universidade federal de uberlÂndia instituto de artes ... · como requisito para obtenção do...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLNDIA
INSTITUTO DE ARTES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARTES
JOS RAPHAEL BRITO DOS SANTOS
DESMONTAGEM CNICA:
investigao das poticas do ator em teatro de grupo
UBERLNDIA
2015
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JOS RAPHAEL BRITO DOS SANTOS
DESMONTAGEM CNICA:
investigao das poticas do ator em teatro de grupo
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Artes/Mestrado do Instituto de
Artes da Universidade Federal de Uberlndia,
como requisito para obteno do Ttulo de
Mestre em Artes.
Linha de Pesquisa: Prticas e Processos em
Artes.
rea de Concentrao: Teatro.
Orientador: Narciso Larangeira Telles da
Silva.
UBERLNDIA
2015
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FOLHA DE APROVAO
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Dedico,
aos meus pais, Ecilene e Severino.
aos meus avs, Nazira e Antnio.
aos meus irmos, Thayna e Joo.
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AGRADECIMENTOS
Agradeo Deus, meu pai e amigo onipresente, existente alm da qualquer religio, dogma
ou ordem estabelecida pelo homem.
Agradeo aos meus pais, Ecilene Castro Brito dos Santos e Severino Rodrigues dos Santos,
pelo apoio incondicional, corao cheio de amor, ligaes dirias e torcida incansvel.
Agradeo aos meus avs, Nazira Almeida Castro Brito e Antnio Vieira Brito, pela fora,
amor, exemplo de experincia de vida, corao gigantesco e pelas ligaes telefnicas cheias
de nimo e estmulo.
Agradeo aos meus irmos Thayna Caroline Brito dos Santos e Joo Paulo Brito dos Santos,
pela preocupao, torcida, carinho e amor constante apesar da distncia.
Agradeo ao meu amigo Cleiton Barbosa, pela preocupao, grande apoio, cuidado e,
principalmente, por ter me recebido em sua casa nos primeiros dias na cidade de Uberlndia,
estado de Minas Gerais. Agradeo tambm pelo carinho de toda sua famlia e por me
apresentarem a excelente culinria mineira.
Agradeo ao meu grande amigo Rafael Lorran, por ter sido um esteio de extraordinria
importncia nesta jornada acadmica e por compartilhar medos, crises, frustraes,
obstculos, guerras, emoes, sorrisos, trabalhos, indagaes, perdas, angstias e provaes.
Para alm de um amigo de turma, um grande presente do mestrado. Muito obrigado por tudo
amigo.
Agradeo ao meu amigo Ernane Fernandez, pela preocupao, conversas filosficas, torcida,
amizade e grande prontido quando a palavra ajudar.
Agradeo Valria Gianechini, pela amizade, preocupao, dilogos provocadores,
companhias nas aulas de francs e pelo emprstimo de livros importantssimos para a
realizao dessa pesquisa.
Agradeo Jarbas Siqueira, pelas conversas, amizade, provocaes e inquietaes sobre esta
pesquisa.
Agradeo Barbara Leite, recm amiga, pela grande preocupao e torcida na finalizao
deste trabalho.
Agradeo todos os meus colegas de turma do Programa de Ps-Graduao em Artes, em
especial da rea de artes cnicas: Alessandro Carvalho, Ana Maria, Angie Mendona, Breno
Jadvas, Emiliano Freitas, Marly Magalhes, Marcia Sousa, Rafael Leite e Stephanie Paranhos,
pela partilha de idias e provocaes muito bem-vindas dentro das disciplinas do Mestrado e
nos dilogos informais.
Agradeo aos meus amigos paulistanos: Gabriel Mdolo, Eliane Goliver, Thyago Emerich e
Bruno Simes, pelo apoio, torcida, fora, amizade fiel e verdadeira e milhares de mensagens
trocadas.
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Agradeo Juliana Marise dos Santos, pela amizade, torcida e apoio na finalizao deste
trabalho.
Agradeo Alynne Sipaba, pela preocupao, torcida, conversas filosficas e ideolgicas, e
principalmente pela amizade de todas as horas.
Agradeo ao meu orientador e amigo, Prof. Dr. Narciso Telles, pela grande preocupao,
apoio, cuidado e orientao provocadora. Obrigado pelas propostas de dilogos na praia, no
bar, no restaurante e nos espaos mais improvveis para orientao acadmica.
Agradeo aos professores Mara Lucia Leal e Mario Ferreira Piragibe pelas importantssimas
contribuies nas disciplinas do Programa de Ps-Graduao em Artes e principalmente pelas
ricas provocaes realizadas na qualificao deste trabalho.
Agradeo professora Ana Cristina Colla por ter aceitado compor a banca de defesa final
desta pesquisa de mestrado.
Agradeo ao Grupo de Dana e Teatro Acaz por trs grandes presentes: conhecer pessoas
incrveis no processo de criao do espetculo O oco no novo de novo em um perodo de
seis meses na cidade Uberlndia-MG; por ter me proporcionado uma experincia nica com a
Dana; e por no deixar meu corpo morrer sozinho entre os livros nos perodos tensos dessa
jornada acadmica.
Agradeo ao Ncleo de Pesquisas Teatrais Rascunho: Abimaelson Santos, pela torcida e
amizade infindvel; Alana Arajo, pela grande preocupao, fora, estmulo e amizade
verdadeira; Aline Nascimento, pelos conselhos, amizade e por dividir noites de debates para a
contribuio nesta pesquisa; Brenda Oliveira, pelo carinho e sorriso cativante; Fernanda
Areias, pelas horas de ligaes, amizade, conselhos, compartilhamentos estticos e estmulo
incansvel; Gilberto Martins, pelos cafs, almoos e jantares teatrais, provocaes
conceituais, companheirismo, torcida e, principalmente, preocupao; Pryscilla Carvalho pelo
apoio, torcida e amizade. Agradeo por colaborarem na minha formao enquanto ator e
principalmente pelas experincias e vivncias compartilhadas de grande importncia para a
existncia dessa pesquisa. Agradeo em especial a todos vocs por terem me ajudado no envio
de tantos materiais imagticos e sonoros perdidos na ltima etapa desta pesquisa. Isso sim
trabalho de grupo.
Agradeo atriz Tnia Farias, pela prontido, disponibilidade, generosidade e por ter aceitado
abertamente a ser entrevistada para a pesquisa desta dissertao. Agradeo pelas madrugadas
de conversas por horas e horas. Grande atriz, grande pessoa, grande mestra.
Agradeo ao meu grande amigo e artista visual Dinho Arajo, pela amizade, fora,
companheirismo e por aceitar fazer a arte grfica deste trabalho e de tantos outros de forma
to espetacular.
Agradeo aos meus novos amigos Andr Buriche e Livia Estagne pela amizade, torcida,
estmulo e por me ajudarem em complicaes tcnicas nas ltimas horas antes da impresso
deste trabalho.
Agradeo CAPES pela bolsa concedida.
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Considero a vida e a criao como uma
viagem no tempo fsico e interior na qual a
esperana dada sem cessar por meio de
encontros inesperados, provaes, confuses,
retornos, buscas da estrada certa. A evoluo
uma adaptao constante do artista sua
poca, at o final de suas foras intelectuais.
Ai de mim
Tadeusz Kantor
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RESUMO
SANTOS, Jos Raphael Brito dos. Desmontagem cnica: investigao das poticas do ator
em teatro de grupo. 2015. Dissertao (Mestrado) Programa de Ps-Graduao em Artes
PPGARTES (subrea Teatro). Universidade Federal de Uberlndia UFU.
Esta pesquisa uma reflexo da desmontagem como modo de investigao dos processos de
criao cnica, com nfase nas poticas do ator no contexto de teatro de grupo. As poticas do
ator, no caso deste trabalho, compreendem suas experincias na criao coletiva e/ou processo
colaborativo redes cooperativas em que a construo do espetculo estabelecida em
conjunto. A desmontagem uma prtica que iniciou com grupos de teatro latino-americanos
que se utilizam deste procedimento para apresentar testemunhos, tessituras, traos e trajetos
de um processo de criao. A pesquisa seguiu vertente qualitativa com fundamentaes
tericas, entrevista e em algumas partes o autor utiliza a narrao em primeira pessoa para a
apresentao de suas experincias pessoais. A anlise terica foi fundamentada em pesquisas
sobre Teatro de grupo, Ator em rede cooperativa de criao e Desmontagem, a partir dos
estudos de Rosyane Trotta (2008), Andr Carreira (2007) e Ileana Diguez (2009)
respectivamente, para citar alguns. A dissertao est dividida em trs captulos: no primeiro
captulo contextualiza-se as prticas da criao do ator em teatro de grupo pontuando questes
conceituais e histricas, finalizando com a provocao: como pesquisar os processos de
criao? No segundo captulo apresenta-se a desmontagem cnica como um procedimento de
investigao das poticas do ator e convida-se a atriz de teatro de grupo Tnia Farias para nos
relatar sua experincia sobre o exerccio de desmontar os seus espetculos, auxiliando no
levantamento de questes sobre a temtica. E no terceiro captulo finaliza-se com o exerccio
da desmontagem escrita em que o autor tece o seu trajeto da criao com base em suas
experincias no Ncleo de Pesquisas Teatrais Rascunho, compartilhando os processos de
criao dos seguintes espetculos: Lullaby; Esperando Godot; Primeiro Amor e Siameses.
Palavras-chave: Desmontagem cnica; Teatro de grupo; Poticas do ator.
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ABSTRACT
SANTOS, Jos Raphael Brito dos. Scenic disassembly: investigation of the actors poetics in
the group theatre. 2015. (Master) Dissertation Postgraduate Program in Arts PPGARTES
(subarea Theater). Federal University of Uberlndia UFU.
