nem por épocas, mas por redes de peculiaridades. De um sintoma
central, uma inquietação para Antelo, outras obras se ajuntam, numa montagem heterodoxa
que vai de Manet, a Goya ou a Velázquez. Destes, vai-se além da literatura; e chega-se a
Bataille, autor desimplicado das identidades por excelência. Política mescla-se com filosofia e
com teologia; pintores com literatos, ou historiadores; derrubam-se as fronteiras dos ofícios e
das artes, dos tempos, das categorias. O sintoma trama associações inesperadas, enreda
ligações ilógicas, um mecanismo de acionamento dos saberes que se apresentam entre
desmentidos.
De retorno às visualidades, pode-se dizer que o sintoma desdobra a dialética do ver. É
o visível da diferença entre o olhante e o olhado; entre eles, diferentes historicidades
compõem a memória. Pois o tempo da imagem não é o mesmo tempo do observador; tal
relação dá-se por desníveis, desencontros. Nesse tocante, Didi-Huberman reporta-se a
Benjamin, a seu já consagrado conceito de aura. A aura – imagem que olha, transcendência
que marca a distância entre imagem e olhante, e que abdica de seu poder de retornar o olhar a
ela oferecido ao sucumbir diante da era da reprodutibilidade técnica – é sintoma da relação
desnivelada entre imagem e olho. O fenômeno aurático, privado da idéia de crença, de culto,
aproxima-se do conceito de imagemdialética: marca da tensão entre o ver e a memória; crise
53
da qual emerge diversa historicidade. O sintoma seria então da ordem de um ―suporte para
osalto, para uma inquietação renovada, não acomodada à assimilação imediata do visível,
estabelecida como memória no próprio corpo‖ (COSTA, 2009, p. 91); seria inquietação
renovada, ao interromper o curso normal de algo segundo uma lei: fenomenologia da
irrupção, do afloramento, do que emerge. Redemoinho.
A noção benjaminiana de aura importa para nos aprofundarmos na questão da eficácia
do sintoma. Em Oquevemos,oquenosolha, Didi-Huberman nos convida a pensar sobre esta
palavra, utilizada com frequência entre os historiadores da arte e teóricos da imagem.
Benjamin se referiu a ela como ―uma trama singular de espaço e de tempo‖. Didi-Huberman,
lembra que Benjamin refere a trama como um ―espaçamento tramado‖. Ele a apreende, pois,
em todos os sentidos do termo, como ―tecido, rede‖, ou como ―acontecimento único‖. É como
se o espaço e o tempo pudessem ser feitos de fios, que se entrelaçam formando uma urdidura,
uma tessitura. Sempre singular, essa trama é ―coisa trabalhada‖ que dá origem a algo como
uma ―metamorfose visual específica‖. Didi-Huberman aproxima, poeticamente, essa ideia de
metamorfose com a de um ―casulo de espaço e de tempo‖. O casulo é tecido em estado de
latência, é algo ainda não consolidado, o que está por se desenvolver, e que por esse motivo
bem poderia figurar o próprio processo, o ato da transformação mesma: a trama. Enfim, o
casulo metaforiza o espaçamento que se interpõe entre o olhante e o olhado. Tal interposição
se configura como verdadeira imposição, como um ―paradigma visual‖ dotado do ―poder da
distância‖. Poder a um tempo de aproximar e de distanciar, de unir para tão somente
apresentar o afastamento, denunciar a lacuna que há entre o olhante e o olhado. Lembremos a
fórmula desenvolvida por Benjamin para sintetizar o que ele entendia por aura: ―única
aparição de uma coisa longínqua, por mais próxima que possa estar‖. Didi-Huberman procura
observar os desdobramentos possíveis desta sentença no campo da história da arte – ou, antes,
observar o que pode a aura nos dizer enquanto distância que já se apresenta ―desdobrada‖
(DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 147).
Benjamin insistirá que a lonjura só se mostra para se de-mostrar distante. Por mais
próxima que esteja, a distância é algo como uma ―autoridade‖ que mantém o dom da
visibilidade sob seu jugo. Pois o que se dá à vista está a um tempo próximo e distante; dito de
outro modo, está distante em sua proximidade mesma. Isso importa a um teórico interessado
em investigar as estruturas da visualidade, no sentido que o objeto aurático supõe uma forma
de heurística na qual as distâncias experimentam-se umas às outras. Tal objeto procede a uma
espécie de varredura no espaçamento entre si e o olhante, incessantemente indo e vindo de sua
posição, como num jogo anadiômeno, Didi-Huberman insiste em assinalá-lo, em que ora
54
setoma o lugar daquele que é olhado, ora se assume a condição de quem emite o olhar.
Destemodo, sujeito e objeto realizam ações que seriam do Outro: o objeto se transforma em
sujeito, e o sujeito em objeto; eles se entrelaçam, tecem uma trama, unem-se na distância que
os separam. União dialética, união de opostos que se debatem, que não culminam numa
síntese( 1998, p. 148).
Na operação do olhar, o objeto, forçosamente distante, deixa clara a possibilidade de
sua ausência. Por conta disso, quando estamos diante de uma obra de arte, que aparece ao
nosso olhar e se aproxima dando conta de sua presença única, devemos nos lembrar da
possibilidade de sua iminente saída de nosso campo de visão. Ao aparecer e se aproximar (ou
ao nos aproximarmos), como um momento único, o objeto aurático é um objeto extravagante,
um objeto que nos causa estranheza devido a sua presença singular; ao se distanciar (ao nos
afastarmos), ele enfatiza o distanciamento mesmo e, nisto, configura-se como uma perda. Isso
nos lembra do exemplo pedagógico utilizado por Sartre para nos fazer pensar sobre o
fenômeno da imaginação:
Olho esta folha em branco, colocada sobre minha mesa; percebo sua forma,
sua cor, sua posição. (...) De nada serve discutir se essa folha se reduz a um
conjunto de representações ou se ela é e deve ser algo mais. (...)
Mas eis que agora viro a cabeça. Não vejo mais a folha de papel. Agora vejo
o papel cinza da parede. A folha não está mais presente, não está mais lá.
Sei, no entanto, que ela não se aniquilou: sua inércia a preserva disso. (...)
Ei-la de novo, porém. Não virei a cabeça, meu olhar continua voltado para o
papel da parede; nada se mexeu na peça. (...) Por certo afirmo claramente
que é a mesma folha com as mesmas qualidades. (...) A folha que me
aparece neste momento tem uma identidade de ausência com a folha que eu
via há pouco. (...) Não a vejo, ela não se impõe como um limite à minha
espontaneidade; não é tampouco um dado inerte que existe em si. Em uma
palavra, ela não existe de fato, ela existe emimagem (SARTRE, 2008, p. 7-8;
grifo do Autor).
A folha em branco que Sartre via primeiramente é como um objeto aurático que se
aproxima, que toma contato por meio do olhar. Nesse instante de percepção tátil do objeto, é
possível perceber suas características sensíveis mais elementares. O que a folha representa
nesse instante não vem ao caso, pois o corpo parece estar completamente absorto na tarefa de
perceber esse objeto. Ao desviar o olhar, porém, apesar de surgir para Sartre uma folha com
as mesmas características sensíveis da folha inicial, ele tem plena consciência de não ser mais
a folha que via há pouco. Trata-se agora de outro objeto, um objeto cuja existência não pode
ser negada, mas que não pode mais ser tocado; trata-se de um objeto que preserva uma relação
de ―identidade de ausência‖ com o objeto original – termo que gostaríamos de propor, na
55
obrade Didi-Huberman, como ―perda‖, e na obra de Benjamin, como ―distância‖. Essa perda
eessa distância são características do fenômeno imagético que lhe conferem certa eficácia
reminiscente. Acrescente-se, ainda, que é a partir do caráter aurático da imagem, a conjugar
contiguidade e lonjura, aproximação e afastamento, que Didi-Huberman condiciona a
oscilação imposta pela cisão do ver à sensação de angústia diante do inapreensível, do vazio.
Percebe-se nisso que a visualidade revela um campo fundado na perda, pois a visão está
sempre perturbada pela imagem, pelo horizonte da morte (LEAL, 2011, p. 43).
A aura confere aos objetos visuais o poder de, por debaixo de nossos olhos, a um
tempo nos olharem e nos escaparem. Por força desse instante paradoxal, torna-se possível
compreender outro aspecto da aura, além de seu poder da distância: trata-se do ―poder do
olhar‖. É o próprio olhante quem atribui ao olhado esse estranho poder. É o olhante quem
afirma: ―isto me olha‖ em face do objeto para o qual direciona seu olhar. Com essa afirmação,
o olhante se dá conta do aspecto eminentemente fantasmático dessa experiência: como um
fantasma à espreita, o objeto para quem olhamos nos olha de volta, nos observa, nos segue
com seu olhar particular. Animismo do visível: o que é visto passivamente adquire o poder de
ver ativamente. Didi-Huberman nos previne, porém, contra a tendência a se tomar esse poder
diferenciado do objeto como um ilusionismo cuja verdade deva ser verificada. Não é o caso
de se verificar qualquer ficcionalidade latente no ato de ver, pois, como explica Benjamin,
―sentir a aura de uma coisa é conferir-lhe o poder de levantar os olhos‖, sendo esta ―uma das
fontes mesmas da poesia‖. Esta noção de visão como poiesis não deve ser reduzida a uma
simples perda de racionalidade. Mais do que uma ―pura e simples fenomenologia da
fascinação alienada que tende para a alucinação‖, a aura deve ser compreendida como ―um
olhar trabalhado pelo tempo‖, ou como ―um olhar que deixaria à aparição o tempo de se
desdobrar como pensamento, ou seja, que deixaria ao espaço o tempo de se retramar de outro
modo, de se reconverter em tempo‖ (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 148-149).
Nesse modo de compreender a aura dos objetos, espaço e tempo convertem-se um no
outro, trocam de posições, dialogam, mudam de forma e de valor de uso. Por conta do que
Benjamin reconhecia a distância aurática como um espaço onde circula uma espécie de
―memória involuntária‖ indissociável de seu poder de distância e de seu poder de olhar. De
maneira que ele entendia a aura como um conjunto das imagens que, surgidas da
memoireinvoluntaire, tende a se agrupar em torno de um objeto oferecido à intuição. A aura
seria, quiçá, uma evocação involuntária de imagens, evocação livre de qualquer tutela,
instintiva, espontânea, a cercar o objeto percebido, mas ainda não limitado pelo raciocínio.
Esse objeto, que apresenta uma aparição desdobrada para além de sua própria visibilidade, é
56
auráticoporque aciona uma constelação ou nuvens de imagens, que abrem sua significação
para quepossam constituir uma obra do inconsciente, que poetizam entre suas aproximações e
afastamentos para poder constituir um trabalho de memória.
Não escapa a Didi-Huberman o fato de Benjamin refletir sobre a aura evocando
Proust, Valéry e Baudelaire: todos escritores que conseguiram explorar a memória como um
projeto de sacrifício do tempo evolutivo, do tempo positivista da burguesia decadente. Todos
estes literatos deram a Benjamin uma possibilidade de propor na disciplina histórica um
―trabalho do simbólico‖ que, composto de múltiplos fragmentos de tempo, mostra-se capaz de
desconstruir toda noção unívoca de visibilidade, conferindo-lhe outro valor – o de arborescer
sentidos, ampliar e abrir significados, perspectivas. Quando se tece uma trama por meio de
um trabalho cujas ferramentas são do estatuto do simbólico, duas práticas se tornam possíveis:
a de "aparecer", como produção de um "acontecimento visual único"; e a de "transformar",
como inquietação de toda estabilidade aspectual.
Podemos aqui remeter uma vez mais ao motivo do branco de fundo do afresco de Fra
Angelico: seu ―acontecer‖ ofusca, fulgura diante dos olhos; é único; mas também, de certo
modo, em sua inegável materialidade, o branco nos olha de volta e transforma toda a
estabilidade aspectual do afresco num jogo de incertezas e de aporias, a partir dos quais nos
restaria tão somente acionar nossa memória involuntária para tentarmos dar conta da abertura
causada pelo branco no todo da representação (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 149). Ao nos
olhar de volta, ao nos olhar de sua lonjura, o branco do afresco do artista renascentista
acabaria por nos possuir, ele roubaria para si todo o nosso empenho interpretativo, raciocínio
e atenção; quando assim o faz, nós deixamos de possuir a obra, deixamos de apreendê-la,
livrando-a de continuar a ser objeto de um ter; em contrapartida, ela passa a ser objeto de um
quase-sujeito, de um quase ser, dotado do poder de levantar os olhos, e de se locomover, de
certo modo, aproximando-se e se afastando. Consequentemente, tal objeto parecerá se
desfigurar ou se transfigurar; perderá qualquer noção de planaridade, pois tenderá a se abrir
ou a se escavar; perderá, ainda, seu volume, pois tenderá para o esvaziamento de tudo. Nesse
momento de transformação, mas também de saturação de tensões, o passado mostra-se
dinamizado e orientado para assumir a forma de um desejo. A interpretação de Didi-
Huberman leva-nos a perceber que a aura também pode ser explicada em termos de
experiência erótica, pois quando uma pintura se oferece ao olhar de maneira que nenhum olho
se cansa de observá-la, o que se erotiza aí é a própria experiência estética, antes do objeto
visível em si. O que resulta, na verdade, em um conflito, no qual ―o passado se dialetiza na
propensão de um futuro‖. Haveria uma relação de desejo do passado para com o futuro,
57
odesejo de um se transformar no outro. No instante em que os dois se encontram, surge
algocomo um choque da memória involuntária: é o ―presente emergente e anacrônico da
experiência aurática‖. Esse ―choque‖, de acordo com Benjamin, possui um inegável valor de
sintoma (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 149-151).
O que o sintoma significa ultrapassaria o domínio da arte em direção ao domínio da
religião. A intensidade do choque provocado entre passado e futuro seria equivalente ao valor
de culto do objeto. A distância entre olhante e olhado seria essencialmente intransponível; ela
é inerente à imagem que serve ao culto que ela não possa ser acessada. Como exemplo de
eficácia de uma imagem assim furtiva, Didi-Huberman evoca em Diantedaimagem a Santa
Verônica de São Pedro de Roma. Tradicional ícone cristão, ela só se oferece ao olhar em um
espaçamento tramado: mantém-se guardada e só é exposta em rituais solenes, apesar de
mantida à distância dos fiéis. A experiência religiosa se processa nesse espaço intransponível
entre o crente e os objetos de culto. Pois é o crente quem atribui ao objeto um ―poder do
olhar‖. Mesmo vendo apenas poucas partes do véu de Verônica, o crente não duvidará ver ali
o miraculoso retrato de Jesus Cristo. Ao levantar seus olhos para contemplar o retrato, o
crente poderá observar que a imagem literalmente se inclina sobre ele. Ele confia plenamente
que está a ser olhado por uma imagem a que se atribui o valor de divindade. Nessa dialética
dos olhares, o caráter memorial que se atribui ao objeto realiza aderência à visualidade de sua
exposição, acionando aí um ―poder da memória‖ próprio do objeto. De modo que a Verônica
jamais será para o crente uma posse. O crente ―nada terá a ‗ter‗, só terá a ver, veraaura‖
(DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 152; grifos do Autor).
Antevendo quaisquer críticas que se possa fazer à figura tornada exemplar da
Verônica, Didi-Huberman reconhece que ela pode ser entendida como um ―exemplo
demasiado perfeito‖, paradigmático. Se nos fixarmos nele, há o risco de se reduzir a aura ―à
esfera da ilusão pura e simples‖. Razão porque Benjamin vem nos alertar que a ausência de
ilusões corresponde precisamente à era do declínio da aura (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.
153). É nesse momento preciso que a noção de aura poderia soar contraditória, pois o seu
valor cultual, seu valor como fenômeno de crença, ao mesmo tempo vê-se atacado por um
modernismo militante, e também, de certo modo, Benjamin ataca a incapacidade da
modernidade de reconfigurar as coisas, mantendo uma espécie de ―melancolia crítica‖ que
sente o declínio da aura como uma perda (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 154). Isto não
significaria que a noção de aura seja contraditória ou ambígua; do ponto de vista de Didi-
Huberman, isto significaria que ela é dialética.
58
Como vimos, a aura remete à distância para com a imagem e não à extensão
daimagem. Ela depende, pois, do espaço entre a imagem e o olhante. Didi-Huberman
preocupa-se em reintroduzir a fenomenologia da aura nos estudos da imagem. Ele pensa mais
detidamente sobre as características da distância própria a todo olhar. Em uma época
aparentemente saturada de imagens, um espaçamento, um vazio, uma área não ocupada
parece algo verdadeiramente efêmero, quase como um refúgio. Ora, é nessa distância que
tudo se processa. Nela ocorrem as trocas necessárias para que a imagem seja compreendida
pelo olhante. Nela os sentidos lançam uma ponte entre cada lado do jogo da visualidade.
Nessa ponte, há uma via dupla de deslocamento de sentidos. Esse trânsito caracteriza a
imagem dialética: a dupla distância dos sentidos, sensoriais e semióticos. Ao mesmo tempo
em que a imagem é dada a ver, também se dá a ler, ou entender, não do modo unívoco como
os iconólogos acreditam, mas segundo equívocos, desvios, espaçamentos (DIDI-
HUBERMAN, 1998, p. 169). Didi-Huberman conta-nos que a imagem, em sua vertente
dialética, é formada por um aspecto sensível e por outro semiótico. A aura aproxima-se,
então, de um conceito renovado de signo, pois apresenta duas distâncias desdobradas,
tramadas, imiscuídas, inseparáveis. Nenhuma imagem é pura sensorialidade (a desmentir
alguns discursos sobre a arte contemporânea), nem pura rememoração (a desmentir alguns
discursos da história da arte) (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 170). Não vemos Didi-Huberman
criticar a noção de significante, em nome de uma semiótica de signo. Relativiza, antes, a
noção de significado. A origem da imagem, por ser uma crise e não uma criação, impede que
se formem significados que não sejam dialéticos, conflitantes, abertos, em formação.
Não é caso aqui de procurar exemplos buscando referendar o que é uma imagem
dialética. Nosso interesse recai sobre sua eficácia. Entretanto, em Oquevemos,oquenosolha
Didi-Huberman evoca o CuboNegro de Tony Smith (fig. 13). Objeto minimalista, que se
pretende tautológico: whatyouseeiswhatyousee, lembrava o dictum. Mas há sempre mais, e
desde a origem. A ideia de origem é retida de Benjamin que a considera desvinculada da ideia
de gênese das coisas. ―A origem não designa o devir do que nasceu, mas o que está em via de
nascer no devir e no declínio‖. Didi-Huberman entende que a origem não é a fonte das coisas,
mas as faz emergir diante de nós como um sintoma, como uma espécie de ―formação crítica‖:
algo que, ao mesmo tempo, perturba o curso normal do tempo e restitui o que estava
esquecido (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 171).
59
Figura13:TonySmith,CuboNegro,1962
A se ter com Benjamin, somente as imagens dialéticas são imagens autênticas. O
queDidi-Huberman reinterpreta como: somente as imagens dialéticas podem ser imagens
críticas, só elas podem criticar a imagem. Motivo pelo qual elas são capazes de assumir uma
―eficácia teórica‖ (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 172). A eficácia teórica da imagem dialética
não diz respeito a uma idealização platônica da imagem, mas à possibilidade de criticar a
estrutura mesma da representação. Reconvocar a noção de imagem dialética parece a Didi-
Huberman um modo legítimo de pensar a estrutura da imagem como interrupção sintomal de
um processo, de uma estrutura em obra. A imagem dialética ―não produz formas bem
formadas, estáveis ou regulares, produz formas em formação, transformações, portanto efeitos
de perpétuas deformações‖ (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 173). Deste modo, no nível dos
sentidos, ela produz ambiguidade (a imagem visível da dialética, segundo Benjamin). Esta
ambiguidade é concebida ainda como um choque ritmado e fulgurante, que confere à imagem,
paradoxalmente, seu valor de verdade. Seria esta a linguagem do mundo real: a sublime
violência do verdadeiro, que quebra toda noção de falsa totalidade. Nada lhe é total,
60
completo,fechado, a verdade ambígua é o destroço da verdade, mas também a sua restauração.
Seria poresse motivo que ―não há, portanto, imagem dialética sem um trabalho crítico da
memória‖ (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 174). Memória, para Benjamin, é o meio do vivido,
é o que surge da decantação das coisas. Razão porque ele entende que interpelar o passado
seja ato de exumação, de escavação de memórias: verdadeira antropologia do tempo.
61
IMAGEMDIALÉTICA
Como poderia ser eficaz uma imagem "impossível de ver" (DIDI-HUBERMAN,
1998,p. 38), como aquela do túmulo que nos olha de volta e nos impõe a imagem futura de
nosso próprio corpo morto - ou como a imagem aterradora dos mortos de Auschwitz sendo
empilhados para serem incinerados, naquelas quatro únicas fotografias que indiciam o
holocausto? A fenomenologia da imagem proposta por Didi-Huberman critica toda forma de
análise imparcial ou totalizante, mas que na verdade aborda apenas um viés dos objetos
visuais (seja ele político, estético, religioso, formalista, etc.). Não há imparcialidade que se
sustente diante de um túmulo, objeto por excelência do fim (da vida) e do começo (da
imagem), do passado (vida) e do futuro (morte), do saber (presença) e do não-saber (ausência,
memória). O túmulo é o limite epistemológico da imagem, mas também o lugar de sua mais
alta eficácia crítica. Como vimos, Didi-Huberman expõe duas alegorias representativas de
posturas extremas de esquiva da constelação de questões suscitadas pelas imagens. O "homem
da crença" aponta para a postura cristã diante da angústia causada por olhar um túmulo vazio.
Ele leva em conta apenas o que transcende à imagem. Ele esvazia o túmulo de corpos e o
preenche com promessa de ressurreição. É como uma contra-imagem: imagem invertida da
imagem mítica, com poder de reversibilidade. Quanto ao "homem da tautologia", ele diz
respeito à atitude modernista, em especial à dos minimalistas, em relação a essa mesma
angústia. Ele quererá não ver outra coisa além do que vê. Apenas o que é imanente à imagem
lhe importa. Na condição de imagem, o túmulo nada representaria. Didi-Huberman não
invalida nenhuma das duas propostas, apenas se mostra contrário à radicalização dos pontos
de vista. Razão porque ele propõe uma espécie de "jogo anadiômeno" (DIDI-HUBERMAN,
1998, p. 79), um ritmo de vaivém, dinâmica do aparecimento e desaparecimento da coisa e de
sua imagem. Pois a imagem tumular não existe sem o referente material, o ser vivo que lhe
deu, de certo modo, a forma e o motivo. Mas também não se pode negar ao túmulo sua
existência e seu devir próprios. De maneira que só haveria imagem para se pensar para além
das oposições canônicas entre visível e legível, entre visível e invisível; para além dos
princípios da imitação, da superfície, do espaço extenso, da historicidade, da identidade
biológica, do prazer. Enfim, será preciso repensar todos os pressupostos teóricos da história
da arte se se quiser entender o fenômeno da visualidade da imagem em toda a sua potência de
desfiguração - de fuga do referente, de desvio da simples materialidade, de distorção dos
significados e leituras.
62
É notável que Didi-Huberman aplique o paradigma freudiano - numa perspectiva
crítica e não clínica - ao material das imagens e procure recobrir os dois campos do saber,
história da arte e psicanálise (HAGELSTEIN, 2005, p. 86). Acompanhemos sua alusão à
narrativa do psicanalista Pierre Fédida em torno das brincadeiras infantis. Duas crianças cuja
mão havia falecido há pouco brincam com as possibilidades miméticas de um lençol. Uma
delas finge-se de morta na cama e usa o lençol como mortalha. Em seguida, ela passa a
brincar com o tecido de outra forma. Essa brincadeira apresenta o deslocamento como
mecanismo de produção de imagem: ao imitar o corpo estendido da mãe, a criança desloca a
morte e a transforma em outra coisa, mais aceitável. A imagem aterradora da morte de certo
modo é retrabalhada durante a brincadeira e, por fim, desfigurada. Genealogia mortífera do
imaginário a partir do que na visualidade haveria de mais penetrantemente deslocador.
Imagino [uma criança pequena] na expectativa: ela vê no estupor da espera
[...]. Até o momento em que o que ela vê de repente se abrirá, atingido por
algo que , no fundo – ou do fundo, isto é do fundo da ausência -, racha a
criança ao meio e a olha. Algo, enfim com o qual ela irá fazer uma imagem.
A mais simples imagem, por certo: puro ataque, pura ferida visual. Pura
moção ou deslocamento imaginário. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.79)
É com esse deslocamento da morte por meio da imagem que a humanidade aprendeu a
suportar a ideia da finitude da existência. Seria interessante acrescentar, ainda, que a morte
está implicada no próprio ato de ver. Retemos do comentador:
Ver é necessário para criar um mundo imaginário, e para não ficar preso a
uma só imagem, o que seria uma paralisação da vida psíquica. Uma criança
que não pode assistir ao enterro de seus pais, a quem a participação no
funeral é interditada, fica presa a uma imagem: o que é que estão me
proibindo? O irrepresentável continua, assim, irrepresentável e pode tornar-
se inominável e impensável. Que formas adquirem, na vida psíquica, o
inominável, o impensável e o irrepresentável? (LAUFER, 2012, p. 17).
De tal sorte que "não há sentido em colocar-se a questão de saber se uma imagem é
morta ou viva: tanto uma como outra resposta serão sempre insuficientes, ainda que a imagem
seja eficaz" (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 109). A imagem é dialética, do modo como
Benjamin a definiu quando procurava pensar, no LivrodasPassagens, a existência simultânea
da modernidade e do mito. Para Didi-Huberman, cumpre refutar
tanto a razão "moderna" (a saber, a razão estreita, a razão cínica do
capitalismo, que vemos hoje se reatualizar na ideologia do pós-modernismo)
quanto o irracionalismo "arcaico" sempre nostálgico das origens míticas (a
saber, a poesia estreita dos arquétipos, crença cuja utilização pela ideologia
nazista Benjamin conhecia bem). Na verdade, a imagem dialética dava
63
aBenjamin o conceito de uma imagem capaz de se lembrar sem imitar, capaz
de repor em jogo e de criticar o que ela fora capaz de repor em jogo. Sua
força e beleza estavam no paradoxo de oferecer uma figura nova, e mesmo
inédita, uma figura realmente inventada da memória (DIDI-HUBERMAN,
1998, p. 113).
Decerto o conceito benjaminiano de imagem dialética fundamenta muito do
pensamento de nosso autor sobre a imagem. Ele também trata de uma noção de dialética que
não é feita para resolver as contradições ou para entregar o mundo visível aos meios da
retórica, mas para ultrapassar a oposição do visível e do legível num jogo de figurabilidades
(DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 17). Nesse jogo, a dialética dramatiza constantemente a
contradição sem que proponha uma síntese, procurando, sob outro ângulo, justificar uma
dimensão verbal de inquietar, sem repouso, a imagem. Não há síntese, mas uma inquietação
movente, trêmula, em constante trabalho. A dialética didi-hubermaniana atende ao que
Benjamin define como propriedade do fenômeno aurático enquanto aparição única de uma
realidade longínqua. Considerar o longínquo como o essencialmente inacessível é condição
necessária à imagem cultual, à imagem que serve ao culto do que não se pode ter acesso
(DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 151). Isso poderia servir de base para se repensar o paradigma
originário da imagem cristã, mas igualmente para pensar a fotografia, o arquivo e o museu. A
aura está no percurso entre a sensorialidade da imagem e a memória visual que ela aciona.
Como não há imagem dialética sem trabalho crítico da memória, Benjamin compreende a
memória como o retorno do passado no momento em que ele é relembrado (DIDI-
HUBERMAN, 1998, p. 174). Portanto, a memória não tem a ver propriamente com a posse
do objeto rememorado: ela seria aquilo que produz a síntese autêntica, revelada pela forma do
objeto histórico.
A imagem dialética torna-se o ponto em comum entre o artista e o historiador.
Baudelaire teria inventado uma forma poética que seria ao mesmo tempo imagem de memória
e de crítica. Reciprocamente, o conhecimento histórico preconizado por Benjamin funciona
como um telescópio a fim de compreender a origem, o destino e os consecutivos efeitos de
conhecimento das formas inventadas por Baudelaire. Através dela ―o próprio historiador terá
produzido uma nova relação do discurso com a obra, uma nova forma de discurso, também
ela capaz de transformar e de inquietar duravelmente os campos discursivos circundantes‖
(DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 178). Dessa maneira, a imagem dialética é tanto textual,
quanto visual. Ela destaca a porosidade dos limites dessas duas modalidades de expressão, e
revela que texto e imagem nunca oferecem legibilidade plena. Benjamin dirá que o texto
funciona com um relâmpago que só será ouvido longo tempo depois e que a legibilidade
64
dasimagens só é possível numa época determinada (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 181). A
imagem dialética produz, ela mesma, uma leitura crítica de seu próprio presente, na
conflagração com o seu passado. Seu efeito de recognoscibilidade permanece ilegível e
inexprimível até que se confronte com seu próprio destino (DIDI-HUBERMAN, 1998,
p.183).
Assim considerando, torna-se necessário superar a interpretação exegética das
imagens, mas também ultrapassar a explicação iconológica, pois ambas são modos de
interpretação que subjugam a imagem ao texto. Cumpre despertar para a fulgurância da
imagem que preconize uma ―dialética em suspensão‖, sem síntese. Posição que exige ―pensar
nossas mitologias e nossos arcaísmos, não temer convocá-los, trabalhar com eles de maneira
crítica e imagética‖. Torna-se imperativo, ainda, em toda análise de imagem, apreciar os
signos mitológicos e arcaicos, seus esquecimentos, seus declínios e suas possíveis
ressurgências (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 189). A imagem dialética define-se por ser uma
imagem autêntica, mas não arcaica, pois recusa assumir função regressiva. Ela exige que não
se sacrifique às falsas certezas do presente e que não se ceda às duvidosas nostalgias do
passado (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 192). O que equivaleria a repensar a forma em face da
presença; ou repensar a especificidade em face da eficácia (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.
223). Assim, analisar a eficácia da imagem implica pensar ao mesmo tempo na distância,
estruturada como um limiar, e na semelhança, estruturada genealogicamente. Eis, pois, três
dimensões a serem analisadas simultaneamente: tempo, superfície e profundidade.
65
IMAGEMCOMOGENEALOGIADASEMELHANÇA
Didi-Huberman considera a relação de semelhança como fundamental para a
históriada arte, pois que ela ao mesmo tempo em que sustenta seu campo epistêmico ajuda a
abri-lo para além de suas certezas. A perspectiva implica uma questão de genealogia. Não há
porque o historiador trabalhar com a normativa de uma fonte absoluta. A ideia de uma
―origem original‖ permanece, quiçá, incontornável em autores-chave da história da arte como
Plínio, o Velho e Giorgio Vasari. Este, diga-se, ―inaugura um regime epistêmico fechado do
discurso sobre a arte, um regime segundo o qual a história da arte se constitui como o saber
―específico‖ e ―autônomo‖ dos objetos figurativos‖. Quanto a Plínio, ele ―oferece, ao
contrário, a arborescência enciclopédica de um regime epistêmico aberto, no qual os objetos
figurativos são apenas uma manifestação, dentre outras, da arte humana‖ (DIDI-
HUBERMAN, 2015b, p. 73). Plínio entende que há arte a cada vez que o ser humano utiliza,
instrumentaliza, imita ou ultrapassa a Natureza. Deste modo, a medicina seria a arte por
excelência. O regime fechado de Vasari faz da imitação da natureza ―um privilégio das artes
liberais praticadas foradaleicomum por alguns acadêmicos‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p.
74; grifos do Autor). Em sua concepção de arte, Plínio supõe uma similitude natural
legitimada antropologicamente pela lei comum, e só faz sentido quando restabelece relação de
dignidade com o mundo jurídico e social, bem como com o mundo das matérias e das formas
naturais. Plínio desenvolve seu projeto de acordo com uma ordem das matérias, que ele
considera ―áridas‖, reunindo sob esta categoria determinadas ―coisas da natureza‖, ―coisas da
vida‖, principalmente aquilo que ela possui de mais baixo, a exigir referência por meio de
―termos rústicos‖ e ―nomes bárbaros‖. O tratado pliniano, que Didi-Huberman denomina
―nossa primeira história da arte ocidental‖, principia porconsiderar materiais ―brutos‖ (pedras,
metais) e atividades que Vasari teria relacionado, não sem preconceito, com o universo das
oficinas (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 75-76).
