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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL MARYLU ALVES DE OLIVEIRA DA TERRA AO CÉU: CULTURAS POLÍTICAS E DISPUTAS ENTRE O TRABALHISMO OFICIAL E O TRABALHISMO CRISTÃO NO PIAUÍ (1945-1964) FORTALEZA 2016

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR

    CENTRO DE HUMANIDADES

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL

    MARYLU ALVES DE OLIVEIRA

    DA TERRA AO CU:

    CULTURAS POLTICAS E DISPUTAS ENTRE O TRABALHISMO OFICIAL E O

    TRABALHISMO CRISTO NO PIAU (1945-1964)

    FORTALEZA

    2016

  • 1

    MARYLU ALVES DE OLIVEIRA

    DA TERRA AO CU:

    CULTURAS POLTICAS E DISPUTAS ENTRE O TRABALHISMO OFICIAL E O

    TRABALHISMO CRISTO NO PIAU (1945-1964)

    Tese apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Histria Social da Universidade

    Federal do Cear, como requisito parcial para

    obteno do ttulo de Doutor em Histria. rea

    de concentrao: Cultura e Poder.

    Orientadora: Prof.a

    Dr.a Ana Amlia de Moura

    Cavalcante de Melo.

    FORTALEZA

    2016

  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao Universidade Federal do Cear

    Biblioteca UniversitriaGerada automaticamente pelo mdulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

    O1t OLIVEIRA, Marylu Alves de. DA TERRA AO CEU: : Culturas polticas e disputas entre o trabalhismo oficial e o trabalhismo cristono Piau (1945-1964) / Marylu Alves de OLIVEIRA. 2016. 532 f. : il. color.

    Tese (doutorado) Universidade Federal do Cear, Centro de Humanidades, Programa de Ps-Graduaoem Histria, Fortaleza, 2016. Orientao: Profa. Dra. Ana Amlia de Moura Cavalcante de Melo.

    1. Culturas Polticas. 2. Trabalhismo Oficial. 3. Trabalhismo Cristo. 4. Piau. I. Ttulo. CDD 900

  • 2

    MARYLU ALVES DE OLIVEIRA

    DA TERRA AO CU:

    CULTURAS POLTICAS E DISPUTAS ENTRE O TRABALHISMO OFICIAL E O

    TRABALHISMO CRISTO NO PIAU (1945-1964)

    Tese apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Histria Social da Universidade

    Federal do Cear, como requisito parcial para

    obteno do ttulo de Doutor em Histria. rea

    de concentrao: Cultura e Poder.

    Aprovada em: ________/______/_______.

    BANCA EXAMINADORA

    __________________________________________________________

    Prof.a Dr.

    a Ana Amlia de Moura Cavalcante de Melo (Orientadora)

    Universidade Federal do Cear - UFC

    __________________________________________________________

    Prof. Dr. Jorge Ferreira

    Universidade Federal Fluminense - UFF

    __________________________________________________________

    Prof. Dr. Francisco Alcides do Nascimento

    Universidade Federal do Piau - UFPI

    __________________________________________________________

    Prof.a Dr.

    a Berenice Abreu de Castro Neves

    Universidade Estadual do Cear - UECE

    __________________________________________________________

    Prof. Dr. Frederico de Castro Neves

    Universidade Federal do Cear - UFC

    __________________________________________________________

    Prof. Dr. Tyrone Apolle Pontes Cndido

    Universidade Federal do Cear UFC

    __________________________________________________________

    Prof.a Dr.

    a Adelaide Maria Gonalves Pereira

    Universidade Federal do Cear UFC

  • 3

    minha av, Antnia (in memoriam). Parte

    mais doce do meu passado. Trabalhadora rural

    pobre, analfabeta, profundamente catlica e

    descrente da poltica partidria. Poderia ter

    sido um dos sujeitos investigados neste estudo,

    mas durante o percurso da pesquisa, no auge

    de seus 91 anos, deixou-nos.

    Observadora do meu cotidiano escolar e

    acadmico, sempre quis saber quando acabaria

    meus estudos formais, visto que todas as

    outras pessoas que ela conhecia haviam

    terminado, menos eu. Ramos disso.

    A voc, minha av, meu amor, dedico essas

    letras que tanto a encabularam.

    Ao meu pequeno Pedro. Parte esperanosa do

    meu futuro.

    A voc, meu filho, dedico uma outra parte de

    mim que se traduz em palavras que s mais

    tarde compreender. Que seu mundo seja leve

    e que abrace o bom, o belo e o justo.

    Ao Tgory, por me acompanhar nesse

    delicioso caos que a vida, ontem e hoje.

    A voc, todo amor.

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    Esse o momento em que percorremos a trajetria de construo de nosso estudo

    e, de forma clara, percebemos que por mais solitria que seja a tarefa da escrita, o resultado

    final somente se torna possvel porque edificado na juno de apoios e afetos.

    Aos amigos que me acompanham na vida e na academia: Hellen Lopes,

    Nilsngela Cardoso, Elson Rabelo, Luciana Lima, Mairton Celestino, Emlia Nery, Jos

    Maria, Francisco Nascimento, Jsi Firmino, Ada Raquel, Jaison Castro, Iael Sousa, Ileana

    Soares, Nelma Lopes e Warrington Veras (in memoriam). Agradeo ao acaso por nossos

    caminhos terem se cruzado no que Hannah Arendt chama de milagre da existncia.

    queles que dedicaram seu tempo para se debruar sobre meus escritos: Elson

    Rabelo, Raquel Costa e Marysol Oliveira. Minha eterna gratido s suas sugestes e crticas.

    Pelo incondicional apoio em todos os momentos, agradeo minha orientadora,

    Ana Amlia Melo. Doce, atenta, disposta e leve, conseguia transformar duas, trs, s vezes

    quatro horas de orientao em agradveis conversas sobre a proposta da tese, sobre como

    escrever, como gestar o pensamento, como tornar o texto aprazvel. Foi suporte emocional e

    intelectual que me guiou nesses anos. Humana em demasia, tornou-se, para mim, mais um

    exemplo da forma como devo tratar aqueles com quem me relaciono no espao acadmico.

    Sou-lhe imensamente grata pela orientao e convivncia.

    Aos professores do Departamento de Ps-Graduao em Histria da UFC, em

    especial a Antonio Gilberto Ramos Nogueira, Frederico de Castro Neves, Ivone Cordeiro

    Barbosa, Joo Ernani Furtado Filho, Knia Sousa Rios, Meize Lucas e Ana Rita Fonteles,

    professores das disciplinas que contriburam de forma consistente no apenas para a feitura da

    tese, mas, sobretudo, para minha formao intelectual.

    Um agradecimento particular aos professores que participaram da banca de

    qualificao, Frederico de Castro Neves e Francisco Alcides do Nascimento. Suas

    contribuies, crticas e sugestes possibilitaram novos olhares e outros rumos para este

    estudo.

    Aos amigos que conquistei na turma de 2012 do doutorado: Cesinha, Raquel,

    talo, Karol, Joaquim, Rafael, Antonio e Jofre.

    Aos funcionrios do Arquivo Pblico do Piau, Casa Ansio Brito; da Biblioteca

    Pblica Estadual do Piau, Cromwell de Carvalho; da Universidade Federal do Piau, Campus

    Ministro Reis Veloso; do Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do

    Brasil da Fundao Getlio Vargas, no Rio de Janeiro. Agradeo-lhes pela disposio em

  • 5

    ajudar com o aporte documental deste estudo. Aos padres Tony Batista e Raimundo Jos

    Ayremorais, pelo acesso ao acervo pessoal de ambos, meu muito obrigada.

    Meu agradecimento especial aos companheiros de pesquisa Joo Carlos Borges e

    Dalva Fontenele pela indicao de fontes e envio de documentos.

    Aos queridos professores da Universidade Federal do Piau, minha eterna

    gratido: Francisco Alcides do Nascimento, Pedro Vilarinho Castelo Branco, Teresinha

    Queiroz, Edwar de Alencar Castelo Branco, Elizngela Barbosa, Vernica Carvalho, Paulo

    ngelo Meneses.

    Aos colegas do Curso de Histria do Campus Senador Helvdio Nunes de Barros,

    em especial a Gleison Monteiro, Francisco Nascimento, Nilsngela Cardoso, Mairton

    Celestino e Agostinho Coe, por terem aprovado meu afastamento, possibilitando a dedicao

    exclusiva minha pesquisa.

    Aos queridos alunos do Curso de Histria, em especial aos bolsistas-

    pesquisadores do grupo de estudo em Teoria da Histria: Kelly Mrcia, Elierson, Eveline,

    Larice ris, Luan, Jos Paulo, pelo incentivo e carinho, obrigada.

    A Ceicinha, pela reviso do texto e pela gentileza cotidiana, meu agradecimento.

    Fapepi /Capes pela concesso da bolsa de estudos por dois anos.

    Aos meus pais, Raimunda e Arimatea, agradeo o amor incondicional, e peo

    desculpas pelas ausncias em momentos especiais para a famlia, em razo da escrita deste

    trabalho. Certamente, sem o imenso esforo que vocs fizeram para que eu sasse do interior e

    fosse estudar na capital, hoje no estaria defendendo este trabalho. Vocs so exemplo de

    afeio maior.

    Ao meu companheiro, Tgory. Agradeo por ser esteio, amparo, fora, amor, e

    principalmente por compartilhar comigo a vida do Pedro.

    Ao meu filho Pedro, que j nasceu me ensinando que tudo tem seu tempo. E que

    esse era o tempo certo para ele vir. Que tambm era o tempo certo para terminar um ciclo.

    Obrigada, filho, por chegar no tempo certo.

  • 6

    Prepare seu corao pras coisas que eu vou

    contar

    Eu venho l do serto, eu venho l do serto

    Eu venho l do serto e posso no lhe agradar.

    Aprendi a dizer no, ver a morte sem chorar

    E a morte, o destino, tudo, a morte e o destino,

    tudo

    Estava fora do lugar, eu vivo pra consertar.

    (Disparada Geraldo Vandr).