This work is a though concerning disassembly as a way of research about the scenic creation
processes, with emphases in the actors poetics in the group theatre context. The actors
poetics, in the case of this work, comprehend his experiences in the collective creation and/or
the collaboration process cooperative nets in which the performance construction is
established in group. Disassembly is a practice that began with Latin American theatre groups
that would use this procedure in order to present testimonies, tessituras, features and
trajectories of a creation process. This research follow the course of the quality aspect with
theoretical foundations, interviews and, in some parts, the author uses the first-person
narrative to expose his personal experiences. The theoretical analysis was based upon
investigations about Theatre in group, Actor in Cooperative Net of Creation and Disassembly,
from the previous studies of RosyaneTrotta (2008), Andr Carreira (2007) and Ileana Diguez
(2009), to name some of them. This document is divided in three chapters: the first one
contains a contextualization of the actor creation practices in a group theatre, lightening out
conceptual and historical matters. Finally an incitation is presented: How to research the
creation processes? The second chapter encloses the scenic disassembly as an investigation
procedure about the actors poetics, and invites the group theatre actress TniaFarias to
narrate her experience in the exercise of unset her performances, contribution that encourage
the development of proposals about the topic. The third chapter regards the exercise of written
disassembly, in which the author spins his creation path based on his own experiences at the
Ncleo de Pesquisas Teatrais Rascunho, (Core of Theatrical Research Rascunho) and shares
his creation processes of the following shows: Lullaby; Esperando Godot (Waiting Godot);
Primeiro Amor (First Love) and Siameses (Siamese).
Keywords: Scenic disassembly; Group theater; Actors poetics.
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LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 Performance O Homem-rvore ................................................................. 24
FIGURA 2 Proposta de ilustrao a partir dos estudos de Marco De Marinis (2005) .... 59
FIGURA 3 Espetculo Vivas - Performance sobre a ausncia .................................. 77
FIGURA 4 Espetculo A Misso - Lembrana de uma revoluo / Personagem
Sasportas (ano de 2006) ......................................................................................................
77
FIGURA 5 Espetculo Aos que viro depois de ns - Kassandra in process /
Personagem Kassandra (ano de 2002) ................................................................................
78
FIGURA 6 Espetculo Hamlet Mquina / Personagem Oflia (ano de 1999) ............ 78
FIGURA 7 Desmontagem Evocando os mortos: poticas da experincia (Atriz
Tnia Farias) .......................................................................................................................
79
FIGURA 8 Desmontagem Evocando os mortos: poticas da experincia (Atriz
Tnia Farias) .......................................................................................................................
81
FIGURA 9 Desmontagem Evocando os mortos: poticas da experincia (Atriz
Tnia Farias) .......................................................................................................................
83
FIGURA 10 Desmontagem Evocando os mortos: poticas da experincia (Atriz
Tnia Farias) .......................................................................................................................
85
FIGURA 11 Desmontagem Evocando os mortos: poticas da experincia (Atriz
Tnia Farias) .......................................................................................................................
87
FIGURA 12 Desmontagem Evocando os mortos: poticas da experincia (Atriz
Tnia Farias) .......................................................................................................................
89
FIGURA 13 Desmontagem Evocando os mortos: poticas da experincia (Atriz
Tnia Farias) .......................................................................................................................
90
FIGURA 14 Desmontagem Evocando os mortos: poticas da experincia (Atriz
Tnia Farias) .......................................................................................................................
92
FIGURA 15 Desmontagem Evocando os mortos: poticas da experincia (Atriz
Tnia Farias) .......................................................................................................................
93
FIGURA 16 Desmontagem Cnica Experincias do sensvel: travessias artsticas .... 97
FIGURA 17 Desmontagem Cnica Experincias do sensvel: travessias artsticas .... 101
FIGURA 18 Desmontagem Cnica Experincias do sensvel: travessias artsticas .... 101
FIGURA 19 Poema Quero te deixar de Felipe Campos do Vale ................................ 111
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FIGURA 20 Presentes de Felipe para Aline .................................................................... 113
FIGURA 21 Poema Lullaby de Aline Barbosa Nascimento ....................................... 115
FIGURA 22 Catlogo da exposio Cuide de Voc .................................................... 117
FIGURA 23 Coleo de Pedras ....................................................................................... 119
FIGURA 24 Espetculo Lullaby por quem choram as pedras ..................................... 120
FIGURA 25 Espetculo Lullaby por quem choram as pedras ..................................... 121
FIGURA 26 Espetculo Lullaby por quem choram as pedras ..................................... 121
FIGURA 27 Espetculo Lullaby por quem choram as pedras ..................................... 122
FIGURA 28 Pedra Jaspe esquerda e Pedra gata direita .......................................... 123
FIGURA 29 Espetculo Lullaby por quem choram as pedras ..................................... 124
FIGURA 30 Espetculo Lullaby por quem choram as pedras ..................................... 124
FIGURA 31 Espetculo Lullaby por quem choram as pedras ..................................... 125
FIGURA 32 Espetculo Lullaby por quem choram as pedras ..................................... 125
FIGURA 33 Ensaio com Iluminao e Caracterizao ................................................... 130
FIGURA 34 Ensaio com Iluminao e Caracterizao ................................................... 131
FIGURA 35 Ensaio com Iluminao e Caracterizao ................................................... 132
FIGURA 36 Espetculo Esperando Godot .................................................................. 134
FIGURA 37 Espetculo Esperando Godot .................................................................. 137
FIGURA 38 Espetculo Esperando Godot (Irla como Pozzo) .................................... 138
FIGURA 39 Espetculo Esperando Godot (Aline como Lucky) ................................. 139
FIGURA 40 Espetculo Esperando Godot (Abimaelson como Pozzo) ....................... 139
FIGURA 41 Espetculo Esperando Godot (Almir como Lucky) ................................ 140
FIGURA 42 Espetculo Esperando Godot (Esquerda: Gilberto como Vladimir
Direita: Raphael como Estragon) ......................................................................................
140
FIGURA 43 Espetculo Esperando Godot (Esquerda: Raphael como Estragon
Direita: Gilberto como Vladimir) .......................................................................................
141
FIGURA 44 Espetculo Esperando Godot (Esquerda: Gilberto como Vladimir
Direita: Raphael como Estragon) ......................................................................................
141
FIGURA 45 Espetculo Esperando Godot (Jurandir como Menino) .......................... 142
FIGURA 46 Laboratrio de Corpo e Experimentao de Luz ........................................ 144
FIGURA 47 Propostas para pesquisa de figurino ........................................................... 146
FIGURA 48 Laboratrio de Corpo Pano Vermelho ..................................................... 147
FIGURA 49 Laboratrio de Corpo Chapu ................................................................. 148
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FIGURA 50 Espetculo Primeiro Amor ...................................................................... 150
FIGURA 51 Espetculo Primeiro Amor ...................................................................... 152
FIGURA 52 Espetculo Primeiro Amor ...................................................................... 153
FIGURA 53 Espetculo Primeiro Amor ...................................................................... 153
FIGURA 54 Espetculo Primeiro Amor ...................................................................... 154
FIGURA 55 Espetculo Primeiro Amor ...................................................................... 155
FIGURA 56 Espetculo Primeiro Amor ...................................................................... 155
FIGURA 57 Perfil do Gmeo da Direita na rede social .............................................. 158
FIGURA 58 Perfil do Gmeo da Esquerda na rede social ........................................... 159
FIGURA 59 Perfil do Monga Monckey na rede social ............................................... 159
FIGURA 60 Perfil do Mujer Barbada na rede social ................................................... 160
FIGURA 61 Breve dilogo do Gmeo da Direita com os usurios ................................ 161
FIGURA 62 Breve dilogo do Gmeo da Esquerda com os usurios ............................. 161
FIGURA 63 Breve dilogo da Monga Monckey com os usurios .................................. 162
FIGURA 64 Breve dilogo da Mujer Barbada com os usurios ..................................... 162
FIGURA 65 Breve dilogo do Gmeo da Direita com Gmeo da Esquerda .................. 162
FIGURA 66 Gmeos Chang e Eng ................................................................................. 164
FIGURA 67 Gmeos Chang e Eng com Figurino para Apresentao ............................ 165
FIGURA 68 Foto de Famlia, Adelaide e Chang esquerda, Sarah e Eng direita e
seus filhos ...........................................................................................................................
166
FIGURA 69 Cena do filme The Elephant Man (O Homem Elefante) interpretado
pelo ator John Vincent Hurt ...............................................................................................
169
FIGURA 70 Obra Os Amantes II, 1928, Rene Magritte ............................................. 170
FIGURA 71 Obra A giganta, 1929, Rene Magritte ..................................................... 170
FIGURA 72 Ensaio e experimentao de corpo ............................................................. 172
FIGURA 73 Ensaio e experimentao de corpo ............................................................. 173
FIGURA 74 Ensaio e experimentao de corpo ............................................................. 174
FIGURA 75 Ensaio e experimentao de corpo ............................................................. 175
FIGURA 76 Espetculo Siameses ............................................................................... 175
FIGURA 77 Espetculo Siameses ............................................................................... 176
FIGURA 78 Espetculo Siameses ............................................................................... 177
FIGURA 79 Espetculo Siameses ............................................................................... 177
FIGURA 80 Espetculo Siameses ............................................................................... 179
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FIGURA 81 Espetculo Siameses ............................................................................... 179
FIGURA 82 Espetculo Siameses ............................................................................... 180
FIGURA 83 Espetculo Siameses ............................................................................... 180
FIGURA 84 Rabiscos e anotaes do processo de escrita .............................................. 183
FIGURA 85 Desenho Angelus Novus do pintor Paul Klee ......................................... 189
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LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 Criao coletiva e Processo colaborativo .............................................. 42
QUADRO 2 Enunciados de Ileana Diguez em palestra sobre desmontagem .......... 70
QUADRO 3 Perfil artstico do Ncleo de Pesquisas Teatrais Rascunho ................... 107
QUADRO 4 Cronograma de atividades do espetculo Esperando Godot .............. 129
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LISTA DE ANEXOS
Lullaby.............................................................................................................................. 197
Esperando Godot.............................................................................................................. 198
Primeiro Amor.................................................................................................................. 199
Siameses ............................................................................................................................. 200
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SUMRIO
INTRODUO ........................................................................................................................ 18
CAPTULO 1 O ATOR EM TEATRO DE GRUPO ............................................................ 29
1.1. Teatro de grupo: sobre histricos e conceitos ................................................................ 29
1.2. Criao coletiva e Processo colaborativo: conexes e paradoxos ................................. 37
1.3. O ator-expandido em rede cooperativa .......................................................................... 46
1.4. Como investigar os processos de criao? ..................................................................... 55
CAPTULO 2 DESMONTAGEM CNICA ........................................................................ 65
2.1. Histrico ......................................................................................................................... 65
2.2. Desmontar: tecer e destecer ........................................................................................... 67
2.3. Breves aproximaes conceituais .................................................................................. 71
2.4. Sobre a voz do criador: dialogando com Tnia Farias ................................................... 75
CAPTULO 3 RASCUNHO DAS POTICAS DO ATOR .................................................. 95
3.1. Contextualizando ........................................................................................................... 95
3.2. Ator em desmontagem ................................................................................................... 96
3.3. Confessionrio ............................................................................................................. 102
3.4. Espetculo Lullaby ................................................................................................... 109
3.5. Espetculo Esperando Godot.................................................................................... 126
3.6. Espetculo Primeiro Amor ....................................................................................... 142
3.7. Espetculo Siameses................................................................................................. 156
CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................. 181
FONTES ................................................................................................................................. 190
REFERNCIAS ..................................................................................................................... 191
ANEXOS ................................................................................................................................ 197
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18
INTRODUO
ou primeiros vestgios da carne em verbo
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Escrevi como algum que se perde, se cansa,
reconquista o ritmo e retoma seu inexplicvel trajeto.