Acrescente-se a isso ―o estatuto temporal do qual a arte da pintura se viu investida pela
ordem do discurso‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 76). A cíclica história vasariana mostra-
se triunfalista e teleológica; Plínio, por sua vez, recusa todo sentido explícito da história, toda
teleologia da arte, e qualquer elogio à modernidade. Didi-Huberman percebe nele a proposta
de uma ―temporalidade cindida, até mesmo dilacerada‖, em cujo rasgo aparecem as palavras
imago e pictura, a serem entendidas como dois tempos heterogêneos. Espera-se quase
espontaneamente pelo tempo da história, mas ele aparece no texto pliniano muito tardiamente,
―no momento em que Plínio começa sua lista de artistas célebres colocando a questão
66
dos‗inícios da pintura‗ (depicturaeinitiis)‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 77). Sua noção
deorigem é antropológica, jurídica e estrutural, fora do determinismo histórico que molda a
escrita vasariana. A cisão temporal assim proposta opõe à teleologia histórica ―uma
genealogia da imagem e semelhança‖ em termos de lei, de justiça e de direito. Esse ponto de
vista genealógico implica o início da história como morte de uma origem. A origem da arte
estaria contida no que Plinio denomina a imaginumpictura, termo latino erroneamente
traduzido por ―pintura de retrato‖. O que ele explicita com essa ideia refere a produção e
transmissão de uma ―semelhança extrema‖. Ao compreender que a semelhança já está morta,
que a cadeia de transmissão inaevum, ―através de gerações‖, já foi interrompida, essa simples
expressão carrega em si, conclui Didi-Huberman (2015b, p. 78-79), toda a dilaceração da
origem e da história. A tradução dessa sentença nos obriga a repensar o estatuto do objeto
figurativo de acordo com a categoria da imago, que não refere a pintura como mero gênero
artístico, mas a imagens com as quais se faziam cortejos fúnebres, imagens familiares e
íntimas, arquivos repletos de registros, ou tocantes à esfera doméstica, como as que eram
exibidas nos umbrais das moradas, dando conta da história e dos triunfos daqueles a quem se
referiam.
A pictura em Plínio refere uma ―matéria colorante‖, digna em seu modo de produção
porque proveniente de moldes diretamente tirados dos rostos dos retratados. A busca pela
―extrema semelhança‖ advém da preparação de um molde. A ―imagem‖, ou imago, nomeia
apenas um suporte ritual relativo ao direito privado. Produz-se uma ―matriz de semelhança‖
(o molde), que torna legítima a semelhança genealógica. A imaginumpictura surge como ―o
mais árido (sterilimateria) encontro de uma matéria e de um rito‖. Plínio não cessa de afirmar
que as imagines romanas não passam de rostos expressos na cera, e que ―a noção romana de
imago supõe uma duplicação do rosto por contato, um processo de impressão (o molde em
gesso se imprimindo sobre o próprio rosto), em seguida de ‗expressão‗ física da forma obtida
(a tiragem positiva em cera realizada a partir do molde)‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 81).
Seria uma ―imagem-matriz‖ produzida por aderência, por contato direto da matéria-gesso com
a matéria-rosto.
O culto genealógico descrito por Plínio faz oposição aos refinamentos diversos
implicados na cultura estética elaborada por Vasari, para quem um retrato é julgado como
―bom‖ ou ―ruim‖ de acordo com instâncias situadas no mundo fechado, autolegislador, da
accademia. Plínio julgava suas imagens pelos critérios de ―justo‖ ou ―injusto‖, ―legal‖ ou
―ilegal‖, situando sua legitimidade no espaço jurídico concernente aos direitos público e
privado, o que por conseqüência diz respeito a um campo social comum, e não a um domínioà
67
parte como o acadêmico. Sua história não poderia ser específica, como a de Vasari, por
issotem base em um ponto de vista mais amplo, em uma ―antropologia da semelhança‖ que
excede o ponto de vista disciplinarque assumiria a história humanista da arte (DIDI-
HUBERMAN, 2015b, p. 83-84).
Entende-se: a eficácia jurídica e antropológica da história da arte pliniana existe
apenas enquanto nostalgia dos tempos da República romana. A semelhança, a seu tempo
morta, exige outro modo de pensar a arte. O historiador romano a define como imitação da
natureza, similitudonaturae, o que a coloca como parte de uma história natural. Ele deseja
estabelecer o que lhe surge como a dignitas própria ao mundo das representações figuradas. O
primeiro passo dado foi então o de encontrar o agente de desaparição da semelhança: a
luxuria, vício ligado ao excesso, à abundância excessiva, ao dispêndio improdutivo. O
vocabulário relacionado à luxúria comporta ainda termos como delícias, desejos, raivacega,
cupidez, obscenidade, loucura, expressões da decadência e do esquecimento a que as ―dignas‖
noções de imagem e de semelhança foram relegadas pelos romanos da época de Plínio (DIDI-
HUBERMAN, 2015b, p. 85). O romano fala em três tipos de luxúria: a luxúriadasmatérias,
relacionado aos luxos e insanidades do mármore, bronze, ouro (medalhas, paredes folheadas,
efígies de prata), que representam, apenas imagens do dinheiro, da obscenidade, das delícias,
não imagens de uma pessoa; a luxúriadoscorpos, evocando os excessos sexuais, remetendo à
decoração das casas com figuras orgiásticas ou com praticantes de permutas eróticas,
depravações, desídias, revelando certa decadência dos costumes; e a
luxúriadasprópriassemelhanças, que diz respeito às relações entre a forma dos corpos e as
matérias formatadas, figuradas, pelo trabalho humano, além do gosto imoderado pela arte, que
levaria muitos a procederem a semelhanças usurpadas, mentirosas, monstruosas, como
quando se permutavam as cabeças das estátuas para aproveitar os corpos. Conjunto de
práticas que Vasari deverá reivindicar, mesmo colocado sob o selo infame da luxúria: o
reemprego e a montagem modernas dos fragmentos arqueológicos expostos em museus, cujas
paredes estão cobertas de imagens antigas, fomentando um mercado de antiguidades
regulados pelos connoisseurs e pelos historiadores da arte. É esse refinamento excessivo
acompanhando as exposições, mas também as casas, mesmo nos mais simples objetos
domésticos, que para Plínio implica cupidez ou loucura.
Plínio discrimina dois tipos de semelhança: a semelhança por geração - expressa por
uma lei natural, em que se instituem imagens-matrizes, moldes de gesso e máscaras de cera; e
a semelhança por transmissão - expressa por uma instituição jurídica que faz proliferar
imagens factícias, simulacros, tornando-se puro e simples valor de troca,
68
substituição,inversão, perversão, como quando se preferia exibir uma estátua de Zeus em vez
da figura dospróprios familiares, mentindo ou omitindo sobre a própria origem (DIDI-
HUBERMAN, 2015b, p. 91). A impressão aí surge ―como o modelo indispensável e
intransponível de um enxerto legítimo da semelhança: o contato direto com o rosto, a função
matricial do molde negativo garante que cada rebento – cada tiragem positiva – será, de fato,
o ‗filho‗ legítimo‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 94). O modelo técnico da impressão
revela toda a sua eficácia simbólica quando, de um lado, o molde garante metonimicamente
―a presença única e inamovível do referente da representação‖; e de outro, garante a
multiplicação indefinida, a responder por todas as combinações possíveis de alianças
matrimoniais. Por estar sempre presente e disponível, a imago romana responde a essa dupla
função antropológica de limitar a troca simbólica encarnando sua própria possibilidade. Tal
seria, então, sua eficácia jurídica: ―instituir a semelhança como ritual de duplicação tátil – e
não como retórica da representação ótica – da origem‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 94-
95).
O interesse e a identificação de Didi-Huberman por Plínio mostra-nos que o elogio à
processualidade da imagem corre ao lado do elogio de sua monumentalidade na história da
arte. Uma escrita da imagem do ponto de vista dos sintomas não pode jamais ser abstrata,
idealista, específica. É a matéria e suas transformações que produzem toda a proliferação de
leituras possíveis das imagens.
69
ASEMELHANÇACOMOIDEOLOGIA
A história da fotografia, conta-nos Arlindo Machado, pode ser entendida como a
uniãodas técnicas de produção de semelhança ótica, iniciadas no Renascimento, com a
mediação química capaz de fixar o objeto projetado num suporte, sem a intervenção do ser
humano. Essa união ocorreu apenas no século XIX; antes disso, é como se a produção de
semelhança tivesse esperado longamente pelo desenvolvimento da química (MACHADO,
1984, p. 30). Se formos ter com Diantedaimagem, observaremos que esse tempo de espera
pode ser entendido como o tempo de vigência de uma ideologia que manteve, durante vários
séculos, o poder da produção de semelhança literalmente nas mãos do engenho humano.
Provavelmente essa ideologia impediu que se valorizasse a produção de imagens de forma
técnica e sem mediação. Dessa maneira, a fotografia, como paradigma histórico, representaria
um golpe contra o pensamento humanista enquanto ideologia dominante no que se refere à
produção de imagens no Ocidente.
Para entendermos dessa forma o percurso histórico da imagem fotográfica, temos que
recorrer não a uma evolução linear dos fatos, mas a certo tipo de bom uso do anacronismo
defendido por Didi-Huberman. O legado da historiografia da EscoladosAnnales na produção
historiográfica atual faz com que a grande maioria dos historiadores ainda defenda o
argumento de que o anacronismo é o maior pecado de um historiador (DIDI-HUBERMAN,
2015b, p. 19). Ao considerarem que o presente e o passado formam mentalidades diferentes,
os historiadores ligados a essa Escola condenariam com veemência a afirmação de Arlindo
Machado (1984, p. 30) de que ―a câmera fotográfica já estava inventada desde o
Renascimento‖, faltando, para isso, as evoluções tecnológicas ligadas à química no século
XIX. Para esses historiadores, não haveria como estudar o Renascimento em termos de
―câmera fotográfica‖ simplesmente porque os indivíduos daquela época ainda não haviam
pensado nela.
Didi-Huberman critica os modelos de tempo tradicionalmente empregados para
entender a história das imagens. Apoiando-se, entre outros, no pensamento de Benjamin, ele
entende que as imagens são atravessadas por temporalidades diversas que se conflagram
numa constelação de sobrevivências do Outrora no Agora (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p.
128-129). Dessa forma, mostra-se inapropriado rejeitar qualquer possibilidade de
anacronismo. Por um lado, o historiador está com os pés fincados irremediavelmente no
presente e não pode retornar ao passado para o qual se volta. Por outro, toda imagem não
pertence apenas a ―seu‖ tempo, pois elas são temporalmente complexas por definição.
70
Asimagens podem conter repetições ou atualizações de formas que permanecem ou que
sepolarizam, invertem-se, negando a si mesmas – modo com que Warburg buscava pensar
sobre a permanência de certas formas, gestos e expressões simbólicas do passado no tempo
presente. O historiador da imagem, consequentemente, teria como objeto de estudo um
emaranhado de rastros de passados diversos, rastros heterogêneos que de algum modo
carregam-se de tempo e de sobrevivências. Assim, o trabalho do historiador tornar-se-ia
próximo daquele do arqueólogo, em seus atos de ―escavar‖ a imagem, ―exumar‖ seus restos,
interrogar seus fantasmas.
Todo arquivo de imagens fatalmente produzirá lacunas. O que Didi-Huberman parece
sustentar é que não devemos temer o uso da imaginação ou de categorias do presente para
preencher esses espaços:
Frequentemente, nos encontramos diante de um imenso e rizomático arquivo
de imagens heterogêneas difícil de dominar, de organizar e de entender,
precisamente porque seu labirinto é feito de intervalos e lacunas tanto como
de coisas observáveis. Tentar fazer uma arqueologia sempre é arriscar-se a
por, uns junto a outros, traços de coisas sobreviventes, necessariamente
heterogêneas e anacrônicas, posto que vêm de lugares separados e de tempos
desunidos por lacunas. Esse risco tem por nome imaginação e montagem
(DIDI-HUBERMAN, 2012b, p. 210).
Entendemos que a perspectiva não é muito diversa daquela de ArlindoMachado emseu
Ailusãoespecular. Alguma dose de imaginação é necessária para observar, na câmera escura
renascentista, um modelo rudimentar de câmera fotográfica. Considerando que os pintores do
Renascimento utilizavam com frequência instrumentos ópticos para favorecer uma
reprodução que se considerava fiel do mundo visível, Machado vale-se de certo anacronismo
para vislumbrar nisto alguma intenção de registro objetivo da realidade, o que é uma
pretensão da indicialidade fotográfica, já naquele tempo. O papel do artista consistia, na
câmera escura, tão somente em fixar com pincel e tinta a imagem projetada dentro dela. Isso,
de certa forma, diminui a influência da perícia técnica e da criatividade do pintor no resultado
final da obra. E desconcerta os historiadores que resumem a arte renascentista a uma época
em que a habilidade manual reinava absoluta, pois havia a intenção de obter um registro do
real mais isento possível da subjetividade humana. A construção ideológica da perspectiva
descende dessa vontade.
A perspectivaartificialis, sistema de projeções geométricas voltadas para, em
suportebidimensional, representar cenários em três dimensões, primeiramente sistematizada
71
por LeonBattista Alberti, pode ser interpretada como a leitura do espaço interno de uma
câmera escuraconforme a teoria do cone visual de Euclides:
A teoria do cone visual euclidiano perdurou até Kepler, quando este inverte
o cone – o vértice passa a estar em cada ponto iluminado do objeto visto e a
base no próprio olho. O fundamental para a história da óptica é que a teoria
euclidiana do cone visual ―restringiu‖ o entendimento do funcionamento do
olho humano. A teoria do cone visual euclidiano foi feita admitindo-se que o
que o olho vê é expressão da realidade do mundo externo. O fato do vértice
do cone estar no olho implica que o olho capta as informações de um campo
visual específico. Aqui está envolvida a concepção filosófica de Euclides.
Ele seguiu a teoria da emissão, admitindo que é o olho humano que emite
raios que chegam ao objeto, e esses raios voltam ao observador em forma de
dados, de imagens que são processadas no olho e passam, a seguir, para o
cérebro do observador. Com isso, a geometria do cone euclidiano funciona
para uma concepção de visão ativa (TOSSATO, 2005, p. 424-425).
Na geometria axiomática de Euclides, interpreta-se o espaço reduzindo-o a figuras
geométricas cuja variação de formas pode ser prevista e medida por meio de cálculos
decorrentes de determinados postulados. Fazendo uso da perspectiva, os artistas do
Renascimento puderam desenhar cenários espantosamente realistas para o período, porque
cuidadosamente medidos (MACHADO, 1984, p. 30-32). Nesse sentido, a perspectiva não
seria mais do que um código de representação e os cenários resultantes dela seriam meras
imagens calculadas, presumíveis. Essa impressão de realidade considera que a imagem
projetada no fundo da câmera escura é uma emanação do objeto real, que se encontraria a
certa distância e ângulo do orifício de entrada dos raios de luz na câmera. A realidade própria
do objeto adere à imagem resultante de sua projeção porque as relações métricas calculadas
dentro da câmera seriam proporções escalares das medidas do mundo exterior. Trata-se,
então, de artifício com a intenção de ―racionalizar o espaço a ser pintado, obtendo, para tanto,
as corretas proporções entre as figuras que estão no interior do espaço pictórico‖ (TOSSATO,
2005, p. 436).
A câmera escura parece organizar o aparente caos das diversas dimensões da
realidade. O mesmo pensamento permanece no caso da fotografia. Machado afirma que ―não
se coloca em dúvida que ela 'reflete' alguma coisa que existe ou existiu fora dela e que não se
confunde com o seu código particular de operação‖ (MACHADO, 1984, p. 32). A câmera
escura é, desde a origem, um aparelho produtor de poderosa ideologia, pois a realidade não
pode ser uma emanação imutável do objeto, mas se trata de intuição, análise e produção de
―uma verdade que advém‖ (MACHADO, 1984, p. 40).
72
Para Didi-Huberman, não se pode falar no contato entre a imagem e a realidade
semfalar em uma espécie de ―incêndio‖. Essa metáfora chama a atenção para o fato de que,
como sustenta o historiador, crítico de arte e escritor alemão Carl Einstein, ―toda forma
determinada é um assassinato das outras versões‖ (EINSTEIN apud DIDI-HUBERMAN,
2015b, p. 213). Pode-se entender a partir desta assertiva que toda imagem realizada é
construída por meio de escolhas, e que essas escolhas são feitas a partir do que se deseja
manter visível, obrigatoriamente descartando todo o resto. A imagem obtida a partir da
câmera escura estaria impregnada de subjetividade, de intencionalidade, e reduz a cinzas o
que não desejava colocar no enquadramento.
Didi-Huberman nos alerta que não podemos entender o Renascimento sem considerar
a destruição em massa das estátuas votivas na Contra-Reforma. De uma forma geral, as
imagens ―tomam parte do que os pobres mortais inventam para registrar seus tremores (de
desejo e de temor) e suas próprias consumações‖ (DIDI-HUBERMAN, 2012d, p. 210). As
estátuas votivas, chamadas também de ex-voto, tinham essa função de registro. Feitas em cera
e moldadas a partir do corpo do próprio cliente, para depois serem entregues devotamente às
igrejas (que deveriam ser abarrotadas delas), estas estátuas simbolizavam o desejo de
representar fielmente a realidade de modo a produzir um duplo, um retrato capaz de guardar a
própria imagem para o futuro, depois que a vida deixar de habitar o corpo. Mas esse duplo,
não é capaz de guardar as mudanças que o corpo sofre com o passar do tempo. Guarda apenas
um instante do devir. A estética clássica desejava, de certo modo, salvar as aparências. Como
as pessoas mudam de aspecto com o tempo, as estátuas votivas, em seu realismo
impressionante, cristalizavam a aparência do corpo em determinado momento. Essa seria a
justificativa para o fato de os renascentistas terem idealizado de tal forma o instante. Para
abrigar as coisas de sua própria transformação, os clássicos sacrificaram a passagem do
tempo. A imagem produzida pelas regras da estética classicista tem o objetivo de, com o
perdão do anacronismo, ―fotografar‖ o instante para mantê-lo livre da degradação (DIDI-
HUBERMAN, 2011b, p. 30). Esse objetivo, porém, nunca é alcançado, pois as imagens,
assinala Didi-Huberman, ―têm um inelutável devir que as faz e desfaz interminavelmente,
para fazer de sua própria desaparição – ou de sua perda de vista temporal – o objeto de uma
memória, de uma sobrevivência, de uma 'ruminação eterna' ―.
O devir das imagens é comparável à alegoria do rio filosófico heraclitiano, onde nunca
se entra duas vezes, mas também nunca se permanece o mesmo, nunca se livra de ser tragado
como um detrito ou como uma relíquia para a passagem inexorável do tempo. No devir das
imagens, nascem imagens novas ou se reproduzem imagens já existentes; outras
73
imagens,porém, são perdidas ou modificadas. Nesse jogo interminável de criação e destruição
daimagem, de sua flutuação ao fundo ou à superfície do ―rio do devir‖, é o fato de algumas
desaparecerem que permite a outras se manterem na memória. Há alguma forma de memória
das imagens que age selecionando o que permanecerá como lembrança e o que será relegado
ao esquecimento. Trata-se de imagens que pensam, imagens que criticam a própria imagem:
imagenscríticas (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 169-180). No sentido do rio que se revira, e
das imagens se alternam entre fundo e superfície, entre aparecimento e desaparecimento, tal
devir simboliza as imagens de arquivo que se incendeiam ou que se cristalizam em contato
com o real. Não deixa de ser uma visão notavelmente melancólica da relação entre imagem e
memória, pois seu contato com o real seria como uma perda. Este encontro quase às cegas
seria aquele da semelhança num espaço mais amplo do que o recorte feito pela câmera escura.
Na penumbra, a imagem do semelhante é a própria imagem da morte. Didi-Huberman
acrescenta em bela passagem que merece ser citada integralmente:
Se o mundo das semelhanças pode ser dito "vasto como a noite", é antes
porque nunca se consegue acabar com uma semelhança: ela envia sempre
para uma outra, ao menos. Mas é também por um conjunto de razões mais
antropológicas (que constituem sistema ou, melhor, "versões" de um mesmo
fenômeno). De um lado, a semelhança interroga o vivente e sua genealogia,
o desejo e sua força; nesse sentido, dirá Blanchot, a imagem "é uma
felicidade" inesgotável. "Sim, a imagem é felicidade, – mas perto dela
permanece o nada, em seu limite ele aparece, e toda a potência da imagem,
tirada do abismo no qual ela se funda, só pode exprimir-se apelando para
ele". A semelhança questiona-nos, portanto, também desde a morte: a imago
é sempre a imagem daquele ou daquela que não existe mais. Ora, a própria
morte é inesgotável e interminável para os viventes (DIDI-HUBERMAN,
2011b, p. 31).
O mundo das semelhanças opõe-se ao mundo ideológico da câmera escura
renascentista onde, no empenho em salvar as aparências, guarda-se a forma exterior dos
objetos, aquilo que aparece à primeira vista (sem mediação, imediatamente), causando uma
falsa impressão de semelhança, porque superficial, e descartando-se quaisquer outras
características que possam parecer discrepantes. Pode-se então dizer que salvar as aparências
é o mesmo que reconhecer semelhanças arbitrárias obtidas, não pela experiência de
observação, mas pelo ajuste do visível dentro de códigos e regras de apresentação. A
semelhança, sustenta Didi-Huberman, vai além do que é produzido dentro da câmera escura,
espécie de caixa de conhecimento onde o aparente torna-se evidente por si mesmo. O
semelhante nada teria a ver com o evidente. Liberta de estruturas, de códigos, a semelhança
aberta surge como uma aparição, uma manifestação inesperada, espectral. A semelhança
74
seriaum evento de inquietude, irredutível a princípios lógico-matemáticos. Sendo inevidente,
elaseria obtida pelo estranhamento, não pelo reconhecimento, como quando procuramos
reconhecer formas nas sombras da noite ou nas nuvens.
Não por acaso, Didi-Huberman convoca a experiência da leitura de Blanchot para
tratar dessa semelhança que representa o delírio da imagem, a constante formação e
deformação de suas figuras, uma imagem que não mostra um instante rígido, petrificado, mas
agitação, processualidade. Nos textos teóricos de Blanchot, assinala-se uma sistematização
aberta da escrita literária como expressão por imagens, cuja semelhança bifurca-se entre
escrita e fascinação: semelhança que encanta, que atrai o olhar, enfeitiça, deslumbra, próxima
do metafórico e do alusivo. Lê-se:
Ver supõe a distância, a decisão separadora, o poder de não estar em contato
e de evitar no contato a confusão. Ver significa que essa separação tornou-se,
porém, encontro. Mas o que acontece quando o que se vê, ainda que à
distância, parece tocar-nos por um contato comovente, quando a maneira de
ver é uma espécie de toque, quando ver é um contato à distância? [...]
[Então] o olhar é arrastado, absorvido num movimento imóvel e para um
fundo sem profundidade. O que nos é dado por um contato à distância é a
imagem, e o fascínio é a paixão da imagem (BLANCHOT apud DIDI-
HUBERMAN, 2011b, p. 29).
Não se trata do mesmo espaço de visualidade do mundo geometrizado euclidiano,
comsuas retas e ângulos calculáveis, previsíveis. A semelhança aqui está na curva, no
incalculável, na figura construída por analogia em oposição às figuras geométricas. Essas
semelhanças são como mananciais de outras semelhanças, são autorreferenciais e contínuas,
inesgotáveis: nenhum detalhe pode ser excluído de tais semelhanças, ali tudo conta. Não
podendo ser limitada, nem recortada, a semelhança é ―vasta como a noite‖, pois se trata de
uma remissão perpétua e ruminante de traços, que ―remetem a outros traços e criam, pouco a
pouco, e depois por intervalos, uma superfície indefinidamente dobrada, desdobrada,
redobrada‖ (DIDI-HUBERMAN, 2011b, p. 31-32): assim como, na noite, em sua ausência de
luz difusa, constantemente é possível perceber formas nas sombras projetadas, que aludem a
objetos ou seres reais ou imaginários. Didi-Huberman comenta:
Blanchot sabia bem (...) que se fala de semelhanças, na maioria das vezes,
quando se fala de pessoas: assim fica-se admirado a cada nascimento que
uma criança possa assemelhar-se à mãe. A semelhança parte frequentemente
de um rosto (...) dizer isso é dizer também que ela dele se separa, e mesmo
dele se arranca. O rosto que nos apareceu e que ressoa em nós – rosto de
uma pessoa amada, por exemplo – torna-se, na experiência da ruminação e
da fascinação propriamente dita, o rosto de ninguém, um meio desemelhança
75
sem ninguém a quem se assemelhar definitivamente (DIDI-HUBERMAN,
2011b, p. 32).
A semelhança estende-se para fora do território visível pela câmera, que tem de
escuraapenas o seu interior, mas toda ela é captação de luz, toda ela é dependente da refração
do dia, da sensação de certeza que o dia e suas aparências produzem em nós. A câmera escura
não dá conta das paradoxais formas deformadas da noite, nem mesmo do lusco-fusco, quando
os raios de sol tornam-se mais raros e produzem sombras mais intensas. O artífice maior da
perspectiva é a luz, de modo que sua artificialidade passa por tentar esconder que está fadada
a mostrar ambientes dependentes da incidência da luz do sol. Por esse ponto de vista, a
câmera escura não é tão ―natural‖ quanto parece. As formas dos objetos são produzidas
artificialmente; mas a semelhança ali advém por de-formidade.
Diz-se que a semelhança é vasta porque uma semelhança conversa com a outra,
porque uma alimenta a outra, formando redes e ligações. Mas também porque a semelhança
apela sempre para o corpo humano, para a forma humana, para a vastidão antropológica das
imagens. Didi-Huberman convida, aqui, a uma antropologiadovisual, pois incita a pensar a
imagem que se forma desde o anoitecer do ser humano: a escuridão da tumba, quando o
corpo, tornado invisível ou decomposto, erige-se como imagem (lembrança, saudade,
fotografia), passa a existir apenas como reminiscência, ao risco perene das cinzas espalhadas
pelo esquecimento (DIDI-HUBERMAN, 1998, 37-38). Ao lado da imagem obtida pela
câmera escura, há todo um mundo de formas à espera de encontrar a atenção de um olhar
abismado, de um olhar atemorizado (ou fascinado). Ao lado dela, há opções de imagens ainda
não construídas, imagens por fazer. Essas imagens desafiam os vivos, transformam-nos em
um paradigma do visível.
O visível e o vivente mantêm íntima relação: confirma-a a simbologia dos olhos como
portas da alma, a antiga crença de que era o olho quem emitia luz. O que ainda se vê é o que
sobreviveu. O invisível é a morte, o desaparecimento, as cinzas. A semelhança que Didi-
Huberman solicita, tragada pelas malhas da escuridão, é a semelhança com a morte que fez da
cera e do molde o ―cúmulo do realismo‖, mas um realismo mórbido. Esquecido pela
historiografia de Vasari, aquele que narrou as vidas dos grandes pintores, esse realismo de
morte deveria ser causa de muita angústia diante da passagem do tempo, a nos conduzir,
irrevogavelmente, para a morte. Didi-Huberman afirma estarmos diante da imagem como
diante do que constantemente se estranha. Esse estranhamento não diz respeito a uma
abstração, mas a uma ―semelhança em crise‖. A semelhança em crise não coloca a imagemem
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risco de perder a figuratividade. O que ela apresenta continua reconhecível. É possível dizer o
que há na imagem, descrever seus objetos, seus personagens. O que se perde na imagem é a
voz. Ela deixa de falar, torna-se muda. Ou seja, deixa de ser capaz de ser descrita ou
compreendida em forma de narrativa. A imagem não é mais substituível por um texto que a
reduza a signos que simbolizam alguma fala. Seu código iconográfico se perde. Em lugar
disso, formam-se sintomas, no sentido crítico e psicanalítico do termo, emanações de sentido
aberto, inconclusivo. Por fim, Didi-Huberman retoma o conceito lacaniano de sintoma: ―grito,
ou então mutismo, na imagem que se supõe falante‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 271).
Nessa sintomatização da imagem, a verdade irrompe, mas com o risco de desfazer
momentaneamente toda ―verossimilhança representativa‖. A verdade de que nos fala aqui o
teórico não é a mesma que a realidade. Seria, antes, o que se opõe à realidade construída
como discurso. A verdade da imagem cristã, por exemplo, está além do reconhecimento da
figura de um deus crucificado que remete a determinada passagem bíblica, mas ao
acontecimento mesmo da crença na morte desse deus e posterior encarnação, crença reiterada
a cada vez que o fiel depara-se com o corpo crucificado, e que o faz sentir olhado de volta por
essa imagem quando a vê. A verdade que a imagem passa é a da sua eficácia litúrgica. Para
isso, muitas vezes era necessário ―abrir‖ literalmente a imitação. Nessa abertura da imitação, a
semelhança não é excluída, mas trabalhada como um drama. A imitação produz um efeito
bem-sucedido de mimetismo, mas não se aprofunda para além da superfície visível (DIDI-
HUBERMAN, 2013, p. 272); produz uma imagem feliz, com bom resultado, mas pouco
eficaz em sua aspectualidade por assim dizer fenomenológica. Agradar aos olhos por vezes
não basta. Para a pintura cristã medieval, havia a necessidade de converter, de convencer. A
simples imitação de uma cena bíblica seria incapaz de retirar o paganismo romano de seu
pedestal. A representação cristã prevaleceu porque permitiu a abertura da imitação. Abriu-se,
enfim, para a semelhança e para toda a sua agitação interna, o que a tornou porosa,
manipulável pela nova fé que se estabelecia. Como um templo que abre seus portões para
todos os fiéis, a imagem permitiu-se ser, mais do que vista, penetrada.
Este drama da semelhança, no qual Didi-Huberman insiste, evoca a conhecida
passagem do Gênesis em que o pecado original conduz Adão e Eva a perda da semelhança
com Deus. Passam a se reconhecer nus – não se vêem mais como imagem perfeita. No Juízo
Final, a semelhança com Deus será restituída aos que tiverem permanecido o mais próximo
possível da imagem divina. O drama da semelhança continua com a enganação de Adão: no
Paraíso, ele era semelhante por humildade a Deus; o diabo propôs uma semelhança por
igualdade (ser o mesmo que Deus, saber o mesmo que ele, ao comer do fruto da árvore
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dasabedoria). Imitar a Deus é o que se castiga com a desfiguração, com a dessemelhança. A
prova maior do sacrifício crístico seria justamente a de se manter semelhante por humildade
quando afetado por intensa desfiguração na cruz. Ao passo que os homens na Terra,
continuando a recusar a face de Deus, permanecerão em pecado enquanto se mantiverem
dessemelhantes – ou buscando uma imitação superficial (2013, p. 273). Os exegetas do
medievo buscaram compreender esse drama da semelhança não para entender o
funcionamento da imagem, mas com o fito de encontrar um via imagética para a redenção, já
que desassemelhar é morrer – é a putrefação, a perda da carne, talvez até mesmo da alma.
Talvez sem o esperar, criaram as bases do modo de ver em todo o Ocidente: ver não apenas
como uma busca de imitações, mas procurando nos interstícios da imagem os seus sintomas,
aberturas, rasgaduras.
Diga-se que a morte foi inventada por força de uma perda da semelhança para com
Deus. Didi-Huberman observa que há um paradoxo no modo medieval de se relacionar com a
semelhança: ao mesmo tempo em que elas carregam uma ideia perpétua de morte e de
pecado, também carregam uma vontade religiosa de matar a morte, de vencê-la. Daí se
questionar: ―que reconforto quanto à morte os cristãos puderam extrair de um deus em
perpétua imagem de morrer numa cruz?‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 284). Um deus como
esse parece se contradizer imageticamente. Para não surpreender a figura de Cristo como uma
falácia, os cristãos rejeitaram o aspecto simplesmente visível das representações e se
concentraram mais em ver os sintomas da encarnação, aquilo que está para além do visível.
Didi-Huberman acusa Vasari de ignorar a perturbadora eficácia das imagens, que teria
sido percebida pelos cristãos primitivos quando confrontados com o paradoxo da semelhança.