  • 7

    RESUMO

    Este estudo tem como objetivo central analisar as tentativas de implantao de projetos

    trabalhistas no Piau, em meio s especificidades da cultura poltica partidria e popular

    local, entre as dcadas de 1940 e 1960. Utilizaram-se para alcanar tal intento os jornais de

    circulao local de forma geral ligados aos partidos polticos, tambm livros de memria,

    Inquritos Policiais Militares (IPMs) instaurados durante o golpe civil-militar de 1964 e obras

    literrias. Esse emaranhado de fontes foi necessrio, uma vez que se precisava investigar

    densamente, seguindo a perspectiva da Antropologia Histrica, o Contexto Cultural no qual

    emergiram aqueles projetos trabalhistas e como se constituam aquelas culturas polticas. Ao

    se debruar sobre esse arcabouo, uma problemtica surgiu: como esses trabalhismos

    ganharam visibilidade em mbito local? Aps um acidente, durante a campanha eleitoral de

    1958, em que um dos candidatos ao governo do Estado faleceu, as sensibilidades populares

    compensaram eleitoralmente o candidato substituto, o petebista Francisco das Chagas Caldas

    Rodrigues. Surgido das hostes do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), aquele poltico tentou

    implantar um projeto trabalhista oficial, atuando conforme plano nacional do partido,

    fomentando o desenvolvimento social, o assistencialismo, e apoiando a Reforma Agrria. A

    outra proposta surgiu do seio de uma das instituies mais respeitadas em solo piauiense, a

    Igreja Catlica, em razo da chegada ao Estado do arcebispo Dom Avelar Brando Vilela. A

    esse projeto, por sua vez, denominamos de trabalhismo cristo. Tais propostas, que visavam

    produzir melhorias nas condies de vida dos trabalhadores pobres, sofreram resistncias da

    cultura poltica partidria local, em especial no que se refere Reforma Agrria. Apenas uma

    delas, o trabalhismo cristo, conseguiu estabelecer um pacto com os trabalhadores locais por

    um breve perodo, em virtude da fora da religio enquanto importante componente cultural

    daquela sociedade, ou melhor, como elemento da cultura poltica popular. Portanto,

    compreender o fracasso das tentativas de implantao de um trabalhismo oficial e cristo

    acabou se tornando uma forma de compreender tambm como funcionavam as culturas

    polticas partidria e popular no estado do Piau.

    Palavras-chave: Culturas Polticas. Trabalhismo oficial. Trabalhismo Cristo. Piau.

  • 8

    ABSTRACT

    This study aimed to analyze the attempts of setting up labour's projects in the state of Piau, in

    the midst of the peculiarities of popular and partisans political cultures of that place, between

    the 1940s and 1960s. For reaching this goal, we had as sources the newspapers of local

    circulation, usually linked to local political parties, published memories, military police

    inquiries instituted after the coup dtat of 1964, and also literary works. This range of

    sources was necessary once we needed to thickly investigate, under the perspective of

    Historical Anthropology, the cultural background in which those labour practices emerged

    and how were established that political cultures. The problematization that came up was: how

    the labourism was able to make itself visible in the local context? After a fatal accident,

    during the political campaign of 1958, in which one of the candidates of the state government

    passed away, the popular sensitivities endorsed, in a compensatory way, the substitute

    candidate, Francisco das Chagas Caldas Rodrigues. A member of the Partido Trabalhista

    Brasileiro (Brazilian Labour Party), Chagas tried to institute an official labour project,

    following the national program of the party, fostering the social development, the welfarism,

    and supporting the agrarian reform. The other project arose from Catholic church, one of the

    most respected institutions in piauiense state, since the arrival of the archbishop Dom Avelar

    Brando to that state. This project was named christian labourism. These projects, that aimed

    the improvement of life condition of poor workers, suffered resilience from the local political

    parties, mainly in respect to the issue of agrarian reform. Only one of the mentioned projects,

    the christian labourism, was able to establish the pact, for a short period, with the local

    workers, in virtue of the strength of the religion as an important cultural element of that

    society and, ultimately, as element of popular political culture. Therefore, the understanding

    on the failure of the attempts of setting up both institute, an official and christian labourism,

    turned out to be a way to reveal also how the process of instauration of popular and partisans

    political cultures in the state of Piau took place.

    Keywords: Political cultures. Official labourism. Christian labourism. Piau.

  • 9

    LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1 - Demerval Lobo: o grande lder.......................................................................... 49

    Figura 2 - Campanha de Marcos Parente............................................................................. 51

    Figura 3 - Os dois mrtires do Piau.................................................................................... 56

    Figura 4 - Desastre cobriu de luto o Piau........................................................................... 62

    Figura 5 - Capa do Jornal do Comrcio.............................................................................. 75

    Figura 6 - Capa do jornal Folha da Manh......................................................................... 90

    Figura 7 - Fotografia do acidente tirada por Tot Barbosa 1............................................... 102

    Figura 8 - Fotografia do acidente tirada por Tot Barbosa 2............................................... 102

    Figura 9 - Fotografia do acidente tirada por Tot Barbosa 3............................................... 103

    Figura 10 - Fotografia do acidente tirada por Tot Barbosa 4.............................................. 103

    Figura 11 - Fotografia do acidente tirada por Tot Barbosa 5.............................................. 104

    Figura 12 - Assassinato do vigilante Miguel Pedro.............................................................. 124

    Figura 13 - Fotografia do velrio de Miguel Pedro............................................................... 126

    Figura 14 - Fotografia de Luiz Enfermeiro............................................................................. 130

    Figura 15 - Fotografia de Tiago Jos da Silva....................................................................... 194

    Figura 16 - Parlamentares Piauienses 1962........................................................................... 195

    Figura 17 - Trabalhadores...................................................................................................... 208

    Figura 18 - Campons e Criana............................................................................................ 209

    Figura 19 - Associao Profissional dos Camponeses e Lavradores de Parnaba................. 214

    Figura 20 - Esperidio Fernandes.......................................................................................... 220

    Figura 21 - Chagas Rodrigues............................................................................................... 229

    Figura 22 - Propaganda Eleitoral Chagas Rodrigues............................................................. 235

    Figura 23 - Artigo Rabiscado................................................................................................ 246

    Figura 24 - Ponte dos Trabalhadores..................................................................................... 279

    Figura 25 - Prdio do Departamento de Estradas de Rodagem............................................. 280

    Figura 26 - Chagas Rodrigues e Estudantes.......................................................................... 311

    Figura 27 - Ligas Camponesas.............................................................................................. 324

    Figura 28 - Revoltante........................................................................................................... 338

    Figura 29 - A Porca Fantasma............................................................................................... 340

    Quadro 1 - PTB no Legislativo Estadual.............................................................................. 349

    Quadro 2 - PTB piauiense no Legislativo Federal.................................................................. 349

  • 10

    Figura 30 - Propaganda da Lec............................................................................................. 376

    Figura 31 - O Comunismo..................................................................................................... 379

    Figura 32 - Fotografia de Dom Avelar Brando Vilela.......................................................... 385

    Figura 33 - Faculdade Catlica de Filosofia do Piau............................................................ 389

    Figura 34 - Sala de Aula do Centro Social Nossa Senhora de Ftima.................................. 390

    Figura 35 - Inaugurao 1...................................................................................................... 413

    Figura 36 - Inaugurao 2...................................................................................................... 413

    Figura 37 - Dom Avelar na Multido.................................................................................... 418

    Figura 38 - I Congresso Eucarstico...................................................................................... 420

    Figura 39 - Operrio Catlico............................................................................................... 432

    Figura 40 - Concentrao....................................................................................................... 454

  • 11

    SUMRIO

    1 INTRODUO......................................................................................................... 13

    PARTE I NO CONTEXTO DAS CULTURAS POLTICAS............................ 44

    2 ENTRE MORTOS E FERIDOS, SALVARAM-SE TODOS!.............................. 45

    2.1 Os dois mrtires do Piau...................................................................................... 46

    2.2 Nas manchetes dos jornais........................................................................................ 50

    2.3 Vitria aos vivos, compensao aos mortos............................................................ 76

    3 NA FURNA DA ONA: A ORGANIZAO DOS PARTIDOS POLTICOS

    NO PS-1945 E A TRAJETRIA DO PTB NO PIAU......................................

    108

    3.1 UDN e PSD: poltica partidria na furna da ona................................................. 108

    3.2 PTB no Piau: um breve itinerrio (1946-1958)..................................................... 137

    3.3 O pacto dos camundongos: PTB-UDN em 1958..................................................... 167

    4 ENTRE O LABOR E A POBREZA: OS TRABALHADORES DO CAMPO

    E DA CIDADE NAS DCADAS DE 1950 E 1960 NO PIAU.............................

    171

    4.1 O mendigo da Federao ou a gata borralheira da Repblica............................. 174

    4.2 Os trabalhadores pobres do Piau: entre a fome e a organizao........................ 180

    4.3 Da f ao trabalho: a relao do trabalhador pobre com a religio catlica no

    Piau...........................................................................................................................

    224

    PARTE II - DA TERRA AO CU: AS DISPUTAS PELO TRABALHISMO

    NO PIAU NAS DCADAS DE 1950 E 1960........................................................

    226

    5 QUE O SOL BRILHE PARA TODOS: UM GOVERNO TRABALHISTA

    NO PIAU..................................................................................................................

    227

    5.1 The right man in the right place: pequeno esboo biogrfico-poltico de

    Chagas Rodrigues.....................................................................................................

    229

    5.2 O trabalhismo oficial no Piau................................................................................... 253

    5.2.1 O trabalhismo tem por finalidade pugnar pelo bem-estar das massas..................... 256

    5.2.2 O desenvolvimentismo como parte do projeto trabalhista piauiense......................... 271

    5.2.3 Justia Social.............................................................................................................. 281

    5.3 Trabalhismo, a quem te destinas? Trabalhadores, operrios, sindicatos,

    estudantes, pobres e camponeses............................................................................

    302

    6 DEMAGOGIA AO MLHO PARDO: OPOSIO E RESISTNCIA AO

    TRABALHISMO OFICIAL...................................................................................

    315

  • 12

    6.1 Que ladrem os ces ao cavalheiro que passa ao largo: a cultura poltica

    partidria local enfrenta o trabalhismo oficial......................................................

    315

    6.2 As ideias eram do Rio de Janeiro, no eram daqui! A derrota na eleio de

    1962............................................................................................................................

    341

    6.3 J votou? J sim! No valho mais nada!.............................................................. 352

    7 PERDO PARA O CASTIGO DE ADO: O TRABALHISMO CRISTO

    NO PIAU..................................................................................................................

    371

    7.1 A relao entre a Igreja Catlica e a poltica no Piau entre as dcadas de

    1940 e 1950................................................................................................................