Sujeito em fluxo, cavando espaos, que sejam l
minsculos, de produo de um presente cotidiano
potente, leve e indisciplinado (Rosane Preciosa).
Porque no comear com breves confisses?
O trajeto da escrita deste trabalho foi doloroso e ao mesmo tempo prazeroso. Senti-me
um verdadeiro sujeito em processo de transformao e, conseqentemente, a escrita no foi
diferente. Para isso inicio apresentando duas principais razes.
A primeira razo refere-se ao fluxo de idias que alterou meu campo
corpreo/sinestsico e que, conseqentemente, influenciou na trajetria de escrita desta
pesquisa. Na medida em que eu estava decidido em pesquisar os processos de criao para a
formao do artista-docente, outros desejos estavam escondidos e, para isso, foi necessrio me
reconstruir, me rasgar por inteiro, me permitir ao desespero, e finalmente encontrar uma razo
de pesquisa que preferencialmente me causasse maior prazer me tirasse da zona de conforto
e me gerasse confuso. Eu gosto de experimentar riscos e novas estratgias e, por conta disso,
corri alguns perigos. Mas resolvi arriscar. Estou aqui cheio de marcas para provar isso.
Ao sair do conforto do seio da minha famlia e da minha terra preciosidades to
especiais para mim em uma distncia de aproximadamente dois mil e quinhentos
quilmetros eu escolhi me doar ao acaso, aos imprevistos e aos impasses dessa jornada longe
de casa. Por isso, resolvi ser fielmente sincero comigo mesmo, principalmente em se tratando
de pesquisar o que realmente me deixava confuso e me desse o maior prazer possvel.
O primeiro desejo desta pesquisa veio desde o meu trabalho monogrfico, quando
investiguei a validade da prtica artstica nos projetos polticos pedaggicos de alguns cursos
de Teatro Licenciatura do Brasil juntamente da anlise de dois processos de criao de
espetculos de grupos de teatro diferentes formados por estudantes da graduao em Teatro
Licenciatura (Universidade Federal do Maranho e Universidade de So Paulo). Com esse
levantamento de material, eu tive como resultado de monografia a discusso sobre o conceito
artista-docente.
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19
Nesta pesquisa de mestrado, meu objetivo inicial era continuar investigando a temtica
discutida na monografia tendo como objeto de investigao a anlise de quatro espetculos de
grupos de teatro em diferentes localidades do pas. Desta forma, o objetivo era centrar minha
ateno no processo de criao como eficaz experincia para a formao do professor. S que
algo me causava tenso. Eu estava com meu olhar muito mais voltado para a questo
artstica do que docente. Observar o movimento da criao dos espetculos era to rico
que os pequenos rascunhos e os traos que antes eu no observava, tornavam-se cada vez
mais os vestgios de ouro na minha pesquisa. No primeiro semestre de 2013 eu comecei ento
a fazer selees dos principais objetivos desta pesquisa de mestrado.
Ao participar da disciplina Tpicos Especiais em Ensino e Aprendizagem em Artes:
Pedagogia(s) do Teatro Prticas Contemporneas, ministrada pela Profa. Dra. Mara Lucia
Leal, entrei em contato com a Desmontagem como procedimento artstico-pedaggico e
encontrei nas vsceras poticas do meu corpo uma provocao norteadora. E ao realizar o
exerccio de desmontar minhas experincias artsticas desde o teatro na escola ao curso de
Teatro na faculdade, percebi o quo era importante falar das minhas vivncias em grupo
aliado ao meu processo de criao enquanto ator1. Foi ento que eu percebi que eu ainda
carregava interrogaes pessoais sobre meu prprio fazer e o quanto esse procedimento da
desmontagem possibilitava na investigao dessas poticas que estavam guardadas como
fantasmas na memria.
Essa reflexo no aconteceu de forma rpida e repentina, pelo contrrio, foi cansativa,
rdua e trabalhosa. Esses confrontos nortearam as decises da pesquisa e com o tempo percebi
que cada escolha era um desejo gritante de ser extremamente honesto comigo mesmo. E que
maravilha ter tido contato com esse procedimento to cheio de questes e dvidas
provocantes. Grande responsvel pelos rumores mais ntimos da minha pesquisa.
Eu estava me despindo. Eu estava me desnudando.
Eu estava me reconstruindo. Eu estava me desmontando.
A segunda razo refere-se a um acidente domstico corriqueiro em trabalhos de
concluso de curso: a perda quase que total de todos os meus arquivos na etapa final para
concluso desta dissertao. Eu nunca imaginei que isso poderia acontecer. Mas como diz o
ditado, tudo tem sua primeira vez. Eu no sei se vou viver o suficiente para experimentar
1 No terceiro captulo desta pesquisa, na desmontagem escrita, h um relato mais detalhado dessas experincias.
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20
todas as primeiras vezes que o acaso ou o destino da vida nos reserva. impossvel que isso
acontea. Ser? No sei. Mas a experincia de perder pela primeira vez quase todos os meus
arquivos no podia ter sido agora. Eu senti como se tivesse perdido todas as minhas
lembranas.
Silncio, pausa para uma respirao profunda
Eu tive que aceitar que toda aquela memria no era minha. Esse fato me fez refletir
sobre a qualidade e as relaes com meu momento presente (ARAJO, 2014, p. 125). Corri.
Chorei. Desesperei. Gritei. Respirei. E com a ajuda de profissionais de vrias assistncias
tcnicas de informtica, tentei de toda forma imaginvel resgatar alguns documentos, mas no
foi possvel salvar nada que estava no computador, meu HD foi totalmente apagado. Salva-
guarda meu trabalho de qualificao e outros documentos especficos guardados em HD
eletrnico. Salve, salve tecnologia. Obrigado mundo contemporneo. Sem falar tambm que
quase todos os meus arquivos perdidos, como fotos, vdeos, textos e depoimentos, eram
resultado de processos de criao em grupo. E desta forma a mobilizao dos meus
companheiros de trabalho foi extremamente importante no levantamento do material. Muito
obrigado ao Ncleo de Pesquisas Teatrais Rascunho2.
Mas acredito que nada acontece por acaso. Senti que fiquei mais velho uns cinqenta
anos e toda essa confuso me transportou para vrios questionamentos. Algo decerto
perturbador, mas liberador tambm, porque da surgem formas imprevistas, que foram o
sujeito e linguagem a se desacomodar, e inventar sentidos aventureiros (PRECIOSA, 2010,
p.16).
Tudo isso me tirou ainda mais da minha zona de conforto literalmente e na coleta e
seleo dos materiais bibliogrficos, imagticos, sonoros, entrevistas, repetio de leituras,
anotaes, rascunhos, grficos, entre outras coisas mais, o desejo da pesquisa se confirmou
ainda mais na pulsao do meu corpo. Nada de paixo avassaladora, nada de romantismos.
como se cada re-coleta e cada re-leitura do material fosse ganhando um novo sentido. No
como um esclarecimento da pesquisa, nada disso, pelo contrrio. Mas como uma reflexo
ainda mais complexa da principal causa sobre o ato de desmontar.
2 No terceiro captulo desta pesquisa, na desmontagem escrita, apresenta-se os membros e as metodologias de
trabalho de alguns espetculos deste ncleo.
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21
Finalmente consegui e a base de muita insistncia eu finalizei este trabalho. S peo
que no sinta pena de mim. Pois como diz o ditado h mal que vm para o bem. Tambm
no quero distinguir o bem do mal, longe disso. Mas considerando as devidas contribuies
que todos esses prejuzos me causaram eu prefiro no baixar a cabea, mas olhar para o
horizonte. Existe mais, muito mais. Nada estar por encerrado.
Eu confesso que no fcil dar um testemunho to pessoal e comear um trabalho
acadmico dessa forma. Mas como eu j disse antes, eu decidi ser honesto com todo o meu
trabalho. E nada mais verdadeiro que iniciar as primeiras linhas dando um testemunho de uma
experincia pessoal, ou melhor, me desmontando.
A desmontagem tema desta pesquisa uma prtica que se iniciou com grupos de
teatro latino-americanos que se utilizam deste procedimento para apresentar testemunhos,
confisses, escolhas, intimidades, tessituras, traos e trajetos de um processo de criao. Este
trabalho uma reflexo sobre a desmontagem como modo de investigao dos processos de
criao cnica, com nfase nas poticas do ator no contexto de teatro de grupo.