Enquanto os cristãos entendiam que a imagem carregava consigo uma ideia de morte, para
Vasari a imagem construída por um artista como Giotto era capaz de trazer de volta à vida as
coisas e indivíduos, vivos ou mortos, que ele mimetiza. Vasari chamava de ―dom de Deus‖ ou
de milagre essa habilidade com o disegno. O artista torna-se uma espécie de intermediador do
retorno das coisas à vida, capaz de fazê-las renascer (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 69-71). O
retorno à vida é concedido por meio de certa maniera de imitar a natureza, modelo de ―bela
pintura‖, de arte bem sucedida. Mais do que isso, o Renascimento vê nascer o gênero retrato
obtido a partir da ― identificação dos termos semelhante, natural e vivo‖ (DIDI-HUBERMAN,
2013, p. 286). Estes termos parecerão mais idênticos ainda após a fotografia. Ao produzir
imagens sem a mediação do ser humano, o retrato fotográfico consegue captar um instante
vivo, a natureza tal como ela aparece diante de nossos olhos, aparentemente sem desvio.
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O objetivo de Vasari seria o de separar a semelhança do drama no qual o cristianismo
continuava a pensá-la. Tratava-se de fazer dela um vetor de êxito e de humanitas. Para isso,
era preciso constituir a pintura, a escultura e a arquitetura como artes ―maiores‖ ou ―liberais‖.
Considerá-las maiores implicava em ―matar o artesanato‖. A elevação das artes do disegno a
uma condição de arte superior não ocorreu por conta da qualidade técnica das obras, mas por
um viés ideológico. Na Florença quatrocentista, lembra Didi-Huberman, o busto dito de
Niccolò da Uzzano (fig.14), feito em terracota, impressionava aqueles que se deparavam com
tal ―cúmulo do realismo‖. A granulação da pele, as rugas, as verrugas, marcas de um início do
envelhecimento, são de uma noção de semelhança que se poderia qualificar ―humanista‖.
Seria possível quase ver a vida pulsando por debaixo da matéria. Contudo, esse realismo
extremo não teria sido produzido primeiramente pelos ―grandes artistas‖ eternizados pela
história da arte. O hiper-realismo do busto de Niccolò já havia sido atingido pelos fallimagini,
―fazedores de imagem‖, artesãos de positivos em cera sobre um modelo vivo.
Figura14:Donatello,BustodeNiccolòdaUzzano,c.1432
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Os ex-votos ainda estavam sob o regime de semelhança dramática do cristianismo, mas
já possuíam a semelhança divina, o dom de Deus, o milagre próprio do homem renascentista.
Didi-Huberman tenta compreender por que motivo essas imagens foram conservadas em
arquivos como objetos quaisquer, e não em museus ou livros de história da arte. É no
historiador-antropólogo Warburg que ele encontra um caminho para a resposta. Para além de
toda hierarquia dos objetos de arte que procura distribuí-los no tempo e por uma ideologia da
perícia técnica, interessou-se Warburg pelos ex-votos e sua impressionante capacidade de
assemelhar. Didi-Huberman, por sua vez, constata que os bustos de cera não foram alçados à
condição de objetos de arte porque não foram feitos com o estilo renascentista, embora
tivessem o aspecto. O que nos dá fortes indícios do motivo porque para Vasari o importante
não era tanto o resultado visível da obra, mas seu modo (ideológico) de produção. O que
muda entre o busto de Niccolò e um ex-voto é o sentido dado à intervenção humana no
processo de produção da imagem. No primeiro, o trabalho do artista é elogiado, não como um
esforço físico, mas pela aplicação de sua erudição, de sua técnica; no segundo, a técnica
artesanal utilizada ia contra as convenções da invenzione e da maniera renascentistas devido a
seu caráter braçal e prático (lembremos que ambas as concepções estavam contidas no
conceito grego de techné). A semelhança era obtida por impressão, por indício, e não por
habilidade. Notemos que a semelhança indiciária retorna com toda força na fotografia: seria
preciso assumir a ruptura com a produção manual de imagens para que a química e o
conhecimento tecnológico-industrial pudessem favorecer a construção da câmera fotográfica.
Com isso, afirmamos que há algo de artesanal na imagem fotográfica que certamente irritou
os herdeiros do pensamento de Vasari, defensores da habilidade manual.
Didi-Huberman supõe que Vasari teria conhecido os ex-votos da Santíssima
Annunziata e visto sua semelhança impactante. Mas o que ele fez em sua obra biográfica foi
inverter a ordem dos fatos, pois foram os grandes artistas do século XV, particularmente
Verrocchio, que incorporaram em seus projetos estéticos a destreza artesanal dos obscuros
produtores de ex-votos. Imagens que, em contato com o real, se incendeiam. Muitas delas,
certamente, se perderam. Cabe aqui imaginar o quanto não foram longe, o quanto não foram
assustadoramente reais essas imagens votivas, destinadas não à fruição do olhar, mas
entregues liturgicamente como forma de adoração, como agradecimento, em respeito à
divindade, em respeito à semelhança.
80
IMAGEMABERTA,IMAGEMHISTÉRICA
Nas investigações de Didi-Huberman sobre as imagens, observam-se
motivosconstantemente entrelaçados. Não é possível compreendê-los, ao menos não em toda
a sua complexidade, se não tomarmos as imagens pelo ponto de vista de uma análise
antropológica. Nessa perspectiva, ainda, seria necessário atentar para o que concerne a um
estudo da imagem empreendido sob o método de uma metapsicologia da imagem, entendendo
metapsicologia no sentido propriamente freudiano, como a ciência que trata de avaliar os
resultados obtidos por meio do método psicanalítico. Talvez com isso seja possível especular
a respeito das ligações entre os processos físicos e mentais que cercam o fenômeno imagético.
Pois as imagens exigiriam uma forma de abordagem que fosse capaz de não separar a
imagem, enquanto objeto, da imagem enquanto operaçãodosujeito. Está-se em face dos
recondicionantes de uma história da arte assumida em sua ―fecundidade intrínseca‖ (DIDI-
HUBERMAN, 2007, p. 34).
Ocorre de o objeto visual não pode ser desintrincado do sujeito do olhar. Modo de
dizer que a imagem se confunde com a economia psíquica da imaginação. Essa ligação, ou
implicação, entre sujeito e objeto, já presente na noção de encarnado, abre a história da arte
para uma dupla proposta, construída por nosso autor desde os seus primeiros textos. Nota-se
que ele ―busca compreender a história da arte em suas duas dimensões simultaneamente, a
genitiva objetiva que é o discurso histórico sobre os objetos de arte e a genitiva subjetiva que
trata do desenvolvimento dos objetos de arte‖ (PUGLIESE, 2005, p. 479). Essas duas
perspectivas não são tratadas em separado. Pelo contrário, a todo tempo revelam-se
entrelaçadas, retrabalhadas, requestionadas.
Didi-Huberman recorre à hipótese freudiana para a construção da espacialidade pela
psique de modo a demonstrar de que maneira sujeito e objeto são categorias que sempre
atuam juntas na formação das imagens. Em Freud, a espacialidade é resultado da projeção da
extensão do aparelho psíquico do sujeito. Contrariando a hipótese de Kant segundo a qual a
espacialidade configura-se como condição apriori do aparelho psíquico, Freud condiciona
nossa noção de espaço à ação de uma psique extensa, como se houvesse algum gênero de
correspondência entre mente e corpo. Este particular conceito de extensão ―sugeria que a
relação entre o aparelho, o encéfalo e atos conscientes (...) conduzia Freud a admitir um
paralelismo entre a ordem biológica e a atividade mental, descartando a idéia de uma
biologização do psicológico‖ (SKLAR, 2008). Ao considerar a hipótese de Freud, Didi-
Huberman postula que a espacialidade deva ser ―compreendida em sua abertura, sua
81
lacuna,sua vocação ao orifício, ao ferimento, ao intervalo‖ (DIDI-HUBERMAN, 2007, p.
34).Aproximar a questão de nossa noção de espaço à carne do corpo humano, às suas dobras,
pele, aberturas, permite conceber a psique como extensão ―dobrada‖, como evento dotado de
sintomas e do poder de abrir a si mesmo. A imagem que tem origem nesse processo não
poderia ser outra senão a que expressa aberturas, intervalos, lacunas, pois se movimenta
ritmicamente entre ordem biológica e atividade mental, entre mente e corpo, entre extensão e
psiquismo.
Didi-Huberman nos lembra que Freud não foi o único em sua época a pensar as
implicações de uma noção de espaço derivada da relação entre mente e corpo. Houve outras
interpretações, que possuíam em comum a ideia de que o espaço externo ao corpo é
reconhecido num processo que evoca o corpo como espaço, dotado de superfície, curvas,
redobras, orifícios, aberturas, rasgos. Além de mencionar a ―estesia primordial do espaço‖
como analisada por Paul Schilder, pupilo de Freud; ele retoma Ludwig Binswanger, que
propunha ―um tipo de inteligibilidade capaz de nos fazer compreender como as modificações
páticas do espaço podem reconfigurar as qualidades estéticas‖ (DIDI-HUBERMAN, 2007, p.
35; grifos do Autor).
Que o espaço se modifique em função do pático, ou talvez da libido, e que isso
implique nas propriedades formais, nas aparências e nas semelhanças que conferimos ao
mundo visível, é tudo o que interessa à expressão do que Didi-Huberman denomina
imagemaberta. Esta visa uma economia muito particular da representação, na qual formas,
aspectos, semelhanças se rompem e deixam aparecer uma ―dessemelhança fundamental‖. Ela
indicia um regime do deslocamento, da ruptura, da alteração. Mais do que mera categoria de
imagem, a imagem aberta se reporta a um momento privilegiado, a um
acontecimentodaimagem, ―onde se rasga profundamente, ao contato com o real, a organização
aspectual do semelhante‖ (DIDI-HUBERMAN, 2007, p. 35). Retomamos, assim, o tema da
desfiguração acima comentado.Se as imagens estão constantemente em movimento, então não
cessam de adquirir formas renovadas, não cessam de se recriar, de se reconfigurar. Se
algumas imagens são decididamente estranhas, insensatas, inquietantes, talvez elas possam ser
aproximadas, metaforicamente, da mulher em estado de insanidade mental que é apresentada
em Ainvençãodahisteria. Lê-se:
Eis a louca que passa dançando, enquanto se lembra vagamente de algo. As
crianças a perseguem com pedradas, como se fosse um melro. Os homens a
seguem com o olhar. Ela brande uma vara e finge segui-los; em seguida, ela
retoma seu caminho. Deixa para trás uma sandália, e não se apercebe.
82
Longas pernas de aranha circulam por seu pescoço; nada mais do que seus
cabelos. Seu rosto não se parece com um rosto humano, acredita-se vê-lo um
momento, mas ela lança uma gargalhada de hiena. Ela deixa escapar retalhos
de frases que, caso costurados, muito poucos encontrariam um significado
claro; mas quem os recosturaria? Seu vestido, rasgado em mais de um lugar,
executa movimentos bruscos ao redor de suas pernas ossudas e enlameadas .
Ela vai à frente, como a folha de álamo, levada, ela, sua juventude, suas
ilusões e sua felicidade passada, que ela revê pelo turbilhão das faculdades
inconscientes. Seu andar é ignóbil, e sua respiração exala aguardente. Por
que ainda se teima em achá-la bela?
A louca não permite nenhuma aproximação, ela é orgulhosa demais para se
queixar, e morrerá sem revelar seu segredo para aqueles que se interessam
por ela , mas aos quais proibiu qualquer comunicação; mas que ela convoca,
no entanto, por suas poses extravagantes. As crianças a perseguem com
pedradas, como se fosse um melro. Os homens a seguem com o olhar.
(DIDI-HUBERMAN, 2015a, p. 101).
Trata-se, na verdade, de um fragmento da 2º estrofe, 3º canto, dos CantosdeMaldoror,
poema em prosa de Lautréamont que se vê incorporado à massa analítico-argumentativa do
historiador, que nem mesmo o parafraseia: escreve-o como se fosse parte de seu livro. A
imagem desoladora da mulher, descrita como uma figura que lembra ―vagamente alguma
coisa‖, como se sua desfiguração obrigasse o olhar ao acionamento de uma memória das
formas para tentar equilibrar a figura irreconhecível, sugere que procurar semelhanças seja a
primeira ação executada, intuitivamente, diante de formas não imediatamente discernidas.
Empregar meios para dar à figura alguma forma de inteligibilidade seria uma reação natural
(uma defesa psíquica) à sua estranheza. A forma deformada sofre, desta maneira, uma
tentativa de coerção à razão. Que surjam, na narrativa, crianças que se põem a perseguir a
desconhecida, como se ela fosse um pássaro ―qualquer‖, um melro, é algo a se considerar com
atenção. Após tentativa frustrada de reconhecer na estranheza alguma familiaridade, o
aparecimento das crianças adquire insuspeito efeito simbólico: o modo infantil de conhecer o
mundo não ocorre pela assimilação de formas conhecidas, mas pela fratura das formas, pelo
despedaçamento – como bem mostrara Benjamin a Didi-Huberman (DIDI-HUBERMAN,
2015b, p. 139-142) - ou pelas brincadeiras de ausências e assassinatos -no entendimento de
Freud e Fédida (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.79-87). Ao despedaçarem brinquedos, as
crianças se deparam com seu modo de funcionamento. Danificando o brinquedo, a criança
interrompe seu uso, torna imprestável seu objeto de conhecimento: arriscamos a dizer que o
ato de atirar pedras põe em execução um projeto epistemológico a caráter experimental, uma
verdadeira heurística.
Talvez se possa falar aqui do paradigma infantil em Didi-Huberman nos termos do que
ele chama um ―pensamento alterante‖, afeito a processualidades selvagens de
83
arrancamento,esvaziamento, o que não deixa de apontar para uma eficácia expressiva do
inquietante. Assim,em contexto diverso, onde é caso das cerimônias infantis de
desventramento dos bonecos, esses objetos antropomórficos por excelência, lê-se:
A crueldade manipuladora da criança, que maltrata seu brinquedo, arranca-
lhe as partes, abre-o e esvazia-o, de modo a olhá-lo finalmente desde seu
âmago informe – ‗Olhar curiosamente, mas com uma grande faca, o que há
no ventre do brinquedo que grita‗ (Bataille) –, leva a reconhecer nas
imagens, não o poder de consolar mas, ao contrário, a eficácia expressiva de
inquietar, e a eficácia sacrificial de ‗abrir‗, de fazer ‗sangrar‗. Solicitá-las,
assim caracterizadas, como paradigma para a sensibilidade moderna, implica
na exasperação contra o ‗familiar‗ e o ‗repousante‗, assim como contra toda
a ordem das ‗significações transfiguradas‗ (DIDI-HUBERMAN, 2006b,
p.81).
Em Oquevemos,oquenosolha, a reflexão se complementa: a boneca, nas mãos e sob o
olhar da criança, mostra-se capaz de se alterar, ―de se abrir cruelmente, de ser assassinada e
com isso ter acesso ao estatuto de imagem bem mais eficaz, bem mais essencial – sua
visualidade tornando -se de repente o despedaçamento de seu aspecto visível, seu
dilaceramento agressivo, sua desfiguração corporal‖(DIDI-HUBERMAN, 1998, p .83).
―Sublime violência do verdadeiro‖, como quebra da bela aparência, lembra a injunção
benjaminiana (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.173).
Os modos extravagantes da mulher descrita por Lautréamont parecem ser
aproximáveis daqueles das mulheres histéricas estudadas pelos alienistas clássicos,
particularmente por Jean-Martin Charcot. Didi-Huberman observa que eles reconheciam na
histeria alguns gestos convulsivos repetitivos, mas que consideravam como movimentos
desprovidos de sentido. Os revolteios corporais da histérica chegaram a receber variada
nomenclatura: ―cinismo‖ do corpo, ―clownismo‖, ―movimentos ilógicos‖, ―crise demoníaca‖,
termos que, estima Didi-Huberman (2013c, p.333), se prestaram tão somente a sublinhar o
caráter ―desfigurado, disforme e, sobretudo, privadodesentido que tais acidentes do corpo
propunham ao olhar‖. A ―passagem de um corpo à aberração de uma crise‖, próprio de uma
convulsão histérica, seria marcada por gestos acidentais que, sob uma observação menos
atenta, pareceriam totalmente carentes de lógica. Didi-Huberman ressalta, porém, que Freud
observou as pacientes histéricas mais atentamente do que Charcot, e teria percebido nesses
movimentos algo como sua lógica interna, diversa daquela que se constrói quando, desde o
início, espera-se a obtenção de significados evidentes. Os acidentes corporais produzidos
pelas pacientes histéricas não poderiam ser entendidos como sintomas clínicos convencionais.
Eram de fato sintomas, mas os acidentes não eram simples gestos automáticos. Essesacidentes
84
seriam ―soberanos‖, como se fossem gestos que perderam sua representatividade,seu código,
sua capacidade de transmitir informações, de comunicar sentidos, como se existissem por si
mesmos. São gestos incompreensíveis, não icônicos, gestos que não declinam seus sentidos.
Mas justamente porque perderam referencialidade, esses acidentes tornam-se soberanos:
tiranizam o corpo inteiro; liberam uma significância própria; fazem trabalhar uma estrutura
―dissimulada‖ ( 2013c, p. 333-334).
Didi-Huberman encontra na análise freudiana da soberania do gesto acidental da
histérica um modo de observar e de descrever as imagens atento a seus paradoxos visuais,
suas insignificâncias ou suas dissimulações. Com o rigor semiológico da noção psicanalítica
de sintoma, nosso autor pôde pensar imagens das quais a maioria dos historiadores da arte se
esquiva, ou comentar sobre objetos visuais canonizados, todavia distante do conjunto estável
de significações que lhes imputam. Mesmo porque o sintoma busca dar conta do que é
singular, dos acontecimentos críticos, das intrusões, mas também daquilo que advém,
enigmaticamente, como parte de uma estrutura significante ainda desconhecida. O conceito de
sintoma construído por Didi-Huberman pode ser tanto algo como um estilhaço da imagem
(um pedaço, fragmento de algo maior), quanto uma evidência incompreensível, uma
dissimulação violenta, pois flagrante.
Importa, porém, a advertência: ―falar de sintoma no campo da história da arte não é
buscar doenças, ou motivações mais ou menos conscientes, ou desejos recalcados por trás da
representação, supostas ‗chaves de imagens‗― (DIDI-HUBERMAN, 2013c, p. 335). A
proposta, aqui, é um tanto mais simples, modesta mesmo. Tratar-se-ia apenas de ―avaliar um
trabalho da figurabilidade‖, dado que toda figura pictural supõe uma figuração, mas que esta
suposição não implica numa relação simples: a figuração não deixa de ser um ―emaranhado
de paradoxos‖, principalmente porque ―a imagem sabe representar a coisa e seu contrário‖,
isto é, a imagem é insensível à contradição, ou a contradição é seu modelo mesmo de
identificação. De modo que ―quando as imagens são mais intensamente contraditórias [...] são
mais autenticamente sintomáticas‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013c, p. 335-336).
Um saber sintomal situa-se necessariamente no limite entre fenomenologia e
semiologia. Donde a abertura para a questão, central na história da arte, da legibilidade da
imagem. ―Na pintura, as unidades mínimas não são dadas, mas produzidas, (...) não
pertencem nem a uma sintaxe, nem a um vocabulário no sentido estrito‖ (DIDI-
HUBERMAN, 2013c, p. 337). Mesmo assim, na imagem são produzidas significâncias. Para
direcionar a história da arte rumo a uma ―estética do sintoma‖ cumpriria propor uma
fenomenologia ―não da simples relação com o mundo visível como meio empático, mas
85
darelação com a significância como estrutura e trabalho específicos‖; além disso,
cumpririapropor uma semiologia ―não somente dos dispositivos simbólicos, mas também dos
acontecimentos, dos acidentes, das singularidades da imagem pictórica‖. Com o que mesclar
semiologia e fenomenologia, alternar uma com outra; com o que comprovar a inextricável
relação entre objeto visual e sujeito do olhar.
86
II
EFICÁCIAEPISTEMOLÓGICADAIMAGEM
A imagem como tal não passa de uma zona de
indecidibilidade entre o verdadeiro e o falso.
(GiorgioAgambenapudDidi-Huberman,―Imagem,
evento, duração‖)
Aquele que diz: ―vou lhes falar desse objeto visual
do ponto de vista específico do historiador da arte‗,
este provavelmente corre o risco de deixar escapar o
essencial. Não que a história da arte deva por
definição deixar escapar o essencial, muito pelo
contrário. Mas porque a história da arte deve
constantementereformularsuaextensão
epistemológica‖.
(Didi-Huberman, Diantedaimagem)
Será preciso [...] deslocar e complexificar as coisas,
requestionar o que ―tema‖, ―significação‖,
―alegoria‖ e ―origem‖ podem, no fundo, querer dizer
para um historiador da arte.
(Didi-Huberman, Diantedotempo)
87
AFORMA-ENSAIO:ESCRITADOCONHECIMENTOPORIMAGENS
Em um momento de auto-análise, Didi-Huberman revela: ―sou um ensaísta. Lembro-
me que, quando era mais novo, admirava muito o poeta Edmond Jabès, que me dizia: ‗tu és
um ensaísta‗. Eu lidava muito mal com isso. Não tinha compreendido que ele tinha toda a
razão. Sou um ensaísta, eu ensaio‖. Na forma-ensaio, caracteriza Adorno (2003, p. 15-45),
abandona-se toda busca pela sistematização dos saberes. O discurso hierarquizante,
determinista, também é ali dispensado. Evitam-se generalizações sobre o objeto de estudo. O
rigor do ensaio é de outra ordem. Dele fala Didi-Huberman como de uma exigência
suigeneris:
Aos olhos daquele que ensaia, tudo se parece sempre a uma primeira vez, a
uma experiência marcada por incompletude. Se ele sabe e aceita tal
incompletude, ele revela a modéstia fundamental de sua tomada de posição.
Mas ele está então obrigado, estruturalmente, a recomeçar sempre, da
‗primeira tentativa‗ inicial aos numerosos ‗ensaios‗ que se repetem depois
dela. E nada lhe parecerá uma segunda vez. É, no fundo, como uma dialética
do desejo. O que faz então o montador, por exemplo, se não começar por
montar seu material de imagens, depois desmontar, depois remontar, depois
recomeçar sem trégua? É a exigência de sua tomada de posição (é possível
aqui lembrar que a palavra ‗ensaio‗ tem sua etimologia no baixo latim
exagium, a qual deriva do verbo exigere, ‗fazer sair algo de outra coisa‗)
(DIDI-HUBERMAN, 2010c, p. 98).
Diferentemente do método científico, o ensaio não possui a pretensão de buscar uma
verdade definitiva sobre o que quer que seja. O ensaio parte da experiência individual, mas
não se estende para além do que ela é capaz de apreender. Na ciência, as experiências
individuais são apenas pontos de partida de um percurso do pensamento rumo à abstração. O
ensaio reconhece que as experiências estão sujeitas aos acontecimentos, aos fluxos da vida,
alteram-se com o tempo. Ele reconhece que não há verdade eterna, pois toda verdade é
mediada historicamente. Se a realidade é feita de fragmentos, a escrita que dela se ocupa não
pode propor mais que unidades transitórias.
Para garantirmos uma leitura eficaz da obra de Didi-Huberman, talvez seja necessário
vislumbrar os efeitos para a história da arte de uma escrita ensaística. O autor de
Diantedaimagem parte de uma evidência: "os livros de história da arte sabem nos dar a
impressão de um objeto verdadeiramente apreendido e reconhecido em todas as suas faces,
como um passado elucidado sem resto" (DIDI-HUBERMAN, 2013c, p. 11). Esta afirmação
flagra a pretensão de totalização de uma área que "constitui, dizem, uma ciência, ciência
fundada em última instância sobre a certeza de que a representação funciona unitariamente".
88
Nessahistória da arte entendida como ciência, tudo se adapta perfeitamente e acaba por
coincidircom o discurso do saber, de modo que "pousar o olhar sobre uma imagem da arte
passa a ser então saber nomear tudo o que se vê - ou seja, tudo que se lê no visível" (DIDI-
HUBERMAN, 2013c, p. 11). Sob essa "retórica da certeza", subsiste um modelo implícito da
verdade que busca constituir o fechamento do visível sobre o legível. A questão da
legibilidade da imagem passa a ser, para o historiador-ensaísta, questão central a ser
repensada de modo a questionar as próprias certezas da história da arte como disciplina
acadêmica.
O estatuto do conhecimento científico desta área confunde-se com a sua
institucionalização. A hierarquização do saber em história da arte adaptou-se à hierarquização
do saber universitário – a história da arte cria hierarquias dentro daquilo que ela imagina ser o
seu campo de atuação, hierarquias que funcionam como degraus em direção a um
conhecimento cada vez mais específico das obras de arte, e almeja, com o acúmulo de saberes
em torno do objeto, uma ideia de conhecimento universalizante. Razão porque
Diantedaimagem recoloca em discussão as certezas do método classificatório e arquivístico
empregado pelo historiador da arte. Não é à toa que seu autor acaba por se deparar com certa
hostilidade no ambiente universitário francês, tradicional defensor da precisão e do rigor
metodológico típicos da Iconologia. É o que se entende do seguinte depoimento de Didi-
Huberman em entrevista, quando perguntado sobre o lugar por ele ocupado na academia:
Seria melhor interrogar a necessidade de deslocamento sobre a legitimidade
do "lugar". Eu poderia, sem dúvida, evocar esta ou aquela experiência
concreta: as numerosas dificuldades - até as polêmicas - com a academia
francesa, os sentimentos frequentes de mal-entendidos com o mundo anglo-
saxão, a extraordinária recepção no meio alemão, o diálogo aberto com
filósofos e literatos, o não-diálogo com muitos dos historiadores portanto
próximos de minhas preocupações... Além das controvérsias pessoais, é
apenas, eu acho, um problema global da história intelectual: qual é o lugar
que queremos dar ao pensamento filosófico, à interrogação psicanalítica ou à
preocupação poética neste campo disciplinar que se nomeia por ciências
humanas hoje? (DIDI-HUBERMANapudPOTTE-BONNEVILLE ;
ZAOUI, 2006).
Ao buscar legitimar o ensaio como método diverso de trabalho, Didi-
Hubermanquestiona as práticas tradicionais da história da arte, integradas ao estruturalismo
desde Pierre Francastel (HUCHET in DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 8-9), e abre, neste campo
do saber, lacunas e fraturas naquilo que se pensava livre de polêmicas. Nosso autor viu-se
obrigado a não só proceder a uma investigação genealógica dos fatores que levaram a história
89
da arte a assumir o fechamento de seus pressupostos epistemológicos, como teve de se
comprometercom a elaboração de uma cuidadosa exposição da eficácia crítica de seus objetos
de estudo eda fundamentação teórica que alicerça sua obra.
Em Ensaiocomoforma, Adorno já denunciava que ―a corporação acadêmica só tolera
como filosofia o que se veste com a dignidade do universal, do permanente‖. Esta crítica, que
visava a ciência alemã, buscava demonstrar porque ainda não se havia obtido condições
propícias para uma maior ―liberdade formal‖ na escrita científica. O ensaio, cujo âmbito de
competência não pode ser prescrito, esforça-se por espelhar ―a disponibilidade de quem, como
uma criança, não tem vergonha de se entusiasmar com o que os outros já fizeram‖
(ADORNO, 2003, p. 16). Em vez de tentar alcançar sempre novas descobertas, numa espiral
progressiva de contínuas novidades, o ensaio não converge para um ―fim último‖, pois
―felicidade e jogo lhe são essenciais‖. Não obedece à moral do trabalho que regula a atual
produção de conhecimento. Escrever ensaios é nunca concluir o trabalho por reconhecer-se
incapaz de esgotar as possibilidades de interpretação dos objetos de conhecimento. Ainda que
os critérios utilizados pelo ensaio o aproximem de uma autonomia estética compartilhada com
a arte, não se pode perder de vista que o ensaio é também uma forma legítima de conhecer.
Em contraposição à tendência geral, de extração positivista, de separar forma e conteúdo, para
o ensaísta não faria sentido ―falar do estético de modo não estético, sem qualquer proximidade
com o objeto‖ (ADORNO, 2003, p. 18). Isso talvez justifique alguns estilemas da escrita de
Didi-Huberman.
Seja como for, seus instrumentos conceituais mais frequentes (sintoma, visual,
sobrevivência, imagemdialética, entre outros) não são criações literárias, nem mesmo
novidades científicas, mas entusiasmados modos de reutilização de conceitos psicanalíticos ou
resgates da obra de autores estranhos à historiografia de arte tais como Walter Benjamin, Carl
Einstein, Georges Bataille. Não são conceitos universalizantes nem construídos por meio de
rígido formalismo, mas inequívocos frutos de alguma experiência de direta confrontação com
seus objetos. Estar diante da imagem seria quase que um jogar infantil com o objeto do
conhecimento. Ocorre, porém, de se ver jogar nos textos de Didi-Huberman com fontes
inesperadas advindas do literato. Em passagem fulgurante, surge uma delas para tratar do
entrelaçado das experiências do ver e do dizer, para tratar de uma suigeneris rítmica
assemelhada a ―um ensaio sempre a recomeçar‖. Lê-se, pois:
"Como procurar dizer?" (Como tentar dizer?), se pergunta Beckett. E ele
responde pela indicação de um gesto duplo ou dialético, um gesto
constantemente reconduzido ao modo pelo qual nossas próprias pálpebras
estão constantemente indo e vindo, batendo diante dos nossos olhos: "Olhos
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cerrados" (clenchedeyes), para não acreditar que tudo estaria ao alcance
como o material integralde uma demonstração aboculos.
"Olhosesbugalhados" (staringeyes) para se abrir e se oferecer à irresumível
experiência do mundo. "Olhos fechados esbugalhados"
(clenchedstaringeyes), para pensar enfim, e até mesmo para dizer, procurar
dizer tudo isso ao mesmo tempo. Se a linguagem nos é dada, o dizer nos é
constantemente retirado, e é por uma luta de cada instante, um ensaio sempre
a recomeçar, que nos debatemos com esse inominável de nossas
experiências,de nossa carência constitucional diante da opacidade do mundo
e de suas imagens .(DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 53).
Se o ensaio pode ser entendido como uma forma de texto que se aproxima daliteratura,
dada a sua liberdade formal, mas que ao mesmo tempo não se distancia do texto dissertativo
comumente empregado em comunicações científicas, dada a exigência de um rigor analítico
constante, de uma constante reflexão acerca das próprias bases de argumentação; então essa
forma de texto deveria ser privilegiada pelos historiadores da arte, como o faz Didi-
Huberman, pois sua constituição dialética permitirá com que a imagem possa ser analisada
com a seriedade que lhe é devida, mas sem perder de vista o seu lado efêmero, passante,
inapreensível, cujo sentido talvez só possa ser dado por uma textualidade menos rígida. Trata-
se de manter um nível de escrita tal que se aproxime de um verdadeiro jogar infantil com a
ciência, de uma brincadeira sóbria, metódica, rigorosa, com a imagem, todavia com a
consciência de que é por meio do lúdico que a criança reflete, analisa e entende o mundo.
91
AFORMA-ATLAS:CONHECIMENTOPORMONTAGEM
Jogar infantil: talvez devamos dizer uma poiesis, um modo peculiar de dar conta
dosrestos, dos fantasmas da história na mesa de trabalho. E talvez devamos dizer ―mesa de
montagem‖, expressão com a qual Didi-Huberman caracteriza o espaço da práxis do
historiador. Ao executar aproximações e distanciamentos, composições e desconstruções com
os objetos históricos, o ofício do historiador transfigura-se num bricabraque das peripécias do
tempo. Esse método adotado pelo autor de L’imagesurvivante corresponde a um ―modo de
desdobrar visualmente as descontinuidades do tempo da obra em toda a sequência da história‖
(DIDI-HUBERMAN, 2013a, p. 474). O que difere de uma criação artística sequenciada, pois
o seu procedimento heurístico ―não cessa de se desdobrar, como um tecido, um pano‖
(JORGE, 2012, p. 127). Conferindo operacionalidade ao legado da historiografia de Warburg,
ávido estudioso dos movimentos migratórios das imagens e da dinâmica de suas
transformações, Didi-Huberman busca os pontos de conexão do trabalho das imagens com o
trabalho do tempo. Modo também de repensar a eficácia do deslocamento constante dos
planos de ação circunscritos à imagem.