    373

    7.2 Dom Avelar, o popstar da Igreja............................................................................. 385

    7.3 Massas trabalhadoras de Cristo e da Igreja........................................................... 398

    7.4 Igreja e Estado: quando dois projetos trabalhistas se encontram........................ 411

    7.5 Trabalhismo agrrio cristo: a reforma agrria e a Igreja Catlica no Piau.... 423

    8 CONSIDERAES FINAIS................................................................................... 458

    REFERNCIAS........................................................................................................ 466

    ANEXOS.................................................................................................................... 522

  • 13

    1 INTRODUO

    Uma das coisas que quase todo mundo conhece,

    mas no sabe muito bem como demonstrar que a

    poltica de um pas reflete o modelo de sua

    cultura.1

    A alma piauiense no dia de hoje reanima-se. Levanta seu pensamento para

    Deus, implorando a graa de conceder ao dr. Francisco das Chagas Caldas

    Rodrigues, a ventura de desenvolver um programa de govrno que seja

    plasmado na realidade que interessa nossa gente e ao nosso Estado.

    [...] Estivemos no serto em contato com o homem simples e bom daquelas

    paragens. Ouvimos as suas mgoas, as suas queixas, os seus desenganos.

    Indo ao seu encontro, prometemos-lhes, pela voz dos caravaneiros da causa

    comum, a ajuda que nossas fras permitem para melhorar as condies de

    vida da abandonada populao rural. Fomos ao litoral. Entendemo-nos com

    as classes trabalhadoras daquela estreita faixa martima para dizer-lhe dos

    propsitos que guiavam a nossa andana por todo o territrio do Piau

    sofredor. E, quando aproximvamos da hora que iria decidir os destinos da

    coletividade, fomos feridos pelo pso cruel da fatalidade inexorvel. A

    morte, impiedosa e brutal, em circunstncias trgicas, levou cinco dos mais

    arrojados batalhadores. Jos Raimundo [...] Rubens Perlingeiro [...], Jos de

    Ribamar Pacheco [...] DEMERVAL LOBO VERAS [...] e MARCOS DOS

    SANTOS PARENTE [...]. E os companheiros que ficaram conseguiram a

    caminhada, certo, abatidos pela dor que golpeou a sua sensibilidade de

    aliados, unidos pela f inquebrantvel de princpios e pelos mesmos

    sentimentos de solidariedade humana. Conquistaram o triunfo nas urnas. Foi

    uma vitria completa. [...]

    A posse do Sr. Chagas Rodrigues, curul governamental, o resultado de um

    sacrifcio, - repetimos - do qual ele participou, sem tergiversao. [...]

    O Piau exige renncia e abnegao dos seus filhos. Quer progredir. Demos

    oportunidade ao novo governo para que le desempenhe a sua misso

    altura das aspiraes da alma popular. Reanimemo-nos. Sursum corda!2,3

    Os piauienses no ano de 1958 escolheram o seu primeiro e nico governador pelo

    Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Francisco das Chagas Caldas Rodrigues. Eleito com

    menos de um ms de campanha, teve seu nome lanado ao cargo de chefe do Executivo

    estadual em decorrncia da morte do candidato anterior em acidente automobilstico. O perfil

    jovial, dinmico, intelectual, de trato fino e elegante, do candidato Chagas Rodrigues - ex-

    deputado federal pela Unio Democrtica Nacional (UDN) e ingressante em 1954 nas fileiras

    petebistas - foi galgando posies de destaque no cenrio nacional partidrio e de forma

    meterica chegou ao Executivo estadual, com apenas 36 anos de idade.

    Observa-se que o trecho transcrito do jornal Folha da Manh, noticioso udenista

    apoiador do governador recm-empossado, descreve a trajetria do processo eleitoral de 1958

    1 GEERTZ, Clifford. A Interpretao das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2012a, p. 135.

    2 Todas as citaes esto com a grafia da poca.

    3 SURSUM Corda. Folha da Manh, Teresina, p. 1, 31 jan. 1959.

  • 14

    at a vitria do candidato petebista. O jornalista, alm de narrar o acidente que vitimara o

    pleiteante anterior do PTB, Demerval Lobo4, tentava reforar o comprometimento do

    governador eleito com as propostas feitas durante a campanha por seu antecessor, assim como

    tambm solicitava que se mantivesse altura da alma piauiense. Em algum momento, essa

    alma piauiense declinou seu querer por Chagas Rodrigues como seu representante, e quatro

    anos depois no sentiu tanta empolgao pela figura do trabalhista. Por qual razo?

    Durante a trajetria como pesquisadora da histria poltica do Piau,

    constantemente defrontava-se com a figura daquele jovem governador petebista. Relutava em

    tomar como objeto de estudo um exerccio governamental, em razo do carter tradicional da

    proposta, permeada pela ideia da produo de uma histria poltica clssica, ou seja, uma

    histria oficial. Entretanto, observando o delinear da produo da histria poltica dos ltimos

    tempos, compreendeu-se que Os objectos tradicionais da histria poltica no perderiam a

    sua pertinncia; tratar-se-ia apenas de os abordar por outras vias e, em primeiro lugar

    desconfiar da letra dos textos. Ao contrrio do mtodo positivista, que busca as certezas, a

    ateno concentrar-se-ia antes sobre as ambiguidades.5 Como previsto nessa observao de

    Yves-Marie Berc, o contato com esse sujeito histrico acabou se tornando mais complexo do

    que o esperado, em especial na sua relao com os elementos populares e as velhas prticas

    polticas tradicionais. Explica-se. Herdeiro de um rico comerciante e casado com a filha de

    abastada famlia do Piau, Chagas Rodrigues rapidamente fez carreira na poltica, segundo

    rumores da imprensa, com a utilizao do poder econmico, iniciando-se poltico nas fileiras

    udenistas para, anos depois, construir sua imagem como um dos maiores nomes do

    trabalhismo no Estado, adentrando o rol dos cassados pelo AI-5 em 1968. Sua relao

    prxima com Leonel Brizola, as propostas avanadas de reforma agrria e o discurso

    alinhado, em grande medida, com a esquerda radical do PTB, muitas vezes no se

    conjugavam sua histria familiar, sua fala eloquente de formao clssica jurdica,

    tampouco aos ternos de corte irretocvel e aparncia de gal de cinema hollywoodiano, que

    tanto agradavam a elite local. Mas foi esse homem quem lanou no Estado, como nenhum

    governador o fizera antes, um projeto de governo voltado para os trabalhadores, seguindo o

    contedo iderio-poltico do seu partido. A conduta e condio de existncia daquele

    governador produzia inquietao, pois sintomaticamente se tinha que situ-lo tanto como

    construtor de um projeto de futuro para os trabalhadores quanto como integrante da elite

    4 O perfil do poltico Demerval Lobo ser apresentado no segundo captulo.

    5 BERC, Yves-Marie. Rumores dos sculos modernos. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-Franois.

    Para uma nova histria cultural. Lisboa: Estampa, 1998. p. 173-181, p. 174.

  • 15

    piauiense de formao intelectual-jurdica, ativista dos velhos esquemas poltico-partidrios e,

    por fim, apoiador de novas ideias. Essa condio instigava a investigar tal trajeto. Partindo-se

    dessa percepo, resolveu-se, inicialmente, refletir sobre aquele governo trabalhista.

    No decorrer da pesquisa percebeu-se ainda que, ao final de seu mandato, com

    pouco apoio dentro do prprio partido, isolado politicamente, sem visibilidade entre os

    trabalhadores, a quem teria dedicado seu mandato, amargou a derrota de seu sucessor e a

    runa de sua candidatura ao Senado, ficando apenas com a vaga de deputado federal, no

    galgando, com essa vitria, a glria da maior votao entre os pleiteantes.6 Diante disso,

    surgiam problemas cruciais para a pesquisa, tais como: por que os trabalhadores rejeitaram o

    pacto trabalhista lanado por aquele governante? Por que, quatro anos aps adentrar os sales

    do Palcio de Karnak7, Chagas Rodrigues no era mais o escolhido da alma piauiense? O

    trabalhismo oficial havia falhado no Piau? Observou-se que, durante boa parte daquela

    administrao, Chagas Rodrigues sofreu forte rejeio por parte da oposio poltica

    partidria, e a averso crescia na medida em que as aes destinadas parcela mais pobre da

    populao do Estado iam ganhando visibilidade. Para alm das acusaes de demagogo, o

    governador, que se afirmava catlico, sofreu ainda a pecha de comunista, algo que

    veementemente negou durante toda a vida. Tais denncias lembravam as mesmas

    manifestaes contrrias ao presidente Joo Goulart, que anos mais tarde ajudariam a compor

    o cenrio de sua deposio em 1964. No que se refere ao piauiense, comeou-se a perceber a

    possibilidade de uma abordagem histrica distinta de um enfoque tradicional, por fornecerem

    elementos que no apenas ajudariam a compreender a atuao do governador do PTB no

    Piau, mas tambm a realizar uma anlise do contexto cultural, da cultura poltica partidria

    e da cultura poltica popular.8

    Nesse momento em que a poltica partidria piauiense fazia tal deslocamento, e

    como o debate se estendia a todos os setores sociais, pde-se observar que outro representante

    importante da sociedade local se articulava em busca de solues para o cotidiano dos

    trabalhadores, conseguindo a ateno e a adeso de um nmero importante de sujeitos com

    sua atuao diferenciada da empregada pela poltica tradicional. Foi nesse momento que

    adentrou em nossa pesquisa a figura de Dom Avelar Brando Vilela, arcebispo metropolitano

    de Teresina desde 1951. O prelado chegou ao Piau com a misso de promover a f crist,

    contudo voltou-se para outras demandas sociais, disputando espao de atuao com a prpria

    6 Na legislao eleitoral da poca o candidato poderia se lanar em mais de uma candidatura. Chagas Rodrigues

    candidatou-se aos cargos de senador e deputado federal. 7 Sede do governo do Piau.

    8 Os conceitos sero analisados na parte metodolgica do trabalho, ainda nesta introduo.

  • 16

    figura do governador Chagas Rodrigues. Dentre as aes daquele arcebispo, a que mais

    chamou ateno dos polticos e da sociedade de uma forma geral, foi o incentivo

    participao de membros do clero e leigos na organizao dos sindicatos rurais no Estado.

    Destarte, a Igreja Catlica e o governo do Estado no Piau, entre 1950 e 1960, voltaram suas

    atenes e aes para o espao do trabalho e o cotidiano dos trabalhadores.