Porque o desejo em pesquisar os processos de criao cnica? Eu no sei dizer causas
concretas e quando esse desejo comeou exatamente, mas desde a graduao isso sempre me
chamou muita ateno. Lgico que isso foi construdo aos poucos e obviamente as influncias
que a vida nos oferece so responsveis por nos transformar. por essa transformao
geradora de tantas questes que eu decidi pesquisar isso. E para apresentar um exemplo
dessas influncias, quero relatar minha primeira experincia artstica na faculdade de Teatro
como um possvel lampejo que me despertou o interesse nos processos criativos.
Relato de uma experincia epifnica
Eu era muito jovem, tinha dezoito anos j se passaram oito e tinha acabado de sair
do ensino mdio bsico. Minhas experincias teatrais na escola tinham sido muito tmidas e as
referncias para a construo de um espetculo eram as seguintes: decorar o texto, assistir
novelas e filmes, reproduzir a realidade de forma verossmil e apresentar as cenas com a ajuda
de uma pessoa escondida que repetia o texto quando a gente esquecia3. Tempos depois, na
faculdade, eu soube que isso j existia na Histria do Teatro e chamava-se de ponto.
Quando eu entrei na Universidade Federal do Maranho conheci um professor em que os
nimos em produzir espetculos com os alunos ingressos no curso de Teatro saltavam-lhe os
3 No terceiro captulo desta pesquisa, na desmontagem escrita, apresenta-se de forma mais detalhada essas
experincias com o teatro na escola.
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olhos. Ele da rea de Interpretao, chama-se Prof. Msc. Luiz Roberto de Sousa, grande
Pazzini, como conhecido at hoje.
A convite deste professor eu e grande parte da minha turma entramos em um processo
de pesquisa do Grupo de Pesquisa Teatral Cena Aberta4. Alm das pesquisas teatrais e
laboratrios de cena, lembro-me que o professor Pazzini nos estimulava a olhar o mundo de
outras formas, e para isso nos apresentou textos de autores como Heiner Mller, Walter
Benjamin e Antonin Artaud. E foi neste espao de criao que eu tive a minha primeira
experincia teatral na faculdade com a Performance O Homem-rvore, texto de autoria do
Antonin Artaud.
A performance foi realizada em conjunto e cada participante elaborou sua prpria
instalao corporal. Nos laboratrios de criao em sala de pesquisa foram realizados
exerccios corporais baseados na exausto, trabalho fsico, corporeidade e desmistificao do
sexo a partir do contato corporal direto com outras pessoas e outros corpos, usvamos poucas
roupas e o objetivo era me relacionar com meu parceiro de trabalho observando-o enquanto
massa corprea assexuada, que come, defeca, vomita, anda, cai, pula, mata, destri e sente
orgasmo parafraseando o texto de Antonin Artaud trabalhado para esta performance.
Ou seja, comparando essa primeira experincia na faculdade com os trabalhos
anteriores de teatro na escola, posso dizer que realmente foi algo avassalador, tanto do ponto
de vista esttico quanto metodolgico. Ter contato com um texto to complexo e fragmentado
foi impactante. Eu ainda no tinha tido contato com algo assim, a cidade que eu morava antes
de entrar na faculdade era muito tradicional e possua poucas manifestaes teatrais artsticas.
Na performance ramos cerca de trinta pessoas e cada participante escolheu uma parte do
texto para servir como mote de investigao da instalao. As criaes eram das mais variadas
e lembro isso de forma repentina. As nicas coisas que consigo lembrar so: algum comia
frutas sem parar; outro esfaqueava uma pequena boneca de pano com uma faca de cozinha;
outro se amarrava em um poste com camisas de fora; outro enjaulou sua cabea em uma
gaiola de pssaro e outro engolia muitos remdios.
No meu processo de pesquisa eu busquei vrias referncias e acabei me centrando no
prprio ttulo do texto: O Homem-rvore. Quando eu olho para trs percebo que o fato de
querer ser a prpria rvore revela resqucios da representao do teatro na escola. Eu queria
mostrar a realidade como ela . Parece engraado e eu solto altas gargalhadas disso tudo ainda
hoje. Estou rindo agora mesmo. Mas um fato curioso que quando eu comecei a entender um
4 Grupo de pesquisa, ensino e extenso fundado em 2005 no curso de Teatro da UFMA. No terceiro captulo, na
desmontagem escrita, apresenta-se de forma mais detalhada as metodologias de trabalho deste grupo.
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pouco mais da proposta artaudiana eu cheguei concluso de que eu no devia representar a
prpria rvore, mas s-la de fato.
Durante o processo, escolhemos um espao de apresentao, o anfiteatro Beto
Bittencourt, localizado no centro histrico da cidade de So Lus-MA. Nesse local tm
algumas rvores que possuem um caule fragmentado, como se fosse vrios caules em uma s
rvore. Em seus troncos existem espaos vazios e, por conta disso, como eu j tinha a idia de
ser o prprio homem-rvore, eu resolvi estabelecer uma espcie de camuflagem parcial do
meu corpo. E para isso eu me encaixava nas lacunas do tronco de uma rvore. Meus braos e
pernas eram amarrados com barbantes de cinco metros em galhos diferentes e assim eu podia
me movimentar fora da rvore em um espao limitado e depois voltar para o tronco.
Para ajudar na camuflagem, todo meu corpo foi revestido de argila, e tambm foram
amarrados alguns pedaos de galhos na minha cabea, barriga, braos, pernas, costas e ps.
Minha construo se realizou em uma espcie de instalao corprea, a partir de palavras
propulsoras como: transfigurao, vmito, resto, sobras, defecao, vestgios, excrementos. A
parte mais inspiradora do texto de Antonin Arttaud e escolhida por mim para gritar, falar,
sussurrar, grunhir e gemer durante a performance foi a seguinte.
Quem foi Baudelaire?
Quem foi Edgar Poe, Nietzsche, Grard de Nerval?
Corpos que comeram, digeriram, dormiram,
ressonaram uma vez por noite,
cagaram entre 25 e 30 000 vezes,
e em face de 30 ou 40 000 refeies,
40 mil sonos, 40 mil roncos,
40 bocas acres e azedas ao despertar,
Tem cada qual de apresentar 50 poemas,
O que realmente no de mais,
e o equilbrio entre a produo mgica e produo automtica
est muito longe de ser mantido,
est todo ele desfeito,
mas a realidade Pierre Loeb, no isso.
Ns somos os 50 poemas,
O resto no somos ns
mas o nada que nos veste, se ri, para comear, de ns.
Um organismo de engolir vive de ns a seguir.
Ora, este nada nada ,
no qualquer coisa mas alguns.
Quero dizer alguns homens.
Animais sem vontade nem pensamento prprio
(Trecho do texto O Homem-rvore de Antonin Artaud)
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FIGURA 1 Performance O Homem-rvore
Fonte: Arquivo pessoal / Fotografia: Lus Antnio Freire
Acredito que essa experincia foi uma das principais causas geradoras da minha
vontade em continuar investigando os processos de criao em grupos de teatro tanto na
monografia como agora na dissertao. Participar da trajetria de uma obra teatral nesse
caso de uma performance e ver o movimento das idias acontecendo como uma colcha de
retalhos sendo tecida foi algo que me chamou muita ateno e me causou grandes
inquietaes e incmodos significativos, como vem causando at hoje.
Alm disso, o fato de vivenciar uma criao em grupo onde os vrios apontamentos
individuais colaboravam para o levantamento de todo o material de trabalho foi poeticamente
excitante. Lembro-me que durante a construo dessa performance e principalmente depois da
sua apresentao eu perdi vrias noites de sono tentando entender como aquele quebra-cabea
de tantas idias com tantas pessoas tinha chegado naquele estado de criao. Para mim isso
tudo era muito curioso, novo e estimulante.
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Sobre a estrutura da pesquisa
Aps este exemplo de importante significao para justificar os motivos pessoais
dessa pesquisa que apresento nas prximas linhas a estrutura deste trabalho que movido
por algumas indagaes, tais como: Como investigar os traos da criao? Como acessar
essas experincias e como elaborar uma reflexo sobre elas? Como relatar vivncias da
construo do ator em teatro de grupo?
Esta pesquisa uma reflexo sobre a desmontagem e o seu objetivo principal uma
reflexo desse procedimento como dispositivo de investigao do ator e sua prpria criao.
Dentro dessa prerrogativa, a pesquisa aborda o trabalho do ator e suas experincias no
contexto de teatro de grupo, terminologia utilizada por alguns estudiosos para classificar os
grupos que trabalham na montagem de espetculos a partir das prticas teatrais construdas
em vivncias grupais. De acordo com alguns pesquisadores que sero apresentados ainda
neste tpico nas linhas que se seguem no espao do teatro de grupo existem duas
possibilidades de ao: criao coletiva e processo colaborativo (TROTTA, 1995). Esses
aspectos de construo do espetculo interferem diretamente na funo do ator que passa a
desempenhar papeis diferentes nesse espao, atuando no somente enquanto intrprete na
representao das personagens, mas tambm colaborando de forma direta na construo dos
outros elementos da cena, como: dramaturgia, encenao, direo, iluminao, sonoplastia,
caracterizao, dentre outros. Isso sugere no s a participao ativa do ator junto desses
elementos, mas tambm o aprofundamento da pesquisa destes (FISCHER, 2010). Como
procedimento metodolgico, utilizo uma abordagem qualitativa em que os conceitos,
entrevista e experincias pessoais acessadas possibilitam refletir as subjetividades na anlise
das prticas artsticas. De acordo com Chizzotti (2000, p. 79) em seu livro Pesquisa em
Cincias Humanas e Sociais:
A abordagem qualitativa parte do fundamento de que h uma relao dinmica entre
o mundo real e o sujeito, uma interdependncia viva entre o sujeito e o objeto, um
vnculo indissocivel entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito. O
conhecimento no se reduz a um rol de dados isolados, conectados por uma teoria
explicativa; o sujeito-observador parte integrante do processo de conhecimento e
interpreta os fenmenos, atribuindo-lhes um significado. O objeto no um dado
inerte e neutro; est possudo de significados e relaes que sujeitos concretos criam
em suas aes.