Detenhamo-nos em duas passagens elucidativas do envolvimento de nosso autor com a
idéia de montagem:
Acredito que todo o meu trabalho é guiado por uma intuição fundamental
sobre a imagem como ato e como processo e não como um mero objeto. É
por isso que insisti tanto nos últimos anos sobre a questão do olhar, daí o
meu uso de descrições fenomenológicas "abertas", contra a leitura
iconográfica e contra o deciframento de uma suposta "substância" da
imagem praticado por muitos historiadores da arte. Diante das imagens,
devemos convocar verbos para dizer o que elas fazem, o que elas nos fazem,
não apenas adjetivos e substantivos para acreditar dizer o que são ... é
preciso considerar a imagem como imaginação, isto é, como processo de
formação de imagens (DIDI-HUBERMAN, 2010c, p. 52).
[...] É preciso inventar uma nova forma de coleção e exibição. Uma forma
que não fosse classificação (que consiste em pôr juntas as coisas menos
possíveis, sob a autoridade de um princípio de razão totalitária) nem
bricabraque (que consiste em juntar as coisas mais diferentes possíveis, sob a
autoridade do arbítrio). É preciso mostrar que os fluxos são feitos apenas de
tensões, que os feixes amontoados acabam explodindo, mas também que as
diferenças desenham configurações e que as dessemelhanças criam, juntas,
ordens não percebidas de coerência. Nomeemos essa forma uma montagem
(DIDI-HUBERMAN, 2013a, p.399 e 454).
Em face do motivo da montagem, convém mencionar o trabalho de curadoria de Didi-
Huberman para a exposição Atlas¿Cómollevarelmundoacuestas?. Ocorrida no Museu Reina
Sofia, entre 26 de novembro de 2010 e 27 de março de 2011, não se fez ali uma
92
reuniãoqualquer de artistas, nem uma coletânea em torno de um tema arbitrário, como parece
ser atônica da expografia contemporânea. Para entendê-la, cumpre esclarecer o que ―atlas‖
significa; e o que significa, para a experiência visual, ―aproximar uma escultura anônima
romana de um Atlas (49 d.C.) de outra de Bruce Nauman (1970), expor diários de Jacob
Burckhardt, de Meyer Schapiro, de Bertold Brecht ou um atlas geográfico cortado por
Rimbaud aos oito anos de idade‖ (JORGE, 2012, p. 135). Comecemos desta segunda
necessidade: aproximar imagens que, a princípio, não teriam relação segundo uma filogênese
das formas artísticas. De certa forma, é algo que desarma o olhar. Tal proposta diverge
daquela esperada de um curador: organizar filiações. A sistematização dos objetos expostos é
intempestiva – contínuos recomeços reconfiguram o que se entende por espaço expositivo,
investindo-o de novas intencionalidades. O curador, a seu modo, também ensaia: testa novas
formas de exposição, monta e desmonta, experimenta. Ora, ocorre que por vezes ele desiste,
desmonta tudo, remonta. Didi-Huberman defende, no catálogo da exposição, a prerrogativa
ensaística de ―voltar a partir do zero: repensar as coisas de A a Z. Aprender de novo, sem
descanso, começando pelas coisas de aparência mais simples‖ (DIDI-HUBERMAN apud
JORGE, 2012, p. 136). O curador-ensaísta, ao sentir necessidade, inventa novas regras do
jogo: entre o alvoroço infantil e a elaboração austera de um ambiente pedagógico, reconvoca
algo da gaia ciência nietzchiana.
Como as imagens nunca são únicas, mas plurais, sempre que se colocam diferentes
imagens numa mesa há liberdade para se modificar sua disposição, em favor de novas
analogias e trajetos de pensamento (HUAPAYA, 2016, p. 112). Exemplo de uso eficaz da
diversidade das imagens seria o que fez Bertold Brecht em seu Arbeitsjournal e no álbum
Kriegsfibel (ABC da Guerra), analisados por Didi-Huberman em
Quandlesimagesprennentposition:L’oeildel’histoire,1. Quando exilado da Alemanha nazista,
Brecht recortava imagens de jornais e revistas e produzia, por colagem, novas composições.
Com isso, conferia às fotografias jornalísticas diversa forma de legibilidade. Em lugar de
documentarem um momento histórico, elas induzem novas reflexões, diferentes daquelas
suscitadas em sua origem. A modificação da ordem das imagens fazia com que as imagens se
posicionassem – isto é, assumissem um ponto de vista, abandonassem qualquer possibilidade
de postura neutra, pretensão do jornalismo. Nesse processo, a mesa de trabalho jamais seria
usada para classificações definitivas, para inventários ou catalogações, mas presta-se a
segmentar e fragmentar a imagem, talvez o próprio mundo visível, em respeito a sua
multiplicidade e heterogeneidade (HUAPAYA, 2016, p. 112).
93
Assim, a propósito de uma página do Arbeitsjournal de Brecht (fig.15), lê-se
ainterpretação que propõe Didi-Huberman:
Tudo, de fato, parece rompido, quebrado, sem relação. (...) Contrastes,
rupturas, dispersões. Mas tudo se quebra para que se possa justamente
aparecer o espaço entre as coisas, seu fundo comum, a relação desapercebida
que os reúne apesar de tudo, quer seja em uma relação de distância, de
inversão, de crueldade, de nonsense. Há sem dúvida no Arbeitsjournal de
Brecht algo daquela "iconologia dos intervalos" que Warburg por tanto
tempo desejou estabelecer. Por exemplo, quando, em 15 de junho de 1944,
Brecht monta lado a lado três imagens onde vemos, primeiro o Papa Pio XII,
em um gesto de bênção, depois o Marechal Rommel estudando um mapa de
guerra, e, finalmente, uma vala comum nazista na Rússia. O efeito de
dispersão deve ser pensado, nessa montagem, em termos de uma cruel
coincidência, ou mesmo de uma concomitância. Estes três eventos separados
no espaço são, de fato, exatamente contemporâneos. Eles procedem da
mesma história. Sua montagem mostra como um líder religioso abençoa o
mundo apenas para lavar as mãos das injustiças que ele ignora; como as
mãos levantadas do papa fazem eco à baqueta que Rommel aponta com
autoridade sobre o mapa, indicando provavelmente o lugar onde ele quer
atacar; e como a esses dois gestos de poder (religioso, militar), respondem os
gestos de sofrimento e de lamento daqueles que não têm mais nada, essas
mulheres russas que desenterram e beijam tragicamente seus mortos (DIDI-
HUBERMAN,2009, p.78).
94
Figura15:PáginadoArbeitsjournaldeBrecht
Pensar posições de imagem implica pensar o lugar (o locus ou topos). A imagem
cujaposição vê-se jogada na mesa do historiador é imagem de uma topologia. A mesa é uma
forma de atlas: forma de ver e de percorrer o mundo associando diferentes pontos de vista. No
atlas, reconfiguramos o espaço, fronteiras se deslocam, continuidades se rompem. Talvez seja
uma forma de pensar o espaço, não como uma área reconhecível iconograficamente, mas
como território que se pode recortar, desmontar, reconstruir ... desterritorializar. Eis um
pensar que se dá por montagem. Não por acaso essa forma de pensamento nasce durante a
Segunda Guerra Mundial. Nesse período de destruição de fronteiras, de recomposição do
espaço, de diásporas e de invasões, de ocupações e de extermínios, o espaço não poderia ser
pensado como estável. A instabilidade política e social do mundo ocidental, numa época
95
emque a própria continuidade da história era posta em dúvida (era dos fins: da história, da
arte,do humano, da aura, do Ocidente), faz com que a montagem seja a única forma viável de
reagir às ―tragédias históricas‖ do tempo. É o que nos conta o comentador:
Toda a geração que viveu o entre-guerras – Bertolt Brecht, Georg Simmel,
Aby Warburg, Marc Bloch, Franz Kafka, Marcel Proust, Igor Stravinsky, o
próprio Walter Benjamin – criaram e pensaram por montagem. Muitos
artistas adaptaram esse ponto de vista da montagem como forma de reação
às tragédias históricas do seu tempo no qual, cada vez mais, a montagem
ocupou o papel central: as fotomontagens de John Heartfield nos anos 1930,
nos diários de trabalho de Brecht e na história do cinema de Jean-Luc
Godard. Didi-Huberman demonstra como o próprio tempo se torna visível na
montagem de imagens (HUAPAYA, 2012, p. 113).
Ver o tempo: sua passagem, como forma de legibilidade da imagem, não é contínua. O
que passa será sempre visual, sintomal. Trata-se do tempo como presença, do tempo visto no
presente. É tomando posição, também temporal, que a imagem se dá a ler; mas, imaginada,
ela resulta daí como montagem de fragmentos heterogêneos. O tempo presente, diante do
olhar, rearranja o passado para vislumbrar o futuro, para saber o futuro, pois o ver (voir) é o
caminho do saber (savoir) e pode também prever (prevoir) os momentos históricos e políticos
que vivemos (HUAPAYA, 2012, p. 113).
As montagens de Brecht entendiam antecipar acontecimentos. Suas montagens teatrais,
de modo geral, foram inspiradas por seus diários de trabalho, repletos de clichês visuais. Esses
recortes, reorganizados, remontados, ganhavam nova configuração. Seu trabalho era
diretamente relacionado com o fato de ele não estar em sua terra natal. Lemos em Didi-
Huberman que a prática da montagem exige certa operação de distanciamento, até mesmo
físico, do objeto de conhecimento. Brecht foi um exilado: ele via, pois, do ponto de vista de
um estrangeiro. Poder-se-ia dizer, então, que ocorre na literatura brechtiana uma inversão dos
postulados cenográficos inerentes à história da arte vasariana, humanista, esta que organiza
objetos visuais procurando identificar famílias de imagens, familiaridades entre imagens. Ver
do ponto de vista do exilado é tomar partido pelo diferente, pela diferença, é negar o familiar,
o similar, o convencional. Ao estrangeiro, nada é identificável – até mesmo sua identidade
está distante. Toda imagem que o cerca dissocia-se de sua memória visual. Assim,
a imagem, como a palavra em Didi-Huberman e Brecht, são como armas que
estão nos campos dos conflitos, ela carrega um dispositivo de violência ao
revelar toda a ideologia do fascismo, ou quando expõe o povo com seu rosto
nos museus e fotografias como zoos humanos do holocausto (HUAPAYA,
2012, p. 119).
96
Convoque-se agora Godard, esse mestre da montagem fílmica, para enriquecer
acaracterização da prática do historiador. É o que faz Didi-Huberman em PasséscitésparaJLG
. Ali, uma vez mais, o que lhe importa é essa renuncia antecipada à compreensão global que
advém da forma-montagem. O pôr em desordem, o caráter destruidor, como princípio formal.
Em Godard, é isso na forma de uma inquietação. Didi-Huberman cita a passagem em
―Montage mon beau souci‖ (1956) que a protocola no que ele diz ser sua ―fragilidade fatal‖:
Se pôr em cena é um olhar, montar é um batimento de coração. Prever é
próprio de ambos, mas o que um procura prever no espaço, o outro o procura
no tempo. Suponhamos que você perceba na rua uma jovem que lhe agrada.
Você hesita em segui-la. Um quarto de segundo. Como transmitir essa
hesitação? À questão: ‗Como abordá-la?‗ responderá a encenação
(miseenscène). Mas para tornar explícita esta outra questão: ‗Vou amá-la?‗,
é forçoso conferir importância ao quarto de segundo durante o qual ambas
nascem. [...] Vê-se por este exemplo que falar de encenação é
automaticamente falar ainda e já de montagem. Quando os efeitos de
montagem prevalecem em eficácia sobre os efeitos de encenação, a beleza
desta se verificará dobrada, de seu encanto o imprevisto desvelando os
segredos por uma operação análoga àquela que consiste nas matemáticas a
colocar uma desconhecida (uma incógnita) em evidência. Quem cede à
atração da montagem cede também à tentação do plano curto. Como? Fazendo do olhar a peça mestra do seu jogo. Combinar [aproximar] sob um
olhar é quase a definição da montagem, sua ambição suprema ao mesmo
tempo que sua sujeição à encenação. É, com efeito, fazer se destacar a alma
sob o espírito, a paixão por detrás da maquinação, fazer prevalecer o coração
sobre a inteligência, destruindo a noção de espaço em benefício daquela de
tempo ( GODARD apud DIDI-HUBERMAN, 2015d, p.38).
Afirma-se, com esta passagem, a importância e a fragilidade da
montagem:combinação feita, a um só tempo, sob um olhar e sob o ritmo do batimento do
coração. Toda montagem estaria sempre submetida a dupla condição: a da estratégia, do
cálculo, do previsível; e a do não-saber, do improvável, do golpe de sorte e seus riscos. O lado
estratégico da montagem diz respeito aos modos de se por em evidência uma ―incógnita
desconhecida‖; o lado do não-saber se refere a uma situação de aventura, ou desventura,
peripécia, como os que envolvem os jogos imponderáveis do amor. Godard compara o
aspecto aleatório da montagem com um flerte: não haveria como prever a passagem de uma
jovem na rua, nem que ela acabaria por agradar a seu olhante; não haveria como prever que se
saberá como abordá-la, muito menos que será capaz de amá-la em seu devido tempo.
Encontrar aquela que se nomeia a ―desconhecida‖ é assumir o risco do improvável, encanto
ou decepção. Por fim, entre a ―incógnita matemática‖ e a ―incógnita erótica‖, Godard joga
novamente com as palavras na tentativa de tornar mais evidente a dupla dimensão,
calculadora e poética, da montagem, interposta entre ―paixão da ciência‖ e ―ciência da
97
paixão‖ – a não se esquecer do versocélebre de Malherbe, ―grande calculador de frases‖,
citado pelo cineasta (sob distorções,como sempre, mas ainda sobre os infortúnios do amor,
―fluxo e refluxo dos ‗golpes/aproximações do olhar‘‖: ―Beleza, minha bela inquietação, de
que a alma incerta / Tem, como o Oceano, seu fluxo e refluxo‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015d,
p. 38-39).
Razão, pois, para surpreender o cineasta em sua mesa de trabalho, entre a figura
exemplar da ―desconhecida posta em evidência‖ (Lilian Gish) e aquela outra desconhecida
(Augustine), corpo convulsionado advindo da escandalosa intimidade sexual de crises
histéricas, ao final do século XIX. Momento em que o conhecimento encontra-se com o
desejo: Gish oferecida ao vento e ao olhar dos cinéfilos no filme célebre de Griffith;
Augustine oferecida à aurahysterica e ao olhar dos médicos (fig. 16). Encontros: Griffith com
Charcot, cinema com ciência, Medicina com Arte. Eis aí a fecundidade intrínseca da
montagem, toda a sua exuberância potencial: no livre gesto de multiplicar as figuras, de
recombiná-las, de produzir novas associações – produzir então novas ideias, hipóteses,
fantasias imaginativas, mas, da mesma forma, produzir saberes autênticos. Deste modo, a
montagem seria uma forma de se ter acesso à conjunção do desejo de conhecimento e do
conhecimento do desejo, modo de abrir a noção mesma de domínio em face do inconsciente,
cuja fecundidade inesgotável (produtor incansável de metáforas e metonímias, condensações e
deslocamentos, lapsos e chistes) reconhece e experimenta as potências da figurabilidade. Nas
trocas que o inconsciente faz proliferar entre formas verbais e formas visuais, destaca-se todo
o poder de combinar o rigor do conhecimento com a intensidade da paixão, modo de não se
distinguir cabalmente o real do imaginário, o vivo do fantasmático (DIDI-HUBERMAN,
2015d, p. 41-43).
98
Figura16:J.-L.Godard,VideogramasdeHistoire(s)ducinéma,1988
99
MOVIMENTODASIMAGENS:SABERDOSESPÍRITOSEDOSFANTASMAS
É recente a reiterada ocorrência do nome de Warburg nas pesquisas acadêmicas
emhistória da arte. Fala-se em uma ressurgência ou redescoberta da obra warburguiana a
partir dos trabalhos de Agamben e de Didi-Huberman, e não se deixa de reconhecer nisso algo
de uma ―intensidade inédita‖ (LISSOVSKY, 2014, p. 306). Ainda que desde o ensaio de
Carlo Ginzburg (1989) as referências a Warburg só tenham aumentado, não deixa de
surpreender que seus trabalhos estejam sendo descobertos tão tardiamente. Didi-Huberman é,
reconhecidamente, um dos mentores dessa ―virada warburguiana‖ na história da arte atual.
Todavia, não seria exagero dizer que parte de tal renome se deva ao fato de ele ter se
deslocado da paisagem francesa da teoria da arte para fontes em língua alemã (principalmente
Benjamin, Carl Einstein, Brecht, Nietzsche e Freud). Nesse tocante, Roland Recht (2012, p.
36) lembra que apenas em 1990 surgiram alguns artigos de Warburg publicados em francês.
No prefácio de AbyWarburgetl’imageenmouvement, Didi-Huberman registra que este livro,
escrito por seu ex-aluno, Philippe Alain-Michaud, é ―o primeiro livro dedicado a Aby
Warburg em língua francesa‖ (DIDI-HUBERMAN apud ALAIN-MICHAUD, 2013, p. 18).
A Didi-Huberman parece que o fundamento filosófico e problematizante do pensamento
warburguiano provocava nos franceses, até os anos 90, certa ―alergia infalível‖ (caso
emblemático de Focillon) ou simplesmente uma recusa (como o teria feito André Chastel), o
que os fariam recorrer ao ―pensamento mais sistemático‖ de Erwin Panofsky, apoiados pelo
movimento estruturalista.
No cenário brasileiro, caberia ressaltar rico testemunho dado por Stéphane Huchet
(2013, p. 1-2), que menciona a ―predominância de uma iconologia tradicional‖ nos
historiadores de arte brasileiros como efeito de um verdadeiro ―panofskyanismo‖. Em sua
opinião, o que legitimaria ―maior tolerância à história da arte tradicional‖, seguida de
―ausência de maiores preocupações epistemológicas a seu respeito‖, seria a exigência, ainda
por se fazer, da escrita de uma ―história da arte brasileira‖. Sem anterior ―campo de base‖, ou
―rico e denso estofo de conhecimentos historiográficos‖ precedentes (o que é tradicional na
França há mais de um século), não nos seria possível o desenvolvimento de uma história da
arte ―de caráter didi-hubermaniano‖, ainda mais em sua notável aproximação do método
criado por Warburg.
100
Ao procurar coincidências nas obras de Riegl, Wölfflin, Panofsky e Warburg,
RolandRecht sugere um primeiro tipo de agrupamento: Warburg com Panofsky, por terem o
mesmo interesse no conteúdo das imagens; e Riegl com Wölfflin, por se voltarem para a
questão da forma; não obstante, ao empregar, como segundo ponto de convergência para
relacionar essas quatro figuras, a questão do método, teríamos: Wölfflin com Panofsky, pois
estes historiadores investigaram as obras de arte tentando remontar a época em que a obra fora
produzida; e Warburg estaria próximo a Riegl, pois as maneiras de ambos fazerem
historiografia da arte os tornariam ―contemporâneos de seus contemporâneos‖ (RECHT,
2012, p. 60), ou seja, em suas práticas, eles tentariam analisar as obras de arte do passado por
meio de questões levantadas pela arte produzida no presente. Isto significaria remeter aos
problemas, debates e discussões próprios das vanguardas artísticas do início do século XX.
Agamben acrescenta (2009, p. 132-133) que Warburg recusava a história da arte de
seu tempo e almejava uma pesquisa interdisciplinar. Distante das fronteiras estabelecidas
pelos domínios da Estética, Warburg teria criado uma ciência de tal maneira contemporânea e
inovadora que nem mesmo um nome a ela pôde ser atribuído. Tal ―ciência sem nome‖
caracterizava-se pela inquietude, constante construção, instabilidade, e não seria descabido
dizer que estaria ainda por ser descoberta.
Etienne Samain lembra (2011, p. 32), além disso, que o método desenvolvido por
Warburg relaciona-se intimamente com o trabalho daqueles que alçaram a antropologia à sua
condição moderna (Alfred Gell, Levy-Strauss, Marcel Mauss, dentre outros). Trata-se de
momento crucial para a modernização do pensamento científico, com profunda revisão de
seus pressupostos epistemológicos, e de igual desconstrução de concepção já antiquada de
Kultur, culminando em forma outra de realizar estudos culturais, e, dentre eles, os estudos da
imagem.
Didi-Huberman, por sua vez, não deixa de relacionar o trabalho de Warburg com as
incertezas de seu momento histórico, quando do avanço do nazismo na Alemanha e da
possibilidade de eclosão de outra guerra em escala mundial como a que Warburg tinha visto
entre 1914-1918 (DIDI-HUBERMAN, 2010c, p. 60). Se o descontentamento com o
positivismo, com o cientificismo e o emprego da técnica da bricolagem, aliada da estética da
montagem, foram efetivamente termos comuns às vanguardas artísticas, então se pode dizer
que Warburg, apesar de nunca ter escrito textos sobre arte contemporânea, esteve ao lado dela
no modo de pensar e reconstituir os problemas pictóricos da arte do passado.
Apesar de Warburg ser considerado o criador da iconologia, fica evidente que
Panofsky levou toda a fama e reconhecimento. Seu livro EstudosdeIconologia, publicado
101
em1939 e escrito nos primeiros anos de seu exílio nos EUA, tem ―uma importância
estratégicapara os herdeiros de Warburg, da Biblioteca e do Instituto‖ (LISSOVSKY, 2014, p.
308). Demonstra severo esforço em sistematizar e exemplificar o método warburguiano. Ele
inaugura ali a leitura da imagem em três níveis, o que se tornou, durante décadas, o modo
predominante de se interpretar imagens: pré-iconográfico (motivos identificados pela
experiência); iconográfico (alegorias, conceitos, temas); e iconológico (valores simbólicos,
estilo de época, intuição sintética). Esses três níveis seriam ―aspectos do mesmo fenômeno, e
não esferas independentes‖, fenômenos regidos pelos ―hábitos mentais‖ presentes em toda
cultura, formando ―relações subordinadas a uma homologia que é, antes, de natureza lógica e
estética‖ (LISSOVSKY, 2014, p. 309).
Panofsky transformou a iconologia binária de Warburg numa dialética hegeliana,
ternária, solucionada (ou simplificada) pelo terceiro nível de leitura, que representa a síntese
dos outros dois. Pois Warburg não teria ido além de apresentar sintomas, aporias, tensões
entre contrários, bifurcações figurativas: texto versus imagem; movimento versus paralisação;
forma versus conteúdo; Antiguidade versus Renascimento (LISSOVSKY, 2014, p. 306-307).
De modo que ―o acesso a Warburg dependeria de uma recusa da tradição e de uma volta às
origens‖, pois o historiador de Hamburgo estaria escondido ―como o anão no relato do
autômato enxadrista evocado por Benjamin em suas teses sobre a história‖ (LISSOVSKY,
2014, p. 311). Todos esses problemas resultaram na situação atual em que o fundador da
disciplina iconológica já não é um ―pai legítimo‖, como sustenta Didi-Huberman, e seu
questionamento teórico também não lhe reconhece a posição fundadora de Warburg. O
contexto germânico e original da iconologia a aproximava de uma Kulturwissenschaft (ciência
da cultura), algo bem mais complexo do que a ―história social da arte‖ que Panofsky lhe
atribuiu no contexto anglo-saxão (DIDI-HUBERMAN apud ALAIN-MICHAUD, 2013, p.
18).
Didi-Huberman acredita que Warburg seja o responsável por colocar a história da arte
―em movimento‖. Na verdade, o motivo mesmo do ―movimento‖ seria o tema central da obra
warburguiana. No prefácio ao livro de Alain-Michaud, Didi-Huberman divide essa
problemática em torno do movimento em três perspectivas: a das imagens em movimento; do
saber em movimento; e a do conhecimento por montagem. Tentemos seguir seu raciocínio. O
tema da imagem em movimento evocaria o motivo ressurgente da imagem da Ninfa. Para
Agamben, Warburg nomeia como Ninfa, dando fé a certas fontes literárias, ―a aparição da
figura feminina em movimento, em vestes flutuantes, tomada de empréstimo dos sarcófagos
clássicos‖ (AGAMBEN, 2009, p. 138). As ninfas, estudadas primeiramente por Warburg
102
emsua tese sobre APrimavera e ONascimentodeVênus, de Botticelli, serviriam para mostrar
deque maneira esse pintor se confrontava com as ideias veiculadas em sua época acerca dos
antigos. Suas investigações acabaram por lhe mostrar que artistas do Quattrocento apoiavam-
se em Pathosformeln clássicas ao necessitarem representar um movimento intensificado.
Chegar a essa constatação revela ainda o ―pólo dionisíaco‖ da arte clássica, exposto em suas
linhas gerais por Nietzsche. Ao surgir nas pinturas de Botticelli, a ninfa mostra-se como um
sintoma do ―profundo conflito espiritual na cultura da Renascença‖, em sua dificuldade de
conciliar ―a descoberta dos Pathosformeln clássicos, sua carga orgíaca e o cristianismo‖ numa
espécie de ―equilíbrio carregado de tensões‖ (AGAMBEN, 2009, p. 138).
Em sua monografia sobre a Ninfa de Warburg, Agamben analisa outras vertentes do
tema. Respondendo à carta de um amigo que lhe perguntava o que é e de onde vem a ninfa
pintada por Ghirlandaio na capela de Tornabuoni, Warburg escreve que ela poderia sido tanto
uma ―escrava tártara libertada‖, ―um espírito elementar‖ ou uma ―deusa pagã no exílio‖
(WARBURG apud AGAMBEN, 2009, p. 49). Esta última definição inscreveria a ninfa no
contexto da ―Nachleben [sobrevivência] dos deuses pagãos‖ (AGAMBEN, 2009, p. 49).
Todavia, a aproximação entre espíritos elementares e deuses no exílio não teria sido
propriamente uma descoberta. No entrecruzamento de diferentes tradições culturais, a ninfa
―nomeia o objeto por excelência da paixão amorosa‖ (AGAMBEN, 2009, p. 50). Como isso
se dá? Evocando tratado de Paracelso ao qual Warburg teve contato direto, Agamben nos
fornece uma bela análise da ninfa inserida na doutrina dos espíritos elementares. Esses
espíritos poderiam ser definidos por serem semelhantes visualmente ao humano, mas
pertencerem a um ―segundo grau da criação‖. Como não possuem alma, ainda que estejam
sujeitos à morte, esses espíritos não poderiam ser nem homens, nem animais de acordo com a
teologia cristã primitiva. E como possuem corpo, não poderiam nem mesmo serem definidos
como espíritos. Estariam acima dos animais, mas abaixo dos humanos, sendo pura e
absolutamente ―criaturas‖. Mover-se-iam como espíritos (não andam, mas dançam, flutuam),
diferentemente dos homens, mas diferentemente também dos espíritos, precisariam comer,
beber, possuiriam sangue e carne. O triste destino dessas criaturas produziu uma espécie de
compaixão amorosa em Paracelso: apesar de tão parecidos com os humanos, possuem uma
vida totalmente animal, o que leva Agamben a relacioná-los com a condição do povo judeu na
era cristã. Dentre esses espíritos, a especificidade das ninfas advém do fato ―que elas podem
receber uma alma, se elas se unirem sexualmente a um homem e gerarem com ele um filho‖
(AGAMBEN, 2009, p. 52). Paracelso retoma antiga tradição que associa as ninfas ao ―reino
de Vênus‖ e à ―paixão amorosa‖. Essa deusa seria, na verdade, ―rainha das
103
ninfas‖(AGAMBEN, 2009, p. 53), condenadas a serem procuradas e a procurar pelos homens,
aserem desejadas e a desejá-los. Criadas à imagem do homem e não à de Deus, criadas como
imago, como objeto de desejo, de procura, de olhar, as ninfas mantém com o homem relação
ambígua. Para Agamben (2009, p. 54), elas representariam ―a história da difícil relação entre
o homem e suas imagens‖.
Didi-Huberman, por sua vez, desdobra a questão da diferença no modo de andar dos
humanos e dos espíritos elementares. Se os humanos andam, os espíritos elementares dançam.
Warburg, em suas primeiras pesquisas, atentou para a questão do ressurgimento do ―gesto
intensificado‖ na pintura do Renascimento, especialmente quando ―o passo se transformava
em dança‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013a, p. 219). Nietzsche teria sido o primeiro a notar que o
gesto natural converteu-se em ―fórmula plástica‖: o andar, o passar, o aparecer tornou-se
dançar e rodopiar. Para Didi-Huberman (2013a, p. 219), a ideia de Pathosformel, ao fazer a
devida menção a Nietzsche, foi desenvolvida por Warburg como forma de lidar com a graça
feminina do movimento da ninfa, movimento revestido de ―intensidade coreográfica‖ durante
todo o Renascimento. Warburg imaginava que o pintor renascentista queria fixar, por meio do
movimento dos cabelos e do drapeado das ninfas, o deslocamento do pathos das imagens. A
favor dessa hipótese, Didi-Huberman (2013a, p. 220) evoca o clássico DePictura, de Leon
Battista Alberti, onde os movimentos de cabelos e de roupas na pintura são tidos na mais alta
conta. O ―efeito gracioso‖ da roupa colada ao corpo, quase deixando transparecer o corpo nu
debaixo do tecido, em contraste com o outro lado, onde os panos se agitam com o vento e se
desdobram no ar, também era composição muito valorizada pelo teórico quatrocentista. A
partir disso, Didi-Huberman (2013a, p. 220) define a ninfa como ―a heroína do encontro
movente/comovente‖: um lado comove, estimula, excita o olhar; e o outro se move, dança,
trança o tecido, revolteia-se. A ninfa, ―mulher-vento‖, encarnaria dupla condição: aérea e tátil;
serva dançarina e deusa poderosa. Para a ocorrência desse ―belo paradoxo‖, bastaria, segundo
Alberti, ―fazer soprar um vento sobre uma bela figura envolta em drapeados‖. Portadora de
um tipo de ―magia das dobras‖, as ninfas reuniriam ―duas modalidades antitéticas do
figurável: o ar e a carne, o tecido volátil e a textura orgânica‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013a, p.
220).
As Pathosformeln warburguianas são apaixonadamente retomadas na obra de nosso
autor. Essas fórmulas respondem à questão pensada por Warburg a respeito de quais seriam as
formas corporais do tempo sobrevivente. Se, como sugere Didi-Huberman (2013a, p. 167), o
que marca a vida de um corpo é a capacidade de produzir movimento (ainda que
involuntário), então as sobrevivências marcariam outro gênero de vida: a vida do que não
104
énem totalmente vivo nem totalmente morto. A Pathosformel acompanha a maneira como
osmodelos antigos de representação do movimento externo sobreviveram no homem
moderno. Trata-se de um problema perfeitamente atual, ao qual responde uma ―arqueologia
figurativa‖. As ninfas ocupam aí um papel de destaque: são fórmulas de representação do
pathos trágico. Em sua ―orgia de movimentos‖, elas representam o ponto alto da ambição
filosófica de Warburg, e por que não dizer, também a mais alta aspiração da historiografia de
Didi-Huberman: fornecer um modelo dialético e crítico do duplo regime da imagem, vigente
nas próprias montagens de contradições que constituem as imagens. ―A Pathosformel,
portanto, seria um traço significante, um traçado em ato das imagens antropomórficas do
Ocidente antigo e moderno: algo pelo qual ou por onde a imagem pulsa, move-se, debate-se
na polaridade das coisas‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013a, p. 172, 173). Tempo, forma e vida
misturam-se na representação das ninfas.
Seguindo o legado de Warburg, Didi-Huberman anseia por ―pensar a imagem sem
esquematizá-la‖. Os estilos e as hierarquias de gênero não se mostram capazes de encontrar o
que Cassirer dizia ser ―as formas eternas da expressão do ser do homem‖. Isso não seria
possível nem mesmo a um olhar atento às forças móveis das imagens. Didi-Huberman admira
em Warburg seu trabalho de ―historiador das singularidades‖, distante de um ―pesquisador das
universalidades abstratas‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013a, p. 174). A ele pertenceria a
capacidade de perceber que as grandes energias configuradoras das imagens estão
―diretamente nas formas‖, mesmo que seja em um simples detalhe da imagem. Ora, Didi-
Huberman entende ser o historiador dos ínfimos detalhes, daquilo que a história da arte
convencional deixa passar em branco. Ele olha atentamente para o detalhe, pois ali crê
encontrar a indissolubilidade entre forma e conteúdo, a imbricação de cada coisa com seu
contrário, de cada obviedade com sua dúvida. Mesmo porque ―as intricações mais
inquietantes concernem à história e à temporalidade, elas mesmas, pilhas de trapos, se me
atrevo a dizê-los. Amontoados de tempos heterogêneos‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013a, p. 175).