    A preocupao com os trabalhadores, demonstrada naquele momento pelo

    governador do Estado com seu projeto trabalhista oficial, e pela Igreja Catlica com o que se

    passou a denominar de projeto trabalhista cristo, era patente. Segundo o intelectual

    piauiense Wilson Brando, o trabalhismo havia se tornado moda no s no Brasil, mas

    tambm no Piau,9 estado onde atuou para alm das fileiras partidrias. Em alguns momentos

    estes projetos trabalhistas, oficial e religioso, caminharam juntos, at desvelar-se uma disputa

    sobre quem lideraria os trabalhadores, em especial os da zona rural.

    Sobre o trabalhismo oficial10

    proposto pelo PTB, observou-se que estava em

    consonncia com um movimento poltico no apenas nacional, mas que deixava marcas

    importantes na cultura poltica latino-americana.11

    Uma gerao de polticos no hemisfrio

    sul compreendeu que precisava chegar at a populao, em especial aos segmentos

    trabalhadores, no que veio a se tornar uma nova maneira de praticar poltica. Nesse sentido, se

    houve um aspecto comum entre as vrias formas de conduzir o exerccio da poltica na

    Amrica Latina, certamente foi a aproximao com as massas trabalhadoras. No Brasil, essa

    posio poltica recebeu o nome de trabalhismo, e encontrou no PTB o responsvel por

    capitane-la. Os partidrios da sigla sabiam dessa caracterstica e a elegiam como um dos

    9 BRANDO, Wilson Nunes. Mitos e legendas da poltica piauiense. Teresina: Grfica do Povo, 2006.

    10Segundo Luclia de Almeida Neves Delgado apontou, o prprio PTB utilizava expresses como trabalhismo

    oficial e autntico, de maneira a definir a sua atuao. Entretanto, o uso do termo trabalhismo no foi uma

    caracterstica nica daquela sigla, no recorte mencionado (DELGADO, Luclia de Almeida Neves. PTB: do

    Getulismo ao Reformismo (1945-1964). 2. ed. So Paulo: LTr, 2011). Segundo Angela de Castro Gomes e

    Maria Celina DArajo, no plano poltico partidrio o trabalhismo teria sido apropriado por diversas siglas,

    como, por exemplo, o Partido Social Trabalhista (PST); o Partido Trabalhista Nacional (PTN); o Partido

    Republicano Trabalhista (PRT); o Partido Orientador Trabalhista (POT); o Movimento Trabalhista Renovador

    (MTR), alm do PTB (GOMES, Angela de Castro; DARAJO, Maria Celina. Getulismo e trabalhismo. So

    Paulo: tica, 1989). Para os militantes petebistas essas siglas seriam portadores de um trabalhismo no

    autntico, configurando-se o PTB, nesse sentido, como o real aglutinador das propostas voltadas aos

    trabalhadores. Maria Victoria Benevides tambm se deteve nesse aspecto, quando apontou para uma

    preocupao petebista com a emergncia, nas dcadas de 1950 e 1960, de um trabalhismo independente (que

    no estava ligado ao PTB) e a necessidade de permanecerem nas fileiras do PTB os verdadeiros trabalhistas

    (BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. O PTB e o Trabalhismo: partido e sindicato em So Paulo:

    1945-1964. So Paulo: Brasiliense, 1989). Isso conduz a acreditar, tendo em vista a multiplicao de siglas que

    adotavam o trabalhismo em seu nome, que existia, pelo menos no nvel discursivo, uma necessidade de

    propagar uma cultura trabalhista no campo poltico. Nesse sentido, o termo trabalhismo poderia compreender

    algo para alm do aparato terico do PTB, como uma ideia que circulava no social, destacando-se como um

    movimento importante da poltica nacional, entre as dcadas de 1940 e 1960. 11

    MACKINNON, Mara Moira; PETRONE, Mario Alberto (Comp.). Populismo y neopopulismo en Amrica

    Latina: el problema de la Cenicienta. Buenos Aires: Eudeba, 1999.

  • 17

    elementos fundantes de atuao do partido, como sugere o trecho da carta encaminhada ao

    presidente Joo Goulart, em 1960, pela bancada federal do partido:

    Presidente,

    Os membros da bancada do Partido Trabalhista na Cmara Federal

    analisando com objetividade a situao poltica nacional, e, particularmente

    o processo sucessrio, chegamos a concluso que nesse instante

    transmitimos ao eminente companheiro, seguros de estarmos interpretando

    preocupaes de trabalhistas de todo o pas.

    Frisamos de logo a observao fundamental, que sabemos coincide com seu

    pensamento, de que o processo eleitoral se vincula, cada vez mais, s

    grandes massas, o que obriga a solues de autntica correspondncia aos

    intersses do povo e destri por inteiro o velho sistema de conchavos de

    cpula. em trno de reivindicaes concretas dos trabalhadores e da luta

    pelo desenvolvimento econmico, em que a nao hoje se empenha, que se

    pode aglutinar as massas brasileiras, transformando assim, inquietaes e

    amarguras na admirvel fra que redime e constri.12

    Aquele era um novo momento do breve perodo republicano (1945-1964), no qual

    os partidos polticos se organizavam e se apresentavam como foras importantes de

    organizao social. Nesse sentido, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), sigla que mais

    cresceu entre as dcadas de 1950 e 1960 no Brasil, tomou para si a funo de representar as

    massas trabalhadoras, denominando-se como o autntico e oficial smbolo trabalhista

    nacional. Ao se definir o trabalhismo petebista no Piau como parte fundamental deste estudo,

    observou-se que a concepo central contida nessa noo reside na ideia de pacto, negociao,

    adeso, especialmente entre os herdeiros de Vargas, presentes no Partido Trabalhista

    Brasileiro, e a populao.13

    Tal acordo, que contava com o ajuntamento entre os populares e a

    ao poltica partidria, era algo profundamente novo, no apenas para a cultura poltica

    partidria e popular piauiense, mas tambm para a cultura poltica brasileira, iniciado em

    mbito nacional em 1945, e somente em 1958 ganhando visibilidade expressiva no Piau.

    Por outro lado, o que se denomina de trabalhismo cristo estava quase totalmente

    centrado em uma corrente da Igreja Catlica ligada aos movimentos mais progressistas como

    a Ao Catlica, os Movimentos de Juventude (Juventude Agrria Catlica, Juventude

    Estudantil Catlica, Juventude Operria Catlica e Juventude Universitria Catlica -

    respectivamente JAC, JEC, JOC e JUC) e o Movimento de Educao de Base (MEB), mas

    sobretudo naqueles cristos empenhados na formao dos sindicatos rurais. Desde a dcada de

    1950, parte da Igreja Catlica no Brasil procurou se aproximar das camadas populares, e, em

    meados de 1960, esse processo se intensificou em razo da campanha de sindicalizao rural,

    12

    DEPUTADOS Federais do PTB. Jornal do Comrcio, Teresina, p. 1, 21/22 jan. 1960. 13

    GOMES, Angela de Castro. A inveno do trabalhismo. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.

  • 18

    conduzida pela Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). No Piau, esse

    trabalhismo atuou alm dos grupos j mencionados a partir de uma forma mais tradicional de

    movimento da Igreja Catlica, os Crculos Operrios. Em muitas parquias, os circulistas

    tornaram-se responsveis pela arregimentao dos trabalhadores, mas foi a ala mais

    progressista quem ditou os caminhos para a articulao crist no meio rural. O trabalhismo

    cristo no Piau foi construdo sob as propostas reformistas da Igreja, mas sobretudo foi

    capturado a partir dos discursos e perspectivas existentes no perodo sobre os trabalhadores

    nacionais. O seio da Igreja no Piau sentiu-se compelido a atuar frente aos direcionamentos do

    Estado, que, em associao com o Partido Comunista, procuravam liderar os trabalhadores

    rurais.

    Os projetos trabalhistas, oficial e cristo, emergiram no Piau no momento em

    que se travava em nvel nacional um importante debate sobre o papel dos trabalhadores.14

    Naquele perodo, observou-se um crescimento expressivo do nmero de trabalhadores

    sindicalizados, assim como a emergncia significativa de organizaes no campo, como as

    Ligas Camponesas e os sindicatos rurais15

    . Na grande maioria dos estados brasileiros foram

    apontadas, tanto pelo discurso oficial como por instituies religiosas ou civis e pelos

    prprios trabalhadores, solues para o cotidiano dos que necessitavam do trabalho para

    sobreviver. Cada regio assinalava a sua especificidade, abrangendo desde uma melhor

    organizao do trabalho urbano e fabril (articulada pelo crescimento das greves e

    organizaes sindicais) at um forte repensar da estrutura agrria e a questo do trabalho no

    campo. Essa ltima questo mostrou-se mais contundente na regio Nordeste, tornando-se, na

    dcada de 1960, a partir da proposta das Reformas Base, o grande mote do debate nacional.

    Diante do exposto, entende-se que o debate em questo, longe de versar sobre o

    fim do trabalho enquanto necessidade social, projetava nacionalmente a ideia de uma

    sociedade de trabalhadores, assim como pensava Hannah Arendt16

    , requerendo, para isso, a

    14

    Ver: LEAL, Murilo. A reinveno da classe trabalhadora (1953-1964). Campinas, SP: Editora da Unicamp,

    2011; MONTENEGRO, Antonio Torres. Agitao poltica e direito trabalhista nos idos de 1964. In: ______;

    GUIMARES NETO, Regina Beatriz; ACIOLI, Vera Lcia Costa (Org.). Histria, Cultura e Trabalho:

    questes da contemporaneidade. Recife: Editora da UFPE, 2011. p. 31-51; PEREIRA, Airton dos Reis.

    Conflitos e mediao: a atuao da Igreja Catlica, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e do Estado na

    questo agrria, no sul do Par. In: CAVALCANTI, Erinaldo; CABRAL, Geovani (Org.). A Histria e suas

    Prticas de Escrita: relatos de pesquisa. Recife: Editora da UFPE, 2013. p. 97-135; STEDILE, Joo Pedro

    (Org.). A questo agrria no Brasil: o debate tradicional: 1500-1960. So Paulo: Expresso Popular, 2005. 15

    Sobre o aumento dos sindicatos rurais e da atuao da Igreja Catlica no campo, ver: STEIN, Leila Menezes.

    Trabalhismo, crculo operrio e poltica: a construo do Sindicato de Trabalhadores Agrcolas no Brasil

    (1954-1964). So Paulo: Annablume; Fapesp, 2008. (Coleo Trabalho e contemporaneidade) 16

    Especificamente sobre a noo de trabalho, percebeu-se que se tratava de palavra em voga durante as dcadas

    de 1950 e 1960, como sugere a filsofa poltica Hannah Arendt em A condio humana. Esse livro contribuiu

    para a reflexo sobre dois aspectos importantes para a composio deste estudo. O primeiro tratava da prpria

  • 19

    articulao de polticas pblicas e aes sociais que vislumbrassem a condio de vida desses

    trabalhadores. Por isso a grande importncia do trabalhismo para o entendimento do perodo.