Na realizao de uma entrevista com uma atriz desmontada e na observao das
minhas experincias em desmontagem enquanto ator, posso dizer que pesquiso subjetos,
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espaos em que observo o material de trabalho como objetos/sujeitos ou como
sujeitos/objetos, a confluncia desses termos em um s conjunto est relacionada pela linha
tnue estabelecida entre uma pesquisa de inacabamentos ou acabamentos provisrios
sujeitos que so objetos ou objetos que so sujeitos em constante transmutao.
Portanto, com base nesses espaos de criao que a desmontagem entra como um
modo de investigao significativo das poticas do ator em teatro de grupo. A desmontagem,
como pesquisa principal deste trabalho, adotada como um procedimento artstico dentro
desse espao de criao do ator no universo coletivo/colaborativo. De acordo com esses
apontamentos, apresento a seguir a diviso dos captulos com os principais objetivos e
algumas referncias utilizadas.
O primeiro captulo denominado de O ator em teatro de grupo tem como objetivo
contextualizar o universo em que o ator est inserido nesta pesquisa, apontando como se
estabelecem suas experincias e quais os papeis desenvolvidos neste espao. Para isso, o
prprio ttulo faz aluso a esse contexto: o ator envolvido em processos grupais sejam estes
coletivos ou colaborativos. Inicia-se apresentando um breve histrico de como este termo
comeou a circular entre alguns grupos no Brasil, a partir da dcada de 1960.
E qual seria a fronteira entre os trabalhos de criao coletiva e processos colaborativos
em teatro de grupo? Quais as conexes e divergncias? Para isso apresento uma rpida
proposta conceitual inacabada em que denomino de rede cooperativa, que indica o trabalho
do ator interligado nessas confluncias de criao coletiva e processo colaborativo, tentando
abarcar esses dois espaos da criao em que muitos pesquisadores apresentam como modos
diferentes na operao da cena. Na rede cooperativa o ator desenvolve papeis que lhe
garantam uma multiplicidade de funes que o torna um ator-expandido outra rpida
denominao conceitual de proposta inacabada com autonomia dentro do processo de
criao, no como um agente independente/autoritrio, mas como um atuante que constri a
partir do dilogo com os outros e principalmente na exposio da sua prpria voz. Diante
disso: como pesquisar o ator expandido dentro desses espaos de criao em rede
cooperativa?
Para isso, utilizo alguns materiais bibliogrficos para construir um possvel panorama
histrico e conceitual acerca das questes apresentadas no pargrafo anterior e as principais
referncias so: Teatro de grupo com Silvia Fernandes (2000) e Rosyane Trota (1995);
Processo colaborativo com Stela Fischer (2010) e Antnio Carlos de Arajo Silva (2008) e
Trabalho do ator em grupo com Clvis Domingos dos Santos (2010).
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J o segundo captulo denominado de Desmontagem Cnica tem como objetivo
apresentar uma anlise voltada somente para o estudo desse termo, procedimento que se
expandiu atravs das demonstraes de trabalho e investigaes cnicas realizadas por grupos
de teatro de alguns pases da Amrica Latina, como Lima, Peru, Colmbia, Cuba, para citar
alguns (DIGUEZ, 2009). Portanto, primeiramente apresento uma contextualizao de
rasuras histricas sobre a desmontagem; aps isso, fao uma reflexo conceitual catalogada a
partir de poucas bibliografias e tambm de algumas anotaes de palestras sobre o tema; em
seguida, de acordo com os estudos de Ileana Diguez (2009), verso relaes que a autora faz
da desmontagem com a desconstruo em Jacques Derrida e a filosofia da composio em
Edgar Allan Poe. E para contribuir no levantamento de questes sobre temtica realizo uma
possvel conexo com a gentica teatral ou gentica da encenao de acordo com os estudos
de Josette Fral. Para isso utilizo algumas referncias, tais como: Desmontagem com Ileana
Diguez (2009) e Mara Lucia Leal (2013); Desconstruo com Jacques Derrida (2002) e
Gentica Teatral com Josette Fral (2013).
No ltimo tpico do segundo captulo na discusso sobre desmontagem, utilizo
fragmentos de uma entrevista realizada com Tnia Farias, atriz da Tribo de Atuadores i Nis
Aqui Traveiz, em que eu relato como ocorreu nosso primeiro contato que foi justamente
atravs da sua desmontagem5 e que a partir desse encontro resolvi estabelecer dilogos
direcionados com perguntas sobre o ato pessoal de desmontar os seus processos de trabalho.
Dessa forma, neste tpico inicio uma escrita em que a voz em primeira pessoa de Tnia
Farias passa a ecoar nas folhas desta pesquisa dando lugar voz corprea/sinestsica; a voz
da experincia.
No terceiro e ltimo captulo denominado de Rascunho das poticas do ator quase
totalmente escrito na voz em primeira pessoa eu fao um relato da minha experincia
enquanto ator nos processos de criao cnica contextualizado em teatro de grupo. Neste caso,
verso sobre meu primeiro contato com o grupo de teatro na escola at os grupos de teatro na
faculdade, colocando uma ateno especial ao Ncleo de Pesquisas Teatrais Rascunho com a
desmontagem escrita dos seguintes espetculos: Lullaby; Esperando Godot; Primeiro Amor e
Siameses. A princpio a desmontagem chamava-se Experincias do sensvel: travessias
artsticas e para este trabalho ganha um formato e denominao especial, chamada de
Rascunho: vestgio das poticas do ator.
5 Desmontagem Evocando os mortos: poticas da experincia, apresentada pela primeira vez na Universidade
Federal de Uberlndia no primeiro semestre de 2013 como parte da programao do III InterFaces
Internacional organizado pelo Grupo de estudos e investigaes sobre criao e formao em artes cnicas
(GEAC).
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Nas Fontes deste trabalho, acrescentei os vdeos da Desmontagem Evocando os
mortos: poticas da experincia6, da atriz Tnia Farias e tambm da minha desmontagem em
uma verso anterior, Experincias do sensvel: travessias artsticas7, como links para
consulta.
Por fim, em algumas partes deste trabalho eu coloco algumas frases em destaque
dentro de pequenos blocos em uma licena potica de enfatizar a voz da experincia como
significativo campo desta pesquisa, como j realizado nesta introduo.
6 Visualizar esta desmontagem no final da leitura do segundo captulo. 7 Visualizar esta desmontagem no final da leitura do terceiro captulo.
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CAPTULO 1 O ATOR EM TEATRO DE GRUPO
ou sobre rasuras conceituais da pesquisa
____________________________________________________________
1.1. Teatro de grupo: sobre histricos e conceitos
A discusso que busca compreender a terminologia teatro de grupo possui um quadro
de vrias propores conceituais que no se encerram no campo de um conceito nico e
fechado, mas esto contaminados em contextos no campo potico, tcnico e esttico com
controvrsias que tornam ainda mais difcil dizer o que significa estritamente este termo.
[] a primeira coisa que vem mente que o teatro de grupo uma tautologia
das mais estranhas todo teatro deveria ser de grupo, uma vez que a definio da
palavra grupo, se consultarmos um dicionrio, a seguinte: Reunio de seres
formando um conjunto, ou conjunto de pessoas reunidas em um mesmo local, ou,
ainda, conjunto de indivduos com um determinado nmero de caractersticas em
comum e cujas relaes (sociais, psicolgicas) obedecem a uma dinmica
especfica. Segundo essa definio, o teatro certa e necessariamente praticado por
um grupo de artistas e tcnicos, mesmo no caso de um espetculo solo (PICON-
VALLIN, 2008, p. 83).
Contudo, o aparecimento desta definio, mesmo que de forma lquida e provocativa,
estabelece relao com o modo de fazer e pensar teatro, no associado necessariamente ao
conjunto organizacional da palavra em seu sentido primeiro, o conceito de teatro de grupo
indica, assim, uma radicalidade, a exigncia de um teatro diferente (PICON-VALLIN, 2008,
p. 85).
A partir dessa nomenclatura observamos vrias formas de se trabalhar, desde as mais
tradicionais at as mais contemporneas. O prprio modo de fazer do grupo so condies que
determinam sua sobrevivncia e longevidade, ao passo em que refletem seu carter esttico e
suas solues para as diferentes resolues e compreenso da cena.
Um grupo existe no apenas na cena, mas principalmente nas condies que cria
para ela, em tudo o que a cena pressupe. O espetculo apenas a parcela do
trabalho do grupo que se torna pblica. Portanto, o estudo do teatro que ele produz
deve ser, antes de mais nada, o estudo do seu fazer teatral, de todas as atividades que
se desenvolvem antes, durante e depois da cena do mtodo organizativo ao
processo e criao, do convvio humano luta pela sobrevivncia (TROTTA, 1995,
p. 28).
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Portanto, podemos pensar que o teatro de grupo um processo de convvio constante
que est relacionado com os modos de criao, percepo, funo e opo dos membros. A
escolha por esse modo de fazer/pensar/executar teatral est diretamente relacionada
estrutura dos artistas criadores. Cada grupo possui seu projeto artstico com seus objetivos e
ideais que constituem um movimento de identificao. Ou seja, a identificao
compreendida como um fluxo contnuo de desestruturao das formas que so (re)articuladas
de acordo com o surgimento das necessidades.
Desse modo, a cada desestruturao so gerados novos atritos inevitveis
sobrevivncia do grupo. De acordo com Maria de Loudes Rabetti (1993, p.12), necessrio
para os grupos enunciarem, tambm, as diferenas de percurso, e de assim proclamarem a
instaurao do que heterogneo. Enunciar as diferenas como um modo de reconhecimento
das individualidades que, ao se encontrarem no mesmo espao, tornam-se conflituosas. Como
compreender a noo de grupalidade? Como destacar os possveis parmetros histricos e
conceituais acerca desse termo?