As Pathosformeln de Warburg, verdadeiros ―fósseis em movimento‖, são o ―paradoxo
constitutivo‖ do Renascimento italiano. São detalhes, fragmentos, mas que remontam à vida
de toda uma época. São paradoxais, pois os movimentos da vida que essas fórmulas nos
trazem chegaram até nós por meio de exumações, ou seja, por meio da morte, do fóssil, do
resto. Esse paradoxo, curiosamente, parece presente na contemporaneidade: quanto mais ela
se imagina moderna, criativa, inovadora, mais ela retorna às primeiras imagens, à criação dos
gestos e dos símbolos ―primitivos‖, à infância da humanidade.
105
Movimento parece ser o tema central das pesquisas realizadas por Warburg sobre
asimagens renascentistas. Ele produziu diversos materiais resultantes de suas investigações
(notas, diários, desenhos, esquemas, rascunhos), mas uma das produções mais significativas
para a compreensão do movimento presente no pensamento warburguiano talvez seja a
KulturwissenschaftlicheBibliothekWarburg (KBW). Pouco antes da ascensão dos nazistas ao
poder, a biblioteca foi transferida para Londres, onde hoje permanece na forma do
WarburgInstitute. Em sua forma original, quando ainda se localizava em Hamburgo, ela
possuía quatro níveis, ou seções, relacionados entre si e que devem ser pensados como
―marcas de uma dinâmica de conjunto‖. Sua ordenação programática visava a criação de ―um
espaço capaz de reunir, de fomentar e de prover a constituição de uma ‗ciência da cultura‗―
(SAMAIN, 2011, p. 34). Tendo em vista o breve comentário de Samain a respeito da
biblioteca, parece-nos que o frequentador podia iniciar sua visita de uma área destinada à
Imagem, onde encontraria livros relacionados, dentre outros temas, com as ―expressões
figurativas‖; e concluiria sua passagem pela biblioteca de estantes elípticas na área destinada à
Ação, ―topo imperativo de todo trabalho intelectual‖, referência à inevitável ―tomada de
posição‖ que é exigida de todo aquele interessado pela ―História do Mundo‖ (outro modo,
talvez, de se reportar à ―ciência sem nome‖) e suas complexidades (SAMAIN, 2011, p. 35).
Diga-se que os livros não obedecem a uma disposição cronológica e nunca foram catalogados
a partir do nome dos autores. Em constante movimentação, a biblioteca organiza-se por uma
espécie de ―lei da boa vizinhança‖ a confiar numa ―capacidade que os livros teriam de se
relacionar uns com os outros e, sobretudo, de despertar no leitor perspectivas, cumplicidades,
conivências e correspondências heurísticas cada vez mais ricas‖ (SAMAIN, 2011, p. 35). Nas
palavras de Fritz Saxl, era objetivo da biblioteca ―fazer com que o estudante percebesse as
forças da mente humana e suas histórias‖ (SAXL apud SAMAIN, 2011, p. 35). No edifício da
biblioteca, constituiu-se um ―espaço de questionamentos‖, espécie de ―labirinto operacional
do conhecimento‖ ou, retomando termo deleuziano caro a Didi-Huberman, um ―espaço
rizomático‖, onde todo acesso é pautado por uma ―desorientação ordenada‖ (SAMAIN, 2011,
p. 35). É no interior da sala de leitura da KBW que se localiza o projeto maior da obra de
Warburg, e pelo qual ele é rapidamente identificado: o AtlasMnemosyne.
Agamben acredita que ―Warburg foi provavelmente conduzido a escolher esse
estranho modelo por sua dificuldade pessoal de escrever‖. Afirmação controversa, visto que o
filósofo não esclarece o sentido da palavra dificuldade : Warburg não se sentia capaz de
escrever ou desconfiava da escrita como forma de expressão?. A nós importa, sobretudo, que
o formato do Atlas (pranchas revestidas de tecido preto, com fotografias dispostas), talvez
106
sedeva ao ―desejo de encontrar forma que, ultrapassando os esquemas e os modos
tradicionaisda crítica e da história da arte, teria sido finalmente adequada à ‗ciência sem
nome‗ que ele tinha em mente‖ (AGAMBEN, 2009, p. 137).
Warburg define o Atlas como ―uma história de fantasmas para adultos‖. Objeto
voltado para o público adulto, mas que possui formato típico de uma bricolagem infantil, ,
trata-se de um modelo epistemológico que merece atenção especial dos historiadores da arte e
demais estudiosos das imagens. Nas palavras de Agamben, o Atlas era um ―gigantesco
condensador recolhendo todas as correntes energéticas que tinham animado e animava ainda a
memória da Europa, tomando corpo em suas fantasias‖. Como um tipo de "atlas
menmotécnico", era intenção que o observador europeu pudesse, simplesmente ao olhar para
as imagens dispostas nas pranchas recobertas de tecido preto, "tomar consciência da natureza
problemática de sua própria tradição cultural" e ser assim capaz de tratar o fundo sociocultural
de suas próprias contradições e esquizofrenias, o que acabaria por creditar ao atlas uma
função autoeducadora (AGAMBEN, 2009, p. 138) e acrescentaríamos, curativa. Talvez isso
se justifique porque, diferentemente de imagens expostas em museus, o atlas de Warburg não
possui legendas explicativas de seus percursos de leitura. Didi-Huberman entende que,
enquanto a KBW formava uma espécie de "armadura textual", o atlas era a "armadura visual"
do pensamento de Warburg (DIDI-HUBERMAN apud SAMAIN, 2011, p. 36). Ao colocar as
imagens do atlas nas ilhargas da biblioteca, Warburg talvez imaginasse que as imagens
pudessem entrar em diálogo no tempo e no espaço de uma longa história cultural ocidental,
ou, ainda, pudessem ser confrontadas com a " grande arquitetura dos tempos e das memórias
humanas".
O atlas forma um "autêntico quebra-cabeça" de temporalidade complexa, pois é
imagem única (a prancha em si é um todo, uma imagem) formada de imagens outras, que
remetem a tempos heterogêneos, "sobrevivências" de memórias visuais que interrogam nosso
tempo presente (SAMAIN, 2011, p. 39). Assim, o atlas faz mais do que repensar a trama do
tempo das imagens do passado, faz mais do que dar novos contextos e lugares de leitura às
imagens: é instrumento de análise do presente, crítica e reviramento dos estratos e sedimentos
que compõem o mundo que todos nós carregamos às costas - o mundo do saber, do acúmulo
de conhecimento, das diferentes culturas. Tanto que não se pode negar o fato de que, tal como
é, o atlas só pôde ser possível graças à reprodutibilidade técnica das imagens por meio da
fotografia. Trata-se do objeto anti-aurático por excelência, pois se serve de um dispositivo
visual que potencializa a diáspora de imagens, seus deslocamentos. Composto de
reproduções, de duplicações, de pequenos fantasmas das imagens (fantasmas para adultos),ele
107
em nada se ocupa com fatos da autenticidade; ele privilegia, antes, a eficácia da montagemde
objetos heterogêneos, postos à mesa como num "tabuleiro de jogo de xadrez, [ cujas peças]
vão começar a se mover" (SAMAIN, 2011, p. 39). Ali, todos os movimentos são potenciais,
mas; como tempos cristalizados, são suspensões do ato, momentos de espera, promessas de
deslocamento.
Imagens são atos, memórias e visões, conflagração dos tempos, emaranhado de
questionamentos e de conflitos. O AtlasMnemosyne foi "como um grande poema visual capaz
de evocar ou de invocar com imagens as grandes hipóteses que proliferam no resto de sua
obra" (DIDI-HUBERMAN, 2010a, p. 60) - fusão ou promiscuidade entre imagem e texto.
Além de anamnese dos problemas iconológicos warburguianos, o Atlas funciona ainda como
matriz de novas questões, pois sua forma aberta e mutável lhe proporciona a condição de
ferramenta de trabalho de recursos inesgotáveis. O nome "atlas", lembra Didi-Huberman,
provém de um gênero epistêmico utilizado desde o Renascimento, principalmente na
cartografia, mas não somente, visto que a forma atlas subsiste em diversas outras atividades.
O vocábulo remete etimologicamente ao titã mitológico de mesmo nome. Conta-se que fora
condenado por Zeus a carregar nos ombros todo o peso do globo terrestre. Carregar equivale
metaforicamente a carregar todo o peso do conhecimento produzido na superfície do planeta.
Saber como punição: tragédia, punição do destino. A figura emblemática do deus agoniado,
em esforço sobre-humano para cumprir com sua penitência, é marca do peso terrível da
memória. O atlas Mnemosyne, tal como a triste divindade que o inspira, responde com um
método epistemológico específico ao sufocante acúmulo de conhecimento da humanidade.
Ele alegoriza uma "polaridade fundamental": a tragédia (monstra) em oposição ao saber
(astra); por extensão, todas as polaridades da imagem são por ele convocadas - forma e
conteúdo; presença e ausência; superfície e profundidade. Polaridades em movimento, em
recíprocas transformações de um no outro (um-no-outro, Ineinander, a prancha como
trança/trama, pano intersticial): "múltiplas polaridades", propõe Didi-Huberman (2010a, p.
65), ou, em termos benjaminianos, imagem dialética. O atlas comporta imagens, saberes,
visões, mas também, no mesmo gesto, suporta acúmulo, sobrevivência e desaparecimento,
memórias e conflitos. O atlas é a história de uma punição tomada como única forma de
redenção do método historiográfico: saber trágico, certamente, mas, saber imenso, as pranchas
de Mnemosyne apontam para a secreta coerência da proliferação de imagens - seus devires e
seus deveres. Indagamos: suas eficácias?
108
ANACRONISMOEHISTORICIDADE:TEMPODASIMAGENS
Ao analisarmos as implicações teóricas da crítica feita por Didi-Huberman ao
métodoiconológico de Panofsky, observamos que elas nos conduzem a um questionamento
mais extenso sobre o conceito de tempo empregado em geral pelos historiadores. No capítulo
de abertura de Diantedotempo, Didi-Huberman apresenta a seu leitor o ponto talvez mais
complicado, o grande nó teórico do trabalho do historiador: o anacronismo. O ponto de vista
por ele sustentado é claro: a história da arte é uma disciplina fundamentalmente anacrônica.
Esta tem sido uma de suas teses mais controversas. Ao se deparar com os problemas
epistemológicos dos afrescos de Fra Angelico em Florença, nos fins dos anos 80, Didi-
Huberman vê-se obrigado a repensar tudo o que se havia entendido por tempo relativamente
às imagens. E ressalta que seria preciso considerar como parte da acepção de temporalidade
da imagem o que nela se processa de permanência, sobrevivência, transformação, movimento.
Daquela experiência inicial, além de diversos artigos, surgiu o livro sobre Fra Angelico e,
posteriormente, Diantedaimagem, que trata de desdobramentos de questões metodológicas
abertas pelo livro anterior. Anos depois deste, Didi-Huberman retorna ao afresco que tanto o
desconcertou. Fassado um período daquele contato inicial com a imagem, faltava-lhe pensar o
próprio tempo: o tempo da imagem (sua existência de mais de quatro séculos) e o tempo que
se passou desde a primeira experiência diante da imagem. Para Didi-Huberman, este não é um
tempo passado, mas uma espécie de "presente reminiscente" ainda não terminado (DIDI-
HUBERMAN, 2015b, p. 16). Pois estar diante de uma imagem, por mais antiga ou
contemporânea que seja, é ver o presente e o passado não cessarem de se reconfigurar. Ele
admite que uma imagem provavelmente sobreviverá a nós e que, diante delas, nós é que
somos o elemento de passagem. No alto de seus quatrocentos anos, quantos já não teriam
pousado o olhar diante do afresco de Fra Angelico? Quantos já não se incomodaram com o
branco ofuscante do fundo? Quantos julgamentos já não foram emitidos contrariamente ou a
favor de alguma característica da pintura? Mas o afresco ali permanece e, salvo qualquer
catástrofe histórica, ali permanecerá, para ser, em outras oportunidades, julgado, analisado,
admirado, rechaçado. Deste modo, se somos o "elemento de passagem", o afresco é o
"elemento da duração"; em decorrência disso, ele é também como o "elemento do futuro",
pois toda imagem "tem frequentemente mais memória e mais futuro que o ser que aela olha"
(DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 16).
A perspectiva convida a uma maior humildade diante das imagens, convida a largar o
―hábito pretensioso do especialista" de pensar que pode ser capaz de dizer tudo sobre
109
umaimagem. Enquanto testemunha "ocular" do passado, que presenciou a passagem do
tempo, oafresco pode ser considerado, metaforicamente, um cronista dos tempos. ―Como estar
à altura de todos os tempos que essa imagem, diante de nós, conjuga em tantos planos?‖,
Didi-Huberman (2015b, p. 16) questiona-se. Talvez essa deva ser a questão maior para todo
historiador da imagem. Se somos tão frágeis, se cada um de nós tem um período de vida tão
curto em comparação à existência de uma imagem antiga, como dar conta de tudo o que ela
pode nos dizer? Como dar conta dessa potência de dizer, dessa potência de produzir e de
ramificar diferentes sentidos? Didi-Huberman refaz essa questão tomando o ponto de vista do
presente: "como dar conta do presente dessa experiência, da memória que ela convocava, do
futuro que ela insinuava?" (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 16). Vemos aqui que é a questão
do instante que marca o embate entre os tempos do historiador e da imagem. Essa relação
heterogênea, conflitante, quase de um desencontro, ou de um encontro mediado pelo
acidental, é talvez o que marca a essência do trabalho do historiador. É nesses termos que
entendemos o que ele quer nos dizer quando afirma que "sempre, diante da imagem, estamos
diante do tempo" (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 15). Diante do afresco de Fra Angelico não
estamos diante de uma figura que explica a si mesma, ou que aguarda apenas que
encontremos as chaves que abrem as portas de seus mistérios. O simples ato de afirmar "estou
diante de um Fra Angelico" já implica uma série de escolhas filosóficas, muitas das quais o
historiador irrefletidamente toma partido (DIDI-HUBERMAN, 2013c, p. 13). Dizer ainda que
se está diante de um afresco que representa a cena bíblica da Anunciação abre indevidamente
o problema suscitado pela imagem. Como, então, submeter-se a seu mistério figural? Como
uma imagem pode ser eficaz para nós se ela nos supera temporalmente, se seus significados e
usos estão em constante modificação no tempo? Parece-nos que a postura adotada por Didi-
Huberman é modo de trabalhar com os limites epistemológicos da historiografia, modo de
refazer modestamente as questões, de reformulá-las de acordo com cada caso particular, de
abrir mão da necessidade de saber, de responder a todas as dúvidas; lançar-se ao trabalho,
simplesmente, sem a pretensão (ou angústia) de encerrá-lo apoditicamente.
Como em toda pesquisa acadêmica, Didi-Huberman começa por analisar documentos
referentes a seu objeto de estudo. O afresco em questão é o que se pode dizer de um objeto
―bem documentado‖, pois há vasta literatura sobre ele. Mas causa-lhe assombro que um
objeto tão intimamente misturado à iconografia religiosa não tenha sido ―nem olhado, nem
interpretado, nem mesmo entrevisto na imensa literatura científica consagrada à pintura do
Renascimento‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 17). Parece-lhe que a pintura de Fra
Angelicoé vítima de certa ―condição de cegueira‖, de uma ―vontade de não ver‖, de não saber,
110
de umaverdadeira ―denegação‖. Não se encontram as razões epistemológicas que
fundamentariam anegligência com que a história da arte tratou, por séculos, a parte inferior da
Madonadassombras (fig.17). Didi-Huberman estaria autorizado, portanto, a se referir àqueles
atributos iconográficos como ―extraordinário fogo de artifício colorido‖. Esses ―fogos‖
queimam, por assim dizer, as certezas do método e do estatuto científico da história da arte.
Abrem uma fissura no teor de ciência histórica que essa disciplina possa sonhar em ter. Uma
questão se abre, um sintoma surge. Em contrapartida, Didi-Huberman (2015b, p. 18) tenta
―restituir uma dignidade histórica‖ de um artista que não merece ser relegado ao segundo
plano da história por aqueles que se julgam capazes de selecionar quem deve ou não ser digno
de memória.
Figura17:LaMadonnadelleOmbre[detalhedospainéisinferiores],1438-1450
A proposta é a de deslocar e complexificar as coisas, requestionar as chavessimbólicas
que se mantiveram tradicionalmente em uso pelos historiadores da arte como herança (ou
ranço) panofskyana. O que significa perguntar pelos sentidos dos termos ―alegoria‖, ―fonte‖,
―assunto‖; indagar, uma vez mais, o que constitui o pano de fundo de toda análise iconológica
de imagem. Ao assim proceder, o historiador questiona a própria ideia de representação em
virtude de uma semiologia que não se quer nem positivista nem estruturalista. Gesto que ele
resume como uma ―arqueologia crítica da história da arte‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p.
17), exigência aberta por Foucault à disciplina histórica geral que aqui se procura desdobrar
para o caso particular da história da arte.
Parar ―diante do pano‖ do afresco é parar diante do tempo. É interrogar o objeto
―história‖, a própria historicidade. É tentar ―estabelecer uma arqueologia crítica dos modelos
111
de tempo‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 19). É, em suma, repensar cada gesto
dohistoriador, cada humilde escolha, desde o uso de fichas catalográficas, até algo mais
extensoe filosófico como suas escolhas de tempo, seus ―atos de temporalização‖. De nossa
parte, acompanhamos a escolha de Didi-Huberman (2015b, p. 19) por iniciar sua leitura do
que lhe parece ser ―a evidência das evidências: a recusa do anacronismo‖. Ao dizer que
recusar o anacronismo é evidente, ele nos alerta para a necessidade de abrir os olhos a uma
prática tão comum, tão majoritária entre os historiadores que chega a ser uma espécie de
―senso comum‖ ou de um consenso. Antes de tudo, um ―senso‖, uma percepção, uma
intuição. Em termos talvez mais diretos: um tabu, algo que o historiador médio não questiona.
Em Diantedaimagem, Didi-Huberman (2013c, p. 9-15) já havia se demorado em demonstrar o
quanto a certeza, no que diz respeito às imagens, não tem razão de ser. Parece exigência de
toda imagem que nos demoremos diante dela, uma suspensão de todas as conclusões, e
alguma modéstia metodológica que não permita a pretensão do conhecimento certo e acabado.
Para além de qualquer evidência há aquela das incertezas, a paradoxal constatação da evidente
dúvida. Em Diantedaimagem, evidencia-se a dúvida sobre as formas, sobre as semelhanças,
sobre os aspectos e sobre as significações. Em Diantedotempo, a dúvida recai sobre o
conceito de tempo, sobre os pressupostos metodológicos da história, sobre o trabalho do
historiador. A impossibilidade de se saber tudo sobre uma imagem e saber tudo sobre o seu
tempo, sua época, por si só deslegitima qualquer "regra de bom senso" do historiador (DIDI-
HUBERMAN, 2015b, p. 19). Procurar por uma "fonte de época" não deve constituir uma
"atitude canônica‖. A própria justificativa de que reconstruir o tempo em que o artista viveu é
uma prerrogativa para se compreender os sentidos que ele quis dar à sua obra implica uma
série de problemas metodológicos a serem recolocados em pauta; da mesma forma cumpre
tratar o entendimento de que a compreensão última de uma obra de arte deve-se ao desvelar
de intencionalidades de sua ―criação‖.
Ilegítima é à idéia de uma fonte de época em ―consonância eucrônica‖ com a obra
investigada. A esse respeito, Didi-Huberman evoca a análise de Fra Angelico feita por
Michael Baxandall em L’oeilduQuattrocento. Ali, Baxandall alude ao julgamento
pronunciado por Cristóforo Landino acerca do beato de Florença argumentando ser esta uma
referência ―historicamente pertinente‖ ou ―fonte específica‖. Considerando-se do ponto de
vista de uma macrohistória, de fato Landino e Angelico pertencem à mesma época, o baixo
Renascimento; mas na perspectiva de uma microhistória, a distância entre os dois é imensa.
Sequer são contemporâneos, pois, entre o afresco e o texto de Landino há uma defasagem de
30 anos. Além disso, há diferenças em outras esferas (formações teológicas distintas,
112
conhecimentos diferentes do latim, prováveis interpretações diferentes das passagens
bíblicasconcernentes à anunciação). É provável que Landino sequer tenha posto os pés no
conventode São Marcos. De maneira que colocar lado a lado o afresco e o julgamento é não
observar consonância temporal do objeto para com sua fonte e produzir cisão no tempo
própria de um ―verdadeiro anacronismo‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 21).
A concordância dos tempos quase não existe. Essa afirmação fere os preceitos de uma
disciplina que se esforça por dividir obras em ―fases‖ do autor; em agrupar seus objetos de
interesse por épocas; em compreender a própria arte como relação evolutiva entre técnica e
―ferramenta mental‖; em julgar obras como visionárias (à frente de seu tempo) ou decadentes
(antiquadas, fora de seu tempo). Com base no princípio de ―estilo‖, Fra Angelico foi proscrito
do Renascimento por não corresponder ao vigente na época. Em vez da vaga fundamentação
estilística, Didi-Huberman usa o considerado erro maior do historiador para ―interrogar a
plasticidade fundamental‖ do afresco. Ao assim proceder, o anacronismo lhe serve como
forma de analisar ―a mistura dos diferenciais de tempo operando em cada imagem‖ (DIDI-
HUBERMAN, 2015b, p. 23). De modo que não há sentido em discutir se Fra Angelico era
pintor ajustado ou não a seu tempo, pois esse ―tempo‖ não existe homogeneamente; entre
ritmos e choques, ele é trama, imbróglio, emaranhado de temporalidades.
Cumpre pontuar que o afresco da Anunciação e o julgamento de Landino são
exemplos que talvez pareçam demasiadamente ajustados ao argumento desenvolvido por
Didi-Huberman. Em sua defesa, sustentamos a hipótese de que a questão, para ele, é sempre a
imagem – não a imagem como um todo, mas como trama complexa de particulares e, como
tal, ―altamente sobredeterminada em face do tempo‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 25). Ao
falar de imagem, ele nos fala de algo que ―se abre em várias frentes ao mesmo tempo‖, e que
por esse motivo abre ―um leque de possibilidades simbólicas‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p.
24). O anacronismo mostra-se aqui soberano: tempos heterogêneos entrecruzam o tecido
representativo das imagens como verdadeiras ―constelações‖ – pedaços de presente e
possibilidades concretizadas ou impossíveis de futuro que se condensam no presente
reminiscente do olhar do observador. De modo que a sobredeterminação do tempo implica
uma ―dinâmica da memória outra‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 25), a constituir o
princípio funcional daquilo que sobrevive e, ao mesmo tempo, se transforma com o passar do
tempo. O anacronismo é, pois, fecundo ao colocar em trabalho todos os tempos envolvidos no
jogo historiográfico – o tempo do sujeito do historiador, seu presente reminiscente, sua
experiência do olhar; o tempo da imagem, suas sobrevivências, estratificações, sua memória e
transformações; e o diálogo entre ambos, as intertextualidades e os deslocamentos de sentido.
113
Entre o historiador e a imagem, subsistem paradoxos, um ―mal-estar no método‖:
aemergência do objeto histórico como fruto de um momento anacrônico bem poderia
serentendida como um sintoma no saber histórico (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 27).
A distância entre olhante e olhado, que Benjamin pensou em termos de aura, Didi-
Huberman repensa no sentido de uma sobredeterminação do objeto visual, retomando a ideia
de montagem de tempos heterogêneos. É essa distância que o terá distanciado das práticas
tradicionais dos historiadores da arte e o aproximado do pensamento daqueles que perceberam
no anacronismo sua fecundidade própria: Benjamin e Warburg. O pensamento por montagem
e o deslocamento do objeto histórico são operações epistemológicas com as quais Didi-
Huberman atualiza a história da arte no agenciamento fantasmático do passado.
114
ANACRONISMOEMEMÓRIA:ACONTRAPELODAHISTÓRIADAARTE
O historiador audacioso não deve temer o risco de cometer anacronismos:
essaproposta de Nicole Loraux parece por um momento esquecer que nunca é fácil caminhar
contra a corrente. E a corrente predominante defende que o anacronismo é um erro a ser
evitado. O anacronismo seria como a linha que impede o discurso do historiador de invadir o
território destinado à ficção. Didi-Huberman reconhece que o anacronismo ―modifica
completamente a face das coisas segundo o valor de uso que queremos lhe dar‖ e pode, ainda,
―cair num delírio de interpretações subjetivas‖, pois ―revela imediatamente nossa
manipulação‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 38). A grande dúvida que o anacronismo nos
deixa seria: como utilizá-lo devidamente para que ele evidencie novas objetividades
históricas, em vez de servir aos interesses daqueles que querem manipular a história para
manipular as massas. Quais seriam então as precauções a serem tomadas antes da adoção do
anacronismo com via de acesso ao conhecimento histórico?
É preciso, quiçá, compreender o tempo sob outro ponto de vista que não aquele do
tempo cronológico da ciência. Marc Bloch já dissera que a ideia do passado como objeto de
ciência soa absurda, porque ele não pode ser entendido como um fenômeno preciso e natural
(2015b, p. 39). O passado não possui existência em si, não fornece matéria para um
conhecimento racional. O historiador não pode constituir como objeto de ciência algo tão
impuro, subjetivo e, por vezes, ilógico, inexato. Para se fazer história, seria preciso abrir mão
da exatidão do passado e aceitar o trabalho com suas impurezas. O tempo impuro, aberto,
sujeito a várias interpretações, não é o tempo físico, objetivo, mas o tempo da memória.
Pensar o tempo da história da arte como memória permite ao historiador compreender que o
saber por ele construído pode ser constituído de uma poética e que, com isso, ele deixa de ser
um historiador para se tornar um poeta. Não se trata de abdicar de produzir história, mas de
humanizar o tempo. É entender que a história deve ser tomada como rememorativa e
mnemotécnica (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 41), psíquica e não científica. Além disso, é
entender que seus anacronismos não são erros, mas ―efeitos de montagem‖. A diferença entre
história como ficção e história como saber dos acontecimentos reais não pode ser mantida até
o fim, pois que muitas vezes o literário é documento histórico incontornável, assim como o
saber histórico das imagens vez ou outra precisa recorrer à imaginação. Trata-se de uma
mudança de paradigma ou de expectativa: é não esperar da história da arte um conhecimento
exato, preciso, do que foi, mas uma referência, talvez, para ajudar a compreender o presente e
prever o futuro. Isso acabaria por inverter o fluxo normal da prática do historiador. Em vez
115
deolhar para o passado e esperar ver algo acabado, seria olhar e procurar nele o futuro ou
umaforma de presente desdobrado.
Estamos próximos do que Benjamin queria declarar com a expressão ―tomar a história
a contrapelo‖. Com ela, ele retomou o problema da historicidade como tal, ao contradizer
violentamente os modelos de temporalidade de sua época, herdados do historicismo do século
XIX. Historiador radical, porém solitário, Benjamin não hesitou em escrever a um amigo que
a história da arte não existe: afirmação abrupta motivada pela convicção que a vida histórica e
as obras de arte não podem ter a relação que historiadores acreditavam haver. Não significa
dizer que a história da arte não deva existir, mas que ainda não havia sido feita até então em
seu sentido próprio de ―história das próprias obras‖, como ressalta Didi-Huberman (2015b, p.
103). Com esta pesada crítica a todo um nicho do saber muito bem enraizado na Academia, já
era de se esperar que Benjamin não tivesse frequentação aberta nos círculos sociais ocupados
pelos historiadores. O que talvez explique porque ele ainda não tenha sido acionado
devidamente pela historiografia da arte. A tímida relação entre a filosofia benjaminiana e a
história da arte não impede a constatação de que há ali claras reformulações de certos
problemas metodológicos, como aquele da oposição entre conteúdo e forma ou entre causa e
efeito, oposições falaciosas, pois tratadas como eternas jamais poderiam servir de tema de
estudo histórico (2015b, p. 103-104).
Didi-Huberman justifica que Benjamin tenha aludido à inexistência da história da arte:
na verdade, ela ainda não teria sido elaborada dignamente. A insatisfação de Benjamin com a
história da arte acadêmica levou-o a procurar refúgio em historiadores da arte mais instigantes
tais como Warburg, com o qual rapidamente se identificou, pelo fato de ambos serem
estudiosos isolados, sem cátedra. Ao definir Warburg como um ―sábio senhorial‖, tipo
inaugurado por Leibniz, Benjamin admite o abismo socioeconômico existente entre ambos, de
maneira que sua proximidade para com ele não poderia ser outra senão intelectual: ambos
colocaram a imagem no centro nervoso da vida histórica (2015b, p. 106) e compreenderam a
necessidade da elaboração de novos modelos de tempo. Warburg apreende o tempo em
termos de ―polaridade‖; Benjamin, em termos de ―dialética‖; mas ambos reconhecem a
temporalidade como dotada de uma ―dupla face‖, anacrônica e sintomal (2015b, p. 107).
Contemporâneos, Benjamin e Warburg colocaram paralelamente em prática seus projetos
epistemológicos. Ambos esgarçaram com isso os limites teóricos do conceito de tempo em
direção a paradoxos constitutivos de radicais novidades. Quanto ao aspecto sintomal de seus
conceitos de temporalidade, ambos se ocuparam do caráter sobredeterminado, aberto e
complexo dos restos, dos fragmentos, dos detalhes inobservados. O saber histórico
116
assimpreconizado via na montagem paradoxal de elementos descartados e elementos
―nobres‖oportunidade de flagrar a vida histórica das imagens em seu movimento anacrônico
(2015b, p. 107).
Benjamin e Warburg implicam para Didi-Huberman o referencial teórico necessário
para contornar a acepção do anacronismo como erro e para projetar novas heurísticas da
imagem calcadas na metodologia da montagem. Esta permite romper com o continuum da
história o que, de certo modo, a liberta da neurótica procura por datação, nomeação e
classificação. A história da arte, sob tal metodologia, assemelha-se a um jogo, dada a sua
―sequência rítmica de movimentos, de saltos‖ (2015b, p. 114). A história datada, pontuada
pelos epígonos, não se movimenta, não permite que seus referenciais saiam de seu lugar
histórico. O saber assim construído se processa pela passividade, como transmissão (e não
debate) da imagem para o historiador e do historiador para o texto, sem possibilidade de troca,
de retorno. O saber agenciado por Benjamin, a contrapelo do historicismo, mostra-se repleto
de quedas e de irrupções, de movimentos, de conflitos. Nesse ponto de vista, o presente é
reminiscente e o passado surpreende o presente no instante de seu encontro; esse momento de
tensão entre presente e passado mostra que o tempo não pode ser um contínuo, nem a história
um saber fixo. O passado (Outrora) encontra o presente (Agora) no tempo atual de sua
recognoscibilidade. Esse modelo dialético de compreender os fenômenos históricos renuncia
ao secular modelo do progresso histórico. Recusa toda forma de orientação para o saber
histórico, toda narrativa causal e todo processo contínuo. Certamente parecerá caótico demais
para o historiador que atribui ao tempo das imagens uma sucessão bem orquestrada de
declínios e decadências. Benjamin, por sua vez, enfatiza que não há épocas de decadência
(2015b, p. 114-115). O historiador deveria então aprender a lidar com as descontinuidades e
anacronismos do tempo. Ele deveria, como o faz Didi-Huberman, entender e processar de
uma vez o que Benjamin queria nos dizer com a fórmula de que cada objeto de cultura deve
ser pensado como objeto de barbárie. Essa relação leva a entender que a ideia de progresso
histórico deveria ser pensada como a catástrofe da história. A contrapelo, portanto, do saber
histórico positivista, a história da arte avançará sempre em direção às ruínas, aos restos, ao
regresso, pois ―os fatos do passado não são mais coisas inertes a serem encontradas, isolados
(...) eles se tornam coisas dialéticas, coisas em movimento‖ (2015b, p. 116). De modo que o
passado nos surpreenderá diante de nossos olhos no presente, ao exigir de nós um trabalho de
rememoração, de reconstrução. Tal noção de passado como ―fato de memória‖ se apresenta
como a radical novidade de que o passado talvez possa, literalmente, ser construído no
presente do historiador.