    Para alm dos enfrentamentos entre si, os projetos trabalhistas que pretendiam se

    instalar no Piau ainda tiveram que enfrentar a cultura poltica partidria, sobre a qual

    ressaltam-se dois aspectos importantes para a compreenso deste estudo. Primeiramente pode-

    se apontar a dimenso rarefeita do contato entre polticos e populao/eleitores, uma vez que a

    constituio da cultura poltica partidria piauiense se atrelava cultura poltica nacional

    dos partidos polticos que emergiu na Repblica ps-1945. De forma especfica, assim como

    ocorreu na grande maioria das siglas em mbito nacional, os partidos polticos piauienses

    formaram-se, organizaram-se e, por fim, escolheram seus representantes sem qualquer arranjo

    popular,17

    tornando aquele espao de atuao poltica avesso participao direta do povo, a

    natureza daquele ensaio filosfico, no qual a noo de trabalho era fulcro para o entendimento da condio

    humana. Para a autora, o trabalho assegura no apenas a sobrevivncia do indivduo, mas a vida da espcie

    (p. 10). O segundo, to importante para a construo desta produo quanto a prpria definio arquitetada

    pela autora, evidencia-se quando se reflete sobre a emergncia daquela obra em um momento histrico

    especfico: no final da dcada de 1950. Percebeu-se que em meio s disputas pela influncia do poder poltico

    entre pases comunistas (ou de socialismo real) e capitalistas, a temtica do trabalho, naquele momento, ainda

    era matria central para pensar o ser humano. Contudo, diferentemente do que propunha a teoria marxiana da

    segunda metade do sculo XIX, que refletia sobre o trabalho como meio para a transformao social, poltica e

    econmica, emergindo da luta dos trabalhadores aps o advento da industrializao, Hannah Arendt refletiu

    sobre o trabalho a partir da manifestao de vrios discursos, que tentavam antever qual seria o futuro do

    trabalhador mediado pelos novos avanos tecnolgicos. A questo que norteava esses discursos impunha-se

    sobre o poder das mquinas na longevidade do esforo do homem na lgica trabalhista. Para a autora, esses

    discursos convergiam na direo do seguinte pensamento: [...] o advento da automao, [...] dentro de

    algumas dcadas, provavelmente esvaziar as fbricas e liberar a humanidade do seu fardo mais antigo e

    natural, o fardo do trabalho e a sujeio necessidade (p. 5). No entanto, a autora no concordava com essa

    previso. Hannah Arendt argumentava que essa suposta substituio dos homens pelas mquinas era apenas

    aparente, uma vez que a era moderna teria trazido, em sua concepo, uma glorificao do trabalho, que

    resultou na transformao factual de toda a sociedade em uma sociedade trabalhadora (p. 5). No momento

    em que Hannah Arendt publica sua obra definindo o que era o trabalho na perspectiva de uma filosofia

    poltica, logo aps a Segunda Guerra Mundial, e ainda associando a sua importncia condio humana e s

    previses da condio do trabalhador para o futuro mediado pela tecnologia, no Brasil tambm se travava uma

    discusso respeitvel sobre a natureza do trabalho (rural e urbano), a caracterizao do trabalhador e o conjunto

    de prticas estatais, ou civis, necessrias para a manuteno/melhoria da condio de vida dos trabalhadores

    brasileiros. Estava ocorrendo um desdobramento discursivo/imagtico/simblico, pelos mais variados estados,

    tanto nas instncias oficiais, quanto nos mais diversos campos de saber e no conjunto dos trabalhadores

    nacionais sobre o trabalho, e foi nessa ocasio que o trabalhismo teve seu maior momento de expanso no

    palco brasileiro, aprimorando, como apontado anteriormente, as estratgias de aproximao com as massas

    (ARENDT, Hannah. A condio humana. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2010). 17

    Percebeu-se que, ao longo do sculo XX, os grupos polticos nacionais, exercendo as prticas polticas

    partidrias tomavam suas decises muito longe da participao popular. Graciliano Ramos, em sua obra So

    Bernardo, analisa tal situao em dilogo entre alguns personagens: - O senhor acredita nisso? Perguntou

    Joo Nogueira. - Em qu? - Eleies, deputados, senadores. Retra-me, indeciso, porque no tenho idias

    seguras a respeito dessas coisas. - A gente se acostuma com o que v. E eu, desde que me entendo, vejo

    eleitores e urnas. s vezes suprimem os eleitores e urnas: bastam livros. Mas bom um cidado pensar que

    tem influncia no governo, embora tenha nenhuma. L na fazenda o trabalhador mais desgraado est

    convencido de que, se deixar a peroba, o servio emperra. Eu cultivo a iluso. E todos se interessam.. Paulo

    Honrio, personagem central do romance de Graciliano Ramos, no ltimo trecho da citao aponta dois

    aspectos importantes para avaliar a forma como pensavam a poltica partidria os que a praticavam ainda em

    meados da dcada de 1960 no Brasil, em especial em estados mais agrrios como o Piau. Para o personagem,

  • 20

    quem restou exercer o nico papel que lhe foi outorgado desde o princpio da Repblica, o de

    votar18

    .

    Entretanto, tticas foram sendo criadas ao longo dos anos republicanos por parte

    dos populares, resultando na emergncia de outras formas de participao na poltica

    piauiense, como, por exemplo, o ato de barganhar voto com um ou vrios candidatos,

    demonstrando que a populao tambm encontrava maneiras de lidar com o espao que lhe

    foi reservado. Essa aproximao superficialmente direta se dava de forma mais especfica no

    momento da eleio, quando os polticos procuravam os eleitores estabelecendo uma conexo

    por intermdio do apelo afetivo-emocional (o candidato era algum conhecido da famlia, de

    algum poderoso da cidade, era o grande latifundirio ou havia um apelo moral para aquela

    candidatura), o que, de forma geral, ressaltava o vnculo pessoal do candidato com o eleitor.

    Para alm desse aspecto afetivo-emocional, havia a questo material, que se configurava na

    doao de dinheiro ou bem material durante a cooptao do voto. Por fim, tambm prevalecia

    a relao de mandonismo19

    , pautada pela condio de lealdade-submisso, em especial

    daqueles que j obtiveram favores das figuras polticas ou que, como muitos, no caso do

    Piau, viviam nas terras dos polticos ou lderes locais.

    Havia no Piau uma dinmica interna para a escolha dos candidatos, o

    encaminhamento das eleies, e, sobretudo, para a governana, que, na grande maioria das

    vezes, no dependia de consulta popular. Pelo contrrio, o exerccio do poder poltico era

    alheio s pretenses populares, estabelecendo-se, nesse sentido, uma dissociao entre a

    cultura poltica partidria e a cultura poltica popular. Com essa compartimentao no se

    em muitos momentos no se precisava de eleitores, tampouco de urnas, apenas dos livros, que eram as Atas de

    registro da votao. Prtica comum na Primeira Repblica, na qual se verificam alguns indcios, como ser

    visto no decorrer da tese, de desconfianas entre os polticos de que algumas eleies foram manipuladas logo

    aps o fim do Estado Novo, quando candidatos teriam sido eleitos pelo Piau sem sequer conhecerem o Estado.

    O segundo aspecto destacado a ideia de que, com a emergncia do regime republicano, em teoria o cidado

    seria o elemento central no processo sucessrio, algo que, segundo o personagem, assemelhava-se a uma

    iluso, pois o que interessava no mbito poltico era resolvido entre os partidrios e os partidos. De certa

    forma, na cultura poltica partidria piauiense muitos desses aspectos podem ser considerados, como se ver

    mais adiante. Ver: RAMOS, Graciliano. So Bernardo. 95. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 77. 18

    Sobre o papel do voto como o nico instrumento possvel de atuao do eleitor, ver: CARVALHO, Jos

    Murilo. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a Repblica que no foi. So Paulo: Companhia das Letras, 1987. 19

    Segundo Jos Murilo de Carvalho, o Mandonismo Refere-se existncia local de estruturas oligrquicas e

    personalizadas de poder. O mando, o potentado, o chefe, ou mesmo o coronel como indivduo, aquele que,

    em funo do controle de algum recurso estratgico, em geral a posse da terra, exerce sobre a populao um

    domnio pessoal e arbitrrio que a impede de ter livre acesso ao mercado e sociedade poltica. O mandonismo

    no um sistema, uma caracterstica da poltica tradicional. Existe desde o incio da colonizao e sobrevive

    ainda hoje em regies isoladas. A tendncia que desaparea completamente medida que os direitos civis e

    polticos alcancem todos os cidados. A histria do mandonismo confunde-se com a histria da formao da

    cidadania. (CARVALHO, Jos Murilo de. Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: uma discusso

    conceitual. Dados, Rio de Janeiro, v. 40, n. 2, 1997. Disponvel em: . Acesso em: 25 ago. 2014).

  • 21

    est fazendo um corte severo entre as duas formas de apreenso do exerccio da poltica, pois

    em alguns momentos se misturavam e se congregavam, como se pode perceber, em especial

    durante o processo eleitoral. Entretanto, existiam condutas prprias dos membros dos partidos

    polticos no acessadas pelas camadas populares, assim como o resultado de nenhuma eleio

    era definido a priori pelos partidos, pois o voto ainda estava sob a alada do eleitor.

    O segundo ponto que se pode destacar est relacionado a um aspecto que

    circundava no Contexto Cultural local desde antes do Estado Novo e que imperava na cultura

    poltica partidria: a utilizao da violncia como forma de esteio poltico.20

    Ameaas,

    perseguies, prises, incndios criminosos e assassinatos caracterizavam, muitas vezes, as

    disputas locais entre os partidos. O exerccio da chefia poltica era considerado reduto de

    poucos e, de forma geral, os que dominavam esses meios tinham sob sua guarda a posse da

    terra, assim como tambm eram detentores de um poder simblico, que fazia com que boa

    parcela dos populares/eleitores os tratassem com deferncia.