Neste trabalho, o conceito de teatro de grupo est direcionado ao contexto histrico
brasileiro com alguns apontamentos especficos sobre o termo. Portanto, ao nos referirmos ao
teatro de grupo no Brasil importante destacar as diferenas existentes nos processos de
criao em conjunto, sejam coletivos ou colaborativos, caractersticos das dcadas anteriores e
os princpios norteadores at os dias atuais.
Nas ltimas dcadas do sculo XX, houve uma grande transformao no panorama
cultural brasileiro que originou um possvel surgimento da prtica do teatro de grupo
produzido a partir da efervescncia das artes cnicas no Brasil. Grupos de teatro consolidados
em sua forma de produo, atuao e organizao que conquistaram espaos significativos,
com espetculos em circulao e locais de trabalho estabelecidos (CARREIRA, 2013). No
entanto, essa realidade estritamente particular de grupos especficos e a maior parte dos
grupos brasileiros sobrevive de condies precrias, constantemente ameaados ao
desaparecimento e a falncia de suas produes (STREVA, 2014).
Alguns grupos comearam a optar pela criao coletiva caracterizadas pela
experimentao, improvisao, produo horizontal e liberdade artstica como contraponto
relao verticalizada e autoritria do governo, a exemplo disso temos os grupos: Asdrbal
Trouxe o Trombone (1974); Pod Minoga (1972); Unio e Olho Vivo (1972). Dessa forma,
comeou ento uma democratizao das funes grupais, com a criao de novos textos,
temas e formas, construdos pelo ator e pelo diretor, que tambm se transformava em
dramaturgo (FERNANDES, 2000).
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Os atores participavam de todas as etapas do processo de criao dos espetculos tais
como proposio, criao, produo, escrita de texto, atuao e desempenhavam vrias
funes como podemos observar no depoimento do ator Hamilton Vaz Pereira, do grupo
Asdrbal Trouxe o Trombone.
Na criao de um espetculo pra gente, ficou importante no deixar na mo de um
autor ou de um diretor a cabea geral do espetculo. A primeira atitude, ento, era
abolir o autor: o grupo seria o autor da transao. Esta descentralizao do autor e do
diretor tem a ver com um caminho prprio do grupo em acreditar que se as pessoas
esto dentro de um esquema de produo, para se sustentar, para comer s custas do
seu trabalho, elas deveriam ter uma capacidade maior de imaginar, de querer, de
produzir arte, ou produzir teatro. Somos vrias sensibilidades dentro de um
espetculo e no a sensibilidade de um autor ou de um diretor a quem todo mundo
est filiado (FERNANDES, 2000, p. 71-72).
Os artistas no estavam destinados s funes especficas, mas interligados no projeto
teatral coletivo, construindo e investindo no trabalho de grupo e no somente na sua carreia
pessoal. Talvez desempenhar somente a funo de interpretar significava estar em uma
posio hierrquica e autoritria, lugar que no constitua a relao coletivizada. O ator
possua uma autonomia, mas no no sentido autoritrio, e sim no sentido propositivo de
criao e deciso dentro do conjunto artstico. Rosyane Trotta cita as expresses grupo-
autor e ator-autor, apontando na criao coletiva um lugar em que o ator passou por
significativas transformaes.
O ator-autor no existe como funo autnoma: sua prtica est condicionada a um
conjunto formado por outros atores que desempenham a mesma funo,
caracterizando o que se poderia chamar de um grupo-autor, cuja obra se estende
alm dos limites da cena. Os materiais, as tcnicas, as condies que envolvem a
obra, o processo e o grupo fazem parte da elaborao desta autoria (TROTTA, 2008,
p. 57).
O grupo formado por um conjunto de potncias atorais que, por exigncia
espontnea da prtica coletiva, executam outras funes que no apenas
interpretar/representar uma personagem, mas tambm, junto com os criadores, o ator possui
autonomia na criao e autoria do trabalho.
Na prtica em que todo mundo faz tudo e todo mundo opina em tudo, expresso
que caracteriza a idia de criao coletiva colocada por Slvia Fernandes (2000, p. 72) em seu
livro Grupos Teatrais: Anos 70, tambm podemos identificar algumas dificuldades: a
fragilidade esttica dos espetculos em seus resultados finais; o tempo excessivo dos
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32
processos de criao sem perspectiva de estria; a falta de sistematizao do trabalho, como
aponta Lus Alberto Abreu (2003):
A Criao Coletiva possua, no entanto, alguns problemas de mtodo. Um deles era
talvez a excessiva informalidade do prprio processo. No havia prazos, muitas
vezes os objetivos eram nebulosos e se a experimentao criativa era vigorosa, no
havia uma experincia acumulada que pudesse fixar a prpria trajetria do processo.
Era ainda, uma abordagem da criao totalmente emprica que se resumia, muitas
vezes, em experimentao sobre a experimentao8.
Na criao coletiva possvel avaliar diferentes aes metodolgicas, o que torna
ainda mais complicado encerrar em critrios conceituais acerca da temtica. No se pode
considerar apenas questes tcnicas e estticas, mas principalmente questes polticas e
sociais que so caracterizadas pelo trabalho coletivo que visa consolidao de um espetculo
com base na criao produzidos atravs da vivncia em conjunto como forma de resistncia
cultural ao autoritarismo vigente do governo brasileiro na poca.
Com o fim da ditadura na segunda metade dos anos de 1980, ocorreram algumas
transformaes como a dissoluo de alguns grupos teatrais que fecham suas portas. Sem o
apoio de empresas patrocinadoras, surge o mercado da televiso, principalmente nos estados
do Rio de Janeiro e So Paulo e os atores dos grupos de teatro em uma busca solitria
passam a fazer parte dos elencos de peas de teatro, desvinculados de uma identidade grupal.
Surge ento a dcada dos encenadores com processos de criao hierarquizados e um
mercado teatral caracterizado pelos diretores como autores dos espetculos e centro da
elaborao da cena (TROTTA, 2008).
Alm disso, o pesquisador Andr Carreira (2011) coloca no artigo Teatro de Grupo:
um territrio multifactico que nos anos de 1980 presenciou-se um movimento com novas
referncias e procedimentos cnicos atravs do contato com os grupos Odin Theatret, Farsa, e
Tscabile, organizados pelo projeto International School of Theatrical Anthropology (Ista),
possibilitando o compartilhamento de metodologias de trabalho entre os grupos teatrais
brasileiros e europeus.
Com a consolidao da democratizao no Brasil no comeo dos anos de 1990, os
grupos de pesquisa e produo coletiva voltam a se reunir de forma independente com vistas
profissionalizao e a necessidade de relao contnua e duradoura de mercado. Dessa forma
so realizados alguns encontros e eventos para investigar o panorama teatral brasileiro como:
I Encontro Brasileiro de Teatro de Grupo, realizado em Ribeiro Preto-SP em 1991 neste
8 ABREU, Lus Alberto. Disponvel em http://escolalivredeteatro.blogspot.com.br/2006/01/processo-
colaborativo-relato-e-reflexo.html. Acessado em 10 de janeiro de 2015.
http://escolalivredeteatro.blogspot.com.br/2006/01/processo-colaborativo-relato-e-reflexo.htmlhttp://escolalivredeteatro.blogspot.com.br/2006/01/processo-colaborativo-relato-e-reflexo.html
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mesmo ano surge tambm a Associao Movimento Teatro de Grupo de Minas Gerais e o II
Encontro Brasileiro de Teatro de Grupo, tambm realizado em Ribeiro Preto-SP em 1993
(STREVA, 2014).
Tais eventos renem grupos com o objetivo de articulao poltica, intercmbio
cultural e produo artstica de reconhecimento sobre o fazer teatral, com a participao dos
seguintes grupos de teatro: Grupo Imbuaa (SE); Grupo i Nis Aqui Traveiz (RS); Grupo
T na Rua (RJ); Grupo Parlapates, Patifes & Paspalhes (SP); Grupo Teatro de Annimo
(RJ) e Grupo Galpo (MG)9, para citar alguns.
Na dcada de 1990 os grupos de criao coletiva produzem espetculos sob uma nova
configurao chamada de Processo Colaborativo, com uma nova definio na funo do ator
que passa a se relacionar com a criao artstica global da obra e a colaborar com os outros
criadores na sala de ensaio como: iluminador, cengrafo, figurinista, diretor, dramaturgo,
dentre outros. Mas o que seria a nova expresso processo colaborativo? Antnio Arajo nos
traz a seguinte colocao.
A expresso processo colaborativo comeou a ser usada na segunda metade da
dcada de 90 dentro de um contexto de retomada do movimento de teatro de grupo
na cena paulistana. O retorno desta perspectiva grupal, que aparece quase como um
contraponto hegemonia do encenador no teatro brasileiro da dcada anterior, vai,
aos poucos, ganhando uma dimenso nacional. No que os grupos tenham deixado
de existir aps a dcada de 70 entre outros coletivos importantes e atuantes nesse
perodo, poderamos destacar o Grupo Galpo, o Imbuaa, o Ponk ou ainda o i
Nis Aqui Traveiz mas o forte da produo nacional orbitava em torno dos
encenadores. So, desse perodo, montagens importantes de Gerald Thomas, Ulysses
Cruz, Bia Lessa, Gabriel Vilella, entre outros (SILVA, 2008, p. 57).
Os artistas que fazem parte do chamado Processo Colaborativo trabalham no jogo de
complementaridade em que cada criador tem uma funo especfica, mas que possui abertura
para receber a colaborao de outras reas da criao e Silva (2008, p.56) ainda defende que
melhor do que ausncia de hierarquias, seja mais apropriado pensarmos em hierarquias
momentneas ou flutuantes, localizadas, por algum momento, em determinado plo de
criao.