117
III
EFICÁCIAPOLÍTICADASIMAGENS
―[...] as imagens da arte, por mais violentas que sejam, têm a
inocência e mesmo a virtude conjuratória das condutas
miméticas, secundarizadas, sublimadas, enfim, pacificadas.
[Há uma] intrínseca relação da imagem e da crueldade, uma
intrínseca violência da imagem, tudo o que a torna,
fundamentalmente, impacificável: capaz de nos desmentir, de
nos olhar, de nos tocar, de nos assombrar, de nos devorar‖.
(Didi-Huberman,
LaRessemblanceinformeoulegaisavoirvisuelselonGeorgesBat
aille)
118
EFICÁCIADAIMAGEM-COMBATE
Ao se falar em política na obra de Didi-Huberman, entendamos bem: não há que
sefalar das mazelas do jogo político-partidário, não há que se perder tempo com as
frivolidades tacanhas das disputas pelo poder no alto escalão. Como um bom benjaminiano,
interessa-lhe a política para aqueles em que o estado de exceção é a regra, a política sob o
ponto de vista dos oprimidos, para aos quais os temas e os termos do debate são outros.
Interessa-lhe, portanto, o discurso daqueles historiadores da arte vítimas das catástrofes da
História, oprimidos pelos algozes da estética. Por esse motivo, iniciaremos este capítulo
acerca da eficácia política das imagens evocando a breve análise em Diantedotempo da obra
do historiador da arte alemão Carl Einstein. Acreditamos que a figura controversa, estranha e
―inatual‖ de Einstein (inatual, pois à frente de seu tempo e inacessível a nosso tempo) nos
permitirá calcular melhor a relação intricada entre imagem e política, uma vez que no meio
dessa conexão está a história, que nunca foi um campo pacífico do conhecimento. Assim,
nada melhor do que um historiador que ―historiciza a marteladas‖ (DIDI-HUBERMAN,
2015b, p. 184), a golpes de violentas fórmulas paradoxais que sufocam, constrangem o leitor
positivista, para nos dar o alcance crítico dessa temática.
Carl Einstein (1885-1940) foi poeta, historiador, teórico da arte; um judeu alemão
marcado pela perseguição nazista, assim como Benjamin; tornou-se conhecido pela pesquisa
sobre a arte africana e por tê-la usado como modo de repensar a produção ocidental de arte e
sua história; enveredou-se, deste modo, pelas sendas de uma antropologia filosófica ou de
uma etnologia visual. Participou ativamente da revista Documents, editada por Georges
Bataille entre 1929 e 1930, e nela contribui com artigos sobre a escultura africana em suas
relações com o cubismo, subvertendo o entendimento comum da História da Arte segundo o
qual os cubistas teriam ―se inspirado‖ na arte africana, notadamente nas máscaras, para
produzir suas formas. Para Einstein, pensar a arte cubista não se confunde com pensar a
mentalidade de uma época interessada em exotismos e primitivismos. Desde o início ele
acreditava que a compreensão das imagens de arte nunca poderia se satisfazer com um saber
específico, um saber legitimado por seu próprio fechamento disciplinar. De maneira que ele
torna necessário superar a divisão traçada apriori entre a arte cubista como objeto de estudo
da História da Arte e a arte africana como objeto de estudo da Etnologia. Só então seria
possível entender o choque entre o cubismo e a arte da África: choque que se dá como um
relâmpago dialético, produtor de constelações de imagens. Portanto, para Einstein cumpriria
―compreender que a tarefa autêntica de uma história da arte – compreender as imagens da
119
arte–significacompreenderaeficáciadessasimagenscomofundamentalmentesobredeterminadas,
ampliadas, múltiplas, invasoras‖. Somente então as imagens seriam capazes de nos apaixonar,
o que não ocorreria caso fossem ―eficazes somente sob o aspecto limitado de sua
especificidade histórica ou estilística‖. As imagens exigem, pois, serem experimentadas sob
todos os aspectos do pensamento.
Essa argumentação talvez justifique porque a escrita de Einstein parece de certa forma
imprecisa, fragmentada, lacunar. Ele próprio assumia não falar de modo sistemático (2015b,
p. 243). Mas a falta de sistematicidade então se justificava por uma espécie de urgência
solicitada por seu próprio tempo. Einstein entendia não poder se dar ―ao luxo‖ de pensar
sistematicamente – ou, em outras palavras, em termos exclusivamente teóricos –, pois, em
meio a tudo, vicejava uma ―catástrofe cotidiana‖. Diante dessa condição, não haveria tempo
para se pensar em especulações ou em abstracionismos lógicos. Neste breve exemplo da
escrita einsteiniana, em Negerplastik, o texto em ritmo acelerado parece ansioso por chegar à
ideia principal:
Há alguns anos, vivemos na França uma crise decisiva. Graças a um
prodigioso esforço da consciência, percebeu-se o caráter contestável desse
procedimento. Alguns pintores tiveram suficiente força para se desviar de
um métier feito mecanicamente; uma vez desligados dos procedimentos
habituais, eles examinaram os elementos da visão do espaço para encontrar o
que bem a poderia engendrar e determinar. Os resultados desse importante
esforço são bastante conhecidos. Naquele momento descobriu-se a escultura
negra e reconheceu-se que, em seu isolamento, ela havia cultivado as formas
plásticas puras. Costuma-se qualificar como abstração o esforço desses pintores; impossível,
no entanto, negar que uma crítica radical de desvios e perífrases seja o único
meio de aproximar-se de uma apreensão imediata do espaço. Isso, entretanto,
é essencial e distingue fortemente a escultura negra de uma arte que a tomou
como referência e adquiriu consciência semelhante à sua; o que aqui
desempenha o papel de abstração lá é dado como natureza imediata. A
escultura negra revela-se do ponto de vista formal como poderoso realismo
(EINSTEIN, 2008, p. 167).
Em dois parágrafos, Einstein realiza crítica considerável de seu tempo, definida por
elecomo ―crise decisiva‖: com razão, reporta-se à passagem do século XIX para o XX nas
belas-artes. Sem reduzir esse importante paradigma histórico a uma série de datas, fatos e
artistas célebres (lembremos uma vez mais da crítica de Didi-Huberman à história da arte de
linhagem vasariana), ele nos entrega um novelo de temporalidades em movimento.
Expressões tais como ―prodigioso esforço da consciência‖, desligamento dos ―procedimentos
habituais‖, e ―crítica radical de desvios e perífrases‖, ensejam referências furtivas,
tangenciais, talvez imprecisas, mas, dentro da proposta de escrita do autor (mediada
120
pelaurgência a que ele exigia a si mesmo, tendo em vista a necessidade de se fazer presente
aosfatos políticos de seu tempo), são inferências necessárias e suficientes, com o mérito de
preservarem a complexidade e a irredutibilidade exigida a qualquer análise histórica.
O exercício de sintetização do texto ocorre em tão alto grau que, na revista Documents,
Einstein chega propor o que ele denomina AphorismesMetodiques, de clara inspiração
nietzschiana, como os que seguem:
A história da arte é a luta de todas as experiências ópticas, dos espaços
inventados e das figurações.
(...)
A mesa é uma contração, uma parada nos processos psicológicos, uma
defesa contra a fuga do tempo, e assim uma defesa contra a morte. Poder-se-
ia falar de uma concentração dos sonhos.
(...)
Para transformar [o] espaço em uma função móvel psicológica, seria
necessário primeiro eliminar os objetos rígidos, receptáculos das
convenções: deve-se assim questionar a visão em si mesma.
(EINSTEIN, 1929, p. 32)
Ao escrever sobre temas densos em poucas linhas, Einstein não apenas revela grande
poder de síntese, mas coloca essa habilidade a serviço de sua posição política, pois que lhe
permite ter tempo para pegar em armas em defesa de seus ideais. Desta maneira, enquanto
muitos historiadores da arte se preocupavam com o simples acúmulo de saber sobre as
imagens (estamos falando da era de ouro, digamos, da iconologia), Einstein agia de forma
efetiva contra a catástrofe que se anunciava – como quando se engajou junto aos anarquistas
da guerra civil espanhola.
Uma escrita nada afeita a sistematicidades parece, efetivamente, o reflexo de uma
atuação política. Razão do interesse de Didi-Huberman, dado que ele também se volta mais
para nossos ―monumentos da barbárie‖ do que para nossos ―monumentos da cultura‖. Um
preciso entendimento de história da arte passa aqui a ponderar suas gravidades: ele não mais
será refém do historicismo, que se demora em determinar as circunstâncias mentais a reger as
transformações óticas; ele será, antes, ―luta de todas as experiências‖, eficácia no
entendimento que, como sustenta Einstein, ―toda forma determinada é um assassinato das
outras versões‖ (EINSTEIN apud DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 213).
Interessa a Carl Einstein, e assim a Didi-Huberman, a arte como organismo vivo, atual,
presente. Pois se há, por um lado, aqueles historiadores que, ao recolherem o corpus de seus
estudos, agem como se esperassem tranquilamente a morte de uma arte, há também aqueles
mais vanguardistas que efetivamente arriscam suas vidas ―para que o objeto de seusaber – a
121
própria arte – permanecesse vivo e livre para inventar suas formas‖ (DIDI-HUBERMAN,
2015b, p. 244). Didi-Huberman define Einstein como ―um historiador da arte judeu alemão
que lutava na Espanha para que a coragem epistemológica encontrasse sua real dimensão ética
e política‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 244). Einstein lutava para permitir que Picasso e
Braque pudessem continuar a decompor a realidade. Idealização? Em todo caso, estamos no
campo da filosofia prática, da ética e da política, distantes de todo tipo de moralismo. De fato,
na escrita de Einstein nada se prescreve, como no campo da moral; nela se procura por uma
harmonia encontrada apenas sob a violência do diferente. Mesmo porque sua postura ética o
leva a se preocupar com a continuidade da história, com a liberdade de inventar, de
transformar. Projeta-o, de modo inequivocamente desesperado, para o futuro.
Didi-Huberman identifica em Einstein dois tipos de desespero: quanto ao objeto e
quanto à escrita. Desespero de não se ter a resposta para a questão: o que é ser historiador? ser
historiador de quê? O que faz precisamente um historiador? Desespero de se ver conduzido
para um conflito contra o irremediável. Em face do objeto, desesperava-o ver que alguns
futuristas aderiram à causa fascista e parte dos expressionistas se envolveu com a ideologia
nazista; desesperava-o ver que seu livro AartenoséculoXX ajudara Goebbels a determinar o
que se considerou como ―arte degenerada‖ pelo governo nazista, enquanto assistia a alguns
surrealistas franceses simplesmente cruzarem os braços e se renderem diante dos fatos. De
modo que, ao perceber seus esforços de pesquisa sendo usados para fundamentar ações
políticas fascistas, enquanto não obtinha respostas para suas dúvidas sobre o trabalho
acadêmico, Einstein se via conduzido para um conflito contra o irremediável. Ele teria se
tornado, na interpretação de Didi-Huberman, algo como um ―apóstolo anacrônico‖: um
historiador-missionário a prenunciar desgraças vindouras. Um desajustado de seu tempo, um
analista do passado que visa interromper a marcha para um futuro sombrio. Einstein bem
poderia representar (aos olhos de Didi-Huberman?) o próprio anjo da história, conforme
alegoria construída por Benjamin a partir de um quadro de Klee:
Há um quadro de Klee que se chama AngelusNovus. Representa um anjo que
parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão
escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve
ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos
uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula
incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de
deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade
sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode
mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao
qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresceaté o céu. Essa
tempestade é o que chamamos progresso (BENJAMIN, 2006, p. 226).
122
A tempestade-progresso acumula ruínas que, com o tempo, adquirem valor
econômico. Esse valor movimenta o mercado de arte, cuja participação Einstein recusava
terminantemente: passaram por suas mãos obras raríssimas de Braque e Picasso, mas nunca se
dedicou a constituir para si uma coleção, pois entendia que o mercado de arte possuía notável
papel alienante. Para ele, que afirmava que ―a arte basta‖, era impossível suportar a ―vigarice‖
(EINSTEIN apud DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 246) representativa do mundo das galerias e
leilões de obras de arte, espaços nos quais a arte não circula, pois fica retida sob o peso de
valores de troca.
Para que se entenda um pouco melhor essa questão, talvez seja de interesse evocar
outro texto de Benjamin, ―Luís Felipe ou o intérieur‖, constante das Passagens. A tomada de
posição de Einstein em face da privatização da arte está ali exposta em linhas gerais.
Benjamin (2009, p. 59) entende que ―no reinado de Luís Felipe, o homem privado faz sua
entrada na história‖. Pela primeira vez os locais de habitação se encontrariam em oposição aos
locais de trabalho, de maneira que o escritório torna-se um complemento do apartamento,
espaço por excelência do privado. Imerso em seu mundo particular, o homem privado não
pensaria em inserir qualquer consciência de função social em seus interesses de negócios, pois
o social já não lhe dizia respeito. O escritório passa a lhe representar o próprio universo,
espécie de teatro do mundo no qual subsistem, na forma de decoração, apenas lembranças do
passado e de regiões longínquas, o que Benjamin (2009, p. 59) denomina de ―fantasmagorias
do intérieur‖. É nesse espaço que a arte se refugia após a ascensão burguesa. O homem
privado passa a ser o colecionador que nada faz além de idealizar seus objetos, retirando-lhes
o caráter de mercadoria. Ele recusa todo valor de uso das coisas e lhes confere o valor que têm
para o amador. A privatização da arte corresponde à estetização dos objetos de uso e de seus
acessórios, que passam a ser guardados como relíquias (talheres, guarda-chuvas, chinelos,
relógios). No intérieur do apartamento-museu, acumulam-se vestígios de seu habitante, como
ruínas empilhadas. É contra esse imobilismo dos objetos, contra a excessiva
compartimentalização da arte e contra a sua abordagem amadora, sempre pouco
problematizante, que Einstein se revolta. Ele sustenta que a eficácia ética, social, portanto
política, da arte, no âmbito de sua circulação e não de sua privatização, não deveria ser
negligenciada pelo historiador, obrigado a assumir postura ativa diante das falhas desse
processo histórico.
Didi-Huberman, de sua parte, pondera:
123
seria injusto e nefasto utilizar esse desespero, por exemplo, tirando uma lição
revisionista da ―derrota‖ ou a ―incoerência‖ das vanguardas artísticas do
século 20. Seria negar o que, na obra de Carl Einstein, permanece, sem
dúvida, mais precioso: a constante tensão dialética que anima, arriscando
tudo destruir, cada enunciado estético (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 246).
A própria questão da validade e da forma de cada enunciado estético, em
Einstein,parece passar por essa tensão dialética. O historiador encontrava-se desesperado
quanto à escrita quando deixou em Paris uma grande quantidade de manuscritos inéditos:
escritos confusos, volumosos, assistemáticos. É o que faz um historiador, estima Didi-
Huberman (2015b, p. 246): ―olhar e tentar escrever o que o olhar abre no pensamento‖; ―ser o
escritor de uma experiência que não é narrativa, que permanece suspensa no limiar de uma
experiência espacial e de uma experiência interior‖. O historiador escreve a própria eficácia
da imagem em nosso olhar – tarefa para a qual não cabe qualquer sistematização. Na
diferença entre o quadro e a língua, o historiador borda sobre a experiência visual ao invés de
pensá-la. Seu fito é o de relembrar a todos ―o abismo intransponível que separa a palavra da
imagem‖, bem como o fato que ―um fenômeno óptico jamais se deixa traduzir por palavras de
uma maneira completa ou mesmo suficiente‖ (EINSTEIN apud DIDI-HUBERMAN, 2015b,
p. 248). Assim, o historiador deveria tentar fazer entrar as obras de arte ―na moldura de uma
vista‖, ou seja, de um pensamento visual. Esse pensamento ultrapassa os fenômenos
puramente ópticos e aloca-se na dobra dialética entre ―vista‖ e ―visão‖, ―memória‖, ―noção‖,
―sentimento‖. A partir disso, Einstein cria a categoria do transvisual, cuja consistência parece
a um tempo metapsicológica e antropológica, pois remete à ciência que estuda as diferentes
culturas e sociedades humanas, mas no interior de um espectro de processos psíquicos
complexos. A questão da escrita ocupa posição central aqui: ao mesmo tempo, ela se mostra
fraca e insuficiente, ―manca‖ a reboque dos pintores, mas também apresenta a capacidade de
transformar as sensações do espaço, de fazer da experiência visual o seu próprio sintoma
(DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 248).
Ao comentar a figura einsteiniana, Didi-Huberman parece particularmente marcado
pelo trabalho da língua e na língua. E ele o afirma: eis a condição sinequanon, que toma para
si, para se renunciar à ―petrificação positiva e descritiva das palavras‖, para renunciar à
―utopia barata das alegorias e do lirismo‖, de modo a criar ―uma ligação não óptica das
palavras, tendo em vista a mistura das dimensões do tempo‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p.
248-249). Gesto intempestivo, avalia Didi-Huberman, que só se obtém ao preço de um
trabalho na língua materna. Toda a dimensão política da escrita e da língua se acomoda
entãono ―exilado da sua língua e da sua própria cultura‖, condição de existência de
124
Einsteinenquanto judeu sem deus, falando alemão na França – escritor sem leitores. Exilado,
afastado à força de sua cultura, ele se afasta politicamente de sua língua. A única resposta
possível a tal estado de fatos históricos são o exílio e o impossível: em paralelo, ele se lança a
engajamentos diversos – junta-se a colunas de resistência, tais como o grupo espartaquista; e
publica textos que lhe rendem, inclusive, uma condenação por blasfêmia (DIDI-
HUBERMAN, 2015b, p. 249). Num fragmento destacado por Didi-Huberman, Einstein
declara: ―não posso mais ouvir o silêncio‖. Palavras dolorosas. O silêncio era amplo: de sua
fala, que não era codificada pelos demais; de sua condição política de exilado (pessoa sem
voz ativa na sociedade, um apátrida sem direito ao enunciado); de sua condição política de
quem percebia o avanço irrefreável do fascismo.
Didi-Huberman nos isenta, porém, de toda comiseração, pois, segundo ele, ―Einstein
foi, mais simplesmente, o homem da recusa de todas as concessões‖ (DIDI-HUBERMAN,
2015b, p. 250). Um ―revoltado por excelência‖, não esperava ser acudido por ninguém. Em
seus próprios termos, ele era ―o pobre‖; queria ser o pobre, pois, para ele, isso significava
poder recusar todas as autolegitimações. Ele não ansiava por nenhum subsídio, nem mesmo
oriundo do prestígio de publicar. Não cobiçava ser aceito como homem virtuoso se abaixo
dele as pessoas pereciam em campos de concentração. Ele enunciava somente crer nas
pessoas que destruíam os meios de sua própria virtuosidade. Não entendia apropriado receber
qualquer estipêndio pelo seu lavor intelectual, pois, se por em prática um saber denotava para
ele ―questioná-lo, deslegitimá-lo‖ para melhor abri-lo, então nunca remataria um
conhecimento acabado, definitivo, que pudesse deter valor preciso. Ele mesmo se incumbia de
por em desuso o próprio saber. E assim entendia o trabalho do historiador: não o acumular
imprudente de conhecimentos, mas o inventar das formas. Inventar formas, se possível
―imagens-combate‖, nos termos de Didi-Huberman, é tarefa que define tacitamente a relação
entre o trabalho do historiador da arte e a política.
Talvez se possa dizer que a imagem seja política por excelência, que ela seja política
desde a origem, mas é o historiador aquele capaz de articular a escrita de forma a oferecer um
veículo eficaz de pensamento para o conteúdo político das imagens.
125
IMAGEM,EVENTO,DURAÇÃO
A duração se constrói a cada momento na relação entre a história e a memória, mas
estaconstrução esbarra no obstáculo do hábito. Exemplar desse hábito seria nosso ato de olhar
para a televisão em busca de informações. Mas as imagens da TV não seriam elas somente
imagens, simples trechos, extratos de filme? Não estariam efetivamente impossibilitadas de
serem realmente olhadas, portanto incapazes de produzir duração? Didi-Huberman destaca a
obra de Pascal Convert como a proposta de uma experiência diversa da duração (DIDI-
HUBERMAN, 2015c, p. 15). Diante da escultura inspirada em VigíliafúnebrenoKosovo,
fotografia de Georges Mérillon (fig.18), estamos diante de um pan, de um muro branco e
côncavo, cuja curvatura nos atrai e, ao mesmo tempo, nos desvia o olhar; superfície de
desorientação, pois que evocativa de um alabastro, ela deixa penetrar a luz até certa
profundidade, enaltecendo uma espécie de aura. Feita de cavidades, a obra produz experiência
visual complexa, pois constitui a um tempo obstáculo e convite, luz radiante e sombras:
materialidade intangível. Fracassa todo aquele que desejar apreender a obra positivando-a,
pois ela nos conduz às ambiguidades do fenômeno da reprodução fotográfica (DIDI-
HUBERMAN, 2015c, p. 16). A obra de Convert dista de todo clichê, de modo que suas
referências de significação não são facilmente dadas. Algum reconhecimento figurativo torna-
se possível apenas por conta da escala humana das mulheres ali representadas, o que aguça
ainda mais a expressividade da obra. Mais do que mulheres que se lamentam diante de um
corpo morto, trata-se de verdadeiro muro das lamentações repleto de gritos abertos, exibindo
―bocas desgovernadas‖, pois abertas, escancaradas, radicalizadas pelo artista. Ao esculpir a
cavidade do grito, Convert toma posição no antigo debate estético quanto à expressividade da
boca aberta. Contrariando Winckelmann, para quem a boca aberta produz efeito chocante e
aspecto repugnante, o escultor não renuncia à figura, nem à sua expressão.
126
Figura18:PascalConvert,Lamento,2000
Essa obra interpreta outra imagem, uma fotografia obtida para informar sobre as
doresgritantes da Guerra do Kosovo, em 1990 (fig.19). O exército sérvio fazia frente a jovens
kosovares desarmados em luta pela independência. O fotógrafo jornalístico Mérillon assiste a
alguns embates antes de ouvir falar de uma cidade onde o exército atirou sobre manifestantes
com balas reais, resultando em quatro mortos e dezenas de feridos. Levados pelos habitantes
do local para o velório de um deles, Mérillon realizou rapidamente algumas fotos. Contudo,
elas não receberam de imediato a devida atenção. Foram publicadas por uma revista menor,
depois de serem rejeitadas por outros grandes editores. Talvez o primeiro a retirá-la de seu
ostracismo tenha sido François Mitterrand, que associou a fotografia às telas de Mantegna ou
Rembrandt. Um ano depois de tirada a foto, um júri se reuniu para premiar a fotografia de
Mérillon, levando em conta mais a imagem do que o evento por ela documentado. De
pequeno assunto, passou para foto do ano. Elogiada em seu valor estético excepcional,
reconhece-se nela ―sua capacidade política a sublinhar o quanto este acontecimento localizado
de Nagafc constitui o sintoma de um problema maior e fervente para a Europa que virá. O que
a história não iria infelizmente desmentir‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015c, p. 21). O ―velório
fúnebre‖ torna-se PietàdoKosovo, alcunha cuja autoria que nem mesmo seu autor sabe.
127
Figura19:GeorgesMérillon,“Nagafc,29janvier1990.VeilléefunèbreauKosovoautourd
ucorpsdeNasimiElshani,tuélorsd'unemanifestationpourl'indépendanceduKosovo».
Houve reservas quanto a essa denominação, que da mesma forma carimbou outra
fotografia que teria servido de inspiração a Convert, fotografada pelo jornalista Michel
Guerrin, com o nome de LaMadonadeBentalha (fig.20). O perigo desse vocabulário, para
Didi-Huberman consiste em transformar informação em compaixão. Podemos simplesmente
nos satisfazer com os afetos e evitarmos a questão política, mantermo-nos na passividade do
pathos e não cuidar da ação, do ethos. Além disso, ele nos lembra que Pietà e Madona fazem
referência direta à iconografia cristã, quando as realidades referidas por essas duas fotografias
dizem respeito ao mundo muçulmano. Seria possível entender que essa referenciação coloniza
a dor das pessoas por colocá-las ―sob a grade semântica que possuem o Cristo e a Madona por
modelos últimos e explícitos‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015c, p. 22). Tal debate estende-se,
ainda, à questão da proibição da representação pregada pelo Corão, o que poderia
desqualificar ainda mais a iconicidade das fotografias. As simples oposições entre mundo
cristão e muçulmano não dão conta, porém, da complexidade do problema iniciado pelas
fotografias em questão.
128
Figura20:HocineZaourar,MadonadeBentalha,1997
As primeiras pessoas a considerarem importante a imagem de Mérillon foram
aspróprias mulheres fotografadas. Assim que o exército sérvio ataca Nagafc, a jovem irmã do
morto enterra as fotografias no jardim de casa: gesto de zelo, de amor, de quem enterra pela
segunda vez o irmão. Por algum motivo, a representação fotográfica fez a jovem muçulmana
contrariar suas convicções religiosas e se apegar a uma imagem; mas seu gesto de enterrar a
foto também desautoriza o simples argumento de ―colonização da dor‖. Na verdade, o
problema é complexo ―porque as imagens implicam uma duração que vai muito além do
tempo que representam ou documentam‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015c, p. 22). Seria
necessário verificar o quanto estas imagens funcionam, isto é, sua eficácia testemunhal diante
da dialética do tempo (Benjamin), do emaranhamento cultural de migrações e de
sobrevivências (Warburg), do destino das pulsões (Freud), ou do destino como a essência do
conhecimento ( Bataille).
acontecimento específico, portanto deveria ser pensada a partir da história documentada
por ela; a escultura de Convert oferece devir, densidade, materialidade, monumentalidade e
relevo à fotografia de Mérillon, o que a faz pertencer a lugares diferentes da cultura. Será
incompleto o trabalho de situá-la em contextos precisos (tais como a história dos conflitos
balcânicos; a história do fotojornalismo de guerra; a história da arte contemporânea), pois seu
129
poder, defato, é o de mostrar tudo o que a história produz além dela mesma (DIDI-
HUBERMAN,2015, p. 23).
‖A imagem é um conjunto de relações de tempos cujo presente apenas deriva‖, assume
Didi-Huberman (2015c, p. 24). Assim, as imagens em questão aludem à urgência de se
colocar a história em confronto com o passado, de se construir a historicidade segundo a
mescla entre memória e desejo. Essa construção passaria pelo pensamento e prática da
montagem, como o que dá sentido ao AtlasMnemosyne de Warburg. Numa de suas pranchas
(nº 42), trata-se do tema da expressão da dor extrema através da iconografia, parte do projeto
warburguiano de compreender as representações ocidentais do pathos (fig.21). Tanto que a
prancha foi precedida de numerosas montagens dedicadas à figura paradigmática da Ninfa.
Sob a lógica dialética que sustenta toda a montagem do Atlas, o tema da prancha, que exibe os
motivos do cadáver deposto, do luto e da lamentação, encontra na Ninfa o seu positivo, sua
plena inversão energética (DIDI-HUBERMAN, 2015c, p. 24). A fotografia de Mérillon e a
escultura de Convert, por sua vez, fariam convocar um vasto atlas de lamentações.
Figura21:AbyWarburg,AtlasMnemosyne,pranchan°42
130
Respeitando o caráter eminentemente histórico da imagem, dir-se-ia que é a
própriamontagem que constitui o paradigma de toda construção epistêmica ou estética. Duas
seriam as condicionantes fundamentais da montagem: a repetição, que restitui a possibilidade
daquilo que foi, e a pausa, entendida como interrupção voluntária. Assim, entre repetição e
pausa, o ritmo da montagem se estabelece: ―a montagem é ritmo‖, argumenta Didi-Huberman
(2015, p. 26), .‖capaz de dar o fraseado da história‖. Ela complexifica e musicaliza as coisas,
obscurece a visibilidade, de modo que a imagem passa a constituir uma zona de
indecidibilidade entre o verdadeiro e o falso. Tal proposição pode ser colocada ao lado de
uma crítica generalizada e radical das imagens mediáticas. Seja como for, Didi-Huberman se
questiona: como seria possível a Convert (conhecedor do funcionamento íntimo, técnico e
ideológico da televisão e pessimista político como qualquer um de nós) acreditar na
capacidade das imagens oriundas do jornalismo de abrir o nosso olhar sobre suas próprias
possibilidades, sem recusar toda crítica generalizada, ou sem construir uma duração por meio
da montagem de imagens singulares destacadas do rizoma de suas relações.
131
IMAGEM,DELÍRIOPOLÍTICOEGUERRAPSÍQUICA
Desde o início da Primeira Guerra Mundial, Warburg constitui um arquivo
considerávelsobre o evento: recorta milhares artigos, elabora crônicas e desenha a evolução
geográfica do conflito, como as linhas de trincheiras, verdadeiras esquizes praticadas no solo
europeu para consumir a vida de milhões de seres humanos. Didi-Huberman (2013a, p. 319)
se refere ao Warburg daquela época como ―um sismógrafo de tipo burckhardiano‖, pois ainda
registrava sintomas para se proteger deles e diagnosticava esquizes para preveni-las. Entende-
se que o historiador alemão ainda não se posicionava, ou se colocava primeiramente na
defensiva. Se por acaso chegou a participar de revista ilustrada ítalo-alemã acerca da guerra
(publicada em italiano, na Alemanha), era para tentar ―evitar a cisão que espreitava os
intelectuais de ambos os países‖. Ao mesmo tempo, porém, estudou folhetos propagandísticos
da época de Lutero, fundamentando uma iconologia política como novo ramo da história da
arte. Esse conhecimento, crítico e profético, de uma cultura dedicada à violência e ao delírio
paranóico, contradizia sua própria atividade militante na revista. Em meio a suas anotações
sobre a guerra, Warburg começava a se unir aos fantasmas dos mortos em combate, crendo
que, por ter despertado os demônios pagãos do obscurantismo em suas pesquisas sobre a
Nachleben astrológica alemã, ele mesmo era a causa da guerra.
Pouco após o fim do conflito, ―Warburg desenvolve seu desespero como delírio político
[pois acreditava que] os bolcheviques o perseguiam como ‗intelectual capitalista‗ ― (DIDI-
HUBERMAN, 2013a, p. 319-320). Foi internado em diversas clínicas, até ser transferido para
Kreuzlingen em 1921, onde seria tratado por Ludwig Binswanger (eminente psicanalista,
colega de Freud e fundador do sanatório de Bellevue), graças ao qual pôde reemergir do
fundo de seus desvarios. Foi em Bellevue, também, que Warburg teria encontrado a ligação
fundamental entre imagem e sintoma, chegando ao ponto de falar com borboletas,
confidenciando-se com elas como se fossem ―almas amigas‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013a, p.
321).
Não é incomum surgirem borboletas como metáforas da dinâmica política das imagens
e das populações, juntando-se aos vagalumes e às falenas. São insetos frágeis, mas em
mobilidade constante. São insetos que cedem facilmente à queima de arquivo, como lembra
Didi-Huberman:
O fogo que queima a imagem provoca , sem dúvida, "buracos" persistentes,
masé fugaz, tão frágil e discreto como o fogo que queima uma falena que
seaproxima da vela. É preciso olhar demoradamente a dança da falena para
132
ter uma chance de surpreender esse curto espaço de tempo. É mais fácil, mais
comum nada ver. Também é bastante fácil tornar invisível o fogo que queima
uma imagem: os dois meios mais notórios consistem, ou "afogar" a imagem
em um incêndio maior, um ato de fé de imagens, ou "asfixiar" a imagem na
massa maior de clichês em circulação. Destruir e desmultiplicar são as duas
maneiras de tornar uma imagem invisível por quase nada, por demasia
(DIDI-HUBERMAN, 2008, p. 67).