    Nesse cenrio, revelava-se outro quadro interessante, que cabe ressaltar, no que

    tange ao trabalho. Os lderes apoiadores dos vencedores nos pleitos eleitorais tinham a

    possibilidade de dialogar e barganhar benefcios para os seus apadrinhados, tanto com os

    governos estaduais quanto com os federais. Em uma terra quase sem indstrias e com

    predomnio do latifndio, os empregos pblicos eram utilizados como negociata, suscitando -

    muitas vezes, e at hoje - calorosas e acirradas disputas eleitorais nas pequenas e grandes

    cidades, uma vez que os vitoriosos geralmente teriam seus assentos reservados nas fileiras

    empregatcias das prefeituras e governo e os perdedores, por seu turno, sairiam das vagas

    existentes, ou amargariam mais alguns anos sem o trabalho pblico por indicao.

    Longe dos benefcios da poltica partidria com as nomeaes de cargos pblicos,

    a maior fora de trabalho no Piau entre as dcadas de 1950 e 1960 era eminentemente rural.

    Muitos dos que trabalhavam no campo eram agregados, ou seja, moravam de favor nas terras

    de outrem e produziam como imposto pelos proprietrios.21

    Outros eram pequenos

    agricultores, que possuam lotes de terra e viviam, ou melhor, sobreviviam do que produziam.

    Tanto agregados como pequenos agricultores eram fortemente influenciados pela religio

    catlica22

    e a maioria estava imersa no analfabetismo23

    . Nesse aspecto, considera-se relevante

    20

    Ver: NASCIMENTO, Francisco Alcides do. A cidade sob o Fogo: modernizao e violncia policial (1937-

    1945). Teresina: Fundao Monsenhor Chaves, 2002. 21

    Ver: NOGUEIRA, Merlong Solano. Pequenos produtores rurais: movimentos e interaes com a Reforma

    Agrria: Brasil e Piau (1970-1990). 1997. 192 p. Dissertao (Mestrado) Pontifcia Universidade Catlica

    (PUC), So Paulo, SP, 1997. 22

    Segundo Ana Cristina Costa Lima, entre a dcada de 1940 e os anos 2000 o percentual das pessoas que se

    consideravam catlicas no Piau era altssimo. Em 1940, 99,6%, e nos anos 2000, 89,8% da populao se

  • 22

    assinalar que o nmero de analfabetos era de tal forma expressivo, segundo Jos Camilo da

    Silveira Filho, que na dcada de 1960, em meio a uma populao de 1.300.000 (um milho e

    trezentos mil habitantes), apenas 230.264 (duzentos e trinta mil e duzentos e sessenta e

    quatro) eram aptos para o voto, porque 81% da populao no sabia ler, nem escrever.24

    Entre as violentas disputas polticas eleitorais, o fisiologismo e as aes e reaes

    populares ao quadro poltico, entra em cena, no Piau, um governo com propostas diferentes

    das que existiam at ento. Mesmo que apenas no plano do discurso, os trabalhadores,

    naquela gesto, ganharam destaque no contexto cultural, sendo alvo de disputas por outros

    setores sociais, como a Igreja Catlica. O objetivo central deste estudo compreender as

    culturas polticas piauienses e as disputas sobre o trabalhismo no Estado durante as dcadas

    de 1940, 1950 e 1960, o contexto cultural daquele espao, no qual emergiram vrios discursos

    sobre o trabalho, e as prticas polticas e sociais que pretendiam orientar a ao dos

    trabalhadores. Nesse sentido, o estudo versa, na primeira parte, sobre a cultura poltica

    partidria no Piau, sua apartao de uma cultura poltica popular e seus significados

    simblicos, valorativos e organizacionais; na segunda parte, analisa-se a emergncia dos

    trabalhismos no contexto cultural local, fazendo com que despontasse a circulao de ideias e

    uma disputa pela organizao dos trabalhadores. Para se compreender tais aspectos, debrua-

    se sobre a poltica partidria, sempre que possvel sob a ao dos prprios trabalhadores, e,

    por fim, sobre a atuao da Igreja Catlica e a importncia dos valores cristos no Piau.

    Para se compreender uma multiplicidade de expectativas, planos e projees,

    partindo de grupos to variados e complexos, faz-se necessrio o uso de noes que estejam

    vinculadas ao debate histrico e que possam fornecer pistas para analisar as sensibilidades de

    uma poca. Contudo, precisa-se apontar que, antes de qualquer construo terica, a

    apropriao de algumas dessas noes ocorreu de acordo com as peculiaridades da

    experincia histrica. Os conceitos foram apropriados e confrontados com as vivncias, pois

    considerava pertencente religio catlica (LIMA, Ana Cristina da Costa. Prticas de devoo a Nossa

    Senhora do Perptuo Socorro na Vila Operria, Teresina PI. 2009. 220 f. Dissertao (Mestrado) Ps-

    Graduao em Histria da Universidade Federal do Piau (UFPI), Teresina, PI, 2009). 23

    Segundo Vanessa Farias, no censo de 1940, os piauienses que sabiam ler e escrever correspondiam a um total

    de 128.413 pessoas, sendo 75.468 homens e 52.945 mulheres. O nmero de analfabetos no Estado somava

    544.982: 256.076 homens e 288.906 mulheres no sabiam ler nem escrever. E o nmero de pessoas de cinco

    anos e mais de instruo no declarada totalizou 1.193 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E

    ESTATSTICA. Censo demogrfico: populao e habitao; censos econmicos: agrcola, industrial,

    comercial e dos servios. Rio de janeiro, 1952 apud FARIAS, Vanessa Soares Negreiros. As transformaes na

    educao piauiense na Era Vargas. In: SIMPSIO NACIONAL DE HISTRIA, 27., 2013. Anais... Natal,

    RN, 2013. Disponvel em: . Acesso em: 16 jan. 2014). 24

    SILVEIRA FILHO, Jos Camilo da. Eleies de 1962: estudo e tentativa de interpretao. Teresina: [s.n.],

    1963.

  • 23

    no se pretendia que o mundo se adequasse a eles, mas que ajudassem a problematizar o

    universo da pesquisa, que muito mais sensvel do que palpvel.25

    Inicialmente, para se percorrer tal caminho, houve que se compreender que o

    exerccio da poltica faz parte da trama que compe o quadro cultural de um povo, razo pela

    qual se adotou a concepo de Cultura Poltica26

    , noo que favorece o entendimento do

    cenrio no qual as disputas pelo trabalhismo estavam prestes a despontar no Piau. No que

    tange Cultura Poltica, pode ser compreendida conforme aponta Serge Berstein27

    , como um

    conjunto coeso no qual todos os aspectos que o compem esto conectados entre si,

    possibilitando a constituio de uma identidade.28

    A Cultura Poltica, compreendida dessa

    forma, revela as aes dos homens em um momento da histria, levando em considerao

    seus valores, crenas, memrias especficas e normas, em funo de leituras partilhadas no

    passado, assim como das aspiraes alimentadas para o futuro. Esse conjunto de referentes

    pode ser compartilhado em um partido, difundido socialmente no seio de uma famlia ou em

    uma tradio que pode lhe conferir identidade prpria.29

    Nesse sentido, as Culturas Polticas,

    no plural, vo coexistindo e se modificando em cada sociedade. No percurso desta pesquisa,

    priorizar-se- a compartimentao da Cultura Poltica piauiense, a diviso entre o que seria

    uma cultura poltica partidria e uma cultura poltica popular. Tal diviso se faz necessria

    pelo apartamento institucional e ao mesmo tempo simblico do exerccio das prticas

    culturais relativas ao universo poltico-partidrio e o mundo das representaes sociais

    partilhadas sobre a participao popular na poltica. Segundo Serge Berstein, no interior de

    uma nao existe pluralidade de culturas polticas, mas com zonas de aproximao entre as

    mesmas, pois em um dado momento elas tendem a se encontrar. Isso visvel no caso desta

    pesquisa, quando se destacam alguns desses momentos em que a cultura poltica popular, por

    exemplo, rejeita ou aprova algum poltico, ou mesmo quando a cultura poltica partidria

    demanda uma aproximao durante o processo eleitoral.

    25

    E. P. Thompson reflete que "as pesssoas no experimentam sua prpria experincia apenas como idias, no

    mbito do pensamento e de seus procedimentos [...]. Elas experimentam sua experincia como sentimento e

    lidam com esses sentimentos na cultura, como normas, obrigaes familiares e de parentesco, e reciprocidade,

    como valores ou [...] na arte ou nas convices religiosas. Essa metade da cultura [...] pode ser descrita como

    conscincia afetiva e moral" (THOMPSON, E. P. A misria da teoria ou um planetrio de erros: uma crtica

    ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981, p. 189). 26

    BERSTEIN, Serge. A Cultura Poltica. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-Franois. Para uma nova

    histria cultural. Lisboa: Estampa, 1998. p. 349-366. 27

    Ibid., p. 363. 28

    Ibid., p. 350-351. 29

    SIRINELLI, Jean-Franois. Elogio da complexidade. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-Franois.

    Para uma nova histria cultural. Lisboa: Estampa, 1998. p. 409-419, p. 414.

  • 24

    Ainda sobre a relevncia da definio de Cultura Poltica, Angela de Castro

    Gomes sugere aspectos na sua composio importantes para o estudo do Piau, como a

    visibilidade que se confere aos sujeitos na histria, todos sujeitos de sua prpria histria30

    .

    Nesse sentido, aprofunda-se o estudo em nomes e trajetrias pessoais com o propsito de, a

    partir delas, fazer emergir o que da poltica cultural est imerso no particular e pessoal.