De acordo com os apontamentos anteriores, pode-se traar possibilidades conceituais
acerca da idia de teatro de grupo. Pesquisadores dessa rea de pesquisa, como Carreira
(2007) e Trotta (2008), tm abordado que o teatro de grupo se define por uma busca de
independncia com relao aos paradigmas da indstria cultural, e este posicionamento no
seria uma recusa total do mercado de trabalho, mas a busca por um espao de autonomia e
9 Disponvel em: http://www.foradoserio.net/bio16.htm. Acessado em 10 de janeiro de 2015
http://www.foradoserio.net/bio16.htm
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criao. A realizao de um espetculo criado em espao conjunto fortalece a formao dos
artistas do processo criativo que, geralmente, desenvolvem suas pesquisas individuais dentro
do prprio grupo. Dessa forma, existem pequenas redes de pesquisa e convvio que
retroalimentam a rede maior da pesquisa do grupo. Ou seja, cada artista est responsvel por
um trabalho que exige uma autonomia que vai se constituindo na experincia de vrias,
inmeras decises, que vo sendo tomadas (FREIRE, 2005, p. 107). Nessa conjugao entre
redes de pesquisa individual e coletiva, Rosyane Trota contribui com a seguinte colocao.
O objetivo de cada integrante o de formar e expressar a personalidade e a
profissionalizao do coletivo e no a sua prpria, ou melhor dizendo, quando as
individualidades se colocam disponveis para criar uma cultura comum e se deixar
formar por elas (TROTTA, 1995, p. 22).
A participao individual no grupo se estabelece como um verdadeiro exerccio de
auto-expresso associado ao posicionamento inacabado como um exerccio tico. Ou seja,
para que a autonomia seja exercida necessrio criar espao de dilogo e relacionamento
contnuo (FREIRE, 2005).
Os pesquisadores Narciso Laranjeira Telles da Silva e Getlio Goes de Arajo (2014)
apontam que neste modo de fazer teatral existem vrias formas de grupalidade e que a
caracterstica principal deste modo de criao est ligada na coletivizao dos processos. E os
pesquisadores Andr Carreira e Valria Maria de Oliveira (2003, p. 96) identificam o teatro
de grupo como uma promessa de permanente reflexo sobre os fundamentos do teatro, bem
como do desejo de construir mtodos de formao do ator baseados em uma ordem tica para
o trabalho coletivo.
O teatro de grupo est caracterizado pela noo do trabalho do ator e suas experincias
de investigao coletiva/colaborativa, a partir do pensamento crtico e potico que
estabelecido na sua prtica de pesquisa. A idia da criao do ator o parmetro que produz a
identidade das pesquisas em grupo. O novo olhar sobre o treinamento do ator funciona como
uma forma de estabelecer um campo de possibilidades diferenciadas nos procedimentos de
criao dos espetculos. O ator do teatro de grupo tem autonomia no processo de criao com
sua capacidade de inveno e reinveno constante estabelecendo novas formas de
pensamentos e construo da cena (CARREIRA, 2007).
As linguagens cnicas colocadas no centro do teatro de grupo esto voltadas para o
processo de criao, treinamento do ator, capacidade de experimentao e criao, jogos que
permitam a elaborao espontnea dos fluxos de investigao da cena articulados com
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projetos de produo de espetculos, oficinas, palestras, demonstraes tcnicas e trabalhos
pedaggicos de formao teatral na comunidade (CARREIRA, 2007).
Estar em grupo estar em constante processo de reinveno de si mesmo e de
compreenso do outro; estabelecer estratgias de oscilao e aceitao das mudanas do
processo; articular e rearticular os modos de pensamento; movimentar campos hbridos de
oscilao e atrito entre os membros. Eugenio Barba, pesquisador da antropologia teatral e
diretor do grupo Odin Theatret, afirma que, para um grupo existir necessria harmonia.
Harmonia no beleza esttica, mas proporo ativa, movimento em quietude. A
necessidade de harmonia no a necessidade de procurar a soluo de um problema,
mas o impulso por trocar as coisas de lugar, difcil de explicar at para si mesmo.
Harmonia o acordo entre tenses (BARBA, 1991, p. 20-21).
Em teatro de grupo inevitvel estar em constante ciclo de tenses, choques, riscos e
perigos, e a partir das crises se estabelecem as fronteiras conflituosas na busca pelo acordo
entre as partes e a combinao, articulao e concordncia do organismo do movimento
criador, tico, esttico e poltico da cena. O acordo do discurso do teatro de grupo pode ser
gerado ou no, dependendo da fruio dos posicionamentos e da idia de criao cnica das
partes do todo.
Em outros termos, para criar, devemos golpear-nos uns aos outros. Ns nos
atacamos de maneira criativa, ns podemos nos bater, disputar, desconfiar uns dos
outros, propor outras solues. Entre ns haver tanto rixas e dvidas quanto
momentos marcados por uma atmosfera viva de trabalho (BOGART, 2003, p. 41).
A sobrevivncia do teatro de grupo d-se atravs do conflito entre as manifestaes,
desejos e opinies que so colocadas em um mesmo espao de trabalho. No processo criativo
o sujeito caminha da pluralidade para a singularidade, ou da singularidade para a pluralidade
estabelecendo conectivos do projeto do grupo e os posicionamentos individuais. O objetivo
do grupo e a constituio de sua manuteno so baseados, muitas vezes, em artistas com
perspectivas ao exerccio autoral, no qual a atuao e a composio cnica no se resumem
aos procedimentos tcnicos, mas aos vrios anseios presentes nas questes que so
apresentadas em grupo, na busca das potencialidades, motivaes, desejos e vocaes. Alm
disso, os membros desempenham vrios papeis e se deparam com inmeros problemas em
que a todo tempo se tornam cada vez mais difceis a resoluo destes, como aponta Samantha
Agustin Cohen:
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No mbito do TG [teatro de grupo], de modo geral as relaes se do de maneira
horizontal. Todos e cada um dos integrantes assumem funes mltiplas. Alm de
desempenharem suas atividades artsticas, eles dividem a responsabilidade de
manter a estrutura organizativa e de produo do grupo. Com a multiplicidade de
papis assumidos e de microrrelaes estabelecidas em grupo, a resoluo de
conflitos torna-se uma ao muito mais complexa que a de um ncleo formado por
duas pessoas, ou daqueles agrupamentos em que os cargos so fixos. Quanto maior
for o nmero de participantes, mais complexas sero a teia de microrrelaes e, por
conseguinte, a resoluo de problemas no interior do grupo (COHEN, 2010, p. 77).
No decorrer do convvio e do conhecimento das relaes do grupo, os membros criam
seus prprios modos de soluo e desenvolvem estratgias de organizao dos conflitos.
Portanto, os problemas so fundamentais para o aprofundamento das idias que norteiam o
processo de criao e, tambm, o processo de convivncia das partes. Assim, o grupo
constitudo por meio da tenso gerada entre distintas foras e do esforo para mant-las
unidas (COHEN, 2010, p. 76).
A idia de teatro de grupo tambm gerou nos processos de criao e nos resultados dos
espetculos novos modos de pensar e novas estticas geradoras de um conhecimento
imagtico diferenciado, refletindo diretamente na cena teatral brasileira.
O grupo tem que descobrir tcnicas adequadas para o seu prprio processo de
produo. Trabalhos encenados por grupos tornam-se, portanto, discusses em torno
da linguagem do teatro. O que o teatro, como ele deve e pode ser, como execut-
lo, so questes que permeiam o cotidiano dessas produes (LIMA, 2005, p. 255).
No seu artigo Quem faz teatro, Maringela Alves de Lima (2005) toca nos aspectos
criativos dos grupos e revela a necessidade de expandir as fronteiras da cena, prerrogativa que
nos faz pensar em arte como vida. A mudana na esttica da cena entra em choque com as
estruturas rgidas do teatro de empresa e da superficialidade presente no teatro comercial e de
grande parte das produes.
A cena torna-se diferenciada com a elaborao e execuo dos novos procedimentos
de pesquisa nos processos artsticos dos grupos de teatro, que produzem os espetculos
fundamentados da criao e fruio espontnea gerada pelas metodologias que proporcionam
a construo de um olhar potico, poltico e esttico caracterizado por um fluxo orgnico e
um discurso cnico de todas as partes presentes na criao.
Neste tpico sobre teatro de grupo na breve trajetria histrica e nas possveis
conceituaes apresentadas arrisco observar que as referncias ora so slidas, ora so
lquidas, outrora so as duas coisas e ao mesmo tempo no so nenhuma delas. E isso reflete o
prprio carter efmero e subjetivo presente no s no teatro de grupo, mas tambm nas
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relaes humanas que circundam este fazer. A exemplo disso houve duas etapas no modo de
criao em teatro de grupo apresentadas anteriormente denominadas pelos pesquisadores da
rea como criao coletiva e processo colaborativo que ora tem relaes, outrora tem
divergncias, e sero discutidas no tpico a seguir.
1.2. Criao coletiva e Processo colaborativo: conexes e paradoxos
A escolha por determinadas formas de fazer teatral o reflexo direto da estrutura do
grupo de criadores. Cada grupo possui o seu projeto artstico que contm o seu perfil
provisrio levando em considerao que esse perfil se modifica com os acontecimentos
que traa os objetivos e parmetros e, com muita insistncia e dedicao, devem ser seguidos
ou descartados de acordo com as necessidades de trabalho e de cada criao.
No caso de uma experincia teatral coletivizada, presume-se a criao de um espao
no qual cada artista possa construir e colaborar com seu saber especfico, ou seja, em
um desejo de formar, com os outros criadores, um conjunto de saberes coletivos
(SANTOS, 2010, p. 21).
Nessa prerrogativa de Clvis Domingos dos Santos (2010) colocada em sua
dissertao de mestrado denominada de A Cena Invertida e a Cena Expandida: projetos de
aprendizagem e formao colaborativas para o trabalho do ator a individualidade e a
coletividade se estabelecem pela vivncia, experincia e criao em grupo, apontando para a
importncia do trabalho em equipe. Porm, no certo dizer que, na criao coletiva,
diluem-se, prioritariamente, as funes que passam a ser assumidas por todos os integrantes
da equipe. Essa seria uma maneira reducionista e estigmatizada de conceitu-la (FISCHER,
2010, p. 72). Fernando Peixoto em seu livro Um teatro fora do eixo: Porto Alegre coloca
algumas observaes acerca do termo.