Resistir, sobreviver: ao ampliar seu arquivo de imagens, Warburg procura subverter a
iconoclastia da oficialidade alemã de seu tempo (especializada em produzir queimas de livros,
de arquivos, de pessoas). Rabiscando em cadernos, ele busca espaço para construir no seu
mundo psíquico que se desfaz em farrapos. Impressiona o leitor de suas anotações a
recorrência de sintomas, de esquizes gráficas, brechas nas próprias trincheiras da guerra
psíquica de seu autor, verdadeira esquizografia que se move a meia distância entre construção
e destruição. São traços elétricos, violentos, diretos ou contornados, multidirecionais e
contraditórios que desestruturam a página, rompem com todo o espaço da página, destroem
onde é suposto construir (DIDI-HUBERMAN, 2013a, p. 323). Ao barrar sua própria grafia,
Warburg libera significante reconhecível como o da cobra-relâmpago, a mesma que ele
encontrou na estadia entre os índios pueblos (fig.22). Marca de uma destruição pela loucura
que é, também, aparelho de construção na loucura. Esse aparelho corresponderia ao
diagnóstico de Binswanger de um ―estado misto maníaco-depressivo‖, patologia
correspondente a uma ―estrutura duplicada em ritmos de estados contraditórios‖. Na mistura
de elementos heterogêneos que constitui o seu estado misto, Warburg investiga maneiras de
exprimir essa dialética dos contrários, desde o Renascimento florentino até premonições do
que a história reservava para as pessoas. Com isso, ―compreende-se melhor por que Warburg
falava do historiador não como um simples escrivão do passado, mas como um ‗vidente‗
[Seher] da totalidade do tempo‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013a, p. 325). Compreende-se,
igualmente, a atração que exerce sobre as propostas historiográficas de nosso autor, por vezes
matizadas de intempestividade.
133
Figura22:CléoJurino(informanteindígenadeWarburg).Representaçãocosmológicacomaco
bra-relâmpago[detalhe],1895.
134
IMAGENSDASOBREVIVÊNCIA
Em 1982, foi publicou o livro Odesaparecimentodosvagalumes, do fotógrafo e poeta
Denis Roche. Didi-Huberman evoca-o em SobrevivênciadosVagalumes, especialmente a
crítica nele feita ao celebrado ACâmaraClara, de Roland Barthes, por sua omissão em
abordar a questão da intermitência própria da fotografia. Nosso autor postula o motivo da
intermitência como basilar para o estudo da imagem fotográfica:
Esse motivo da intermitência parece inicialmente surpreendente (mas
somente se consideramos uma fotografia como um objeto e não como um
ato). De fato, ele é fundamental. Como não pensar, nesse sentido, no caráter
intermitente (saccadé) da imagem dialética, de acordo com Walter
Benjamin, essa noção precisamente destinada a compreender de que maneira
os tempos se tornam visíveis, assim como a própria história nos aparece em
um relâmpago passageiro que convém chamar de ―imagem‖? A
intermitência da imagem (image-saccade) nos leva de volta aos vaga-lumes,
certamente: luz pulsante, passageira, frágil (DIDI-HUBERMAN, 2011d, p.
46).
Nas fotografias errantes de Denis Roche, o olho é convidado a questionar a construção
poética da fotografia (fig. 23). Diferentemente da literatura, a poesia fotográfica é silenciosa.
Obtida numa fração de segundo, ela mostra um espaço de tempo intersticial, entre a
preparação para o disparo de luz e o que vem depois dele. De certo modo, a fotografia ali se
configura como a poética da sobrevivência de um instante.
Figura23:DenisRoche,Esfinge,Gizé,Egito,1997
135
Em seu livro de tom autobiográfico, Denis Roche abre espaço para o fragmento de
umdiário aonde vem devidamente anotado o encontro com um pequeno grupo de vagalumes
durante um passeio. Os vagalumes aparecem e prontamente desaparecem, mas nesse curto
espaço de tempo em que puderam ser vistos proporcionaram a Roche um autêntico
maravilhamento. Didi-Huberman comenta que o desaparecimento dos vagalumes não
significa que eles se foram realmente, mas que o espectador renunciou a segui-los em meio à
escuridão do local onde apareceram. Mesma reação de Barthes perante a fotografia: renunciou
a segui-la preferindo guardar o luto frontal do issofoi. Ocorre, porém, como a analogia aos
vagalumes dá a entender a Didi-Huberman (2011d, p.46-47), de os fotógrafos serem viajantes,
pois que deslocam o movimento da luz; não atuam no sentido de fixar o passado, mas de
movê-lo.
A luz frágil, inconstante, fugidia, emitida pelos vagalumes assume para Didi-
Huberman conotação política quando serve de alegoria à marginalização de alguns povos ou a
comunidades esparsas que propõem novas formas de vida. Nesse âmbito, líderes políticos
seriam diametralmente opostos: superexpostos pela luz artificial e constante dos projetores,
ele possuem segurança e poder. Sob tais condições, os vagalumes formam comunidades
anacrônicas, ectópicas, pois sempre deslocadas, como se estivessem fora de seu tempo.
Remeteriam, em sua metaforicidade, de acordo com Didi-Huberman, a outro encontro fortuito
com o literário: a ―literatura menor‖ de Kafka, como referida por Deleuze e Guattari, pois
compartilham do mesmo valor político de resistência, de revolução, e de crítica à própria
marginalização:
Para conhecer os vagalumes, é preciso observá-los no presente de sua
sobrevivência: é preciso vê-los dançar vivos no meio da noite, ainda que essa
noite seja varrida por alguns ferozes projetores. Ainda que por pouco tempo.
Ainda que por pouca coisa a ser vista: é preciso cerca de cinco mil
vagalumes para produzir uma luz equivalente à de uma única vela. Assim
como existe uma literatura menor [...], haveria uma luz menor possuindo os
mesmos aspectos filosóficos: ―um forte coeficiente de desterritorialização‖;
―tudo ali é político‖; ―tudo adquire um valor coletivo‖, de modo que tudo ali
fala do povo e das ―condições revolucionárias‖ imanentes à sua própria
marginalização (DIDI-HUBERMAN, 2011d, p. 52).
Passando do âmbito da fotografia para o do cinema, a possibilidade de que todos os
indivíduos integrantes das sociedades contemporâneas tivessem sucumbido sob o olhar
perscrutador das câmeras de vigilância, ou sob os televisores que oscilam
136
imagensfunestamente, assim como sucumbiram os vagalumes ante a iluminação não natural
projetadapelos holofotes, provocaram a agitação política de Pasolini, cineasta e escritor de
forte impacto em Didi-Huberman. Agitava-o de tal modo que ele acreditava, em desespero,
não haver mais seres humanos nessas sociedades de controle. O que se tem seriam apenas
signos agitados vigorosamente. Toda troca de sinais teria cessado; nenhum desejo se manteve;
nada mais se espera, não há esperança; não há mais o que se ver. Restaria o desespero (DIDI-
HUBERMAN, 2011d, p. 58-59).
Didi-Huberman examina vários pontos que lhe parecem questionáveis na obra de
Pasolini: é como se ele iludisse a si mesmo, radicalizasse a própria desesperança, inventasse o
desaparecer dos vagalumes, valendo-se da linguagem fílmica como forma de manifestar o seu
―desespero sem recurso‖. Ao colocar em questão essa problemática, Didi-Huberman percebe
que, na verdade, está-se por interrogar ―certo discurso – poético ou filosófico, artístico ou
polêmico, filosófico ou histórico – proclamado atualmente [no rastro de Pasolini] e que quer
fazer sentido para nós mesmos, para nossa situação contemporânea‖ (2011b, p. 60). Para além
do exemplo hiperbólico de Pasolini, há nas metaforicidades do contexto consideráveis
consequências. É o momento ideal, talvez, de pensarmos de outra forma a nossa esperança no
futuro. Se o futuro for imaginado como resultante do encontro entre o Outrora e o Agora, fala-
se em termos de constelação (retomando Benjamin), que emite particular brilho, clarão. Didi-
Huberman aproxima visualmente o desenho formado pelo deslocamento dos vagalumes desse
modo constelar de vislumbrar o encontro do Outrora com o Agora. Os vagalumes possuem
ainda a eficácia de sugerir nosso ―modo de imaginar‖ como ―modo de fazer política‖ (DIDI-
HUBERMAN, 2011d, p. 60-61). Relembram, por fim, o conceito de ―partilha do sensível‖,
cunhado por Jacques Rancière em termos de imagem e de imaginação politicamente
compartilhadas:
Denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela,
ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem
lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa portanto, ao
mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das
partes e dos lugares se funda numa partilha dos espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta
à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha (RANCIÈRE,
2005, p. 15).
O encontro dos tempos mostra-se particularmente decisivo no caso de se considerar a
imaginação como formada do encontro constelar entre Outrora e Agora, entre um ―presente
ativo‖ e um ―passado reminiscente‖. Didi-Huberman (2011d, p. 61) lembra que coube
137
aWarburg, antes de Benjamin, mostrar ―as funções políticas de que os
agenciamentosmemorialísticos se revelam portadores‖. Em seus derradeiros escritos, ou nas
pranchas de imagens de seu AtlasMnemosyne, essas funções são constantemente recolocadas
em discussão. Um efetivo trabalho da memória aí se processa, o que não era alheio a Pasolini,
que compreendia o significado poético e visual do motivo da sobrevivência. As imagens em
―perpétua metamorfose‖ dão conta de manifestar um ―caráter indestrutível‖, mesmo entre
transmissões, invisibilidades, latências e ressurgências. Didi-Huberman (2011d, p. 63)
sublinha como a questão da sobrevivência é recorrente na filmografia pasoliniana, que
apresenta ―conjunção assumida do arcaico e do contemporâneo‖. Em LaRicotta, por exemplo,
Pasolini colidiu o Outrora com o Agora por meio do tratamento da cor (o filme apresenta
cenas em preto e branco e em cores). Esta ―posição dialética‖ revela sua eficácia na relação
entre o presente e a história. Em seus últimos filmes, porém, a ―alegria dialética‖ foi
substituída pelo ―desaparecimento das sobrevivências‖. Desapareceram para ele, avalia Didi-
Huberman, as ―condições antropológicas de resistência ao poder centralizado‖. O que se torna
digno da objeção: as sobrevivências podem ser decretadas mortas, desaparecidas? Pasolini
teria perdido definitivamente a ―capacidade de ver (...) aquilo que não havia desaparecido
completamente‖? Ele teria perdido a capacidade de entrever qualquer ―novidade
reminiscente‖ em meio à luz feroz dos projetores anunciando o avanço do fascismo?
Os vagalumes são uma alegoria eficaz dos povos oprimidos pelo fascismo
representado pela luz dos projetores. São insetos sublimes que emitem sua luz particular, mas
são frágeis, tanto que parecem ter desaparecido. De fato, há poucos sobreviventes da
perseguição efetuada pelos holofotes da oficialidade.
138
ATOMADADEPOSIÇÃODASIMAGENS
Mantendo-nos no tema da memória associada às imagens, convém agora
abrirImagensapesardetudo, texto que evoca as quatro fotografias clandestinamente tiradas em
Auschwitz-Birkenau (fig.24), registro inesperadamente veraz do empilhamento de corpos
mortos na câmara de gás As reflexões, ali, remetem a conhecida polêmica: pode a imagem
fotográfica representar o irrepresentável da tragédia humana? Pode ela dar registro veraz de
uma realidade tão aterradora?
139
139
Figura24:Fotografiastiradasclandestinamenteemagostode1944pormembrosdoSond
erkommandodeAuschwitz-Birkenau
Sabe-se que muito pouco restou desses campos para que se possa construir umanarrativa
histórica segura do ponto de vista documental. O pouco que sobrou resume-se a documentos
oficiais da burocracia estatal nazista e filmes feitos por soldados aliados assim que os portões
dos campos de concentração foram abertos. É tudo o que se tem de palpável para investigar o
evento. Pouco, se comparado com a extensão da máquina de matar nazista. Nesse panorama,
o relato testemunhal e a memória oral revestem-se de inestimável valor. A voz dos
sobreviventes diminui algumas lacunas deixadas pela falta de materialidade. Mesmo que o
discurso proferido pela vítima sobrevivente seja pautado por uma visão parcial e subjetiva dos
eventos, não se pode jamais descartar a declaração daquele que viu os fatos inlocu. Parece
haver valor histórico intrínseco no relato oral daqueles que estavam presentes no lugar dos
acontecimentos.
A questão repensada por muitos historiadores atualmente é a dos modos de se preservar
as memórias produzidas em torno do evento histórico do Holocausto. Inúmeras produções
cinematográficas, exposições em museus e obras literárias foram lançadas a respeito. Já no
fim da Segunda Guerra Mundial, no momento mesmo da chegada das tropas aliadas aos
campos de concentração, começou-se a produzir material de vídeo para registro, produção de
provas e arquivamento, com o fito de resguardar todo tipo de informação relacionada ao
massacre nazista. Pode-se dizer que a memória do Holocausto é ameaçada por um paradoxo:
por um lado, a escassez de informações oficiais, dado que os nazistas destruíram tudo o
140
quepuderam antes da chegada das tropas aliadas; por outro, o risco do excesso de
informação,visual, oral e escrita. O exagero de minúcias pode fazer com que a noção do
conjunto do evento seja perdida. Como lembra Tzvetan Todorov (2000, p. 13), não é em vão
que os regimes totalitários concebem o controle da informação como uma prioridade. As
informações tornam-se mais valiosas não quando se multiplicam, mas na medida em que
permitem articulações. Informações enriquecidas, bem articuladas, não são necessariamente
numerosas; são as que permitem identificar e, com isso, controlar grupos inteiros de pessoas.
Da mesma forma que os regimes totalitários usam informações para controle, a sociedade
também pode articular informações para combatê-los. Desse modo, a informação pode tanto
libertar os indivíduos, se utilizada adequadamente; quanto os tornar inertes, por meio do
acesso indiscriminado e sem valor. Sobrecarregar de informações os eventos críticos da
história produz, ainda, alienação, pois os indivíduos não conseguem formar identidades
sociais sólidas, o que facilita sua manipulação. Paradoxalmente, guardar informações
excessivas sobre um evento pode torná-lo tão difuso que qualquer afirmação a respeito
mantém-se condicionada a um desmentido qualquer. Este evento fragmentado não pode ser
usado como sentimento de pertença a um grupo. De modo que, segundo Todorov (2000, p.
15), a memória, e consequentemente a cultura que dela se origina, não está ameaçada pela
falta de informação, mas pela superabundância.
Em paralelo à trilha aberta pelo filósofo e linguista búlgaro, Didi-Huberman retoma
Annette Wieviorka, historiadora francesa especialista no tema do Holocausto, para quem uma
―memória saturada‖ acompanha toda tentativa de trabalhar sobre o nazismo. Uma memória
saturada, no entender da autora, é uma memória ameaçada em sua eficácia mesma, sob risco
constante de ―sub-interpretação‖ (DIDI-HUBERMAN, 2006a, p. 1012). A história feita sem
crítica sobre as informações levantadas não se configura como um conhecimento. Não é o
acúmulo do saber que nos faz conhecer, mas a relação fenomenológica entre o saber (do
passado) e o sentir (do presente). A memória, antes de tudo, é seleção (TODOROV, 2000, p.
16). O que significa dizer que a memória opera conservações e descartes de informação,
procedimentos colocados em jogo no trabalho do historiador. Todorov (2000, p. 16) afirma
que ―memória é a capacidade que têm os ordenadores para conservar a informação‖. Essa
―capacidade de conservar‖ indica que talvez haja variações na força de conservação de
determinadas informações. Algumas informações consomem-se rapidamente, desaparecem,
tornam-se descartáveis tão logo utilizadas. Outras tendem a ser mais rígidas e perduram.
Podemos pensar ainda que a memória não é um ato passivo do indivíduo, mas uma ação sobre
o mundo, que lhe bombardeia de informações diversas, dialéticas, em via dupla: sensoriais
141
esemióticas. A memória está intimamente ligada à construção da identidade cultural: a
perdada memória representa uma ameaça para o futuro. Ela seleciona o que permanece e o
que se perde. Essa perda permite à memória não ser vítima do acúmulo excessivo. Todorov
(2000, p. 17) alerta, porém, que não se pode justificar um uso enganoso da memória pela
necessidade de recordar. A memória é necessária, mas sua construção é repleta de riscos. Se
para alguns não há dúvida de que o Holocausto foi o evento mais terrível da história, para o
historiador cabe a função de se colocar, não como neutro, mas como alguém consciente de seu
afastamento do local dos fatos, para então tentar reconstruir a história como um exercício de
montagem de informações heterogêneas, carregadas de ideologias e de subjetivações.
É necessário recordar o Holocausto; mas torná-lo um acontecimento de terror absoluto
pode provocar efeitos indesejados. Didi-Huberman observa que as primeiras imagens
produzidas na abertura dos campos de concentração já lutavam contra os dolorosos paradoxos
da ―vontade de memória‖ e da ―vontade de esquecimento‖ (DIDI-HUBERMAN, 2006a, p.
1017). As terríveis cenas, por um lado, pediam para serem esquecidas, para serem negadas.
Ao mesmo tempo, lembrar-se delas, para nunca mais vê-las em outra situação, urgia como
uma necessidade visceral. As imagens do Holocausto posicionam-se entre uma vontade de
―montar‖ a história e de ―mostrar‖ as histórias. A diferença entre uma e outra postura é
essencial para entendermos a gestão da memória proposta pelo documentário de Claude
Lanzmann, Shoah, analisado por Didi-Huberman. Montar a história é reunir os fatos, os
dados, as diversas informações concernentes ao Holocausto e agrupá-las sob alguma diretriz
capaz de lhes dar um efeito de legibilidade. A história torna-se, então, compreensível,
narrável. Ao mostrar as narrativas dos sobreviventes do genocídio, pode-se formar um painel
de testemunhos em fragmentos, individualmente importantes, mas podendo ser remontados
como detalhes de uma paisagem do sofrimento humano sob as garras do totalitarismo. Didi-
Huberman (2006a, p. 1017) sustenta que Lanzmann refuta toda a visibilidade dos arquivos
com base numa tentativa de escutar os sobreviventes. Os depoimentos dados para o
documentário são feitos no local onde os campos de concentração se localizavam. Como os
campos foram destruídos pelos nazistas, sobrou apenas um cenário que aciona a memória dos
sobreviventes. É em suas mente que as imagens do Holocausto são produzidas. Rejeitam-se as
imagens diretas de corpos amontoados para enfatizar o discurso produzido a partir de imagens
mentais. Não há nada ali, efetivamente, para ser visto. O sentido de retornar a esses lugares de
sofrimento, onde lembrança e sofrimento estão tão associados, é forçar a vinda à tona de uma
memória repleta de defesas psíquicas com o fim de levá-la ao esquecimento.
142
Podemos assumir que Didi-Huberman estuda o documentário de Lanzmann com
oobjetivo de montar história diversa. Ele critica o modo como as informações são obtidas no
filme, pois a memória é ali coagida a se (re)presentar em face de um nada que resta, ao passo
que há quatro imagens obtidas clandestinamente pelos membros do Sonderkommando para
serem vistas. Na fala de um dos depoentes do documentário, por exemplo, a memória parece
emergir da comparação com a experiência e passiva do momento de emissão da fala, pois ele
afirma que havia relativa tranquilidade em Auschwitz, mesmo quando ―se queimavam
diariamente duas mil pessoas‖, pois ―ninguém gritava, todos faziam o seu trabalho‖, tudo era
calmo como ―agora‖: o agora da reminiscência. Todorov entende que cada indivíduo deveria
ter o direito de buscar por si mesmo os documentos necessários para encontrar a verdade dos
fatos. Mas esse direito se converteria em dever quando se trata dos indivíduos ou grupos
participantes de acontecimentos excepcionalmente trágicos. Entendemos que há uma espécie
de compromisso destes para com o seu testemunho. Forçar estes indivíduos a recordar – como
no testemunho célebre de Abraham Bomba – seria uma forma de fazê-los cumprir a função
social de sua memória. É preciso, porém, manter a cautela. Esses indivíduos para os quais a
recordação tornou-se um dever passaram por um forte abalo emocional. Seu sofrimento não
pode ser tratado com displicência. Em alguns casos, a experiência de uma revelação do
passado é tão insuportável que tende a ser rechaçada com veemência. Assim, é preciso notar
que esses indivíduos possuem, em comparação ao dever de recordar, igual direito ao
esquecimento. Esquecer, para alguns deles, é o único modo de conseguir suportar o peso de
uma lembrança que induz o sofrimento. Como a recuperação do passado é tão indispensável
quanto esquecer para viver o presente, alguns não estarão dispostos a abrir mão de continuar
vivendo para, num momento de esforço pessoal, relembrar. Os entrevistados do documentário
de Lanzmann são casos raros de pessoas que decidiram desafiar as próprias memórias. No
campo dos estudos historiográficos, mesmo que a vida sucumba à morte, parece que a
memória sai vitoriosa na luta contra o nada (TODOROV, 2000, p. 18).
Os campos de concentração atualmente são espaços onde nada resta, mas é ali que a
memória mostra à morte sua força, sua resistência. Sua verdade carrega o peso do tempo. São
carregadas de tempo até explodirem, lembra benjaminianamente Didi-Huberman (2006a, p.
1011). Nesta explosão, a memória aflora, e a palavra vacila, gagueja. Aos pequenos golpes, a
memória acessa a fala. Essa recordação obtida no lugar em que ocorreram os fatos, contrária a
toda forma de história construída por um idealismo platônico, sente a necessidade imperiosa
de experimentar, de sentir para conhecer. Aí nasce o dilema entre o ver e o dever.
143
O objetivo de Todorov é fundamentar uma crítica dos usos da memória a partir
dadistinção entre diversas formas de reminiscência. Ele insiste que o acontecimento
recuperado pode ser lido de maneira literal ou de maneira exemplar. A forma de leitura
exemplar tem a intenção de construir um exemplum, de extrair uma lição. O passado se
converte em princípio de ação para o presente. Aproveitam-se as lições das injustiças sofridas
para lutar contra as que se produzem atualmente (TODOROV, 2000, p. 30 e 32). Quanto ao
uso literal, que converte em insuperável o velho acontecimento, ao contrário do uso exemplar,
recai na apresentação do presente ao passado. Este uso da memória ocorre, por exemplo,
quando se considera o hitlerismo como o horror ou como o mal absoluto, como se nenhum
evento do passado fosse pior. É um mal tão profundo que se torna incomparável e inatingível.
Ora, para Didi-Huberman falar de mal absoluto, saturar os fatos de moral, é o que torna
Auschwitz legível (DIDI-HUBERMAN, 2006a, p. 1012). Evidentemente, legibilidade não é o
que se espera de um acontecimento tão execrável. Dar legibilidade para o incompreensível de
alguma maneira reduz o terror causado a uma significação que o tornaria explicável e, ainda,
justificável.
A aproximação entre Didi-Huberman e Todorov mostra que qualquer forma de gestão
da memória não é isenta de conflitos, quanto mais a memória do Holocausto. Ferida aberta na
história recente, ele ainda alimenta o debate sobre sua narratividade. No ensaio intitulado
Cascas, Didi-Huberman suscita essa questão a partir de um ponto de vista pessoal mais que
testemunhal. Contrariamente a Lanzmann, que se oculta por detrás do testemunho de
sobreviventes, ele imerge em meio aos impasses do ato de historicizar os campos de
concentração. Razão porque seu texto parte do relato de sua visita ao Memorial e Museu de
Auschwitz-Birkenau. Um início quase literário:
Coloquei três pedacinhos de casca de árvore sobre uma folha de papel.
Olhei. Olhei, julgando que olhar talvez me ajudasse a ler algo jamais escrito.
Olhei as três lascas como as três letras de uma escrita prévia a qualquer
alfabeto. Ou, talvez, como o início de uma carta a ser escrita, mas para
quem? (DIDI-HUBERMAN, 2012b, p. 99).
Trata-se aí de permitir ser envolvido pelo objeto de estudo, de permitir que a
primeirapessoa entre no trabalho historiográfico. Os ―três pedacinhos de casca de árvore sobre
uma folha de papel‖ são singularidades (aceitando o risco da ficção a que toda análise
subjetiva está sujeita), são sintomas daquilo que pensamos aqui como a eficáciapolítica das
imagens. Essas simples cascas (fig.25) não deixam de ter a fugacidade e a fragilidade de toda
imagem (pois circulam amplamente e se destroem facilmente), mas também possuem o
alcance crítico da imaginação – aludem ao o poder e o perigo da faculdade de imaginar.
144
Imagens mascaram eescancaram a verdade, manipulam as massas ou servem como formas de
sobrevivência,produzem dissensos e consensos – três pedacinhos, simples pedacinhos de
casca de árvore.
Figura25:FotografiaemDidi-Huberman,Écorces,Paris:Minuit,2011
A eficácia das imagens dependerá, assim, das intencionalidades e das montagens
feitascom elas. Em face disso, os modestos objetos de interesse de Didi-Huberman não
possuem, em contrapartida, objetivos modestos: se não há nada a se dizer, a princípio, sobre
três pedacinhos de casca de árvore, é porque eles podem ajudar ―a ler algo jamais escrito‖:
reconhece-se, desde o início, a filiação benjaminiana do ensaio. Para Benjamin, o idioma seria
a etapa suprema do comportamento mimético. Ler o que nunca foi escrito seria a leitura
anterior a todo idioma, o que poderia ser observado na astrologia, nas artes de adivinhação,
nas danças, onde algo se dá a ler sem, contudo, apresentar caracteres escritos. A carta escrita
por pedacinhos de casca faz alusão a essa característica histórica, ancestral do idioma
(BENJAMIN, 1970, p. 49-52). As cascas apresentam-se sobre o papel em branco como linhas
de uma ―carta a ser escrita‖ – ou como os fios de um tecido, o tecido do tempo: tecido e texto
possuem a mesma raiz etimológica. Didi-Huberman denomina essas cascas ―lascas de tempo‖
e as aproxima de seu ―próprio tempo em lascas‖: espera-se muito dessa experiência pessoal de
visita ao museu, espera-se muito de três pedacinhos de árvore, pois é do embate entre o
145
ínfimo e o crucial que as crises da História se apresentam. É no confronto entre o ponto
devista e o panorama; entre os acontecimentos singulares, e talvez até mesmo banais, e
osgrandes eventos, paradigmáticos, que a análise historiográfica mostra toda a sua
fecundidade.
O texto de Didi-Huberman segue uma linha de pensamento ascendente – da casca paraa
árvore; da árvore para o bosque; do bosque para o Museu; e do Museu para a crítica da
História, como modo de repensar os valores de uso do tempo. Essa espiral ascendente do
ensaio permite afirmar que ―à sombra das bétulas de Birkenau ecoou o uivo de milhares de
dramas atestados apenas por alguns manuscritos‖ (DIDI-HUBERMAN, 2012b, p. 101). Não
se trata, porém, de iconologia, pelo menos não em sua vertente panofskyana. As cascas não
representam o Holocausto, pois não são símbolos, não chegam à experiência como signos
claros e pouco contribuem para se pensar o contexto dos eventos. São pedaços das árvores
que estavam presentes durante o genocídio judeu. Seria demasiado pensá-las como formas
especiais de testemunhas? Em lugar de uma interpretação iconológica baseada em intuição
sintética, Cascas propõe algo mais próximo das Pathosformeln warburguianas: a
sobrevivência dos gestos de certa patologia da dor na ligação possível entre o museu e o
campo de concentração, entre o olhar do visitante e o olhar do prisioneiro. As cascas das
bétulas, na Antiguidade, eram usadas como suporte para textos e desenhos; em Auschwitz-
Birkenau, como placas de orientação dos judeus rumo ao destino final; no Memorial do
campo, orientam e advertem os visitantes sobre as regras de uso do local (não se pode beber,
fumar, tocar em determinados objetos, etc.), a despeito da aparente liberdade de acesso.
Interessa ao historiador a sobrevivência imemorial da casca como lugar de escrita, ou, em
outras palavras, da pele e da superfície, onde se grafam sinais diversos. Evocadora de todo
lugar de inscrição, a casca indicia também a inscrição de um lugar, de uma circunscrição. As
bétulas pertenceram a um ―lugar de barbárie‖ e hoje participam de um ―lugar de cultura‖. O
gênero-cultura que se pratica no Museu de Auschwitz, ao torná-lo ―espaço público exemplar‖,
deve ser questionado. Tendo em vista que a barbárie só foi possível porque houve
determinada cultura capaz de pensá-la, organizá-la e sustentá-la, inclusive esteticamente,
como garantir que no Museu a ―luta pela sobrevivência‖ dos prisioneiros não foi anulada pela
mudança de apropriação cultural do mesmo espaço? Didi-Huberman preocupa-se com o
debate sobre as formas culturais da sobrevivência porque a cultura, desde sempre, é um ―lugar
de conflitos‖, pois lugar de gestação dos esplendores passados e das desgraças futuras. As
imagens, como traços de cultura, são, pois, rastros desses conflitos. Cultura e barbárie
parecem-lhe pólos opostos em constante tensão, mas também, e por isso mesmo, diálogo: um
146
se converte no outro com frequência, às vezes de modo imperceptível; razão porque Benjamin
afirma que as imagens autênticas, as imagens reveladoras da verdade histórica, são
imagensdialéticas, contraditórias, ambíguas. Razão porque Didi-Huberman as entende como
imagenscríticas (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 169-199). Seria o caso da fotografia que ele
mesmo faz de um passarinho entre duas linhas de arame farpado: havia dois tipos de arame,
um escurecido pela ferrugem e o outro instalado recentemente; em forma de imagem
fotográfica, o pouso do passarinho pode acionar a imaginação: ―sem saber, o passarinho
pousou entre a barbárie [cerca enferrujada] e a cultura [cerca restaurada]‖, afirma Didi-
Huberman (2012b, p. 106). A imagem produzida ao acaso tem a força de criticar múltiplas
temporalidades: a cerca enferrujada atualmente (a cerca ―original‖) foi um dia a cerca nova de
um tempo de barbárie; a cerca nova dos tempos atuais restaura superficialmente o tempo de
barbárie, restauração somente possível por determinada cultura que acredita na importância de
preservar o aspecto visual dos lugares de memória.
Não nos parece que Didi-Huberman seja contrário a rememorar Auschwitz, mas
inquieta-o o fato de o campo de concentração ser esquecido em seu próprio lugar para se
constituir como lugar fictício destinado a lembrar do mesmo lugar (DIDI-HUBERMAN,
2012b, p. 108). Ao se converter o lugar do martírio em museu, transforma-se o objeto a ser
imaginado (o campo, do qual, afinal, não resta muito a ver) em imagem de si mesmo (museu);
rememorar passa a ser o mesmo que teatralizar a memória, cujo palco é parte de um projeto
de reuso do lugar. Mas como reutilizar um campo de concentração, como lhe dar novavida
sem que as atrocidades ali cometidas não sirvam de estranho fetiche ou então de
comemoração? Como dar nova vida a um lugar destinado à morte, ―concebido para dissipar
toda esperança‖? Como sustentar filosoficamente um local destinado a ver e a expor se, antes
da chegada dos soviéticos, os nazistas destruíram a maior parte das instalações originais? O
Renascimento de Auschwitz, contradição plena, obriga-nos a recorrer ao saber arqueológico,
ao saber das escavações, do solo – só restam escombros e cinzas, que mesmo assim se
debatem entre um desejo de lembrar e de esquecer; entre o de saber e o de não saber; entre o
de ver, imaginar, e o de não ver, esquecer. Convém olhar como um arqueólogo para a
vegetação e para as fundações do chão de Auschwitz, pois ali ―repousa toda a loucura lógica
de uma organização racional da humanidade compreendida como matéria-prima, como
resíduo a ser transformado‖. Ali é onde ―repousam as cinzas de incontáveis assassinados‖
(DIDI-HUBERMAN, 2012b, p. 114). Do chão advém a cultura e a barbárie. Winckelmann e
toda uma geração de interessados pela arte antiga teria escavado o solo em busca de relíquias
figurativas na forma de estátuas e pinturas; Benjamin defendia: ―aquele que busca aproximar-
147
se de seu próprio passado sepultado deve se comportar como um homem que faz escavações‖;
Didi-Huberman, por sua vez, postula que ―o ato memorativo em geral, o ato histórico
emparticular, colocam fundamentalmente uma questão crítica, a questão da relação entre
omemorizado e seu lugar de emergência‖ (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 175).
Talvez algo de todo o exposto justifique porque Didi-Huberman se ocupa mais de
vegetais, animais, pedras, solo, enfim, de tudo quanto não seja humano em Auschwtiz-museu:
no fim das contas, havia no campo de concentração uma ideologia de abatedouro, uma ―lógica
de estábulo‖ (DIDI-HUBERMAN, 2012b, p. 115). Judeus não eram vistos como humanos;
humanizá-los em Auschwitz não corresponderia à realidade de como foram tratados. As
imagens de Didi-Huberman poderiam muito bem ser aproximadas dos clichês de Eli Lotar no
antigo abatedouro de La Villette (fig.26), e que tanto desconforto causaram a Georges
Bataille. Seremos humanos tratados como gado, desinfetados com Zyklon B. Não é
certamente procurando dar formas mais humanas para as figuras desfocadas, escorchadas, das
fotografias tiradas clandestinamente por um membro que Sonderkommando que se entenderá
o teor histórico e perturbador daquelas imagens. Corrigi-las, aumentar sua legibilidade,
diminui sua eficácia, que é a de testemunhar ―a situação de urgência e de quase
impossibilidade de testemunhar naquele momento preciso da história‖ (DIDI-HUBERMAN,
2012b, p. 121).