    Para Rodrigo Patto S Motta a noo de Cultura Poltica permite uma abordagem

    culturalista dos fenmenos de disputa de poder. Em sua concepo, essa noo pode ser

    observada de forma mais generalizante, tal como cultura poltica, ou de forma mais

    especfica, em que se entende o termo no plural, como culturas polticas, ambas

    complementares. Neste trabalho, observa-se a cultura poltica partidria no Piau enquanto

    cultura que se solidifica entre os partidos polticos no ps-1945 com caractersticas regionais,

    mas que est contida na cultura poltica partidria nacional, por isso a atuao poltica, ao

    mesmo tempo em que se conjuga aos valores dos grupos partidrios em mbito nacional, tem

    como fundamento de existncia as singularidades culturais locais. Para Motta, a noo de

    cultura poltica pode ser compreendida como um conjunto de prticas, valores e

    representaes que compem o cotidiano de grupos especficos, expressando a sua identidade

    coletiva, descortinando o mundo ao qual pertencem.31

    Observa-se que a poltica pode/deve ser traduzida como elemento cultural, e, ao se

    refletir dessa maneira, entra-se em um campo profcuo de anlise, que parte, sobretudo, para a

    compreenso da dimenso poltica como substrato/parcela da teia que sustenta um contexto

    cultural32

    . Segundo Geertz, comparada a sistemas entrelaados de signos interpenetrveis (o

    30

    GOMES, Angela de Castro. Histria, Historiografia e Cultura poltica no Brasil: algumas reflexes. In:

    SOIHET, Rachel et al. (Org.). Cultura poltica: ensaios de histria cultural, cultura poltica e ensino de

    histria. Rio de Janeiro: Maud, 2005. p. 21-41, p. 24. Ver tambm: GOMES, Angela de Castro. Poltica:

    Histria, Cincia e Cultura etc. Revista Estudos Histricos, Rio de Janeiro, v. 9, n. 17, p. 59-84, 1996. 31

    MOTTA, Rodrigo Patto S. Desafios e possibilidades na apropriao de cultura poltica pela historiografia. In:

    ______ (Org.). Culturas polticas na histria: novos estudos. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009. p. 13-38,

    p. 21. 32

    Uma questo levantada por Geertz no que se refere atuao do antroplogo tornou-se essencial para a

    produo deste texto: o antroplogo lana seu olhar sobre as particularidades para compreender o que delas

    remete quilo que se tem de universal. Nesse sentido, o trabalho, sendo um elemento universal ao homem,

    pode ser apreendido em seu carter valorativo/simblico/social mediante as particularidades dos grupos que o

    praticam. Para ter acesso a esse conjunto de valores/smbolos, o pesquisador tem, sobretudo, que se reportar s

    interpretaes dos que dele compartilham. Portanto, caberia ao pesquisador a anlise dessas interpretaes,

    transpondo as suas para a escrita. Geertz revela, ainda, que aquilo que se constri enquanto pesquisadores no

    so os objetos sobre os quais se debrua, mas interpretaes sobre eles. Essas interpretaes buscam os

    significados com base no acervo intelectual que se possui, tentando, quase sempre, lanar um olhar sobre o que

    se reconhece ou desconhece no objeto de estudo. Em decorrncia de tal compreenso, o autor aponta que se

    deve encarar a cultura enquanto Contexto, pois [...] ela um contexto, algo dentro do qual eles [os

    acontecimentos sociais, os comportamentos e as instituies ou os processos] podem ser descritos de forma

    inteligvel isto , descritos com densidade (p. 10). O contexto a trama social, temporalizada, na qual os

    acontecimentos ganham sentido e significado, por tudo isso a expresso Contexto cultural o ponto chave de

  • 25

    que eu chamaria de smbolo, ignorando as utilizaes provinciais), a cultura no um poder,

    algo ao qual podem ser atribudos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos

    e as instituies ou os processos; ela um contexto, algo dentro do qual eles podem ser

    descritos de forma inteligvel isto , descritos com densidade.33

    Nesse sentido, enquanto

    contexto, no se poderia desvincular qualquer anlise sobre as disputas pelos trabalhadores no

    Piau de elementos fundantes como partidos polticos, religio, propostas trabalhistas e

    cotidiano dos trabalhadores. o contexto que fundamenta a anlise sobre o que foram os

    trabalhismos, tanto oficial quanto religioso, e os graus de dificuldades variados que

    apresentaram as tentativas de sua introduo no Piau, porque visavam se inserir/interferir na

    cultura poltica partidria e popular.

    Para o historiador, entretanto, essa compreenso do social lana a problemtica de

    como deve se reportar a esse contexto. Primeiramente vale-se de alguns episdios de carter

    excepcional a serem analisados como parte manifesta e latente do social, com base no

    entendimento de que a partir da exceo pode-se observar o funcionamento do que

    efetivamente seria compreendido na sociedade como a norma. Ao se observar atentamente

    esses episdios, como no caso singular do segundo captulo, busca-se compreender as

    dimenses que compem a tessitura do real. Portanto, observ-los possibilita que se alcance a

    compreenso da adeso/partilha de valores, crenas e smbolos entre os membros de

    determinada sociedade.

    O historiador, ao lanar seus olhos sobre o passado, tenta produzir sentido para

    outro momento, no qual vigora um corpo de ideias muitas vezes diferentes das com as quais

    lida nos dias atuais. Apesar de todos os obstculos34

    , mas com o intuito de tentar sentir esse

    outro momento da forma mais aproximada possvel de como se manifestou para aqueles que o

    vivenciaram, especialmente no que se refere questo do trabalhismo e das disputas polticas

    percepo sobre os acontecimentos no Piau, na escrita desta tese. Ver: GEERTZ, Clifford. A interpretao

    das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2012a. 33

    GEERTZ, Clifford. A interpretao das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2012a, p. 10. 34

    Certamente problemas apareceram durante a construo desta tese, pois h uma significativa diferena entre a

    atuao do antroplogo, que pesquisa in loco, e a do historiador, que pesquisa por meio dos fragmentos do

    passado. Considera-se que as problemticas que se teve que enfrentar, como a no compreenso de muitos

    acontecimentos, so desafios que podem ocorrer tanto ao antroplogo quanto ao historiador, com a diferena

    de que, para este, o lapso do tempo embaa ainda mais a viso. Destarte, ambos enfrentam/experienciam um

    estar/no-estar presente no processo de pesquisa. O antroplogo, por mais que tente, e que esteja diariamente

    no convvio de uma comunidade, nunca penetrar em outra cultura, ser sempre outro, um estranho, o

    estrangeiro, como lembra Geertz. Para esse autor, o antroplogo no submerge em outra Cultura, apenas se

    coloca no seu caminho para ser envolvido e enredado por ela. Esse distanciamento, em maior grau, sentido

    por aquele que faz Histria (GEERTZ, Clifford. Atrs dos fatos: dois pases, quatro dcadas, um antroplogo.

    Petrpolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2012b).

  • 26

    partidrias, pensou-se a construo deste estudo a partir de uma Antropologia Histrica35

    ,

    cuja concretizao alicerou-se sobre a utilizao de alguns estudos importantes como

    modelo. Uma das obras que de forma singular marcou esse percurso foi O imaginrio

    trabalhista36

    , de Jorge Ferreira, possibilitando que se repensassem as novas sensibilidades em

    torno do fazer historiogrfico, em especial a prpria histria poltica. O autor aponta, em uma

    escrita antropolgica, que a poltica no perodo de 1945 a 1964 correspondia s tradies,

    crenas e valores que circulavam na sociedade brasileira da poca37

    , facilitando a percepo

    de que, nos dizeres de Geertz, a poltica de um pas reflete o modelo de sua cultura38

    , ou

    mesmo de que a poltica componente importante da cultura de um povo. Foi essa dimenso

    antropolgica, sobretudo, que ajudou a observar as dcadas de 1950 e 1960 a partir das

    palavras utilizadas pelos prprios atores sociais, como o prprio termo trabalhismo, expresso

    corriqueira nos jornais que, de maneira especial, estava relacionada aos polticos do PTB, ou

    quase exclusivamente s aes daquele partido. Contudo, o termo, como qualquer expresso,

    tinha a sua polissemia, e poderia ser lanado a outras instncias que tentavam se aproximar

    dos trabalhadores, como, por exemplo, a Juventude Trabalhista ou a Liga das Mulheres

    Trabalhistas, e at mesmo estar relacionado a setores da Igreja Catlica como a Juventude

    Operria Catlica (JOC). Perceber o trabalhismo como termo endgeno tambm levou

    reflexo sobre o termo populismo39

    , uma vez que se tratava de expresso pouco encontrada

    nos peridicos da poca e cuja meno, quando ocorria, resultava na caracterizao positiva

    daquele a quem se direcionava. Nas fontes pesquisadas, o termo ganhou conotao negativa a

    partir de 1962, geralmente destinando-se a adjetivar polticos tidos como demagogos40

    .

    Nesse sentido, e a pretexto da prpria Antropologia Histrica proposta como

    metodologia para este estudo, concebeu-se o trabalhismo e no o populismo tambm como

    categoria analtica. Isso porque, enquanto categoria, o populismo primava pela concepo de

    que a espacialidade do ncleo urbano industrializado serviria como lcus de atrao para a

    35

    GEERTZ, op. cit., 2012a. Sobre a Antropologia Histrica, ver: DARNTON, Robert. O grande massacre de

    gatos, e outros episdios da histria cultural francesa. Traduo: Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: Graal,

    1986b; DARNTON, Robert. Uma Entrevista com Robert Darnton. Revista de Estudos Histricos, Rio de

    Janeiro, v. 2, n. 4, p. 232-243, 1989; DARNTON, Robert. Os dentes falsos de George Washington: um guia

    no convencional para o Sculo XVIII. Traduo: Jos Geraldo Couto. So Paulo: Companhia das Letras,

    2005; DARNTON, Robert. Poesia e Polcia: redes de comunicao na Paris do sculo XVIII. Traduo:

    Rubens Figueiredo. So Paulo: Companhia das Letras, 2014. 36

    FERREIRA, Jorge. Imaginrio trabalhista: getulismo, PTB e cultura poltica popular 1945-194. Rio de

    Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005a. 37

    Ibid., p. 11. 38

    GEERTZ, Clifford. A Interpretao das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2012a, p. 135. 39

    Para saber mais sobre essa discusso ver o livro: FERREIRA, Jorge (Org.). O populismo e sua histria:

    debate e crtica. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001. 40

    Ver: GOVERNOS populistas. Folha do Nordeste, Teresina, p. 6, 4 maio 1962.

  • 27

    imigrao de um grande nmero de trabalhadores do campo. Nesse espao citadino o grupo

    campesino formaria uma massa suscetvel a lderes carismticos, portanto, sem condies de

    exercer plenamente sua auto-organizao. Partindo-se dessa ideia e tentando associ-la

    regio estudada, observou-se que mesmo no espao urbano piauiense as reas de

    desenvolvimento eram parcamente industrializadas, sendo que a maioria dos trabalhadores

    ainda estava no campo buscando modos de sobrevivncia. Portanto, poucas vozes da poltica

    partidria chegavam a ter essa expressiva ressonncia carismtica, como aponta a noo de

    populismo, em especial porque se deve levar em considerao, primeiro, a relao dos

    trabalhadores com os lderes e chefes locais, que acabavam fragmentando o poder de uma

    nica liderana poltica; nesse sentido, as relaes eram estabelecidas a partir da importncia

    do lder local, geralmente detentor da posse da terra ou irrompido da esfera religiosa.