A partir de uma postura ideolgica prxima ou vizinha do anarquismo, seria um
processo que acaba com a presena, no grupo, de algum como chefe ou autor ou
diretor, porque para estes isto seria a negao do conceito, j que todo grupo
igual e deve participar igualmente no processo criativo (PEIXOTO, 1993, p. 4).
No existe um cabea-chefe dentro do processo de criao. Todos os artistas so
responsveis pela apropriao do discurso e da elaborao da cena; um processo,
aparentemente, sem hierarquia. Esse modo de criao dentro do grupo anlogo com o
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processo de trabalho do Living Theatre10 que desenvolveu um trabalho coletivo com os
membros do grupo e, quando veio ao Brasil em 1970, influenciou o grupo brasileiro Teatro
Oficina, compartilhando novos procedimentos de trabalho coletivo na criao teatral. Ainda
pode-se destacar as influncias de Antonin Artaud ao grupo Living Theatre, assim como as
idias de Bertolt Brecht que foram de grande importncia para a criao do grupo La
Candelaria11 por Santiago Garcia, na Colmbia. (NICOLETE, 2002). Em segunda colocao
apontada por Fernando Peixoto, temos a seguinte citao:
Um coletivo em processo de criao, do texto ou do espetculo, ou de ambos,
significa uma participao essencial e ntegra de todos, mas permanecem como
coordenadores ou organizadores dessa vontade coletiva, figuras que assumem as
tarefas de autor ou diretor (PEIXOTO, 1993, p.4).
O processo de criao coletiva pressupe-se uma via democrtica sem excluir
delegao de responsveis para a administrao de determinados setores. A diviso de tarefas
conservada de acordo com a especializao das funes e a partir do interesse dos
integrantes que podem contribuir colaborar em diferentes campos da criao (FISCHER,
2010). Ou seja, podemos observar uma aproximao da criao coletiva com os conceitos de
processo colaborativo apresentados por alguns pesquisadores, porm, no se trata de um
mesmo fenmeno, apenas alcunhado de forma diferente. Ainda que o processo colaborativo
se constitua como uma decorrncia ou uma reconfigurao da experincia da dcada de 1960
e 1970 (SILVA, 2008, p. 112). No processo colaborativo as funes so devidamente
separadas, no entanto, tais funes no so autoritrias e so realizadas atravs da colaborao
do coletivo envolvido na criao. O diretor Antnio Arajo faz a seguinte colocao sobre o
procedimento de trabalho do grupo Teatro da Vertigem.
Em nosso trabalho, contudo, utilizamos o conceito de coletivo associado a um
modo de fazer, maneira como as diferentes funes ou atribuies se articulam
rumo criao da obra cnica. Nessa perspectiva que utilizamos a noo de
dinmicas coletivas de criao, cujo atento e foco se encontram em um processo
compartilhado, cooperativado e democrtico do fazer artstico. Ou seja, no h um
criador epicntrico para onde tudo convirja, mas um conjunto de criadores que vo
definindo, coletivamente, os rumos, os conceitos, as prticas e as materializaes de
sua obra/processo (SILVA, 2008, p. 6).
10 O Living Theatre foi criado pelos artistas Julian Beck e Judith Malina nos Estados Unidos na dcada de 1950.
Este grupo norte-americano criou espetculos que contestavam a sociedade capitalista e recusavam o tradicional
circuito de teatro comercial da poca. 11 Grupo expoente da criao coletiva na Amrica latina, dirigido por Santiago Garcia h mais de 40 anos.
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A criao coletiva e o processo colaborativo possuem pontos de relao e divergncias
em seus procedimentos, assim como metodologias e resultados diferentes. Nesse sentido se
estabelece a operao de uma tcnica/esttica/poltica de organizao de grupo com funes
dentro e fora da cena, o que torna ainda mais complexo o fazer artstico. Dessa forma, as
questes so decididas com base nas regras estabelecidas pelo coletivo teatral, que so
discutidas, pensadas, anotadas, elaboradas e colocadas em prtica de acordo com a
necessidade do conjunto, a partir do movimento espontneo do grupo. Estes processos
contribuem para o desenvolvimento da liberdade individual, resultante de uma prtica em
conjunto. Cada indivduo possui o livre arbtrio para criar em diferentes aspectos e
estimulado dentro das vias das normas do coletivo; desenvolvem a capacidade de se
movimentarem com o grupo e ao mesmo tempo possuem um movimento de criao pessoal
(FISCHER, 2010).
importante destacar que este o vis buscado, mas no em todas as vezes que ele
alcanado, principalmente em casos de urgncia em que se faz necessria a deciso mais
rpida e o diretor, coordenador, ou responsvel pela administrao do processo a chave-
mestra que resolve a questo em sua ordem final. Deve-se eliminar os anseios de ordem
individual para que o trabalho acontea, o que torna inevitvel em possveis casos um dos
membros do grupo sentir-se tolhido e intil para a criao. Quanto mais energticas e
incisivas for a personalidade dos membros, quanto mais acirrado o embate entre as questes
de conflito, mais vivo o processo de construo pode se tornar (FISCHER, 2010, p. 78).
Sobre as decises e tenses existentes na sua companhia, Antnio Arajo faz a seguinte
citao:
Durante os ensaios bastante comum o choque ou a contraposio de vises de
mundo dspares. Tais contradies, contudo, no so extirpadas, mas sim,
alimentadas. Ou seja, elas estaro explicitamente presentes dentro da obra,
revelando cises inerentes ao grupo. Por outro lado, haver o movimento de busca
por territrios intermedirios, mnimos denominadores comuns, enfim, solues
viveis para que os diferentes pontos de vista sejam atendidos (SILVA, 2008, p. 80).
No processo colaborativo do grupo Teatro da Vertigem o exerccio constante para a
agregao das individualidades e os seus diferentes pontos de vista o trabalho de ouvir o
outro e tentar encontrar solues na criao em que todos sejam atendidos. O confronto entre
os posicionamentos e o atrito entre as opinies deve ser um iderio construtivo, o que torna o
trabalho mais desafiador para grupos com esse perfil. O objetivo em atender todas as
individualidades no processo de criao construdo atravs de uma tica interna capaz de
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conter o pensamento egocntrico e autoritrio nas relaes do grupo. Mesmo assim,
importante ressaltar repetidas vezes que este objetivo pode ser alcanado ou no
dependendo da relao dos membros. E pode ocorrer, em casos mais srios, o cancelamento
do espetculo ou o encerramento do grupo (FISHER, 2010).
No procedimento da criao coletiva ou processo colaborativo existem choques e
tenses que buscam soluo atravs da dialtica das decises, do posicionamento crtico e da
criao, afirmados nos conflitos da dinmica do grupo. E na citao a seguir a autora aponta
tambm suas possveis diferenas.
O diferencial encontra-se no resultado final que, enquanto na criao coletiva usual
considerar todas as opinies e sintetiz-las de acordo com o ideal do grupo, no
processo colaborativo, o responsvel pelo seu campo estabelecido de acordo com a
diviso das funes quem ir determinar o ajuste que melhor responde ao
cnica (FISHER, 2010, p. 80).
Ou seja, de acordo com a autora, enquanto na criao coletiva as funes so lquidas
e solucionadas por todos os criadores, no processo colaborativo, apesar da ordem coletiva
presente no processo, h a presena de responsveis por cada funo, que durante a
construo do espetculo, recebem colaboraes externas.
importante colocar que essas condies do fazer teatral no so colocadas como
metodologias nicas de trabalho, mas como espaos de vivncias e experincias colocadas em
jogo e determinadas a partir das regras modificveis espao de erros, tentativas, repeties e
experimentaes. Ou seja, cada processo pode ser considerado nico e especfico com
potncias de criao, que no possuem princpios que so reproduzidos, e sim, estabelecidos e
movimentados em cada processo. Dessa forma, podemos destacar: proposies
horizontalizadas, funes especficas ou coletivizadas, interferncias constantes,
experimentaes criativas, dilogo de complementaridade, ausncia de hierarquias ou
hierarquias momentneas, dentre outros. Em entrevista realizada por Stela Fischer para sua
pesquisa de mestrado, temos uma colocao de Paulo Flores, diretor, fundador e membro de
grupo i Nis Aqui Traveiz a respeito da soluo das divergncias e choques no processo de
criao do grupo.
O que define o trabalho do i Nis a ideologia bem precisa que a nossa base.
Agora, como se alcana que todos os integrantes caminhem no mesmo sentido,
mesmo com as diferenas, cada um com sua experincia e no seu momento de vida,
realmente uma dificuldade. O teatro s se realiza porque encontramos o equilbrio,
o trabalho do grupo se harmoniza. O que move o grupo acreditar que seja possvel
construir uma relao socialista, solidria. Estamos nessa busca de harmonizar
(Entrevista de Paulo Flores para Stela Fischer, em julho de 2002).
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O constante exerccio na luta pela equalizao das diferenas e o anseio pela
equiparao dos modos de pensamento o trabalho rotineiro e o quebra-cabea que
movimenta os processos de criao do grupo do sul do pas. O conflito e as tenses so
trabalhados com o objetivo de encontrar um possvel equilbrio que harmonize o ideal do
projeto na criao. Na citao observo que h uma preocupao no respeito pelo
posicionamento do outro e uma busca permanente pela compreenso. O que no deve ser
fcil, mas construdo diariamente.
No trabalho em grupo com criao coletiva ou processo colaborativo h um
movimento de destruio, construo e reconstruo. Processos de criao em nvel de
linguagem, de conceituao e procedimentos. Os artistas esto sujeitos a um processo
desafiador e instvel em que a interferncia de todos os indivduos do grupo causa a
confrontao necessria construo do espetculo. Desta forma, tem-se uma criao baseada
na obra em processo por conta do acaso, dos acontecimentos, das falhas e experimentaes na
trajetria da criao. A obra nunca est totalmente encerrada ou construda por materiais
slidos, mas pela adio de procedimento, de recortes, solues, problemas, dificuldades e
descobertas. O tempo necessrio para a criao