Figura26:ÉliLotar,AuxabattoirsdelaVillette,1929
148
Como se viu, a leitura de Didi-Huberman sobre os usos da memória apóia-se
nafilosofia da história de Benjamin, que pensa as singularidades históricas em suas relações,
em seus movimentos e intervalos. Essas singularidades destacam-se da história pensada por
relação de causa e efeito e rejeitam o tempo como entidade neutra e abstrata. Benjamin refere-
se muitas vezes a algo de messiânico no trabalho do ―anjo da história‖. É preciso historicizar
essas metáforas: Benjamin trabalha na condição extrema da ascensão do nazismo, quando o
chamado a um materialismo histórico fazia com que imperasse o ódio totalitarista às ideias do
socialismo. Para Benjamin, o presente seria determinado pelas imagens que lhe são síncronas,
de modo que essas imagens não são apenas objetos visuais, mas o próprio formato de cada
presente. A história pautada pela singularidade busca descobrir na análise do pequeno
momento singular o cristal do evento total. Movimento inverso da história positivista, é a
história por negatividade. O positivismo, em sua marcha para o progresso único, linear, busca
construir narrativas totalizantes para fazer caber cada momento singular. Desta forma, pode-se
até desconsiderar as singularidades, pois o evento total as explica antes de qualquer coisa. De
acordo com Didi-Huberman, para cada objeto singular, deve haver uma historiografia
diferente, renovada, repensada em todas as suas práticas. Os eventos totais se reconstroem, se
refazem. São totalmente repensados em seu âmago. O que não implica perder o horizonte da
verdade, mas assumir a irredutível complexidade da verdade e da história. Didi-Huberman
coloca-se em posição contrária a toda forma essencial, arquetípica, de passado. Para ele, o
passado não pode ser construído sob a forma de uma narrativa única. A legibilidade do
passado aparece na articulação dinâmica de suas singularidades. Como consequência disso, a
eficácia das imagens encontra-se na sua capacidade de fornecer múltiplas formas de
legibilidade para o passado.
Não por acaso a montagem fílmica serve a nosso autor como a forma por excelência
de um pensamentoporimagens. Eisenstein e Benjamin ocupam, não por coincidência, o
mesmo tempo: época em que a imagem técnica influencia o pensamento histórico, verdadeira
revolução teórica do olhar, quando se torna possível ver o pensamento, guardar imagens do
presente, quiçá a própria realidade, mas também sonhar a história, montá-la como uma
sequência de imagens, e não apenas de discursos. A definição de imagem cunhada por
Benjamin, como encontro do Outrora com o Agora em um relâmpago para formar uma
constelação, é marca indelével no pensamento de Didi-Huberman (2006a, p. 1013). Esta
concepção dialética de imagem, antes de tudo, trata de uma imagem que age, pois opera um
encontro: a imagem seria entendida como um espasmo do tempo, um tremor do tempo que faz
o passado esbarrar no Agora. Neste embate, um lampejo faz alusão à imagem como uma
149
visãoefêmera, passageira, pois, com a atualização constante do Agora, o encontro será único.
Ocontato de cada indivíduo com uma imagem nunca se dará em tempos presentes idênticos. O
Agora se atualiza e com isso reconfigura o Outrora, dando-lhe um estatuto diferente. Cada
encontro formará um novo lampejo e uma constelação temporária de imagens díspares. Estas
imagens não produzirão qualquer discurso histórico estável; paradoxalmente, pedem para ser
constantemente historicizadas. As imagens se refazem sem cessar diante dos olhos do
indivíduo, em sua existência também temporária. Assim sendo, estar diante da imagem não é
estar diante de um objeto pronto, com características definitivas; é estar diante do próprio
tempo. É preciso levar em consideração que o passado e o presente não são a mesma coisa
que o Outrora e o Agora. Enquanto a relação entre passado e presente é apenas temporal, a
relação entre o Outrora e o Agora é dialética, porque de natureza imaginária (DIDI-
HUBERMAN, 2006a, p. 1014).
Didi-Huberman trabalha com quatro imagens desenterradas em Auschwitz. Essas
imagens carregam-se de tempo, de um Outrora, não no sentido de época, mas de um
fragmento de evento total. Esse Outrora entra em contato com o Agora, o tempo de Auschwitz
como museu. Antes lugar de barbárie; hoje lugar de cultura. Didi-Huberman inverte o sentido
da relação traçada por Benjamin entre cultura e barbárie: todo monumento de barbárie
carrega-se de alguma cultura que o constrói. Deste modo, no passado haveria muitos
passados, que se movem como imagens dialéticas. As imagens dialéticas, que aparecem
fulgurantes e ao mesmo tempo frágeis, necessitam ser captadas em seu ―momento de perigo‖.
Esse momento crítico surge diante de nós como um rasgo do tempo no espaço. Shoah para
Didi-Huberman não teria sido um filme idealista, onde são suscitadas grandes questões para a
reflexão, mas um filme de ―geografia, de topografia‖, retornando a esses locais de destruição
que não se moveram do seu lugar: lugares de memória. Nesse filme, o Holocausto não é um
acontecimento do domínio da lembrança, mas uma questão sobre a memória dos campos, dos
restos do tempo e de sua historicidade. Constrói-se, com isso, o que significa visualmente
estar diante de um lugar e recordar, o estar-aí entre dois tempos que coexistem dialeticamente:
o Outrora e o Agora. Inevitavelmente, Lanzmann produz, com força, aquilo que evita:
imagens.
150
CONCLUSÃO
A imagem treme, ela é o tremor da imagem, o calafrio do que oscila e
vacila: ela sai constantemente de si mesma, é que não há nada onde
ela seja ela mesma, sempre já fora de si e sempre o dentro desse fora.
[...] [Tal é] a imagem, para onde aponta o neutro".
(M. Blanchot, "Parler, ce n'est pas voir". L'Entretieninfini)
Assim desdobra-se a outra face, o outro tempo da imagem. O que era
acontecimento tornar-se-á memória. O que era mônada tornar-se-á
montagem. A aparição fez, no tempo de um relâmpago, sua marca: ela
vai então durar de algum modo. Não como aparição, certamente (nada
desaparece mais rapidamente do que uma aparição). Mas
como fascínio, esta maneira que tem a imagem de manter-nos durante
muito tempo, e mesmo indefinidamente, sob seu poder de
assombração.
(G. Didi-Huberman, ―De semelhança a semelhança‖)
Desde o início de sua carreira, Didi-Huberman ambiciona elaborar uma ―estética
dosintoma‖, um método historiográfico baseado numa espécie de fenomenologia do signo,
entendido a um tempo como estrutura e como trabalho específico da imagem. Tratar-se-ia,
além disso, de uma estética dos ―acidentes soberanos‖, de uma semiologia dos acasos
produzidos por força das processualidades da imagem. Ao articular fenomenologia com
semiologia, ele visa lidar com os aspectos concretos da experiência sensível diante da imagem
tanto quanto com as reminiscências sintomáticas evocadas pelo estudo de seus sentidos. Entre
a imediatez da materialidade e a inteligibilidade ontológica do objeto visual, ele opta pelo
caminho dialético, problemático, crítico, inquieto, da psicanálise. Para legitimar essa
perspectiva, obriga-se a criticar a pretensa cientificidade da história da arte. Depois de traçar,
antropologicamente, as linhas mestras da ideologia racionalista e objetiva que sustentou (e
ainda sustenta) o discurso autolegitimador dessa disciplina, ele critica determinados valores
veiculados pelos historiadores, tais como a arriscada neutralidade epistemológica, mas
principalmente política, pretendida por eles em relativo descaso das implicações
sociopolíticas de seus pressupostos metodológicos. Critica, ainda, a valoração excessiva do
método dedutivo iconológico, e o juízo de valor estabelecido objetivamente por meio da
centralização das referências em poucas imagens-clichê, exaustivamente retomadas a cada
novo trabalho de pesquisa.
A inspiração psicanalítica de Didi-Huberman permite-lhe, ainda que com a devida
cautela, empregar o sintoma freudiano como paradigma primeiro para rasgar o dispositivo
representacional da imagem e vasculhar por dentro dela, em sua profundidade, os sentidos
151
quelá permaneceram recalcados culturalmente, distorcidos, sublimados ou
antropologicamentedeslocados em suas formas, gestos, significados, usos, cultos. A cisão na
imagem provocada pela simples frequentação do olhar das singularidades de seu objeto – por
aproximação insidiosa, como aquela realizado em ARendeira de Vermeer, destacando ali um
pequeno trecho ( pan de pintura) provocador de uma série de questionamentos, ou por
distanciamento inesperado, como o que se processa diante de AMadonadasSombras de Fra
Angelico, deparando-se com os inusitados motivos em abstração, um Pollock extemporâneo
em plena representação renascentista – é capaz de despertar a ramificação das dúvidas que o
método positivista da história da arte tem sido incapaz de frequentar. Dúvidas estas que
devem ser consideradas como propriedade mesma da imagem.
É em termos de propriedade da imagem que nos pusemos a pensar acerca do motivo
de sua eficácia na obra didi-hubermaniana. Observamos que talvez seja no que diz respeito à
processualidade que nosso autor encontra algo mais consequente em relação ao poder de agir
das imagens. A tradicional historiografia da arte, alinhada ao pensamento panofskyano,
entendera que a eficácia da imagem relaciona-se com a capacidade que ela possui de dar
causa a determinados efeitos. Imagens eficazes seriam aquelas cujos efeitos correspondem a
algo previamente esperado. De acordo com a realização ou não de tais efeitos, pode-se até
mesmo produzir julgamentos: artistas são considerados bons ou ruins dependendo de como o
efeito por eles imaginado se concretiza no observador; imagens são boas ou ruins dependendo
do quanto elas correspondem aos efeitos esperados em determinada época (o que se poderia
denominar de estilo). Quanto mais uma imagem corresponde aos efeitos esperados pelos
homens de ―seu tempo‖, mais elas são bem avaliadas pelos connoisseurs de outros tempos.
Didi-Huberman aponta diversos problemas originados da generalização que uma
relação unívoca entre causa e efeito produz na legibilidade da imagem: o juízo neokantiano
adotado pela história da arte baseia-se num processamento sintético das qualidades das
imagens: de uns poucos particulares, chega-se a universais que correspondem ao estilo de
época (o que tornaria inteligível sua ―mentalidade‖); não só a legibilidade formal dos objetos
visuais perde em complexidade, como também a própria noção de tempo histórico vê-se
achatada por proposições idealistas que não resistem ao mais básico ato empírico de
investigação pelo olhar. Assim, ao perceber que na história da arte a dimensão espacial e
temporal das imagens mais obedece a certa teorização que respeita a realidade material e os
condicionantes da percepção dos objetos, Didi-Huberman alia-se a pensadores que
procuraram uma reflexão mais crítica sobre a arte, menos suscetível à compartimentação
estanque das disciplinas sociais. Razão porque tanto lhe interessa o
152
pensamentopluridisciplinar, à margem da tradição, por isso mesmo renovador e, por vezes,
misterioso, deautores tais como Benjamin, Warburg e Einstein.
Da obra benjaminiana, Didi-Huberman extrai a reinterpretação do materialismo
histórico, a produzir densa crise epistemológica no campo da filosofia da história, com sérios
desdobramentos na esfera do estudo histórico e cultural das artes. O conceito de imagem
dialética em Benjamin contraria a linha de pensamento hegeliana, pois não apresenta síntese.
Seu devir, na verdade, trata da própria suspensão da dialética, da contradição constante e
irresolvida do ser e do não-ser. Paradoxalmente, porém, seria esta a forma da imagem revelar
a verdade histórica. A lembrar como a imagem dialética serve a Didi-Huberman, em
Oquevemos,oquenosolha, como forma de pensar a eficácia contraditória do túmulo enquanto
paradigma da origem das imagens. O túmulo é a imagem por excelência da perda do referente
e do surgimento do outro, que ainda não é absoluta alteridade. Para além dos princípios
filosóficos da imagem como cópia, duplo, semelhança, contigüidade, ele nos apresenta a
imagem dialética como imagemcrítica, eficaz em criticar a própria representação, em
desestabilizar os dispositivos geradores de imagens (geralmente consoladoras). A dialética
insuperável da imagem benjaminiana constitui-se, ainda, de um ritmo de alternâncias entre
aparecimento e desaparecimento, que não formam conjuntos de dicotomias, mas de
ambigüidades.
A eficácia da imagem como decorrência da ambigüidade leva nosso autor a adotar o
sintoma como seu principal conceito. Os sintomas representam signos muito particulares da
imagem que, a despeito de qualquer crítica que se faça à fatuidade de sua manifestação ou ao
risco de ficcionalizar o ato de compreensão da imagem, produzem crítica espontânea das
representações. Didi-Huberman atribui ao sintoma o poder de rasgar a própria imagem. Em
seu poder de rasgadura estaria concentrada toda a sua ―perturbadora eficácia‖ (DIDI-
HUBERMAN, 2013, p. 212). O verbo ―rasgar‖ (déchirer), nesse caso, é empregado
metaforicamente, fazendo analogia com um gesto intempestivo, com um rompante de fúria. O
sintoma rasga a imagem como se a recusasse em sua primeira evidência. O que ele parece
rasgar, todavia, não é a imagem propriamente, mas o saber dos historiadores a seu respeito.
Pois o sintoma ―exige, de maneira mais radical, modificar uma vez mais (...) a posição do
sujeito do conhecimento‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 211). Durante muito tempo, os
historiadores procuraram fugir da presença do sintoma. Seu aparecimento fenomênico, de
fácil percepção pelos sentidos, invariavelmente provoca desconfiança nos que buscam na
imagem apenas signos, símbolos ou a manifestação de númenos, isto é, formas elevadas de
entendimento. O sintoma, além disso, é termo associado a conotações clínicas,
153
característicaque vem inequivocamente depor contra o seu uso como categoria analítica de
investigação dasimagens, particularmente das imagens de arte.
Apesar de todos os esforços em reprimir os sintomas da imagem, ele é eficaz, também,
em aparecer apesar de tudo. Para o historiador, porém, é preciso "dizer" esse aparecer. Daí
que o sintoma seja também um problema de escrita. A princípio, para o historiador o sintoma
pode lhe parecer um impedimento para o trabalho. Pois não há verdadeiramente o que dizer
ou escrever sobre o sintoma. Ele é a própria interrupção da fala, dos sentidos, rasgadura de
todas as textualidades. A respeito, lê-se:
Sintoma nos diz a escansão infernal, o movimento anadiômeno do visual no
visível e da presença na representação. Diz a insistência e o retorno do
singular no regular, diz o tecido que se rasga, a ruptura de equilíbrio e o
equilíbrio novo, o equilíbrio inédito que logo vai se romper. E o que ele nos
diz não se traduz, mas se interpreta, e se interpreta sem fim (DIDI-
HUBERMAN, 2013, p. 212-213).
Tal recorrência da interpretação acaba por denunciar o abismo que há entre o texto e a
imagem, o seu mútuo desajuste essencial, suas diferenças de nível. O trabalho do historiador,
que é efetivamente baseado em um trabalho de escrita, ou na escrita de um trabalho, vê-se
diante do sintoma ameaçado pelo inconcluso. O sintoma talvez seja, de alguma forma, o
visual puro, o visual irredutível ao texto. Mas fazer história das imagens requer desenvolver
métodos para lidar com um fracasso constante, tendo em vista que o texto jamais será capaz
de dar conta de tudo o que está implicado na experiência do olhar. Repita-se: há uma
irredutível diferença de nível entre a escrita e sua linearidade; entre a imagem e sua
espacialidade. Portanto, há sempre algo impossível de dizer sobre a eficácia da imagem; algo
que talvez só possa ser tocado pela tangente, pelos ensaios da escrita. De maneira que o
problema da escrita acerca da eficácia das imagens mostra-se autêntico problema
epistemólogico: o que somos capazes de entender e o quanto somos capazes de comunicar
daquilo que entendemos da imagem – comunicar o quanto e de que maneira uma imagem foi
eficaz para cada um de nós. A despeito disso, nos quadros da história da arte, Didi-Huberman
não deixa de observar o emprego de uma filosofia espontânea, em tom kantiano (um tom
apenas, um simulacro da filosofia crítica de Kant), que ―se baseia em palavras, somente
palavras, cujo uso particular consiste em tapar as brechas, negar as contradições, resolver sem
um instante de hesitação todas as aporias que o mundo das imagens propõe ao mundo do
saber‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 14).
154
Como tentativa de contornar o problema, Didi-Huberman tem adotado o gênero
ensaiopara dar forma à sua escrita. A liberdade formal do ensaio, diga-se, permite certa
criação de imagens por meio do texto sem perder de vista o rigor crítico exigido pela escrita
historiográfica. No meio caminho entre prosa literária e dissertação científica, o ensaio é a
forma de texto que melhor consegue aproximar o relato histórico da pesquisa do historiador
da arte com a imprecisão científica fundamental de seu objeto de estudo. Nas palavras de
Adorno (2003, p. 26), ―o ensaio desafia a noção de que o historicamente produzido deve ser
menosprezado como objeto da teoria‖. Mas, para isso, é preciso abrir mão da metodologia
tradicional de pesquisa, sacrificar as certezas epistemológicas da iconologia e, de certo modo,
abandonar a própria história da arte em sua constituição tradicional de disciplina acadêmica, e
procurar renovados referenciais teóricos. Razão porque Didi-Huberman recorre, muitas vezes,
à antropologia e à etnologia, alargando, diríamos inquietando, as fronteiras disciplinares.
Segundo ele, ―a antropologia (...) deslocou e desfamiliarizou – inquietou – a história da arte.
Não para dispersá-la numa interdisciplinaridade eclética e sem ponto de vista, mas para abri-
la a seus próprios ‗problemas fundamentais‗, que, em grande parte, continuavam no não
pensado da disciplina‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013b, p. 38-39).
A questão irresolvida da escrita se coloca ao lado da questão irresolvida do método de
pesquisa. Questão de saber com quais imagens o historiador deve trabalhar, por que, de que
forma, em que ordem. Pois o termo imagem abarca uma quantidade quase infinita de objetos.
Pensar sobre a eficácia da imagem é pensar, ao mesmo tempo, na eficácia de cada um desses
objetos para cada um dos sujeitos que com eles tomam contato, mas pensar também na
eficácia desse grupo imenso de objetos aos quais se pode dar o nome de imagem. A Didi-
Huberman importa dizer que os recortes feitos pela história da arte nessa coleção inesgotável
de objetos de conhecimento constitui, ele mesmo, motivo de reflexão histórica. Nesse sentido,
ele exemplifica: ―o ato de desenterrar um torso modifica a própria terra, o solo sedimentado –
não neutro, trazendo em si a história de sua própria sedimentação – onde jaziam todos os
vestígios‖. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 176). As imagens ocupam lugares, algumas
possuem acesso facilitado a museus, circulam por galerias de arte, ou são veiculadas
exaustivamente na mídia. Outras permanecem enclausuradas, impedidas, auráticas. Vivemos
um momento especial quanto ao estatuto da imagem na sociedade. Nosso autor bem o sabe,
tanto que, a um passo de propor a (re)montagem das imagens, ele sustenta:
Nunca, aparentemente, a imagem — e o arquivo que conforma desde o
momento em que se multiplica, por muito pouco que seja, e que se
155
desejaagrupá-la, entender sua multiplicidade — nunca a imagem se impôs
com tanta força em nosso universo estético, técnico, cotidiano, político,
histórico. Nunca mostrou tantas verdades tão cruas; nunca, sem dúvida, nos
mentiu tanto solicitando nossa credulidade; nunca proliferou tanto e nunca
sofreu tanta censura e destruição. Nunca, portanto, — esta impressão se deve
sem dúvida ao próprio caráter da situação atual, seu caráter ardente —, a
imagem sofreu tantos dilaceramentos, tantas reivindicações contraditórias e
tantas rejeições cruzadas, manipulações imorais e execrações moralizantes (DIDI-HUBERMAN, 2012d, p. 209).
Assim considerando, é de se esperar que as imagens tenham eficácias heterogêneas,
polimorfas, diversas. Na verdade, Didi-Huberman insiste, as imagens tomam posição.
Perguntemos: que posição o historiador deve tomar? A figura do historiador aqui preconizada
não é daquele que julga o valor das imagens. Um historiador não é um juiz, ainda que
observe, analise, reflita. Ele não classifica, não hierarquiza. Apenas coloca as imagens sobre a
mesa de trabalho e as separa ou aproxima, organiza, reorganiza, movimenta seus intervalos.
Donde a apologia em Didi-Huberman da montagem:
a montagem será precisamente uma das respostas fundamentais a esse
problema de construção da historicidade. Porque não está orientada
simplesmente, a montagem escapa às teleologias, torna visíveis as
sobrevivências,osanacronismos, os encontrosde temporalidades
contraditórias que afetam cada objeto, cada acontecimento, cada pessoa,
cada gesto. Então, o historiador renuncia a contar ―uma história‖ mas, ao
fazê-lo, consegue mostrar que a história não é senão todas as complexidades
do tempo, todos os estratos da arqueologia, todos os pontilhados do destino
(DIDI-HUBERMAN, 2012d, p. 212).
Em movimento de montagem, as imagens podem evidenciar o quanto são eficazes em
revelar verdades históricas. E mesmo em prever catástrofes históricas. Nas processualidades
da montagem, as imagens tendem a entrelaçar temporalidades distintas. Como fantasmas da
história, podem revirar os escombros do tempo e oferecer interpretações impossíveis para a
análise de imagens por famílias de estilo. Benjamin e Warburg, como se viu, são as principais
referências para Didi-Huberman de um efetivo trabalho com as imagens que não as reduza em
categorias hierárquicas, nem iniba o poder de irradiação que podem produzir. A montagem
explora a eficácia das imagens de forma mais abrangente, pois não se prende aos
impedimentos impostos pela cronologia. De fato, com seu método de trabalho, Warburg
esperava mostrar que
uma análise iconológica que não se deixa intimidar por respeito
exagerado às fronteiras, que considera a Antiguidade, a Idade Média e
os Tempos Modernos uma época interligada, que interroga os
produtos das artes, quer sejam liberais ou aplicadas, como
156
documentosexpressivos de igual dignidade, (...) que esse método,
empenhando-se cuidadosamente em esclarecer um ponto obscuro
singular, esclarece também os grandes momentos do desenvolvimento
geral em suas associações (WARBURG apud AGAMBEN, 2012b, p.
134)
Para poder colocar lado a lado imagens de temporalidades diversas e, mesmo assim,
conseguir produzir um discurso coerente, Didi-Huberman elevou a um grau de refinamento
estilístico aquilo que os historiadores da arte consideram seu maior pecado: o anacronismo.
Ao empregar a montagem como método, ele ―coloca em evidência os anacronismos, os
encontros de temporalidades contraditórias que afetam cada objeto, cada acontecimento,
condição sinequanon, já dizia Rancière, da escrita e do saber históricos‖ (FONTES FILHO,
2014, p. 193).
Invertem-se, com isso, os valores tão caros aos historiadores: a forma e o estilo como
categorias hierarquizantes; e o tempo como vínculo irrevogável da imagem. Para nosso autor,
a forma e o estilo não mais hierarquizam, pois a arte não evolui; diga-se, provocativamente: a
imagem do cinema é tão eficaz para nós quanto as pinturas rupestres eram para os humanos
do neolítico. Pois essa eficácia está na disjunção dos tempos, na confluência das tramas de
temporalidades, nas origens e nos desaparecimentos renovados a cada novo olhar. De algum
modo, Didi-Huberman parece tacitamente partícipe de uma recente reformulação da história
da arte para além do conceito (demasiado recente) de obra de arte . Leia-se o que, a respeito,
nos conta Huchet:
[...] a produção de imagens e de objetos ―estéticos‖ está presente em todas as
civilizações. Ninguém ousaria contestar o direito de os cenários de imagens
pintadas nos afrescos rupestres de Lascaux, de Altamira, da gruta Chauvet
ou do Vale do Peruaçu pertencerem à ―história‖ da arte. Reparamos, todavia,
que, por não datar do período da ―história‖, eles são estudados mais por
arqueólogos ou antropólogos do que por historiadores da arte. A
historiografia da arte é predominantemente uma história de imagens
―históricas‖. As imagens pré-históricas, cujo sentido histórico é quase
impossível de se estabelecer, perturbam o historiador que não pode aplicar a
elas os recursos de sua disciplina, tendo de optar por um ponto de vista que
leva em conta o próprio enigma da imagem, o que é considerado um risco
(HUCHET, 2014, p. 224).
Para nosso entendimento do real, o tempo é um dos elementos constitutivos e a
formaprimeira de experienciá-lo. Talvez essa verificação nos auxilie a elucidar porque a
temporalidade variada das imagens cause certo desconforto nos historiadores da arte: estes
associam, para cada objeto visual, um espaço de tempo delimitado, pois aceitam mal a ideia
157
de algo que possa ocupar tempos diferentes ocupando o mesmo espaço. Entretanto, diga-
se,sequer há concordância filosófica entre o tempo físico (tido por absoluto) e o
tempocosmológico (considerado relativo); não deveria, pois, causar estranheza que o tempo
dos eventos e dos objetos não seja o mesmo tempo das imagens. A imagem é uma eficaz
crítica do tempo. Ela desestabiliza toda noção rígida de temporalidade.
Na verdade, a imagem desestabiliza os discursos consensuais. Quanto mais os limites
interdisciplinares tornam-se permeáveis pela prática do historiador da arte, mais objetos
visuais assumem o estatuto de objetos de conhecimento. O método da montagem contribui
para que não só as imagens canônicas sejam percebidas de outras formas, mas também que
mais objetos, mais rostos, mais formas anônimas sejam vistos. Indague-se: a mesa de
montagem resgata para a história da arte e para as próprias imagens seu valor ético perdido e
reivindicado pela modernidade? Ao colocar nas mãos do historiador o poder de aproximar
imagens de diferentes épocas, a montagem permite-lhe também aproximar diferentes etnias e
classes sociais – um contato que parece interditado aos próprios indivíduos? Por meio da
montagem, o historiador pode, pois, transformar barreiras sociais em pontes. No texto de
apresentação de Didi-Huberman da exposição, Atlas?Cómollevarelmundoacuestas?, da qual
foi curador, ele assevera:
Aby Warburg transformou o modo de compreender as imagens. Ele é para a
história da arte o equivalente ao que Freud, seu contemporâneo, foi para a
psicologia: incorporou questões radicalmente novas para a compreensão da
arte, e em particular a de memória inconsciente. Mnemosyne foi a sua obra
mestra e o seu testamento metodológico: reúne todos os objetos da sua
investigação num dispositivo de ―painéis móveis‖ constantemente montados,
desmontados, remontados. Aparece também como uma reação de duas
experiências profissionais: a da loucura e a da guerra. Pode ver-se então
como uma história documental do imaginário ocidental (herdeiro nestes
termos de ―Los Desastres de la Guerra‖ e de ―Los Caprichos‖ de Goya) e
como uma ferramenta para entender a violência política nas imagens da
história (comparável nisto ao compêndio de ―Los Desastres de la Guerra‖)
(DIDI-HUBERMAN, 2011c, p. 2-3).
Nas pranchas de Mnemosyne, o distante e o excluído se aproximam; um
mundopossível se abre para um diálogo sobre as diferenças. Mas seu poder é, justamente, o de
denunciar o que não existe, revelar o impossível: o sonho. A musa inspiradora do Atlas,
Mnemosyne, como nos conta Agamben , apoiado nas legendas da ninfa de Paracelso, não vive
em paz. Contraditória, ela permite imaginar, sonhar, despertar, pois, sendo imagem, ela é
visada, olhada, desejada; contudo, sendo imagem, ela deseja, ainda, tornar-se viva:
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Condenadas assim a uma incessante busca amorosa do homem, as ninfas têm
uma existência paralela na terra. Criadas não à imagem de Deus, mas à
imagem do homem, elas constituem uma espécie de sombra deste, ou de
imago (imagem) e, como tais, perpetuamente acompanham e desejam – e
são, por sua vez, por eles desejadas – aquilo do que são imagem. Somente no
encontro com o homem, as imagens inanimadas adquirem alma, tornam-se
verdadeiramente vivas (...).
A história da ambígua relação entre homens e ninfas é a história da difícil
relação entre o homem e suas imagens (AGAMBEN, 2012, p. 53-54).
Esse jogo do amor entre ninfa e homem é o jogo do amor entre pintor e tela, e
tantosoutros jogos amorosos que determinam, de certo modo, o pano de fundo da eficácia da
relação entre o ser humano e suas imagens. Assim, entendemos, com Didi-Huberman, ―que
um quadro durma, desperte, sofra, reaja, se negue, se transforme, ou se ruborize como o rosto de uma
amante quando se sente observado pelo amado; isto é tudo que se pode esperar da eficácia de uma
imagem‖ (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 37).
Imagens ajudam a sobreviver, a resistir; mas também a persistir na dor, a manter o
sofrimento. Imagens exibem o que queremos esquecer ou ajudam a esquecer a realidade que
não queremos ver. Seus efeitos dependeriam do uso, da intenção daquele que as usa? Convém
retomar: ―as imagens não devem sua eficácia apenas a transmissão de saberes (...) [mas] atua
constantemente nos entrelaçamentos ou mesmo no imbróglio de saberes transmitidos e
deslocados, de não-saberes produzidos e transformados‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 23).
A imagem livra e acusa: é contraste, dialética sem síntese; em constante suspensão, é eficaz
em si e no seu contrário – a favor ou contra, aliada ou inimiga. Ao mesmo tempo, em vários
tempos, exige-nos que convivemos com a dúvida.
Talvez seja pertinente que nossa última palavra seja uma resposta dada por Didi-
Huberman a um jovem por ocasião de uma conferência ministrada no teatro de Montreuil, nos
arredores de Paris. Ele falava sobre as emoções, formas de expor, de sentir, de transmitir.
Fatalmente, uma das formas de transmitir eficazmente as emoções é por meio de imagens;
outro modo, pelos gestos. ―Por que passar pelas imagens e pelo aspecto dos corpos?‖, ele se
questiona. E complementa: ―porque, no fundo, não tenho certeza de estar buscando a essência
das coisas. Eu estou buscando sua aparição, o que é muito diferente‖ (DIDI-HUBERMAN,
2015, p. 61). Após explicar porque não concorda com a hierarquia filosófica entre aparência e
essência, nosso autor continua sua reflexão, em agradável linguagem juvenil, a nos permitir
vislumbrar, por meio de uma doce metáfora, que todo o esplendor da eficácia das imagens
está, enfim, menos em sua fixidez, permanência e memorização do que em sua fragilidade,
em seu caráter furtivo, desviante:
159
o filósofo espera que Sócrates morra para somente então dizer qual é a
verdade do ―é‖ de Sócrates. Muitos filósofos têm essa atitude, inclusive
filósofos contemporâneos. Eles começam constando que alguma coisa está
morta para então dizer: ―eis o que essa coisa é‖. É fácil esperar que uma
coisa esteja morta para dizer o que é. Isso se chama metafísica. Não é o meu
negócio, eu prefiro que Sócrates continue vivo, que a borboleta continue
voando, mesmo que eu não possa pregá-la em um pedaço de cortiça para
dizer que a borboleta ―é‖ – decididamente – azul. Prefiro não ver
completamente a borboleta, prefiro que ela continue viva: essa é a minha
atitude quanto ao saber. Eu a vejo aparecer e tento pôr meu olhar em
palavras, em frases. Mas esse é um olhar tão frágil e furtivo quanto são
minhas frases; se elas forem impressas, elas durarão, para o bem ou para o
mal. Seja como for, é inevitável que a borboleta desapareça, já que é livre
para ir aonde bem quiser, e não precisa de mim para viver sua liberdade. Ao
menos eu terei apanhado em pleno vôo, sem guardar apenas para mim, um
pouco de sua beleza (DIDI-HUBERMAN, 2016, p. 62).
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