    Segundo, deve-se ressaltar um fator essencial sobre essa condio de participao popular, o

    analfabetismo, que, de uma forma ou de outra, acabava por promover um maior

    descaso/excluso das questes polticas partidrias, visto que o voto era proibido aos que no

    possuam letramento.41

    Percebeu-se que, muitas vezes, a atrao em massa sobre os assuntos

    partidrios se efetivava quando fomentada por outras questes, como ocorreu com a morte do

    candidato ao governo pelo PTB, Demerval Lobo, e ao Senado pela UDN, Marcos Parente,

    que promoveu uma comoo social um ms antes do pleito eleitoral, aspectos muito mais

    ligados cultura do que puramente manipulao de lideranas.

    Por sua vez, os estudos sobre o trabalhismo, nascidos da pena de muitos

    historiadores que possuem tambm formao e influncia da rea da Cincia Poltica e da

    Sociologia, faziam muito mais sentido proposta deste estudo, porque enfatizavam a

    importncia do papel dos partidos polticos e de sua relao com os trabalhadores, surgindo,

    nesse contexto, vrios e referenciais estudos sobre o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).

    Construiu-se, assim, um olhar privilegiado e novidadeiro sobre a esfera poltica oficial.42

    O

    41

    Os analfabetos s adquiriram o direito ao voto em 1985 (DULCI, Otavio Soares. As elites polticas. In:

    AVELAR, Lcia; CINTRA, Antnio Octvio (Org.). Sistema poltico brasileiro: uma introduo. 3. ed. Rio

    de Janeiro: Konrad Adenauer Stiffung; So Paulo: Editora Unesp, 2015. p. 225-235, p. 228). 42

    Ver: GOMES, Angela de Castro. A inveno do trabalhismo. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005;

    DELGADO, Luclia de Almeida Neves. Partidos polticos e frentes parlamentares: projetos, desafios e

    conflitos na democracia. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Luclia de Almeida Neves (Org.). O Brasil

    Republicano - o tempo da experincia democrtica: da democratizao de 1945 ao golpe civil-militar de

    1964. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003. p. 127-154; DELGADO, Luclia de Almeida Neves. PTB:

    do Getulismo ao Reformismo (1945-1964). 2. ed. So Paulo: LTr, 2011; BENEVIDES, Maria Victoria de

    Mesquita. O PTB e o Trabalhismo: partido e sindicato em So Paulo: 1945-1964. So Paulo: Brasiliense,

    1989; ARAJO, Maria Celina Soares d'. Sindicatos, carisma e poder: o PTB de 1945-65. Rio de Janeiro:

    Editora da Fundao Getlio Vargas, 1996; BODEA, Miguel. Trabalhismo e populismo no Rio Grande do

    Sul. Porto Alegre: UFRGS, 1992; FERREIRA, Jorge. Imaginrio trabalhista: getulismo, PTB e cultura

    poltica popular 1945-194. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005a.

  • 28

    trabalhismo43

    , para esse ncleo intelectual, referia-se de forma singular a um projeto poltico,

    sobretudo partidrio, que pretendia atuar significativamente na vida dos trabalhadores

    nacionais, e que, em certa medida, foi posto em prtica por sujeitos cuja atuao se

    caracterizava por tentarem estabelecer conexes com as camadas mais pobres da sociedade.

    Para uma definio mais precisa da categoria analtica, recorreu-se s obras de

    intelectuais que se debruaram sobre o trabalhismo no Brasil, nas quais se encontraram fluxos

    distintos de percepo sobre a significao do termo.44

    Apesar da relao com tantos outros

    conceitos e ismos, o que existe de fato em comum, na grande maioria dos estudos sobre o

    trabalhismo, uma tentativa de apreend-lo na documentao do perodo de 1945 a 1964, em

    especial associando-o ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Talvez o ponto central na

    problemtica da impreciso seja justamente esse, pois, segundo alguns estudiosos, no se

    pode negar o arcabouo intelectual que cercou os petebistas no perodo de 1945 a 1964, uma

    vez que havia uma preocupao em construir uma estrutura doutrinria slida no seio do PTB,

    no entanto, os prprios dirigentes trabalhistas no concordavam quanto ao seu contedo.45

    Tendo como foco central de percepo o trabalhismo no Brasil, os autores se voltaram para as

    anlises das formulaes intelectuais-polticas do perodo final do Estado Novo; para as

    propostas Varguistas (1951-1954); para os discursos intelectuais de tericos petebistas; para

    as prticas do PTB e sua relao com o poder estatal e os movimentos sociais e sindicais.46

    Diante da multiplicidade de autores e propostas, percebeu-se que o trabalhismo

    foi alado categoria analtica na Histria, assumindo a carga de complexidade de qualquer

    noo que se constri a partir de camadas de tempos. Existem divergncias quanto ao

    manancial terico que o define, quanto sua composio, e at mesmo quanto forma de

    atuao dos trabalhistas. Em comum, os estudos que foram produzidos tentam compreender a

    dinmica poltica, elegendo como elemento propulsor a relao entre a classe trabalhadora,

    43

    Enquanto esquerda nacional, Daniel Aaro Reis concebe o termo tambm como nacional-estatismo. Ver: REIS,

    Daniel Aaro. As esquerdas no Brasil: culturas polticas e tradies. In: FORTES, Alexandre (Org.). Histria e

    perspectivas da esquerda. So Paulo: Chapec: Editora Fundao Perseu Abramo/Argos, 2005. p. 173- 182. 44

    A dificuldade de definir a noo no aspecto social foi tambm expressa pelos prprios autores: [...] at hoje a

    definio do que seja trabalhismo entre ns bastante polmica. Ela tem sido associada indistintamente a

    sindicalismo, a Vargas, a nacionalismo, a socialismo, a autoritarismo, a populismo e at mesmo a comunismo e

    a democracia social (GOMES, Angela de Castro; DARAJO, Maria Celina Soares. Getulismo e

    trabalhismo. So Paulo: tica, 1989). 45

    Ibid. 46

    DELGADO, Luclia de Almeida Neves. PTB: do Getulismo ao Reformismo (1945-1964). 2. ed. So Paulo:

    LTr, 2011; BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. O PTB e o Trabalhismo: partido e sindicato em So

    Paulo: 1945-1964. So Paulo: Brasiliense, 1989; REIS, Daniel Aaro. As esquerdas no Brasil: culturas

    polticas e tradies. In: FORTES, Alexandre (Org.). Histria e perspectivas da esquerda. So Paulo:

    Chapec: Editora Fundao Perseu Abramo/Argos, 2005. p. 173-182; DELGADO, Luclia de Almeida Neves.

    Trabalhismo, nacionalismo e desenvolvimentismo: um projeto para o Brasil (1945-1964). In: FERREIRA,

    Jorge (Org.). O populismo e sua histria: debate e crtica. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001. p.

    167-203; BODEA, Miguel. Trabalhismo e populismo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 1992.

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    mesmo que aparea apenas em nvel eleitoral, e o projeto trabalhista do PTB e de certos

    lderes polticos. Alguns desses autores perceberam que os mecanismos de poder institucional

    e oficial, por mais repressivos que paream, tendem a se estabelecer como via de mo dupla;

    nesse sentido, o conceito foi, sobretudo, uma escolha de um grupo acadmico que visava

    ampliar o entendimento sobre as relaes polticas e sociais do perodo.

    Essa assertiva, contudo, no exclui do termo as suas peculiaridades, como por

    exemplo as vrias significaes atribudas noo de trabalhismo, em geral derivadas das

    mltiplas concepes tericas; o fato de essa noo ser analisada no seio de um nico partido,

    o PTB; e, sobretudo, a caracterstica de uma produo intelectual que evidencia uma anlise

    sobre os discursos e aes oficiais. Mesmo diante de tantos aspectos, afirma-se que se

    considera a noo de trabalhismo como a categoria analtica ideal para objeto deste estudo, e

    isso que se apontar nas prximas pginas deste trabalho.

    O trabalhismo tornou-se ainda mais importante nesta pesquisa no apenas pela

    emergncia do PTB ao governo piauiense, mas pelo intenso debate produzido sobre o

    trabalho, que gerou uma disputa pela organizao dos trabalhadores no Estado, tentando

    garantir formas de sua fixao no campo.47

    Um dos aspectos sobre o qual se debruou o de

    que essa noo gestou mais de uma concepo de ser e estar para os trabalhadores, resultando

    na percepo de que o trabalhismo no era um projeto nico, mesmo tendo o projeto

    trabalhista do PTB vigorado de forma mais efetiva no Brasil. Diante dessa premissa, por que

    no se pode afirmar que existiam propostas trabalhistas oriundas de pontos variados, para

    alm da sombra do PTB? Seria esse o caso da Igreja Catlica com relao aos trabalhadores

    no perodo? A obra de Angela de Castro Gomes delineia uma importante percepo sobre

    esse aspecto. Em A inveno do Trabalhismo48

    , a autora refletiu que nos anos iniciais da

    Repblica os prprios operrios e trabalhadores articularam ideias com relao ao trabalho,

    tomadas e ressignificadas posteriormente no final do Estado Novo, em especial pelo ministro

    do trabalho Marcondes Filho, que terminaram por servir como base para a criao do PTB e

    47

    Leila Menezes Stein apontou que durante as dcadas de 1950 e 1960, a Igreja Catlica atuou como fora

    importante para articular os sindicatos rurais no Brasil, destacando-se na configurao de um trabalhismo

    agrrio, que define como [...] aqueles movimentos e tendncias polticas que, caudatrios da herana

    getulista, de algum modo empenharam-se na afirmao institucional de canais de negociao para os conflitos

    de trabalho agrcola, em suas formas de relaes de moradores e colonos e assalariamentos temporrios,

    assim como para os conflitos sociais decorrentes da marginalizao social e poltica dos pequenos produtores

    agrcolas de ento. Tal trabalhismo tinha seu contraponto numa questo social agrria. Essa questo, que sem

    dvida prolonga-se por toda a vida republicana, seria potencializada nas dcadas de 1950 e 1960 pelas

    condies particulares da industrializao brasileira, assim como pelas presses sociais por sobre o sistema de

    dominao e de poder. Ver: STEIN, Leila Menezes. Trabalhismo, crculo operrio e poltica: a construo

    do Sindicato de Trabalhadores Agrcolas no Brasil (1954-1964). So Paulo: Annablume; Fapesp, 2008.

    (Coleo Trabalho e contemporaneidade), p. 45. 48

    GOMES, Angela de Castro. A inveno do trabalhismo. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.

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    para um iderio poltico, denominado de trabalhismo. Concebe-se que tais ideias sobre o